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I

Direito Público contemporâneo


A nova LINDB e as novas leis de Licitações e Contratos Administrativos e
de Improbidade Administrativa

Coordenadores
Antonio Carlos Villen
Alexandre de Mello Guerra

Alessandra Lopes Santana de Mello Flora Maria Nesi Tossi Silva


Alexandra Fuchs de Araújo Floriano de Azevedo Marques Neto
Alexandre de Mello Guerra Irene Patrícia Nohara
Alexandre Jorge C. da Cunha Filho Luis Francisco Aguilar Cortez
Aline Aparecida de Miranda Luis Manuel Fonseca Pires
Ana Rita de Figueiredo Nery Luiz Fernando Silva Oliveira
André Acayaba de Rezende Marcelo Benacchio
Caio Mário Lana Cavalcanti Mônica de Almeida Magalhães Serrano
Cassio Scarpinella Bueno Natalia de Sousa da Silva
Christianne de Carvalho Stroppa Paula Fernanda de Souza V. Navarro
Claudia de Abreu Monteiro de Castro Pedro Moniz Lopes
Cristiana Fortini Ricardo Cunha Chimenti
Fernando Campos Scaff Rogerio Bellentani Zavarize
Fernando da Fonseca Gajardoni Thiago Massao Cortizo Teraoka
Fernando Dias Menezes de Almeida Vicente de Abreu Amadei
Flávio Luiz Yarshell Vitor Marques

Prefácio
José Maria Câmara Junior
1

Direito Público
contemporâneo
A nova LINDB e as novas leis de Licitações e Contratos
Administrativos e de Improbidade Administrativa
Diretor
Desembargador José Maria Câmara Junior

Vice-Diretor
Desembargador Gilson Delgado Miranda

Conselho Consultivo e de Programas


Desembargador Ademir de Carvalho Benedito
Desembargador Alcides Leopoldo e Silva Júnior
Desembargadora Gilda Cerqueira Alves Barbosa Amaral Diodatti
Desembargadora Mônica de Almeida Magalhães Serrano
Desembargador Roberto Caruso Costabile e Solimene
Desembargador Vicente de Abreu Amadei
Juíza Camila de Jesus Mello Gonçalves
Antonio Carlos Villen
Alexandre de Mello Guerra
(coordenadores)

Direito Público
contemporâneo
A nova LINDB e as novas leis de Licitações e Contratos
Administrativos e de Improbidade Administrativa

Escola Paulista da Magistratura


São Paulo, 2023
Coordenação
Antonio Carlos Villen
Alexandre de Mello Guerra
Coordenação editorial
Marcelo Alexandre Barbosa
Capa
Esmeralda Luana Wonke Scopesi
Editoração, revisão, impressão e acabamento
Tikinet
Diagramação
Raquel Gomes | Tikinet
Revisão
Lucas Giron | Tikinet
Tiragem
525 exemplares

Direito Público contemporâneo: a nova LINDB e as novas leis de Licitações e Contratos


Administrativos e de Improbidade Administrativa / Coordenação: Antonio Carlos Villen
e Alexandre de Mello Guerra. São Paulo:Escola Paulista da Magistratura, 2023.

Vários autores.

ISBN 978-65-87080-50-5

1. Direito Público 2. Direto Administrativo 3. Contratos Administrativos 4. Licitação 5. LINDB


I. VILLEN, Antonio Carlos II. GUERRA, Alexandre de Mello III. Título

CDU-351.712.2.028(81)

Ficha catalográfica elaborada pelo Serviço de Acervo da Biblioteca da


Escola Paulista da Magistratura
Bibliotecária: Cintia Pontes de Souza - CRB/8 5730

Escola Paulista da Magistratura


Rua da Consolação, 1.483 - 1º ao 4º andar
CEP 01301-100 – São Paulo - SP
Fones: (11) 2711-1660 / 2711-1657
www.epm.tjsp.jus.br
imprensaepm@tjsp.jus.br
Sumário

Prefácio
José Maria Câmara Junior........................................................ 9

Apresentação
Antonio Carlos Villen e Alexandre de Mello Guerra........................11

I – Impactos da Lei nº 13.655/18 à Lei de Introdução às Normas


do Direito Brasileiro (Decreto-Lei nº 4.657/42)
1. Normas de Direito Público na LINDB para interpretação e integração no
Direito Administrativo
Fernando Campos Scaff..........................................................27

2. A promoção da segurança jurídica na Lei de Introdução às normas do


Direito Brasileiro
Fernando Dias Menezes de Almeida e Aline Aparecida de Miranda.......41

3. Segurança jurídica: contribuições da LINDB


Ricardo Cunha Chimenti.........................................................63

4. Lei nº 13.655/18: responsabilização do agente público e


consequencialismo nos atos e decisões administrativas
e judiciais
Thiago Massao Cortizo Teraoka.................................................73

5. Uma “questão de princípio”: a distinta dimensão da boa-fé nos contratos


administrativos
Pedro Moniz Lopes................................................................95

II – A nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos


(Lei nº 14.133/21)
1. Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos: panorama, princípios
e principais modificações
Vicente de Abreu Amadei..................................................... 117

2. LINDB no Direito Público e a nova Lei de Licitações e Contratos


Administrativos: impactos e convergências
Irene Patrícia Nohara.......................................................... 139
3. Teoria geral do contrato aplicada aos contratos administrativos:
ensaio sobre a função pública e a autonomia privada na Lei nº 14.133/21
Alexandre de Mello Guerra e Marcelo Benacchio......................... 155

4. Lei nº 14.133/21: a instrumentalidade das formas e o formalismo


moderado no controle administrativo licitatório
Cristiana Fortini e Caio Mário Lana Cavalcanti............................ 189

5. A confidencialidade das propostas no diálogo competitivo:


necessidade de ponderação do princípio da publidadade com os princípios
da propriedade privada e da livre concorrência para a efetivação do
princípio da eficiência
Luiz Fernando Silva Oliveira.................................................. 207

6. A nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos (Lei nº 14.133/21):


inexigibilidade/dispensa de licitação. Responsabilidade solidária do
contratante e agente público (art. 73)
Flora Maria Nesi Tossi Silva................................................... 237

7. Alteração unilateral do contrato administrativo e a obrigação de


restabelecimento do equilíbrio econômico-financeiro na Lei nº 14.133/21
Ana Rita de Figueiredo Nery.................................................. 281

8. Extinção dos contratos administrativos, recebimento do objeto,


pagamento e nulidade (NLLC, artigos 137-154)
Christianne de Carvalho Stroppa............................................ 313

9. O regime de nulidades dos contratos administrativos na Lei nº 14.133/21


Floriano de Azevedo Marques Neto e Natalia de Sousa da Silva........ 337

10. M
 eios alternativos de solução de controvérsias na nova Lei de Licitações
e Contratos Administrativos
Paula Fernanda de Souza Vasconcelos Navarro............................ 355

III – A nova Lei de Improbidade Administrativa (Lei nº 14.230/21)


1. Improbidade administrativa e sua reforma - principais alterações da
Lei nº 14.230/21 e seus impactos nos processos em curso e findos.
Novatio legis in mellius em Direito Administrativo Sancionador:
retroatividade ou irretroatividade da lei nova
Vicente de Abreu Amadei..................................................... 373

2. O
 reencontro da improbidade administrativa com o propósito da
Constituição Federal de 1988
Luis Manuel Fonseca Pires e Vitor Marques................................ 429
3. Mudou o sistema ou mudou o Direito? Alguns impactos da nova Lei de
Improbidade Administrativa na conformação sociojurídica do sistema de
tutela da moralidade
Alessandra Lopes Santana de Mello e Alexandre de Mello Guerra..... 447

4. Dano presumido ao erário e improbidade no procedimento licitatório:


breves considerações sobre o Tema nº 1.096 do Superior Tribunal de
Justiça e a nova redação do art. 10, inciso VIII, da Lei de Improbidade
Administrativa
André Acayaba de Rezende................................................... 467

5. O elemento subjetivo e a tipicidade da lei de improbidade no


art. 11 da nova lei
Luis Francisco Aguilar Cortez................................................. 479

6. Responsabilidade pessoal pela ineficiência funcional - análise à luz


das modificações operadas pela lei nº 14.230/21
Claudia de Abreu Monteiro de Castro ...................................... 493

7. Acordo de não persecução cível: um novo instrumento a serviço do


combate à improbidade administrativa
Alexandra Fuchs de Araújo e Alexandre Jorge Carneiro da Cunha Filho.. 509

8. Aspectos processuais e procedimentais da aplicação da nova Lei de


Improbidade Administrativa aos processos em curso e a desconstituição das
decisões judiciais proferidas antes do advento da nova lei
Mônica de Almeida Magalhães Serrano..................................... 535

9. Breves notas sobre a desconsideração da personalidade jurídica no


processo de tutela da probidade administrativa
Flávio Luiz Yarshell............................................................. 569

10. Afastamento cautelar do agente público na “nova” Lei de Improbidade


Administrativa
Fernando da Fonseca Gajardoni.............................................. 587

11. Tutela provisória na “ação de improbidade administrativa”


Cassio Scarpinella Bueno...................................................... 601

12. Produção antecipada de prova na improbidade administrativa


Rogerio Bellentani Zavarize.................................................. 617
9

Prefácio

É com imensa honra que a Escola Paulista da Magistratura apresenta


a obra coletiva Direito Público Contemporâneo.
A coletânea é coordenada pelo desembargador Antonio Carlos Villen
e pelo juiz Alexandre de Mello Guerra, colaboradores assíduos da Escola,
que têm contribuído efetivamente para a melhor compreensão e aplicação
das inovações legislativas, organizando com muito brilho cursos, ciclos
de palestras e núcleos de estudos, com destaque para o ciclo sobre as
alterações na Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro (LINDB)
e para os núcleos de estudos sobre a nova Lei de Licitações e Contratos
Administrativos e sobre a nova Lei de Improbidade Administrativa.
Esta obra é resultado dos debates desenvolvidos nesses encontros e
reúne artigos de um seleto grupo de magistrados e professores que se debru-
çaram sobre os mais diversos temas que envolvem as novas legislações.
A primeira parte é dedicada à análise da LINDB e às alterações
promovidas no Direito Público com a edição da Lei nº 13.655/18, trazen-
do reflexões sobre segurança jurídica, paradigmas para interpretação e
aplicação do Direito Administrativo, impactos do princípio da boa-fé nos
contratos e decisões administrativas, reflexos na punição por atos de
improbidade administrativa lesivos ao erário, responsabilização do agente
público e motivação nas decisões em Direito Público, entre outros temas.
Na sequência são aprofundadas questões relacionadas às alterações
promovidas pela nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos, entre
elas o direito intertemporal, os impactos e convergências da LINDB e da
nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos, as novas modalidades
de licitação, a inexigibilidade/dispensa de licitação, o uso dos meios
alternativos de solução de controvérsias, a responsabilidade solidária
do contratante e agente público, a execução, alteração e extinção dos
contratos e os instrumentos legais de prevenção à corrupção.
A terceira e última parte apresenta estudos sobre as principais
alterações da nova Lei de Improbidade Administrativa, focando em
aspectos como a convergência com a LINDB, a aplicação do Direito
Administrativo Sancionador, os impactos da nova lei na jurisprudência
das cortes superiores, o elemento subjetivo e a tipicidade da improbidade
administrativa, o regime de prescrição, os tipos e sanções na nova lei,
as alterações processuais/procedimentais, a produção de provas e a
10 

conversão da ação de improbidade administrativa em ação civil pública,


entre outras questões.
Em suma, esta é uma publicação que alia o amplo conhecimento
teórico de seus autores com a prática do Direito, mostrando-se de extre-
ma utilidade para que possamos compreender melhor as modificações
legislativas e aplicar com mais segurança as novas leis no dia a dia. E um
motivo de orgulho para todos nós, ao trazermos a público uma obra
alinhada com os objetivos da Escola Paulista da Magistratura, de contribuir
para a formação continuada dos magistrados e para o aprimoramento da
comunidade jurídica.

Des. José Maria Câmara Junior


Diretor da Escola Paulista da Magistratura
11

Apresentação

A Escola Paulista da Magistratura tem a honra de oferecer à comunidade


jurídica seu mais recente empreendimento acadêmico: a obra coletiva
Direito Público Contemporâneo.
Trata-se de um trabalho que procura sistematizar e apresentar as
mais relevantes discussões sobre três importantes diplomas legislativos:
(i) a Lei nº 13.655/18, que traz notáveis contribuições à Lei de Introdução
às Normas do Direito Brasileiro (LINDB), datada de 4 de setembro de 1942
(Decreto-lei nº 4.657/42); (ii) a nova Lei de Licitações e Contratos
Administrativos (Lei nº 14.133/21); e (iii) a nova Lei de Improbidade
Administrativa (Lei nº 14.230/21).
A obra estrutura-se sobre os três eixos temáticos acima indicados.
As reflexões, ora publicadas sob a forma de artigos, partiram dos encontros
e núcleos de estudos promovidos pela Escola Paulista da Magistratura e
de ciclos de palestras promovidos em parceria com a Fundação Arcadas,
entidade vinculada à Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.
Os profícuos debates que se desenvolveram em tais eventos permitiram
o amadurecimento da reflexão crítica sobre os temas os quais agora são
postos ao leitor.
A coordenação científica tem a honra de registrar uma palavra de
agradecimento à Direção da Escola Paulista da Magistratura, à Direção
da Fundação Arcadas e a todos os eminentes juristas que partilharam
conosco as primeiras reflexões sobre o papel desses diplomas legislativos no
ordenamento jurídico brasileiro. Muito obrigado a todos os magistrados que
conosco compartilharam seus dias, nos anos de 2021 e 2022. O resultado
de nosso diálogo plural, franco e democrático é o conjunto de estudos
que são apresentados à comunidade jurídica.
O primeiro eixo temático se destina ao estudo dos impactos da
Lei nº 13.655/18 na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro
(Decreto-Lei nº 4.657/42). Fernando Campos Scaff trata das “Normas
de Direito Público na LINDB para interpretação e integração no Direito
Administrativo”. Pretende, sob as luzes do Código Civil, examinar a relação
entre as cláusulas gerais e o sistema jurídico, com ênfase no crescimento
dos poderes discricionários do juiz. Examina as consequências da mudança
de paradigma e as profundas alterações introduzidas na Lei de Introdução
às Normas de Direito Brasileiro. O sistema jurídico aberto e o papel das
cláusulas gerais são bem explorados pelo autor. Os efeitos concretos e
os ônus decorrentes da hipertrofia dos valores jurídicos abstratos são
objeto de sua precisa investigação. Brinda-nos com a conclusão de que
as mudanças ocorridas na LINDB permitem melhor equilíbrio do sistema
jurídico, mitigando os riscos decorrentes do exacerbado emprego das
cláusulas gerais nas relações de Direito Público.
Fernando Dias Menezes de Almeida e Aline Aparecida de Miranda
examinam a “Promoção da segurança jurídica na Lei de Introdução às
Normas do Direito Brasileiro”. Exploram com percuciência o papel dos
princípios da legalidade e da segurança jurídica no Estado de Direito.
Esboçam os elementos constitutivos da segurança jurídica, debruçando-se
acerca da necessidade de proteção à confiança. Enfrentam com profundi-
dade o ideal de realização da segurança jurídica na LINDB e preocupam-se
com os efeitos da retroatividade da nova lei às situações jurídicas preté-
ritas consolidadas. “É certo que a necessidade de se observar a segurança
jurídica antecede qualquer previsão legal expressa nesse sentido, pois é
base do Estado de Direito”, lecionam com acerto os autores.
Em “Segurança jurídica – contribuições da LINDB”, Ricardo Cunha
Chimenti desenvolve seu artigo examinando a intrincada harmonização
dos valores por parte dos intérpretes do Direito. O desafio central do
jurista, no seu entender, reside na compatibilização de normas dotadas de
alto grau de objetividade/previsibilidade com a necessidade de análise
individualizada/subjetiva das condutas. Tal exercício é essencial no processo
de densificação da dignidade da pessoa humana in concreto. Bem enfrenta
a evolução do positivismo ao pós-positivismo, apresentando o caminho
percorrido pelos juízos de subsunção e ponderação. Evidencia a aproxi-
mação dos sistemas jurídicos romano-germânico (Civil Law) e anglo-saxônico
(Common Law). Atento ao sistema de precedentes, desenvolve sua refle-
xão sobre o distinguishing e overruling. Conclui com propriedade que as
alterações na LINDB “estimulam uma análise mais realista e razoável da
conduta do gestor de boa-fé e dos efeitos dos seus atos, sem criar obstá-
culos para que, sob a égide das leis e dos precedentes qualificados, o mau
trato da coisa pública seja evitado, reparado ou sancionado”.
A “Lei nº 13.655/18: responsabilização do agente público e conse-
quencialismo nos atos e decisões administrativas e judiciais” é o título da
sugestiva contribuição de Thiago Massao Cortizo Teraoka. No seu estudo,
o autor analisa as críticas que se intensificam contra o ativismo judicial e
utilização política do Poder Judiciário. Os fenômenos do apagão das canetas
e paralisia decisória não escapam da sua atenta pena. Manifesta legítima
preocupação com o consequencialismo e o pan-principialismo, tendo em
mira a Nova Lei de Improbidade Administrativa. Traz, por fim, ao leitor a
oportuna advertência de que a LINDB exige motivação por parte dos agentes
administrativos, permitindo o controle das suas condutas, não mais estru-
turalmente fincada apenas em abstratos conceitos jurídicos. É artigo que
revela sua busca à construção de modelos hermenêuticos diferenciados.
Encerrando o primeiro eixo temático, o Professor da Faculdade de
Direito de Lisboa Pedro Moniz Lopes contribui com o ensaio “Uma “questão
de princípio”: a distinta dimensão da boa-fé nos contratos administrativos”.
Partindo da indagação “até que ponto é juridicamente admissível aplicar as
normas jurídico-civis aos contratos administrativos?”, o autor examina os
subsistemas normativos e a sua importância para o contrato administrativo.
Com rigor científico, apresenta os equívocos da aplicação imediata da
boa-fé aos contratos administrativos. Desenvolve os subsistemas normativos
e os riscos da transposição acrítica de princípios entre diversos os ambien-
tes da Ciência do Direito. Distingue ao leitor os (i) princípios gerais do
ordenamento; (ii) os princípios gerais de subsistemas; e (iii) os princípios
gerais de instituições jurídicas ou de matéria jurídicas determinadas.
Esboça os problemas que emergem da disfuncional aplicação dos cânones
interpretativos civilísticos para o contrato administrativo. Na sua precisa
reflexão, “afigura-se flagrante a inadequação e disfuncionalidade da
aplicação das aludidas normas civis no quadro do Direito Administrativo e,
em especial, no contexto da contratação pública”. A profundidade crítica
do ensaio merece o debruçar atento do público.
A segunda parte da obra se destina ao exame dos aspectos relevantes
da nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos (Lei nº 14.133/21).
Inicia-se com notável ensaio de Vicente de Abreu Amadei intitulado “Nova
lei de licitações e contratos administrativos: panorama, princípios e princi-
pais modificações”. O autor nos apresenta sua perspicaz visão a respeito
da nova lei. Coloca em destaque seu objeto; sua estrutura (sistemática
normativa); seus recursos funcionais; seus princípios e suas definições
fundamentais. Seleciona as principais modificações no tratamento na
matéria e os impactos que gera no ordenamento jurídico. O texto se reveste
de elevado grau científico, revelando a profundidade e a qualidade da
reflexão jusfilosófica de seu autor. É contribuição útil não somente aos que
“procuram uma primeira aproximação aos seus comandos”, mas também
àqueles que desejam compreender os principais impactos no novo modelo
legislativo de contratações públicas. O ensaio cumpre a promessa de
acender “a centelha para os trabalhos de elevada profundidade que hão
de vir no decorrer do tempo”.
Irene Patrícia Nohara desenvolve a “LINDB no Direito Público e nova lei
de licitações e contratos administrativos: impactos e convergências”. Analisa
com percuciência os impactos e as convergências entre a Lei de Introdução
às Normas no Direito Brasileiro (com a redação da Lei nº 13.655/2021)
e a Nova Lei de Licitações e Contratos (Lei nº 13.655/2021). Partindo
de densa estruturação dogmática, a autora apresenta o que denomina
novos contornos do controle a partir das alterações na LINDB. No diálogo
normativo por ela estruturado, destaca o objetivo de inovação do sistema
e a tentativa retração da Administração Pública do Medo. Debruça-se
sobre os critérios da declaração de nulidade do contrato administrativo,
revelando a atualidade de sua abordagem. Propõe ao público que
“a interpretação das licitações e contratos seja feita de forma mais
equilibrada e consequencial”.
“Teoria geral do contrato aplicada aos contratos administrativos:
ensaio sobre a função pública e a autonomia privada na Lei nº 14.133/21”
é a investigação de Alexandre de Mello Guerra e Marcelo Benacchio.
Pretendendo revitalizar a reflexão acadêmica que os uniu há uma década,
os autores apresentam a evolução e o perfil contemporâneo da Teoria geral
do contrato. Enfrentam as potencialidades e as limitações da aplicação
da Teoria geral do contrato aos contratos administrativos. Confrontam
a autonomia privada (pedra angular das relações de Direito Privado) e a
função pública (núcleo do Direito Público voltado à realização do interesse
social). Colocam em relevo o papel da boa-fé, concentrando-se no perfil
contemporâneo das cláusulas exorbitantes e do fato do príncipe. Pretendem
densificar o direito fundamental à segurança jurídica nas relações de Direito
Público. Enaltecem a tutela da confiança e das expectativas contratuais
legítimas despertadas no particular no cenário do Direito Público.
Cristiana Fortini e Caio Mário Lana Cavalcanti trazem à obra o valioso
ensaio “Lei nº 14.133/21: a instrumentalidade das formas e o forma-
lismo moderado no controle administrativo licitatório”. Tecem úteis
apontamentos acerca dos princípios da instrumentalidade das formas e do
formalismo moderado no Direito Administrativo. Acentuam com proprie-
dade que as formalidades do procedimento licitatório não são fins em si
mesmos; mas meios para alcançar as finalidades públicas. Enfatizam que
“privilegiar os meios em detrimentos dos fins, para além de representar
uma contradição, atenta contra o próprio interesse público in concreto e,
consequentemente, contra o princípio da finalidade pública.” No seu sentir,
a eficiência e a realização do interesse público assumem relevo no atual
modelo, pelo que acentuam, dentre outros, o art. 148 da Lei nº 14.133/21.
Destacam a atenção do legislador em prestigiar as finalidades públicas
em contraponto às impertinências formais sanáveis. É um estudo de peso
aos que pretendem compreender os contornos da Administração Pública
Gerencial e Administração Pública Burocrática.
“A confidencialidade das propostas no Diálogo Competitivo: neces-
sidade de ponderação do princípio da publicidade com os princípios da
propriedade privada e da livre concorrência para a efetivação do princí-
pio da eficiência” é o título do sugestivo trabalho desenvolvido por Luiz
Fernando Silva Oliveira. O autor pretende demonstrar a inovação da
Lei nº 14.133/21 no que diz respeito à confidencialidade do novo Diálogo
Competitivo. No seu entender, a ausência de ampla publicidade na fase
de negociações não acarreta prejuízos à realização do interesse público,
pois ocorrerá a posteriori. Em alentado estudo, bosqueja, dentre outros
aspectos, os antecedentes históricos do Diálogo Competitivo; a resistência
oposta ao instituto em Portugal e a confidencialidade como mecanismo de
proteção dos princípios da propriedade privada e da livre concorrência.
A ponderação de interesses entre os Princípios da publicidade, da proprie-
dade privada e da concorrência não escapa de sua fina percepção.
“A nova lei de licitações e contratos administrativos (Lei 14.133/2021):
inexigibilidade/dispensa de licitação. Responsabilidade solidária do
contratante e agente público (art. 73)” é a valiosa contribuição de Flora
Maria Nesi Tossi Silva. O ensaio revela profundidade, erudição e senso
de justiça na aplicação concreta do Direito. A autora apresenta o perfil
dogmático da obrigatoriedade da licitação como preceito constitucional e
as exceções previstas em lei. Faz análise acurada das hipóteses legais de
contratação direta por inexigibilidade e dispensa de licitação. No cerne
de seu estudo, examina a responsabilidade solidária do contratante e do
agente público pelos danos causados em caso de dolo, fraude ou erro
grosseiro, especificamente na hipótese de contratação indevida, a teor
do que prevê o art. 73 da lei em foco. Examina o perfil do erro grosseiro
no contexto pandêmico e ilumina a recente orientação do Supremo
Tribunal Federal (STF) sobre a matéria (ADIS 6421, 6422, 6424, 6425,
6427, 6428 e 6431 MC/DF). Em um juízo prudencial, propõe a harmonização
entre as regras da Lei de Introdução às Normas Brasileiras e o art. 73 da
Lei nº 14.133/21, de modo que se realizem os preceitos normativos que
inspiram as contratações públicas.
Ana Rita de Figueiredo Nery examina a “Alteração unilateral do
contrato administrativo e a obrigação de restabelecimento do equilíbrio
econômico-financeiro na Lei 14.133/2021”. O estudo revela a seriedade
acadêmica que caracteriza a pena da autora, caminhando com desenvoltura
entre o Direito Público e o Direito Privado. As excepcionalidades do contrato
administrativo; a desmistificação da natureza exorbitante; o cotejo entre
as lógicas pública e privada e a conservação dos contratos administrativos
são temas de sua investigação. No regime da Lei nº 14.133/21, a autora
aborda a alteração unilateral do contrato administrativo; as hipóteses de
alteração unilateral; os limites percentuais para acréscimos ou supres-
sões decorrentes de alterações unilaterais dos contratos administrativos
e os percentuais para acréscimos/supressões por alterações unilaterais
dos contratos administrativos. A causa do contrato administrativo (e sua
transfiguração) é por ela bem examinada. É ensaio de fôlego, que eviden-
cia a atualidade do tema eleito. Traz ao leitor lições sobre os critérios de
alteração unilateral e de reequilíbrio econômico-financeiro do contrato.
A sua análise da obrigação de restabelecimento imediato do equilíbrio
econômico-financeiro merece a atenção do público.
A “extinção dos contratos administrativos, recebimento do objeto,
pagamento e nulidade (NLLC, artigos 137-154)” é a contribuição de
Christianne de Carvalho Stroppa. A autora aborda com excelência os
principais aspectos dos pontos que enuncia no título de seu ensaio. Merece
destaque a observação de que a Nova Lei de Licitações e Contratos
Administrativos (NLLCA) não foi disruptiva, pois manteve a sistemática
das contratações públicas, incorporando, em acréscimo, os preceitos que
iluminam o Direito Administrativo dos Negócios. Examina o dever de fiel
execução dos contratos, que realiza o direito fundamental à segurança
jurídica. E enfatiza o preceito cardeal nas contratações públicas: “a regra
sempre será a extinção decorrente do exaurimento do objeto, com a
plena e efetiva execução do pactuado”. Não escapam de sua percepção os
pontos nevrálgicos quanto ao recebimento provisório e definitivo de obras
e serviços. Enfrenta a tormentosa questão do pagamento e das nulidades
nos contratos administrativos, colocando em destaque os mecanismos de
superação das invalidades (convalidação e saneamento).
Floriano de Azevedo Marques Neto e Natalia de Sousa da Silva apresen-
tam excelente ensaio intitulado “O regime de nulidades dos contratos
administrativos na Lei 14.133/2021”. Retratam a evolução da disciplina
das nulidades nos contratos administrativos, “identificando a desidratação
e superação da nulidade mandatória insculpida na Súmula 473 do STF,
especialmente em face das garantias previstas no Estado Democrático de
Direito”. Salientam que a LINDB exerce importante tarefa no processo
de compatibilização entre o interesse público e o regime de nulidades.
Os competentes autores refletem sobre os efeitos da nulidade inconse-
quente, com o estudo de casos. Em larga medida, confrontam o regime dos
artigos 20 e 21 da LINDB com o sistema de nulidades na Lei nº 14.133/21.
A contribuição é útil à comunidade jurídica, pois se põe em destaque o
dever de ponderação dos efeitos da nulidade frente aos fatos, seja com
fundamento na LINDB, seja com arrimo na NLCP. O estudo merece o atento
debruçar de todos.
“Meios alternativos de solução de controvérsias na nova lei de licita-
ções e contratos administrativos” é o título do artigo de Paula Fernanda
de Souza Vasconcelos Navarro. A sua proposta é examinar os meios alter-
nativos de solução de controvérsias, com especial atenção à conciliação,
à mediação, à instalação do comitê de resolução de disputas e à utiliza-
ção da arbitragem. A autora sublinha a importância de tais mecanismos,
especialmente nas situações em que é preciso restabelecer o equilíbrio
econômico-financeiro do contrato administrativo, nos casos de inadim-
plemento de obrigações contratuais e nas hipóteses em que se exige o
cálculo de indenizações. Tece considerações acerca da salutar onda de
desjudicialização de conflitos, plenamente compatível com as exigên-
cias do princípio constitucional da inafastabilidade do controle jurisdi-
cional. A preocupação com a eficiência na gestão do contrato e com a
redução de custos é nítida nas linhas e nas entrelinhas de seu excelente
escrito. Põe em destaque o art. 151 da NLLCA, concitando recorrer aos
métodos adequados de solução de controvérsias nas contratações públicas.
É artigo que revela o que há de mais adequado à realização concreta da
Justiça na contemporaneidade.
O eixo temático final se dedica à nova Lei de Improbidade
Administrativa (Lei nº 14.230/21). Tal diploma legislativo, revolucionário
em diversos aspectos, desafia doutrina e jurisprudência. O brilhante
artigo de Vicente de Abreu Amadei intitulado “Improbidade administra-
tiva e sua reforma – principais alterações da Lei nº 14.230/21 e seus
impactos nos processos em curso e findos. Novatio legis in mellius em
Direito Administrativo Sancionador: retroatividade ou irretroatividade da
lei nova” inaugura as reflexões. São diversos os pontos analisados pelo
autor, todos referenciados no Direito Público. Dentre os temas por ele
eleitos, destacam-se o elemento subjetivo da improbidade administrativa;
a tipificação dos atos de improbidade administrativa e o perfil do Direito
Administrativo Sancionador. Convida o público à fulcral reflexão: “qual é
a fonte de inspiração do Direito Administrativo Sancionador: Direito Penal
ou Direito Público Estatal?” Delineia com precisão a teoria e a sistemati-
zação do Direito Administrativo Sancionador e examina a (ir)retroatividade
da lei nova mais favorável, em Direito Administrativo Sancionador. Avalia
a problemática do direito intertemporal material. Com segurança e rigor
técnico, traz as razões de irretroatividade das normas mais favoráveis da
Lei nº 14.230/21. O combate à corrupção sistêmica não passa sem a percep-
ção do autor. Bem distingue o que denomina retroatividade-tipificação,
retroatividade-sanção e retroatividade-prescrição. A (ir)retroatividade
da Lei nº 14.230/21 é examinada nos processos em curso e nos processos
findos. É ensaio de leitura obrigatória para todos os cultores do Direito
Público. O texto nutre os que buscam rigor científico, sem perder de vista
a realização do ideário de Justiça.
Luis Manuel Fonseca Pires e Vitor Marques contribuem com o
ensaio “O reencontro da improbidade administrativa com o propósito da
Constituição Federal de 1988”. Depois de esquadrinhar os contornos do
modelo constitucional de tutela da probidade administrativa, os autores
descem ao plano legal para analisar os efeitos deletérios da “ampliação
do conceito de improbidade administrativa e consequentemente uma
distorção de seu uso”. Revelam sua justa preocupação com o movimento
de banalização de ações judiciais à imposição de penas previstas na lei,
o que “ocasionou forte ofensa ao princípio da segurança jurídica e inibi-
ção na atuação administrativa do agente público”. Referem o apagão das
canetas e apresentam toda a marcha evolutiva da Lei de Improbidade
Administrativa. Abordam o cenário que exigiu a nova disciplina legislativa,
trazendo à reflexão diversos pontos do regramento em vigor. É um ensaio
pautado pelo rigor técnico, como é próprio da pena dos autores. “A reforma
era inevitável e necessária. O desarranjo institucional das funções estatais
já se mostrava no surgimento de diversas legislações cujo fito específico
era agregar às decisões judiciais maior aderência ao texto legal, restrin-
gindo o uso arbitrário das competências de controle em prol de uma maior
segurança jurídica, em especial daqueles legitimados para executarem
políticas públicas”, sintetizam.
Alessandra Lopes Santana de Mello e Alexandre de Mello Guerra trazem
o título de seu artigo sob a forma de indagação: “Mudou o sistema ou mudou
o Direito? alguns impactos da Nova Lei de Improbidade Administrativa na
conformação sociojurídica do sistema de tutela da moralidade”. A partir
das premissas colhidas da Ação Penal nº 1.044/DF, examinam os limites e
os critérios para o legítimo exercício do Poder. A edição de decreto presi-
dencial concessivo de indulto ao Deputado Federal Daniel Lúcio de Oliveira
é o pano de fundo da reflexão para a qual os leitores são convidados,
tudo isso em um perfil técnico de análise jurídica do exercício legítimo
do Direito e do Poder. Apresentam a Crise do Direito na contemporanei-
dade e enunciam as causas e fatores que contribuem para tal fenômeno.
“A moralidade administrativa, enquanto valor fundamental da República,
está em risco?”. É essa a provocação central do ensaio que os autores
convidam o leitor a investigar.
“Dano presumido ao erário e improbidade no procedimento licitatório:
breves considerações sobre o Tema nº 1.096 do Superior Tribunal de
Justiça e a nova redação do art. 10, inciso VIII, da Lei de Improbidade
Administrativa” é o título do trabalho de André Acayaba de Rezende.
Dentre os atos de improbidade administrativa modificados pela nova Lei
de Improbidade Administrativa (LIA), registra o autor, está a conduta de
“frustrar a licitude de processo licitatório ou de processo seletivo para
celebração de parcerias com entidades sem fins lucrativos, ou dispensá-los
indevidamente”. Ao se exigir que a conduta se dê “acarretando perda patri-
monial efetiva”, coloca-se em dúvida a questão objeto do Tema nº 1.096,
do STJ. O autor examina a controvérsia que se instala sob a redação
originária do art. 10, inc. VIII, da Lei nº 8.243/91 (que rendeu ensejo ao
Tema nº 1.096). Conduz o leitor à reflexão crítica a partir das premissas
acolhidas no Tema nº 1.199, de Repercussão Geral, do STF. É ensaio que
se marca pela atualidade, com elevada importância para os que lidam
com o Direito Público.
Luis Francisco Aguilar Cortez nos oferece excelente artigo intitulado
“O elemento subjetivo e a tipicidade da lei de improbidade no art. 11 da
nova lei”. Aliando vasta experiência e elevado conhecimento jurídico,
o autor nos brinda com doutrina de notável qualidade. Traça os critérios
jurídicos do controle da Administração Pública e aponta “a necessidade de
estabelecer, na aplicação da nova lei, afinidades e diferenciações entre as
modalidades de responsabilização penal, civil e administrativa, bem como
parâmetros para a aplicação do denominado Direito Administrativo
Sancionador, a fim de preservar os bens jurídicos tutelados pela norma
constitucional, permitindo avaliar a responsabilidade por ato de impro-
bidade como categoria diferenciada no controle da atividade dos agentes
públicos”. Apresenta ao leitor a importância dos mecanismos de compliance
(política de integridade) e accountability no controle institucional que
se realiza sobre os agentes públicos. Depois de atrelar os conceitos de
autoridade e responsabilidade, desenvolve oportuna reflexão sobre elemen-
to subjetivo (dolo) à identificação de atos caracterizadores de improbidade
administrativa. Revelando o domínio do Direito Constitucional e Penal,
afirma que “o elemento subjetivo exigido corresponde ao conceito de
dolo direto no Direito Penal, a exigir não só a voluntariedade do agente,
mas também a vontade livre e consciente de alcançar o resultado ilícito
previsto na lei”.
“Responsabilidade pessoal pela ineficiência funcional: análise à luz
das modificações operadas pela Lei n. 14.230/21” é o tema desenvolvi-
do por Claudia de Abreu Monteiro de Castro. A autora evidencia que a
eficiência é princípio com valor normativo, cuja frustração pode ensejar
a responsabilidade pessoal do agente público. Salienta com acerto a
persistência dos mecanismos de proteção dos direitos transindividuais,
com ênfase à eficiência, à racionalização e à preservação do patrimônio
público. Preocupa-se com os influxos que a responsabilidade civil exerce
acerca do tema por ela eleito e põe em destaque, no que diz respeito ao
dever de eficiência, os requisitos para responsabilidade civil do agente
público ineficiente. Na sua advertência, “o ressentimento com as altera-
ções promovidas pela Lei nº 14.230/21 não pode ofuscar a existência de
remédios à ineficiência, inclusive com a responsabilização pessoal dos
agentes públicos”.
“Acordo de Não Persecução Cível: um novo instrumento a serviço do
combate à improbidade administrativa” é o instigante objeto de estudo
de Alexandra Fuchs de Araújo e Alexandre Jorge Carneiro da Cunha Filho.
Com competência, os autores tratam do instituto eleito, contextualizando-o
sob a perspectiva do exercício do poder estatal voltado a conferir legitimi-
dade e eficiência ao serviço público. Apresentam visão rente à realidade
na tarefa de equacionar a relação entre o texto legislativo, os valores
constitucionais e as exigências dos casos que se submetem ao Poder
Judiciário. Buscam promover a uma ação estatal que tenha em mira
a obtenção de resultados no ambiente da consensualidade, o que não
contraria o bom exercício da função administrativa. É um estudo de folego
sobre um tema intrincado e que desafia a inteligência dos juristas. Além do
modelo estabelecido pelas Leis nº 12.850/13 e 13.964/19, recorrem à
nova conformação do Direito Processual Civil (e à Constitucionalização
do Processo) na busca de caminhos que não malfiram os deveres éticos
impostos aos agentes do Estado.
Monica de Almeida Magalhães Serrano explora os “Aspectos processuais
e procedimentais da aplicação da nova Lei de improbidade administrativa
aos processos em curso e a desconstituição das decisões judiciais profe-
ridas antes do advento da nova lei”. Sua contribuição inaugura o exame
dos aspectos processuais/procedimentais introduzidos pela nova LIA.
Examina o intrincado problema do enfrentamento da corrupção no Brasil
desde as diretrizes constitucionais de 1988 e da Lei nº 8.429/92. Dedica
atenção ao contexto sociopolítico que ensejou a reforma da Lei de
Improbidade Administrativa. Analisa com profundidade, dentre outros
aspectos, a exigência de conduta dolosa para a prática de improbidade
administrativa; o modelo do Direito Administrativo Sancionador e a tipifi-
cação taxativa; a legitimidade ativa ao manejo da ação de improbidade
administrativa; a nova sistematização da prescrição na lei de improbidade
administrativa e a grave questão da desconstituição das decisões judiciais
proferidas antes do advento da lei. O seu estudo orienta-se pelo rigor
científico, sem descurar da preocupação com a aplicação/realização
concreta do Direito. A reflexão é densa, de redação clara e profundidade
dogmática, atributos que nos permitem recomendar a atenção do público.
Flávio Luiz Yarshell nos cativa, uma vez mais, com o ensaio “Breves
notas sobre a desconsideração da personalidade jurídica no processo de
tutela da probidade administrativa”. O autor traz pioneira reflexão sobre
a desconsideração da personalidade jurídica no ambiente de tutela da
moralidade. Caminha com domínio entre o Direito Processual e o Direito
Público, desenhando os contornos de tal medida em conformidade com
os art. 133 a 137 do CPC. Conforme anuncia, propõe-se a “indicar alguns
desses potenciais pontos de relevo e de sugerir possíveis soluções que
permitam, de um lado, que o escopo de repressão aos atos de improbidade
não seja indevidamente frustrado; mas que, de outro lado, não sejam
praticadas violações ao devido processo legal, e, menos ainda, indevidas
extensões de responsabilidade patrimonial, a pretexto de tutela da probi-
dade administrativa.” Na arte de dizer o Direito, a sua pena é inspirada
pela prudência. Afirma que os elementos que configuram a improbidade
administrativa não podem se confundir com os requisitos que autori-
zam a desconsideração da personalidade jurídica. Alerta a comunidade
jurídica de que a constrição de bens que se funda em desconsideração
da personalidade jurídica, de regra, somente é admissível depois de
processado/decidido o incidente de desconsideração. E, com arrimo em
sólida doutrina, vinca a excepcionalidade e subsidiariedade da extensão
de responsabilidade patrimonial. O ensaio é primoroso, como os inúmeros
outros que dele brotam.
“Afastamento cautelar do agente público na nova Lei de Improbidade
Administrativa” é o título do artigo de Fernando da Fonseca Gajardoni.
O autor parte do exame das tutelas provisórias de urgência na improbi-
dade administrativa e examina o afastamento cautelar do investigado no
curso da investigação/ação de improbidade administrativa. Desenvolve as
questões que decorrem do afastamento cautelar por decisão da autoridade
administrativa e convida o leitor a refletir acerca da nova hipótese de
cabimento do afastamento cautelar do agente fundada na garantia da
ordem pública. Debruça-se com competência sobre a duração da medida
cautelar de afastamento cautelar do agente. A sua contribuição às letras
jurídicas do Brasil é de todos bem conhecida, no que se destaca a coautoria
dos seus Comentários à nova Lei de Improbidade Administrativa (São Paulo:
Revista dos Tribunais), hoje na 5ª edição, a revelar a merecida acolhida
do público. Com farta sustentação jurisprudencial e doutrinária, enaltece
a positivação do prazo de duração de eficácia da medida, acentuando o
ideário da cautelaridade do afastamento do agente. “Do mesmo modo,
a autorização legal para que, nos casos de risco de prática de novos ilícitos
no exercício do cargo, emprego ou função, seja o agente afastado tempo-
rariamente, é bastante louvável, pois recrudesce o combate aos atos de
improbidade e protege, de modo mais efetivo, o erário e a moralidade
administrativa”, leciona o autor.
Cassio Scarpinella Bueno enfrenta com brilho a “Tutela provisó-
ria na ação de improbidade administrativa”. O festejado processua-
lista examina o regime da tutela provisória no ambiente das ações de
improbidade administrativa. Debruça-se sobre a importante questão de
ordem de indisponibilidade de bens, que recebeu contornos renovados
na Lei nº 14.230/21. Tece relevantes observações a respeito do art. 16 da
lei em referência. Afirma que a necessidade de instauração (prévia) do
incidente de desconsideração da personalidade jurídica não é óbice para
que se possa praticar algum ato constritivo em face do sócio, com base
nas exigências da tutela provisória de urgência (art. 300, caput, do Código
de Processo Civil (CPC)). Segundo o autor, “o que o § 7º do art. 16 da
Lei n. 8.429/1992, na redação da Lei n. 14.230/2021, quer evitar é que
o atingimento de bens do sócio se dê independentemente de dar a ele
possibilidade de exercer sua ampla defesa, ainda que de modo postergado.
Trata-se, nesse sentido, da mesma diretriz destacada acima com base no
§ 4º do art. 16”. O ensaio densifica a Constitucionalização do Processo,
defendendo-a com propriedade. Refere, por fim, ao teor das ADI 7042
e 7043 e às exigências para o adequado afastamento do agente público do
exercício de suas funções. Examina a insubsistência do quanto deliberado
nos Temas 701 e 1055 do STJ, diante da nova disciplina da matéria, e em
atenção ao disposto no art. 927, inc. III, do CPC. A sua contribuição é de
leitura obrigatória aos que cultuam a interface entre o Direito Público e
o Direito Processual Civil.
“Produção antecipada de prova na improbidade administrativa” é
o título do ensaio de Rogerio Bellentani Zavarize que encerra essa obra
coletiva. Objetivando demonstrar o cabimento da produção antecipa-
da da prova na improbidade administrativa, com fulcro no Código de
Processo Civil e na nova LIA, o autor examina as peculiaridades da produção
antecipada de prova nas diversas situações que envolvem a improbidade
administrativa. Não se distancia das modalidades probatórias típicas e
enfrenta o seu cabimento no plano da improbidade. Merece registro sua
advertência de que existe um direito autônomo à obtenção da prova na
improbidade administrativa. Ainda, não deixa de examinar as espécies de
prova que podem ser produzidas antecipadamente (depoimento pessoal;
interrogatório; prova testemunhal; prova pericial; inspeção judicial;
exibição de documento ou coisa etc.). Enfrenta com rigor científico a
tormentosa quebra de sigilo bancário e nos fornece valiosos subsídios para
aplicação concreta de suas reflexões. Nas suas palavras, “é impossível
negar a pertinência da adoção das ações probatórias autônomas como
medidas preparatórias para as ações por improbidade administrativa,
em quaisquer das hipóteses delineadas no art. 381, I a III do Código de
Processo Civil. Seu adequado manejo vai ao encontro da concreção da
garantia fundamental à prova no processo civil brasileiro”.
Esses escritos, em síntese, são o fruto dos autores à comunidade
jurídica, pelo que merecem os mais efusivos aplausos. Subscrevendo, por fim,
as sempre gentis palavras do Des. José Maria Câmara Junior, DD. Diretor da
Escola Paulista da Magistratura, cumprimentamos a todos os que tornaram
possível a realização desse sonho: “é um motivo de orgulho para todos nós,
ao trazermos a público uma obra alinhada aos objetivos da Escola Paulista
da Magistratura, de contribuir para a formação continuada dos magistrados
e para o aprimoramento da comunidade jurídica”.

Sejam todos sempre bem-vindos!


Ótima leitura!
Antonio Carlos Villen
Alexandre de Mello Guerra
I
Impactos da Lei nº 13.655/18 à Lei de
Introdução às Normas do Direito Brasileiro
(Decreto-Lei nº 4.657/42)
72

Normas de Direito Público na LINDB


para interpretação e integração no
Direito Administrativo

Fernando Campos Scaff1


Advogado

Sumário: Introdução. 1. Do sistema jurídico aberto e das cláusulas


gerais. 2. A vedação à tomada de decisões com fundamento em valores
jurídicos abstratos, ressaltando-se as consequências que tal providência
poderia ter do ponto de vista prático. 3. Imposição no tocante à consequência
da decisão: resultado quanto aos efeitos concretos. 4. Ônus anormais
ou excessivos. Perda dos investimentos realizados. Perda da remuneração.
Limitações de contratar. 5. Interpretação das normas, reconhecendo-se
eventuais limites ao cumprimento dos gestores no tocante ao conjunto das
regras aplicáveis. 6. Dosimetria das sanções, levando em conta a gravidade
(dolo, culpa grave, culpa leve ou ausência de culpa), o dano (material)
e circunstâncias de agravo ou de atenuação da sanção. 7. Mudanças
de interpretação deverão prever períodos de transição para a adaptação
do agente. Conclusão. Bibliografia.

Introdução

O objetivo deste texto é, à luz das regras previstas no atual Código


Civil, analisar a relação entre as chamadas cláusulas gerais e o sistema
jurídico, com o posterior aumento dos poderes discricionários do juiz,
as consequências dessa mudança de paradigma, e a reação à mudança,
que pode ser constatada na atual redação da Lei de Introdução às Normas
de Direito Brasileiro (LINDB), bem como em outros diplomas legais
de surgimento recente.

1
Professor titular da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo – Largo São Francisco.
28 Fernando Campos Scaff

1. Do sistema jurídico aberto e das cláusulas gerais

Houve, com o advento do atual Código Civil brasileiro, uma evidente


valorização das chamadas cláusulas gerais, colocadas ao lado das regras
objetivas que preferencialmente devem orientar a solução do caso concreto.
Tais cláusulas gerais, supostamente derivadas de princípios
gerais do direito e que, posteriormente, transformaram-se também
em regras contidas do Código Civil –, por exemplo, os seus artigos 113,
187 e 422 – ganharam, em algum momento, protagonismo no nosso
sistema jurídico.
Pretendeu-se, por intermédio delas e a partir das perspectivas
adotadas pelos juristas que inspiraram a formulação do Código Civil –
isso na década de 1960, quando o seu anteprojeto veio à lume –
alterar-se, de acordo com o que se considerou à época, o paradigma
da lei estrita e objetiva como fonte primeira do direito ao chamado
paradigma do juiz, atribuindo a ele maior protagonismo na escolha lógica
e progressiva das regras jurídicas aplicáveis à solução do caso concreto,
quando passou a poder recorrer a conceitos abertos, aumentando assim
a sua discricionariedade.
O que se pretende afirmar com isso é que, ao invés de recorrer
aos princípios gerais de direito apenas e tão somente na ausência de regras
de utilização imediata – em especial a lei, depois os usos e costumes
e a própria jurisprudência –, a roupagem legal que foi posteriormente
atribuída a esses mesmos princípios (o da boa-fé, da função social,
da onerosidade excessiva e do enriquecimento sem causa) os teria colocado
no mesmo plano de aplicabilidade de outras normas escritas, ou seja,
todos como partes (artigos) de um mesmo Código Civil.
Essa situação ocorre num cenário em que, de início, não permite
reconhecer a existência de um sistema jurídico estritamente axiomático,
tal como ocorre em relação às ciências exatas ou biológicas. Conforme
esclarece Karl Larenz, um conjunto dessa modalidade exige, em primeiro
lugar, um número fechado de conceitos fundamentais, isto é, de axiomas
que sejam logicamente compatíveis entre si, de alguma forma definitivos
e finais, ou melhor, que não estejam sujeitos a reformulações posteriores2.

2
LARENZ. Karl. Metodologia da Ciência do Direito. 2. ed. Lisboa: Calouste, 1989.
Normas de Direito Público na LINDB para interpretação
e integração no Direito Administrativo 29

Ainda segundo Larenz, esclarecia ele que Esser propôs distinguir


entre o sistema fechado, que seria representado pela ideia de codificação;
e o sistema aberto, que se concretizaria na construção de um direito
baseado na sistematização da análise do julgamento dos casos. Haveria
então, a partir da visão de Esser, um trajeto que sempre se repetiria,
o que se daria em “um processo circular de descoberta de problemas,
formação de princípios e consolidação do sistema”.
Essa “consolidação do sistema” poderia se dar, em especial, de duas
formas. Uma delas é aquela de matiz jurisprudencial, cujos julgados
precedentes devem parametrizar as novas decisões, passando a ser esse
o critério eleito como preferencial para a solução dos casos, prevalecendo
sobre a própria norma abstratamente considerada.
A outra, mediante a formulação de regras escritas, com enunciados
e destinações objetivas e a sua inserção em um sistema lógico de classificação,
do geral para o particular. Foi o que fez, por exemplo, o Código Civil
alemão, adotado como modelo por Clóvis Beviláqua, com a sua parte
geral e os seus posteriores livros de obrigações, contratos, direitos reais,
família e sucessões. A sua inspiração, segundo Karl Engish, seria aquela
gestada no Iluminismo, com o ideal de se estabelecer, com clareza
e segurança jurídica absolutas, prioritariamente mediante a formulação
de normas escritas claras e objetivas, a bússola para o delineamento das
decisões judiciais3.
De fato, buscou-se, em um determinado momento histórico, afirmar-se
a ideia de que deveria ser possível formular preceitos normativos escritos
dotados de uma absoluta univocidade, base sólida para todas as decisões
judiciais e para todos os atos administrativos. Contudo, várias causas
levaram ao enfraquecimento desse objetivo.
Dentre elas, pode-se destacar as seguintes:
(i) os conceitos jurídicos são predominantemente indeterminados,
ao menos em parte, no sentido de que eles são, em relevante medida,
incertos e dependentes de uma consolidada definição doutrinária, respal-
dada pela lei e pela jurisprudência;
(ii) além disso, muitos desses conceitos indeterminados são de natureza
normativa, aos quais se contrapõem aqueles de perfil descritivo, quer dizer,
aqueles que se referem a objetos reais ou objetos que de certa forma

3
ENGISH, Karl. Introdução ao pensamento jurídico. 6. ed. Lisboa: Calouste, 1983.
30 Fernando Campos Scaff

participam da realidade. Como normativo, consideram-se aqueles conceitos


que devem ser preenchidos por meio de atos de valoração.
(iii) a autonomia da valoração pessoal parece ser a característica
específica de uma particular classe de conceitos que igualmente se põem
ao serviço do afrouxamento da vinculação legal, a saber, a classe
dos conceitos discricionários, a que hoje tantas vezes a doutrina se refere.
Isso quer dizer que as decisões judiciais deverão ser formuladas com flexibili-
dade, ou seja, não podem ser impugnadas enquanto se mantiverem dentro
de certos limites jurídicos, os quais afastam o chamado abuso de poder.
É o que se vê quando se valoriza, por exemplo, o chamado Direito Civil
Constitucional, que se distancia da regra objetiva em prol de conceitos
abstratos, mais genéricos e indeterminados, presentes nas constituições
dos países e que passam, em um determinado momento, a ser fonte priori-
tária – em detrimento da lógica inspiradora dos códigos civis – não apenas
para a inspiração da solução, mas sim como pretenso caminho direto para
a solução do caso concreto.
Daí ocorrem, sempre de acordo com as lições de Engish, que o chamado
poder discricionário não é apenas do administrador público. A valori-
zação das cláusulas gerais, na verdade, procurou legitimar, de algum
modo, a chamada discricionariedade do juiz que aparece, por exemplo,
na fixação da reparação pecuniária do dano moral, mas que pode avançar
para a alteração de regras contratuais ou na limitação de direitos subjetivos,
podendo ser causa efetiva de evidente insegurança jurídica.
Esclarecendo melhor: discricionariedade judicial sempre haverá,
em alguma medida, uma vez que é própria da aplicação da norma
ao fato e da correta valoração de conceitos abstratos. Assim, por exemplo,
poderá o negócio jurídico praticado sob a influência do erro ou da coação
ser anulado.
Para isso, contudo, precisará o juiz identificar, no caso da alegação
do erro, se ele foi substancial e escusável, ou se, no caso da coação, teria
sido ela irresistível. Esses atributos – a essencialidade, a escusabilidade
e a irresistibilidade – não estão delineadas objetivamente no Código,
devendo ser aferidas e valoradas pelo julgador, com base no permissivo
legal, mas também por critérios que comporão a própria interpretação.
Ocorre que, nos negócios jurídicos em geral, as suas específicas
legitimações não derivam apenas de uma possível e não obrigatória
comutatividade entre prestações e contraprestações, mas sim de outros
valores, dentre os quais, a certeza e a segurança. Isso vale tanto para os
contratos considerados privados como para aqueles de natureza pública ou
administrativa, todos eles sujeitos aos mesmos elementos de existência,
ainda que possam apresentar requisitos de validade e fatores de eficácia
peculiares a cada uma das suas espécies.
Normas de Direito Público na LINDB para interpretação
e integração no Direito Administrativo 31

Para essa segurança, o ordenamento jurídico pode e deve atuar


não apenas na análise do contrato posto e celebrado, mas também
de modo antecipado, criando regras que orientarão o que poderão as partes
ajustar ou não livremente, bem como as guias para a interpretação
a ser feita pelo juiz.
O sistema jurídico, assim, não se posiciona de um modo meramente
externo ao contrato, apenas no sentido de lhe atribuir efetiva força
vinculante e obrigatória, a partir da autoridade do Estado. Ele também
está no seu interior, no sentido de orientar, permitir ou proibir regras que
compõem o seu conteúdo.
Dentre os princípios do contrato, a liberdade de contratar e a corres-
pondente tutela e garantia do Estado a esse fundamento não podem
ser esquecidos, pois estão na própria essência do instituto.
A questão é que compatibilizar a liberdade contratual, a força obriga-
tória do contrato e a limitação dos seus efeitos às partes e, eventualmente,
a determinados terceiros, não se ajusta naturalmente e sem um esforço
de coordenação às cláusulas gerais supostamente ancoradas na boa-fé,
na função social da onerosidade excessiva e nos ditos novos princípios contratuais.
Como esclarece Joaquim de Sousa Ribeiro, contudo,

[…] o mesmo ordenamento que o reconhece,


deve, em coerência, ratificar como válidas formas
de exercício que conduzem a conformações sem
justificação objetiva. É, aliás, quando o resultado
negocial não corresponde mais ao ajustado, mas é,
não obstante, acolhido, que se manifesta em plena
luz o respeito devido à autodeterminação das
partes. Estas são livres de visarem os seus fins
particulares, de acordo com as suas preferências
subjetivas, sem terem que adequar a sua conduta às
representações de valor do ordenamento. Nisso radica
a substância da liberdade que se lhes reconhece.
De outra forma, ficariam na posição de “funcionários
da ordem jurídica”, obrigados a atender critérios
legais de ponderação de interesses e a reproduzir
passivamente os seus resultados. O que significaria
a eliminação pura e simples da autonomia privada
como princípio regulador”4. 

RIBEIRO, Joaquim Sousa. O Problema do Contrato – As Cláusulas Contratuais Gerais e o Princípio


4

da Liberdade Contratual. Coimbra: Almedina, 2003.


32 Fernando Campos Scaff

A liberdade contratual tem, de fato, uma dupla face. De um lado,


representa uma necessária abstenção regulamentadora do sistema jurídico,
como regra, o que se traduz na possibilidade de construção de contratos
atípicos, desde que não atentem contra a própria lei, a ordem pública
e os bons costumes.
Do outro lado, também num sentido, por assim dizer, positivo,
ou seja, se que os efeitos estipulados pelas partes devam ser respeitados
por elas próprias, por terceiros envolvidos e pelo ordenamento jurídico,
em suas diferentes camadas.
A equidade, por outro lado, ou melhor, a busca pelo justo natural,
muitas vezes se choca com o justo convencional, em outras palavras,
aquele que decorre da lei ou do contrato, principalmente.
Como esclarece Guido Alpa5, a equidade, tal qual uma cláusula geral,
um critério de julgamento ou uma técnica de determinação do ressar-
cimento do dano ou de composição dos interesses contrapostos, acabou
por penetrar em todos os ordenamentos jurídicos ocidentais.
Não é, contudo, um conceito inequívoco. Segundo ele, é possível
distinguir algumas espécies, dentre as quais as seguintes:
(i) a equidade interpretativa, a qual se dá quando, na impossibilidade
de esclarecer o significado do contrato pelas suas próprias cláusulas
ou pela letra da lei, impõe-se ao juiz, sempre de forma residual, o papel
de integrá-lo, a partir de um equilibrado (co)temperamento dos interesses
das partes. Lembre-se sempre o que é tantas vezes esquecido: juiz não
pode recorrer à equidade senão em casos marginais, o que significa que
essa integração do negócio jurídico somente deverá ocorrer quando
os recursos interpretativos – literal, sistemático, histórico e finalístico –
tenham se mostrado insuficientes;
(ii) a equidade corretiva, que visa a adequação de prestações
à sua finalidade e para evitar enriquecimento sem causa, como ocorre,
por exemplo no caso da redução da multa;
(iii) a equidade quantitativa, isto é, visando estabelecer a dimensão
do dano, sobretudo moral, e assim o ressarcimento ou a indenização devida;
(iv) a equidade integrativa, fazendo referência não já à economia
interna do contrato, mas sim, alternativamente, a critérios de mercado.

5
ALPA, Guido. Il contratto in generale. Principi e problemi. Milão: Giuffrè, 2014.
Normas de Direito Público na LINDB para interpretação
e integração no Direito Administrativo 33

Essa se aproxima do significado processual de equidade, entendida,


pela maior parte dos autores, como complexo de princípios, normas,
orientações, que saem do direito estrito e inserem raízes em um ordena-
mento alternativo.
Segundo Alpa, essas são as modalidades que se observariam
na Itália. Já na França, a equidade teria sua base em standards, fincados
nos bons costumes, na boa-fé, no ideal do bom pai de família, em regras
de diligência, de abuso de direito, imprevisão e enriquecimento sem causa,
além da valoração equitativa na liquidação do dano. Já na Alemanha,
do mesmo modo que também fizemos aqui no Brasil, sempre com muito
atraso e quando lá essa perspectiva parece ter perdido força, houve uma
criação legislativa das chamadas cláusulas gerais.
Na verdade, parece que, no ordenamento jurídico brasileiro, já está
em curso um refluxo desse enaltecimento das cláusulas gerais que vinha
levando, como mencionado, ao aumento da discricionariedade judiciária,
o que se fez em detrimento do reconhecimento da regra legal objetiva
tal qual fonte primária para a solução das questões apresentadas.
Além de outras razões que possam ter provocado essa desilusão com
o sistema propugnado, sobretudo, pelo Código Civil de 2002, parece que
a falta de um próprio e efetivo contrapeso para parametrizar as decisões
judiciais, de acordo com os próprios precedentes jurisprudenciais,
seja a razão desse repensamento.
De fato, ao contrário do que ocorre em relação aos juízes americanos
e britânicos, a submissão dos juízes brasileiros aos precedentes dos tribunais
não é muito forte. Isso pode decorrer, em primeiro lugar, da própria falta
de convicção dessas mesmas cortes superiores com os seus próprios
precedentes, sendo evidentes as graves mudanças de entendimentos que
se realizam de um modo muito mais frequente do que seria o natural
e aceitável.
Além disso, ainda que prevaleça no nosso ordenamento jurídico
a ideia do livre convencimento motivado das decisões, isso nunca tornou
comum, nos julgamentos, o emprego dos chamados distinguishing,
do mesmo modo que a diferenciação do precedente, e do overruling,
como a superação do precedente, na condição de regras obrigatórias para
tal motivação do julgado.
Contudo, tais elementos da sentença deveriam ser considerados
verdadeiros ônus de imposição obrigatória ao juiz para que concretamente
se pudesse considerar aquele julgamento fundamentado, principalmente
34 Fernando Campos Scaff

quando vier a ocorrer o emprego de cláusulas gerais, em detrimento


das regras contratualmente estabelecidas pelas partes ou das normas
legais de caráter específico e objetivo.
Nesse sentido, a LINDB, com a sua redação decorrente da Lei nº 13.655,
de 25 de Abril de 2018, veio no sentido de revalorizar antigas lições
e critérios, os quais, como começa a se perceber, foram apressadamente
menosprezados pelo ordenamento jurídico brasileiro, que agora coloca
em curso a sua revitalização.
Nesse sentido, vejamos o que consta dessa lei agora.

2. A vedação à tomada de decisões com fundamento em valores


jurídicos abstratos, ressaltando-se as consequências que tal providência
poderia ter do ponto de vista prático

A despeito de existirem expressões que dificultam que a elas se oponha


genérica resistência, é evidente que o conteúdo de cada uma delas está
longe de ser inequívoco. É o que se dá quando se pensa na dignidade
da pessoa humana, no desenvolvimento sustentável, na boa-fé objetiva
ou na função social.
Esses são, exatamente, exemplos de valores jurídicos abstratos,
uma vez que o seu conteúdo não foi descrito pormenorizadamente pela lei,
esmiuçado pela doutrina de forma definitiva ou delineado objetivamente
pela jurisprudência.
Sendo assim, o artigo 20 da LINDB estabeleceu o seguinte:

Art. 20 . Nas esferas administrativa, controladora


e judicial, não se decidirá com base em valores
jurídicos abstratos sem que sejam consideradas
as consequências práticas da decisão. Parágrafo único.
A motivação demonstrará a necessidade e a adequação
da medida imposta ou da invalidação de ato,
contrato, ajuste, processo ou norma administrativa,
inclusive em face das possíveis alternativas.

Isso significa, por exemplo, que uma licitação feita e com obras
em curso, tendo sido o contrato celebrado a partir de um procedimento
prévio formalmente em ordem, não poderia ser modificado judicialmente,
com alteração de preços ou outras características da contratação,
sem considerações acerca dos riscos decorrentes da paralisação das
Normas de Direito Público na LINDB para interpretação
e integração no Direito Administrativo 35

obras ou de inviabilização do projeto. Caso isso venha a ser determinado,


a motivação do julgado deverá considerar todos esses fatores, sob pena
da própria invalidade da decisão judicial6.

3. Imposição no tocante à consequência da decisão: resultado


quanto aos efeitos concretos

O artigo 21 da LINDB também segue nessa tônica de considerar


as consequências do ato judicial que sejam potencialmente danosas,
quanto mais quando não se antever os efeitos decorrentes da necessidade
de paralisação imediata da obra ou do serviço, bem como da realização
de uma nova concorrência pública, com todos os prazos necessariamente
envolvidos nesses procedimentos. A redação dessa regra é a seguinte:
“Art. 21. A decisão que, nas esferas administrativa, controladora
ou judicial, decretar a invalidação de ato, contrato, ajuste, processo
ou norma administrativa deverá indicar de modo expresso suas
consequências jurídicas e administrativas.”
Na verdade, a consideração do juiz, a ser inserida expressamente
como capítulo da sentença, acerca da consequência integral do ato judicial,
é de todo lógica e racional, principalmente quando, antes, abriu-se a possi-
bilidade de que conceitos abstratos levassem à invalidação de contratos
administrativos celebrados sem que se exigisse a identificação objetiva
dos fundamentos e das próprias novas situações que decorreriam daí.

Não foi essa regra legal, por exemplo, que orientou o seguinte julgado do Superior Tribunal de Justiça:
6

ADMINISTRATIVO. IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. RECEBIMENTO DA INICIAL. PRINCÍPIO DO IN DUBIO PRO


SOCIETATE. VIOLAÇÃO AO ART. 11 DA LIA. DEMONSTRAÇÃO DE DANO AO ERÁRIO OU DE ENRIQUECIMENTO
ILÍCITO.DESNECESSIDADE. 1. Conforme estabelecido pelo Plenário do STJ, “aos recursos interpostos com
fundamento no CPC/1973 (relativos a decisões publicadas até 17 de março de 2016) devem ser exigidos
os requisitos de admissibilidade na forma nele prevista, com as interpretações dadas até então pela
jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça” (Enunciado 2). 2. De acordo com a posição dominante
no âmbito do STJ, presentes indícios suficientes de cometimento de ato ímprobo, afigura-se devido
o recebimento da ação de improbidade, em franca homenagem ao princípio do in dubio pro societate,
vigente nesse momento processual, sendo certo que apenas as ações evidentemente temerárias
devem ser rechaçadas. 3. No caso concreto, a Corte de origem afastou o entendimento sufragado
no primeiro grau de jurisdição, no sentido de que, à míngua de prova de dano ao erário, a ação decorrente
do ato ímprobo previsto no art. 11 não poderia ser processada. 4. A postura levada a efeito no TRF
da 4ª Região encontra respaldo na jurisprudência desta Corte, na linha de que o ato de improbidade
administrativa previsto no art. 11 da Lei n. 8.429/1992 não requer a demonstração de dano ao erário
ou de enriquecimento ilícito. 5. Agravo interno desprovido. (AgInt no AREsp 295.527/RS, Rel. Ministro
GURGEL DE FARIA, PRIMEIRA TURMA, julgado em 15/08/2017, DJe 20/09/2017). (BRASIL, 2017)
36 Fernando Campos Scaff

4. Ônus anormais ou excessivos. Perda dos investimentos realizados.


Perda da remuneração. Limitações de contratar

A regra contida no parágrafo único desse artigo 21 também estabelece


uma restrição importante à discricionariedade judiciária. Trata-se
de uma limitação à imposição de sanções ou de alterações nas cláusulas
contratuais presentes no momento da contratação, criando-se com isso
a possibilidade de se tornar o contrato inexequível por onerosidade
excessiva ou de gerar o próprio enriquecimento sem causa do erário,
na medida em que seja decretada a invalidação total ou parcial do resultado
da concorrência pública, sem considerar os custos e a remuneração que
deveria ser necessariamente paga para que tal obra ou serviço se reali-
zasse, expurgando-se os excessos evidentes e indubitavelmente lesivos.
É esse, de fato, o enunciado de tal regra:

Parágrafo único. A decisão a que se refere o caput


deste artigo deverá, quando for o caso, indicar
as condições para que a regularização ocorra de modo
proporcional e equânime e sem prejuízo aos interesses
gerais, não se podendo impor aos sujeitos atingidos
ônus ou perdas que, em função das peculiaridades do
caso, sejam anormais ou excessivos.

Nesse sentido, sanções não previstas no contrato e de caráter


punitivo, fixadas em julgamento, parecem ter sido vedadas por esse
artigo. A responsabilização civil, de caráter ordinariamente reparatório,
é o que deve prevalecer neste campo como regra.

5. Interpretação das normas, reconhecendo-se eventuais limites ao


cumprimento dos gestores no tocante ao conjunto das regras aplicáveis

O conteúdo da regra seguinte caminha, por outro lado, no sentido


de reconhecer os limites próprios ao poder do administrador público
de cumprir determinações de outros poderes ou mesmo dos seus
superiores hierárquicos, em virtude de limitações técnicas, orçamentárias
ou de qualquer outra ordem, desde que justificáveis em virtude da natureza
das suas próprias funções e o cargo que exerce.
Seria, por exemplo, o caso do fornecimento de medicamentos
extremamente caros ou da manutenção do valor de passagens cobradas
Normas de Direito Público na LINDB para interpretação
e integração no Direito Administrativo 37

no transporte público, determinadas por ordens judiciais que encontrem


resistência nos custos ou na impossibilidade material do cumprimento
da ordem, situação essa que poderia provocar sanções diretamente dirigidas
ao próprio agente público.
Tais fatos, levados ao extremo, representam verdadeiros desestímulos
ao exercício das funções atribuídas aos administradores, considerando
os riscos não delimitados a que podem se sujeitar, o que se daria
em virtude do emprego desmesurado, mesmo que bem-intencionado,
das cláusulas gerais.
É o que determina tal regra da LINDB, reproduzida abaixo:

Art. 22. Na interpretação de normas sobre


gestão pública, serão considerados os obstáculos
e as dificuldades reais do gestor e as exigências
das políticas públicas a seu cargo, sem prejuízo dos
direitos dos administrados.

§1º Em decisão sobre regularidade de conduta


ou validade de ato, contrato, ajuste, processo
ou norma administrativa, serão consideradas
as circunstâncias práticas que houverem imposto,
limitado ou condicionado a ação do agente.

6. Dosimetria das sanções, levando em conta a gravidade (dolo,


culpa grave, culpa leve ou ausência de culpa), o dano (material)
e circunstâncias de agravo ou de atenuação da sanção

Também estabelecem os parágrafos 2º e 3º do artigo 22 a necessidade


de se estabelecer uma escala e uma justificativa das sanções aplicadas,
próprias para cada situação. Eis o enunciado dessas regras:

§2º Na aplicação de sanções, serão consideradas


a natureza e a gravidade da infração cometida,
os danos que dela provierem para a administração
pública, as circunstâncias agravantes ou atenuantes
e os antecedentes do agente.

§3º As sanções aplicadas ao agente serão levadas em


conta na dosimetria das demais sanções de mesma
natureza e relativas ao mesmo fato.
38 Fernando Campos Scaff

De fato, tratando-se de sanções punitivas e não reparatórias –


estando essas últimas limitadas pela dimensão real do dano emergente
e do lucro cessante, passíveis de aferição objetiva –, o limite de cada uma
delas deve estar justificado, não apenas em si, mas também em relação
a outras situações, de forma que um sentido de proporcionalidade, fixado
por decisões judiciais coerentes, esteja vinculante.

7. Mudanças de interpretação deverão prever períodos de transição


para a adaptação do agente

Por fim, para garantir a segurança jurídica e evitar situações


de surpresa por conta da mudança inesperada e imediata na interpretação
acolhida pelos órgãos administrativos ou judiciários, estabeleceu-se a regra
de se garantir um período de transição para que o agente público possa
se adaptar a essa nova perspectiva, sem o risco de ser responsabilizado
pela impossibilidade de alterar, de forma também abrupta, procedimentos
e condutas anteriormente reconhecidos como corretos e adequados.
É o que determinam os artigos 23 e 24 da LINDB, reproduzidos abaixo:

Art. 23. A decisão administrativa, controladora


ou judicial que estabelecer interpretação
ou orientação nova sobre norma de conteúdo
indeterminado, impondo novo dever ou novo
condicionamento de direito, deverá prever regime
de transição quando indispensável para que o novo
dever ou condicionamento de direito seja cumprido
de modo proporcional, equânime e eficiente e sem
prejuízo aos interesses gerais.
Parágrafo único. (VETADO).

Art. 24. A revisão, nas esferas administrativa,


controladora ou judicial, quanto à validade de ato,
contrato, ajuste, processo ou norma administrativa
cuja produção já se houver completado levará
em conta as orientações gerais da época, sendo
vedado que, com base em mudança posterior
de orientação geral, se declarem inválidas situações
plenamente constituídas.
Normas de Direito Público na LINDB para interpretação
e integração no Direito Administrativo 39

Parágrafo único. Consideram-se orientações gerais


as interpretações e especificações contidas em atos
públicos de caráter geral ou em jurisprudência
judicial ou administrativa majoritária, e ainda
as adotadas por prática administrativa reiterada
e de amplo conhecimento público.

Na verdade, essas regras estão de acordo com os princípios


da irretroatividade da lei e do respeito ao ato jurídico perfeito,
mas se lançam ainda mais além. Sempre reconhecendo os limites orçamen-
tários e de organização do serviço público, mudanças interpretativas
deverão levar não a consequências imediatas, mas sim àquelas que sejam
de possível implantação, dadas as peculiaridades da própria atividade
administrativa e aos seus limites, em boa medida distintos daqueles que
orientam a iniciativa privada.

Conclusão

As mudanças ocorridas na LINDB vieram no sentido de equilíbrio


do sistema, considerando os riscos que não só as cláusulas gerais trazem
em si, mas também do seu emprego inadequado, o que ocorre quando são
elas colocadas no mesmo plano de importância e de aplicação preferencial
de outras normas, estas de caráter objetivo e específicas para determina-
das situações concretas.
Vale recordar que esse movimento legislativo, que caminha em prol
da segurança jurídica, não ocorre de forma isolada. Surge com proximidade
temporal da chamada Lei da Liberdade Econômica (13.874/2019),
bem como as alterações determinadas pela Lei 14.230/2021, alterando
a Lei da Improbidade Administrativa (8429/1992).
Creio que, todas elas, vêm em benefício da coerência do ordenamento
jurídico, da organização do sistema e da adequada separação dos Poderes.

Bibliografia

ALPA, Guido. Il contratto in generale. Principi e problemi. Milão: Giuffrè, 2014.


BRASIL. Decreto – Lei nº. 4.657, de 4 de setembro de 1942. Lei de Introdução
às Normas do Direito Brasileiro. Rio de Janeiro: Poder Executivo, 1942.
40 Fernando Campos Scaff

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (1. Turma). AgInt nos EDcl no Agravo
em Recurso Especial 295.527/RS. ADMINISTRATIVO. IMPROBIDADE
ADMINISTRATIVA. RECEBIMENTO DA INICIAL. PRINCÍPIO DO IN DUBIO PRO
SOCIETATE. VIOLAÇÃO AO ART. 11 DA LIA. DEMONSTRAÇÃO DE DANO
AO ERÁRIO OU DE ENRIQUECIMENTO ILÍCITO. Rel.: Min. Benedito Gonçalves.
Brasília, DF: Superior Tribunal de Justiça, 2017.
ENGISH, Karl. Introdução ao pensamento jurídico. 6. ed. Lisboa: Calouste, 1983.
LARENZ. Karl. Metodologia da Ciência do Direito. 2. ed. Lisboa: Calouste, 1989.
RIBEIRO, Joaquim de Sousa. O Problema do Contrato. As Cláusulas
Contratuais Gerais e o Princípio da Liberdade Contratual. Coimbra:
Almedina, 2003.
14

A promoção da segurança jurídica


na Lei de Introdução às normas do
Direito Brasileiro

Fernando Dias Menezes de Almeida1


Professor

Aline Aparecida de Miranda2


Juíza de Direito no estado de São Paulo

1. Introdução

O Decreto-Lei n. 4.657, de 4 de setembro de 1942, em sua origem


denominado Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro, limitava-se
a estabelecer regras gerais e nacionais sobre elementos de aplicação das
leis (vacatio legis, integração de lacunas...) e de direito internacional
privado, mas teve seu campo de aplicação ampliado pela Lei n. 12.376,
de 30 de dezembro de 2010, transformando-se em Lei de Introdução
às Normas do Direito Brasileiro3.
Os dispositivos referentes a relações jurídicas envolvendo a adminis-
tração pública, no entanto, foram incluídos em seu texto somente
a partir da edição da Lei n. 13.655, de 25 de abril de 2018, que prestigiou
a segurança jurídica de modo expresso na ementa da lei4 e na essência
dos novos artigos 20 e seguintes.
Note-se que a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro,
embora não tenha natureza constitucional, pode ser compreendida como

1
Professor titular da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP).
2
Juíza de Direito do Tribunal de Justiça de São Paulo. Mestranda do Programa de Pós-Graduação
da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP).
3
A Lei n. 12.376/2010, composta por apenas três artigos, tem por objeto exclusivo a alteração
da ementa do Decreto-Lei n. 4.657/42: Art. 1o. Esta Lei altera a ementa do Decreto-Lei nº 4.657,
de 4 de setembro de 1942, ampliando o seu campo de aplicação. Art. 2o. A ementa do Decreto-Lei nº 4.657,
de 4 de setembro de 1942, passa a vigorar com a seguinte redação: “Lei de Introdução às normas do
Direito Brasileiro.” Art. 3o. Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.
4
“Inclui no Decreto-Lei nº 4.657, de 4 de setembro de 1942 (Lei de Introdução às Normas do Direito
Brasileiro), disposições sobre segurança jurídica e eficiência na criação e na aplicação do direito público”.
42 Fernando Dias Menezes de Almeida e Aline Aparecida de Miranda

uma lei materialmente distinta e sobreposta às outras leis, por se tratar,


em certa medida, de uma lei sobre a dinâmica normativa das demais leis.
Identifica-se em seu texto, assim, de modo concomitante, aspectos
da legalidade e da segurança jurídica, o que traduz a relevância do
estudo desta, partindo-se da origem daquela. Estabelecida a conexão
entre ambas, chega-se à magnitude das novas previsões normativas
referidas, que acomodam no texto legal regras que inspiram a sustentação
do Estado de Direito.

2. Legalidade, segurança jurídica e Estado de Direito

O tema da segurança jurídica relaciona-se ao tema da legalidade,


pois da legalidade advêm os elementos para que se proteja a expectativa
de estabilidade e previsibilidade, elementares à aceitação dos múltiplos
quadros jurídicos possíveis na vida social.
Com efeito, o Estado de Direito5 tem como nota essencial o princípio
da legalidade, cuja formulação clássica deriva dos artigos 4º e 5º da
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, que apresentam,
nessa ordem, os limites ao exercício da liberdade e a definição do que
pode ser entendido por liberdade:

Art. 4º. A liberdade consiste em poder fazer tudo


que não prejudique o próximo: assim, o exercício dos
direitos naturais de cada homem não tem por limites
senão aqueles que asseguram aos outros membros
da sociedade o gozo dos mesmos direitos. Estes limites
apenas podem ser determinados pela lei.

Art. 5º. A lei não proíbe senão as ações nocivas


à sociedade. Tudo que não é vedado pela lei não pode
ser obstado e ninguém pode ser constrangido a fazer
o que ela não ordene6.

5
Excluem-se do sentido ora empregado de Estado de Direito as situações de Estados autocráticos
(autoritários e totalitários), que apenas nominalmente se podem dizer de Direito, mas nos quais
o Direito, de fato, não conforma a ação dos governantes, mas sim por ela é conformado.
6
A tradução é de Manoel Gonçalves Ferreira Filho (Direitos Humanos Fundamentais, p. 168). Os textos
originais são: “Art. 4. La liberté consiste à pouvoir faire tout ce qui ne nuit pas à autrui : ainsi, l’exer-
cice des droits naturels de chaque homme n’a de bornes que celles qui assurent aux autres Membres
de la Société la jouissance de ces mêmes droits. Ces bornes ne peuvent être déterminées que par la
A promoção da segurança jurídica na Lei de Introdução
às normas do Direito Brasileiro 43

Como mostra Léon Duguit7, o “coroamento” do Direito público,


no contexto de um Estado de Direito, é dado pela resposta à seguinte
questão: o Direito se impõe a todos os membros de uma comunidade,
tanto aos governantes como aos governados e, portanto, ao Estado;
a regra de Direito, quando imposta aos indivíduos, é sancionada pelo
Estado; mas, quando se dirige ao Estado, comporta ela uma sanção?
Após esclarecer que não cabe supor que tal sanção ao Estado seja
uma sanção de coação, posto que o Estado, monopolizando a coação,
não a exerceria contra si próprio8, o autor conclui tratar-se de lançar mão
de uma sanção indireta, cujo elemento essencial é dado pelo princípio
da legalidade:

Do ponto de vista material o princípio


de legalidade consiste nisto: em um Estado
de direito, nenhuma autoridade pode jamais tomar
uma decisão individual, senão nos limites fixados por
uma disposição de caráter geral, quer dizer, por uma
lei no sentido material9.

Duguit observa que a lei, no sentido de disposição de caráter geral


fixada previamente, não está imune a incidir em vícios; mas certamente
a chance de tal situação ocorrer é muito menor do que em se tratando
de decisão de caráter individual – tomada em vista de uma pessoa deter-
minada ou de uma situação especial, o que tende a desvios em relação
à justiça ou aos fins do Estado
E, por fim, afirma que não basta o reconhecimento teórico do princípio
da legalidade: impõe-se que sua sanção seja “fortemente organizada”,
mediante a existência de uma alta jurisdição, que reúna as garantias
de independência, imparcialidade e competência (como se passa, segundo
exemplifica o autor, com o Conselho de Estado francês).

Loi. Art. 5. La Loi n’a le droit de défendre que les actions nuisibles à la Société. Tout ce qui n’est pas
défendu par la Loi ne peut être empêché, et nul ne peut être contraint à faire ce qu’elle n’ordonne
pas.” (Texto disponível em http://www.conseil-constitutionnel.fr/conseil-constitutionnel/francais/la-
constitution/la-constitution-du-4-octobre-1958/declaration-des-droits-de-l-homme-et-du-citoyen-de-
1789.5076.html).
7
Leçons de Droit Public Général, pp. 274/280. O tema é desenvolvido em maior extensão, pelo mesmo
autor, em seu célebre Traité de Droit Constitutionnel.
8
De fato, cabe lembrar que a sanção jurídica, diversamente da moral, é heterônoma.
9
DUGUIT, Léon, Leçons de Droit Public Général, p. 275. Tradução livre.
44 Fernando Dias Menezes de Almeida e Aline Aparecida de Miranda

Admitindo-se esse raciocínio, identifica-se o princípio da legalidade


como pilar do sistema jurídico no Estado de Direito, sem o qual este não
se sustentaria.
Seu valor foi reconhecido no texto da Constituição Federal brasileira
vigente, que, seguindo a tradição das anteriores Constituições10 –
com exceção da de 1937 – acolhe o princípio da legalidade no rol de direitos
fundamentais em seu artigo 5º.
De todo modo, para que esse pilar seja firme, há que se aceitar,
por uma ficção jurídica, que todos os indivíduos conhecem a lei – ou, ao menos,
que a ninguém é permitido defender-se, ante infração da lei, alegando
seu desconhecimento.
Nesse sentido, assim dispõe a Lei de Introdução às Normas do Direito
Brasileiro em seu artigo 3º: “Ninguém se escusa de cumprir a lei, alegando
que não a conhece”.
Todavia, por tratar-se de situação evidentemente fictícia aquela
em que todos os indivíduos conhecem a lei, numa perspectiva realista,
o próprio Direito há que conter mecanismo que levem à máxima aproximação
possível entre ficção e realidade.
Tais mecanismos devem atentar basicamente para dois atributos
do ordenamento jurídico: sua comunicabilidade e sua estabilidade11.
Com a ideia de comunicabilidade, cogita-se da técnica da elaboração
das leis, o que refletirá na aptidão do texto normativo para ser
adequadamente compreendido e aplicado.
Com a ideia de estabilidade, cogita-se da dinâmica da produção da lei,
considerando sua entrada em vigor e sua substituição, de modo que se
propicie estabilidade às relações jurídicas e se permita aos destinatários
da lei adotar com confiança a conduta socialmente esperada.
Essas considerações, em matéria de legalidade no Estado de Direito,
que estão sendo feitas acerca da lei, podem bem ser expandidas para
as normas jurídicas em geral, mesmo as normas jurídicas individuais,

10
CF 1967, art. 150, § 2º (ou art. 153, § 2º, com a Emenda n. 1/69); CF 1946, art. 141, § 2º; CF 1934,
art. 113, 2; CF 1891, art. 72, § 1º; CI 1824, art. 179, I.
11
Enfatizando este segundo elemento, Odete Medauar afirma que “em essência segurança jurídica diz
respeito à estabilidade das situações jurídicas” (“Segurança Jurídica e Confiança Legítima”, p. 115).
A promoção da segurança jurídica na Lei de Introdução
às normas do Direito Brasileiro 45

no sentido que lhes é dado por Hans KELSEN12, o que inclui, por exemplo,
os atos administrativos e as sentenças judiciais.
Verifica-se, portanto, que não basta nominalmente garantir-se
a legalidade; é preciso, para que realmente se tenha um Estado de Direito,
que essa legalidade se revista de atributos tais que a façam apta a oferecer
segurança jurídica aos destinatários da norma.
A insegurança jurídica é um potencial fator do aniquilamento da vida
social do indivíduo, mediante o sacrifício de sua liberdade.
A insegurança quanto ao Direito – seja ante a dúvida quanto ao Direito
aplicável13, seja ante a instabilidade das relações concretizadas –
é tão nociva para a liberdade dos indivíduos, como a insegurança tout
court seria nociva para a própria existência dos indivíduos.
Oportuna, nesse sentido, a formulação de Celso Antônio Bandeira
de Mello:

Esta “segurança jurídica” coincide com uma das mais


profundas aspirações do Homem: a da segurança
em si mesma, a da certeza possível em relação
ao que o cerca, sendo esta uma busca permanente
do ser humano. É a insopitável necessidade de poder
assentar-se sobre algo reconhecido como estável,
ou relativamente estável, o que permite vislumbrar
com alguma previsibilidade o futuro; é ela,
pois, que enseja projetar e iniciar, consequentemente –
e não aleatoriamente, ao mero sabor do acaso –,
comportamentos cujos frutos são esperáveis
a médio e longo prazo. Dita previsibilidade é,
portanto, o que condiciona a ação humana.
Esta é a normalidade das coisas14.

12
Teoria Pura do Direito, t. II, pp. 85 et seq.
13
Ilustrativa dessa acepção de segurança jurídica é a versão italiana da mesma expressão – “certezza del
diritto” – a qual, segundo Alessandro Pizzorusso e Paolo Passaglia, traz do latim, a partir do adjetivo
“certus”, particípio do verbo “cerno”, os sentidos aproximativos de “discernir”, “compreender”
e “escolher (entre várias soluções)” (“Constitution et Sécurité Juridique – Rapport Italien”, p. 105).
14
Curso de Direito Administrativo, pp. 113/114.
46 Fernando Dias Menezes de Almeida e Aline Aparecida de Miranda

3. Elementos da segurança jurídica

Com diversas abordagens e diversos critérios se pode analisar o sentido


de segurança jurídica. Adote-se, aqui, o ponto de vista de Bertrand
Mathieu15, que, atentando para o Direito francês, entende ser possível
tratar a segurança jurídica como um “princípio matricial”16, do qual
decorrem “princípios derivados”.
Para o autor, os princípios derivados da segurança jurídica podem
ser divididos em dois grupos, segundo tenham por vocação “combater
a insegurança que pode afetar as normas jurídicas no fundo ou na forma,
ou vencer as incertezas ligadas à aplicação do direito no tempo”, levando,
respectivamente a princípios relativos à “exigência de qualidade do Direito”
e relativos à “exigência de previsibilidade do Direito” – em linhas gerais,
tais ideias são harmônicas com a sistematização que acima se fez mediante
as noções de comunicabilidade e estabilidade do Direito.
Daí decorrem, para Bertrand Mathieu17, como princípios derivados
da segurança jurídica com o sentido de atender à exigência de qualidade,
os princípios de clareza, acessibilidade, eficácia e efetividade do Direito.
E com o sentido de atender à exigência de previsibilidade, os princípios
de proteção de direitos adquiridos, não retroatividade, estabilidade
das relações contratuais e confiança legítima.
Essa análise feita quanto ao Direito francês – todavia, uma análise
teórica, posto que não necessariamente todos esses princípios encontram
previsão expressa naquele Direito positivo – vale, nessa mesma perspectiva,
para o caso brasileiro.
Não é propósito deste artigo aprofundar a análise de cada um de tais
princípios. Porém, cabem brevíssimas referências a respeito.
Clareza e acessibilidade se relacionam com a escolha de
termos e expressões que viabilizem a intelecção do texto normativo,
o que se soma à acessibilidade física, no sentido de publicação do texto.

15
Bertrand Mathieu, “Constitution et Sécurité Juridique – Rapport Français”, pp. 52/53.
16
Ou por outro enfoque, Bertrand Mathieu toma de empréstimo a expressão de Michel Verpeaux “principe
fédérateur”, um princípio que agrupa, associa – nesse sentido, é “federador” – outros princípios.
17
“Constitution et Sécurité Juridique – Rapport Français”, p. 53.
A promoção da segurança jurídica na Lei de Introdução
às normas do Direito Brasileiro 47

Invoca-se aqui um dos sentidos de público, ou de publicidade, tal como


o descreve Celso Lafer18: “o que é acessível a todos, em contraposição
ao privado, encarado como aquilo que é reservado e pessoal”.
Lembre-se que, no Brasil, a publicidade é princípio constitucional
que se impõe à Administração Pública de todos os poderes de todos
os entes da Federação (Constituição Federal, art. 37, caput), sendo reite-
rado em matéria da atividade legislativa (Constituição Federal, art. 84, IV).
Já eficácia e efetividade não são propriamente conteúdo de normas
jurídicas. São antes dados da realidade fática. Assim sendo, não são
“princípios”19 como espécie de norma jurídica, mas sim diretrizes
de boa prática da política legislativa, a ser objeto da atenção dos órgãos
produtores de Direito.
Isso porque, salvo situações patológicas20, não se há de querer
produzir normas que já se prevejam ineficazes e inefetivas. Contra essa
afirmação, poder-se-ia argumentar com a situação em que a norma, ainda
que de antemão se saiba de difícil eficácia, justamente tenha sido editada
com o intuito de modificar práticas sociais arraigadas. Mas, nesse caso,
ainda que de início juridicamente ineficaz, a norma, em sua dimensão
“pedagógica”, pode ser tida como efetiva.
De rigor, pois, a eficácia, antes de ser tratada como princípio,
deve ser concebida como uma qualidade, um atributo da norma jurídica –
“qualidade da norma que se refere à sua adequação em vista da produção
concreta de efeitos”, como a define Tércio Sampaio Ferraz Júnior21.
Nesse sentido, conforme a lição de Hans Kelsen22, a eficácia,
que não se considera fundamento de validade da norma, deve sim ser tida
como condição dessa mesma validade. Ou seja, uma norma que se mostre
ineficaz pode ter comprometida a validade que originalmente possuía.

18
A Reconstrução dos Direitos Humanos: um Diálogo com o Pensamento de Hannah Arendt, p.243.
19
Não se está aqui discordando de Bertrand Mathieu, cuja sistematização serviu de base para os presentes
desenvolvimentos. Até porque, no citado trabalho, o autor não se preocupa em discutir a dita “teoria
dos princípios”, concebendo “princípios” como espécie de normas jurídicas, ao lado das “regras”
– assunto que, aliás, já tem ocupado a doutrina jurídica brasileira de modo significativamente mais
intenso do que sua real relevância faria por merecer.
20
Comportando verdadeiro desvio de finalidade na produção normativa; p. ex.: edição de lei evidentemente
inconstitucional com o objetivo de afetar, na prática, dada situação que se enquadre em sua hipótese
de incidência (como o caso da edição de lei para tornar inviável concurso público em andamento).
21
Introdução ao Estudo do Direito, p. 181.
22
Teoria Pura do Direito, t. II, p. 46.
48 Fernando Dias Menezes de Almeida e Aline Aparecida de Miranda

Eficácia, portanto, diz respeito a um atributo avaliado do ponto de vista


jurídico: produção dos efeitos jurídicos conforme a prescrição normativa.
Ao seu turno, efetividade segue um raciocínio análogo. Por vezes,
é tida como sinônimo de eficácia; porém, pode comportar sentido mais
amplo, referindo-se a um atributo avaliado do ponto de vista social:
aptidão para a produção de efeitos sociais, ainda que não necessariamente
os efeitos jurídicos conformes à prescrição normativa.
A proteção de direitos adquiridos é norma tradicionalmente encon-
trada no Direito constitucional brasileiro, atualmente figurando no art. 5º,
inciso XXXVI – “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico
perfeito e a coisa julgada” – e sendo detalhada pela Lei de Introdução
às Normas do Direito Brasileiro:

Art. 6º A Lei em vigor terá efeito imediato e geral,


respeitados o ato jurídico perfeito, o direito
adquirido e a coisa julgada.

§ 1º. Reputa-se ato jurídico perfeito o já consumado


segundo a lei vigente ao tempo em que se efetuou.

§ 2º. Consideram-se adquiridos assim os direitos


que o seu titular, ou alguém por ele, possa exercer,
como aqueles cujo começo do exercício tenha termo
pré-fixo, ou condição pré-estabelecida inalterável,
a arbítrio de outrem.

§ 3º Chama-se coisa julgada ou caso julgado a decisão


judicial de que já não caiba recurso.

Essa fórmula é melhor compreendida considerando-se que o direito


adquirido é gênero23, que inclui como espécies os direitos decorrentes
de atos jurídicos que se aperfeiçoam – sejam atos jurídicos de caráter
objetivo, como a lei24; sejam atos de caráter subjetivo, como os contratos –,
assim como os direitos decorrentes das decisões jurisdicionais transitadas
em julgado.

23
Para uma análise do direito adquirido como gênero, incluindo as espécies ato jurídico perfeito e coisa
julgada, ver, de Rubens Limongi França, Direito Intertemporal Brasileiro, pp. 436 et seq..
24
“Atos-regra”, para lembrar a precisa terminologia de Léon Duguit.
A promoção da segurança jurídica na Lei de Introdução
às normas do Direito Brasileiro 49

Daí já se nota que a estabilidade das relações contratuais se inclui


na noção de proteção de direitos adquiridos, no caso, decorrentes
de atos jurídicos perfeitos25.
Correlata à noção de direitos adquiridos está a de não retroatividade
das leis, ou das normas jurídicas em geral. A não retroatividade das leis tem
sentido que inclui a proteção dos direitos adquiridos, mas vai além dela.
Com efeito, a edição de uma norma para disciplinar as consequências
jurídicas de fatos já passados não apenas conflitaria com a ideia de que de
relações jurídicas passadas se houvesse adquirido direitos, como contrariaria
qualquer senso de balizamento de condutas sociais por meio do Direito:
como avaliar que conduta adotar se as suas consequências jurídicas serão
dadas apenas futuramente pela lei?
Ainda que a Constituição Federal não seja expressa nesse sentido26,
senão em matéria de leis penais27, pode-se entender que esse princípio
tem base no Direito legislado, no caput do art. 6º da Lei de Introdução
às Normas do Direito Brasileiro acima reproduzido.
Por fim, a confiança legítima, também dita proteção da confiança,
não se confunde com os três elementos anteriores, por ser mais ampla,
abrangendo também situações em que não há ainda direitos adquiridos28.
Esse aspecto é o ponto que se pretende desenvolver mais concentrada-
mente a seguir, por transcender o que corresponde à qualidade objetiva
da segurança jurídica, revelando-se como aspecto de natureza subjetiva.

25
E, de todo modo, ainda que temperado pelos princípios ditos sociais do contrato (Código Civil,
arts. 421, 422 e 478) – ver, a propósito, Antônio Junqueira de Azevedo, “Relatório Brasileiro sobre
Revisão Contratual Apresentado para as Jornadas Brasileiras da Associação Henri Capitant”, p. 183 –
segue válido no Brasil o princípio pacta sunt servanda, mesmo que não haja no Direito nacional
a previsão expressa do Código Civil francês: “Art. 1.134. Les conventions légalement formées tiennent
lieu de loi à ceux qui les ont faites”.
26
Como o foram a Constituição do Império – “Art. 179. A inviolabilidade dos Direitos Civis, e Políticos
dos Cidadãos Brasileiros, que tem por base a liberdade, a segurança individual, e a propriedade,
é garantida pela Constituição do Império, pela maneira seguinte. […] II. Nenhuma Lei será estabelecida
sem utilidade pública. III. A sua disposição não terá efeito retroativo”. – e a Constituição Federal
de 1891 – “Art 11 - É vedado aos Estados, como à União: […] 3º) prescrever leis retroativas.”
27
Caso, aliás, que comporta exceção à não retroatividade: “Art. 5º, XL – a lei penal não retroagirá,
salvo para beneficiar o réu”.
28
MEDAUAR, Odete, “Segurança Jurídica e Confiança Legítima”, p. 117.
50 Fernando Dias Menezes de Almeida e Aline Aparecida de Miranda

4. Proteção à confiança como elemento da segurança jurídica

Não é o propósito deste estudo discorrer teoricamente sobre


a proteção à confiança, nem mesmo reportar em detalhes o que a doutrina
tem afirmado nessa matéria.
A respeito, entre outras referências, vale citar, especificamente sobre
o tema, os trabalhos produzidos no Brasil por Almiro do Couto e Silva29,
Odete Medauar30, Maria Sylvia Zanella Di Pietro31 e Patrícia Ferreira Baptista32.
Na Europa, é farta a produção de trabalhos sobre o assunto33, notada-
mente a de autores alemães, desde meados do século XX, mas também,
mais recentemente, a de autores de outras nacionalidades, dada a aplicação
da proteção à confiança no direito da União Europeia34.
De todo modo, ainda que de forma breve, a referência ao aspecto
subjetivo da segurança jurídica é oportuna, pois nele se assenta
a expectativa das pessoas, que lhes possibilita planejamentos a médio
e longo prazo, com confiança suficiente a lhes permitir o estabelecimento
e o respeito às relações jurídicas.
Em termos de uma definição jurídica mais específica, recorra-se
ao esclarecimento de Almiro do Couto e Silva35:

A segurança jurídica é entendida como sendo um


conceito ou um princípio jurídico que se ramifica

29
“O Princípio da Segurança Jurídica (Proteção à Confiança) no Direito Público Brasileiro e o Direito
da Administração Pública de Anular seus Próprios Atos Administrativos: o Prazo Decadencial do Art. 54
da Lei do Processo Administrativo da União (Lei n. 9.784/99)”.
30
“Segurança jurídica e confiança legítima”.
31
“Os Princípios da Proteção à Confiança, da Segurança Jurídica e da Boa-Fé na Anulação do
Ato Administrativo”.
32
Segurança Jurídica e Proteção da Confiança Legítima - Análise Sistemática e Critérios de Aplicação
no Direito Administrativo Brasileiro.
33
Sem que se ignore a multiplicidade de obras publicadas especificamente sobre o tema, um excelente
panorama comparativo de diversas perspectivas nacionais sobre o assunto pode ser obtido em VV. AA.
Constitution et Sécurité Juridique. Anais da XVe Table Ronde Internationale promovida pelo Groupe d’Études
et de Recherches sur la Justice Constitutionnelle da Université d’Aix-Marseille III. Aix-en-Provence, 1999.
34
Em verdade, remonta ao pensamento antigo o reconhecimento da importância da confiança para
o relacionamento humano, como bem analisa, a partir das idéias de Aristóteles, Camila de Jesus Mello
Gonçalves (Princípio da Boa-Fé – Perspectivas e Aplicações, pp. 37 et seq.).
35
“O Princípio da Segurança Jurídica (Proteção à Confiança) no Direito Público Brasileiro e o Direito
da Administração Pública de Anular seus Próprios Atos Administrativos: o Prazo Decadencial do Art. 54
da Lei do Processo Administrativo da União (Lei n. 9.784/99)”, pp. 3–4.
A promoção da segurança jurídica na Lei de Introdução
às normas do Direito Brasileiro 51

em duas partes, uma de natureza objetiva e outra


de natureza subjetiva. A primeira, de natureza
objetiva, é aquela que envolve a questão dos limites
à retroatividade dos atos do Estado até mesmo
quando estes se qualificam como atos legislativos.
Diz respeito, portanto, à proteção ao direito
adquirido, ao ato jurídico perfeito e à coisa julgada.
Diferentemente do que acontece em outros países
cujos ordenamentos jurídicos frequentemente
têm servido de inspiração ao direito brasileiro,
tal proteção está há muito incorporada à nossa
tradição constitucional e dela expressamente cogita
a Constituição de 1988, no art. 5º, inciso XXXVI.

A outra, de natureza subjetiva, concerne à proteção


à confiança das pessoas no pertinente aos atos,
procedimentos e condutas do Estado, nos mais
diferentes aspectos de sua atuação.

A natureza subjetiva da proteção à confiança também é destacada


por Bertrand Mathieu36:

O princípio de confiança legítima é um princípio


essencialmente subjetivo posto que sua ofensa
se aprecia em vista da confiança que tal ou qual
indivíduo pôde depositar na estabilidade do quadro
jurídico em que atua. Assim uma mesma evolução
do direito pode ofender o princípio da confiança
legítima em relação a uma categoria de indivíduos
e não quanto a outra37.

Assim concebida em tese, a quebra da confiança pode-se dar


tanto no plano dos atos administrativos de execução (ex.: descumpri-
mento de compromissos, ainda que não revestidos de forma jurídica;
alteração abrupta de regulamentos; desfazimento de decisões ou atos em

36
“Constitution et Sécurité Juridique – Rapport Français”, p. 60.
37
Tradução livre. Na sequência desse trecho, o autor observa, por consequência desse caráter subjetivo,
que o princípio da confiança legítima “é dificilmente utilizável no âmbito de um contencioso objetivo”.
52 Fernando Dias Menezes de Almeida e Aline Aparecida de Miranda

geral38), como no plano dos atos normativos, legislativos, administrativos


ou mesmo jurisdicionais (ex.: retroatividade, ou mesmo, em certos casos,
vigência imediata39).

5. Segurança jurídica na Lei de Introdução às Normas do


Direito Brasileiro

A Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, a partir dos


acréscimos da Lei n. 13.655/2018, contempla a segurança jurídica,
em suas feições objetiva e subjetiva, como norte das decisões nas esferas
administrativa, controladora e judicial.
Como visto, a legalidade e a segurança jurídica, que se inter-relacionam,
estão na base do Estado de Direito, de modo que, nesse contexto,
sua existência antecede textos normativos expressos a seu respeito. Ainda
assim, a inserção de seu conteúdo em regramentos reforça a imprescindi-
bilidade de sua observância e o valor que devem ostentar como vetores das
situações jurídicas.
Maria Sylvia Zanella Di Pietro, em artigo sobre a nova Lei de Introdução
às Normas do Direito Brasileiro, observa:

Nem tudo o que está contido nela constitui inovação,


porque a lei agasalha preceitos que já decorrem
dos ensinamentos da doutrina ou de teses já aceitas
pela jurisprudência ou que estão consagradas no
próprio direito positivo. Ela tem o mérito de tornar
expressos em lei alguns desses preceitos; ela tem
também o mérito de definir, ainda que parcialmente,

38
Como mostra Almiro do Couto E Silva, o princípio da proteção à confiança começou a firmar-se
na jurisprudência alemã em torno da questão do limite temporal para que a Administração anule seus
próprios atos, de que decorram efeitos favoráveis aos destinatários [“O Princípio da Segurança Jurídica
(Proteção à Confiança) no Direito Público Brasileiro e o Direito da Administração Pública de Anular
seus Próprios Atos Administrativos: o Prazo Decadencial do Art. 54 da Lei do Processo Administrativo
da União (Lei n. 9.784/99)”, p. 7].
39
Odete Medauar exemplifica com o caso de “promessas ou compromissos da Administração, que geraram,
no cidadão, esperanças fundadas”; e com o caso de “alterações normativas que, mesmo legais,
são de tal modo abruptas ou radicais que suas consequências revelam-se chocantes” (“Segurança
Jurídica e Confiança Legítima”, p. 117).Celso Antônio Bandeira de Mello aponta a impossibilidade de
que alterações em orientações anteriormente firmadas pela Administração agravem ou prejudiquem
a situação de administrados, em dado caso concreto, senão mediante prévia e pública notícia quanto
à nova orientação (Curso de Direito Administrativo, p. 114).
A promoção da segurança jurídica na Lei de Introdução
às normas do Direito Brasileiro 53

o conteúdo de alguns princípios do direito


administrativo. Eu diria que, em alguns casos,
ela transforma princípios em regras jurídicas40.

Segundo Carlos Ari Sundfeld e Floriano de Azevedo Marques Neto,


redatores do anteprojeto que resultou na lei referida, muitos dos problemas
do direito público nacional, que não funciona adequadamente, decorrem
de características estruturais, tornando-se necessária a adoção de “soluções
mais sofisticadas”, a partir de previsões expressas de normas gerais sobre
criação, interpretação e aplicação do direito público:

O objetivo é melhorar a qualidade da atividade


decisória pública no Brasil, exercida nos vários
níveis da Federação (federal, estadual, distrital
e municipal) e nos diferentes Poderes (Executivo,
Legislativo e Judiciário) e órgãos autônomos
de controle (Tribunais de Contas e Ministérios
Públicos)41.

Não se pretende, neste estudo, comentar cada um dos mais novos artigos
da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, tampouco o disposto
em sua regulamentação no Decreto nº 9.830, de 10 de junho de 2019,
com exame de requisitos, especificidades e regras de aplicação.
A demonstração que se faz é da presença da promoção da segurança
jurídica na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, expressa
em sua literalidade e como componente do conteúdo da regra.
Com efeito, a partir dos artigos 20 e seguintes, a segurança jurídica
revela-se como cerne das previsões legais, evidenciando-se o empenho
do legislador para que sejam observadas a estabilidade e a previsibilidade
das situações jurídicas.
Exige-se que, nas esferas administrativa, controladora e judicial,
as decisões sejam motivadas, com a demonstração de necessidade

40
A nova LINDB e o direito administrativo: o que esperar?, p. 113.
41
Segurança jurídica e eficiência na lei de introdução ao direito brasileiro, p. 7.
54 Fernando Dias Menezes de Almeida e Aline Aparecida de Miranda

e adequação, considerando-se, necessariamente, as consequências práticas


da decisão quando o fundamento se basear em valores jurídicos abstratos42.
As consequências jurídicas e administrativas também deverão ser
indicadas de modo expresso nos casos de invalidação de ato, contrato,
ajuste, processo ou norma administrativa.
Quando for o caso, deverão ser estipuladas condições para que
se viabilize regularização de modo proporcional e equânime e sem prejuízo
aos interesses gerais, sem ônus ou perdas excessivas aos sujeitos atingidos43.
Em linha semelhante, quando for o caso de interpretação ou orien-
tação nova sobre norma de conteúdo indeterminado, com imposição de
novo dever ou novo condicionamento de direito, a decisão deverá prever
regime de transição quando indispensável para que o novo entendimento
seja cumprido de modo proporcional, equânime e eficiente e sem prejuízo
aos interesses gerais44.
Desde logo, portanto, identificam-se atributos da lei que promovem
a segurança jurídica, pois a motivação, nos moldes exigidos, deverá atender
à comunicabilidade e à estabilidade. Esses atributos, como referido,
são aplicáveis às normas jurídicas em geral e alcançam também normas
jurídicas individuais, como aquelas postas em contratos.
A partir da exposição dos motivos pelos quais se decidiu de
determinada forma, o comando poderá ser compreendido e aplicado.
Além disso, ao se levar em conta os efeitos práticos do decidido, evita-se
o descolamento entre realidade e texto abstrato, com o exame das
circunstâncias concretas.

42
“Art. 20. Nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores
jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão. Parágrafo único.
A motivação demonstrará a necessidade e a adequação da medida imposta ou da invalidação de ato,
contrato, ajuste, processo ou norma administrativa, inclusive em face das possíveis alternativas.”
43
“Art. 21. A decisão que, nas esferas administrativa, controladora ou judicial, decretar a invalidação
de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa deverá indicar de modo expresso suas
consequências jurídicas e administrativas. Parágrafo único. A decisão a que se refere o caput deste artigo
deverá, quando for o caso, indicar as condições para que a regularização ocorra de modo proporcional
e equânime e sem prejuízo aos interesses gerais, não se podendo impor aos sujeitos atingidos ônus ou
perdas que, em função das peculiaridades do caso, sejam anormais ou excessivos.”
44
“Art. 23. A decisão administrativa, controladora ou judicial que estabelecer interpretação ou orien-
tação nova sobre norma de conteúdo indeterminado, impondo novo dever ou novo condicionamento
de direito, deverá prever regime de transição quando indispensável para que o novo dever ou condi-
cionamento de direito seja cumprido de modo proporcional, equânime e eficiente e sem prejuízo aos
interesses gerais.”
A promoção da segurança jurídica na Lei de Introdução
às normas do Direito Brasileiro 55

No que toca às diretrizes sobre a regularização, no sentido de ocorrer


de modo proporcional e equânime, com a menor extensão de danos
possível, protege-se a confiança legítima depositada no estado anterior
daquele cenário a ser regularizado, sem transmitir abandono ou descaso
àqueles atingidos de forma direta ou indireta pela modificação.
Raciocínio semelhante se aplica às hipóteses de regime de
transição para situações jurídicas novas. Evita-se a interrupção abrupta,
protegendo-se os interesses gerais.
Os princípios derivados da segurança jurídica para atender à quali-
dade também estão presentes, pois preocupou-se com a adequação em
vista da produção concreta de efeitos jurídicos (eficácia) e com a aptidão
para a produção de efeitos sociais (efetividade).
Outro destaque que se faz tange à revisão quanto à validade de ato,
contrato, ajuste, processo ou norma administrativa cuja produção
já se houver completado. Nesse caso, as orientações gerais da época
serão consideradas, vedado que se declarem inválidas situações plena-
mente constituídas com base em mudança posterior de orientação geral45.
Resgate-se, aqui, o que acima se pontuou sobre o direito adquirido
ser gênero, com espécies consistentes em direitos oriundos de atos
jurídicos que se aperfeiçoam e das decisões jurisdicionais transitadas em
julgado. Nesse cenário, a estabilidade das relações contratuais pode ser
compreendida como direito decorrente da primeira fonte, pois decorrente
de atos jurídicos perfeitos.
A vedação da retroatividade de orientação geral para se invalidar
situações plenamente constituídas atende a mais um princípio derivado
da segurança jurídica para atender à previsibilidade: o princípio da
não retroatividade. Pelo texto legal, portanto, a nova orientação geral
não poderá invalidar cenário consolidado mediante sobreposição às orien-
tações gerais da época em que o cenário jurídico se consolidou.
Ainda evitando-se a dissociação da realidade, na interpretação
das normas sobre gestão pública devem ser considerados os obstáculos

“Art. 24. A revisão, nas esferas administrativa, controladora ou judicial, quanto à validade de ato,
45

contrato, ajuste, processo ou norma administrativa cuja produção já se houver completado levará em
conta as orientações gerais da época, sendo vedado que, com base em mudança posterior de orientação
geral, se declarem inválidas situações plenamente constituídas. Parágrafo único. Consideram-se orien-
tações gerais as interpretações e especificações contidas em atos públicos de caráter geral ou em
jurisprudência judicial ou administrativa majoritária, e ainda as adotadas por prática administrativa
reiterada e de amplo conhecimento público.”
56 Fernando Dias Menezes de Almeida e Aline Aparecida de Miranda

e as dificuldades reais do gestor e as exigências das políticas públicas


a seu cargo, sem prejuízo dos direitos dos administrados46.
Igualmente serão consideradas as circunstâncias práticas que
houverem imposto, limitado ou condicionado a ação do agente, quando
se decidir sobre regularidade e validade47.
Por essas normas, incentiva-se a postura ativa do gestor,
pois eventual julgamento sobre sua conduta considerará, necessariamente,
as circunstâncias que o rodeavam, afastando-lhe o temor de eventual
responsabilização futura lastreada em premissas e condicionantes não
contemporâneas à sua conduta.
Dessa forma, promovem-se sobretudo, além dos interesses particulares
do gestor, os interesses gerais. Afinal, o agente que se sente seguro para
agir em conformidade ao cenário com o qual se depara, menos estímulos
terá para se omitir diante de questões de complexidades diversas. Poderá,
assim, com confiança legítima, sem prejuízo da legalidade e dos demais
princípios do direito, decidir e intervir nas demandas públicas e políticas.
É evidente que a omissão não se coaduna com a função pública.
Por outro lado, ainda que sob o risco de ser responsabilizado mesmo pela
omissão, a hesitação do agente público pode acontecer quando não confiar
na forma pela qual poderá ter sua conduta apurada e fiscalizada.
Sobre os artigos finais, mencione-se a possibilidade de celebração
de compromisso com os interessados para eliminar irregularidade,
incerteza jurídica ou situação contenciosa nas relações jurídicas envol-
vendo a administração pública, quando presentes razões de relevante
interesse geral48.
O texto legal apresenta os requisitos desse compromisso: buscará
solução jurídica proporcional, equânime e compatível com os interes-
ses gerais; não poderá conferir desoneração permanente de dever ou

46
“Art. 22. Na interpretação de normas sobre gestão pública, serão considerados os obstáculos
e as dificuldades reais do gestor e as exigências das políticas públicas a seu cargo, sem prejuízo dos
direitos dos administrados […].”
47
“Art. 22. […] § 1º Em decisão sobre regularidade de conduta ou validade de ato, contrato, ajuste,
processo ou norma administrativa, serão consideradas as circunstâncias práticas que houverem imposto,
limitado ou condicionado a ação do agente.”
48
Art. 26. Para eliminar irregularidade, incerteza jurídica ou situação contenciosa na aplicação do direito
público, inclusive no caso de expedição de licença, a autoridade administrativa poderá, após oitiva
do órgão jurídico e, quando for o caso, após realização de consulta pública, e presentes razões de
relevante interesse geral, celebrar compromisso com os interessados, observada a legislação aplicável,
o qual só produzirá efeitos a partir de sua publicação oficial. […].
A promoção da segurança jurídica na Lei de Introdução
às normas do Direito Brasileiro 57

condicionamento de direito reconhecidos por orientação geral; e deverá


prever com clareza as obrigações das partes, o prazo para seu cumpri-
mento e as sanções aplicáveis em caso de descumprimento.
Verifica-se, também aqui, o esforço para se atingir tanto a qualidade
quanto a previsibilidade, com a busca simultânea da clareza e da confiança
legítima. A proteção da estabilidade é reforçada pela imposição de sanções
para o caso de descumprimento, o que estimula a observância perene
do que se estabeleceu.
O previsto sobre possibilidade de consulta pública anteceder a edição
de atos normativos por autoridade administrativa, salvo os de mera
organização interna, reafirma a acessibilidade e a efetividade do Direito49.
Por fim, pontue-se a imposição às autoridades públicas do dever
de atuar para aumentar a segurança jurídica na aplicação das normas,
o que pode ocorrer, por exemplo, por meio de regulamentos, súmulas
administrativas e respostas a consultas, que vincularão o órgão ou entidade
a que se destinam, até ulterior revisão50.
Essa regra compõe o artigo 30 da Lei de Introdução às Normas
do Direito Brasileiro, que é o seu último artigo. Somente nesse dispositivo
a segurança jurídica surge em sua literalidade, ao passo que nas
demais regras sua identificação acontece apenas pela interpretação
do conteúdo normativo.
Floriano de Azevedo Marques Neto e Rafael Verás de Freitas pontuam:

Não se desconhece que a aplicação da Teoria dos


Precedentes Administrativos já teria aplicabilidade
ao ordenamento jurídico brasileiro, em razão
do disposto no art. 15 c/c art. 927, I a V, do CPC/2015.
Nada obstante, alçar tal sistemática à qualidade
de uma norma interpretativa é, por assim dizer,
“levar os precedentes administrativos a sério”51.

49
Art. 29. Em qualquer órgão ou Poder, a edição de atos normativos por autoridade administrativa,
salvo os de mera organização interna, poderá ser precedida de consulta pública para manifestação
de interessados, preferencialmente por meio eletrônico, a qual será considerada na decisão.
50
Art. 30. As autoridades públicas devem atuar para aumentar a segurança jurídica na aplicação das
normas, inclusive por meio de regulamentos, súmulas administrativas e respostas a consultas. Parágrafo
único. Os instrumentos previstos no caput deste artigo terão caráter vinculante em relação ao órgão
ou entidade a que se destinam, até ulterior revisão.
51
Comentários à Lei nº 13.655/2018 (Lei da Segurança para a Inovação Pública), p. 164.
58 Fernando Dias Menezes de Almeida e Aline Aparecida de Miranda

Saliente-se que é apenas exemplificativo o rol de instrumentos


jurídicos que poderão ser criados com caráter vinculante em relação
ao ente público, o que revela espaço amplo de atuação da administração
para deliberar sobre o meio pelo qual serão estabelecidas regras que,
pela vinculação, serão mais um reforço à estabilidade.
Dessa forma, nota-se, como regra final, a imposição às autoridades
públicas do dever que vai além da manutenção da segurança jurídica
na aplicação das normas. Determina-se, mais do que isso, que atuem para
aumentar a segurança jurídica, impondo-lhes postura ativa no aprimora-
mento do cenário jurídico geral.

Conclusão

As mutações são naturais à vida social e, portanto, não se dissociam


do contexto do Estado de Direito. Essas mudanças, contudo, devem ser
pautadas em parâmetros e diretrizes seguros o suficiente para que seja
preservada a confiança legítima, observados os efeitos jurídicos e sociais
em relação a direitos adquiridos e a novos direitos.
A Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, a partir das
inovações de 2018, condensa os aspectos da legalidade e da segurança
jurídica no mesmo corpo de regras. De fato, como visto, são aspectos
que se encontram em sua natureza. A comunicabilidade e a estabilidade,
atributos da lei, promovem a segurança jurídica.
Os princípios derivados da segurança jurídica, considerada
princípio matricial, são percebidos a partir da leitura e interpretação
do texto legal, o qual revela prestígio à qualidade e à previsibilidade
do Direito. Impõe-se a clareza, a acessibilidade, a eficácia e a efetividade
do Direito, ao mesmo tempo em que se impõe a proteção de direitos
adquiridos, a não retroatividade, a estabilidade das relações contratuais
e a confiança legítima.
É certo que a necessidade de se observar a segurança jurídica
antecede qualquer previsão legal expressa nesse sentido, pois é base do
Estado de Direito. De todo modo, é relevante que, nas esferas adminis-
trativa, controladora e judicial, essa base encontre reforço em normas
gerais sobre aplicação de quaisquer outras normas. Promove-se, assim,
a segurança jurídica até mesmo da aplicação normativa da própria
segurança jurídica.
A promoção da segurança jurídica na Lei de Introdução
às normas do Direito Brasileiro 59

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A promoção da segurança jurídica na Lei de Introdução
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36

Segurança jurídica: contribuições da


LINDB

Ricardo Cunha Chimenti1


Desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo

Introdução

Todas as normas infraconstitucionais e mesmo as emendas consti-


tucionais devem ser interpretadas sob a luz da Constituição Federal
(circunstância explicitada pelo art. 1º do NCPC).
Assim, para a interpretação das normas do direito brasileiro, há que
se observar o princípio da segurança jurídica (art. 5º, caput, da CF),
a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e da livre
iniciativa (art. 1º da CF/1988), o princípio do juiz natural (a fim de que
a competência se materialize como limite do exercício da jurisdição),
os valores do contraditório e a ampla defesa e conjugar todos esses
elementos com a duração razoável do processo (art. 5º, LXXVIII da CF e
art. 8º, I, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos), tudo sem
que se perca a perspectiva de que a solução dada a cada caso concreto
deve ser a mais justa ( já que do próprio preâmbulo da CF se extrai que a
Justiça como um dos valores supremos da sociedade brasileira) e eficiente
(dotada de concretude – art. 4º do CPC).
Este artigo objetiva analisar a complexa tarefa atribuída ao operador
do direito de harmonizar valores que pressupõem, de um lado, alto grau
de objetividade e previsibilidade (um dos aspectos da segurança jurídica),
e de outro, a análise individualizada e subjetiva de uma conduta (a fim
de que a solução respeite a dignidade da pessoa humana seja a mais justa
para cada caso concreto).

Professor de Direito Tributário e da disciplina ‘Magistratura: vocação e desafios’ da Universidade


1

Presbiteriana Mackenzie, Coordenador Geral dos Cursos de Formação Inicial e de Aperfeiçoamento


para fins de vitaliciamento da Escola Paulista da Magistratura (EPM), Mestre em Processo Civil e autor
de obras jurídicas.
64 Ricardo Cunha Chimenti

1. Positivismo e pós-positivismo. Juízo de subsunção e juízo


de ponderação

Não se desconhece que a maior parte dos países superou o absolu-


tismo pelo caminho do positivismo, de forma que a vontade incontestável
dos Reis foi substituída pelas leis, criando-se até mesmo uma ciência
jurídica. Conforme leciona Luís Roberto Barroso2, “O Direito reduzia-se
ao conjunto das normas em vigor, considerava-se um sistema perfeito e,
como todo dogma, não precisava de qualquer justificação além da própria
existência”. Pretendia-se que a aplicação do direito se resumisse à técnica
da subsunção, pela qual o fato (premissa menor) é objetivamente inseri-
do dentro da lei (premissa maior), sem que o intérprete desempenhasse
qualquer papel criativo.
Há que se observar, contudo, que os ideais inicialmente positiva-
dos para se contrapor às arbitrariedades do absolutismo, sob a regên-
cia de revolucionários como Robespierre serviram de instrumento de
grande opressão ou foram utilizadas como instrumentos de interesses
socialmente ilegítimos.
Do ponto de vista da liberdade do intérprete, verificamos de um lado
os subjetivistas (hoje minoritários), para os quais os juízes devem essen-
cialmente buscar a vontade subjetiva do legislador (mens legislatoris).
De outro lado, encontramos os objetivistas, que buscam a vontade
autônoma da própria lei (mens legis) e detêm a percepção de que as
palavras não são portadoras de um sentido unívoco e de que não se pode
ficar “alheio ao fato de que a velocidade das transformações sociais,
atropelando os textos legais, representa um constante desafio à argúcia
de advogados e juristas, tanto quanto ao senso de justiça dos magis-
trados. Nesse sentido há interessante artigo do Desembargador Luiz
Sérgio Fernandes de Souza em http://politica.estadao.com.br/blogs/
fausto-macedo/o-juiz-boca-da-lei/

1.1 O pós-positivismo

O pós-positivismo, por sua vez, permite a análise do direito como um


sistema aberto de valores, de forma que o direito positivo seja interpretado
sob a luz da ética, com a prevalência do juízo de ponderação (graduação

2
BARROSO, Luís Roberto. A nova interpretação constitucional. 2. ed. Renovar, 2006. p. 25.
Segurança jurídica: contribuições da LINDB 65

dos valores envolvidos no caso) sobre o juízo da subsunção (pelo qual o


juiz aplica a norma ao fato de maneira objetiva e pretensamente neutra,
sem maiores valorações).
O juízo de ponderação, portanto, é caracterizado sobretudo pelo
sopesamento das inúmeras circunstâncias que envolvem cada caso
concreto, tendo sido bastante prestigiado pelos artigos 8º e 489, § 2º3,
ambos do NCPC, bem como pelos artigos 4º, 5º, 20, 21, 22, 23 e 244 da
LINDB (os cinco últimos direcionados especialmente para o Direito Público).

3
Art. 8º do CPC – Ao aplicar o ordenamento jurídico, o juiz atenderá aos fins sociais e às exigências do
bem comum, resguardando e promovendo a dignidade da pessoa humana e observando a proporcio-
nalidade, a razoabilidade, a legalidade, a publicidade e a eficiência.
Art. 489 do CPC – São elementos essenciais da sentença:
§ 2º No caso de colisão entre normas, o juiz deve justificar o objeto e os critérios gerais da ponderação
efetuada, enunciando as razões que autorizam a interferência na norma afastada e as premissas fáticas
que fundamentam a conclusão.
4
Art. 4º da LINDB – Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes
e os princípios gerais de direito.
Art. 5º da LINDB – Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências
do bem comum.
Art. 20 da LINDB – Nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em
valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão. (Incluído
pela Lei nº 13.655, de 2018)
Parágrafo único. A motivação demonstrará a necessidade e a adequação da medida imposta ou da
invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa, inclusive em face das possíveis
alternativas. (Incluído pela Lei nº 13.655, de 2018)
Art. 21 da LINDB – A decisão que, nas esferas administrativa, controladora ou judicial, decretar a
invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa deverá indicar de modo expresso
suas consequências jurídicas e administrativas. (Incluído pela Lei nº 13.655, de 2018)
Parágrafo único. A decisão a que se refere o caput deste artigo deverá, quando for o caso, indicar
as condições para que a regularização ocorra de modo proporcional e equânime e sem prejuízo aos
interesses gerais, não se podendo impor aos sujeitos atingidos ônus ou perdas que, em função das
peculiaridades do caso, sejam anormais ou excessivos. (Incluído pela Lei nº 13.655, de 2018)
Art. 22 da LINDB – Na interpretação de normas sobre gestão pública, serão considerados os obstáculos
e as dificuldades reais do gestor e as exigências das políticas públicas a seu cargo, sem prejuízo dos
direitos dos administrados.
§ 1º Em decisão sobre regularidade de conduta ou validade de ato, contrato, ajuste, processo ou
norma administrativa, serão consideradas as circunstâncias práticas que houverem imposto, limitado
ou condicionado a ação do agente. (Incluído pela Lei nº 13.655, de 2018)
§ 2º Na aplicação de sanções, serão consideradas a natureza e a gravidade da infração cometida,
os danos que dela provierem para a administração pública, as circunstâncias agravantes ou atenuantes
e os antecedentes do agente. (Incluído pela Lei nº 13.655, de 2018)
§ 3º As sanções aplicadas ao agente serão levadas em conta na dosimetria das demais sanções de mesma
natureza e relativas ao mesmo fato. (Incluído pela Lei nº 13.655, de 2018)
Art. 23 da LINDB – A decisão administrativa, controladora ou judicial que estabelecer interpretação
ou orientação nova sobre norma de conteúdo indeterminado, impondo novo dever ou novo condiciona-
mento de direito, deverá prever regime de transição quando indispensável para que o novo dever ou
condicionamento de direito seja cumprido de modo proporcional, equânime e eficiente e sem prejuízo
aos interesses gerais.
Parágrafo único. (VETADO).
Art. 24 da LINDB – A revisão, nas esferas administrativa, controladora ou judicial, quanto à validade
de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa cuja produção já se houver completado
66 Ricardo Cunha Chimenti

2. A LINDB na redação da Lei nº 13.655/2018 e a segurança jurídica


no Direito Público

A Lei nº 13.655/2018 inseriu na LINDB inúmeras normas (artigos


20 a 30, com o veto do art. 25) inerentes ao Direito Público. Para os fins
deste artigo interessam mais diretamente os artigos 20 a 24 da LINDB.
Os artigos 20 e 21 da LINDB objetivam que as decisões tenham
fundamentos claros e motivados (evitando-se assim decisões funda-
das apenas em valores jurídicos abstratos), com visão prospectiva e
explícita das consequências do que foi decidido, de forma a preservar
o interesse geral sem que se imponha a cada um dos sujeitos atingidos
pela decisão ônus ou perdas que, em função das peculiaridades do caso,
sejam anormais ou excessivos.
Na esfera judicial o Código de Ética da Magistratura (Resolução 60
do CNJ), ao tratar da prudência, estabelece em seu art. 25 que incumbe
ao magistrado atuar de forma cautelosa, atento às consequências que
pode provocar.
O artigo 22 da LINDB prestigia o Primado da realidade, de forma que
na interpretação de normas sobre gestão pública, serão considerados os
obstáculos e as dificuldades reais do gestor, as circunstâncias práticas
que envolveram o ato em análise quando da sua implementação. A previ-
são envolve uma análise profunda da questão sob análise, para que,
de um lado, não se puna indevidamente quem praticou uma conduta
dentro do princípio da razoabilidade; e de outro lado não se crie prece-
dentes capazes de justificar inúmeras condutas ilícitas sob o argumento,
por vezes simplista, de que situações que na verdade são do cotidiano e
poderiam ter sido previstas impôs a conduta questionada.
Os artigos 23 e 24 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro
igualmente trazem regras interpretativas que visam prestigiar a segurança
jurídica e a razoabilidade.
O artigo 23 determina que a decisão administrativa, controladora
ou judicial que estabelecer interpretação ou orientação nova deverá

levará em conta as orientações gerais da época, sendo vedado que, com base em mudança poste-
rior de orientação geral, se declarem inválidas situações plenamente constituídas. (Incluído pela
Lei nº 13.655, de 2018)
Parágrafo único. Consideram-se orientações gerais as interpretações e especificações contidas em
atos públicos de caráter geral ou em jurisprudência judicial ou administrativa majoritária, e ainda as
dotadas por prática administrativa reiterada e de amplo conhecimento público.
Segurança jurídica: contribuições da LINDB 67

prever regime de transição. É a consagração do princípio da não surpresa,


de forma que a concretização da interpretação evolutiva se dê prospectiva
e não retrospectivamente. Exemplo prático é a modulação temporal dos
efeitos de uma decisão.
Já o artigo 24 estabelece que a revisão, nas esferas administrativa,
controladora ou judicial, quanto à validade de ato, contrato, ajuste,
processo ou norma administrativa cuja produção já se houver completa-
do levará em conta as orientações gerais da época, sendo vedado que,
com base em mudança posterior de orientação geral, se declarem inválidas
situações plenamente constituídas. Aqui igualmente se protege aqueles
que sob a vigência de certa orientação tida por regular, mas posterior-
mente alterada, consumaram um ato ou negócio jurídico que merece
ser preservado. Não se trata, obviamente, da convalidação de atos ou
negócios jurídicos viciados desde a sua origem, circunstância cuja análise
exige a harmonização de metodologias interpretativas mais próximas da
Common Law (especialmente o juízo de ponderação) do que da Civil Law.

3. O sistema do Civil Law e o sistema do Common Law

Após destacar que o common law também tem intensa produção


legislativa e vários códigos, Luiz Guilherme Marinoni5 leciona: “O que
realmente varia do civil law para o common law é o significado que
se atribui aos Códigos e à função que o juiz exercia ao considerá-los.
No common law, os Códigos não têm a pretensão de fechar os espaços para
o juiz pensar; portanto, não se preocupam em ter todas as regras capazes
de solucionar os casos conflituosos. Isso porque, neste sistema, jamais se
acreditou ou se teve a necessidade de acreditar que poderia existir um
Código que eliminasse a possibilidade de o juiz interpretar a lei. Nunca
se pensou em negar ao juiz desta tradição o poder de interpretar a lei.
De modo que, se alguma diferença há, no que diz respeito aos Códigos,
entre o civil law e o common law, tal distinção está no valor ou na ideia
subjacente à ideia de Código”.
Não se pode desconsiderar que o civil law carrega na sua evolução
a desconfiança que os revolucionários franceses tinham a respeito dos
magistrados da época da época da Revolução Francesa, os quais muitas
vezes foram acusados de se afastar da letra da lei para beneficiar grupos

5
MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios. 4. ed. RT, 2016. p. 46.
68 Ricardo Cunha Chimenti

aos quais eram ligados, enquanto o common law se desenvolveu sob as


mãos de juízes que na Inglaterra eram vistos como pessoas que protegiam
o indivíduo contra os abusos do Estado e do feudalismo e, assim, capazes
de pouco a pouco consolidar em seus sucessivos julgados os valores mais
relevantes para a sua sociedade.

3.1 Os precedentes qualificados

A referência sempre presente nas petições, sentenças e acórdãos às


teses firmadas em Recursos Repetitivos exige algumas reflexões. Precedente
é “a decisão judicial tomada à luz de um caso concreto, cujo núcleo
essencial pode servir como diretriz para o julgamento posterior de casos
análogos”.6 Na sua origem o sistema jurídico brasileiro não gerava decisões
dotadas de força vinculante para casos futuros, ou seja, tinha força
meramente persuasiva.
A partir da Emenda Constitucional 3/1993, alguns precedentes no
Brasil (uns formados a partir dos nossos costumes e a maioria constituída
tecnicamente em gabinetes) passaram a ter força obrigatória por previsão
constitucional. O primeiro precedente obrigatório com previsão constitu-
cional na vigência da CF/1988 foi a decisão definitiva de mérito proferida
pelo STF na Ação Declaratória de Constitucionalidade – ADECON (redação
dada ao § 2º do art. 102 da CF pela EC 3/1993).
Com a EC 45/2004, também a decisão definitiva de mérito proferida
pelo STF em Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) ganhou força
constitucional vinculante, poder que, aliás, já lhe era dado pela juris-
prudência, por ser vista como o outro lado da moeda quando analisada
sob a luz da ADECON (já que esta é uma ação de natureza dúplice e a
sua improcedência leva à declaração de inconstitucionalidade da norma
objeto da ação). A mesma EC 45 criou a Súmula Vinculante.
A Lei nº 9.882/1999, por sua vez, ao disciplinar a Arguição de
Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF), prevista hoje no
§ 1º do art. 102 da CF, em seu artigo 10 dá força vinculante ao acórdão dela
decorrente. Referida lei é objeto da ADI nº 2.231, proposta no ano 2000
e que ainda não foi julgada pelo STF. Ainda assim, é importante lembra-
mos que no passado recente, ao analisar a Lei nº 10.628/2002, que havia

DIDIER JR., Fredie; OLIVEIRA, Rafael; BRAGA, Paula. Curso de direito processual civil. Salvador:
6

Jus Podivm, 2008. v. 2. p. 347.


Segurança jurídica: contribuições da LINDB 69

inserido dois parágrafos no art. 84 do CPP, o C. STF reconheceu que


somente norma constitucional, e não lei ordinária, pode atribuir compe-
tência aos Tribunais (ADI nº 2.797, j. de 15/09/2005), e a Lei Ordinária
9.882/1999 atribui competência (aqui considerada como o limite do
exercício da jurisdição na sua mais ampla percepção) vinculante ao STF
no julgamento das ADPF.
A Lei Ordinária nº 13.105/2015, por sua vez, ao instituir o NCPC,
direta ou indiretamente acabou por atribuir força vinculante a diversos
julgados oriundos dos mais diversos tribunais do País. Com isso, lei ordinária
atribuiu a esses Tribunais competências não previstas em normas constitu-
cionais. Não se está aqui diante de uma novidade absoluta, pois anterior-
mente tivemos outras disposições infraconstitucionais estabelecendo
força vinculante a decisões judiciais, a exemplo dos artigos 476/479 do
CPC/1973 (de pouquíssima utilização durante a sua vigência), art. 902, § 1º,
CLT (editado sob a ditadura do Estado Novo e obter dictum reconhecido
como inconstitucional em 1977 na Representação nº 946 do STF), art. 263
do Código Eleitoral (declarado inconstitucional pelo TSE desde a CF/1946,
conforme Ac. TSE nº 12.501/1992, in http://www.tse.jus.br/hotsites/
catalogo-publicacoes/pdf/principaisJulgados/PrincipaisJulgados_tomoII.pdf,
p. 220 e seguintes) e, ainda, os artigos 543-B e 543 – C do CPC/1973,
na redação da Lei nº 11.672/2008.
A respeito dos precedentes vinculantes, desde logo parece relevan-
te destacarmos o Enunciado 11 da Escola Nacional de Formação e
Aperfeiçoamento de Magistrados (ENFAM – art. 105, parágrafo único, I,
da CF/1988), do seguinte teor:
Enunciado 11 da ENFAM: “Os precedentes a que se referem os
incisos V e VI do § 1º do art. 489 do CPC/2015 são apenas os mencionados
no art. 927 e no inciso IV do art. 332”7.

7
Art. 489 [...]:
§ 1º Não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou
acórdão, que [...]
V – se limitar a invocar precedente ou enunciado de súmula, sem identificar seus fundamentos deter-
minantes nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos;
VI – deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte,
sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento.
Art. 332 [...]
IV – enunciado de súmula de tribunal de justiça sobre direito local.
70 Ricardo Cunha Chimenti

A Recomendação 134/2022 do Conselho Nacional de Justiça trata de


forma ampla dos precedentes vinculantes e suas eventuais superações.

3.2 A inobservância do precedente vinculante

Caso admitidos como constitucionais (há questionamentos sobre a


possibilidade de precedentes vinculantes serem criados por lei ordinária,
cf. subitem 3.1 acima), os precedentes vinculantes veiculados por meio de
lei ordinária, necessário observar que a inobservância de um precedente
firmado em Recurso Extraordinário com repercussão geral reconhecida
ou em um Recurso Extraordinário ou Especial Repetitivo autoriza, após o
esgotamento das vias ordinárias (art., 988 § 5º, III do NCPC), a Reclamação
(art. 985, § 1º e § 4º do NCPC).
Já a decisão que ao seguir em enunciado de súmula ou acórdão
proferido em julgamento de casos repetitivos deixe de considerar a
existência de distinção entre a questão discutida no processo e o padrão
decisório que lhe deu fundamento autoriza, após o esgotamento das vias
ordinárias, a Reclamação (art. 988, § 4º, do NCPC) e até mesmo ação
rescisória (art. 966, § 5º, do NCPC, na redação da Lei nº 13.256/2016).
No caso de descumprimento de enunciado de Súmula Vinculante ou
de acórdão proferido pelo C. STF em controle concentrado de constitu-
cionalidade admite-se a Reclamação (art. 988, IV, do CPC/2015), ainda
que não estejam esgotadas as vias ordinárias. Há, ademais, precedente
(ADPF 130) que confere legitimidade ativa para a Reclamação a terceiros
que não intervieram no processo de fiscalização normativa abstrata, inclu-
sive a particulares (Rcl 21.505, Segunda Turma do STF, j. de 17/11/2015).
Sobre o tema também merece destaque o Enunciado nº 138 da
II Jornada de Direito Processual Civil realizada pelo Centro de Estudos
Judiciários do Conselho da Justiça Federal, do seguinte teor:
Enunciado 138: “É cabível reclamação contra acórdão que aplicou
indevidamente tese jurídica firmada em acórdão proferido em julgamento
de recursos extraordinário ou especial repetitivos, após o esgotamento
das instâncias ordinárias, por analogia ao quanto previsto no art. 988,
§ 4º, do CPC”.
O enunciado confirma o entendimento de que há um microssistema
dos precedentes vinculantes, já que regras criadas para os IRDR ou para
os IAC se aplicam para os acórdãos proferidos em Recursos Especiais
Repetitivos, e vice-versa.
Segurança jurídica: contribuições da LINDB 71

3.3 O distinguishing e o overruling

A possibilidade de o magistrado, fundamentadamente, deixar de


observar um precedente vinculante (stare decisis), em decorrência da
distinção entre o precedente e o caso em julgamento (distinguishing),
ou em razão da superação daquele por julgado mais recente (express
overruling ou implied overruling) também está explicitada no art. 489,
§ 1º, VI, do NCPC. Observo que na doutrina há quem diferencie o stare
decisis horizontal (que vincula apenas os membros do Tribunal que construiu
o precedente) do stare decisis vertical (binding effect ou precedent),
sendo que neste último o que se verifica é a obrigatoriedade de todos os
Tribunais seguirem a ratio decidendi dos precedentes das Cortes Superiores.
Parece oportuno, também, relembramos que a parte vinculante
de um precedente é aquela extraída da sua ratio decidendi, e não as
manifestações de natureza obter dictum frequentemente utilizadas na
construção de um raciocínio apenas como apoio argumentativo. Daí a
pertinência do Enunciado 8 da ENFAM, do seguinte teor:
“Os enunciados das súmulas devem reproduzir os fundamentos
determinantes do precedente”.

Conclusão

As alterações efetivadas na LINDB em 2018 estimulam uma análise


mais realista e razoável da conduta do gestor de boa fé e dos efeitos
dos seus atos, sem criar obstáculos para que, sob a égide das leis e
dos precedentes qualificados, o maltrato da coisa pública seja evitado,
reparado ou sancionado. A solução de cada caso concreto cada vez mais
dependerá de um juízo de ponderação motivado e consequente, tudo a
permitir que a boa interpretação do direito contribua para a evolução
do Estado brasileiro.
37

Lei nº 13.655/18: responsabilização do


agente público e consequencialismo
nos atos e decisões administrativas
e judiciais

Thiago Massao Cortizo Teraoka1


Juiz de Direito no estado de São Paulo

Sumário: Introdução. 1. O problema. 2. O contexto legislativo


de combate à insegurança jurídica. 3. A solução dada pela Lei nº 13.655/2018.
4. A solução dada pela nova Lei de Improbidade Administrativa
(Lei nº 14.230/2021). 5. O recado do legislador também ao administrador
público. Conclusões. Bibliografia.

Introdução

Antes conhecida como Lei de Introdução ao Código Civil (LICC),


o Decreto-Lei nº 4.657, de 4 de setembro de 1942, há muito vem sendo
reconhecido como principal regra normativa a respeito da interpretação
e aplicação do Direito Brasileiro2. Nesse diploma, há regras que pretendem
solucionar conflitos de normas no tempo e no espaço, além de estabelecer
critérios de aplicação e integração do direito.
Com a edição da Lei nº 12.376, de 30/10/2021, com a alteração
do seu nome, consagrou-se em Lei o que a doutrina brasileira
já reconhecia: o Decreto-Lei nº 4.657/1942 não era só aplicável ao
Código Civil, mas se tratava da verdadeira Lei de Introdução às Normas
do Direito Brasileiro (LINDB).
É importante reconhecer que, hoje, a LINDB tem também
uma estabilidade inquestionável. Nenhuma de suas disposições, até hoje,

1
Mestre e doutor em Direito do Estado (Direito Constitucional) pela Faculdade de Direito da Universidade
de São Paulo (USP). Especialista em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários
(IBET). Professor da Escola Paulista da Magistratura (EPM).
2
Não se trata de advogar que tal Decreto-Lei se sobressaia às disposições da Constituição Federal,
mas de reconhecer que suas disposições acabam por irradiar efeitos na interpretação de todo Direito.
74 Thiago Massao Cortizo Teraoka

foi formalmente declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal,


mesmo tendo sobrevivido às Constituições de 1937, 1946, 1967 e 1988.
Ao contrário, parte de seus dispositivos encontra-se constitucionalizado,
como, por exemplo, o que consagra a proteção ao direito adquirido,
ato jurídico perfeito e coisa julgada.
Após tanto tempo, o legislador entendeu por bem atualizá-la.
Na verdade, não houve uma verdadeira alteração de dispositivos clássicos,
mas acréscimos de outras regras ainda não existentes, que também
modificam a interpretação e a aplicação das leis. Assim, a Lei nº 13.655,
de 25/04/2018, introduziu alterações relevantes à LINDB.
As disposições hoje consagradas na Lei nº 13.655/2018 foram original-
mente apresentadas pelo Senador Antonio Anastasia no Projeto de Lei do
Senado (PLS) nº 349/2015, cuja redação foi elaborada com a participação
dos professores Carlos Ari Sundfeld e Floriano de Azevedo Marques.
Em suas exposições de motivos, o PLS nº 349/2015, indis-
farçadamente, esclareceu que a segurança jurídica era a meta principal
a ser alcançada. No mesmo documento, deixou-se claro que se combateria
“a tendência à superficialidade na formação do juízo sobre complexas
questões jurídico-públicas”, “a instabilidade dos atos jurídicos públicos,
pelo risco potencial de invalidação posterior, nas várias instâncias
de controle” e “o modo autoritário como, na quase totalidade dos casos
são concebidas e editadas normas pela Administração Pública”3.

3
“A ideia é incluir na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Decreto-lei 4.657/1942) disposições
para elevar os níveis de segurança jurídica e de eficiência na criação e aplicação do direito público.
Conforme esclareceram os referidos professores, o projeto em apreço propõe medidas para neutralizar
importantes fatores de distorção da atividade jurídico-decisória pública. São eles:
- O alto grau de indeterminação de grande parte das normas públicas;
- A relativa incerteza, inerente ao Direito, quanto ao verdadeiro conteúdo de cada norma;
- A tendência à superficialidade na formação do juízo sobre complexas questões jurídico-públicas;
- A dificuldade de o Poder Público obter cumprimento voluntário e rápido de obrigação por terceiros,
contribuindo para a inefetividade das políticas públicas;
- A instabilidade dos atos jurídicos públicos, pelo risco potencial de invalidação posterior, nas várias
instâncias de controle.
- Os efeitos negativos indiretos da exigência de que as decisões e controles venham de processos
(que demoram, custam e podem postergar cumprimento de obrigações);
- O modo autoritário como, na quase totalidade dos casos, são concebidas e editadas normas pela
Administração Pública.” (SUNDFELD, Carlos Ari.; MARQUES NETO, Floriano de Azevedo. Contratações
Públicas e Seu Controle. 2013: Malheiros, p. 278). Exposição de motivos do Projeto de Lei do Senado
(PLS) 349/2015. Disponível em https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=2919883&t-
s=1630433024434&disposition=inline. Acesso em: 12 out. 2022.
Lei nº 13.655/18: responsabilização do agente público e consequencialismo
nos atos e decisões administrativas e judiciais 75

A Lei nº 13.655/2018, como introdutora de normas na LINDB,


tem consequências para toda hermenêutica do direito brasileiro. Lembre-se
que o Poder Judiciário não é o único intérprete da legislação, da mesma
forma que não é o único intérprete da Constituição4. Os artigos 20 e 21,
introduzidos pela Lei nº 13.655/2018, referem-se expressamente às “esferas
administrativa, controladora e judicial”. A interpretação jurídica é feita
por todos os potenciais destinatários da norma.
No entanto, como se pôde perceber da própria “exposição de motivos”
do PLS nº 349/2015, há uma preocupação especial pelo controle feito
a posteriori pelo Poder Judiciário, pois certamente tal controle provoca
“instabilidade”, “postergar cumprimento de obrigações”, dificultam
o “cumprimento voluntário e rápido de obrigação por terceiros”, muitas
vezes com “tendência à superficialidade na formação do juízo sobre
complexas questões jurídico-públicas”.
Assim, em delimitação do nosso tema, apesar de reconhecer
a maior amplitude da norma, neste artigo, o objetivo é o estudo da
Lei nº 13.655/2018 e sua relação com o juízo de responsabilização judicial
dos administradores públicos.

1. O problema

Nos últimos anos, têm se intensificado as críticas contra o ativismo


judicial e a utilização política do Poder Judiciário. Não é objetivo deste
estudo conceituar o ativismo judicial5, mas apenas reconhecer que
o fenômeno existe e contribuiu para o problema que a Lei nº 13.655/2018
pretendeu enfrentar.

4
Nesse ponto, deve-se lembrar das lições de Peter Häberle e sua Sociedade aberta aos intérpretes
da Constituição”. Mais recentemente, Peter Härbele escreveu: “Todo aquele que vive no contexto
regulado por uma norma é, indireta ou até mesmo diretamente, um intérprete dessa norma. O desti-
natário da norma participa do processo hermenêutico de forma muito mais intensa do que geralmente
se supõe. Como não são apenas os intérpretes jurídicos da Constituição que vivem a Constituição,
não são eles também os detentores da condição de intérpretes principais da ordem jurídica fundamental.”
(HÄRBELE, Peter. A Sociedade Aberta dos Intérpretes da Constituição – Considerações do Ponto de Vista
Nacional-Estatal Constitucional e Regional Europeu, Bem Como sobre o Desenvolvimento do Direito
Internacional.”  . Tradução Gilmar Ferreira Mendes. Direito Público. Outubro/Novembro/Dezembro
de 2007, p. 58. Disponível em: https://www.portaldeperiodicos.idp.edu.br/direitopublico/article/
view/1292/758. Acesso em: 21 out. 2022).
5
A respeito desse tema, escrevi “Mutação constitucional e ativismo judicial”. Cadernos Jurídicos,
São Paulo , ano 16, nº 40, p. 115-130, abr./jun. 2015).
76 Thiago Massao Cortizo Teraoka

De conceito mais amplo do que o próprio ativismo judicial, a utili-


zação política do Poder Judiciário tem sido criticada há muito tempo.
Manoel Gonçalves Ferreira Filho, escrevendo há cerca de 20 anos atrás,
já reconhecia que o Poder Judiciário é “flagrantemente hostilizado e não
raro vilipendiado”6 pela população em geral e pelos meios de comunicação.
O motivo, para o eminente professor, seria que a judicialização da política
leva à politização da política7.
O que era perceptível há pelo menos 20 anos para olhares mais
aguçados, hoje o problema é evidente para a população em geral,
em especial em razão do acirramento do enfrentamento entre Poderes na
crise do covid-19. No mesmo sentido, há algum tempo, há uma percepção
geral em camadas mais elitizadas da população de que partidos políticos
também se utilizam do Poder Judiciário, com fito a impor sua agenda,
ainda que contrária a maioria formada em âmbito parlamentar8.
No contexto, é inquestionável o protagonismo do Poder Judiciário.
Os julgados são considerados inequívoca fonte de direito9. A legislação
muito lacunosa e principiológica parece ter cada vez menos força.
Os princípios e sua abstração não são somente provenientes do texto
constitucional. Há tendência de que leis recentes tenham explícito um
rol de princípios que, algumas vezes, parecem ser e são colidentes,
o que somente aumenta o grau de sua indeterminação10.
Por outro lado, ainda há muito no que se avançar para que no Brasil
exista uma jurisprudência firme e coerente, como pretende o Código
de Processo Civil11. A jurisprudência “banana boat” tão firme como o conhe-

6
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Aspectos do direito constitucional contemporâneo. São Paulo:
Saraiva, 2003. p. 189.
7
Cf. FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Aspectos do direito constitucional contemporâneo. p. 189.
Renato Soares de Melo Filho aponta duas razões para o fenômeno (i) teórica insubmissão política,
que leva a prevenção do majoritarismo dos parlamentos; e (ii) delegação implícita da responsabilidade
de tomar decisões em matérias extremamente controversas. Cf. Ativismo judicial em investida ao
estado democrático. Curitiba: Juruá, 2019. p. 38-39.
8
Os exemplos de atividade “acusadamente” política do Poder Judiciário são muitos, passando desde
a criminalização da homofobia, inquérito das “fake news”, combate ao nepotismo, verticalização das
eleições, financiamento público de campanhas etc. Não adentramos em pormenores nem fazemos
juízos de valor. Apenas, reconhecemos o fenômeno como ele existe e é compreendido pela população.
9
A Lei nº 13.655/2018 consagrou a expressão jurisprudência na LINDB, em seu artigo 24, parágrafo único.
10
Vide, por exemplo, o Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965/2014), em seus artigos 2º e 3º de conteúdo
muitas vezes, em tese, colidentes.
11
Artigo 926 do Código de Processo Civil: “Os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la
estável, íntegra e coerente”.
Lei nº 13.655/18: responsabilização do agente público e consequencialismo
nos atos e decisões administrativas e judiciais 77

cido brinquedo, já desmascarada pelo Ministro Humberto Gomes de


Barros12, continua existindo.
Nesse protagonismo e, também, da falta de autocontenção do Poder
Judiciário, natural foi a consequência na atitude dos demais Poderes,
em especial do Poder Executivo. Tal qual os juízes e membros do Ministério
Público, os prefeitos e secretários também são sempre obrigados a tomar
atitudes que desagradam uns e outros, mas sem possuírem as garantias
típicas do Poder Judiciário.
Os administradores, em especial nos municípios menores, pareciam
cada vez mais tímidos, temerosos de serem alvos de recomendações
dos órgãos de controle, em especial do Ministério Público, e de punições
impostas pelo Poder Judiciário.
Administradores probos e íntegros poderiam sofrer do “apagão das
canetas” ou da “paralisia decisória”, por medo de serem responsabilizados
em um contexto que um princípio como “moralidade” ou um
outro conceito jurídico indeterminado poderia ser invocado para
responsabilizar um agente público13. Isso porque, conforme reconhece
Luiz Manoel Gomes Junior: “Muitos gestores públicos têm deixado
de decidir da melhor forma para a administração e para os administrados
porque sabem que, no final do dia, poderão ser processados cível, penal
e ou administrativamente”14.

12
“Nas praias de Turismo, pelo mundo afora, existe um brinquedo em que uma enorme boia, cheia
de pessoas, é arrastada por uma lancha. A função do piloto dessa lancha é fazer derrubar as pessoas
montadas no dorso da boia. Para tanto, a lancha desloca-se em linha reta e, de repente, descreve
curvas de quase noventa graus. O jogo só termina, quando todos os passageiros da boia estão dentro
do mar. Pois bem, o STJ parece ter assumido o papel do piloto dessa lancha. Nosso papel tem sido
derrubar os jurisdicionados.”. Voto vista do Ministro Humberto Gomes de Barros – AgReg no RESP
nº 382.736. Disponível em: https://www.conjur.com.br/dl/voto-banana-boat-humberto-gomes-barros.pdf.
Acesso em: 21 out. 2022.
13
“A alta probabilidade de ser responsabilizado pelo exercício de função pública, por causa de um
sistema de controle desfuncionalizado, leva ao medo de responsabilização do agente público. Ao mesmo
tempo que o medo é consequência dos excessos do controle, também é causa, à medida que produz
respostas disfuncionais visando a autoproteção dos agentes públicos, a exemplo do imobilismo decisório
decorrente do medo em decidir, o que pode levar a uma postura mais firme dos órgãos de controle no
exercício de sua atividade. O medo reflete, portanto, a incapacidade de gerir estes riscos, pois o grau
de probabilidade de ameaça é tão alto que naturalmente dá lugar ao medo”. (GULLO, Felipe Ramirez.
Apagão das canetas. In: GULLO, Felipe Ramirez. Análise econômica da responsabilidade da improbidade
administrativa. 2022. Dissertação de mestrado. FGV, 2022, p. 107.
14
GOMES JUNIOR, Luiz Manoel; RODRIGUES, João Paulo Souza; BORGES, Sabrina Nunes. Retroatividade
da nova lei de improbidade administrativa: propostas para o tratamento adequado da lei 14.230/2021
sobre processos em curso. Revista de Processo, São Paulo, v. 47, n. 329, p. 339–368, 2022.
78 Thiago Massao Cortizo Teraoka

A insegurança jurídica e, mais especificamente, o receio da injusta


responsabilização do agente público, assim, é um grande problema
a ser enfrentado.

2. O contexto legislativo de combate a insegurança jurídica

Nos últimos anos, o legislador tem tentado se fortalecer frente


aos demais órgãos, em especial o Poder Judiciário. Apela-se para a neces-
sidade de segurança jurídica dos administradores públicos e, também,
da iniciativa privada.
A Lei da Liberdade Econômica (Lei nº 13.874/2019), por exemplo,
tenta impor o respeito aos contratos, restringindo o poder de revisões
contratuais pelo Poder Judiciário. A lei tentou reestabelecer um espaço
de autonomia das partes, protegendo tal espaço de intervenções
de órgãos públicos15.
A Reforma Trabalhista (Lei nº 13.467/2017) também tem essa mesma
função, dando especial relevo à força dos contratos16 e à litigância
responsável na Justiça do Trabalho17.
A Lei do Abuso de Autoridade (LIA – Lei nº 13.869/2019) tentou
restringir agentes do Poder Judiciário e do Ministério Público em manifes-
tações infundadas e em óbvia proteção dos administradores públicos que,
bem ou mal, tratam com o erário público. Não sem razão que, à época
da sua aprovação, foi chamada de “mordaça”18 ou tentativa de criar
o “crime de hermenêutica”19. O que começou como “10 medidas contra

15
São exemplos os artigos 3º, V, da Lei da Liberdade Econômica e as alterações que impôs ao Código
Civil, com acréscimos ao artigo 113, alterações no artigo 421 e acréscimo do artigo 421-A.
16
Por exemplo, a terceirização foi amplamente difundida e considerada constitucional pelo Supremo
Tribunal Federal, no tema STF nº 725: “É lícita a terceirização ou qualquer outra forma de divisão
do trabalho entre pessoas jurídicas distintas, independentemente do objeto social das empresas
envolvidas, mantida a responsabilidade subsidiária da empresa contratante.”
17
A reforma trabalhista impôs condenação em honorários de sucumbência, conforme dispositivo inserido
na Consolidação das Leis do Trabalho: “Art. 791-A. Ao advogado, ainda que atue em causa própria,
serão devidos honorários de sucumbência, fixados entre o mínimo de 5% (cinco por cento) e o máximo
de 15% (quinze por cento) sobre o valor que resultar da liquidação da sentença, do proveito econômico
obtido ou, não sendo possível mensurá-lo, sobre o valor atualizado da causa.”
18
Abuso de autoridade: a mordaça passa pelo Senado. Gazeta do Povo, 26 jun. 2019. Disponível em:
https://www.gazetadopovo.com.br/opiniao/editoriais/abuso-de-autoridade-senado-aprova-mordaca.
Acesso em: 5 set. 2022.
19
Por exemplo: PELUSO, Vinícius de Toledo Piza. PL do Senado sobre abuso de autoridade cria crime
de hermenêutica. Disponível em: https://www.sedep.com.br/artigos/pl-do-senado-sobre-abuso-de-
autoridade-cria-crime-de-hermeneutica/. Acesso em: 5 set. 2022.
Lei nº 13.655/18: responsabilização do agente público e consequencialismo
nos atos e decisões administrativas e judiciais 79

a corrupção”20, que aumentariam o poder do Ministério Público e setores


de controle, terminou nitidamente como forma de limitação ao seu poder.
O Código de Processo Civil tem o inequívoco interesse da manutenção
da segurança jurídica, com dever imposto aos Tribunais de manter
a sua jurisprudência coerente e estável21. Em garantia da segurança
jurídica, se permitiu até mesmo a modulação dos efeitos de decisão
no âmbito do direito infraconstitucional22, o que já existia para o controle
de constitucionalidade23.
No mesmo contexto, a “Nota Lei de Licitações” passou a prever
a “segurança jurídica” em seu rol de princípios, reportando-se também
expressamente a LINDB24. A Lei nº 14.133, de 1º/04/2021 se originou
no Senado Federal, com o PLS nº 559/2013, que, após tramitação na Câmara
dos Deputados; também foi relado pelo Senador Antonio Anastasia,
que tinha atuado nas alterações da LINDB. Mais uma vez, houve a indisfarçada
busca da segurança jurídica, em especial dos administradores públicos25.
Portanto, o contexto dessas mudanças legislativas é esse: privilegiar
a segurança jurídica em geral e, em especial, dos agentes públicos no
dia a dia da administração.

20
Nome dado pelos proponentes do anteprojeto que acabou culminando na Lei de Abuso de autoridade.
Sobre o lamento do antigo chefe da Procuradoria Geral de Justiça, Rodrigo Janot: RICHTER, Andre.
As 10 medidas contra a corrupção não existem mais’, diz Janot. Disponível em: https://agenciabrasil.
ebc.com.br/politica/noticia/2016-11/10-medidas-contra-corrupcao-nao-existem-mais-diz-janot.
Acesso em: 5 set. 2022.
21
“Art. 926. Os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente.
22
“Art. 927 […] § 3º Na hipótese de alteração de jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal
e dos tribunais superiores ou daquela oriunda de julgamento de casos repetitivos, pode haver modulação
dos efeitos da alteração no interesse social e no da segurança jurídica.
23
Lei nº 9.868/1999, artigo 27. Nesse dispositivo, parece-me que a ponderação de consequências práticas
advindas de interpretação judicial é inquestionável. Talvez tenha sido a primeira consagração explícita
do “consequencialismo” como norte de interpretação judicial no direito positivo brasileiro.
24
“Art. 5º Na aplicação desta Lei, serão observados os princípios da legalidade, da impessoalidade,
da moralidade, da publicidade, da eficiência, do interesse público, da probidade administrativa,
da igualdade, do planejamento, da transparência, da eficácia, da segregação de funções, da motivação,
da vinculação ao edital, do julgamento objetivo, da segurança jurídica, da razoabilidade, da competiti-
vidade, da proporcionalidade, da celeridade, da economicidade e do desenvolvimento nacional susten-
tável, assim como as disposições do Decreto-Lei nº 4.657, de 4 de setembro de 1942 (Lei de Introdução
às Normas do Direito Brasileiro).
25
“Sobre o tema, esclarecemos que a multiplicidade de órgãos de controle tem gerado significativa
insegurança jurídica para a celebração de acordos de leniência. Tem-se questionado, por exemplo,
a validade de acordos firmados sem a participação do Ministério Público, bem como a possibilidade
de o Tribunal de Contas rediscutir o valor do dano ao erário. Na prática, essa insegurança tem gerado
um desestímulo à celebração desses acordos.”
80 Thiago Massao Cortizo Teraoka

3. A solução dada pela Lei nº 13.655/2018

O controle judicial é um dado relevante no contexto social,


bem como na elaboração de políticas públicas. Porém, o contexto
em que se insere a figura do juiz é marcado por soluções de caso concreto,
de vocação nitidamente individual. Não é à toa que se diz que o juiz
tem a função de dizer o direito ao caso concreto. Tradicionalmente,
o juiz não está treinado para resolver questões com a visão do todo,
o que pode gerar desequilíbrios sistêmicos.
É certo que essa visão está mudando e as alterações na LINDB impuseram
dogmaticamente algo com que os juízes e as escolas da magistratura
já estão preocupados há algum tempo: a antevisão das consequências
práticas das decisões judiciais também como critério de interpretação
jurídica. A ideia consagrada no fiat justitia, pereat mundus hoje é relegada
somente ao mundo dos brocardos jurídicos.
As alterações promovidas pela Lei 13.655/2018, sobretudo, quando
acrescentou os artigos 20 e 21 não impediram, obviamente, o controle
judicial. No entanto, teve a nítida intenção de obrigar que os juízes
adotassem também uma lógica consequencialista.
Houve um incremento do ônus argumentativo dos juízes que
pretendem realizar o controle do Poder Executivo. Afinal, presume-se
que o Poder Executivo, ao implantar políticas públicas tenha também
adotado procedimentos e se submetido a níveis de escrutínio público26,
desde a obrigatoriedade de participação de eleições, como a realização
de laudos técnicos e audiências públicas.
A utilização de argumentação consequencialista, típica da análise
econômica do direito vem ganhando espaço evidente na jurisprudência
do Superior Tribunal de Justiça, em especial no âmbito do processo civil

26
Nas palavras de Rodrigo Fernandes Lima Dalledone e Egon Bockmann Moreira: “Em linhas muito amplas,
o que se buscou foi justamente incutir uma lógica consequencialista no contexto das escolhas públicas
(e do respectivo controle), aumentando os ônus argumentativos dos decisores que operam com termos
jurídicos vagos (princípios e conceitos indeterminados), ao fito de que as decisões administrativas
se tornem realmente efetivas, uma vez que foram tomadas por atores legitimados, seguindo minuden-
tes trâmites procedimentais, ao fim dos quais se submetem a variados níveis de escrutínio público.”
(DALLEDONE; BOCKMANN, 2020, p. 333).
Lei nº 13.655/18: responsabilização do agente público e consequencialismo
nos atos e decisões administrativas e judiciais 81

(“necessidade de requerimento administrativo”27, honorários28 e “meios


coercitivos”29), contratos30 e do direito à saúde31. O custo do processo
e dos direitos vem sendo levado em consideração, cada vez mais.

27
“[…] 6. Substanciado pelo apanhado doutrinário e jurisprudencial, tem-se que a falta de postulação
administrativa dos pedidos de compensação ou de repetição do indébito tributário resulta, como no
caso dos autos, na ausência de interesse processual dos que litigam diretamente no Poder Judiciário.
[…] 7. Dois aspectos merecem ser observados quanto a matérias com grande potencial de judicialização,
como a tributária e a previdenciária. O primeiro, sob a ótica da análise econômica do direito, quando
o Estado brasileiro realiza grandes despesas para financiar o funcionamento do Poder Executivo e do
Poder Judiciário para que o primeiro deixe de exercer sua competência legal de examinar os pedidos
administrativos em matéria tributária; e o segundo, em substituição ao primeiro, exerce a jurisdição
em questões que os cidadãos poderiam ver resolvidas de forma mais célere e menos dispendiosa no
âmbito administrativo. Criam-se, assim, um ciclo vicioso e condenações judiciais a título de honorários
advocatícios cujos recursos financeiros poderiam ser destinados a políticas públicas de interesse social”.
(STJ, REsp n. 1.734.733/PE, relator Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, julgado em 7/6/2018,
DJe de 28/11/2018.) (BRASIL, 2018b).
28
“[…] 15. Cabe ao autor – quer se trate do Estado, das empresas, ou dos cidadãos – ponderar bem
a probabilidade de ganhos e prejuízos antes de ajuizar uma demanda, sabendo que terá que arcar com
os honorários de acordo com o proveito econômico ou valor da causa, caso vencido. […] 18. Tal situação
não passou despercebida pelos estudiosos da Análise Econômica do Direito, os quais afirmam com
segurança que os honorários sucumbenciais desempenham também um papel sancionador e entram
no cálculo realizado pelas partes para chegar à decisão – sob o ponto de vista econômico – em torno
da racionalidade de iniciar um litígio. […] 20. O art. 20 da “Lei de Introdução às Normas do Direito
Brasileiro” (Decreto-Lei n. 4.657/1942), incluído pela Lei n. 13.655/2018, prescreve que, “nas esferas
administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem
que sejam consideradas as consequências práticas da decisão”. Como visto, a consequência prática do
descarte do texto legal do art. 85, §§ 2º, 3º, 4º, 5º, 6º e 8º, do CPC, sob a justificativa de dar guarida
a valores abstratos como a razoabilidade e a proporcionalidade, será um poderoso estímulo comportamen-
tal e econômico à propositura de demandas frívolas e de caráter predatório.” (STJ, REsp n. 1.644.077/PR,
relator Ministro Herman Benjamin, relator para acórdão Ministro Og Fernandes, Corte Especial, julgado
em 16/3/2022, DJe de 31/5/2022.)
29
“[…] 11. Por fim, sob um prisma da análise econômica do Direito, e considerando as consequências práticas
da decisão – nos termos do art. 20 do Decreto-Lei nº 4.657/1942 (acrescentado pela Lei nº 13.655/2018,
que deu nova configuração à Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro – LINDB) -, não se pode
deixar de registrar a relevância para a economia do país e para a diminuição do “Custo Brasil” de
que a atualização dos bancos de dados dos birôs de crédito seja feita por meio dos procedimentos
menos burocráticos e dispendiosos, tais como os utilizados no SERASAJUD, a fim de manter a qualidade
e precisão das informações prestadas.[…]”. (STJ, REsp n. 1.814.310/RS, relator Ministro Og Fernandes,
Primeira Seção, julgado em 24/2/2021, DJe de 11/3/2021.) (BRASIL, 2021b).
30
“[…]. 2. Todo contrato de financiamento imobiliário, ainda que pactuado nos moldes do Sistema Financeiro
da Habitação, é negócio jurídico de cunho eminentemente patrimonial e, por isso, solo fértil para
a aplicação da análise econômica do direito. […] 4. As regras expressas no art. 50 e seus parágrafos
têm a clara intenção de garantir o cumprimento dos contratos de financiamento de imóveis tal como
pactuados, gerando segurança para os contratantes. (STJ, REsp n. 1.163.283/RS, relator Ministro Luis
Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 7/4/2015, DJe de 4/5/2015.)”
31
“[…] 5. “Conforme adverte a abalizada doutrina, o fenômeno denominado ‘judicialização da saúde’
exige redobrada cautela e autocontenção por parte de toda a magistratura, para não ser levada
a proferir decisões limitando-se ao temerário exame insulado dos casos concretos ‘que, somados,
82 Thiago Massao Cortizo Teraoka

Ao exigir que juízes analisem expressamente consequências práticas


de suas decisões, aumentou o ônus argumentativo de uma decisão que
intervenha em uma política pública ou anule um determinado ato adminis-
trativo. Pela legislação, não basta ao juiz o mero recurso a princípios
ou conceitos jurídicos indeterminados. Não se aceita a decisão judicial
fundamentada simplesmente na utilização de “chavões” ou nas palavras
de Lênio Streck, da “kacthanga”32.
Em resumo, a análise consequencialista, explicitada pela atual LINDB,
é um meio e não fim. A finalidade é a segurança jurídica, a previsibilidade.
Ok. Mas o que é o consequencialismo?
Em linhas gerais, o consequencialismo, enquanto teoria da decisão,
é “a utilização de consequências do caso concreto com um grau de norma-
tividade apto a determinar qual seria a interpretação adequada para
o caso analisado33.
Nesse ponto, reporto-me às lições de Max Weber (2013) a respeito
de ética de convicção e ética de responsabilidade. A primeira diz respeito
ao tudo ou nada, a valores absolutos, a moral individual. A segunda

correspondem à definição de políticas públicas, feita sem qualquer planejamento (que o Judiciário,
pela justiça do caso concreto, não tem condições de fazer) e sem atentar para as deficiências orça-
mentárias que somente se ampliam em decorrência de sua atuação, desprovida que é da visão de
conjunto que seria necessária para a definição de qualquer política pública que se pretenda venha em
benefício de todos e não de uma minoria. […] (DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Judicialização de polí-
ticas públicas pode opor interesses individuais e coletivos)” (AgInt no AREsp 1619479/SP, Rel. Ministro
LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 29/03/2021, DJe 05/04/2021). Ademais, com a
modificação da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, os arts. 20 a 30 exigem dos operadores
do Direito um viés consequencialista, tanto na tomada de decisões pelas autoridades administrativas –
que passam também a ter um ônus maior de transparência, por meio de consultas públicas -, como
para o Judiciário – que tem inequívoca obrigação legal de levar em conta as consequências de suas
decisões no mundo jurídico, no mundo fático, antes de proferi-las. […] Com efeito, o magistrado deve
levar em consideração que o próprio Judiciário pode afetar claramente os custos das atividades, caso
não aprecie detidamente todas as razões e os fatos das causas trazidas ao Estado-juiz. Muito embora
seja certo que há uma vinculação de todas as relações contratuais à função social, “não se pode
confundir a função social do contrato com a justiça social a ser implementada pelo Estado através de
políticas públicas” (TIMM, 2008, p. 113-125). […] (STJ, AgInt no REsp n. 1.879.645/SP, relator Ministro
Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 27/4/2021, DJe de 4/5/2021).
32
Trata-se de estória que ilustra a dificuldade de se disputar um jogo nos quais as regras são mutáveis,
conforme a partida. Cf. STRECK, Lenio. A Katchanga e o bullying interpretativo no Brasil. Conjur,
28 jun. 2012. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2012-jun-28/senso-incomum-katchanga-
bullying-interpretativo-brasil. Acesso em: 1 set. 2022
33
GOBARDO, Emerson; SOUZA, Pablo Ademir de. O consequencialismo e a LINDB: a cientificidade das previ-
sões quanto às consequências práticas das decisões. Revista de Direito Administrativo e Constitucional,
jul./set. 2020. p. 101.
Lei nº 13.655/18: responsabilização do agente público e consequencialismo
nos atos e decisões administrativas e judiciais 83

refere-se mais à ética da política, da negociação, do possível em deter-


minadas circunstâncias34.
A utilização da interpretação comum, em seus métodos clássicos,
em especial o gramatical, das regras jurídicas conduz ao resultado tudo
ou nada. A depender do que se considera por princípio jurídico, também
a interpretação dos princípios tem relevante caráter nuclear, de valores
que podem ser hierarquizados ou absolutos. Há uma vinculação, assim,
com a axiologia.
O consequencialismo tem outro viés. Nesse sentido, o que importa
são as consequências da interpretação, mais do que o método da inter-
pretação em si. Aqui importa mais a eficiência, a política e a teleologia35.
Há, no entanto, problemas fundamentais no consequencialismo36.
Em primeiro lugar, uma única decisão pode ter consequências
imediatas previsíveis, mas as mediatas são, em teoria, quase que
infinitas e, portanto, imprevisíveis. Os filmes de Hollywood bem
explicam isso, em roteiros de ficção científica como Efeito Borboleta, dirigido
por Bress e Gruber (2004) ou mesmo De volta para o futuro, dirigido por
Zemeckis (1985). Uma só decisão do personagem principal pode acarretar
a mudança de toda história. Assim, não se pode afirmar com segurança
todas as consequências de uma decisão, o que, de certa forma, diminui
a cientificidade do critério adotado.
Em segundo lugar, o consequencialismo nem sempre se amolda
com facilidade à técnica jurídica, especialmente, na análise dos direitos
fundamentais. Nessa, costuma-se dizer que existem questões inegociáveis,
como a dignidade da pessoa humana. Não seria possível, por exemplo,

34
“Impõe-se que nos demos claramente conta do fato seguinte: toda atividade orientada segundo a ética
por ser subordinada a duas máximas inteiramente diversas e irredutivelmente opostas. Pode orientar-se
segundo a ética da responsabilidade e segundo a ética da convicção. […] Quando as consequencias
de um ato praticado por pura convicção se revelam desagradáveis, o partidário de tal ética não atribuirá
responsabilidade ao agente, mas ao mundo, à tolice dos homens ou à vontade de Deus, que assim criou
os homens. O partidário da ética da responsabilidade, ao contrário, contará com as fraquezas comuns do
homem […] e entenderá que não pode lançar a ombros alheios as consequências previsíveis de sua própria
ação.” (WEBER, Max. Ciência e política: duas vocações. Tradução de Leonidas da Mota. p. 113-114).
35
Cf. GOBARDO, Emerson; SOUZA, Pablo Ademir de. O consequencialismo e a LINDB: a cientificidade das
previsões quanto às consequências práticas das decisões, p .101-102
36
As dificuldades do consequencialismo aqui reduzidas são adaptadas do texto de Joel Pinheiro da
Fonseca, denominado “Sobre o consequencialismo e outras ilusões”, na Folha de S.Paulo, publicado
em 14 jul. 2020. Disponível em: https://www.institutomillenium.org.br/sobre-o-consequencialismo-
e-outras-ilusoes/. Acesso em: 13 out. 2022.
84 Thiago Massao Cortizo Teraoka

apenar com a morte um indivíduo apenas em nome da prevenção geral


como efeito da legislação penal, porque isso teria, em tese, melhores
consequências para a sociedade. Nos direitos fundamentais, não se admite
com facilidade o sacrifício do interesse de um pelo interesse de muitos.
Afinal, os direitos fundamentais se desenvolvem exatamente na lógica
inversa: a maioria respeitando o direito da minoria.
Dentro dessa visão, impõe-se reconhecer que uma análise meramente
consequencialista nem sempre conduz a segurança, sobretudo a jurídica.
Por fim, a segurança ainda parece se encontrar mais nas palavras claras
da lei (ou de um contrato) que em um esforço de futurologia.
Em um interessante artigo, Vicente de Abreu Amadei critica a visão
de que a ótica consequencialista seria mais segura. Em sua opinião,
a mudança de ótica de um “panprincipialismo” para o “consequencialismo”
simplesmente alteraria o foco gerador da insegurança:

O esforço de podar o abstracionismo principiológico


parece repousar, em primeira e apressada
leitura, numa práxis teleologista amarrada
ao consequencialistmo (v.g. art. 20 da LINDB), e,
por que não, também ao proporcionalistmo
(v.g. art. 21 da LINDB).
Mas, se assim for, nada muda em matéria de segurança
jurídica, na medida em que fica apenas deslocado
o ponto em que repousa a insegurança, migrando-a
da tópica dos princípios jurídicos abstratos para
a seletividade das consequencias e das ponderações
dos bens e valores.37

Novamente, deve-se atentar ao contexto das alterações legislativas.


O ativismo, a politização da justiça e a insegurança jurídica são problemas
que estão sendo combatidos pelas novas legislações. E o ativismo conse-
quencialista é algo plenamente possível e, obviamente, não desejado.
Georges Abboud, em interessante artigo, escancara essa realidade

AMADEI, Vicente de Abreu. Interpretação realista. In.  CUNHA FILHO, Alexandre Jorge Carneiro da;
37

ISSA, Rafael Hamze; SCHWIND, Rafael Wallbach. Lei de introdução às normas do direito brasileiro –
Anotada. Decreto-Lei nº 4.657, de 04 de setembro de 1942. Editora Quartier Latin, 2019. v. 2, p. 73.
Lei nº 13.655/18: responsabilização do agente público e consequencialismo
nos atos e decisões administrativas e judiciais 85

ativista-consequencialista no Direito Brasileiro, inclusive em decisões


do Supremo Tribunal Federal38.
Portanto, não se trata de um acatamento puro e simples de uma
teoria de decisão (a consequencialista). Tanto é assim que o artigo 20
da LINDB exige apenas que as consequências da decisão (administrativa,
controladora ou judicial) sejam consideradas. Ora, considerar as conse-
quências da decisão a ser tomada não significa se guiar exclusivamente
pelo consequencialismo ou afastar sem maiores critérios os métodos
clássicos de interpretação jurídica, inclusive o gramatical.
Na verdade, reitero: a alteração legislativa da Lei nº 13.655/2018
buscou a segurança jurídica, entendida como o impedimento de que
a vontade das partes ou da administração seja substituída pelo decisio-
nismo judicial, sem maiores critérios, o que é mais evidente quando se
utiliza recursos a abstrações, com expressões como “dignidade humana”,
“liberdade”, “igualdade” etc. O consequencialismo e suas expressões
não se tornaram o único critério de interpretação jurídica e talvez nem
mesmo o critério mais importante. As consequências devem ser sempre
consideradas, simplesmente.
Em resumo, por meio do viés também (e não somente) consequen-
cialista, aumentou-se o ônus argumentativo dos órgãos de controle, de
forma a evitar, sempre que possível, a revisão de atos por intervenção
judicial e maximizar, assim, a segurança jurídica.

4. A solução dada pela nova Lei de Improbidade Administrativa


(Lei nº 14.230/2021)

A mais importante forma de responsabilização de administradores


públicos é a regulamentada pela Lei de Improbidade Administrativa (LIA).
Não apenas por suas relevantes penalidades, como inelegibilidades e multas,
mas também pelas consequências extraprocessuais de ser acionado pelo

38
“Essa é a brecha para abordarmos o consequencialismo jurídico na atuação do Judiciário brasileiro.
As consequências na argumentação judicial, especialmente nas decisões do Supremo Tribunal Federal,
tendem a não aparecer por aqui como apenas um dos fatores tomados em consideração ou sequer
se aproximam das hipóteses que apresentamos no tópico anterior. A resposta privilegiada na atuação
ativista-consequencialista não é a jurídica, aquela dada pelo direito vigente, mas sim aquela preten-
samente apta a produzir as melhores consequências práticas, sejam elas econômicas, sociais ou
políticas.”. Consequencialismo jurídico: o lugar da análise de consequências em direito e os perigos
do ativismo judicial consequencialista. Revista dos Tribunais, v. 1009, p. 123-135, nov. 2019.
86 Thiago Massao Cortizo Teraoka

Ministério Público. Afinal, basta ser processado ou tornar-se réu em uma


ação de improbidade administrativa para um administrador ter contra
si um enorme ônus político de ter que se explicar a seus eleitores e ser
atacado por seus opositores.
A LIA, em sua redação anterior, não punia apenas atos dolosos,
mas também culposos. Não eram punidos somente atos que violavam regras
claras, como também princípios, elencados no artigo 10, sem qualquer
condicionante. Atenta à realidade, a jurisprudência do Superior Tribunal
de Justiça, no entanto, limitava a interpretação da LIA exigindo que
as punições de atos ímprobos deveriam abranger somente atos dolosos
ou gravemente culposos39.
No contexto mais recente, novamente, agiu o legislador para evitar
excessos do Ministério Público e do Poder Judiciário e, assim, dar segurança
ao administrador público.
Com a Lei nº 14.230/2021, para a configuração do ato de improbidade
administrativa, exigiu-se o dolo40. Aos puristas, pareceria que o legislador
foi até mesmo redundante, em seus três parágrafos incluídos no artigo
1º da Lei nº 8.429/1992. Não me parece. Na verdade, o legislador quis
reforçar a sua posição, pretendendo afastar qualquer tipo de interpre-
tação judicial fundada em ativismo ou em jogo de palavras, que pudesse
levar à condenação de um agente público por ato meramente culposo.
A redação da LIA ficou assim:

Art. 1º.
[…]
§ 1º Consideram-se atos de improbidade
administrativa as condutas dolosas tipificadas nos
arts. 9º, 10 e 11 desta Lei, ressalvados tipos previstos
em leis especiais.

39
“[…] Relativamente às condutas descritas na Lei n. 8.429/1992, esta Corte Superior possui firme enten-
dimento de que a tipificação da improbidade administrativa, para as hipóteses dos arts. 9º e 11, reclama
a comprovação do dolo e, para as hipóteses do art. 10, ao menos culpa do agente. […] 5. Ressalto que
esta Corte Superior tem a diretriz de que improbidade é ilegalidade tipificada e qualificada pelo ele-
mento subjetivo, sendo indispensável, para a caracterização de improbidade, que a conduta do agente
seja dolosa para a tipificação das condutas descritas nos arts. 9º e 11 da Lei n. 8.429/1992, ou, pelo
menos, eivada de culpa grave nas do art. 10 (AIA 30/AM, Rel. Min. Teori Albino Zavascki, DJe 28/9/2011).
O que não ocorreu na hipótese. (STJ, AgInt no REsp n. 1.928.057/MG, relator Ministro Og Fernandes,
Segunda Turma, julgado em 23/9/2021, DJe de 8/10/2021.)
40
No mesmo sentido, Tema STF 1199.
Lei nº 13.655/18: responsabilização do agente público e consequencialismo
nos atos e decisões administrativas e judiciais 87

§ 2º Considera-se dolo a vontade livre e consciente


de alcançar o resultado ilícito tipificado nos
arts. 9º, 10 e 11 desta Lei, não bastando
a voluntariedade do agente.
§ 3º O mero exercício da função ou desempenho
de competências públicas, sem comprovação de ato
doloso com fim ilícito, afasta a responsabilidade
por ato de improbidade administrativa. […]

Com a alteração da lei, percebe-se claramente que o legislador


pretendeu dificultar o processamento e a punição de atos de agentes
públicos pela LIA, conferindo, de certa forma, maior segurança aos adminis-
tradores Públicos, a fim de também evitar o “apagão das canetas”.
A Lei nº 14.230/2021 está em consonância com o espírito das
alterações da LINDB, em aumentar o ônus argumentativo do Poder
Judiciário (e do Ministério Público) na intervenção em políticas públicas e,
consequentemente, na vida do administrador.
Lembre-se que Lei nº 13.655/2018 introduziu o artigo 22 da LINDB:

Art. 22. Na interpretação de normas sobre


gestão pública, serão considerados os obstáculos
e as dificuldades reais do gestor e as exigências
das políticas públicas a seu cargo, sem prejuízo dos
direitos dos administrados. [Regulamento]
§ 1º Em decisão sobre regularidade de conduta
ou validade de ato, contrato, ajuste, processo
ou norma administrativa, serão consideradas
as circunstâncias práticas que houverem imposto,
limitado ou condicionado a ação do agente. [Incluído
pela Lei nº 13.655, de 2018]
§ 2º Na aplicação de sanções, serão consideradas
a natureza e a gravidade da infração cometida,
os danos que dela provierem para a administração
pública, as circunstâncias agravantes ou atenuantes
e os antecedentes do agente. [Incluído pela
Lei nº 13.655, de 2018]
§ 3º As sanções aplicadas ao agente serão levadas
em conta na dosimetria das demais sanções de mesma
natureza e relativas ao mesmo fato. [Incluído pela
Lei nº 13.655, de 2018].
88 Thiago Massao Cortizo Teraoka

Ou seja, a Lei nº 13.655/2018, com suas mudanças na LINDB, já alterava


significativamente o panorama de responsabilização dos administradores
públicos. Era um prenúncio do que viria com a Lei nº 14.230/2021,
que alterou a LIA.
Georghio Tomelin, ao comentar o artigo 22 da LINDB, afirma que
o dispositivo pretende consagrar “a realidade em primeiro lugar”.
Em seu estudo, acusa que “o direito não tem se originado dos fatos.
Deveria, mas não tem”. De acordo com Georghio Tomelin, os estudiosos
do Direito preferem o mundo das abstrações, mais confortável, do que
os fatos. Isso não é mais possível e não é adequado41.
Os juízes devem considerar a realidade, as dificuldades, as limitações
dos agentes do Poder Executivo. A realidade se impõe. Não se vive
em condições ideais. O mundo e a administração não são um paraíso.
Não se vive no mundo do “dever ser”. Os objetivos da República não
foram definitivamente atingidos. Os servidores são poucos. O dinheiro
é finito. Os recursos são escassos.
Nessa ótica, percebe-se mais uma vez que não se trata apenas
de adesão a uma teoria de decisão: o consequencialismo. O que se pretende
é a não punição de um agente que pode não ter tomado a melhor decisão,
considerando as circunstâncias reais (e não ideais) da administração pública.

5. O recado do legislador também ao administrador público

Até agora, neste artigo, venho defendendo que as recentes alterações


legislativas, em especial da LINDB, são recados claros ao Poder Judiciário.
É uma tentativa de “blindar” decisões de agentes públicos aos órgãos
de controle, em especial se os órgãos de controle não tiverem justifi-
cativas técnicas para a tomada de outras decisões ou dolo comprovado
do agente público ímprobo.

Cf. TOMELIN, Georghio. Interpretação consequencial e dosimetria conglobante na nova LINDB.


41

In: CUNHA FILHO, Alexandre Jorge Carneiro da; ISSA, Rafael Hamze; SCHWIND, Rafael Wallbach.
Lei de introdução às normas do direito brasileiro – Anotada. Decreto-Lei nº 4.657, de 04 de setembro
de 1942. Editora Quartier Latin, 2019. v. 2, p. 165-176. Em acusação aos órgãos de controle afirma:
“Isso porque os servidores públicos têm sido acusados de irregularidades por promotores de justiça
que não têm a menor noção sobre como as coisas se passam na realidade material do dia a dia das
pequenas prefeituras.” Cf. TOMELIN, Georghio. Interpretação consequencial e dosimetria conglobante
na nova LINDB, p. 167.
Lei nº 13.655/18: responsabilização do agente público e consequencialismo
nos atos e decisões administrativas e judiciais 89

No entanto, o legislador não impôs maior ônus argumentativo


somente ao Poder Judiciário e demais órgãos externos de controle
da administração pública.
Se por um lado, dificultou-se ao Poder Judiciário a utilização
sem critério de princípios e conceitos jurídicos indeterminados, também
ao administrador se impôs um ônus maior. As recentes alterações legisla-
tivas exigem do administrador mais do que a menção aos seus critérios de
“conveniência e oportunidade” e o conhecido recurso ao interesse público.
É a lição de Newton de Lucca e Renata Motta Maciel:

Assim, perde lugar o administrador que, preguiçoso,


se limitava a afirmar que decidia conforme
o ‘interesse público’ e que, imperando ‘supremacia
do interesse público sobre o privado’ sua decisão
deveria ser acatada. Esse tipo de fundamentação
não é mais aceita pelo ordenamento jurídico que
não o entende mais como suficiente, a partir
da publicação da Lei 13.655/2018.42

O contexto legislativo também impõe essa conclusão. A Lei


de Liberdade Econômica, por exemplo, introduziu o “estudo de impacto
regulatório”43, no qual será necessário demonstrar que as consequências
do ato regulamentar foram analisadas.
É bem verdade que legislações brasileiras editadas em outros contextos,
também exigiam uma maior justificação de atos pela administração. Nesse
ponto, reporto-me, exemplificativamente, às avaliações de impacto
ambientais44, aos estudos de impacto financeiro na Lei de Responsabilidade
Fiscal45, e ao artigo 2º da Lei do Processo Administrativo que, há bastante

42
DE LUCCA, Newton; MACIEL, Renata Motta. A Lei nº 13.874/19 como sinalizador para o mercado: política
econômica? In.  CUNHA FILHO, Alexandre J. Carneiro da; PICCELLI, Roberto Ricomini; MACIEL, Renata Mota.
Lei da liberdade econômica anotada. Lei nº 13.874, de 2019. Quartier Latin, 2020. v. 2, p. 73.
43
“Art. 5º. As propostas de edição e de alteração de atos normativos de interesse geral de agentes
econômicos ou de usuários dos serviços prestados, editadas por órgão ou entidade da administração
pública federal, incluídas as autarquias e as fundações públicas, serão precedidas da realização
de análise de impacto regulatório, que conterá informações e dados sobre os possíveis efeitos do ato
normativo para verificar a razoabilidade do seu impacto econômico.”
44
Lei nº 9.638/1981, artigo 9º, III.
45
Art. 14, por exemplo, que trata de renúncia de receita.
90 Thiago Massao Cortizo Teraoka

tempo, impõe o princípio da “motivação” como expressamente mandatório


no âmbito da administração, em especial no Poder Executivo46.

Conclusões

Nos últimos anos, tem-se intensificado alterações legislativas com


o nítido objetivo de aumentar a segurança jurídica, por meio de mecanismos
que dificultem ou aumentem o ônus argumentativo do Poder
Judiciário na intervenção no âmbito das relações privadas e, também,
nas políticas públicas.
O recado do legislador parece claro. Os órgãos de controle,
em especial o Poder Judiciário, não devem, a pretexto de controlar,
impor determinada pauta aos administradores públicos.
O mero recurso retórico aos princípios jurídicos e conceitos
jurídicos indeterminados foram desnudados e não podem servir como
fundamento válido para a substituição da vontade do administrador judicial
pela vontade do órgão de controle.
Nesse contexto, a LINDB expressamente previu um viés conse-
quencialista na interpretação do direito. Todavia, isso não significou
um abandono dos demais critérios de interpretação. O que se pretendeu
é aumentar o ônus argumentativo da autoridade, no momento do controle,
a fim de evitar o mero uso retórico de princípios e conceitos jurídicos
indeterminados que poderiam conduzir a outras conclusões diversas.
A boa-fé dos administradores deve ser presumida. Não se deve
aplicar sanções a agentes públicos que estejam sendo, de fato, ímprobos.
As circunstâncias e limitações de fato não são ideais, mas reais; e devem
ser sempre consideradas
O objetivo é a segurança jurídica, inclusive do administrador
público que tem que tomar as decisões diárias da administração. Evita-se
o “apagão das canetas” ou a tomada de decisões por quem não é submetido
a escrutínio público por meio de eleições. É sob esse viés que devem ser
interpretadas as alterações introduzidas pela Lei nº 14.230/2021 na LIA
que, inclusive, afastou atos meramente culposos de suas penalidades.

46
Art. 2º. A Administração Pública obedecerá, dentre outros, aos princípios da legalidade, finalidade,
motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança
jurídica, interesse público e eficiência.
Lei nº 13.655/18: responsabilização do agente público e consequencialismo
nos atos e decisões administrativas e judiciais 91

A LINDB também exige motivações adequadas dos agentes adminis-


trativos. Não mais se admite o mero recurso ao “interesse público”
ou a “critérios de conveniência ou oportunidade”, princípios ou conceitos
jurídicos indeterminados para a tomada de decisões. Se se exige uma maior
contenção do Poder Judiciário, também se exige que as decisões
dos agentes administrativos sejam mais embasadas, também sob
a ótica consequencialista.

Bibliografia

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92 Thiago Massao Cortizo Teraoka

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (1. Turma). Recurso Especial


1.664.077/PR. O objeto da presente demanda é definir o alcance
da norma inserta no § 8º do artigo 85 do CPC, a fim de compreender
as suas hipóteses de incidência, bem como se é permitida a fixação dos
honorários por apreciação equitativa quando os valores da condenação,
da causa ou o proveito econômico da demanda forem elevados. Relator:
Min. Og Fernandes, Brasília, DF: Superior Tribunal de Justiça, 2022.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (2. Turma). Recurso Especial 1.734.733/
PE. Trata-se, na origem, de Ação Ordinária de Restituição de Indébito
Previdenciário para assegurar o direito da parte autora de repetir os valores
das contribuições previdenciárias pagas a maior nos últimos 5 (cinco) anos.
Relator: Min. Herman Benjamin, Brasília, DF: Superior Tribunal de Justiça,
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59

Uma “questão de princípio”: a distinta


dimensão da boa-fé nos contratos
administrativos

Pedro Moniz Lopes1


Advogado

Sumário: 1. Introdução: uma “questão de princípio”. 2. Os subsis-


temas normativos e a sua importância para o contrato administrativo.
3. Os equívocos da “resposta positiva”. 4. Subsistemas normativos e
princípios próprios: os riscos da transposição acrítica de princípios.
5. A disfuncionalidade da aplicação dos cânones interpretativos civilís-
ticos ao contrato administrativo: o caso da boa-fé.

1. Introdução: uma “questão de princípio”

O presente texto desenvolve-se a partir de uma questão teórica,


marcadamente central “até que ponto é juridicamente admissível aplicar
as normas jurídico-civis aos contratos administrativos?” (doravante a
“questão”). A “questão” pode ser formulada de outro modo, mas redunda
sempre num radical comum: (i) até que ponto o Direito Civil é o Direito
Comum de todos contratos; (ii) até que ponto o Direito Civil é subsi-
diário perante o Direito Administrativo, em geral ou especificamente em
matéria contratual; (iii) até que ponto o histórico conceito de “contrato
administrativo” se diluiu num conceito macro de “contrato”, que alberga
meras diferenças de grau entre aquele e os “contratos de direito privado
celebrados pela administração”; (iv) estará um civilista ou um administra-
tivista mais apetrechado para dilucidar questões jurídicas sobre contra-
tos administrativos etc. É, também, possível afunilar a “questão” sem

Professor Auxiliar da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (FDUL). Investigador Principal


1

do Centro de Investigação de Direito Público (CIDP) da FDUL. Membro do Lisbon Legal Theory Group
(LxLTG). Diretor Executivo da revista e-Publica (https://e-publica.pt/). Autor de Contratos adminis-
trativos e boa fé (2019), Derrotabilidade normativa e normas administrativas (2019) e Princípio da
boa fé e decisão administrativa (2011). E-mail: plopes@fd.ulisboa.pt.
96 Pedro Moniz Lopes

modificar a raiz: “até que ponto a boa-fé tem, nos contratos administra-
tivos, operatividade idêntica à que apresenta a respeito dos contratos de
direito privado?”. Todas estas subquestões são, respetivamente, traduções
ou instanciações da “questão” enunciada ao início.
A dimensão teórica da “questão” esconde consequências práticas
da maior importância. Na generalidade dos ordenamentos, as normas
de Direito Civil regulam aspetos da formação, interpretação e execução
dos contratos civis (e, também, da sua invalidação, redução, conver-
são etc.). Por conseguinte, da resposta à “questão” resultam diferentes
consequências. Admitir tout court a aplicação de normas jurídico-civis
aos contratos administrativos (a “resposta positiva”) implicará determi-
nadas consequências em matéria de formação, interpretação e execução
contratual. A “resposta negativa” implicará consequências radicalmente
diferentes em cada um desses pontos. Uma resposta condicionalmente
positiva (a “resposta intermédia”, no sentido da admissibilidade da
aplicação de Direito Civil apenas quando normas jurídico-públicas de
receção o prevejam) justificará um tratamento diferenciador, consoante
as matérias alvo da receção2.
Os operadores jurídicos são diariamente convocados a dar resposta à
“questão” e, simultaneamente, a ser consistentes e coerentes na aplica-
ção daquela, em cada uma das suas instanciações. Não poderão respon-
der positivamente à “questão” e, posteriormente, num cherry-picking
de determinadas matérias (e.g. execução de contrato administrativo),
inverter, sem mais, o sentido da resposta dada. Apenas o poderão fazer
no âmbito da “resposta intermédia”, quando houver justificação bastante
para uma derrogação à “resposta negativa”. Todavia, mesmo aí o
argumento não é definitivo: a existência de lei (lato sensu) que justifi-
que a derrogação apenas desloca o foco da análise para o escrutínio da
coerência do (sub)sistema onde se derroga3. Os sistemas jurídicos são

2
Por exemplo, a “resposta intermédia” implica que a resposta seja negativa em caso de interpretação
(supondo-se que não haja normas jurídico-públicas de receção) e positiva em caso de execução
(supondo-se que as haja). Na tese da “resposta intermédia”, claro está, a “resposta negativa” opera
como “resposta por defeito” (i.e., quando não exista norma de receção a determinar o contrário).
Sobre esta problemática, noutro contexto, cf. LOPES, P. Moniz. Contratos administrativos e boa fé.
Lisboa: AAFDL, 2019. p. 25 et seq.
3
A consistência prende-se simplesmente com a não contradição. A coerência normativa exige que as
premissas de um sistema normativo reflitam uma visão unitária da porção do mundo modelado pelo
sistema normativo e, nessa medida, traduzam as propriedades da compreensividade, da completude,
do suporte argumentativo e da mútua justificação entre as várias partes do todo que constitui o Sistema.
Cf. LOPES, P. Moniz. Balancing principles and “a fortiori” reasoning. In: DUARTE, D.; SAMPAIO,
J. Silva (ed.). Proportionality in law: an analytical perspective. Dordrecht: Springer, 2019. p. 137-157.
Uma “questão de princípio”: a distinta dimensão
da boa-fé nos contratos administrativos 97

enformados por princípios que operam como garantes da consistência


normativa4. Logo, uma lei que, sem justificação racional em princípios
desse subsistema, opere inversões à resposta pressuposta será, muito
provavelmente, inconstitucional.
A “questão” enunciada é uma questão de princípio, sob as várias
aceções da expressão. É uma questão de princípio, quer porque é uma
questão estruturante e basilar, quer porque está diretamente conexionada
com a aplicabilidade de princípios jurídicos próprios de diferentes subsis-
temas jurídicos (de Direito Civil e de Direito Administrativo)5. Mas também
é uma questão de princípio porque serve de bússola para a aplicação
consistente e coerente dos ordenamentos jurídicos e, simultaneamente,
serve de travão para uma aplicação “conveniente” de normas de Direito
Público e normas de Direito Privado aos casos, consoante o demandem
interesses políticos, económicos ou até académicos. Dar resposta à
“questão” significa, portanto, adotar um padrão de objetividade em que
se alicerçam decisões válidas dos operadores jurídicos. Não podem estar
em causa tentativas de conquista ou captura de questões jurídicas por
determinados ramos do direito quando o que efetivamente se coloca é a
aplicação coerente e unitária do próprio direito.

2. Os subsistemas normativos e a sua importância para o


contrato administrativo

Em grande parte dos ordenamentos jurídicos não existe uma defini-


ção de contrato administrativo. Apesar de lhe fazer referência, a Lei
de Licitações e Contratos Administrativos brasileira (Lei nº 14.133, de 1
de abril de 2021) não define o conceito. Em Portugal, a progressiva
autonomização da figura acabou por redundar na previsão legal expressa,
já com larga tradição doutrinária, da dicotomia entre “contratos adminis-
trativos, sujeitos a um regime substantivo de Direito Administrativo,

4
Cf. LOPES, P. Moniz. Princípio da boa fé e decisão administrativa. Coimbra: Almedina, 2011. p. 96-97;
GUASTINI, R. Los principios en el derecho positivo. In: GUASTINI, R. Distinguiendo: estudios de teoría
y metateoría del derecho. Barcelona: Gedisa, 1999. p. 142 et seq., p. 151 et seq.
5
Sobre o conceito de princípio utilizado em texto, cf. LOPES, P. Moniz. The Syntax of Principles: Genericity
as a Logical Distinction between Rules and Principles. Ratio Juris, v. 30, n. 4, 2017, p. 471-490; Idem.
Derrotabilidade normativa e normas administrativas: o enquadramento das normas regulamentares na
teoria dos conflitos normativos: parte i: a estrutura da norma e a derrotabilidade normativa. Lisboa:
AAFDL: 2019. v. I, p. 157-199.
98 Pedro Moniz Lopes

ou contratos submetidos a um regime de Direito Privado”6; não existe,


todavia, uma definição clara. E, porventura, não é desejável que exista,
sob pena de subinclusividade.
Tanto em Portugal como no Brasil, a identificação de contrato adminis-
trativo resulta de indícios de administratividade7. A justificação da distinção
entre “contrato administrativo” e “contrato de direito privado celebrado
pela administração” conflui na própria justificação da distinção entre os
subsistemas normativos de Direito Público e Direito Privado8. Os vários
critérios utilizados para aquela identificação são simples reproduções
aplicadas dos critérios que têm sido utilizados, isolada ou conjugadamente,
para caracterizar um (sub)sistema de normas como jurídico-administrativo,
a saber: a) a teoria da posição dos sujeitos em relação jurídica 9;

6
Cf. artigo 200, nº 1, do Código do Procedimento Administrativo. O ordenamento jurídico português
já contemplou uma norma definitória (minimalista) no §2º do artigo 815 do Código Administrativo,
aprovado pelo Decreto-Lei n 31 095, de 31 de dezembro de 1940. Cf. M. Aroso de Almeida, O Problema
do Contrato Administrativo, Coimbra: Almedina, 2018, p. 23.
7
O Código dos Contratos Públicos prescreve, no artigo 280, que se entendem por “contratos administra-
tivos” todos aqueles contratos que: a) sejam qualificados como públicos ou submetidos a um regime
legal substantivamente público; b) denotem uma fungibilidade ou alternatividade entre o contrato
a qualificar e um ato administrativo, ou contratualizem o exercício de ius imperii; c) atribuam ao
cocontratante privado direitos exorbitantes sobre coisas públicas ou funções típicas dos órgãos do
contraente público e; d) sejam submetidos (ou passíveis de submissão), pela lei, a um procedimento
jurídico-público de formação contratual e em que a prestação do cocontratante privado possa rele-
vantemente condicionar ou substituir a realização das atribuições do contraente público. No Brasil,
M. S. Zanella di Pietro reporta-se ao a) critério orgânico (ou critério da sujeição), alusivo às prerrogativas
de ius imperii do contraente público; b) ao critério do objeto, respeitante à incidência contratual
sobre organização e funcionamento de serviços públicos e atividades materialmente administrativas;
c) ao critério da finalidade, que se reporta à funcionalização dos contratos, total ou principalmente,
à prossecução do interesse público; d) ao critério do procedimento, que pressupõe uma tramitação
de formalidades prévias à celebração do contrato, inexistente (pelo menos a título vinculativo)
na contratação privada e; e) ao critério das cláusulas exorbitantes do Direito Comum, atributivas
de poderes especiais, nomeadamente de conformação contratual, a favor do contraente público.
Cf. DI PIETRO, M. S. Zanella. Direito administrativo. 20. ed. São Paulo, Atlas, 2007. p. 235.
8
Afirmando que a distinção entre Direito Privado e Direito Público é fundamental “para delimitar as
noções de ato e contrato administrativo, porque ambas pertencem ao “âmbito do Direito Público”
(§§ 35 e 54 VwVfG)”, cf. MAURER, H. Allgemeines Verwaltungsrecht, München, 2011 (edição espanhola:
MAURER, H. Derecho administrativo: parte general. Traducción de G. Pascual. Barcelona: Marcial Pons,
2011. p. 82.). Cf. LOPES, P. Moniz. Contratos administrativos e boa fé, p. 7-39.
9
O critério foi abandonado fruto da (i) regulação de sujeitos privados investidos de ius imperii por
normas de Direito Administrativo em casos, por exemplo, como os de concessões de serviços públicos,
bem como da (ii) regulação de sujeitos privados por normas de Direito Administrativo, independente-
mente do exercício das funções administrativas, como é o caso das relações jurídicoadministrativas
inter privados. Sobre estas, cf. GONÇALVES, P. Entidades privadas com poderes públicos. Coimbra:
Almedina, 2005. p. 140 et seq., 303 et seq.
Uma “questão de princípio”: a distinta dimensão
da boa-fé nos contratos administrativos 99

b) a teoria da liberdade e competência10; c) a teoria modificada dos


sujeitos (Zuordnungstheorie)11; e d) a teoria do interesse (principalmente)
prosseguido12.
O tratamento desta matéria merecerá outro fôlego em obra futura;
para já importa referir que a discussão sobre a sobrevivência, ou morte,
do contrato administrativo está eivada de um essencialismo platónico
que desvia o foco do essencial. O “contrato administrativo” não existe:
é uma categoria e quaisquer categorias ou classes, enquanto entidades
abstratas, não existem na realidade do mundo. São criações humanas
instrumentalizadas à sistematização da representação das coisas singulares
que o compõem: in casu, vários contratos e vários regimes jurídicos13.
O que interessa não é responder à pergunta “o que é um contrato adminis-
trativo?”, mas sim responder às questões “como devo chamar ao acordo
de vontades sujeito a um regime jurídico com características X, Y e Z?
(“contrato administrativo”?)”; “devo chamar o mesmo ao acordo de vonta-
des sujeito a um regime com características W, Y e Z?”; “a semelhança é
suficiente para a categoria ser útil?”. Este é o primeiro passo para procurar
uma resposta à “questão”.

3. Os equívocos da “resposta positiva”

Existe um equívoco de base na “resposta positiva”: a sua filiação na


Escola historicista do Direito. Menezes Cordeiro – jusprivatista e o maior
expoente português desta posição – sustentou, em 2006, que o Direito Civil
é Direito Comum com domínio de aplicação subsidiária, sem necessidade

10
Cf. SCHMIDT-ASSMAN, E. Das Allgemeinen Verwaltungsrecht als Ordnungs Idee, Grundlagen und
aufgaben der verwaltungsrechtlichern Systembildung, tradução castelhana de Javier Barnes
Vázquez e. al. (Madrid: Marcial Pons, 2003, p. 293-294).
11
A pedra de toque desta teoria modificada – por referência à teoria dos sujeitos – reside, essencialmente,
na abrangência de sujeitos públicos pelo Direito Privado. Contudo, a teoria falha na delimitação do
Direito Privado, que é apenas negativamente recortado a partir do Direito Público.
12
Cf. SOUSA, M. Rebelo de; MATOS, A. Salgado de. Direito administrativo geral. 3. ed. Lisboa: D. Quixote,
2008. v. 1, p. 52. A teoria, sem complemento, não fornece, contudo, qualquer critério para a deteção
das normas que regulam os sujeitos de Direito Privado ou a atividade administrativa de Direito Privado,
as quais são integradas residualmente no conjunto do Direito Privado. Assim, CASETTA, E. Manuale di
diritto amministrativo. 10. ed. Milano: Giuffré, 2008. p. 11.
13
Cf. PANACCIO, C. Nominalism and the theory of concepts. In: CHOEN, H.; LEFEBVRE, C. (ed.). Handbook
of categorization in cognitive science. Amsterdam: Elsevier, 2005. p. 993 et seq.
100 Pedro Moniz Lopes

de normas de receção, no âmbito do Direito Público14. A tese tem vocação


geral, mas é de aplicação concreta ao caso dos contratos administrativos15.
Como se comprova a partir das obras citadas em seu apoio, a tese
de Menezes Cordeiro corresponde à transposição, para Portugal, de uma
posição que vigorou circunstanciadamente na Alemanha, condicionada às
especificidades dos dados de direito positivo16; perdeu, todavia, grande
parte dos seus pressupostos de apoio. Ao contrário do Direito francês ou
português, o Direito alemão não compreendia, à data, um regime especial
de vocação geral que garantisse poderes específicos às entidades públicas17.
Para os contratos celebrados pela administração germânica, a submissão
ao Direito Privado era a regra e a submissão ao Direito Público era a
exceção18. Fruto da evolução jurisprudencial e doutrinária – e, sobretudo,

14
Cf. CORDEIRO, A. Menezes. Do direito privado como direito comum português. In: MIRANDA, Jorge
(coord.). Estudos em Honra de Ruy de Albuquerque. Coimbra: Coimbra Editora, 2006. v. 1, p. 103-130,
em especial quanto à aplicação subsidiária, p. 128-129. A posição do autor é, aliás, transversal a três
escritos: além do anterior, cf. Idem. Contratos públicos: subsídios para a dogmática administrativa,
com exemplo no princípio do equilíbrio financeiro. Cadernos O Direito, Coimbra, n. 2, p. 11-30, 2007;
e Idem. Tratado de direito civil português, i-i, introdução, doutrina geral, negócio jurídico. 2. ed.
Coimbra, 2000. p. 29-34. Ali se refere: “perante qualquer situação carecida de tratamento jurídico,
na ausência de regras especiais – de Direito público ou outras – que tenham uma pretensão de apli-
cabilidade, há que recorrer ao Direito Civil. Trata-se de uma consequência automática da sua natureza
como Direito comum. Digamos que o Direito comum é mais extenso e menos intenso, enquanto o Direito
especial, menos extenso, tem, no seu campo de aplicação, maior intensidade […] assim, o Direito
público será especial em relação ao Direito civil; mas é comum em relação ao Direito fiscal […] o
Direito civil é o mais comum e o mais abstrato de todos os ramos do Direito. Constitui a base a partir
da qual, por especialização, por negação, por complementação ou por inovação se vão erguendo todos
os demais ramos jurídicos normativos”. Trata-se de uma tese que, algo contrafacticamente, Menezes
Cordeiro indica como sendo “geralmente reconhecida pelos administrativistas”. Tal não corresponde,
como se verá, nem ao atual panorama doutrinário, quer em Portugal, quer na Alemanha, de onde a
teoria é transposta, nem ao panorama à data de 2006. Como refere lapidarmente Sérvulo Correia,
“[…] em Portugal, como na Alemanha, o Direito comum para as situações jurídicas administrativas,
entre as quais de natureza contratual, é o Direito Administrativo”. Cf. CORREIA, J. M. Sérvulo. Anot.
ao art. 200. In: QUADROS, F. de et al. (ed.). Comentários à revisão do código do procedimento
administrativo. Coimbra: Almedina, 2016. p. 438.
15
Idem, Contratos públicos, p. 11-30. Para uma crítica mais completa à tese de Menezes Cordeiro,
cf. LOPES, P. Moniz. Princípio da boa fé e decisão administrativa, p. 95-120.
16
A. Menezes Cordeiro (Do direito privado como direito comum português, p. 113-114) cita dois livros de
jusprivatistas alemães: LARENZ K.; WOLF, M. Allgemeiner Teil. 9. ed. München: Verlag C.H. Beck, 2004.
p. 7; e LEIPOLD, D. BGB I: Einführung und Allgemeiner Teil. 3. ed. Tübingen: Mohr Siebeck, 2004. p. 7.
17
Cf. MASING, J. Les prerogatives de controle exercées par l’administration relativement a l’exécution
des marches publics en Allemagne. In: MARCOU G. et al. (ed.). Le controle des marches publics. Paris:
IRJS Editions, 2009. p. 311 et seq.
18
Cf. FROMONT, M. Droit administratif des états europeens. Paris: Thémis Droit, 2006. p. 313 et seq.
Nessa medida, o “contrato público” germânico (“öffentlich-rechtlicher Vertrag”), codificado nos
artigos 54 et seq. da Verwaltungsverfahrensgesetz (VwVfG), não está concebido como um meio para
Uma “questão de princípio”: a distinta dimensão
da boa-fé nos contratos administrativos 101

da influência do direito europeu da contratação pública – a doutrina


alemã especializada (Stelkens) é clara ao afirmar que “esta conceção
[a tese da “resposta positiva” sustentada por Menezes Cordeiro] teve de
ser totalmente modificada”, uma vez que “as diretivas europeias exigem
que os Estados-membros atribuam direitos exequíveis de igualdade de
tratamento e transparência nos processos de contratação pública […]”19.
A Escola historicista presta-se, em geral, a várias críticas. Não é este
exemplo caso único. Não cabe tratar delas aqui. Centrando a discussão
na “questão” enunciada ao início, vê-se, desde logo, que a antecedência
histórica do Direito Civil não cauciona qualquer relação de generalidade/
especialidade entre (sub)sistemas normativos; nem se compreende
como essa antiguidade poderia implicar a aplicação subsidiária de um
tecido normativo. Não se trata de desconsiderar a importância relativa
da contextualização histórica. Trata-se apenas de constatar que o facto
de o conceito de “contrato administrativo” ter “a sua matriz no longo e
tradicional desenvolvimento da noção dos contratos de Direito Privado”
não é minimamente decisivo para responder à “questão” enunciada ao
início20. Nem sequer é relevante para tal resposta que o alegado movimento

a contratação, mas como uma alternativa para a emissão de decisões administrativas, especialmente em
casos nos quais as relações jurídico-públicas pré-existentes devam ser modificadas. Cf. STELKENS, U.
Public-private law divide: annual report 2010. Germany, 2011. p. 13. Disponível em: http://www.
ius-publicum.com/‌repository/‌‌‌uploads/‌‌23_11_2011_10_39_Stelkens.pdf.
19
A evolução não foi uniforme, como Stelkens demonstra: “Sem prejuízo do exposto, a transposição das
diretivas foi levada a cabo de modo minimalista, de forma a que, fora do âmbito das diretivas, o proce-
dimento de contratação ainda caía no âmbito do Direito Privado […]. Isto leva a uma completa disjunção
no direito da contratação pública, consoante o contrato caia no âmbito das diretivas europeias ou não.
Esta situação é altamente criticada pela doutrina e jurisprudência administrativistas, que sustentam
que as regras procedimentais para a adjudicação de contratos públicos são regras procedimentais de
Direito administrativo que devem ser aplicadas por tribunais administrativos mesmo se o contrato
subsequente seja um contrato de direito privado. […] Na realidade, as regras sobre a igualdade de
tratamento e transparência no decurso do procedimento de adjudicação de contratos públicos são
definitivamente regras com natureza de Direito Público, no sentido em que estabelecem regras especiais
que são vinculativas para as entidades públicas, mas que não existem para as entidades contratantes
privadas […] Estas regras […] não podem deixar de ter implicações nos contratos subsequentes se e na
medida em que concernem as consequências no caso de ilegalidades (terá um violação dessas regras
pela entidade pública contratante consequências para o contrato subsequente?). A integração destas
regras num regime de Direito Privado parece, portanto, ser problemática e levar a uma mistura que é
insatisfatória, quer de um ponto de vista prático como de um ponto de vista teórico”. Cf. STELKENS, U.
Public-private law divide, p. 12-15. Sobre esta evolução, cf. HUBER, P. The europeanization of public
procurement in Germany. EPL, 7, 2001, p. 33 et seq. Em Portugal, sobre o efeito unificador do direito
europeu, cf. OTERO, P. Legalidade e administração pública. Coimbra: Almedina, 2003. p. 486.
20
A expressão citada é de HORBACH, C. Bastide. Contratos administrativos: conceito e critérios distintivos.
Revista Brasileira de Políticas Públicas, v. 6, n. 1, p. 43-44, jan./jul. 2016.
102 Pedro Moniz Lopes

de génese desse conceito tenha resultado de uma autonomia processual


(no âmbito do Conseil d’État) que antecedeu e precipitou uma autonomia
substantiva (quer conceptual, quer de regime)21. Antecedência histórica
e motivo determinante da construção conceptual nada têm que ver com
consistência e coerência de (sub)sistemas normativos.
O conceito de “contrato administrativo” não se descobre, nem se
revela, porque nada há a descobrir ou a revelar a respeito de um conceito
que é normativamente constituído22. A utilidade da sua distinção a partir dos
contratos civis – nomeadamente para a definição do direito subsidiário –
exige, como bem aponta a voz insuspeita de Maurer, uma construção
dogmática que não assente meramente na “tradição”23.
Como qualquer conceito, o conceito de “contrato administrativo”
serve a função de ligar condições e factos operativos a consequências.
Atente-se no raciocínio por transitividade de um exemplo habitual:
a) o contrato X é um “contrato administrativo”; b) os “contratos adminis-
trativos” podem ser modificados por razões de interesse público e
c) o contrato X pode ser modificado por interesse público. Facilmente se
compreende que apenas verdadeiramente interessa saber se o contrato X
pode ser modificado por razões de interesse público; o passo elencado em
b) é mero instrumento para alcançar c)24. Responder a essa particular
questão enunciada é uma questão de direito positivo e de aplicação
consistente e coerente do (sub)sistema normativo; não é uma questão
histórica ou conceptual. O método indiciário enunciado – de qualificar
como administrativo qualquer contrato com determinadas características
formais, procedimentais, de objeto ou de regime – é, em última análise,
um método de resultado contingente. Funciona na estrita medida em que

21
Neste sentido, ESTORNINHO, M. João. Requiem pelo contrato administrativo. Coimbra: Almedina,
1990. p. 35-37.
22
Como afirma Sérvulo Correia, “[…] o legislador continua a perfilhar o postulado de que a natureza
administrativa de certos contratos, desse modo destacados da ampla categoria jurídica do contrato
tal como configurada no Código Civil, depende da incidência de critérios de administratividade,
de preferência normativamente explicitados. Se quisermos, porém, falar sinteticamente em “critério”,
esse é, naturalmente, o da pertença da figura ao Direito Administrativo.” Cf. CORREIA, J. M. Sérvulo.
Anot. ao art. 200, p. 427. Sobre os conceitos derivados, cf. NINO, C. Santiago. Introducción al análisis
del derecho. Buenos Aires: Ariel Derecho, 2003. p. 165.
23
Assim, referindo que a teoria da tradição não pode ser confundida com teorias delimitadoras dogma-
ticamente fundamentadas, cf. MAURER, H. Allgemeines Verwaltungsrecht, p. 86.
24
Já assim, ROSS, A. Tŭ-Tŭ. Harv. L. Rev., v. 70, n. 5, p. 812-825, 1957.
Uma “questão de princípio”: a distinta dimensão
da boa-fé nos contratos administrativos 103

o ordenamento jurídico tenha (e mantenha) determinadas características:


não é uma invariante histórica.
Em segundo lugar, a qualificação do Direito Civil como Direito Comum
redundaria na conclusão inconcebível de que o Estado seria, afinal de
contas, um privado especial25. A tese da “resposta positiva” esconde
a evidência do Direito Público como complexo normativo regulador do
exercício das funções estaduais e desconsidera o próprio objeto das normas
integradas nesse subconjunto. As funções do Estado representam, perante
as condutas de um sujeito privado, um quid aliud, não um quid plus;
o objeto de regulação das normas de Direito Público (o exercício das
funções estaduais e as relações jurídicas daí advenientes) recai sobre
um elemento distinto do objeto do Direito Privado. O subconjunto de
normas do Direito Privado não é maior do que o subconjunto de normas de
Direito Público, nem este último é mais específico que aquele. Este não
é analiticamente especial ou excecional diante daquele: é diferente26.
A utilização pela administração, sem suporte normativo, do Direito Privado
tornou-se “desacreditada, vista como uma forma de a administração
escapar para o Direito Privado” (Flucht ins Privatrecht), de modo a iludir
as suas obrigações de Direito Público27. O mesmo se passa, por identidade
de razão, quando esse Direito Privado é aplicado, com base na “resposta
positiva”, por tribunais judiciais ou arbitrais.
À exceção do que ocorre no ordenamento francês – onde, por especi-
ficidades constitucionais, o Direito Administrativo continua a ser visto

25
Cf. LOPES, P. Moniz. Princípio da boa fé e decisão administrativa, p. 117 et seq.
26
É, aliás, o próprio critério analítico de especialidade (o único critério sólido para a dilucidação da
questão, segundo se entende) que desmente a consideração do Direito Privado como Direito Comum.
Assentando-se que o Direito Privado regula as condutas intersubjectivas privadas (cf. PINTO, C. A. Mota.
Teoria geral do direito civil, p. 42; CORDEIRO, A. Menezes. Tratado de direito civil, I-1, p. 31) e que
o Direito Público regula o exercício das funções (condutas) estaduais, conclui-se que as realidades em
comparação não são nem mais nem menos específicas, mas sim distintas. Só apenas assim não seria se
se considerasse que o Direito Privado corresponderia ao ramo do Direito que regulava, sem mais, todas
as condutas, o que manifestamente não é o caso, desde logo porque todas as normas (primárias) do
ordenamento – enquanto sentidos de dever ser reguladoras de condutas – seriam, sem razão válida
para o efeito, reconduzidas ao Direito Privado. A ser assim, a distinção entre ramos do Direito não
assentaria num critério racional.
27
Refere-se a famosa expressão cunhada por FLEINER, F. Institutionen des Deutschen Verwaltungsrechts.
8. ed. 1928. p. 326. Aliás, não deixa de existir uma visível ligação entre a sustentação radical dessa
solução e uma ideologia política neoliberal, sob a égide da qual o Direito Civil surge como o “único
Direito Comum e único Direito da liberdade, cujos cultores seriam os únicos homens e mulheres
de leis, ao passo que os administrativistas não passariam de ‘juristas de Estado’”. Assim, com vasta
bibliografia, cf. CORREIA, J. M. Sérvulo. Anot. ao art. 200, p. 439.
104 Pedro Moniz Lopes

como um direito derrogatório do Direito Civil28 – é esmagadoramente


maioritária, em Portugal, a posição segundo a qual o Direito Administrativo
é o Direito Comum da função administrativa, em qualquer das ações em
que ela se manifesta (ato, regulamento e contrato)29. Duas conclusões
parecem resultar daqui. Em primeiro lugar, muito embora subsistam visões
que procuram matizar a distinção conceptual, os dados de direito positivo
justificam que se mantenha uma clara distinção entre contrato administra-
tivo e contrato de direito privado celebrado pela administração: trata-se de
uma “direta implicação da própria existência de um regime específico do
contrato administrativo, que não se aplica aos contratos de direito privado,
mesmo quando celebrados pela administração”30. Em segundo lugar,
qualquer integração de lacunas do ordenamento jurídico-administrativo –

28
Cf. HAURIOU, M. Précis de droit administratif et de droit public. Reed. da 12. ed. de 1933. Dalloz-Sirey,
2002. p. 21-22. Apontando as causas da génese essencialmente jurisprudencial, associada a um défice de
constitucionalização material, no Direito francês, cf. CORREIA, J. M. Sérvulo. Anot. ao art. 200, p. 438.
29
É a posição que acolhe a adesão, julga-se, da totalidade dos administrativistas portugueses e da
grande maioria dos administrativistas internacionais. Já assim, percorrendo os vários trilhos de inte-
gração de lacunas de Direito Administrativo dentro do ramo macro do Direito Público até chegar aos
princípios gerais de direito, sem recorrer à integração com regras e princípios do Direito Privado,
cf. CAETANO, M. Manual de direito administrativo. 10. ed., 9. reimp. Coimbra: Almedina, 2016. v. 1,
p. 136-137. Afirmando que a “conceção do Direito Administrativo como direito especial […] está superada”,
cf. QUEIRÓ, A. Rodrigues. Lições de direito administrativo. Coimbra, 1976. p. 188. Indicando, em 1980,
que “já vai longe o tempo em que as normas relativas à organização, funcionamento e atividade
da Administração eram encaradas como meras exceções ao Direito Privado, que gozaria, portanto,
do estatuto de direito-regra […] reconhecendo-se [hoje] pacificamente que, se o Direito Privado constitui
o regime regra das relações entre particulares, também o Direito Administrativo é a disciplina comum,
normal, nas relações jurídicas em que a Administração é parte” o que, entre outros aspetos, implica
que “o recurso à analogia com o Direito Privado estaria absolutamente excluído, por isso que não é
possível encontrar casos semelhantes entre um ramo de direito que discipline conflitos de interesses
de peso e natureza essencialmente diversos (o Direito Administrativo) de outro, para o qual os inte-
resses conflituantes são em princípio iguais – o Direito Privado”, cf. OLIVEIRA, M. Esteves de. Direito
administrativo. Coimbra: Almedina, 1980. v. 1, p.  4-75, 167. Em sentido totalmente coincidente, entre
tantos, AMARAL, D. Freitas do. Curso de direito administrativo. 4. ed. Coimbra, 2015. v. 1, p. 157-158;
OTERO, P. Legalidade e administração pública, p. 811; CORREIA, J. M. Sérvulo. Anot. ao art. 200, p. 438;
ANDRADE, J.C. Vieira de. Lições de direito administrativo. 4. ed. Coimbra: IUC, 2015. p. 15; SOUSA,
M. Rebelo de; MATOS, A. Salgado de. Direito administrativo geral, v. 1, p. 80-81; ALMEIDA, M. Aroso de.
Teoria geral do direito administrativo. Coimbra: Almedina, 2015. p. 21. Em Espanha, PARADA, R. Derecho
administrativo i: parte general. 19. ed. Madrid: Marcial Pons, 2012. p. 29; GARCIA DE ENTERRÍA, E.
RAMÓN FERNANDEZ, T. Curso de derecho administrativo. 12. ed. Madrid: Civitas, 2004. p. 45. Nos países
germânicos, MERKL, A. Algemeines Verwaltungsrecht, p. 102-111; SCHMIDT-ASSMAN, E. Das Allgemeinen
Verwaltungsrecht als Ordnungs Idee, p. 295-296. Em países de língua francesa, MOOR, P. Droit admi-
nistratif i: les fondements généraux. Berne: Stämpfli Editions, 1994. p. 115.
30
Cf. GONÇALVES, P. O contrato administrativo. Coimbra: Almedina, 2003. p. 48. No sentido da unificação
dos conceitos, que não se subscreve, cf. ESTORNINHO, M. João. Requiem pelo contrato administrativo,
p. 151 et seq.
Uma “questão de princípio”: a distinta dimensão
da boa-fé nos contratos administrativos 105

quer em geral, quer em matéria contratual, far-se-á através desta


sequência: (i) “analogia dentro do regime de Direito Administrativo;
(ii) integração por princípios gerais do Direito Administrativo; (iii) princípios
gerais do Direito Público; (iv) princípios gerais de Direito [Comum]”31.
A resposta à “questão” é, por defeito, uma “resposta negativa”.
Admite-se a “resposta intermédia” apenas quando a receção de normas
de Direito Privado é neutra em face da convivência dos princípios de
Direito Administrativo ou, no limite, suscetível de sofrer as adaptações
decorrentes da projeção desses princípios32.

4. Subsistemas normativos e princípios próprios: os riscos da


transposição acrítica de princípios

Os princípios jurídicos são, em virtude da sua economia informativa,


normas com capacidade identificativa de um determinado (sub)sistema
normativo. O princípio assume um carácter fundamental nesse (sub)sistema,
público ou privado, em virtude da sua aplicabilidade potencial em vastas
situações, permitindo a dedutibilidade (em sentido logicamente amplo)
de outras normas a partir daquele. A fundamentalidade deontológica dos
princípios pode ilustrar-se de duas formas. Por um lado, (i) reporta-se à
capacidade, que os princípios demonstram, de permitir deduzir outras
normas a partir dos próprios: a norma N1 é fundamento da norma N2 quando
N1 tem um âmbito de aplicação mais genérico que N2 e quando N2 pode ser
deduzida de N1, em termos de N2 ser uma especificação de N1. Por outro,
(ii) faz sobressair a ordenação teleológica dos princípios, por contraposi-
ção às normas daqueles deduzidas, as quais configuram meios para obter
os fins especificados nos primeiros: a norma N1 é fundamento da norma
N2 quando N2 constitui uma implementação de N1, o que apenas sucede

31
Em sentido próximo, mas não totalmente coincidente, cf. AMARAL, D. Freitas do. Curso de direito
administrativo, v. 1, p. 149-150.
32
Como refere P. Otero (Legalidade e Administração Pública, p. 795), “[N]o silêncio da lei não é possível
extrair qualquer habilitação justificativa de as entidades do sector público administrativo recorrerem
à aplicação do Direito Privado, antes vigorando um princípio geral de actuação segundo o Direito
Administrativo, enquanto Direito “natural” da actuação administrativa das entidades públicas”.
Sobre os princípios de Direito Administrativo como fator de interpretação, incluindo face a regras
vinculadas, “impondo, por exemplo, uma interpretação mais extensiva ou mais restritiva ou vedando
uma coisa ou outra.” Cf. OLIVEIRA, R. Esteves de. Os princípios gerais da contratação pública.
In: GONÇALVES, P. (org.) Estudos de contratação pública. Coimbra: Coimbra Editora, 2008. v. 1, p. 53-55.
106 Pedro Moniz Lopes

quando N1 é uma norma que prescreve um fim a alcançar (norma teleo-


logicamente orientada) e N2 é um meio para obter o fim fixado em N1.
Os princípios são, portanto, normas simultaneamente caracterizantes
e reguladoras de um (sub)sistema normativo ou do próprio ordenamento
global33. Sem pretensões de exaustividade, existem:
(i) princípios gerais do ordenamento, que enformam todo o siste-
ma normativo tendo-o como matéria (globalmente) regulada,
conferindo-lhe o correlativo fundamento deontológico: é o caso
do (ia) o princípio da legalidade34, (ib) o princípio da boa-fé35
ou (ic) o princípio da justiça36;
(ii) princípios gerais de subsistemas, que enformam ramos específicos
do Direito, como o Direito Privado ou o Direito Público, ou especifi-
camente, sectores de disciplina jurídica; assim, as normas de Direito
Administrativo “convivem” (i.e., relacionam-se e conflituam), entre
outros, com o (iia) princípio da prossecução do interesse público;
(iib) princípio da igualdade; (iic) princípio da proporcionalidade;

33
Segue-se, com algumas alterações, a exposição em LOPES, P. Moniz. Contratos administrativos e
boa fé, p. 17-25. No plano axiológico, tratar-se-á de princípios que fundamentam valorativamente
todo o sistema normativo. Cf. LOPES, P. Moniz. Princípio da boa fé e decisão administrativa,
p. 96-97, nota 218. Cf., também, GUASTINI, R. Los principios en el derecho positivo, p. 151 et seq.;
TAMAYO, G. Silva. Desviación de poder y abuso de derecho. Buenos Aires: Lexis Nexis, 2006. p. 30-38;
PINO, G. I principi tra teoria della norma e teoria dell’argomentazione giuridica. Diritto & Questioni
Pubbliche, n. 11, 2011. p. 86.
34
Sobre a legalidade em geral, subdividida na legalidade de compatibilidade (do Direito Civil) e
legalidade de conformidade (do Direito Administrativo), transpondo a construção de C. Eisenmann,
cf. CORREIA, J. M. Sérvulo. Legalidade e autonomia contratual nos contratos administrativos. Coimbra,
1987 (reimp. de 2003), p. 58 et seq.; LOPES, P. Moniz. Derrotabilidade normativa e normas adminis-
trativas: o enquadramento das normas regulamentares na teoria dos conflitos normativos: parte ii:
separação de poderes, legalidade e transitividade normativa. Lisboa: AAFDL, 2019. v. 2, p. 162 et seq.
35
Sustentando a existência paralela de uma norma geral e de normas especiais (públicas e privadas)
de boa-fé, cf. LOPES, P. Moniz. Princípio da boa fé e decisão administrativa, p. 207 et seq. Sobre a
boa-fé como norma geral do ordenamento, cf. MERUSI, F. Buona fede e affidamento nel diritto publico:
dagli anni “trenta” all’ “alternanza”. Milano: Giuffré, 2001. p. 137; ANTONIAZZI, S. La tutela del legittimo
affidamento del privato nei confronti della pubblica amministrazione. Torino: G. Giappichelli, 2005.
p. 151; BLANCO, F. Castillo. La interpretación y aplicación del ordenamiento jurídico público: especial
referencia al abuso del derecho. Madrid: INAP, 2007. p. 264-270; MÜLLER-GRUNE, S. Der Grundsatz
von Treu und Glauben im Allgemeinen Verwaltungsrecht: eine Studie zu Herkunft, Anwendungsbereich
und Geltungsgrund. Hamburg: Verlag Dr. Kovac, 2006. p. 13; OLIVEIRA, M. Esteves de. Direito admi-
nistrativo, v. 1, p. 76.
36
AMARAL, D. Freitas do. O princípio da justiça no artigo 266º da Constituição. Studia Iuridica, Coimbra,
n. 61, p. 685-704, 2001. Estudos em homenagem ao Prof. Doutor Rogério Soares.
Uma “questão de princípio”: a distinta dimensão
da boa-fé nos contratos administrativos 107

ou (iid) princípio da imparcialidade37; já as normas de Direito Civil,


por sua vez, “convivem”, entre outros, com (iia’) princípio da autono-
mia privada; (iib’) princípio da igualdade das partes; (iic’) princípio
do favor negotii ou (iid’) princípio do equilíbrio contratual;
(iii) princípios gerais de instituições jurídicas ou de matéria jurídicas
determinadas, reconduzíveis a princípios que têm como âmbito de
aplicação normativa uma matéria concreta integrada dentro de
um subsistema jurídico, designadamente os princípios relativos à
contratação pública, ao negócio jurídico privado etc.; por exemplo,
as normas de direito da contratação pública, enquanto sub-ramo
de Direito Administrativo, “convivem”, entre outros, com o
(iiia) princípio da concorrência38; (iiib) princípio da intangibili-
dade das propostas; (iiic) princípio da sustentabilidade e da respon-
sabilidade; (iiid) princípio da publicidade e da transparência39.
Arrancando de um equívoco de base, a tese da “resposta positiva”
projeta-o na disfuncionalidade da aplicação de normas de Direito Civil a
um contexto normativo (público) enformado por princípios radicalmente
distintos. Tomando como exemplo o princípio da boa-fé, Menezes Cordeiro
sustenta que

dependendo da situação lacunosa considerada e


da sindicância operada através dos princípios de
Direito Público, o Direito civil pode ser chamado a
complementar ou a integrar as mais diversas situações
administrativas. Podemos estar perante institutos
que o Direito público prevê mas não desenvolve –
p. ex. a boa fé, […] o Direito civil daria corpo aos
princípios gerais do ordenamento […] o Direito civil
seria chamado a depor quando regulasse um caso
análogo ao carecido de regras públicas.40

37
Cf., por todos, OTERO, P. Direito do procedimento administrativo, v. 1, p. 135-285; SOUSA, M. Rebelo de;
MATOS, A. Salgado de. Direito administrativo geral, v. 1, p. 213-217.
38
Cf. OTERO, P. Direito do procedimento administrativo. Coimbra: Almedina, 2016. v. 1, p. 244 et seq.
Qualificando-o como um princípio cardinal da ordem jurídica, cf. GONÇALVES, P. Concorrência e
Contratação Pública (a integração de preocupações concorrenciais na contratação pública). In: Estudos
Em Homenagem a Miguel Galvão Teles. Coimbra: Almedina, 2012. v. 1, p. 482.
39
Vejam-se os considerandos 58, 90 e 101 das Directivas 2014/24/UE e 2014/25/UE do Parlamento Europeu
e do Conselho, ambas de 26 de fevereiro de 2014. Cf. OLIVEIRA, R. Esteves de. Os princípios gerais da
contratação pública, p. 51 et seq.
40
CORDEIRO, A. Menezes. Do direito privado como direito comum português, p. 125-126.
108 Pedro Moniz Lopes

Não se vê, porém, como os princípios de Direito Público podem


“sindicar” a aplicação sem que tenham, pari passu, capacidade regulativa
para obstar à própria lacuna, tudo considerado. O autor não aprofunda
como opera essa sindicância.
Já se aludiu, em 2010, ao perigo da transposição acrítica de princí-
pios para fora do seu (sub)sistema de origem: remete-se para o que aí
se escreveu41. Dá-se agora breve nota de alguns exemplos da disfuncio-
nalidade da “resposta positiva”, em particular no perímetro do conceito
de “contrato administrativo” e na aplicação dos cânones civilísticos
à sua interpretação.

5. A disfuncionalidade da aplicação dos cânones interpretativos


civilísticos ao contrato administrativo: o caso da boa-fé

Em matéria de interpretação e integração da declaração negocial


em sede de Direito Privado, relevam particularmente – não obstante o
seu teor parcialmente distinto – as normas jurídicas correspondentes
aos artigos 236-239 do Código Civil Português e do § 1º do artigo 113 do
Código Civil Brasileiro. Trata-se de regras jurídicas totalmente enformadas
pelo princípio (civilístico) da boa-fé (embora o Código Civil Brasileiro seja
mais generoso na permissão de contratualização de regras interpretativas
e de integração).

Cf. LOPES, P. Moniz. Princípio da boa fé e decisão administrativa, p. 285: “é de se evitar uma importação
41

do tratamento doutrinário da norma da tutela administrativa da confiança, decalcando-a dos moldes


privatísticos que lhe subjazem […] poderá produzir efeitos perniciosos […] É por demais sabido que
a desinserção de uma norma do sistema ou subsistema a que pertence, bem como a construção
artificial dos respetivos pressupostos, pode redundar num mimetismo acrítico de instituições jurídicas
com origem noutros ramos e que carecem de um processo de reconceptualização.” M. Esteves de
Oliveira (Direito Administrativo, v. 1, p. 76-77) refere que “[as noções e regras] comuns “encarnam”
por forma diferente em cada um desses ramos, consoante as características e necessidades de
cada um – e, por isso, para além do núcleo comum, essas regras e noções acabam por assumir
especialidades que as tornaram diferentes no Direito Privado e no Direito Administrativo”. Já Marcello
Caetano (Manual de Direito Administrativo, v. 1, p. 64) alertava que “a identidade de designação de
certos institutos no Direito Administrativo e no Direito Privado não deve, porém, induzir no erro de
pensar que correspondem às mesmas realidades: A verdade é que estas requerem regimes jurídicos
diferentes, consoante se localizam no campo dos interesses privados ou no reino do interesse público”.
Neste sentido, também, SCHMIDT-ASSMAN, E. El método de la ciência del derecho administrativo.
In: BARNES, Javier (coord.) Inovación y reforma en el derecho administrativo. Sevilla: Global Law Press, 2006.
p. 147-149; PAREJO ALFONSO, L. Leciones de derecho administrativo. Barcelona: Casa del Libro, 2003.
p. 503; em concreto quanto à transposição acrítica da boa-fé para o Direito Público, MERUSI, F. Buona
fede e affidamento nel diritto publico, p. 184; SANCHEZ MORÓN, M. Venire contra factum proprium
non valet: Madrid: DA, 2002. p. 224.
Uma “questão de princípio”: a distinta dimensão
da boa-fé nos contratos administrativos 109

Assim, sem pretensões de exaustividade dada a economia do artigo,


nos termos do artigo 236 do Código Civil Português, a declaração negocial
é interpretada de acordo com a impressão razoável do “declaratário
[normal]”, colocado na posição do real declaratário, sem prejuízo da
prevalência da vontade real do declarante, quando esta for do conhe-
cimento do declaratário. A vontade real prevalece inclusivamente nos
negócios formais quando tiver apenas um “mínimo de correspondência”
no texto, desde que as razões determinantes da forma do negócio não se
oponham a tal (artigo 238 do Código Civil Português). Em casos de dúvidas
na interpretação de negócios jurídicos onerosos, prevalecerá aquela que
conduzir ao maior equilíbrio das prestações (artigo 237 do Código Civil,
com semelhante regulação pelo IV do § 1º do artigo 113 do Código Civil
Brasileiro). A interpretação do negócio jurídico deve atribuir o sentido que
for confirmado pelo comportamento das partes posterior à celebração do
negócio e for mais benéfico à parte que não redigiu o dispositivo (I do § 1º
do artigo 113 do Código Civil Brasileiro)42.
As normas de interpretação e de integração dos negócios jurídi-
cos privados encontram-se intrinsecamente ligadas aos princípios do
(sub)sistema de Direito Civil, no que concerne à formação da vontade do
declarante e do conteúdo da respetiva declaração negocial. Assentam
na liberdade de celebração e liberdade de estipulação. Quer isto
significar, no essencial, que o leque de normas interpretativas supra
identificado se subordina, naturalmente, à prevalência da autonomia
privada – entendida como “um espaço de liberdade jurígena atribuído,
pelo Direito, às pessoas […]” e que “[…] deixa à liberdade humana a
prática de factos jurídicos”43.
Afigura-se flagrante a inadequação e disfuncionalidade da aplicação
das aludidas normas civilísticas no quadro do Direito Administrativo e,
em especial, no contexto da contratação pública 44. Neste último,

42
Segundo Pedro Pais de Vasconcelos, deve ter-se em conta, na tarefa interpretativa, “o modo como
foram executando os negócios no tempo, a atitude negocial que perante eles foram assumindo,
o que os negócios para elas foram sendo durante e ao longo do tempo da duração e da sua execução”
(VASCONCELOS, Pedro Pais de. Teoria geral do direito civil. Coimbra: Almedina, 2014. p. 471).
43
Cf. CORDEIRO, A. Menezes. Tratado de direito civil, v. I-1, p. 218.
44
Para mais desenvolvimentos, cf. LOPES, P. Moniz. Contratos administrativos e boa fé, p. 69 et seq.
Também no sentido do texto, SOUSA, M. Rebelo de; MATOS, A. Salgado de. Direito administrativo geral.
2. ed. Lisboa: D. Quixote, 2006. v. 3, p. 387. O Tribunal Central Administrativo Norte Português já
teve oportunidade de referir que “Diferentemente do que se verifica ocorrer no âmbito dos negócios
jurídico-privados (cf. artigos 236-239 do C.Civil), não existem normas jurídicas que especificamente
110 Pedro Moniz Lopes

a autonomia estipulativa é praticamente nula, vedando a lei e os princí-


pios jurídicos que esta ocorra em subversão da concorrência apurada
em procedimento competitivo pré-contratual45. A legalidade de confor-
midade e os demais princípios enunciados de Direito Administrativo,
assim como a procedimentalização da actividade contratual administrativa
e a funcionalização desta à prossecução do interesse público, traduzem
uma total inversão ante a matriz do contrato de Direito Civil. No âmbito
da contratação pública, é cometida à lei a total regulação do procedi-
mento contratual e a esta se subordina substancial parte da declaração
negocial do adjudicante, enquanto contraponto da autonomia pública.
Nas palavras de Sérvulo Correia, “[a]o contrário da autonomia privada,
que consiste num “vazio” de normação injuntiva que os sujeitos preenchem
sem qualquer referência necessária a situações e a conteúdos típicos,
a autonomia pública é sempre o fruto de uma norma específica”, repre-
sentando “normalmente a vontade do legislador de deixar à administração
poderes de decisão adaptativa”46. No mais, isto é, em tudo quanto não seja
abarcado pela autonomia pública (excepcional), aplicar-se-á a legalidade
de conformidade (norma geral de direito administrativo)47.
A relevância conferida à teoria da impressão do declaratário, assim
como a preponderância da vontade real na interpretação do contrato,

disponham sobre os termos a que deve obedecer a interpretação do contrato administrativo, pelo que,
tendo em consideração que a Administração Pública se encontra orientada para a satisfação do inte-
resse público, essas regras interpretativas devem ser procuradas, em primeira linha, no sistema de
Direito Administrativo”. Acórdão TCA-N, de 27 de junho de 2014, proc. 01180/06.7BEBRG. Disponível
para consulta em www.dgsi.pt.
45
Como é entendimento pacífico do Tribunal de Justiça da União Europeia (jurisprudência Pressetext e
outras anteriormente indicadas), quaisquer alterações introduzidas nas disposições de um contrato
público durante a sua vigência – nomeadamente alterações substanciais relativas a “condições que,
se tivessem figurado no procedimento de adjudicação inicial, teriam permitido admitir proponen-
tes diferentes dos inicialmente admitidos ou teriam permitido aceitar uma proposta diferente da
inicialmente aceite” – constituem uma nova adjudicação, neste caso clamorosamente ilegal por
preterição de procedimento prévio. Cf. GONÇALVES, P. Acórdão “Pressetext”: Modificação de Contrato
Existente vs. Adjudicação de Novo Contrato. CJA, n. 73, p. 19; RAIMUNDO, M. Assis. A formação dos
contratos públicos: uma concorrência ajustada ao interesse público. Lisboa: AAFDL, 2013. p. 587 et seq.
46
Cf. CORREIA, J. M. Sérvulo. Legalidade e autonomia contratual nos contratos administrativos, p. 473.
47
Afirmando a conduz à conclusão inversa à do Direito Privado: a da presunção do carácter injuntivo das
normas como critério de interpretação. Cf. CORREIA, J. M. Sérvulo. Legalidade e autonomia contratual
nos contratos administrativos, p. 707-708. O autor esclarece ainda, a este propósito, que, na medida
em que os contratos administrativos formam um instituto do Direito Público, “não parece […] abusiva a
ideia exploratória de que – sob o influxo do princípio da legalidade – a sua utilização deva ser enqua-
drada pelo princípio administrativo da competência em de vez de pela figura da autonomia privada” –
cf. CORREIA, J. M. Sérvulo. Legalidade e autonomia contratual nos contratos administrativos, p. 562.
Uma “questão de princípio”: a distinta dimensão
da boa-fé nos contratos administrativos 111

contendem com o facto de a interpretação dos contratos administrativos


dever ser predominantemente objectiva48, correspondendo o “sentido
das declarações”, em virtude de a sua celebração ser antecedida de
“um processo de comunicação transparente e juridicamente regulado”
e a “um sentido objectivamente determinável – nomeadamente se for
caso disso, por um tribunal”49. Já a interpretação do contrato adminis-
trativo em conformidade com um equilíbrio contende com o princípio da
concorrência (ajustada ao interesse público, para utilizar uma expres-
são de Miguel Assis Raimundo) e com o carácter procedimentalizado da
contratação pública, em particular na interpretação do contrato em
consonância com o interesse público, as peças do procedimento e com os
antecedentes procedimentais. Aliás, o disposto no artigo 237 do Código
Civil Português consubstancia um maniqueísmo de regime entre negócios
onerosos e gratuitos. Nos contratos administrativos (e, porventura nos
próprios contratos de direito privado) está sujeito forçosamente a uma
adaptação à “equação económica” do contrato em questão, considerando
a transferência do risco para o contraente privado (como sucede nas
Parcerias Público-Privadas)50.
Mais grave é a latitude com que se vai admitindo a interpretação
do contrato administrativo com base na conjugação da vontade real e
legítimas expectativas alegadamente criadas, pelo contraente privado,
a partir de um sentido que é imperfeitamente expresso no texto contratual.
O “respeito ancestral pelas combinações feitas e pela palavra dada”
não pode, sem mais, contrariar a vontade pública em contratar com a
melhor proposta do mercado materializada nessa concorrência: é preci-
samente a forma do negócio jurídico-administrativo (e as formalidades
que o antecedem) que se opõem a essa validade51. Em última análise,
está em causa a própria legalidade financeira e fiscalização da utilização
de dinheiros públicos.

48
Para mais desenvolvimentos sobre os critérios interpretativos dos contratos administrativos. Cf. LOPES, P.
Moniz. Contratos administrativos e boa fé, p. 96 et seq.
49
Cf. SOUSA, Marcelo Rebelo de; MATOS, A. Salgado de. Direito administrativo geral, v. 3, p. 387;
AMARAL, D. Freitas do. Curso de direito administrativo. 3. ed. Coimbra, 2016. v. 2, p. 493-494. A vontade
real do declarante privado apenas vale conquanto se conforme à legalidade vigente. Cf. OTERO, P.
Legalidade e administração pública, p. 525.
50
Cf. TORGAL, L.; Geraldes, J. de Oliveira. Concessão de atividades públicas e direitos de exclusivo.
ROA, ano 72, p. 1109-1112, 2012.
51
A expressão é de Menezes Cordeiro (Contratos públicos, p. 105).
112 Pedro Moniz Lopes

A interpretação do contrato administrativo de acordo com vontade


real é geradora de um programa contratual desconforme com o texto do
contrato enviado para Tribunal de Contas. O “jogo privado de linguagem” a
que corresponde a vontade real das partes não resulta, desse modo, cognos-
cível pela entidade de controlo, que não tomou parte nesse “acordo”.
Redunda simplesmente numa subtração à sua atividade fiscalizadora que é
prima facie determinante da ineficácia parcial desse programa contratual.
Mesmo que o Estado seja a contraparte pública do contrato administrativo,
não se lhe pode simplesmente aplicar o venire contra factum proprium.
O modelo de fiscalização traça uma distinção entre o “Estado Contratante”
e “Estado Fiscalizador”, na figura do Tribunal de Contas. A fiscalização
da legalidade financeira não pode ser condicionada, em termos idênticos
aos quadros jusprivatistas, ao cumprimento (ou omissão de cumprimento)
dos deveres de boa-fé. Só dentro de certos limites.
A diferente operatividade do princípio da boa-fé nos contratos
administrativos é de tal monta que molda o próprio conceito de “contrato”.
Na realidade, considerando o exposto e para efeitos de incidência de fisca-
lização prévia da despesa pública pelo Tribunal de Contas, um “contrato”
é necessariamente representativo do acordo resultante de um contrato
escrito que consagre, de modo integral, a vontade real das partes52.
A existência de qualquer distonia entre, de um lado, o conteúdo do contrato
escrito enviado para Tribunal de Contas e, do outro, o acordo global
integrante da vontade real resultaria numa grave modificação contratual,
violadora da ordenação das propostas e do princípio da concorrência53.
Não se trataria de uma modificação na execução do contrato, mas de
uma diferenciação entre o contrato fiscalizado e o “contrato real”,
com idênticas consequências.
Por fim, importa considerar a relevância interpretativa das condutas
post pactum finitum nos contratos administrativos. Trata-se, neste caso,
novamente de um tópico de diferenciação entre os dois tipos de contratos.
Ao passo que nos contratos de direito privado, para além das “circuns-
tâncias de tempo, lugar e outras, que precederam a sua elaboração ou
são contemporâneas desta”, se deve atender à “posição assumida pelas

52
Em Portugal, releva a alínea c) do nº 1 do artigo 5.º e alíneas b) e d) do nº 1 e nº 2 do artigo 46 da
Lei nº 98/97, de 26 de agosto, na sua redação atual [LOPTC].
53
Cf. alínea d) do nº 1 do artigo 46 da LOPTC.
Uma “questão de princípio”: a distinta dimensão
da boa-fé nos contratos administrativos 113

partes na execução do negócio”54, no âmbito dos contratos administrativos


tal admissibilidade ampla levaria a uma posição francamente inadmis-
sível perante o princípio da concorrência e, em particular, o princí-
pio da prossecução do interesse público. No campo do Direito Civil,
o contrato é, como se viu, fruto da autodeterminação privada, o que
concorre para que se apresente como um elemento orgânico e mutável,
para cuja interpretação se pode lançar mão das condutas realizadas pelas
partes contratantes e, inclusivamente, de condutas post pactum finitum.
Distintamente, no Direito Administrativo essa solução encontra-se prima
facie vedada. Admiti-la equivaleria a admitir que um contratante privado
pode fazer uma proposta francamente competitiva, “ganhar” o contrato e,
uma vez cocontratante – qual “cavalo de Troia” –, beneficiar-se de
desatenções, negligências ou benesses do contraente público, que redun-
dariam num regime inteiramente distinto (mais oneroso) do que o que
resultou do procedimento adjudicatório competitivo55.

54
Cf. ALMEIDA, C. Ferreira de. Contratos IV: funções, circunstâncias, interpretação. Coimbra: Almedina,
2014. p. 262.
55
A única relevância interpretativa que pode ser dada às condutas posteriores das partes é precisamente
aquela a respeito dos atributos do contrato que não tenham sido postos à concorrência e cuja obrigato-
riedade não resulte de uma legalidade de conformidade estabelecida pelo procedimento concorrencial
e pelas peças do procedimento. De outro modo, facilmente por mero descuido da Administração Pública
surgiriam legítimas expectativas do contraente privado, com efeitos erosivos da legalidade, frustra-
dores das legítimas expectativas dos concorrentes preteridos em contexto concorrencial (e da própria
concorrência enquanto vetor normativo dos procedimentos adjudicatórios) e destrutivos do erário
público e do interesse público aí implicado.
II
A nova Lei de Licitações e Contratos
Administrativos (Lei nº 14.133/21)
711

Nova Lei de Licitações e Contratos


Administrativos: panorama, princípios
e principais modificações

Vicente de Abreu Amadei1


Desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo

Sumário: Introdução. 1. A Lei nº14.133/2021. 2. História e axiologia.


3. Visão panorâmica por sua estrutura (objeto sintetizado e sistematizado)
e recursos funcionais (principais ferramentas operacionais). 4. Princípios
fundamentais. 5. Principais modificações. Conclusão. Bibliografia.

Introdução

A nova lei de licitações e contratos administrativos, Lei nº 14.133/2021,


absorveu, reuniu e buscou sistematizar, com adequações e algumas
inovações, o que estava sedimentado, embora disperso e sem unida-
de, nas legislações anteriores sobre essa matéria, especialmente na
Lei de Licitações (Lei nº 8.666/93), na Lei do Pregão (Lei nº 10.520/2002)
e na Lei do Regime Diferenciado de Contratações Públicas – RDC
(Lei nº 12.462/2011).
Nesse caminho de organicidade normativa das licitações e dos contratos
administrativos, o legislador não descurou de seu dever de atualizar o regra-
do às exigências da realidade histórica presente (a incluir às de avanços
tecnológicos e de desenvolvimento nacional sustentável) e aos nortes
consolidados na jurisprudência (especialmente dos tribunais superiores,

1
Palestrante em curso de extensão e de especialização em Direito Ambiental Artificial (Urbanístico),
Administrativo, Imobiliário, Notarial e Registral, em diversas instituições (por exemplo, PUC/SP-COGEAE,
Escola Paulista da Magistratura – EPM, Universidade SECOVI-SP).
118 Vicente de Abreu Amadei

STF2 e STJ3) e recomendados em decisões administrativas do Tribunal de


Contas da União (TCU4).
Este breve estudo é de caráter introdutório à Lei nº 14.133/2021,
no esforço de apresentar uma visão panorâmica, atento ao seu objeto,
à sua estrutura (ou sistemática normativa), aos seus recursos funcionais
(ou principais ferramentas operacionais), aos seus princípios e às suas
definições fundamentais, bem como, por fim, selecionar e apresentar,
em modo tangencial, algumas de suas modificações introduzidas em
nosso ordenamento jurídico na matéria, aqui estimadas de significativos
impactos. Tudo na esperança de ser útil aos que procuram uma primeira
aproximação aos seus comandos.

1. A Lei nº 14.133/2021

A Lei nº 14.133, de 1º de abril de 2021, tem, na ementa –


“Lei de Licitações e Contratos Administrativos” –, não apenas a concisa
referência titulada de seu objeto, mas nela se apresenta, à semelhança
dos Códigos e dos Estatutos, sua identidade oficial, sua autodenominação,
a indicação de um status legislativo de relevância orgânica, isto é,
de grandeza por sua sistematização e completude normativa. Enfim,
é lei que tem “nome de batismo”, designação própria e dada pelo legislador,
tal qual as leis que buscam regrar todo um ramo do direito (Códigos) ou
os diversos aspectos essenciais de uma categoria jurídica (Estatutos).

2
Por exemplo, em tema de nepotismo: arts. 7º, III, 14, IV, 48, parágrafo único, 122, § 3º, da Lei 14.133/2021,
e a Súmula Vinculante 13/STF.
Por exemplo, em tema de não exoneração do dever de indenização pelo que houver executado e por outros
3

prejuízos comprovados, em caso de nulidade contratual, ressalvada má fé ou ter o contratado concorrido


para a nulidade: art. 149 da Lei no 14.133/2021 e vários julgados do STJ (AgRg no REsp 1339952/SP,
AgInt nos EDcl no REsp 1303567/SC, AgRg no REsp 1363879/SC, AgRg no REsp 1383177/MA, AgRg no
REsp 1140386/SP, AgRg no Ag 1056922/RS).
4
Por exemplo, em fomento de boas práticas de governança e gestão das aquisições, com várias reco-
mendações consideradas no conjunto da Lei no 14.333/2021, confira o Ac 2622/2015-TCU, rel. Augusto
Nardes, j. 21/10/2015; ou, ainda, em fomento de boas práticas de sustentabilidade ambiental, refletido
na Lei 14.133/2021, confira o AC 734/2021-TCU, rel. Min. Augusto Sherman, Proc. 036.992/2019-4, sessão
plenária de 31/03/2021, e o AC 797/2021-TCU, voto do relator, Min. Aroldo Cedraz, j. 07/04/2021.
Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos: panorama,
princípios e principais modificações 119

A Lei nº8.666/935, e muito menos o antigo Decreto-lei nº2.300/866,


embora no meio forense tenham suas alcunhas, não arrogaram para
si denominação alguma, diversamente do que explicitamente fez
a Lei nº14.133/2021.
E isso talvez se deva a dois fatores: (i) primeiro, o da consolidação
no mundo jurídico, da juridicidade da União editar “normas gerais” sobre
licitação e contratação administrativa, em âmbito nacional, vinculando
todos os entes federativos, a partir da Constituição Federal de 1988
(arts. 22, XXVII, e 37, XXI), com abrangência de tendência elástica ou
de razoável amplitude, conforme se pode colher em leitura de julgados do
STF (por exemplo, ADI 927-3/RS; ADI 3059/RS; ADI 4748/PR; RE 910552/RG,
admissibilidade de repercussão geral, Tema 1001); (ii) segundo, o da
pretensão unificadora (de consolidação de toda matéria normativa nacional
em foco), fortemente sistematizada (regramento de fundamento e princi-
piológico, bem estruturado) e diretiva (indutora de fins desejados),
em conjunto normativo amplo e detalhado, que a nova lei retrata e impõe.
Essas notas, aliás, levam a compreender o porquê a Lei nº14.133/2021,
nada obstante em vigor desde sua publicação (art. 194), sem vacatio
legis, apresenta um peculiar sistema intertemporal (arts. 190, 191 e 193),
que, para a necessária adaptação, admite, por dois anos (prazo, portanto,
que terá seu fim em 1º de abril de 2023), a convivência do regime antigo
com o novo, facultando aos gestores públicos, nesse tempo de transição,
a opção do regime jurídico aplicável.

2. História e axiologia

Licitação e contrato administrativo são matérias casadas e ambas


estão inseridas no foco da eficiência e da moralidade dos negócios jurídicos
dos entes públicos, a reclamar, de um lado, a tutela do interesse público nas
contratações (e, com isso, por exemplo, encontram-se os temas que envol-
vem a contratação mais vantajosa, sem sobrepreço e superfaturamento,
exequível e de incentivo ao desenvolvimento nacional sustentável) e,
de outro, o resguardo da neutralidade e equidistância da Administração

5
Conforme sua ementa, a Lei no 8.666/93 “Regulamenta o art. 37, inciso XXI, da Constituição Federal,
institui normas para licitações e contratos da Administração Pública e dá outras providências.”.
6
Conforme sua ementa, o Decreto-lei no 2.300/86 dispunha “sobre licitações e contratos da Administração
Federal e dá outras providências”.
120 Vicente de Abreu Amadei

Pública (e, com isso, por exemplo, vem os temas do tratamento isonômico
e da justa competição entre licitantes), a impor, em regra, formalidade
(em processos e atos administrativos) e publicidade.
Tais preocupações, quer em modo rudimentar (como o “incipiente
tratamento no Código da Contabilidade Pública da União”7), quer em modo
aprimorado (com a disciplina das licitações e contratações administrativas
em normas gerais/nacionais, para além dos regramentos próprios de cada
ente federativo, como se extrai das Leis nº8.666/93 e nº14.133/2021,
em atenção aos comandos constitucionais dos arts. 22, XXVII, e 37, XXI,
da CF/88), sempre houve, com maior ou menor dose de fixidez formal,
de transparência pública, de eficiência instrumental e de governança,
bem como de controle moral e de legalidade.
A Lei nº14.133/2021 buscou não só atualizar e concentrar no mesmo
diploma legal toda a matéria de regramento nacional referente à licitação
e à contratação administrativa, ou seja, as normas da Lei de Licitações
(Lei nº8.666/93), da Lei do Pregão (Lei nº10.520/2002) e da Lei do RDC
(Lei 12.462/2011), aproveitando suas melhores ferramentas, mas também,
como informa a primeira raiz legislativa correlata à nova lei, procurou
“[…] agilizar o processo licitatório, simplificando procedimentos, elimi-
nando burocracias desnecessárias e adotando recursos de tecnologia da
informação […]”, considerando, ainda, uma nova “[…] perspectiva quanto
ao relacionamento entre os setores público e privado […]” (de estímulo
à “colaboração” e à “interação”)8.
Assim, afirma-se que o caminhar histórico-axiológico do regime
jurídico da licitação e da contratação administrativa tem em conta
(i) flexibilizar formalidades, sem comprometer a segurança jurídica
e a neutralidade da Administração no processo de eleição de contratantes;

7
MEIRELLES, Hely Lopes. Licitação e contrato administrativo. 15. ed. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 27.
Cf. o Decreto 4536/1922, arts. 40, 48 a 54.
8
Parecer do Relator da Comissão de Serviços de Infraestrutura, Senador Francisco Dornelles, ao Projeto
de Lei do Senado (PLS) nº 559, de 2013, da Comissão Temporária de Modernização da Lei de Licitações
e Contratos (cf. o teor integral do parecer no site do Senado Federal. Disponível em: https://legis.
senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=3801195&ts=1630413087372&disposition=inline. Acesso em:
3 out. 2022). Esse projeto é apontado na raiz remota do movimento que desaguou na nova lei de licitações
e contratos administrativos, pois, no Senado, sua raiz próxima é outra, ou seja, o PL 4253, de 2020
(Substitutivo da Câmara dos Deputados ao Projeto de Lei do Senado nº 559, de 2013), observando que,
na Câmara dos Deputados, tramitou como PL 6814/2017.
Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos: panorama,
princípios e principais modificações 121

(ii) agregar à gestão administrativa (para licitar, contratar e executar o


contrato) inovações tecnológicas, planejamentos estratégicos, governança
responsável e transparência dilatada; (iii) conjugar, e não opor, os vetores
das forças públicas e privadas que atuam na esfera contratual adminis-
trativa, atento à nova “feição renovada da relação Estado-sociedade”9,
sem desvios espúrios.

3. Visão panorâmica, por sua estrutura (objeto sintetizado e


sistematizado) e recursos funcionais (principais ferramentas operacionais)

A topologia das normas insertas na Lei nº14.133/2021, sua estrutura,


ou, como se diz vulgarmente, o “esqueleto da lei”, a partir da segregação
de seus cinco títulos, divididos em capítulos, esses em seções e essas
em subseções, é um bom norte para situar o objeto normativo sistema-
tizado e, assim, ter uma compreensão elementar, resumida e geral do
universo regrado.
Eis, então, o quadro estrutural da nova lei de licitações e contratos
administrativos:

Títulos Capítulos Seções Subseções

Disposições Do âmbito de
preliminares aplicação desta lei
(arts. 1º a 10) Dos princípios

Das definições

Dos agentes públicos

9
Entende-se por “uma feição renovada da relação Estado-sociedade”, nas palavras de Odete Medauar,
aquela que, pelo esforço de convergente colaboração, substituiu à “[…] concepção e prática de sepa-
ração dos dois âmbitos” (público vs privado): “seguiu-se, a partir das décadas de 80 e 90 do século XX,
uma concepção e prática de aproximação, de colaboração, de conjugação de esforços entre Estado
e sociedade, entre Administração e sociedade […]” (MEDAUAR, Odete. Estatuto da Cidade MEDAUAR,
Odete; Menezes de ALMEIDA, Fernando Dias (coord.). 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 28).
122 Vicente de Abreu Amadei

Títulos Capítulos Seções Subseções


Das licitações Do processo licitatório – Da Instrução do – Das Compras
(arts. 11 a 88) Da fase preparatória Processo Licitatório – Das Obras
– Das Modalidades e Serviços
de Licitação de Engenharia
– Dos Critérios – Dos Serviços
de Julgamento em Geral
– Disposições – Da Locação
Setoriais de Imóveis
– Das Licitações
Da divulgação do Internacionais
edital de licitação
Da apresentação de
propostas e lances
Do julgamento
Da habilitação
Do encerramento
da licitação
Da contratação direta

Das alienações – Do Processo de


Dos instrumentos Contratação Direta
auxiliares – Da Inexigibilidade
de Licitação
– Da Dispensa
de Licitação
– Dos Procedimentos
Auxiliares
– Do Credenciamento
– Da Pré-Qualificação
– Do Procedimento
de Manifestação
de Interesse
– Do Sistema de
Registro de Preços
– Do Registro
Cadastral
Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos: panorama,
princípios e principais modificações 123

Títulos Capítulos Seções Subseções


Dos contratos Da formalização
administrativos dos contratos
(arts. 89 a 154) Das garantias
Da alocação de riscos
Das prerrogativas
da administração
Da duração
dos contratos
Da execução
dos contratos
Da alteração dos
contratos e dos preços
Das hipóteses de
extinção dos contratos
Do recebimento do
objeto do contrato
Dos pagamentos
Da nulidade
dos contratos
Dos meios alternativos
de resolução
de controvérsias
Das Das infrações
irregularidades e sanções
(arts. 155 a 173) administrativas
Das impugnações, dos
pedidos de esclareci-
mento e dos recursos
Do controle
das contratações

Disposições Do portal nacional


gerais de contratações
(arts. 174 a 194) públicas (PNCP)
Das alterações
legislativas
Dos crimes em
licitações e contratos
administrativos
Disposições transi-
tórias e finais
124 Vicente de Abreu Amadei

Nesse quadro estrutural, percebe-se, com clareza, o escopo


de se distinguir cinco blocos normativos para a boa aplicação da
Lei nº14.133/2021, e, em cada um, é possível extrair as referências
maiores, ou seja, os principais instrumentos e técnicas em que o legisla-
dor buscou traçar o caminho para a operacionalidade ou funcionalidade
do regime jurídico das licitações e dos contratos administrativos.
O primeiro, destinado aos fundamentos e à aplicabilidade da lei,
ou seja, considerando seus alicerces, suas colunas e suas principais vigas
de sustentação, bem como a luz que se deve projetar em todo campo
normativo para sua adequada interpretação e justa concretização,
compreendidos, tecnicamente, como campo de incidência (ou abrangência)
(arts. 1º a 4º), princípios (art. 5º), definições (art. 6º) e principais atores ou
sujeitos (agentes públicos) para a salutar implantação da lei (art. 7º a 10).
O segundo, no campo do direito administrativo formal ou processual,
para o trato da licitação; afinal, o âmbito da licitação é procedimental
administrativo, e, nesse passo, verificam-se, na lei nova, importantes
inovações e tendências, direcionadas à simplificação e à celeridade,
especialmente pela primazia de formas e processos eletrônicos10, bem como
pelo acento às estratégias de planejamento (fase prévia de planejamento
detalhada, previsão de plano anual de contratações, de estudo técnico
preliminar, de matriz de riscos etc.) e de governança (não só pelo destaque
à qualificação dos agentes públicos em todo campo do processo de licitação,
mas também por exigências de integridade empresarial).
O terceiro, no campo do direito administrativo material ou
substancial, para o trato do contrato administrativo, envolvendo o conjunto
dos diversos aspectos que tocam os negócios jurídicos bilaterais com

10
É o caso de catálogo de padronização de compras, serviços e obras (arts. 6º, LI, e 19, II); de produção,
comunicação, armazenamento e validação dos atos jurídicos em geral (art. 12, VI); de identificação
e assinatura digital (art. 12, § 2º); de pesquisa de notas fiscais e de dados publicada em mídia especia-
lizada, em sítios eletrônicos especializados ou de domínio amplo (art. 23, III e V); de realização da
licitação, em todas as fases (arts. 17, § 2º, e 176, II); de divulgações em geral nos sítios eletrônico oficiais
(arts. 6º, LII, e 176, III, e parágrafo único, I); de habilitação (art. 65, § 2º, 68, § 1º); e de credenciamento
(art. 79, parágrafo único, I). E, ainda, sublinhem-se as prescrições de condicionar a validade e eficácia
dos atos praticados pelos licitantes ao formato eletrônico (art. 12, § 4º), de estimular a audiência
pública, presencial ou a distância, na forma eletrônica (art. 21), e de apresentar por meio eletrônico
planilhas e documentos correlatos às licitações de obras e serviços de engenharia (art. 56, § 5º),
dentre outras medidas próprias das inovações tecnológicas aplicadas à matéria, que, aliás, permeiam
toda lei (no capítulo dos contratos, por exemplo, a formalização dos contratos e seus aditamentos
em forma eletrônica: art. 91, § 3º; no capítulo das disposições gerais, por exemplo, o Portal Nacional
de Contratações Públicas – PNCP, em sítio eletrônico: art. 174).
Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos: panorama,
princípios e principais modificações 125

a Administração Pública, sublinhando-se, no ponto, atenção à eficiência


das contratações11, à indução de políticas de desenvolvimento nacio-
nal sustentável, à alocação de riscos para contratações complexas,
ao regramento de garantias (por exemplo, o seguro-garantia em obras
de engenharia de grande vulto, com previsão de possível continuidade
da obra, sob a responsabilidade da seguradora), ao fomento de formas
alternativas de composição de conflitos (por exemplo, conciliação,
mediação, arbitragem, comitês de composição e solução de conflitos),
ao detalhamento do regime de fiscalização (arts. 117 e 118), à previsão
de reparação imediata na duração do contrato (art. 119), à necessidade
de pertinência/correlação para os aditamentos (art. 126) e ao regime
próprio de saneamento e prosseguimento da execução do contrato irregular,
ante licitação e contratação inválidas, ou execução contratual deficiente,
quando possível (arts. 147 e 148).
O quarto, referente aos ilícitos e às sanções, observando-se que,
para além da preocupação inicial de delimitar atribuições e responsabi-
lidades (arts. 7º e 8º), nesse bloco normativo, o legislador impõe um
sistema de infrações e sanções administrativas (arts. 155 e ss.), distintas
das criminais (arts. 337-E a 337-P do Código Penal), mais preciso e denso,
anotando-se que as previsões excepcionais para salvar a eficácia de contrato
viciado (quando possível, no interesse público, o saneamento e a exe-
cução, evitando, assim, a suspensão ou a invalidação do negócio jurídico,
sem desconstituir os efeitos já produzidos e sem prejudicar a continuidade
do contrato) são operadas sem prejuízo de sanções aplicáveis aos infratores
e de indenização, se for o caso (arts. 147, parágrafo único, e 149).
O quinto, por fim, em disposições gerais, que vai muito além do que
comumente se colhe nas leis em geral, com destaque à elevação do grau de
transparência e ao incentivo de padronização pela criação do Portal Nacional
de Contratações Públicas (PNCP), a envolver todos os entes públicos,
em modo obrigatório, sem prejuízo da divulgação complementar de cada
ente federativo, em sítio eletrônico oficial que instituírem (arts. 174 e 175).

11
A busca de eficiência é, a rigor, um propósito que percorre todo conjunto normativo, com ápice na relação
contratual. Assim, emergem na Lei no 14.133/2021 várias ferramentas úteis com esse objetivo, a começar
por vastas e novas exigências de regência dos agentes públicos (arts. 7º a 10) até o esforço de aprimorar
o modo de controle da legalidade pelos órgãos públicos (arts. 169 a 173), passando, por exemplo, pela
padronização de catálogos, editais, termos de referência, contratos e outros documentos (arts. 6º,
LI, 19, II e IV, 25, § 1º, 47, I), bem como pela busca de novos critérios de julgamento (por exemplo
o de “maior retorno econômico”, para “contrato de eficiência” – arts. 33, VI e 39).
126 Vicente de Abreu Amadei

4. Princípios fundamentais

Em paralelo ao seu perfil extensivo e detalhista, a Lei nº 14.133/2021


é rica em princípios e abastada em conceitos, quiçá até excessiva em tão
vasta pluralidade: são indicados 22 princípios (art. 5º) e 60 definições
(art. 6º).
A Lei nº8.666/93, ao tratar os princípios da licitação, apontava
um específico, de raiz constitucional, denominado “princípio consti-
tucional da isonomia” – a lembrar o art. 37, XXI, da CF/88, pelo enunciado
do postulado destinado a assegurar “igualdade de condições a todos
os concorrentes” –, e outros oito indicados como “princípios básicos”:
“da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da igualdade,
da publicidade, da probidade administrativa, da vinculação ao instrumento
convocatório, do julgamento objetivo (art. 3º)”. Isso, em rol exemplificativo,
destacando-se que, além desses, ainda há os “que lhes são correlatos”
(art. 3º, in fine).
Esses oito “princípios básicos” são igualmente expressos na
Lei nº 14.133/2021, embora sem essa adjetivação (“básicos”), e ainda foram
acrescidos, em forma expressa, outros 14 princípios: “da eficiência,
do interesse público, do planejamento, da transparência, da eficácia,
da segregação de funções, da motivação, da segurança jurídica,
da razoabilidade, da competitividade, da proporcionalidade, da celeri-
dade, da economicidade e do desenvolvimento nacional sustentável”.
E, para além dos tais 22 princípios expressos, o legislador ainda se reporta
a necessidade de integrar, na matéria, os princípios da Lei de Introdução
ao Direito Brasileiro (LINDB), a revelar, também, o especial propósito
do legislador de compatibilizar essa nova lei de licitações e contratos
administrativos com as inovações introduzidas pela Lei nº 13.655/2018
na LINDB (arts. 20 a 30).
Discorrer sobre cada um desses princípios (em modo analítico e/ou
crítico) está além do propósito panorâmico deste estudo; oportuno,
contudo, para o fim de compreensão geral da lei, o esforço de síntese para
se apontar apenas uma breve noção de cada um, conforme segue adiante:

(i) princípio da legalidade: porque a lei é a primeira e maior fonte


do Direito brasileiro, com leitura estrita para a Administração
Pública, o trilho que norteia o processo licitatório e a contrata-
ção administrativa é o do devido processo legal e do respeito às
Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos: panorama,
princípios e principais modificações 127

prescrições constantes em lei formal e, assim, a adequação à lei é,


nesse campo, condição de validade dos atos;
(ii) princípio da impessoalidade: porque a Administração Pública não
pode agir segundo a pessoa (intuitu personae) para arbitrariamente
favorecer ou prejudicar alguém, afirma-se que, em licitação
e contratação administrativa, ela deve ser neutra, tratando todos
igualmente, sem distinção alguma;
(iii) princípio da moralidade: porque a ética envolve o direito, e,
de modo especial, a moralidade administrativa é pressuposto
necessário de toda conduta e de todos os atos da Administração
Pública, contra ou fora os nortes da honestidade, ainda que
haja suporte legal, licitação e contratação administrativa não se
sustentam, e, daí, conduta compatível com a moral (não apenas
com a lei), nesta seara, também é condição de validade dos atos;
(iv) princípio da publicidade: porque publicidade é dar ao público,
divulgar com largueza, difundir o conhecimento, ampliar
a cognoscibilidade, e porque a Administração Pública a impõe
como regra, admitindo o sigilo apenas por exceção prevista em lei,
em licitação e contrato administrativo ela (publicidade) se apresenta
como princípio destinado a garantir a todos o acesso a todas as
informações que envolver processos, fases e atos de licitação
e de contratação administrativa, ressalvadas as hipóteses de sigilo
constantes em lei, para potencializar a possibilidade de partici-
pação e de fiscalização nesse âmbito da coisa pública;
(v) princípio da eficiência: não basta atingir o resultado, mas é preciso
que ele seja bom, útil, proveitoso, de qualidade, excelente, com os
atributos da perfeição, e, para tanto, também é preciso que
a estrutura e o processo, bem como o pessoal e a atividade, para se
atingir tal fim, sejam respectivamente adequados e capacitados,
e igualmente bons: assim, em Administração Pública deve haver
eficiência de resultado, eficiência de estrutura e processo
e eficiência de agentes públicos e atividades funcionais, o que se
impõe, como princípio, a todo ponto que gravita no universo da
licitação e da contratação administrativa;
(vi) princípio do interesse público: cuidar do interesse público
é cuidar do bem-estar coletivo, do bem comum: é atenção, para
além do interesse particular e do interesse estatal, à prima-
zia do bem e da ordem social, à relevância da função social
sem desagregar a função pessoal, em um quadro de respeito à
128 Vicente de Abreu Amadei

totalidade na diversidade de grupos sociais e indivíduos, que se


aplica, em geral, ao direito como um todo, e, de modo especial
e com maior gravidade, ao Direito Público, em que a licitação
e a contratação administrativa estão imbricadas;
(vii) princípio da probidade administrativa: “viver honestamente”,
já diziam os romanos, é um dos três preceitos universais do direito;
aplicada à gestão das coisas públicas, a honestidade deve ser
a medula do gestor, especialmente em campo no qual as tentações
de desvio povoam o ambiente: conduta desonesta, ímproba, pois,
em sede de licitação e contratação administrativa, quer nos meios,
quer nos fins, não se tolera e reclama severa sanção;
(viii) princípio da igualdade (isonomia): não há justiça sem igualdade,
quer comutativa (tratar igual os iguais), quer distributiva
(tratar proporcionalmente os diferentes, na medida de suas
desigualdades): em licitação, a medida do justo é a igualdade
legal (segundo a lei) de oportunidades, de condições e de
julgamentos em relação aos licitantes, que deve marcar todas as
fases do processo licitatório, assegurando plena isonomia entre os
concorrentes, para boa concorrência e ampla disputa, vedando,
por consequência, direcionamento, perseguição, favorecimento,
cláusulas e julgamentos discriminatórios ou parciais; em contrato
administrativo, a medida do justo é a igualdade clausulada (fixada
nas normas contratuais, segundo a lei e o edital) e moderada pelas
prerrogativas decorrentes da supremacia do interesse público,
ante a natureza especial desse contrato que o insere em um regime
jurídico de Direito Público;
(ix) princípio do planejamento: porque convém que a razão prepon-
dere sobre a vontade; o pensar, ao agir; a reflexão, à ação;
o estudo, à prova; a previsão metódica, à realização; o cronograma,
à execução; afirma-se que, em licitação e contratação administrati-
va, é necessária densa estratégia para considerar metas (fim) e iter
(meios), conjugando-os racional e ordenadamente, prévia e anteci-
padamente, ao processo licitatório em si, bem como a toda contra-
tação com a Administração Pública, não tolerando improvisações;
(x) princípio da transparência: transparência é publicidade acres-
cida de visibilidade, qualificada com o plus da nitidez no trânsito
da informação aos destinatários: para a Administração Pública, e de
modo especial em licitação e contratação administrativa, transpa-
rência é dever endógeno (nasce de dentro, das entranhas da coisa
Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos: panorama,
princípios e principais modificações 129

pública) e princípio a iluminar – – com as exigências da ampla


acessibilidade, clareza de linguagem e objetividade do comuni-
cado –, todos os canais e as formas direcionadas à publicidade;
(xi) princípio da eficácia: no estudo dos negócios jurídicos, não se
confundem elementos de existência, pressupostos de validade
e fatores de eficácia: princípio da eficácia no presente enfoque
é aquele que se reporta aos fatores (condições) indicados como
necessários para que atos ou negócios jurídicos próprios do processo
licitatório ou do contrato administrativo gerem efeitos, isto é,
produzam os resultados juridicamente almejados;
(xii) princípio da segregação de funções: evitar concentração de poderes
para prevenir abusos, e evitar confusões para não se dissolver
responsabilidades, é o escopo da segregação de funções, que impõe
a proibição de se designar o “[…] mesmo agente público para atuação
simultânea em funções mais suscetíveis a riscos, de modo a reduzir
a possibilidade de ocultação de erros e de ocorrência de fraudes
na respectiva contratação […]” (art. 7º, § 1º): afinal, quanto mais
divididas e especificadas as atribuições, apartando e individuali-
zando condutas, determinando e precisando os campos de respon-
sabilidade de cada agente no largo processo de licitação e de
contratação administrativa, menor o risco de desvio e abuso, maior
e melhor o controle interno e externo de legalidade;
(xiii) princípio da motivação: não só os atos vinculados, mas também
os discricionários devem ser motivados, pois não se consente
com arbitrariedade, especialmente em licitação e contratação
administrativa: os vinculados, motivados nas prescrições da lei;
os discricionários técnicos (impróprios), motivados em estudos/
relatórios/pareceres/decisões igualmente técnicos; os discricio-
nários político-sociais (próprios), motivados em juízos de oportu-
nidade e conveniência, e sempre atrelados ao interesse público;
(xiv) princípio da vinculação ao edital: em licitação, não só a lei,
mas também o edital atua como fonte (embora secundária)
do direito, e, por isso, Administração e licitantes estão jungidos
às suas regras, têm o dever de observar as prescrições edilí-
cias (entenda-se: a elas estão vinculados): daí, a clássica
assertiva de que “o edital é a lei interna da licitação”12;

12
MEIRELLES, Hely Lopes. Licitação e contrato administrativo. 15. ed. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 51.
130 Vicente de Abreu Amadei

(xv) princípio do julgamento objetivo: porque licitação não comunga


com arbitrariedade, ambiguidade, fraude, falácia e subjetivismo,
seu julgamento deve estar fundado e motivado em critérios
e fatores previamente estabelecidos no edital, nos contornos da
lei (por exemplo, arts. 33 a 39; 59 a 61) e adequados à modalidade
eleita para a licitação;
(xvi) princípio da segurança jurídica: fomentado pelas inovações da
LINDB, via Lei nº 13.655/2018, a nova lei de licitações e contratos
administrativos o reforça e o pulveriza, valorizando a estabilidade
das relações jurídicas e a clareza na fixidez das regras, em favor
do gestor público, dos empresários contratantes e dos cidadãos
em geral;
(xvii) princípio da razoabilidade: razoável é o inerente ao bom senso
e à congruência sistêmica e, em sede de aplicação do direito,
é a justiça inerente à concretude do caso (equidade), que se opera
pela prudência, em interpretação realista13, i. e., envolvendo
o universo do fato e do direito, avaliado com singularidade,
atento à ponderação de valores e às consequências decisórias,
bem como às exigências da moralidade e da juridicidade particu-
larizada, em modo objetivo, quer nos fins, quer nos meios do agir
humano: presente, pois, esse norte geral de principiologia jurídica
também no campo específico do processo licitatório e contratos
administrativos, iluminando as esferas administrativa, controladora
e judicial em que tal matéria estiver posta ao juízo decisório;
(xviii) princípio da competitividade: informa que a melhor interpretação
e aplicação da lei em foco é aquela que se volta a promover
e preservar a justa competição entre licitantes (concorrentes), e,
assim, tutela o conjunto de legítimos interesses que residem
na matéria, em via de mão dupla, pois, de um lado, busca,
em conjunto com a isonomia, favorecer igualmente todos os
licitantes, e, de outro, atender ao fim de selecionar a propos-
ta mais vantajosa para a Administração Pública (entenda-se,
a que der melhor retorno econômico, considerando também o
ciclo de vida do objeto licitado), tudo, em um eixo de respeito à

Sobre interpretação realista, cf. AMADEI, Vicente de Abreu. Interpretação realista (em comentário
13

ao art. 20 da LINDB). In: Cunha Filho, Alexandre Jorge Carneiro da; Issa, Rafael Hamze; Schiwind,
Rafael Wallbach (coord.). Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro – Anotada, vol. II.
São Paulo: Quartier Latin, 2019.
Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos: panorama,
princípios e principais modificações 131

legalidade e à moralidade que pune a fraude ou expediente que


frusta o caráter competitivo do processo licitatório;
(xix) princípio da proporcionalidade: no âmbito processual adminis-
trativo em geral, é aquele que impõe “[…] adequação entre
meios e fins, vedada a imposição de obrigações, restrições
e sanções em medida superior àquelas estritamente necessárias
ao atendimento do interesse público […]” (art. 2º, parágrafo único,
VI, da Lei nº 9.748/99) e essa noção geral parece igualmente
válida e suficiente para a compreensão desse princípio na esfera
especial do processo licitatório e da contratação administrativa;
(xx) princípio da celeridade: não se trata de impor aceleração,
rapidificação e muito menos atropelo de fases ou atos para encurtar
o tempo do processo, mas sim de evitar morosidade ou demora
excessiva no curso processual: assim, atende-se ao referido princípio
respeitando-se os prazos fixados em lei, abreviando-os se e,
quando possível e em havendo lacuna ou conflito, caminhar pelo
critério do menor prazo possível, sem comprometer a regularidade,
o contraditório (quando houver) e a defesa (se for o caso),
bem como a qualidade dos atos, das fases e dos processos que
envolvem a licitação e a contratação administrativa;
(xxi) princípio da economicidade: assim como se busca na vida
econômica colher o melhor resultado com menor desgaste,
a maior rentabilidade com o menor investimento, reduzindo
os custos (despesas) e maximizando os retornos (receita),
esse princípio aplicado às licitações e contratações administrativas
indica que aí também se deve otimizar os recursos para deles
extrair o máximo proveito com o menor custo, propiciando, pois,
economicidade na gestão, no processo, no resultado e na execução
de cada licitação e de cada contrato administrativo;
(xxii) princípio do desenvolvimento nacional sustentável: não se
olvidando que atualmente sustentabilidade é um conceito em
construção, com forte dispersão conotativa, nem que o curso do
projeto de lei que resultou na Lei nº 14.133/2021 substituiu o chamado
“princípio da sustentabilidade” pelo “princípio do desenvolvimento
sustentável”14, compreende-se esse princípio na necessidade de

“O art. 5º da proposição equivale ao art. 4º do PL nº 6.814, de 2017 (PLS nº 559, de 2013) e traz
14

alguns novos PRINCÍPIOS DA LICITAÇÃO. Pelo último, observar-se-iam na aplicação da lei almeja-
da os princípios da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da probidade administrativa,
132 Vicente de Abreu Amadei

amplitude de visão e elasticidade de leitura, pois destinado a agregar


na matéria a pluralidade de aspectos que ela encerra, especialmente
os econômicos, sociais e ambientais, em prol de um desenvolvimento
integral e equilibrado: aplicado à licitação e à contratação
administrativa, percebe-se que o desenvolvimento nacional
sustentável é princípio do processo licitatório, desde sua fase
preparatória, com o necessário planejamento estratégico, passando
como critério em vários pontos da licitação e da contratação,
a incluir a via da remuneração variável, no escopo de fomentar uma
logística de desenvolvimento econômico mais comprometida com
a redução das desigualdades sociais e com a preservação ambiental.

5. Principais modificações

Dentre as inúmeras inovações legais, parece oportuno, neste esforço


de visão panorâmica da lei nova, selecionar apenas algumas novidades,
indicando-se para estudo mais detalhado o trabalho feito pelo Centro
de Apoio ao Direito Público (CADIP) acerca desse ponto, em Caderno
Especial sob o título “Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos:
Lei nº 14.133/2021”, que se pode acessar, em sua 3ª edição, no site
do Tribunal de Justiça de São Paulo15.
Eis, então, apenas quatro inovações, ora eleitas como relevantes sob
o ângulo prático de interesse à jurisdição: (i) a primeira, considerando
a necessidade de definir com precisão o regime jurídico aplicável

da igualdade, da publicidade, da eficiência, da eficácia, da motivação, da vinculação ao instrumento


convocatório, do julgamento objetivo, da segurança jurídica, da razoabilidade, da competitividade,
da proporcionalidade, da celeridade, da economicidade e da sustentabilidade. Foram acrescentados
os princípios do interesse público, do planejamento, da transparência, da segregação de funções e foi
substituído o princípio da sustentabilidade pelo princípio do desenvolvimento nacional sustentável.
Os nomes são parecidos, mas os institutos são distintos. O desenvolvimento sustentável dos países é um
princípio reconhecido pela comunidade científica mundial, que se apoia em três pilares: econômico,
social e ambiental (Declaração de Joanesburgo). A Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável
contém o conjunto de 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS). O art. 3º da Lei nº 8.666,
de 21 de junho de 1993, já estatui que a licitação se destina a garantir, dentre outras coisas, a promoção
do desenvolvimento nacional sustentável. Nesse diapasão, cremos que a alteração promovida pela
Câmara foi benéfica para o texto” (Parecer 181, de 2020 – Plen-SF, do Senador Antônio Anastasia, sobre
o Projeto de Lei n° 4.253, de 2020 [Substitutivo da Câmara dos Deputados ao PL Senado nº 559, de 2013].
Disponível em: https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=8911988&ts=1652303961644&-
disposition=inline. Acesso em 3 out. 2022).
15
Disponível em: https://www.tjsp.jus.br/Download/SecaoDireitoPublico/Pdf/Cadip/Esp-CADIP-Nova-
Lei-Licitacoes.pdf. Acesso em: 3 out. 2022.
Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos: panorama,
princípios e principais modificações 133

em cada lide que se apresentar em juízo sobre a matéria; (ii) a segunda,


considerando o tema das contratações diretas, ante os inúmeros casos
desse porte que se apresentam em ações judiciais e que a lei nova busca
reduzir; (iii) o terceiro, pertinente aos mecanismos destinados à prevenção
de lides (por exemplo, publicidade e transparência reforçadas) e aos meios
alternativos de solução de conflitos (por exemplo, conciliação, mediação,
comitê de resolução de disputas e arbitragem), procurando, com isso, evitar
a judicialização; e (iv) o quarto, por fim, que toca aos pontos da respon-
sabilidade e das sanções pelos ilícitos que houver, ante a vocação própria
do Poder Judiciário de prestar a jurisdição onde houver patologia jurídica.
Inicialmente, para a boa prestação jurisdicional, é preciso bem definir,
quer para a licitação, quer para o contrato administrativo, qual o regime
jurídico aplicável, sublinhando-se que, no período de transição (dois anos –
art. 191 c.c. art. 193, II) a Administração pode optar licitar e contratar pela
Lei de Licitações e Contratos Administrativos (Lei nº 14.133/2021), pela Lei
de Licitações (Lei nº 8.666/93), pela Lei do Pregão (Lei nº 10.520/2002)
ou pela Lei do Regime Diferenciado de Contratações Públicas – RDC
(Lei nº 12.462/2011). E esse período de convivência, simples na aparência,
pode apresentar intrincadas questões de Direito Intertemporal –
que vão da esfera do processo licitatório (em suas fases e atos) à dos
contratos administrativos, considerados inclusive em sua governança
e execução, bem como no campo da configuração dos ilícitos e aplicação
das sanções –, a reclamar elevada prudência das autoridades decisórias.
Sob outro aspecto (não se olvidando que licitação é regra, e contra-
tação direta, exceção16), cautela com as contratações diretas, obser-
vando que, na esperança de flexibilizar contratações corriqueiras e de
pouca monta, evitar problemas e reduzir ações judiciais (especialmente
por improbidade), a lei nova alarga o campo de dispensa de licitação,
pela elevação dos valores para a contratação direta e pela ampliação das
hipóteses de dispensas (art. 75), com previsões detalhadas destinadas
a prevenir o risco de fracionamento indevido (art. 75, § 1º) e explícita

16
É a inteligência que parte da matriz constitucional (art. 37, XXI, CF) e dela, aliás, decorrem importantes
consequências: (i) não se pode criar hipótese de contratação direta sem licitação além daquelas expressas
em lei formal; (ii) há, assim, um rol taxativo das hipóteses de dispensa (não de inexigibilidade, pois,
nesse caso, não há propriamente exceção, mas falta ou carência de pressuposto da licitação – inviabili-
dade de competitividade – a indicar o rol exemplificativo dos casos de inexigibilidade); (iii) a dispensa
indevida de licitação configura prejuízo presumido (dano in re ipsa) e, havendo dolo, configura ato
de improbidade; (iv) lei estadual não pode ampliar hipótese de dispensa de licitação em dissonância
ao previsto na lei geral nacional (STF, ADI 4658, Min. Edson Fachim, j. 25/10/2019).
134 Vicente de Abreu Amadei

indicação de necessidade de processo autônomo, regrado minuciosa-


mente, quer na instrução (art. 72), quer nos requisitos legais necessários
em cada hipótese (por exemplo, art. 74, §§ 1º e 5º), quer na motivação
(ou justificação), quer na divulgação e transparência (por exemplo, Portal
Nacional de Contratações Públicas – PNCP – arts. 75, §4º e 94).
No foco preventivo e dos meios alternativos de solução de conflitos,
com intuito de evitar a judicialização, as inovações legais são importantes:
(i) de um lado, para prevenir, o legislador buscou elevar o grau
de exigências (especialmente para a Administração), sem aumentar
burocracias e formalidades (daí a importância das inovações
tecnológicas que se procurou agregar). Tais exigências podem
ser concentradas em três colunas:
(i.i) primeira, a do planejamento, enriquecida na lei nova não
só com o detalhamento da fase preparatória da licitação,
mas também com uma série de instrumentos de planejamento
(por exemplo plano anual de contratações, estudo técnico
preliminar, matriz de riscos, planejamento de compras);
(i.ii) segunda, a da governança, que passa pelo agudo intuito
de se ampliar o zelo com a integridade e a qualificação,
quer dos agentes públicos (por exemplo arts. 7º, II, 37, §1º),
quer das empresas e agentes privados (por exemplo
pré-qualificação, qualificação técnica profissional e opera-
cional, qualificação econômico-financeira, programa de
integridade), enfim, de todos que atuam nas fases do processo
de licitação, bem como de formalização, execução e fiscali-
zação do contrato administrativo;
(i.iii) terceira, a publicidade e a transparência reforçadas,
com destaque à criação do Portal Nacional de Contratações
Públicas (já instalado e em atividade17), a envolver e obrigar
todos os entes públicos, e que, para além da divulgação centra-
lizada, também auxilia em prevenção por suas diversas ferra-
mentas e funcionalidades18 (art. 174), bem como por outros
modos e instrumentos de irradiação das informações pertinentes

17
O Portal Nacional de Contratações Públicas (PNCP) é o sítio eletrônico oficial destinado à divulgação
centralizada e obrigatória dos atos exigidos pela Lei nº 14.133/2021, como condição indispensável para
a eficácia do contrato e de seus aditamentos (art. 94), com acesso no seguinte endereço eletrônico.
Disponível em: https://www.gov.br/pncp/pt-br. Acesso em: 3 out. 2022.
18
Por exemplo, padronização, painel para consulta de preços, sistema de planejamento e gerenciamento
de contratações, sistema eletrônico para a realização de sessões públicas.
Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos: panorama,
princípios e principais modificações 135

à licitação e aos contratos administrativos (por exemplo forma


eletrônica e remota das licitações, como regra geral; gravação
de sessão pública em licitação realizada excepcionalmente sob
a forma presencial; catálogo eletrônico de padronização de
compras, serviços e obras; sistema informatizado de acompa-
nhamento de obras, inclusive com recursos de imagem e vídeo).
(ii) de outro lado, para os meios alternativos de solução de contro-
vérsias, a inovação legal concentra-se no Capítulo XII do Título III,
que regra os contratos administrativos (arts. 151 a 154), buscando
abrir as alternativas especificadas e, assim, fomentar conciliação,
mediação, comitê de resolução de disputas e arbitragem,
sublinhando-se que:
(ii.i) esse campo alternativo é apenas para solução de contro-
vérsias relacionadas a direitos patrimoniais disponíveis
(por exemplo, restabelecimento do equilíbrio econômico-
-financeiro do contrato, inadimplemento de obrigações contra-
tuais por quaisquer das partes, cálculo de indenizações –
art. 151, parágrafo único);
(ii.ii) o consenso extraído por conciliação, mediação e comitê
de resolução de disputas pode resultar em extinção do
contrato, se houver interesse da Administração (art. 138, II),
ou aditamento, se houver comum acordo (art. 153);
(ii.iii) a solução por arbitragem ou pelo comitê de resolução
de disputas deve observar o princípio da publicidade, e o
processo de escolha de seus integrantes, os critérios isonô-
micos, técnicos e transparentes (arts. 152 e 154).
Por último, em relação à responsabilidade e às sanções pelos
ilícitos, é preciso, de saída, observar que a Lei nº 14.133/2021 procurou
maior severidade e explícita distinção entre o âmbito administrativo
e o penal, somados no foco da tutela da moralidade pública e do combate
à corrupção sistêmica: destaca um título (Título IV) para a esfera dos
ilícitos administrativos (arts. 155 a 173) e um artigo (art. 178) para
promover aguda inovação na Parte Especial do Código Penal, acrescendo-lhe
capítulo próprio acerca dos crimes em licitação e contratos administrativos
(Capítulo II-B), com 11 figuras ou tipos criminais19.

19
Arts. 337-E a 337-O do Código Penal: são, respectivamente, os crimes de “Contratação direta ilegal”,
“Frustração do caráter competitivo de licitação”, “Patrocínio de contratação indevida”, “Modificação
136 Vicente de Abreu Amadei

E, na esfera própria do Direito Administrativo, verifica-se que a nova lei


segrega cinco campos em que o ilícito pode ter consequências jurídicas:

(i) o saneador, com destaque ao art. 147, em seu comando pelo sanea-


mento20, quando possível, das irregularidades no procedimento
licitatório ou na execução contratual, no escopo de salvar o ato
irregular, convalidando o ato viciado;
(ii) o paralisador ou de suspensão da execução contratual, quando,
sem convalidação possível, a paralisação for de interesse público,
para futura opção pela continuidade do contrato, que, ademais,
pode até se operar via seguro-garantia, com previsão de conti-
nuidade da obra sob responsabilidade da seguradora21, não se
olvidando, ainda, que o art. 148, § 2º, também prevê a modulação
dos efeitos da nulidade contratual, se inevitável, em atenção
à continuidade da atividade administrativa;
(iii) o de invalidação (nulidade/anulação), quando o saneamento
(convalidação) for inviável, a qual se pode operar retroativamente
ou com modulação de efeitos22, dependente, pois, de análise prévia
do interesse público envolvido (art. 148), em diálogo com a avaliação
das consequências práticas da decisão (arts. 20 e 21 da LINDB);
(iv) o indenizatório, a se impor na frustração dos anteriores, especial-
mente por impossibilidade de retorno à situação fática anterior
(art. 148, § 1º), ou, ainda que a nulidade seja viável, ante o que
houver executado até a data em que for declarada ou tornada

ou pagamento irregular em contrato administrativo”, “Perturbação de processo licitatório”, “Violação


de sigilo em licitação”, “Afastamento de licitante”, “Fraude em licitação ou contrato”, “Contratação
inidônea”, “Impedimento indevido”, “Omissão grave de dado ou de informação por projetista”.
20
Conforme a verificação e avaliação dos aspectos indicados no mesmo art. 147: “I – impactos econô-
micos e financeiros decorrentes do atraso na fruição dos benefícios do objeto do contrato; II – riscos
sociais, ambientais e à segurança da população local decorrentes do atraso na fruição dos benefícios
do objeto do contrato; III – motivação social e ambiental do contrato; IV – custo da deterioração
ou da perda das parcelas executadas; V – despesa necessária à preservação das instalações e dos
serviços já executados; VI – despesa inerente à desmobilização e ao posterior retorno às atividades;
VII – medidas efetivamente adotadas pelo titular do órgão ou entidade para o saneamento dos indícios
de irregularidades apontados; VIII – custo total e estágio de execução física e financeira dos contratos,
dos convênios, das obras ou das parcelas envolvidas; IX – fechamento de postos de trabalho diretos
e indiretos em razão da paralisação; X – custo para realização de nova licitação ou celebração de novo
contrato; XI – custo de oportunidade do capital durante o período de paralisação”.
21
Arts. 6º, LIV, 96, II, 97, 99 e 102, todos da Lei 14.133/2021.
22
Em regra, os efeitos são ex tunc; por exceção, ex nunc. E, em todos os casos, sem prejuízo das sanções
punitivas que houver.
Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos: panorama,
princípios e principais modificações 137

eficaz, ou por outros prejuízos comprovados (art. 149), tudo,


sem afastar as eventuais penas cabíveis;
(iv) o censório/punitivo, observando-se, neste passo, que o legislador
opta pelo sistema descritivo de tipos de condutas infracionais
(art. 155) e de aplicação das sanções 23 por critérios
de individualização de pena na concretude infracional24, sempre
respeitado o contraditório e a ampla defesa (arts. 157 e 158),
com regime prescricional (art. 158, § 4º)25 e de reabilitação
(art. 163)26 especificados na lei.

Conclusão

O mergulho fundo na Lei nº 14.133/2021, extraindo, ponto a ponto,


as consequências de suas inovações, suas implicações jurídicas e forenses,
ressaltando seus aspectos positivos e seus aspectos negativos, em análise
vertical, criteriosa e crítica, sem dúvida é preciso fazer; contudo, esse não
foi o objetivo deste breve estudo de caráter meramente introdutório
e horizontal da nova lei.
Feita, pois, a apresentação panorâmica, estrutural e principiológica,
com destaque às principais modificações da Lei nº 14.133/2021 e especial
atenção às suas inovações que impactam ou se refletem na órbita jurisdi-
cional – tudo, no fim singelo de apresentar a Lei de Licitações e Contratos
Administrativos aos que nela iniciam seus estudos, em primeira abordagem
e olhar direcionado à prática forense –, fica a esperança de contribuir
com os leitores e o desejo de lhes ser útil no exercício profissional de suas
atividades jurídicas, bem como despertar-lhes o interesse e acender
a centelha para os trabalhos de elevada profundidade que hão de vir no
decorrer do tempo.

23
Art. 156: “I – advertência; II – multa; III – impedimento de licitar e contratar; IV – declaração
de inidoneidade para licitar ou contratar”.
24
Considerando, como prescreve o art. 156, § 1º: “I – a natureza e a gravidade da infração cometida;
II – as peculiaridades do caso concreto; III – as circunstâncias agravantes ou atenuantes; IV – os danos que
dela provierem para a Administração Pública; V – a implantação ou o aperfeiçoamento de programa
de integridade, conforme normas e orientações dos órgãos de controle”.
25
Em suma: prescrição em cinco anos da ciência da infração, com previsão de causas de interrupção
(pela instauração do processo de responsabilização) e suspensão (por acordo de leniência e por decisão
judicial que inviabilize a conclusão da apuração administrativa).
26
Inovação legal, com requisitos próprios para ser reabilitado, observando que não se exclui a punição
nem a obrigação de reparação integral do dano.
138 Vicente de Abreu Amadei

Bibliografia

AMADEI, Vicente de Abreu. Interpretação realista (em comentário ao


art. 20 da LINDB). In: Cunha Filho, Alexandre Jorge Carneiro da; Issa,
Rafael Hamze; Schiwind, Rafael Wallbach. (coord.). Lei de Introdução
às Normas do Direito Brasileiro – Anotada., vol. II. São Paulo: Quartier
Latin, 2019.
ANASTASIA, Antônio (Senador). Parecer 181, de 2020 – Plen-SF, sobre o Projeto
de Lei n° 4.253, de 2020 [Substitutivo da Câmara dos Deputados ao PL
Senado nº 559, de 2013]. Disponível em: https://legis.senado.leg.br/sdleg-
getter/documento?dm=8911988&ts=1652303961644&disposition=inline.
Acesso em: 3 out. 2022.
CADIP (Centro de Apoio ao Direito Público – Tribunal de Justiça
de São Paulo). Caderno Especial: “Nova Lei de Licitações e Contratos
Administrativos: Lei nº 14.133/2021”“. 3. ed. São Paulo: TJSP, 2022.
Disponível em: https://www.tjsp.jus.br/Download/SecaoDireitoPublico/
Pdf/Cadip/Esp-CADIP-Nova-Lei-Licitacoes.pdf. acesso em: 3 out. 2022.
DORNELLES, Francisco (Senador). Parecer do Relator da Comissão de Serviços
de Infraestrutura, ao Projeto de Lei do Senado (PLS) nº 559, de 2013,
da Comissão Temporária de Modernização da Lei de Licitações e Contratos.
e do Senado Federal. Disponível em: https://legis.senado.leg.br/sdleg-
getter/documento?dm=3801195&ts=1630413087372&disposition=inline.
Acesso em: 3 out. 2022.
MEDAUAR, Odete. Estatuto da Cidade. Medauar, Odete; Menezes de Almeida,
Fernando Dias (coord.). 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004.
MEIRELLES, Hely Lopes. Licitação e contrato administrativo. 15. ed.
São Paulo: Malheiros, 2010.
PNCP (Portal Nacional de Contratações Públicas – Governo Federal
do Brasil). Gerido pelo Comitê Gestor da Rede Nacional de Contratações
Públicas (CGRNCP). Disponível em: https://www.gov.br/pncp/pt-br.
Acesso em: 3 out. 2022.
931

LINDB no Direito Público e a nova Lei de


Licitações e Contratos Administrativos:
impactos e convergências

Irene Patrícia Nohara1


Advogada

Sumário: Introdução. 1. Novos contornos do controle a partir das


alterações promovidas pela LINDB. 2. Nova Lei de Licitações e conver-
gências com a LINDB: objetivo de inovação e retração da Administração
Pública do Medo. 3. Impacto da Nova Lei de Licitação e Contrato e limites
à declaração de nulidade do contrato. Conclusão. Bibliografia.

Introdução

O objetivo do presente escrito, confeccionado para a obra organizada


pelo grupo de estudos de magistrados da Escola Paulista da Magistratura,
de coordenação dos ilustres Antonio Carlos Villen e Alexandre Guerra,
é analisar os impactos e convergências entre a Lei de Introdução às
Normas no Direito Brasileiro (LINDB), com a redação da Lei nº 13.655/2021,
e a Nova Lei de Licitações e Contratos (Lei nº 13.655/2021). Agradeço
honrada ao convite e espero que a presente análise possa contribuir para
as importantes reflexões veiculadas pela obra no sentido de problematizar
os novos temas do Direito Público Contemporâneo.
A LINDB, conforme alteração feita pela Lei nº 13.655/2021, adveio
de um diagnóstico dos excessos do controle na seara do direito público.
Diante das múltiplas oportunidades de responsabilização imputadas ao
gestor público, também veiculadas por diversos órgãos de controle, desde
o Ministério Público, passando pelos Tribunais de Contas, o controle social
e o judicial da Administração, a Administração Pública no Brasil começou

Livre-Docente e Doutora em Direito do Estado pela Universidade de São Paulo (USP). Professora-
1

Pesquisadora do Programa de Pós-Graduação em Direito Político e Econômico da Universidade Presbiteriana


Mackenzie, onde leciona Direito Administrativo na Graduação. Advogada Parecerista e Árbitra em
Contratos Administrativos. Gestora do site direitoadm.com.br.
140 Irene Patrícia Nohara

a manifestar receios, o que resultou na identificação do fenômeno da


Administração Pública do Medo.
Mesmo em face das prementes necessidades a serem preenchidas por
meio da ação tempestiva dos agentes públicos, a Administração do Medo
ocasionou um “apagão de canetas”, isto é, uma paralisação das decisões,
diante do temor da responsabilização, tendo em vista a imprevisibilidade
do conteúdo das decisões oriundas dos mais distintos órgãos de controle.
Antes de decidir, não é raro que os agentes públicos queiram saber
das orientações dos Tribunais de Contas, desejem também dirigir consul-
tas e, ainda, prevenir medidas e questionamentos por parte do Ministério
Público, o que impacta na pouca iniciativa de inovação na gestão, justa-
mente pelo fato de que inovar e “sair da caixinha”, mesmo que diante
da pretensa discricionariedade administrativa, envolvem significativos
riscos de responsabilização.
Neste contexto, bons gestores começaram a ficar com medo de
decidir e futuramente serem responsabilizados por uma decisão relevante,
mas que se choca com alguma orientação cambiante por parte do controle.
Percebeu-se que aquele gestor de um pequeno município, com parcos
recursos humanos e materiais, quedava-se inerte às prementes ameaças
de responsabilização por sua ação.
Houve, então, no Direito Administrativo, uma “ressaca” dos
movimentos pautados exclusivamente no discurso de incremento do
controle como um fim em si, impulsionado por um desenfreado furor
punitivista, e uma nova leva de reflexões permeou o Direito Público
Contemporâneo com análises como o Direito Administrativo do Medo2,
as visões antirromânticas do controle3 e também iniciou-se um movimento
voltado a criticar o fenômeno do ativismo de contas4, situação em que
os Tribunais de Contas extrapolam suas missões constitucionais e legais
e acabam querendo funcionar antes como um contencioso administrativo,
isto é, como uma jurisdição adicional especializada na aplicação do

2
Cf. SANTOS, Rodrigo Valgas. Direito administrativo do medo. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020.
3
JORDÃO, Eduardo. Estudos Antirromânticos sobre Controle da Administração Pública. São Paulo:
Juspodivm, 2022.
4
CABRAL, Flávio Garcia. O ativismo de contas do Tribunal de Contas da União. Revista de Direito
Administrativo, Infraestrutura, Regulação e Compliance, São Paulo, v. 5, n. 16, p. 215-257, 2021.
LINDB no Direito Público e a nova Lei de Licitações e
Contratos Administrativos: impactos e convergências 141

direito público, em prejuízo à conformação conferida à separação de


poderes pela Constituição, e, ainda, intensificando o fenômeno da
Administração Pública do Medo.
No caso daquela autoridade pública que assina um contrato adminis-
trativo ou que pratica atos em licitações, há inúmeras oportunidades de
responsabilidades que se acrescem a um sistema que nem sempre considera
o bis in idem, acrescentando, então, responsabilidades em uma realidade
de sobreposição de distintos órgãos de controle, algo que a LINDB, a partir
da Lei nº 13.655/2018, procura tentar equacionar.
Percebe-se que inúmeros agentes públicos procuram se escusar
de assinar diretamente contratos administrativos, pois quem assina um
contrato administrativo pode ser submetido, entre outras, às responsa-
bilidades administrativa, civil, criminal e por improbidade. Para evitar
esses excessos, a LINDB procurou, conforme será visto, limitar as esferas
de responsabilidades (exceto na instância administrativo-disciplinar),
para as situações de dolo ou erro grosseiro5, conforme seu artigo 28,
com redação da Lei nº 13.655/2018.
Houve o estímulo para que haja decisões mais “consequenciais”,
que compulsem o chamado “primado da realidade”, ponderando conse-
quências jurídicas e administrativas das invalidações de atos, contratos,
ajuste, processo ou norma, com ênfase, ainda, na importância de uma
justiça negocial quando houver determinações que provoquem efeitos
onerosos ou injustos da ação do controle. Também é relevante considerar
que o decreto que regulamenta a LINDB trouxe desdobramentos para o
uso da modulação de efeitos decorrente da invalidação de ato.
Por conseguinte, haverá a exposição das determinações da LINDB,
a convergência com a Nova Lei de Licitações e Contratos, que estabelece,
no art. 5º, sua incidência expressa sobre as licitações e contratos regidos
pela Lei nº 14.133, sendo especificadas determinações da Nova Lei de
Licitações e Contratos que têm uma articulação com o espírito veiculado
pela LINDB, como contribuição para o diálogo entre estas duas impor-
tantes leis que regem grande parte das atividades administrativas dos
diversos Poderes.

5
Também para a improbidade, após Lei nº 14.230/2021, há apenas a situação dolosa, tendo sido afastada
a figura polêmica da improbidade culposa.
142 Irene Patrícia Nohara

1. Novos contornos do controle a partir das alterações promovidas


pela LINDB

Administração Pública do Medo é a situação em que, diante da


proliferação dos controles (social, administrativo, pelo Ministério Público,
legislativo, com auxílio do Tribunal de Contas e judicial), que dão ensejo a
inúmeras oportunidades de responsabilização, seja por processo disciplinar,
por improbidade administrativa, por ação de responsabilização ou por
ações penais, sem que haja um bis in idem, o gestor começa a ficar com
receio de manejar com segurança suas oportunidades de agir, em virtude
do risco de lhe ser imputada alguma responsabilidade, mesmo quando age
ante obstáculos e pensando no contexto de realidade a ser enfrentado.
Por conta desta situação, muitas pessoas conscientes passaram a negar
assumir cargos de gestão na Administração Pública e outras que assumem
por vezes se quedam paralisadas (pelo temor da responsabilização) em
algumas situações em que há necessidade de decidir, sobretudo em face
da imprevisibilidade do conteúdo das decisões oriundas dos mais variados
e desarticulados órgãos de controle.
Para combater essa situação de divergência interpretativa pelos
órgãos de controle, a Reforma da Improbidade, por exemplo, veiculada
pela Lei nº 14.230/2021, estabeleceu não configurar improbidade adminis-
trativa a ação ou omissão decorrente de divergência interpretativa
da lei, baseada em jurisprudência, ainda que não pacificada, mesmo
que não venha a ser prevalecente nas decisões dos órgãos de controle
ou do Judiciário.
No caso das licitações, existe uma disputa sobre qual Tribunal de
Contas será determinante para fixar as orientações interpretativas.
Nesta perspectiva, nota-se o conteúdo da controvertida Súmula 222,
que determina que:

as decisões do Tribunal de Contas da União, relativas


à aplicação de normas gerais de licitação, sobre
as quais cabe privativamente à União legislar,
devem ser acatadas pelos administradores dos
Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal
e dos Municípios.

Trata-se de conteúdo polêmico, pois, no fundo, haveria de se respeitar


a competência de cada ente federativo para interpretar a lei de licitações
e contratos, sendo da União apenas a atribuição para editar normas gerais
LINDB no Direito Público e a nova Lei de Licitações e
Contratos Administrativos: impactos e convergências 143

sobre licitações e contratos advindas do art. 22, XXVII, da Constituição,


deixando aos entes a possibilidade de viabilizarem suas interpretações.
Ainda, a lei acabou seguindo uma tradição maximalista, sendo em muitos
pontos bastante específica, o que amplia forçosamente a competência
do TCU, que se pretende um órgão de sobreposição aos demais Tribunais
de Contas na interpretação da matéria.
Contrariamente ao movimento de apropriação por parte do Tribunal
de Contas da União por uma espécie de “soberania” na interpretação da
nova lei, houve o providencial veto ao art. 172 do projeto da nova lei,
quando aprovado, o qual pretendia estabelecer o seguinte conteúdo:
“os órgãos de controle deverão orientar-se pelos enunciados das súmulas
do Tribunal de Contas da União relativos à aplicação desta lei, de modo a
garantir uniformidade de entendimentos e propiciar segurança jurídica”,
tendo sido ainda pretendido que a decisão que não acompanhasse tal
orientação apresentasse motivos devidamente justificados.
Apesar dessa tentativa de criar um sistema que conferiria uma espécie
de vinculação aos demais entes das súmulas enunciadas pelo Tribunal de
Contas da União, o veto com razão determinou que: “viola o princípio da
separação de poderes (art. 2º, CF), bem como viola o princípio do pacto
federativo (art. 1º, CF) e a autonomia dos Estados, Distrito Federal e
Municípios (art. 18, CF)”6.
Evidente que não dá para tentar determinar que o Tribunal de Contas
da União tenha prioridade em suas interpretações sobre licitações em
relação aos demais Tribunais de Contas de outras esferas, por conta do
princípio federativo.
Aliás, sem dúvida que o ideal seria uma concertação na interpretação
dada ao tema, para evitar que haja tantas interpretações distintas,
mas essa concertação não seria pela prevalência do Tribunal de Contas da
União em detrimento da competência interpretativa dos demais Tribunais
de Contas, mas, sim, a partir de um diálogo e uma troca de experiências
que pudesse proveitosamente resultar na harmonização. Ademais, também
é importante que se saiba que a realidade de cada ente federativo, diante
de seu tamanho e das condições materiais e de recursos humanos, é díspar,
não se podendo exigir da mesma forma o cumprimento dos papéis, em face
dos obstáculos vivenciados de forma distinta.

NOHARA, Irene Patrícia Diom. Licitação e contratos administrativos. In. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella
6

(coord.). Tratado de Direito Administrativo. 3. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2022. v. 6, p. 133.
144 Irene Patrícia Nohara

Logo, a LINDB trouxe uma necessidade de interpretação que compulsa


o chamado “primado da realidade”, isto é, a aplicação do texto norma-
tivo que considere as dificuldades reais enfrentadas pelo gestor e das
exigências das políticas públicas a seu cargo, sendo averiguadas, quando
da regularização da situação, as circunstâncias práticas que houverem
imposto, limitado ou condicionado a ação do agente, em função das
peculiaridades do contexto vivenciado.
Outrossim, também assevera o art. 24 da LINDB que a revisão,
nas esferas administrativa, controladora ou judicial, quanto à validade
de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa cuja produção
já se houver completado levará em conta as orientações gerais da época,
sendo vedado que, com base em mudança posterior de orientação geral,
se declarem inválidas situações plenamente constituídas.
O consequencialismo, por sua vez, procura evitar decisões injus-
tas e desequilibradas, estimulando a que haja uma ponderação das
consequências práticas da decisão, exigindo-se que a motivação de
uma decisão de invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou
norma administrativa indique, de modo expresso, as suas consequências
jurídicas e administrativas.
Assim, estabelece o art. 21 da LINDB que:

a decisão que, nas esferas administrativa,


controladora ou judicial, decretar invalidação
de ato, contrato, ajuste, processo ou norma
administrativa deverá indicar de modo expresso
suas consequências jurídicas e administrativas.
(BRASIL, 2018)

O parágrafo único do art. 21 acrescenta, ainda, que a decisão a que


se refere o caput,

deverá, quando for o caso, indicar as condições para


que a regularização ocorra de modo proporcional
e equânime e sem prejuízo aos interesses gerais,
não se podendo impor aos sujeitos atingidos ônus ou
perdas que, em função das peculiaridades do caso,
sejam anormais ou excessivos. (BRASIL, 2018)
LINDB no Direito Público e a nova Lei de Licitações e
Contratos Administrativos: impactos e convergências 145

Para auxiliar na interpretação do dispositivo, há o Enunciado 7,


proveniente do encontro promovido pelo IBDA em Tiradentes, sobre a
LINDB e seus impactos no Direito Administrativo, com o seguinte conteúdo:

Na expressão “regularização” constante no art. 21


da LINDB estão incluídos os deveres de convalidar,
converter ou modular efeitos de atos administrativos
eivados de vícios sempre que a invalidação puder
causar maiores prejuízos ao interesse público do que
a manutenção dos efeitos dos atos (saneamento).
As medidas de convalidação, conversão, modulação de
efeitos e saneamento são prioritárias à invalidação7.

A modulação de efeitos é desdobrada de forma mais particularizada


nos parágrafos terceiro e quarto do art. 4º do Decreto nº 9.830/2019,
que regulamenta a LINDB, o qual estabelece que, quando cabível, a decisão
indicará, na modulação de seus efeitos, as condições para que a regularização
ocorra de forma proporcional e equânime e sem prejuízos aos interesses
gerais, sendo que o § 4º dispõe que, na declaração de invalidade de atos,
contratos, ajustes, processos ou normas administrativas, o decisor poderá,
consideradas as consequências jurídicas e administrativas, restringir os
efeitos da declaração ou decidir que sua eficácia incidirá em momento
posteriormente definido, para gerar uma situação mais equilibrada e que
provoque menos prejuízos8.
Vamos supor que uma invalidação com efeitos retroativos fulmine
o processo licitatório e impeça a continuidade da execução contratual,
provocando danos graves ao atendimento do interesse público veiculado
pelo contrato. Por atender a necessidades prementes e haver de ocorrer
uma nova licitação, o que leva tempo, o decisor do controle poderá, então,
calibrar os efeitos para evitar ônus ou perdas excessivos que prejudiquem
o interesse coletivo.
É possível, conforme será visto, a convalidação, a depender da
circunstância e seus efeitos, e, ainda, haver modulação de efeitos para
a invalidação ser convertida em perdas e danos, conforme determina o

7
MOTTA, Fabrício; NOHARA, Irene Patrícia. LINDB no direito público. São Paulo: Thomson Reuters Brasil,
2019. p. 120.
8
MOTTA, Fabrício; NOHARA, Irene Patrícia. LINDB no direito público. São Paulo: Thomson Reuters Brasil,
2019. p. 53.
146 Irene Patrícia Nohara

parágrafo único do art. 147 da Nova Lei de Licitações. Ademais, há a possi-


bilidade de calcular-se o momento dos efeitos até que haja uma regular
licitação e contrato, com incidência da eficácia pro futuro, que incide
em momento posteriormente definido, para melhor atender ao interesse
coletivo que ficaria desassistido a partir da suspensão contratual.
Deve haver uma propensão ao saneamento dos atos, dentro da
ênfase de uma postura mais orientadora e preventiva do controle do que
simplesmente repressiva. Trata-se de postura refletida no art. 13, § 1º,
do Decreto nº 9.830/2019 (que regulamenta a LINDB), segundo o qual:
“a atuação dos órgãos de controle privilegiará ações de prevenção”.
Privilegiar as ações de prevenção é evitar a atitude apelidada de
“engenheiro de obra pronta”, a situação na qual o controle a posteriori
foca-se exclusivamente em apontar erros e falhas, sem procurar compreen-
der as dificuldades práticas e os obstáculos enfrentados pelo gestor no
processo, sobretudo quando não há orientações claras e compreensão dos
gargalos existentes em cada situação concreta, evitando-se que o controle
se limite a situações exclusivamente de sancionamento.
Como uma tentativa de aprimoramento do controle, determina o
art. 30 da LINDB que as autoridades públicas devem atuar para aumen-
tar a segurança jurídica na aplicação das normas, inclusive por meio
de regulamentos, súmulas administrativas e respostas a consultas,
tendo tais instrumentos, conforme o parágrafo único deste dispositivo,
caráter vinculante em relação ao órgão ou entidade a que se destinam,
até ulterior revisão.
É reforçada a necessidade de individualização da sanção pelo § 2º do
art. 22 da LINDB, o qual determina que, na aplicação das sanções, serão
consideradas a natureza e a gravidade da infração cometida, os danos que
dela provierem para a administração pública, as circunstâncias agravantes
ou atenuantes e os antecedentes do agente.
Como relevante previsão que vem a melhorar esse excesso de sancio-
namento, estabelece o § 3º do art. 22 que: “as sanções aplicadas ao
agente serão levadas em conta na dosimetria das demais sanções de
mesma natureza e relativas ao mesmo fato”, o que gera um teto para
que não haja sobreposição de sanções de mesma natureza, mesmo diante
da problemática incomunicabilidade de instâncias que acarreta uma
enxurrada de condenações com potencial de recair sobre o mesmo fato.
LINDB no Direito Público e a nova Lei de Licitações e
Contratos Administrativos: impactos e convergências 147

2. Nova Lei de Licitações e convergências com a LINDB: objetivo


de inovação e retração da Administração Pública do Medo

A Nova Lei de Licitações adveio de um movimento para modernizar


e compilar os diplomas normativos gerais sobre o tema de licitações e
contratos. Assim, ela consolida em um único diploma: a Lei Geral de
Licitações e Contratos (anterior Lei nº 8.666/1993), a Lei do Pregão
(Lei nº 10.520/2002) e a Lei do Regime Diferenciado de Contratação
(Lei nº 12.462/2011).
Ela promove muitas mudanças na matéria, a exemplo do aprofunda-
mento da disciplina do planejamento das licitações, trazendo a inversão
de fases, do incremento das exigências de governança e de compliance
nas contratações públicas, com obrigatoriedade do programa de integri-
dade em contratações de grande vulto, da previsão de passos para a
contratação digital, com a criação do Portal Nacional de Contratações
Públicas (PNCP), da criação de uma sistemática de cláusula de retomada
em seguro-garantia, com a possibilidade de a seguradora assumir a execução
da obra para evitar situações de obras inacabadas, da disciplina do creden-
ciamento e do estabelecimento de uma nova modalidade de licitação
denominada de diálogo competitivo9.
Do ponto de vista dos objetivos, houve o acréscimo da inovação ao
lado do objetivo de promoção do desenvolvimento nacional sustentável.
Oficialmente, desde 2010, quando houve a inserção do objetivo de
promoção do desenvolvimento nacional sustentável entre os objeti-
vos da licitação então contidos no art. 3º da Lei nº 8.666/93, a licita-
ção transcendeu sua vocação meramente contratual, passando a ser
tida também como instrumento metacontratual ou política pública de
promoção do desenvolvimento.
Atualmente, com a Nova Lei de Licitações e Contratos, houve
a ampliação dos objetivos da licitação para, conforme o art. 11 da
Lei nº 14.133/2021, assegurar a seleção da proposta apta a gerar o resultado
de contratação mais vantajoso para a Administração Pública, inclusive no
que se refere ao ciclo de vida do objeto; evitar contratações com sobre-
preço ou com preços manifestamente inexequíveis e superfaturamento

NOHARA, Irene Patrícia Diom. Nova Lei de Licitações e Contratos. São Paulo: Thomson Reuters Brasil,
9

2021. p. 13-15.
148 Irene Patrícia Nohara

na execução dos contratos; e incentivar a inovação e o desenvolvimento


nacional sustentável.
Dentro da perspectiva de atuação estatal por indução na economia
é possível e recomendável direcionar o processo licitatório para que haja
o alcance do objetivo metacontratual de promoção do desenvolvimento
nacional sustentável, bem como para que o uso da licitação provoque
inovação. Como o Estado possui um enorme poder de compra pública,
da ordem de 10% a 15% do PIB nacional, então, nada mais relevante do
que estimular a que o Estado faça modelagens contratuais que estimulem
a criação de um mercado fornecedor que proporcione inovação.
Inovação é um imperativo da dinamicidade do capitalismo contem-
porâneo que atinge amplos setores de atividades. É pela inovação que
são criados produtos e processos, o que tem relação com o desenvolvi-
mento científico e tecnológico, sendo exigido das organizações, segundo
Schumpeter (1977), que inovem continuamente. É essencial para a sobre-
vivência das organizações que se adaptem às novas demandas, criando
novos produtos, serviços e processos.
Todavia, como atualmente há muita plasticidade na prestação de
serviços e produtos, nem sempre o Poder Público tem conhecimento do
estado da arte de tudo o que existe no mercado em termos de soluções
em prestações de serviços ou mesmo da gama de produtos e técnicas
possíveis para uma contratação mais customizada; assim, a ideia da
nova modalidade do diálogo competitivo é fugir do padrão imposto pelas
modalidades mais rígidas nas licitações com o objetivo de possibilitar que
a Administração Pública estruture uma contratação amoldada a solucionar
especificamente um problema seu.
Nesta perspectiva, há tanto a previsão do Procedimento de
Manifestação de Interesse (PMI), o qual foi previsto na lei como procedi-
mento auxiliar, pois busca provocar o mercado para compartilhar de sua
expertise para que o Poder Público, a partir desse compartilhamento de
informações, tenha condições de engendrar contratações mais ajustadas
às suas necessidades, como também do diálogo competitivo, sendo este,
por sua vez, uma nova modalidade de licitação.
Outra possibilidade, que advém da necessidade de inovação nas
licitações, é a contratação integrada, em que o projetamento é delegado à
empresa que irá executar a licitação, algo que adveio do RDC, foi acoplado
à Lei das Estatais, a qual também previu a contratação semi-integrada,
LINDB no Direito Público e a nova Lei de Licitações e
Contratos Administrativos: impactos e convergências 149

e que era inconcebível na sistemática da anterior Lei nº 8.666/1993,


em que quem projetava não participava da execução do contrato.
Note-se que, para que a Administração Pública possa utilizar de todo
o potencial de inovação previsto na Nova Lei de Licitações e Contratos,
há a necessidade de se estimular uma postura responsiva por parte dos
agentes públicos para que pensem “fora da caixa”, que tenham essa
vontade de buscar produtos e serviços de fato inovadores.
Neste sentido, não se deve ser excessivamente punitivo com a possi-
bilidade de erro nas escolhas, pois só somos capazes de nos aperfeiçoar
em uma arte, seja ela a arte de comprar, se nos permitirmos, por vezes,
arriscar, tomar decisões que não são sempre as mesmas, dado que inovar
significa efetivamente sair da zona daquilo que é feito sempre da mesma
maneira, para buscar, com criatividade, novas soluções para as necessi-
dades de contratação da Administração, sem tanto temor de errar.
Assim, para diminuir essa paralisia do agente público provocada
pelo medo da responsabilização diante do possível erro, o art. 28 da
LINDB determinou que o agente público responderá pessoalmente por
suas decisões ou opiniões técnicas em caso de dolo ou erro grosseiro.
Há doravante uma necessidade de uma culpa grave para imputação de
responsabilidade ao agente público por suas decisões.
O art. 12, § 1º, do Decreto nº 9.830/2019, que regulamenta a LINDB,
esclarece que se considera erro grosseiro aquele manifesto, evidente e
inescusável praticado com culpa grave, caracterizado por ação ou omissão
com elevado grau de negligência, imprudência ou imperícia. Esta limita-
ção da responsabilidade é medida que contribui para a diminuição do
fenômeno da Administração Pública do Medo, pois o agente poderá inovar
com mais desenvoltura ao saber que só lhe será imputada uma eventual
responsabilidade por medida se for caracterizado um erro grosseiro ou
uma culpa grave.

3. Impacto da Nova Lei de Licitação e Contrato e limites à declaração


de nulidade do contrato

Convergência importante entre a LINDB, que, conforme exposto,


privilegia o saneamento ou a convalidação de atos eivados de vícios
em vez da sua invalidação, dadas as consequências gravosas em termos
sociais da anulação provocada pelo controle é o conteúdo do art. 147 da
Lei nº 14.133/2021. De acordo com este dispositivo, mesmo diante da
150 Irene Patrícia Nohara

constatação da irregularidade do procedimento licitatório ou na execução


contratual, a decisão sobre a suspensão da execução ou sobre a declaração
de nulidade do contrato somente será adotada na hipótese em que se
revelar medida de interesse público, com avaliação de aspectos contidos
em 11 incisos desdobrados no art. 147 da lei.
Logo, não basta para a invalidação do contrato ou sua suspensão
que haja a constatação de irregularidade, mas há um condicionamento
da declaração de nulidade ou da execução do contrato que se trate de
medida de interesse público.
Os aspectos avaliados para tal medida são: impactos econômicos
e financeiros decorrentes do atraso na fruição dos benefícios do objeto
do contrato; riscos sociais, ambientais e à segurança da população local
decorrentes do atraso na fruição dos benefícios do objeto do contrato;
motivação social e ambiental do contrato; custo da deterioração ou da
perda das parcelas executadas; despesa necessária à preservação das
instalações e dos serviços já executados; despesa inerente à desmobilização
e ao posterior retorno às atividades; medidas efetivamente adotadas pelo
titular do órgão ou entidade para o saneamento dos indícios de irregulari-
dades apontados; custo total e estágio de execução física e financeira dos
contratos, dos convênios, das obras ou das parcelas envolvidas; fechamento
de postos de trabalho diretos e indiretos em razão da paralisação; custo
para realização de nova licitação ou celebração de novo contrato; e custo
de oportunidade do capital durante o período de paralisação.
Assim, caso a paralisação ou anulação não se revele medida de
interesse público, o poder público deverá optar pela continuidade do
contrato e pela solução da irregularidade por meio de indenização por
perdas e danos, sem prejuízo da apuração de responsabilidade e da aplica-
ção de penalidades cabíveis. Em vez de invalidar e paralisar a execução
contratual, pode-se exigir perdas e danos, apurando responsabilidades e
penalidades, mas que não inviabilizem a execução de um contrato que
traz benefícios sociais, econômicos e ambientais.
Há desperdícios diretos e indiretos derivados da paralisação de um
contrato ou mesmo de uma obra pública. Segundo estimativas do Tribunal
de Contas da União, trazidas no Acórdão 1.079, de dez bilhões de reais
aplicados em obras paralisadas, sem que tenham sido gerados benefícios,
as consequências econômicas e sociais são multiplicadas por mais de dez,
chegando, portanto, à cifra de 130 bilhões de reais que deixam de ser
gerados na economia e na sociedade, devido à paralisação direta e indireta
LINDB no Direito Público e a nova Lei de Licitações e
Contratos Administrativos: impactos e convergências 151

de empregos e serviços e, portanto, à interrupção do desenvolvimento


de inúmeras atividades.
Por conseguinte, tendo em vista essa realidade, a Nova Lei de
Licitação e Contratos apresenta a convergência consequencial com a
LINDB, ao condicionar a declaração de nulidade de um contrato à análise de
seus efeitos e consequências econômicos, financeiros, sociais, ambientais
provocados pela paralisação ou invalidação de um contrato.

Conclusão

As convergências entre a LINDB e a Nova Lei de Licitações e Contratos


são juridicamente estabelecidas, sendo de se ressaltar que o impacto
está legitimado expressamente no art. 5º da Lei nº 14.133/2021,
que determina que, na aplicação da lei, serão observados os princípios
positivados, “[…] assim como as disposições do Decreto-Lei nº 4.657,
de 4 de setembro de 1942 (Lei de Introdução às Normas do Direito
Brasileiro).” (BRASIL, 2021). Logo, as regras voltadas à segurança jurídica
e à eficiência na interpretação do direito público são expressamente
aplicadas à realidade das licitações e contratos, conforme disciplina
constante da Nova Lei de Licitações e Contratos (Lei nº 14.133/2021).
Esse diálogo entre as duas leis busca arrefecer, também no cenário
dos atos e processos licitatórios e dos contratos administrativos, o fenômeno
da Administração Pública do Medo, dado receio das autoridades da respon-
sabilização no manejo de suas competências na licitação e na assinatura
dos contratos, assim como o consequente “apagão de canetas”, a indese-
jável paralisia provocada pelo temor de responsabilização em função,
sobretudo, das orientações desarmônicas e cambiantes emanadas dos
múltiplos órgãos de controle.
Assim, ocorreu a restrição da responsabilidade da medida tomada
pelos agentes para os casos de dolo ou erro grosseiro, conforme deter-
mina o art. 28 da LINDB, o que se articula com a necessidade de se criar
uma ambiência mais propícia à inovação, sendo esse um dos objetivos
novos acrescidos ao rol presente no art. 11 da Nova Lei de Licitações,
que estimula as modelagens licitatórias e contratuais a buscar produtos
e serviços inovadores.
Conforme visto, o Tribunal de Contas da União tentou se estabelecer
como um órgão de sobreposição na fixação de orientações para interpreta-
ção da lei de licitações e contratos, mas houve um veto a essa tentativa,
152 Irene Patrícia Nohara

sendo ainda questionável o alcance da Súmula 222 do TCU, tendo em vista


o respeito ao princípio federativo.
Ademais, a LINDB, após alteração provocada pela Lei nº 13.655/2018,
trouxe um enfoque mais consequencialista dos efeitos das decisões de
invalidação de atos e contratos, sendo preferível o saneamento ou a
modulação de efeitos, o que desloca o eixo da interpretação do direito
público para a consideração das dificuldades práticas existentes, de acordo
com o “primado da realidade”, exigindo uma atuação mais preventiva do
que repressiva por parte dos órgãos de controle.
Por fim, outra convergência importante entre o espírito da LINDB e a
Nova Lei de Licitações e Contratos foi a determinação contida no art. 147
da Lei nº 14.133/2021, no sentido de que, mesmo diante da irregularidade
no procedimento licitatório ou na execução contratual, a suspensão ou
invalidação só será adotada após uma análise de impacto, com avaliação
de aspectos financeiros, sociais, ambientais, como o fechamento de
postos de trabalho, os custos de realização de uma nova licitação, entre
outros, para checar, a partir das consequências aplicadas naquela reali-
dade contratual, se há mesmo interesse público envolvido na ativação de
todos os efeitos derivados da invalidação do contrato.
Ainda estamos diante de leis recentes que deverão ser interpretadas
pelos órgãos de controle, a partir do seu uso entre aqueles que atuam
no Sistema de Justiça ou mesmo nos Tribunais de Contas, estimulando
que a interpretação das licitações e contratos seja feita de forma mais
equilibrada e consequencial.

Bibliografia

BRASIL. Lei nº 13.655, de 25 de abril de 2018. Inclui no Decreto-Lei


nº 4.657, de 4 de setembro de 1942 (Lei de Introdução às Normas do Direito
Brasileiro), disposições sobre segurança jurídica e eficiência na criação e
na aplicação do direito público. Brasília, DF: Congresso Nacional, 2018.
BRASIL. Lei nº 14.133, de 1º de abril de 2021. Lei de Licitações e Contratos
Administrativos. Brasília, DF: Congresso Nacional, 2021.
CABRAL, Flávio Garcia. O ativismo de contas do Tribunal de Contas da
União. Revista de Direito Administrativo, Infraestrutura, Regulação e
Compliance. São Paulo, v. 5, n. 16, p. 215-257, 2021.
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Contratos Administrativos: impactos e convergências 153

JORDÃO, Eduardo. Estudos Antirromânticos sobre Controle da Administração


Pública. São Paulo: Juspodivm, 2022.
MOTTA, Fabrício; NOHARA, Irene Patrícia. LINDB no Direito Público.
São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019.
NOHARA, Irene Patrícia. Licitação e Contratos Administrativos. In: DI PIETRO,
Maria Sylvia Zanella. (coord.). Tratado de Direito Administrativo – vol. 6.
3. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2022.
NOHARA, Irene Patrícia. Nova Lei de Licitações e Contratos. São Paulo:
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SANTOS, Rodrigo Valgas. Direito administrativo do medo. São Paulo:
Thomson Reuters Brasil, 2020.
SCHUMPETER, Joseph. A teoria do desenvolvimento econômico. São Paulo:
Nova Cultural, 1997.
551

Teoria geral do contrato aplicada aos


contratos administrativos: ensaio sobre
a função pública e a autonomia privada
na Lei nº 14.133/21

Alexandre de Mello Guerra1


Juiz de Direito no estado de São Paulo

Marcelo Benacchio2
Juiz de Direito no estado de São Paulo

O contrato […] torna-se um instrumento de


cooperação entre as pessoas, que, no âmbito do
sinalagma e da comutatividade, há que preservar a
igualdade dos sacrifícios, que, se não decorrer da
colaboração conjunta dos que participam da avença,
será por força da lei que busca a concretização dos
princípios fundamentais.
Renan Lotufo.

O contrato é a veste jurídico-formal de operações


econômicas.
Enzo Roppo.

1
Mestre e Doutor em Direito Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Estágio
pós-doutoral em curso na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). Pós-graduado
em Direito Público pela Escola Paulista da Magistratura. Coordenador Regional e Professor da Escola
Paulista da Magistratura e Professor Titular de Direito Civil da Faculdade de Direito de Sorocaba,
instituição na qual exerce a função de Conselheiro. Professor convidado nos cursos de pós-graduação
da EPM e PUC-SP (COGEAE). Membro fundador do Instituto de Direito Privado, do Instituto Brasileiro
de Estudos de Responsabilidade Civil e do Instituto Brasileiro de Direito Contratual. Associado ao
Instituto de Direito Administrativo Sancionador.
2
Mestre e Doutor pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Professor do Mestrado e
Doutorado em Direito pela UNINOVE/SP. Professor Titular de Direito Civil na Faculdade de Direito de
São Bernardo do Campo.
156 Alexandre de Mello Guerra e Marcelo Benacchio

Sumário: Introdução. 1. Evolução e perfil contemporâneo da teoria


geral do contrato. 2. Aplicação da teoria geral do contrato aos contratos
administrativos. 3. Autonomia privada vs. função pública no ambiente dos
contatos administrativos. Proposições conclusivas. Bibliografia.

Introdução

O ensaio que ora vem a público tem como gênese um artigo feito há
dez anos, no já distante ano de 20123. Naquele momento, sob as luzes
da então vigente Lei de licitações (Lei nº 8.666/93), o nosso propósito
foi examinar em que medida os princípios que regem a teoria geral do
contrato (de Direito Privado) poderiam incidir sobre o regime jurídico de
Direito Administrativo. Dez anos depois, muita coisa mudou, nos contratos,
nos juristas e no Brasil. A Lei nº 8.666/93 cedeu vigência, em larga medida,
à nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos, Lei nº 14.133,
de 1º de abril de 2021.
Em 2021, sobreveio um novo sistema legal de contratações públicas,
iluminado por racionalidade diversa daquela que inspirava a revogada lei.
A nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos (doravante denomina-
da apenas NLLCA) busca realizar, à partida, a eficiência e a celeridade nas
contratações públicas. Tem em mira um ambiente eletrônico de relações
jurídicas, muito diverso daquele que se via no início da década de 1990.
Remanesce, contudo, a mesma questão fundamental: A NLLCA (Lei
nº 14.133/21) admite os influxos da Teoria geral do contrato? O concei-
to de função pública (pedra angular do Direito Administrativo) repele,
em toda medida, o conceito de autonomia privada (pedra angular do
Direito Privado)?
É o desafio que nos propusemos a enfrentar. Em primeiro lugar, será
examinada a evolução e o perfil contemporâneo da Teoria geral do contrato.
Na sequência, nossa atenção será voltada à aplicação da Teoria geral do
contrato aos contratos administrativos. A seguir, o foco da investigação
será a possibilidade de diálogo entre a autonomia privada (núcleo do
Direito fundamental da liberdade nas relações de Direito Privado) e função

GUERRA, Alexandre; Benacchio, Marcelo. Teoria geral dos contratos aplicada aos contratos
3

administrativos. In: MARINELA, Fernanda; BOLZAN, Fabrício (org.). Leituras complementares de


Direito Administrativo. Salvador: Juspodivm, 2012, p. 17-44.
Teoria geral do contrato aplicada aos contratos administrativos:
ensaio sobre a função pública e a autonomia privada na Lei nº 14.133/21 157

pública (espinha dorsal do regime jurídico de Direito Administrativo).


Por fim, o interesse será apreciar os contornos da boa-fé, lealdade, tutela
da confiança e vedação ao exercício disfuncional de posições jurídicas
nos contratos administrativos.

1. Evolução e contornos atuais da teoria geral do contrato

Houve uma Teoria geral do contrato no Direito Romano? Essa indagação


inicial nos levaria a um infindável número de questões, o que desbordaria os
lindes da investigação proposta. Para os fins aos quais se destina este estudo,
é possível afirmar que os romanos, como regra, não se preocuparam em
estruturar, em termos dogmático-científicos, uma Teoria geral do contrato.
Os ideais de cientificidade e sistematização não eram aspirações centrais
em Roma. Os romanos eram pragmáticos e, como tais, eram voltados a
encontrar soluções adequadas para os conflitos da vida que a realidade lhes
apresentava. Ex facto oritus jus, diziam eles, revelando sua preocupação
maior com a centralidade dos fatos4.
Na Idade Média, houve a evolução do conceito científico do contrato,
com forte influência do Cristianismo. A compreensão atual do contrato
somente veio a surgir por influência do pensamento liberal, que marcou
a Revolução Americana (1776) e a Revolução Francesa (1789). A partir
delas, passa a reinar o ideário de liberdade, servindo a vontade como
fundamento ético e racional do contrato e da vida em sociedade.
A compreensão libertária (voluntarista) do contrato foi claramen-
te incluída no Código Civil francês de 1804 (art. 1.101)5, atribuindo-lhe
força de lei6. Essa visão foi transferida para os Códigos Civis ocidentais
(a exemplo do Código Civil do Brasil de 1.916). O perfil individualista do
contrato se amoldara, ideologicamente, ao próprio capitalismo em expansão,
assim permitindo a organização jurídica de uma futura produção em escala,
pela formulação dos vários contratos. A propriedade e o contrato redundam

4
A despeito de realmente haver alguns contratos típicos em Roma (compra e venda, locação, sociedade
etc.), o próprio termo contratus abarcava espécies nas quais a vinculação jurídica obrigacional não
decorria da manifestação convergente de vontades (em oposição ao conceito moderno de contrato,
que tem no elemento consenso o seu núcleo caracterizador).
5
Code Napoléon, art. 1.101. “Le contrat est un accord de volontés entre deux ou plusieurs personnes
destiné à créer, modifier, transmettre ou éteindre des obligations”.
6
Code Napoléon, art. 1.103. “Les contrats légalement formés tiennent lieu de loi à ceux qui les ont faits”.
158 Alexandre de Mello Guerra e Marcelo Benacchio

na possibilidade da concentração de riqueza pela burguesia em ascensão,


traço essencial ao modelo capitalista.
Nos Códigos Civis oitocentistas, o contrato conhece seu apogeu
científico. De tão relevante e expressivo que foi, tornou-se um conceito
jurídico apto para justificar inúmeros outros institutos além das suas
fronteiras originais. O próprio Estado, por exemplo, passa a ser um ente
abstrato que se baseia na estrutura de um contrato social7. As relações
internacionais passam a ser ordenadas a partir de tratados. No Direito
privado, o casamento, antes sacro, passa a ser visto como um acordo de
vontades8. Tudo, então, passa a permitir que se identifique a hipertrofia do
contrato como um ente fundamental para o arranjo/organização da vida
em sociedade, afastando-se do cariz preso somente ao Direito privado.
No século XIX, sobrevém a teoria voluntarista do contrato, que se funda
na igualdade e liberdade dos contratantes; na separação entre o Direito
Público e Privado e na imutabilidade/obrigatoriedade do cumprimento
do contrato (pacta sunt servanda).
No final do século XIX, especialmente a partir dos movimentos de
trabalhadores, das novas tecnologias, e, na primeira metade do século XX,
das duas grandes guerras mundiais, foi preciso (re)compreender o
papel da liberdade. Percebeu-se o que não mais poderia ser negado:
“entre os fortes e fracos, entre ricos e pobres, entre senhor e servo é a
liberdade que oprime e a lei que liberta“, nas palavras de Henri Dominique
Lacordaire. A liberdade passa a dever ser entendida sob novos limites
conformados pelo próprio ordenamento jurídico. Com acerto, o Estado
Social, deliberadamente, passa a interferir nas relações contratuais,

7
GARCIA, Maria. Limites da Ciência: a dignidade da pessoa humana: a ética da responsabilidade.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. “Conhecem-se várias teorias a respeito da formação da socie-
dade humana, principalmente três, a partir do século XVII, fundadas num tipo de pacto, acordo ou
contrato: o primeiro – sinaliza Arendt (Crises da República. São Paulo: Perspectiva, 1973, p. 77 ss.) –
o exemplo do convênio bíblico, celebrado entre um povo e seu Deus, pelo qual o povo consentia em
obedecer a quaisquer leis relevadas pela divindade todo-poderosa; em segundo lugar, a concepção
de Hobbes, segundo a qual todo indivíduo celebra um acordo com a autoridade estritamente secular,
para garantir segurança, renunciando aos seus direitos e poderes. ‘Chamo isto de versão vertical do
contrato social.’ Em terceiro lugar, o contrato aborígene de Locke – ‘entendendo-se a palavra no sentido
latino de societas, uma aliança entre todos os indivíduos membros que depois de estarem mutuamente
comprometidos fazem um contrato de governo. Eu chamo isto de versão horizontal do contrato social’
[…]” (SERES, Michel. O contrato natural. Lisboa: Instituto Piaget, 1994, p. 60 ss.). refere o contrato
social que teríamos, ‘pelo menos virtualmente, estabelecido entre nós para entrar no colectivo que
nos transformou o homem que somos’, formando a sociedade […]”. (Op. cit., p. 72-73)
8
ALMEIDA COSTA, Mario Julio de. Direito das obrigações. 8. ed. Coimbra: Almedina, 2000, p. 182-183.
Teoria geral do contrato aplicada aos contratos administrativos:
ensaio sobre a função pública e a autonomia privada na Lei nº 14.133/21 159

garantindo a paridade entre os contratantes e o equilíbrio das relações


por eles contraídas9.
No século XX, por força do influxo de valores sociais e da aplicação
imediata dos Direitos fundamentais às relações de Direito privado (inclusive
nas relações de ordem contratual), sofreram intensa remodelação os princí-
pios tradicionais do Direito contratual (liberdade contratual; relatividade
das convenções – rebus sic stantibus; e força obrigatória – pacta sunt
servanda). Outros princípios a eles se uniram: justiça contratual; boa-fé
contratual; função social do contrato; equilíbrio contratual e autonomia
privada. Outros, ainda, poderiam ser apontados. Passa-se à compreensão
constitucional do contrato como a corporificação do Direito fundamental
de liberdade no plano negocial (direito/poder de autodeterminação
patrimonial/existencial), como assegura, dentre outras passagens, o caput
do art. 5º da Constituição Federal de 1988.
O propósito deste ensaio não passa pelo detalhado exame de cada
um dos princípios do Direito contratual, tradicionais ou contemporâneos.
O que se pretende registrar é a mudança de rumo da teoria do contrato
no século XX: deixou de ser coisa das partes e passou a ser coisa das
partes e da sociedade. Houve nova regulação/conformação da liberdade
dos particulares na consecução das finalidades jurídico-sociais almejadas
nos contratos.
O mais expressivo ponto da evolução do contrato na contempora-
neidade é a assunção da função social, assim expressamente afirmada no
Código Civil de 200210. A função social do contrato condiciona o exercício

9
Parte da doutrina refere que esse quadro de intervenção estatal nos arranjos privados gerou a primeira crise
do instituto, nominada de declínio do contrato ou crise do contrato. Mais tarde, aliás, chegou-se a dizer
que o contrato morreu. Todavia, o contrato jamais não morreu (GILMORE, Grant. La morte del contrato.
Trad. de Andrea Fusaro. Milano: Giuffrè, 1999). O que houve foi a modificação dos paradigmas que antes
reinavam, passando a incluir valores sociais nas contratações. Tal perspectiva permitiu considerar os inte-
resses da comunidade em comunhão com o interesse particular dos contratantes. Não apenas para atender
a interesses particulares, passa-se a afirmar que o contrato traz em si também o dever de realização do
interesse social. Foi a chamada compreensão social do contrato.
10
Nos termos do art. 421 do Código Civil, “[…] a liberdade contratual será exercida nos limites da fun-
ção social do contrato […]”. De fato, o contrato tem também sofrido a influência de tensões sociais
e políticas, rendendo ensejo a regras que procuram densificar sua interpretação, como aquelas ex-
traídas da Lei de Liberdade Econômica (Lei nº 13.874/19). Nos termos do parágrafo único do art. 421
em foco, “[…] nas relações contratuais privadas, prevalecerão o princípio da intervenção mínima e a
excepcionalidade da revisão contratual […]”. O mencionado diploma altera a regra em tela, incluindo,
no Código Civil, o art. 421-A, que merece registro, não apenas por dever ser observado nas relações
de Direito Privado, como também por poder iluminar o ideário de segurança jurídica nos contratos
de Direito Administrativo: “Os contratos civis e empresariais presumem-se paritários e simétricos até
160 Alexandre de Mello Guerra e Marcelo Benacchio

da autonomia privada, que deve ser manifestada em conformidade com


os interesses da sociedade (isto é, deve o contrato realizar uma função
social)11. É uma cláusula geral, isto é, um conceito jurídico-normativo
indeterminado em seu conteúdo, no qual o legislador afirma uma moldura
(conceito aberto, indeterminado e abstrato) e confia no posterior preen-
chimento de conteúdo pelo intérprete, caso a caso, a partir dos valores
fundamentais adotados pela sociedade e pelo Direito, em um determinado
contexto histórico-temporal.
É importante acentuar que a última década do século XX assistiu à
ruína dos Estados socialistas e o declínio do Estado de bem-estar social
(Welfare State). O fenômeno da globalização da economia (dos mercados),
guiado pelo fio condutor do neoliberalismo (ideologia dominante), exigiu
menor regulação heterônoma dos contratos. Tal situação fez gerar o que
parte da doutrina denomina a nova crise do contrato12: a nova crise do
contrato é a crise do próprio modelo social do contrato.
O contrato é a veste jurídico-formal das operações econômicas,
ensina Enzo Roppo13. É a pedra angular do modelo econômico hoje vencedor:
o capitalismo. O contrato se presta a reger a circulação de riqueza no
mercado nacional e internacional. E o mercado, em escala mundial,
é composto por vários Estados – e por distintas ordens jurídicas a eles
correspondentes. Já se disse que o mercado é maior que os Estados (e as
respectivas soberanias), segundo Francesco Galgano14. O contrato passa a
ocupar o lugar da própria lei, operacionalizando a produção/distribuição

a presença de elementos concretos que justifiquem o afastamento dessa presunção, ressalvados os


regimes jurídicos previstos em leis especiais, garantido também que as partes negociantes poderão
estabelecer parâmetros objetivos para a interpretação das cláusulas negociais e de seus pressupostos
de revisão ou de resolução (inc. I); a alocação de riscos definida pelas partes deve ser respeitada e
observada (inc. II) e a revisão contratual somente ocorrerá de maneira excepcional e limitada (III).
Permanece íntegra, convém acentuar, o dever de lealdade que se deve exigir dos contratantes, no art.
422: “os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução,
os princípios de probidade e boa-fé”.
11
A esse respeito, v. GODOY, Claudio Luiz Bueno de. Função social do contrato: os novos princípios
contratuais. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2007.
12
A nova crise do contrato é sucessora da crise social ocorrida no século XX. Sobre essa nomenclatura e
seus desdobramentos, consulte-se: JAMIN, Christophe. Quelle nouvelle crise du contrat? Quelques mots
en grise d’ introduction. In: La nouvelle crise du contrat. Dir. por Chistophe Jamin e Denis Mazeaud,
Paris: Dalloz, 2003.
13
ROPPO, Enzo. O contrato. Coimbra: Almedina, 2009.
14
GALGANO, Francesco. La globalizzazione nello specchio del diritto. Bologna: Il Mulino, 2005, p. 93-99.
Teoria geral do contrato aplicada aos contratos administrativos:
ensaio sobre a função pública e a autonomia privada na Lei nº 14.133/21 161

de bens/serviços no processo de escoamento contínuo de produção das


grandes corporações no mercado global15.
A chamada Nova crise do contrato exige que ele seja conformado
por normas de aplicabilidade universal, em razão da globalização e dos
valores neoliberais. No entanto, como ocorrera no liberalismo, o neoli-
beralismo, em certa medida, põe novamente em confronto os Direitos
sociais, que passam a ser vistos – por flagrante erro – como um custo
(externalidade) que deve ser eliminada ou reduzida. Nada mais deletério
ao Direito e à ordem social.
Como resistência à forte pressão econômica exercida sobre o contrato,
o desafio dos juristas é o resgate do humanismo. No século XXI, a digni-
dade da pessoa humana passa a ser expressamente considerada como
um valor central, cuja mais ampla realização pelos intérpretes é a meta
a ser conquistada pela humanidade, como tem sido anunciado por toda
parte16. Não sem razão, o art. 1º da Carta Constitucional de 1988 eleva
a dignidade da pessoa humana a um Princípio Fundamental da República
Federativa do Brasil, ao lado da soberania, da cidadania, dos valores
sociais do trabalho, da livre iniciativa e do pluralismo político.
Criticando o modelo que o neoliberalismo procura impor à sociedade,
Eros Roberto Grau17 acentua que há uma “[…] marcante contradição entre
o neoliberalismo – que exclui, marginaliza – e a Democracia, que supõe
o acesso a um número cada vez maior de cidadãos aos bens sociais […]”
(GRAU, 2002, p. 57). Nas suas palavras, “[…] a racionalidade econômica
do neoliberalismo já elegeu seu principal inimigo: o Estado Democrático
de Direito.” (GRAU, 2002, p. 57).
António José Avelãs Nunes, por sua vez, sustenta a necessidade de
compatibilização entre o progresso científico-econômico e a condição humana.

15
Essa nova visão faz com que o fundamento da teoria contratual seja buscado no próprio mercado
(enquanto ambiente em que se operam as trocas econômicas). Toda a construção passa a voltar-se à
eficiência econômica e à livre circulação de bens/serviços. Quaisquer pensamentos limitativos para o
mercado passam a ser considerados modelos ideologicamente ruins. Testemunha-se a tentativa de troca
da ética pelo utilitarismo. A racionalidade econômica, com aprovação científica da Análise Econômica
do Direito, passa a ser o escopo final do contrato. Nada mais nocivo ao Humanismo.
16
De acordo com Maria Garcia, “[…] na Constituição brasileira […] a dignidade da pessoa humana figura
entre os princípios fundamentais que estruturam o Estado como tal, portanto, inserindo-se entre os
valores superiores que fundamentam o Estado, a dignidade da pessoa representará o crivo pelo qual
serão interpretados não somente os direitos fundamentais, mas, ao nosso ver, todo o ordenamento
jurídico brasileiro, nas suas variadas incidências e considerações […]” (Op. cit., p. 207).
17
A ordem econômica na constituição de 1988. 7. ed. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 57.
162 Alexandre de Mello Guerra e Marcelo Benacchio

A vida mostra que o homem não deixou de ser o


lobo do homem, mas temos razões para acreditar
que podemos viver num mundo de cooperação e
de solidariedade, num mundo capaz de responder
satisfatoriamente às necessidades fundamentais
de todos os habitantes do planeta18.

Diante do exposto, é fácil perceber que o elemento de ponderação


à Nova crise do contrato é o dever de aplicação dos Direitos Humanos às
relações contratuais, entendidos os Direitos Humanos como o conjunto de
direitos essenciais da pessoa humana e de sua dignidade19. O Humanismo
que marca tal salutar tendência, no Brasil, se revela, na linha do Direito
alemão, também pela aplicação direta dos Direitos fundamentais às relações
privadas (a denominada eficácia horizontal dos direitos fundamentais)20.
É preciso encontrar equilíbrio entre os valores do ser humano e a racio-
nalidade econômica do capitalismo.
Nesse caminhar, a teoria geral do contrato, na segunda década do
século XXI, em decorrência das novas questões socioeconômicas, se abre
às questões constitucionais como forma de compatibilizar/harmonizar os
valores em confronto. Essa necessidade comprova o acerto de Gustavo
Zabrebelsky21, que afirma a dogmática fluida (ou dogmática líquida)
do Direito Constitucional. Tal característica permite o convívio entre
elementos heterogêneos e evita a destruição/exclusão dos indivíduos pela
promoção, compatibilização e coexistência da pluralidade dos interesses
sociais. Somente a pluralidade de valores e princípios constitucionais deve
ser considerada como conteúdo sólido.
Essa sucinta exposição inicial evidencia um movimento de nova
estruturação da teoria geral do contrato, partindo de uma concepção
liberal-individual para uma concepção social. O escopo da teoria contra-
tual, nesse cenário, encerra a ordenação sociojurídica da circulação de
riqueza. E por força das novas questões decorrentes da Globalização e do
Neoliberalismo, o valor da Dignidade da pessoa humana serve como fio

18
Neoliberalismo & direitos humanos. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 122.
19
SILVEIRA, Vladmir Oliveira da; e ROCASOLANO, Maria Mendez. Os direitos humanos: conceitos, significados
e funções. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 203.
20
Nesse sentido, ver: SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro:
Lumen Iuris, 2008.
21
ZAGREBELSKY, Gustavo. Il diritto mite. Torino: Einaudi, 2010, p. 15-17.
Teoria geral do contrato aplicada aos contratos administrativos:
ensaio sobre a função pública e a autonomia privada na Lei nº 14.133/21 163

condutor à realização dos Direitos humanos/direitos fundamentais também


nas relações contratuais, seja de Direito Privado, seja de Direito Público.

2. Aplicação da teoria geral do contrato aos contratos administrativos

O que são contratos da Administração? Esse é o ponto de partida.


Segundo Maria Sylvia Zanella di Pietro22, contratos da Administração é
uma expressão ampla. É um gênero que se utiliza para abranger todos
os contratos firmados pela Administração Pública, quer sob regime de
Direito Público, quer sob o de Direito Privado. Duas são as espécies de
contratos celebrados pela Administração Pública. Os primeiros são os
contratos administrativos propriamente ditos. Os segundos são os contra-
tos jurídico-privados da Administração Pública. Os primeiros seguem um
regime jurídico preponderantemente de Direito público. Os segundos
observam preponderantemente (não exclusivamente) um regime jurídico
de Direito Privado23.
As duas espécies de contratos da administração têm finalidade públi-
ca, em medidas distintas, e são sujeitas ao mesmo regime jurídico público
de contratação. As suas diferenças se situam no campo das prerrogativas
da Administração Pública: as cláusulas exorbitantes24, por exemplo,

22
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo, cit., p. 215. Ainda: “Costuma-se dizer que,
nos contratos de direito privado, a Administração se nivela ao particular, caracterizando-se a relação
jurídica pelo traço de horizontalidade e que, nos contratos administrativos, a Administração age como
poder público, com todo seu poder de império sobre o particular, caracterizando-se a relação jurídica
pelo traço da verticalidade” (op. cit., p. 215).
23
VERNALHA GUIMARÃES, Fernando. Alteração unilateral do contrato administrativo. São Paulo: Malheiros,
2003, p. 41.
24
Sobre as cláusulas exorbitantes, ver: CRETELLA JUNIOR, J. As cláusulas de privilégio nos contratos admi-
nistrativos. Brasília: R. Inf. Leg. A. 23, n. 89, jan/mar 1986, p. 303-322. Disponível em: https://www2.
‌senado. ‌‌leg. ‌‌br/bdsf/bitstream/handle/id/181681/000421288. pdf?sequence=3&isAllowed=y; PESTANA,
M. A exorbitância nos contratos administrativos. Revista de Direito Administrativo e Infraestrutura | RDAI,
São Paulo: Thomson Reuters | Livraria RT, v. 1, n. 1, p. 141–162, 2021. DOI: 10.48143/rdai/01.mp.
Disponível em: https://www.rdai.com.br/index.php/rdai/article/view/49. Acesso em: 20 nov. 2022;
ARRUDA CÂMARA, J.; PERESI DE SOUZA, A. P. Existem cláusulas exorbitantes nos contratos administrativos?.
Revista de Direito Administrativo, [S. l.], v. 279, n. 2, p. 185–208, 2020.
Sobre o fato do príncipe e fato da administração, ver: CRETELLA JÚNIOR, J. Teoria do “fato do príncipe”.
Revista de Direito Administrativo, [S. l.], v. 75, p. 23–30, 1964. DOI: 10.12660/rda.v75.1964.25735.
Disponível em: https://bibliotecadigital. fgv. br/ojs/index. php/rda/article/view/25735. Acesso em: 20
nov. 2022; GASIOLA, G. G. Fato da Administração: uma revisão bibliográfica. Revista Digital de Direito
Administrativo, [S. l.], v. 4, n. 2, p. 39-68, 2017. DOI: 10.11606/issn.2319-0558.v4i2p39-68. Disponível em:
https://www.revistas.usp.br/rdda/article/view/131769. Acesso em: 20 nov. 2022; MOTTA, T. de L.;
CLEMENTINO, M. B. M. O fato da administração e a revisão dos contratos administrativos a partir da
164 Alexandre de Mello Guerra e Marcelo Benacchio

em princípio, somente podem estar presentes nos contratos adminis-


trativos. Como se demonstrará, é preciso questionar tais prerrogativas
da Administração Pública. Nos contratos administrativos, ainda, há um
interesse público geral direto/imediato. Nos segundos, o interesse público,
segundo a doutrina tradicional, tem um mediato (indireto), dado o regime
jurídico de Direito preponderantemente privado que os iluminam.
A concessão de serviço público é um exemplo de contrato administrativo25.
O contrato de seguro de veículos oficiais e a locação de imóvel destinado
à instalação de repartição pública são contratos de Direito privado com
Administração Pública, exemplifica a autora26.
Celso Antônio Bandeira de Mello27 diferencia contratos de direito
privado da Administração Pública e contratos administrativos. Não é
aplicável o vocábulo contratos administrativos ao se partir das prerro-
gativas neles existentes em favor da Administração Pública. Com efeito,
diz, a assimetria de poderes entre as partes (particular e Poder Público)
opera tão intensamente em algumas relações que se subverte a própria
noção de contrato. “A qualificação administrativo aposta à palavra contrato
parece, no caso, ter o condão de modificar o próprio substantivo”28.

violação da boa-fé objetiva. Direito Público, [S. l.], v. 15, n. 85, 2019. Disponível em: https:// ‌www.
portaldeperiodicos. idp. edu. br/direitopublico/article/view/2973. Acesso em: 20 nov. 2022; TENÓRIO,
F. G. A anomalia do fato administrativo. Revista de Administração Pública, Rio de Janeiro, RJ, v. 23,
n. 2, p. 5-8, 1989. Disponível em: https://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rap/article/view/9129.
Acesso em: 20 nov. 2022.
25
Op. cit., p. 258.
26
Segundo Maria Sylvia Zanella di Pietro, há pelo menos três correntes que tratam a conformação dos
contratos administrativos. Para a primeira corrente, é peremptoriamente negada a existência de
contratos administrativos. Para a segunda, todos os contratos celebrados pela Administração Pública
devem ser sempre considerados administrativos. Para outros, os contratos administrativos devem ser
aceitos como espécies do gênero contrato, mas sempre sob um regime jurídico de Direito Público
derrogatório e exorbitante do direito comum (Op. cit., p. 251).
27
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 28. ed. São Paulo: Malheiros,
2010, p. 622
28
O Poder Público, em virtude das suas funções, tem sempre a disponibilidade sobre o serviço público em
relação à fruição dos bens públicos nele envolvidos. Sucede que isso não ocorre em contratos firmados
entre os particulares. Segundo o autor, portanto, os poderes conferidos nos contratos administrativos
nada têm de poderes contratuais: “[…] são poderes relativos à prática de atos unilaterais, inerentes
sobre as competências públicas incidentes sobre aqueles objetos. […] Tais poderes de instabilização
descendem diretamente das regras de competência administrativa sobre os serviços públicos e o
uso de bens públicos. E são competências inderrogáveis pela vontade das partes, insusceptíveis de
transação e, pois, de contratos. […] Tais circunstâncias deveriam ser suficientes para evidenciar que as
relações jurídicas constituídas entre o poder público e o particular sob a égide do regime em apreço
apresentam radical disparidade em relação aos contratos. Daí a inconveniência de abrigar sob um
único rótulo figuras jurídicas tão distintas e submissas a critérios e princípios completamente diversos.
Teoria geral do contrato aplicada aos contratos administrativos:
ensaio sobre a função pública e a autonomia privada na Lei nº 14.133/21 165

A nosso ver, é possível aplicar, ainda que em caráter subsidiário,


a teoria geral do contrato para todos os contratos da Administração,
em diferentes graus, seja em contratos administrativos ou em contratos
de Direito privado da Administração Pública. Aliás, no plano legislativo,
a NLLCA permite essa incidência normativa: o art. 89 da nova lei,
inaugurando o título que disciplina os contratos administrativos,
no capítulo 1º, que versa sobre a formalização dos contratos, preceitua
claramente que:

[…] os contratos de que trata esta Lei regular-se-ão


pelas suas cláusulas e pelos preceitos de direito
público, e a eles serão aplicados, supletivamente,
os princípios da teoria geral dos contratos e as
disposições de direito privado.

A importância do estudo dos contratos administrativos sob as luzes


da teoria geral do contrato é vital no atual regime legal. De fato, havia
disposição normativa correspondente, em alguma medida, no art. 54 da
revogada Lei nº 8.666/93, segundo a qual:

[…] os contratos administrativos de que trata esta Lei


regulam-se pelas suas cláusulas e pelos preceitos de
direito público, aplicando-se-lhes, supletivamente,
os princípios da teoria geral dos contratos e as
disposições de direito privado.

Também a Lei de concessões e permissões de serviço público


(Lei nº 8.666/93), no seu 54, estabelecia que:

[…] os contratos administrativos de que trata esta


Lei regulam-se pelas cláusulas e pelos preceitos de
direito público, aplicando-se-lhes, supletivamente,
os princípios da teoria geral dos contratos e as
disposições de direito privado29.

Essa argumentação, entretanto, não sensibilizou nossa doutrina e jurisprudência.” (MELLO, Celso
Antonio Bandeira de., 2010, p. 626).
29
A esse respeito, cf.: FRANÇA, Maria Adelaide de Campos. Lei de Licitações e Contratos da Administração
Pública. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2010.
166 Alexandre de Mello Guerra e Marcelo Benacchio

Seja no anterior sistema de contratações públicas, seja no modelo


normativo atual, a aplicação da teoria geral do contrato aos contratos
administrativos sempre se fez possível pela raiz comum do Direito Público
e do Direito Privado: a teoria geral do negócio jurídico.
Hely Lopes Meirelles30 diz que não há lugar para se rejeitar a
distinção entre contratos de Direito Privado e contratos administrativos.
Se o contrato é um acordo de vontades firmado livremente pelas
partes para criar obrigações e direitos recíprocos, os princípios
gerais dos contratos devem incidir sobre os negócios privados (civis ou
comerciais) e sobre os contratos públicos (dos quais são espécies os
contratos administrativos, os convênios, os consórcios executivos e
os acordos internacionais)31.

A teoria geral do contrato é a mesma para todo


o gênero contratual, mas as particularidades da
espécie contrato administrativo são regidas por
normas próprias de Direito Público e se sujeitam a
princípios específicos da Administração. Em tal espécie
contratual o Direito Privado é supletivo do Direito
Público, mas nunca substitutivo ou derrogatório das
regras privativas da Administração32.

De fato, os contratos administrativos se inserem no gênero contrato,


ou, em maior abstração ainda, inserem-se os contratos administrativos
no universo nos negócios jurídicos.
A relação entre os contratos administrativos e a teoria geral do
contrato reside no fato de que todo negócio jurídico deve ser orientado
por dois princípios. Primeiro, pelo princípio da vinculação aos termos
contratuais (lex inter partis): o ajustado, como regra, torna-se imutável
e deve ser respeitado. Segundo, pelo princípio da obrigatoriedade das
convenções (ou da fiel observância do pactuado): pacta sunt servanda.
O referido princípio, como se sabe, é hoje mitigado, mas funciona ainda

30
MEIRELLES, Hely Lopes. Licitação e contrato administrativo. 14. ed. São Paulo: Malheiros, 2006.
31
Op. cit., p. 193. Como pontifica Celso Antônio Bandeira de Mello, “[…] os principais contratos admi-
nistrativos seriam os de concessão de serviço público, o de obra pública, o de concessão de uso do
domínio público a eles se acrescendo os contratos de fornecimento em geral e os de prestação de
serviços – como indica Hely Lopes Meirelles.” (Op. cit., p. 627).
32
Op. cit., p. 194.
Teoria geral do contrato aplicada aos contratos administrativos:
ensaio sobre a função pública e a autonomia privada na Lei nº 14.133/21 167

como cardeal garantidor do Direito fundamental à segurança jurídica:


os contraentes devem fielmente cumprir o que avençaram e para o que
reciprocamente se comprometeram.
É ampla a liberdade de contratar conferida pela ordem jurídica
aos particulares (decorrência da autonomia privada negocial). Já em
relação à Administração Pública, é preciso atentar aos conteúdos e
às limitações formais à contratação e execução. O contrato adminis-
trativo deve atender ao interesse público a ser por ele realizado,
mas sem negar os novos ventos que oxigenam a racionalidade contratual.
Nas palavras de Ana Rita de FIgueiredo Nery, “[…] o absolutismo,
a imperatividade e assimetria cedem hoje cedem hoje à cooperação
e ao consensualismo […]”33.
Os princípios da indisponibilidade do interesse público e da supremacia
do interesse público sob o particular são as vigas estruturantes do regime
jurídico de Direito Administrativo. Isso não afasta o dever de os agentes públi-
cos se comportarem com lealdade, moderação, prudência etc. Não devem
frustrar levianamente as expectativas legítimas do particular ou a confiança
que o particular deposita, razoável e justificadamente, na contratação.
Se ultrapassar os limites impostos para o exercício dos direitos, a Administração
Pública incorre em ilicitude axiológica por exercício disfuncional de posição
jurídica, como tal merecedora de censura pela ordem jurídica.
A regra contida no art. 187 do Código Civil do Brasil deve ser aplicada
a todos os sujeitos de direito no exercício de quaisquer situações jurídicas,
dentre eles ao próprio Estado. A lei é suficientemente clara e a ninguém exclui:
“[…] também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo,
excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social,
pela boa-fé ou pelos bons costumes.” (GUERRA, 2015)34.

33
NERY, Ana Rita de Figueiredo. A causa do contrato administrativo: Análise do conteúdo contratual como
parâmetro de aplicação do princípio da eficiência. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, p. 4. Partindo
da ideia de crise dos paradigmas do Direito Administrativo, afirma: “[…] abre-se essa porta crítica ao
princípio da supremacia do interesse público, que se enraizou a partir da premissa equivocada de que
a pessoa humana existe para servir aos poderes públicos e à sociedade. Vê-se hoje que, em sentido
diverso, cabe ao Estado buscar sua legitimidade como meio para proteção e promoção dos direitos
humanos. […]. Na apreensão dos contratos administrativos, essa interface faz-se ainda mais provocativa,
a uma pela crescente integração público-particular; a duas porque é na seara da consensualidade que
se abre um campo fértil à incorporação de novos elementos teóricos e das técnicas de interpretação
dos contratos, sem que isso vulnere o princípio da legalidade.” (Op. cit., p. 2-4).
34
A respeito do abuso do direito perpetrado pelo Estado, ver: GUERRA, Alexandre D. de Mello.
Responsabilidade civil por abuso do direito. In: GUERRA, Alexandre D. de Mello; BENACCHIO, Marcelo
(Coords). Responsabilidade civil. São Paulo: Escola Paulista da Magistratura, 2015. Disponível em:
168 Alexandre de Mello Guerra e Marcelo Benacchio

Corporificando o Direito fundamental de liberdade negocial, com assento


no art. 5º, caput, no art. 170, que trata dos princípios gerais da atividade
econômica, o contrato serve como um instrumento que realiza a dignidade
humana e implementa os Direitos fundamentais dela decorrentes. Segundo
André Osório Gondinho:

[…] o contrato deve servir para promover a dignidade


da pessoa humana, e não apenas para promover a
circulação de riquezas em vista do atendimento das
necessidades materiais que aproximam os homens
em torno do vínculo contratual35.

É importante acentuar que os contratos administrativos se afastam


dos contratos entre particulares em virtude da condição de paridade que
lhes é própria. Mas o fato de a Administração Pública dispor de privilégios
administrativos (cláusulas de interesse público/cláusulas exorbitantes)
não os colocam em posição que lhes permita rasgar, imotivadamente,
sem quaisquer consequências, os contratos por ela própria propostos e
validamente celebrados.
Ao apresentar os princípios que regem as licitações e contratos
administrativos na NLLCA, não se pode deixar de observar que parte
significativa dessas diretrizes serve como proteção ao particular contra
condutas abusivas do Administrador Público:

Art. 5º. Na aplicação desta Lei, serão observados


os princípios da legalidade, da impessoalidade, da
moralidade, da publicidade, da eficiência, do interesse
público, da probidade administrativa, da igualdade,
do planejamento, da transparência, da eficácia,
da segregação de funções, da motivação, da vinculação
ao edital, do julgamento objetivo, da segurança
jurídica, da razoabilidade, da competitividade,
da proporcionalidade, da celeridade, da economicidade
e do desenvolvimento nacional sustentável, assim

https://epm. tjsp. jus. br/Publicacoes/ObrasJuridica/30610? pagina=1. Acesso em: 1 nov. 2022; GUERRA,
Alexandre. Responsabilidade civil por abuso do direito: entre o exercício inadmissível de posições
jurídicas e o direito de danos. Coleção Agostinho Alvim. São Paulo: Saraiva, 2011.
35
GONDINHO, André Osório. Direito Constitucional dos Contratos: A incidência do princípio da dignidade
da pessoa humana. São Paulo: Quartier Latin, 2010, p. 300.
Teoria geral do contrato aplicada aos contratos administrativos:
ensaio sobre a função pública e a autonomia privada na Lei nº 14.133/21 169

como as disposições do Decreto-lei nº 4.657, de 4 de


setembro de 1942 (Lei de Introdução às Normas do
Direito Brasileiro).

Note-se que a expressa referência à Lei de Introdução às Normas do


Direito Brasileiro revela o ideário de segurança jurídica, de lealdade e
de correção que se pretende imprimir também às contratações públicas.
Os deveres decorrentes da boa-fé (seriedade, cooperação, proteção, informação,
cuidado, lealdade etc.) se impõem a todos os que participam de qualquer
relação jurídica. O inadimplemento das exigências da boa-fé gera a chamada
violação positiva do contrato. “Em virtude do princípio da boa-fé, positivado
no art. 422 do novo Código Civil, a violação dos deveres anexos constitui
espécie de inadimplemento, independentemente de culpa”, estabelece o
Enunciado 24 da I Jornada de Direito Civil do Conselho de Justiça Federal.
Os contratos administrativos não são imunes à incidência dos deveres
contratuais laterais (deveres secundários ou de contorno). É clara, pois,
incidência dos princípios regentes da teoria geral do contrato aos contratos
administrativos. E são nítidas tais exigências em diversas passagens do vigente
sistema legislativo de contratos administrativos.
O parágrafo 2º do art. 89 da NLLCA, por exemplo, veicula os deveres
de informação e transparência. Pontifica que:

[…] os contratos deverão estabelecer com clareza e


precisão as condições para sua execução, expressas
em cláusulas que definam os direitos, as obrigações
e as responsabilidades das partes, em conformidade
com os termos do edital de licitação e os da proposta
vencedora ou com os termos do ato que autorizou a
contratação direta e os da respectiva proposta.

Os deveres de informação e transparência da justa contratação se fazem


igualmente presentes quando arrola o legislador, no art. 92, as cláusulas que
obrigatoriamente devem constar de todo contrato administrativo.
Também a estipulação da matriz de riscos a ser respeitada por
todos os contraentes encontra hoje suporte no art. 103 da nova lei, que,
em especial por seu parágrafo 4º, estabelece que:

[…] a matriz de alocação de riscos definirá o equilíbrio


econômico-financeiro inicial do contrato em relação
170 Alexandre de Mello Guerra e Marcelo Benacchio

a eventos supervenientes e deverá ser observada na


solução de eventuais pleitos das partes.

Mesmo o regime legal que se dá às prerrogativas da Administração


no art. 104 da NLLCA afasta-se, à evidência, do que no anterior regime se
conheceu como fato do príncipe (fatos da administração) impondo maior
responsabilidade para sua invocação.
Tanto é assim que a alteração dos contratos e dos preços pela
Administração Pública deve observar aos requisitos estabelecidos no
inc. I do art. 124 da lei:

[…] os contratos regidos por esta Lei poderão ser


alterados, com as devidas justificativas, nos seguintes
casos: I – unilateralmente pela Administração:
a) quando houver modificação do projeto ou das
especificações, para melhor adequação técnica a seus
objetivos; b) quando for necessária a modificação
do valor contratual em decorrência de acréscimo ou
diminuição quantitativa de seu objeto, nos limites
permitidos por esta Lei.

Não mais nos parece ser possível que a Administração Pública


esteja autorizada a encerrar a contratação, invocando, abstratamente,
que assim recomenda o interesse público. A faculdade de resolução
unilateral condiciona-se, na atualidade, a um juízo de necessidade/
imprescindibilidade 36 da medida excepcional, que compromete,
em alguma medida, o princípio pacta sunt servanda (e todas as decor-
rências que faz incidir no Direito fundamental à segurança jurídica).
A invocação das cláusulas exorbitantes, no Direito contratual contemporâneo,
exige especial cautela e excepcionalidade.

36
MARTINS-COSTA, Judith. A re-significação do princípio da segurança jurídica na relação entre o estado e
os cidadãos: a segurança como crédito de confiança. Texto integrante de obra coletiva em homenagem
ao Professor Almiro do Couto e Silva, sob a coordenação do Professor Humberto B. Ávila, com o título:
Almiro do Couto e Silva e a Re-significação do Princípio da Segurança Jurídica na Relação entre o Estado
e os Cidadãos (a segurança como crédito de confiança). Brasília: R. CEJ, Brasília, n. 27, p. 110-120, out./
dez. 2004. Disponível em: https://revistacej.cjf.jus.br/cej/index.php/revcej/article/view/641/821
Acesso em: 1 nov. 2022
Teoria geral do contrato aplicada aos contratos administrativos:
ensaio sobre a função pública e a autonomia privada na Lei nº 14.133/21 171

Nesse cenário, é digna de aplauso a lição de Judith Martins-Costa37


quando trata da relação entre o Direito fundamental de segurança jurídica
entre o Estado e o cidadão. Para realizar a confiança, um dos fundamentos
do Direito, a Administração Pública não deve limitar-se à abstenção das
condutas lesivas, mas, sim, deve agir na regulação/garantia de mecanismos
que realizem os direitos fundamentais e as legítimas expectativas por ela
despertadas nos particulares. A confiança é essencial para realização da
justiça material:

[…] um comportamento positivo da Administração


Pública na tutela da confiança legítima dos cidadãos
segue paralelo ao crescimento, na consciência
social, da relevância da conexão entre a ação
administrativa e o dever de proteger de maneira
positiva os direitos fundamentais.

Colocando com perfeição a segurança como critério de confiança,


merecem transcrição as suas palavras:

O princípio da boa-fé fez fortuna no Direito Privado,


notadamente após a vigência do Código de Defesa
do Consumidor, mas alcança, agora, a doutrina
administrativista, seguidora das trilhas abertas por
Couto e Silva já no início dos anos 80 […]
De tudo resulta, pois, a percepção da existência de
um movimento intelectual (também assinalado pelo
administrativista espanhol Luciano Parejo Alfonso)
no sentido de um apelo cada vez mais frequente
à confiança na relação Estado–cidadão. Porém,
trata-se de uma confiança depositada também
na atividade estatal, na ação continuadamente
voltada à proteção das expectativas legítimas e
dos direitos do cidadão, notadamente dos direitos

MARTINS-COSTA, Judith. A re-significação do princípio da segurança jurídica na relação entre o


37

estado e os cidadãos: a segurança como crédito de confiança. Texto integrante de obra coletiva em
homenagem ao Professor Almiro do Couto e Silva, sob a coordenação do Professor Humberto B. Ávila,
com o título: Almiro do Couto e Silva e a Re-significação do Princípio da Segurança Jurídica na Relação
entre o Estado e os Cidadãos (a segurança como crédito de confiança). Brasília: R. CEJ, Brasília, n. 27,
p. 110-120, out./dez. 2004. Disponível: https://revistacej.cjf.jus.br/cej/index.php/revcej/article/
view/641/821 Acesso: 1.11.2022.
172 Alexandre de Mello Guerra e Marcelo Benacchio

fundamentais instrumentalmente necessários ao


livre desenvolvimento da personalidade humana. […]
A confiança dos cidadãos é constituinte do Estado
de Direito, que é, fundamentalmente, estado de
confiança. Seria mesmo impensável uma ordem
jurídica na qual não se confie ou que não viabilize,
por meio de seus órgãos estatais, o indispensável
estado de confiança. A confiança é, pois, fator
essencial à realização da justiça material, mister
maior do Estado de Direito. De resto, a exigência
de um comportamento positivo da Administração
Pública na tutela da confiança legítima dos cidadãos
corre paralela ao crescimento, na consciência social,
da extremada relevância da conexão entre a ação
administrativa e o dever de proteger de maneira
positiva os direitos da personalidade, constituintes
do eixo central dos direitos fundamentais38.

Da mesma forma, a confiança na eficácia que dimana da relação


contratual, com previsibilidade e segurança, realiza o princípio da conser-
vação dos negócios jurídicos, que se aplica, indistintamente, a contratos
administrativos que, uma vez validamente celebrados, devem ser honrados
por todos os contratantes a ele vinculados39.
Como visto, a aproximação entre a teoria geral do contrato e o regime
dos contratos administrativos depende da adequada exploração das poten-
cialidades da Teoria do Negócio Jurídico. Segundo Emílio Betti, o negócio
jurídico é o ato por meio do qual se regulam os interesses nas relações inter-
pessoais. “É o ato pelo qual o direito liga os efeitos mais conformes à função
econômico-social e lhes caracteriza o tipo”40. O negócio jurídico contém
“[…] um estatuto, uma disposição, e um preceito de autonomia privada […]”41.

38
Op.  cit., p. 116.
39
Sobre o princípio da conservação dos negócios jurídicos, um dos princípios contemporâneos do Direito con-
tratual, ver: GUERRA, Alexandre. Princípio da conservação dos negócios jurídicos: a eficácia jurídico-social
como critério de superação das invalidades negociais. Coleção Teses. São Paulo: Almedina, 2016; GLITZ,
Frederico Eduardo Zenedin. Favor contractus: alguns apontamentos sobre o princípio da conservação
do contrato no direito positivo brasileiro e no direito comparado. RIDB, Ano 2 (2013), nº 1. Disponível em:
https://www.cidp.pt/revistas/ridb/2013/01/2013_01_00475_00542.pdf Acesso em: 1.11.2022.
40
BETTI, Emilio. Teoria Geral do negócio jurídico. Campinas: Servanda, 2008, p. 88.
41
Op. cit., p. 90. Emilio Betti verbera: “Na realidade, o que o indivíduo declara ou faz com o negócio
jurídico, é sempre uma regulamentação dos próprios interesses nas relações com outros sujeitos:
Teoria geral do contrato aplicada aos contratos administrativos:
ensaio sobre a função pública e a autonomia privada na Lei nº 14.133/21 173

De fato, reconhecer a autonomia privada no regime jurídico de


Direito Administrativo exige alguma reflexão. Nos contratos adminis-
trativos, o que se busca é realizar os objetivos publicísticos para
satisfação do interesse público. Entretanto, esse perfil não repele a
aplicação, no que couber, dos princípios da teoria geral dos contratos
e das disposições de direito privado (dentre elas, a vedação ao exercí-
cio disfuncional de posições jurídicas; a tutela contrária ao abuso do
direito prevista no art. 187 do Código Civil; a proteção à confiança
despertada e a tutela das expectativas criadas etc.).
Segundo Antonio Junqueira de Azevedo 42, o negócio jurídico é
uma categoria jurídica (uma superestrutura da Ciência do Direito).
É a manifestação de vontade que se qualifica por um modelo cultural que
a torna juridicamente relevante no meio social, de modo que orienta os
comportamentos daqueles que a expressam. É um fato jurídico concreto,
sob a mais ampla acepção de um fato jurídico.

[…] in concreto, negócio jurídico é todo fato jurídico


consistente em declaração de vontade, a que o
ordenamento jurídico atribui os efeitos designados
como queridos, respeitados os pressupostos de
existência, validade e eficácia impostos pela norma
jurídica que sobre ele incide43.

Renan Lotufo assinala que o negócio jurídico é a raiz comum de


todos os contratos, de Direito público ou privado. O estudo dos contratos
se orienta pelo Direito das Obrigações pelas origens do Code Napoléon.
Com efeito, o Código Civil francês (ao contrário BGB e dos nossos Códigos
Civis) não possui uma Parte Geral. Desse modo, o Direito contratual
radicou, no plano legislativo, com o próprio Direito das Obrigações
(e não com o negócio jurídico, usualmente examinado na Parte Geral
dos códigos). O contrato é a expressão maior da liberdade individual

regulamentação da qual ele compreende o valor socialmente vinculante, mesmo antes de sobrevir a
sanção do direito […] a previsão a que está ligado o efeito jurídico contém em si mesma um preceito
de autonomia privada, cujo reconhecimento por parte da ordem jurídica representa, na sua essência,
um fenômeno de recepção […]” (Op. cit., p. 229).
42
AZEVEDO, Antônio Junqueira de. Negócio jurídico: existência, validade e eficácia. 4. ed. São Paulo:
Saraiva, 2002, p. 134.
43
Op. cit., p. 16. A respeito, v. BITTAR, Carlos Alberto. Teoria Geral do Direito Civil. 2. ed. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 2007, p. 187 ss.
174 Alexandre de Mello Guerra e Marcelo Benacchio

no plano negocial. É o meio pelo qual se pode adquirir/estabelecer a


propriedade e circulação de riquezas.
No século XIX, em virtude da pandectística alemã, a teoria geral dos
contratos passou a se prender não mais no Direito das Obrigações, mas,
sim, na Teoria dos Atos Jurídicos, permitindo ampliar o desenvolvimento
da Teoria do Negócio Jurídico (espécie de ato jurídico)44.
Na correta síntese de Enzo Roppo, a diferença fundamental entre os
modelos francês e alemão reside no fato de que o Direito alemão concebe
o contrato dentro da categoria geral de negócio jurídico. Essa posição se
aplica perfeitamente ao modelo brasileiro. Tal visão permite ampliar o
processo de abstração do contrato, concebendo uma série de fenômenos
reais além dos contratos de Direito privado:

[…] para compreender uma área cada vez mais


extensa de objectos, é preciso elevarmo-nos cada vez
mais sobre os mesmos, e assim deles cada vez mais
renunciarmos a captar os seus aspectos palpáveis45.

Como se observa, o contrato é um instituto com forte vinculação


à teoria do negócio jurídico. É permeado pelos princípios que regem
o Código Civil brasileiro, apresentados por Miguel Reale46 (socialidade,
eticidade e operabilidade) e pelos princípios tradicionais e contempo-
râneos do Direito contratual. Os princípios jurídicos não se infirmam
ou se revogam, mas, em determinadas circunstâncias de fato, cedem,
em maior ou menor grau, a incidência em favor de outros. Espraiam
os seus efeitos no campo dos requisitos de validade, como preceitua o
art. 104 do Código Civil.

44
“A doutrina alemã, quando da elaboração da parte geral do BGB, como um repositório de conceitos
gerais, começou a desenvolver uma Teoria Geral do Direito Civil, na qual cabe como integrante funda-
mental a Teoria do Negócio Jurídico. […]. O contrato é a figura mais significativa do Negócio Jurídico
e a partir deste é que tivemos o maior desenvolvimento da teoria geral. Daí o dizer de Orlando Gomes
(contratos, 26ª ed. Rio de Janeiro: Forense, p.4): o contrato é uma espécie de negócio jurídico que
se distingue, na formação, por exigir a presença de pelos menos duas partes. Contrato é, portanto,
negócio jurídico bilateral ou plurilateral. Negócio, etimologicamente, mantém relação básica com o
latim Nec otium, não-ócio, evidenciando estreita relação com atividade, daí que, em quase todas as
línguas, sua significação tenha a ver com atividade econômica.” (LOTUFO, Renan. Teoria geral dos
contratos. In: LOTUFO, Renan; NANNI, Giovanni Ettore (coord.). Teoria geral dos contratos. São Paulo:
Atlas. 2011, p. 4-6).
45
ROPPO, Enzo. O contrato. Coimbra: Almedina, 2009, p. 49.
46
REALE, Miguel. História do novo Código Civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005.
Teoria geral do contrato aplicada aos contratos administrativos:
ensaio sobre a função pública e a autonomia privada na Lei nº 14.133/21 175

A tais requisitos de validade (capacidade do agente, licitude do


objeto e observância de forma solene), se une a boa-fé, que, na lição
de Renan Lotufo, é o quarto requisito de validade do negócio jurídico,
que vem previsto no art. 113 do Código Civil47 (standard que se aplica,
uma vez mais, aos contratos administrativos). Disso decorre que,
nos contratos administrativos, somente se justifica invocar as cláusulas
exorbitantes nas situações em que sua presença é, concreta e funda-
mentadamente, essencial para realizar-se a plena concretização do
interesse público48.
O mesmo deve ser dito em relação ao princípio da justiça contratual,
que deve incidir sobre os contratos administrativos. De acordo com Franz
Wieacker, a teoria de Hugo Grócio a respeito da justiça contratual tem
raízes na tradição aristotélico-tomista. É próprio da justiça exigir uma
relação de equivalência de prestações (aequalitas). Da justiça jusnatu-
ralista “[…] decorrem também deveres das partes quanto ao dever de
respeito e de esclarecimentos mútuos […]”49, exatamente como preceitua
o parágrafo 1º do art. 89 da NLLCA. A afirmação, pelo legislador, de quais
cláusulas são essenciais à contratação pública, como prevê o art. 92
de mencionado diploma, confere segurança jurídica, previsibilidade e
desperta a confiança na realização de fatos que se devem fazer presente
na contratação.
Diante do exposto, é possível identificar a incidência da teoria geral
do contrato aos contratos administrativos, pois existem características
essenciais que lhes são comuns. Primeiro, porque não há contrato sem

47
A respeito do artigo 113 do Código Civil brasileiro, Renan Lotufo assevera que o princípio da boa-fé
objetiva (cláusula geral) não é exclusividade dos sistemas jurídicos de formação romano-germânica.
É também amplamente difundido nos sistemas da Common Law, como comprova a Uniform Comercial
Code, diploma normativo que se aplica pelos Estados norte-americanos. Segundo tal regramento,
em tradução livre, good faith, significa honestidade e observância de razoáveis padrões comerciais
de atuação correta (fair dealing, Section 1, 201[19]).
48
É que a boa-fé objetiva incide sobre todos os negócios jurídicos e se “[…] traduz no dever de cada
parte agir de forma a não defraudar a confiança da outra parte, alcançando todos os participantes
da relação jurídica, não importando o ponto de vista psicológico de uma das partes, servindo como
norte e padrão de conduta a ser seguido […] são meios auxiliares de interpretação o caráter habitual
das relações mantidas entre as partes, manifestações anteriores do declarante e do destinatário,
que reconhecidamente se ligam à declaração, tais como uma expressão típica do declarante,
conhecida pelo destinatário, bem como o lugar, o tempo e as circunstâncias inerentes.” LOTUFO,
Renan. Código Civil comentado. Parte geral. v.1. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 315-316.
49
WIEACKER, Franz. História do Direito Privado Moderno. 3. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian,
2004, p. 333-334.
176 Alexandre de Mello Guerra e Marcelo Benacchio

que haja acordo de vontades (que se marca pela voluntariedade e pela


autorregulamentação de direitos/interesses). Trata-se de uma liberdade
“[…] reciprocamente condicionante e condicionada, coexistentes no tempo,
formando uma vontade contratual unitária […]”50. Segundo, porque não
há contrato sem o encontro entre interesses e finalidades das partes,
que se apresentam convergentes, em simetria, e reciprocamente condi-
cionados “uns como causa dos outros”. Terceiro, porque não há contrato
sem a produção de efeitos jurídicos por ambas as partes, isto é, sem a
criação de direitos/obrigações para ambos os contratantes, tornando-o
lei entre as partes51.
A aplicação da teoria geral do contrato aos contratos administrativos
comporta adequação, adaptação, mas não exclusão52. Os contratos privados
visam a realizar interesses dessa mesma natureza. Os contratos públicos são
destinados a realizar o interesse público, o que se sobrepõe aos interesses
privados do contratado e ao interesse secundário da própria Administração
Pública contratante. Ora, se a Administração Pública está autorizada, em
tese, a alterar unilateralmente as regras pactuadas (art. 104 da NLLCA),
é preciso que essa medida seja excepcional, criteriosa, fundamentada
em dados da realidade e concretamente realizadora da função pública.
Se se pretende pontualmente afastar a força obrigatória das convenções
(e assim comprometer, em certa medida, a segurança econômico-jurídica
do contrato), deve-se efetivamente atender aos princípios da supremacia
do interesse público sobre o particular e à indisponibilidade do interesse
público. “Nos contratos administrativos, a contratada não tem direito à
imutabilidade do contrato, mas sim ao respeito à equação econômica inicial
[…]”53, sob a forma prevista nos artigos 124 a 136 da Lei nº 14.133/21. Trata-

50
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. Op. cit., p. 255.
51
Op. cit., p. 255. “No contrato administrativo, existe uma oferta, feita, em geral, por meio do edital
de licitação, a toda a coletividade (invitatio ad oferendum, acrescento); dentre os interessados que
a aceitam e fazem a sua proposta (referente ao equilíbrio econômico do contrato), a Administração
seleciona a que apresenta condições mais convenientes para a celebração do ajuste. Forma-se, assim,
a vontade contratual unitária (primeiro elemento) […] Isso quer dizer que os contratos administrativos
se enquadram no conceito geral de contrato como acordo de vontades gerador de direitos e obrigações
recíprocos.” (DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Op. cit., p. 255).
52
Segundo Antônio Carlos Cintra do Amaral, nos contratos de Direito privado, as partes estão autorizadas a
contratar tudo o que não for ilegal, em virtude do princípio da autonomia privada. De outro lado,
nos contratos administrativos, a Administração Pública somente poderá disciplinar os interesses autorizados
por lei para assim proceder, em virtude do princípio da legalidade administrativa (Op. cit., p. 190).
53
AMARAL, Antônio Carlos Cintra do. Licitação e contrato administrativo. Estudos, pareceres, comentários.
3. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2010, p. 189.
Teoria geral do contrato aplicada aos contratos administrativos:
ensaio sobre a função pública e a autonomia privada na Lei nº 14.133/21 177

se de regra especial que, nesse ponto, prevalece, quando em confronto


com o regime jurídico de revisão do negócio jurídico no Direito Privado54.
Desde as últimas décadas, não mais deve prevalecer a distinção intrans-
ponível entre o Direito Público e o Direito Privado55. A hipercomplexidade
das relações sociais, a incontrolável conectividade dos meios eletrônicos,
a sociedade de desenfreado consumo massivo, a globalização dos mercados,
a aplicação direta dos direitos fundamentais às relações de Direito privado,
dentre outros fatores, determinam aos intérpretes esforços para superar as
artificiais barreiras de determinados segmentos do Direito56.
Segundo Pietro Perlingieri, a unidade do fenômeno social e do ordena-
mento jurídico exigem o estudo de cada instituto jurídico nos seus aspectos
privatísticos e publicísticos.

A própria noção entre direito privado e público


está em crise. Esta distinção, já os romanos tinham
dificuldade em definir, se substancia ora na natureza
pública do sujeito titular dos interesses, ora na
natureza pública e privada dos interesses. […]
As dificuldades de traçar linhas de fronteira entre
o direito público e o direito privado aumentam
também por causa da cada vez mais incisiva
presença que assume a elaboração dos interesses
coletivos como categoria intermediária57.

54
Código Civil. Art. 317. Quando, por motivos imprevisíveis, sobrevier desproporção manifesta entre
o valor da prestação devida e o do momento de sua execução, poderá o juiz corrigi-lo, a pedido da
parte, de modo que assegure, quanto possível, o valor real da prestação.
Da Resolução por Onerosidade Excessiva. Art. 478. Nos contratos de execução continuada ou diferida,
se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a
outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a reso-
lução do contrato. Os efeitos da sentença que a decretar retroagirão à data da citação.
Art. 479. A resolução poderá ser evitada, oferecendo-se o réu a modificar equitativamente as condições
do contrato.
Art. 480. Se no contrato as obrigações couberem a apenas uma das partes, poderá ela pleitear que a
sua prestação seja reduzida, ou alterado o modo de executá-la, a fim de evitar a onerosidade excessiva.
55
A esse respeito, cf. GUERRA, Alexandre D. de Mello, PIRES, Luis Manuel Fonseca; BENACCHIO, Marcelo.
Responsabilidade civil do Estado. Desafios contemporâneos. São Paulo: Quartier Latin, 2010, apresentação.
No mesmo sentido, v. NERY, Ana Rita de Figueiredo. A causa do contrato administrativo. Análise do conteúdo
contratual como parâmetro de aplicação do princípio da eficiência, op. cit., p. 4 ss.
56
A esse respeito, v. CANARIS, Claus-Wilhelm. Direitos fundamentais e o direito privado. Coimbra:
Almedina, 2006.
57
PERLINGIERI, Pietro. Perfis do Direito Civil. Introdução ao Direito Civil Constitucional. trad. Maria Cristina
De Cicco. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 52-53
178 Alexandre de Mello Guerra e Marcelo Benacchio

O Estado não mais se caracteriza como um ente sobrenatural,


que está autorizado a impor aos particulares um absoluto poder,
sem quaisquer freios, limites ou condicionantes. Na pós-modernidade,
o Estado Democrático de Direito impõe que o Estado realize seu compro-
misso constitucionalmente assegurado, realizando o interesse de cada
pessoa e da sociedade que se propõe a reger e estruturar, também por
meio do negócio jurídico-contratual. Deve o Estado tutelar direitos
fundamentais; deve concretamente favorecer o desenvolvimento da
pessoa; deve remover os obstáculos impeditivos da participação de
todos nas decisões sociopolíticas. “O Estado tem a tarefa de intervir
e de programar na medida em que realiza os interesses existenciais e
individuais, de maneira que a realização deles, é, ao mesmo tempo,
fundamento e justificação de sua intervenção.”58.
Daí porque a segregação intransponível entre o Direito Público
e o Direito Privado é uma falácia. Segundo Edmir Netto de Araújo,
quando o Direito Administrativo se afirmou como uma disciplina autôno-
ma da ciência do Direito, os sectários buscaram a transposição de
conceitos/institutos de Direito privado para o Direito Administrativo.
Em um segundo momento, passaram a recorrer ao chamado método de
análise regressiva: abstraindo e generalizando, os cultores do Direito
Administrativo atingiam as matrizes categoriais. As matrizes categoriais,
no seu dizer, são as:

[…] formas puras de conceituação jurídica, ainda


não comprometidas com qualquer dos ramos e muito
menos disciplinas jurídicas, chegando-se a noções,
conceitos e institutos aceitos pela teoria geral do
direito […]. A teoria geral do direito […] chega à noção
categorial de negócio jurídico, depois bifurcada em
negócio jurídico privado e o negócio jurídico público
e administrativo59.

O contrato não se situa, isoladamente no campo do Direito Público


ou Privado: ele paira sobre toda ciência do Direito. É noção da teoria

58
PERLINGIERI, Pietro, op. cit., p. 54.
59
ARAÚJO, Edmir Netto de. Do Negócio Jurídico Administrativo. São Paulo: Revista dos Tribunais,
1992, p. 207.
Teoria geral do contrato aplicada aos contratos administrativos:
ensaio sobre a função pública e a autonomia privada na Lei nº 14.133/21 179

geral do Direito (categoria jurídica estruturante)60, colocando em dúvida


a própria sobrevida da qualificação administrativo à matriz categorial
(só) do contrato61.

3. Autonomia privada vs. função pública no ambiente dos contratos


administrativos

São conciliáveis os conceitos de autonomia privada e função pública?


A resposta, a nosso ver, é positiva.
A teoria geral do contrato, como se destacou, revela o perfil político,
econômico, jurídico e filosófico da sociedade em uma determinada época.
Encerra uma relação de intersecção entre a liberdade individual e o aspecto
econômico da circulação de riqueza. No Brasil, expressiva parcela do
poder de autodeterminação do indivíduo envolve a liberdade de iniciativa
econômica, como acentua o art. 170 da Constituição Federal de 1988.
Tal poder de autodeterminação negocial é a autonomia privada, ou seja,
o poder de autorregramento dos interesses por meio de contratos.
Disso decorre que o conceito de autonomia privada já nasce conformada
por determinados elementos exteriores.
A vontade somente pode criar preceitos jurídicos se o Direito a ela
deferir poder e limites para que assim o seja. Todos os direitos trazem
em si um emolduramento; uma con(formação); um delineamento previa-
mente estabelecido pelo próprio ordenamento jurídico. O conceito de
Direito é um conceito que se conforma por um dado sociocultural que
a ele preexiste. Não existe, por exemplo, uma propriedade que não
tenha função social, justamente porque o desenho (a moldura) dada pelo
ordenamento jurídico brasileiro para o direito de propriedade já nasce

60
Op. cit., p. 121. E prossegue: “No regime jurídico de direito privado, as partes estão em relação de
horizontalidade, ou seja, em pé de igualdade quanto aos direitos e obrigações resultantes da relação
jurídica, o que coloca o contrato, no que respeita à sua execução, alteração e demais condições,
em uma sistemática consensual quase absoluta. Já no regime jurídico de direito público, em virtude da
aplicação do princípio da supremacia do interesse público sobre o interesse individual, a posição das
partes no contrato é a verticalidade, situando o Estado em posição de preponderância sobre o particular
na relação jurídica, possibilitando que o mesmo tome certas medidas ou use certas prerrogativas sem
a aquiescência do contratante particular, embora observando-se certas regras jurídicas protetoras do
interesse privado e do equilíbrio contratual.” (Op. cit., p. 121).
61
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Ainda existem os chamados contratos administrativos? In: Di Pietro,
Maria Sylvia Zanella; Alves Ribeiro, Carlos Vinicius. Supremacia do interesse Público e outros temas
relevantes de Direito Administrativo. São Paulo: Atlas, 2010, p. 398/400.
180 Alexandre de Mello Guerra e Marcelo Benacchio

(reconhece-se ab initio) funcionalizado, como determina o inc. XXIII do


art. 5º da Constituição Federal de 1988.
A função social, no contrato administrativo, seguindo o mesmo raciocínio,
não é um limitador externo a uma liberdade contratual preexistente (ampla,
geral e irrestrita), pois o próprio direito que assegura a liberdade contratual
já nasce sob um desenho de função social. Tal liberdade irrefreável em favor
dos contratantes simplesmente não existe, ao menos desde o século XX.
Não é admissível, dessa forma, criar validamente contratos que sejam contrá-
rios à moral; aos bons costumes; à própria lei; aos fins sociais do Direito;
aos fins econômicos do Direito ou que atentem contra a função social do
Direito. Portanto, a teoria geral dos contratos regula a liberdade e a trans-
ferência econômica (circulação da riqueza), elementos que se mostram
essenciais para o modelo capitalista.
O Estado, realizando o interesse público, necessita da cooperação/
participação dos particulares62. Dentre muitas formas, vale-se do contrato.
Laurent Richer63 sustenta ser impossível separar o Estado e a sociedade
civil. O Estado e a Administração Pública se inserem na sociedade civil.
A Administração Pública vive em permanente relação com os atores econô-
micos e sociais, em relações jurídicas por meio das quais se adotam compor-
tamentos substancialmente semelhantes àqueles de entre particulares.
É ilusória a pretensão de excluir a Administração Pública do ambiente da
autonomia privada contratual, sob pena de incorrer-se em um processo
de simplificação excessiva/negação da realidade, marcada por forte viés
ideológico, o que malfere a cientificidade do próprio do Direito.
Ao celebrarem contratos com a Administração Pública, os parti-
culares, de fato, se valem da autonomia privada. Mas à Administração
Pública não se defere o ordenamento jurídico tal autonomia, mas, sim,
o dever de cumprir a função pública. São, contudo, institutos conciliáveis.
Em virtude dos princípios regentes da Administração Pública, em especial
o princípio da legalidade administrativa, o Estado não exerce autono-
mia privada (ou autonomia administrativa) quando celebra contratos.

62
Sobre o dever de cooperação das partes na relação obrigacional para o cumprimento do programa
contratual – que se aplica também aos contratos administrativos, ver: COUTO E SILVA, Clóvis V. 
A obrigação como processo. São Paulo: Saraiva, 2012; GARBI, Carlos Alberto. A intervenção judicial no
contrato em face do princípio da integridade da prestação e da cláusula geral da boa-fé: uma nova
visão do adimplemento contratual. São Paulo: Escola Paulista da Magistratura, 2014. Disponível em:
https://‌api.‌tjsp.‌jus.‌br/‌‌Handlers/‌Handler/‌FileFetch. ‌ashx?‌codigo=‌63403. Acesso em: 1 nov.  2022.
63
RICHER, Laurent. Droit des contrats administratifs. Paris: LGDJ, 1995, p. 14-15.
Teoria geral do contrato aplicada aos contratos administrativos:
ensaio sobre a função pública e a autonomia privada na Lei nº 14.133/21 181

No entanto, quanto aos seus conteúdos, o Poder Público observa as exigên-


cias do ordenamento jurídico e age com poder de estabelecer as bases
da contratação/estipulação dos conteúdos.
Daí porque, segundo José Manuel Sérvulo Correia64, o conceito que
aqui se faz presente é o de autonomia pública contratual. Na sua percepção,
a autonomia pública contratual é a permissão de criar-se, no âmbito dos
atos e contratos administrativos:

[…] efeitos de direito não predeterminados por normas


jurídicas e titularidade e exercício do correspondente
poder, isto é, de margem de livre decisão na criação
de efeitos de direito nas situações concretas regidas
pelo Direito Administrativo.

A autonomia pública contratual não compromete a realização da


função pública. Trata-se do fruto da abertura conferida à Administração
Pública por determinada norma legal, que, em um juízo de conformidade
com a decisão legislativa concessiva de poderes à Administração Pública,
exerce-os à realização dos seus fins, com discricionariedade e margem de
apreciação de conceitos jurídicos indeterminados. Disso decorre que o
contrato administrativo é o legítimo fruto do exercício simultâneo (e em
relação de cooperação) entre as autonomias privada e pública.
Fixadas as premissas acima, a indagação final que delas decorre é:
o poder de a Administração Pública modificar o conteúdo do contrato
administrativo malfere o legítimo exercício das autonomias privada
e pública?
A resposta é negativa. O poder de alteração unilateral do contrato
administrativo é conferido pelas cláusulas exorbitantes, antes referidas.
Não se trata de cláusulas propriamente ditas, mas, sim, de disposições
legais que integram a estrutura do contrato administrativo. São manifesta-
ções do princípio da heteronomia da vontade. Esclarece Pietro Perlingieri65
que a heteronomia da vontade é o poder de criação de regras que deriva
não pelos titulares do interesse para o qual elas serão aplicadas, mas,

64
CORREIA, José Manuel Sérvulo. Legalidade e autonomia contratual nos contratos administrativos.
Coimbra: Almedina, 1987, p. 470.
65
PERLINGIERI, Pietro. Autonomia negoziale e autonomia contrattuale. Napoli: Edizioni Scientifiche
Italiane, 2000, p. 327.
182 Alexandre de Mello Guerra e Marcelo Benacchio

sim, por parte de sujeito estranho (terceiro), que realiza o interesse


público. São manifestações de heteronomia a lei, a norma administrativa
e a sentença: são todas interferências de sujeitos que tem poder de
disciplinar interesses, independentemente da vontade dos seus próprios
titulares66. O poder de alteração unilateral do contrato administrativo
surge na segunda metade do século XIX, como decorrência de desequilíbrio
ulterior em um contrato de prestação de serviço de iluminação pública67.
Os fenômenos da objetivação e da publicização do contrato afastaram
o dogma da intangibilidade da vontade (pacta sunt servanda). As cláusulas
exorbitantes dos contratos administrativos são autorizadas pelo ordenamento
jurídico, desde que o seu exercício não seja abusivo, por disfuncionalidade
axiológica (CC/2002, art. 187). Diante do exposto, como afirma Jean Rivero,
a existência de cláusulas exorbitantes não é suficiente para desqualificar a
natureza dos contratos administrativos68. Farta, ademais disso, é a orien-
tação da jurisprudência no sentido de acolher a aplicação da teoria geral
do contrato aos contratos administrativos69.

66
Segundo José Lourenço, “[…] o termo heteronomia refere-se ao que se deixa sujeitar; condição de pessoa
ou de grupo que recebe um elemento que lhe é exterior, ou de um princípio estranho a razão e a Lei.
Mais especificadamente, a heteronomia jurídica, para Maria Helena Diniz, é a sujeição do destinatário
da norma a seu comando, independente de sua vontade. Ou, como prefere Lalande, a condição de
uma pessoa ou de uma coletividade receber do exterior a lei à qual se submete.” (LOURENÇO, José.
Limites à liberdade de contratar: princípios da autonomia e da heteronomia da vontade nos negócios
jurídicos. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2001, p. 77).
67
A respeito, elucidativas são as ponderações de Fernando Vernalha Guimarães: “[…] Com o apareci-
mento definitivo da eletricidade, dada sua indiscutível superioridade em relação ao gás, puseram-se
em questionamento os inúmeros contratos de concessão então firmados com as companhias de gás,
detentoras do fornecimento e distribuição do produto à prestação da iluminação pública. Atentou-se
a que a imutabilidade dos contratos de concessão não se poderia sobrepor ao interesse público, ali
representado pelas vantagens que a nova tecnologia haveria de proporcionar à coletividade. Na França,
o surgimento da eletricidade levou muitas cidades a conceder a exploração da iluminação pública,
a partir da nova tecnologia, a empresas outras que não titulares das concessões então vigentes (a gás).
A insurgência das concessionárias titulares das cláusulas de privilégio (exclusividade) levou a discussão ao
Conselho de Estado, que decidiu a favor dessas, reputando que a exclusividade assinada pelos contratos
de concessão dizia respeito a todos os tipos de eletricidade. O Tribunal Francês, em vista dos recursos
apresentados pelas companhias de gás, chegou a condenar, em alguns casos, o poder público a pesadas
indenizações. Mais tarde, o mesmo Conselho de Estado reconsiderou a posição, interpretando as tais
cláusulas de privilégio como que atributivas de um simples direito de preferência, não mais deferindo
às concessionárias o direito de exclusividade em relação às variadas tecnologias de iluminação: “Quando
a Administração quisesse instalar a energia elétrica deveria primeiro pedir à companhia de gás que o
fizesse, e só quando esta se recusasse ficaria livre de contratar com outrem”. A questão sedimentou-se
com o arrêt Gaz de Deville-lès-Rouen, de 10.1.1902.” (Op. cit., p. 111-112).
68
RIVERO, Jean. Direito Administrativo. Coimbra: Almedina, 1981, p. 128.
69
1. No ACO nº 970, o Supremo Tribunal Federal, por voto do Min. GILMAR MENDES, em 17.05.2007,
reconheceu dever incidir princípio da boa-fé aos convênios administrativos (espécie de contrato
Teoria geral do contrato aplicada aos contratos administrativos:
ensaio sobre a função pública e a autonomia privada na Lei nº 14.133/21 183

Conclusão

Sob as luzes da NLLCA (Lei nº 14.133/21), é possível concluir que se


deve aplicar ao contrato administrativo, em caráter supletivo, todos os
princípios regentes da teoria geral do contrato e as disposições de direito
privado, como estabelece o art. 89 do novo diploma legislativo. Andou bem
o legislador ao se debruçar detidamente sobre o contrato administrativo,
a partir do artigo 89, e por mais de uma centena de artigos, e não se aferrar
ao procedimento licitatório como se o procedimento fosse um fim em si
mesmo. É que a licitação nada é senão o meio para que se possa alcançar
o fim, a meta, o objetivo maior: celebração do contrato administrativo.
Se é certo que o contrato administrativo se insere no ambiente
dos contratos, toda racionalidade que inspira o Direito contratual
(em especial os princípios contemporâneos do contrato, tais como a boa-fé,
a justiça contratual, o equilíbrio de prestações, a função social etc.)
devem se fazer presente nas relações de Direito Público. A vedação ao
exercício abusivo de posições jurídicas, a tutela das expectativas contra-
tuais criadas, a vedação ao comportamento contraditório, o dever lateral
de proteção da contraparte, dentre outros standards, deve animar tais
relações jurídicas, em especial nos momentos em que se pretenda invocar
as cláusulas exorbitantes, que não mais se revelam um direito potestativo
da Administração Pública.
Na lição final de Teresa Negreiros, não se vive hoje diante da ruptura
(ou da reinvenção) dos paradigmas contratuais. Na pós-modernidade,
o que cabe ao intérprete é adotar paradigmas diferenciados que emerjam
das diversas espécies contratuais. São vetores múltiplos e coexistentes,
que exigem esforço hermenêutico de coerência/harmonização com as
particularidades dos contratos administrativos.

Esse estado de coisas traduz-se no surgimento


do que escolhemos denominar como paradigma

administrativo). Ainda, foi sublinhada a incidência do princípio da intranscendência das sanções e das
medidas restritivas de ordem jurídica pelo Ministro CELSO DE MELLO nos autos de ACAgRQO nº 1.033/DF.
A Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal, nos RMS nº 23.640, voto do Min. MAURÍCIO CORRÊA,
em 16.10.2001, afirmou que o fato de o concorrente apresentar uma proposta financeira sem assina-
tura em processo de licitação gera a inexistência do documento em si (apócrifo). Assim decidiu sob o
argumento de se dever atender à boa-fé contratual, impondo-lhe a desclassificação por inobservância
de exigência prescrita no edital.
184 Alexandre de Mello Guerra e Marcelo Benacchio

da diversidade, numa tentativa de expressar a


capacidade de os novos princípios reformularem
aspectos paradigmáticos do contrato, e, ao mesmo
tempo, a capacidade de os princípios clássicos
subsistirem, embora funcionalmente alterados70.

Nos contratos administrativos, a tarefa dos juristas é a sedimen-


tação de posturas éticas que realizem a principiologia da teoria geral
do contrato.

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70
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981

Lei nº 14.133/21: a instrumentalidade


das formas e o formalismo moderado
no controle administrativo licitatório

Cristiana Fortini1
Advogada

Caio Mário Lana Cavalcanti2


Advogado

Sumário: Introdução. 1. Breves apontamentos sobre os princípios


da instrumentalidade das formas e do formalismo moderado no Direito
Administrativo. 2. Anotações sobre a aplicação dos supracitados princípios
no novo procedimento licitatório. Conclusões. Bibliografia.

Introdução

É sabido que a última década do século passado foi marcada, no país,


por escândalos de corrupção e de malversação de recursos públicos.
Rememoram-se, a título meramente ilustrativo, o caso Jorgina Maria de
Freitas Fernandes, procuradora previdenciária envolvida em indenizações
e benefícios fraudulentos no bojo do Instituto Nacional do Seguro Social,
bem como o caso Fernando Affonso Collor de Mello, acusado de corrupção
em conluio com o então empresário Paulo César Farias, contexto que
culminou com o primeiro processo de impeachment no Brasil.

1
Doutora em Direito Administrativo pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Presidente do
Instituto Brasileiro de Direito Administrativo. Professora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Professora da Faculdade Milton Campos. Professora Visitante da Università di Pisa. Visiting Scholar pela
George Washington University.
2
Especialista em Direito Administrativo, Direito Tributário e Direito Processual pela PUC Minas.
Especialista em Direito Tributário pela Universidade Cândido Mendes. Especialista em Advocacia
Pública pelo Instituto para o Desenvolvimento Democrático. Especialista em Direito Administrativo,
Direito Público, Direito Processual e Direito Constitucional pela Faculdade de Estudos Administrativos
de Minas Gerais. Especialista em Direito Penal e Processual Penal e em Direito Civil e Processual Civil
pela Faculdade Arnaldo. Especialista em Direito Público pelo Centro Universitário UNA.
190 Cristiana Fortini e Caio Mário Lana Cavalcanti

Fruto desse momento histórico brasileiro, a reação legislativa,


ancorada no apoio popular, restou consubstanciada na edição de leis rígidas
que privilegiavam a forma e o procedimento em detrimento do conteúdo,
da finalidade e do propósito do agir administrativo. Acreditava-se, máxime
diante do contexto acima destacado, que “[…] quanto mais rígido e
burocrático o processo, mais difícil de burlá-lo; e quanto mais prerro-
gativas administrativas, mais instrumentalizada a Administração Pública
para salvaguardar o interesse público.” (FORTINI; CAVALCANTI, 2021).
A Lei nº 8.666/93, sem dúvidas, é um exemplo dessa valorização da
forma e da burocracia3, sendo certo que a rigidez procedimental nela
prescrita, criada sob o véu do combate à corrupção, acabou por ensejar
não o combate aos atos corruptos – que, aliás, continuaram em voga,
em que pese a pretensão legislativa –, mas um procedimento licitató-
rio lento, custoso4 e que, não raras as vezes, não atendia ao princípio da
vantajosidade, na medida em que propostas potencialmente interessantes
eram descartadas em virtude de inconsistências meramente formais,
incapazes de suscitar qualquer prejuízo ao processo licitatório5.
Enfim, fato é que o intuito do legislador, em verdade, não logrou êxito:
conquanto rígida a burocracia licitatória, mantidos foram os atos corruptos
no âmbito das contratações públicas; e, para além disso, o caráter proce-
dimental estanque e a valorização demasiada da forma fizeram exsurgir

3
Carlos Ari Sundfeld chegou a afirmar que cumprir todas as formalidades da Lei nº 8.666/93 repre-
sentava um “[…] martírio para os milhares de profissionais obrigados a cumpri-la cotidianamente.”.
Cf: SUNDFELD, Carlos Ari. Licitação e contrato administrativo. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 1995, p. 11.
4
Nesse sentido: FORTINI, Cristiana; PEREIRA, Maria Fernanda Pires de Carvalho; CAMARÃO, Tatiana
Martins da Costa. Licitações e contratos: aspectos relevantes. 2. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2008,
p. 162-163
5
Nesse sentido, Egon Bockmann Moreira e Fernando Vernalha Guimarães: “Como todos os diplomas
normativos, a Lei 8.666/1993 (doravante LGL) é retrato fiel de seu tempo. Foi originalmente pro-
mulgada depois de período conturbado da História brasileira. Menos de um ano antes, havia se dado
a exposição pública de vários casos de corrupção, culminando no impeachment do Presidente da
República – que representou um teste de força da Constituição e instituições brasileiras. O País passava
por uma reorganização político-administrativa e uma busca de paradigmas éticos para a Administração
Pública. À época, era notório que parte das licitações e contratos administrativos envolvia desvios de
verba pública. Talvez daí advenha a rigidez do tratamento legislativo de alguns temas, que resultou
em críticas negativas: a LGL tida como rígida, supérflua e enigmática – a aumentar os custos, públicos
e privados, naquelas que representam algumas das mais importantes contratações brasileiras. Muitas
vezes tentou-se solucionar os problemas das contratações públicas (sociais, éticos, econômicos,
gerenciais etc.) com recurso ao formalismo.” Cf: MOREIRA, Egon Bockmann; GUIMARÃES, Fernando
Vernalha. Licitação pública: a lei geral de licitações/lgl e o regime diferenciado de contratações/rdc.
2. ed., atual., rev. e aumentada. São Paulo: Malheiros, 2015, p. 29.
Lei nº 14.133/21: a instrumentalidade das formas e
o formalismo moderado no controle administrativo licitatório 191

uma indevida relativização do princípio da vantajosidade, na medida em


que boas propostas, em virtude de equívocos que poderiam ser superados,
eram descartadas pela Administração Pública. Os meios, pois, eram mais
valorizados que os fins; e as finalidades licitatórias, frustradas por mecanis-
mos que deveriam, em verdade, concretizá-las.
Dito isso, foi nesse contexto problemático que foi editada e poste-
riormente promulgada a Lei nº 14.133/21. Malgrado as críticas no sentido
de que a Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos poderia ter
avançado mais, tendo mantido de forma desnecessária uma indesejada
essência burocrática6, não é possível dizer que não existiram avanços no
tocante à formalidade exacerbada. Em verdade, reconhecemos várias
virtudes na nova lei, em especial pela busca de uma relação menos hostil
entre o público e o privado7. O foco em governança e planejamento ao longo
do ciclo de contratação, exigindo contínua avaliação dos passos, também
deve ser destacado8, além do olhar para a integridade9 e profissionalismo10.
Eis, pois, traçada tal conjuntura, o objetivo deste trabalho: tecer
breves comentários a respeito dos princípios da instrumentalidade das

6
Nesse sentido, cf: OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. A nova lei de licitações: um museu de novidades?,
Direito do Estado, ano 2020, número 474. Também nesse contexto, esclarece José Eduardo Martins Cardozo,
sobre a Lei nº 14.133/21, que alguns doutrinadores “[…] acusam esse diploma legislativo de não ter sido
suficientemente ousado para romper com uma cultura institucional atrasada e burocrática, no âmbito
da prática dos processos licitatórios e dos próprios ajustes contratuais que deles derivam. Afirma-se que
se perdeu, mais uma vez, uma grande oportunidade de se construir novos e revolucionários paradigmas
normativos, ao se bater continência a sentimentos misoneístas e descompassados com as exigências
impostas por um mundo moderno e veloz.”. Cf: CARDOZO, José Eduardo Martins. Artigos 147 a 150.
In: DAL POZZO, Augusto Neves; CAMMAROSANO, Márcio; ZOCKUN, Maurício (coord.). Lei de licitações e
contratos administrativos comentada: Lei 14.133/21. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021, p. 648.
7
A esse respeito, destacamos que o legislador manteve a natureza pública dos contratos celebrados
com as entidades alcançadas pela Lei 14.133/21, mas revela preocupação com o interesse do mercado
pela contratação. Destacamos a menor tolerância com atrasos no pagamento, maior rigor com a ordem
cronológica, exigência de que os contratos tenham cláusulas prevendo prazo resposta aos pedidos de
repactuação e reequilíbrio.
8
Importante salientar o art. 11 da nova lei que está bem delineado na Portaria Seges 8678/21 que atinge
os entes da esfera federal, exceto as empresas estatais.
9
Exigem-se programas de integridade para contratos de grande vulto (art. 25 § 4º), bem como para
a hipótese de reabilitação (art. 156 § 1º, V), e valoriza-se a existência dos citados programas como
critério para o desempate de propostas (art. 60, III) e como mecanismo de calibragem das sanções a
favor das entidades (art. 163, parágrafo único).
10
O perfil de agente público definido no art. 7 º, em especial o que consta do inciso II, revela que não
se permitirá que qualquer trabalhador deixe suas digitais no ciclo de contratação, já que é necessário
que tenham atribuições relacionadas a licitações e contratos ou apresentam formação compatível ou
qualificação atestada por certificação profissional emitida por escola de governo criada e mantida
pelo poder público.
192 Cristiana Fortini e Caio Mário Lana Cavalcanti

formas e do formalismo moderado no âmbito do controle administrativo do


procedimento licitatório inaugurado pela Lei nº 14.133/21. Isso de forma
a demonstrar que as diretrizes da nova lei contribuíram para a valoriza-
ção de uma das finalidades das licitações públicas, assegurar a seleção
da proposta apta a gerar o resultado de contratação mais vantajoso11,
bem como asseguraram a restrição aos excessos então despejados na
burocracia e na forma que, em verdade, não podem ser vislumbradas como
fins em si mesmas, senão meros meios para alcançar o interesse público.

1. Breves apontamentos sobre os princípios da instrumentalidade


das formas e do formalismo moderado no Direito Administrativo

O princípio da instrumentalidade das formas, em síntese, determina


que será considerado válido o ato praticado se, conquanto realizado em
inobservância das formas previstas, atinja a sua finalidade sem culmi-
nar com prejuízos desproporcionais a terceiros; diretriz que valoriza a
efetividade processual12 e o princípio da duração razoável do processo.
Nesse sentido, no campo processual civil, a norma jurídica em comento
resta estampada no art. 188 do Código de Processo Civil, que exterio-
riza que “[…] os atos e os termos processuais independem de forma
determinada, salvo quando a lei expressamente a exigir, considerando-se
válidos os que, realizados de outro modo, lhe preencham a finalidade
essencial […]”, bem como no art. 277 do mesmo estatuto, que dispõe
que “[…] quando a lei prescrever determinada forma, o juiz considerará
válido o ato se, realizado de outro modo, lhe alcançar a finalidade.”
(BRASIL, 2015).
Na senda dos procedimentos e processos administrativos, mormente
a licitação, objeto do deste trabalho, se impõe o princípio da instru-
mentalidade das formas à semelhança13 da maneira aplicável à seara
processual civil: resta indevido que o administrador público priorize as
formalidades do procedimento administrativo licitatório em detrimento
das suas finalidades14, sobretudo quando a adoção dessa instrumentali-

11
Conforme dispõe o art. 11, I, da Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos.
12
Nesse sentido: THEODORO JUNIOR. Humberto. Curso de direito processual civil. Volume I. 59. ed.
Rio de Janeiro: Forense, 2018, p. 23.
13
Sem que haja identidade, naturalmente.
14
As finalidades do processo licitatório estão insculpidas no art. 11 da Lei nº 14.133/21: “Art. 11. O pro-
cesso licitatório tem por objetivos: I – assegurar a seleção da proposta apta a gerar o resultado de
Lei nº 14.133/21: a instrumentalidade das formas e
o formalismo moderado no controle administrativo licitatório 193

dade não causa prejuízos diretos a outrem, à maneira do princípio pas


de nullité sans grief.
Em tal horizonte, o Tribunal Regional Federal da 3ª Região já
decidiu que, “[…] no tocante à forma no processo administrativo, esta é
o instrumento para alcançar os objetivos do ato, sendo que eventual vício
pode ser sanado caso não haja prejuízo […]”, e, por isso, “[…] a forma do
ato não é um fim em si mesmo, garantindo que os atos processuais possam
ser aproveitados quando a nulidade for sanável e não houver prejuízo para
a Administração e para o administrado.”15.
Nessa toada, importa sedimentar e reforçar que as formalidades legais
do procedimento licitatório não são fins em si mesmas, mas mecanismos
para alcançar as finalidades públicas, ou seja, instrumentos; pelo que
privilegiar os tais meios em detrimentos dos fins, para além de representar
uma contradição, atenta contra o próprio interesse público in concreto e,
consequentemente, contra o princípio da finalidade pública.
E, de mais a mais, por corolário, ao atentar contra o interesse
público materializado na realidade fática, há igualmente uma viola-
ção ao consequencialismo16 e ao realismo jurídicos17, positivados pela

contratação mais vantajoso para a Administração Pública, inclusive no que se refere ao ciclo de vida
do objeto; II – assegurar tratamento isonômico entre os licitantes, bem como a justa competição;
III – evitar contratações com sobrepreço ou com preços manifestamente inexequíveis e superfaturamento
na execução dos contratos; IV – incentivar a inovação e o desenvolvimento nacional sustentável.”.
15
TRF3, Apelação Cível/Remessa Necessária 5021790-36.2018.4.03.6100, Rel. Desembargador Federal
VALDECI DOS SANTOS, 1ª TURMA, julgado em 19/03/2021.
16
Sugere-se, sobre o tema consequencialismo jurídico, a leitura: FRANÇA, Phillip Gil. Algumas conside-
rações sobre como decidir conforme o consequencialismo da Lei 13.655/2018. In: MAFFINI, Rafael;
RAMOS, Rafael (coord.). A nova LINDB. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2020.
17
Sobre o realismo no âmbito da LINDB, André Ribeiro Tosta: “Considerações realistas são argumentos
interdisciplinares voltados a descrever empiricamente a interpretação/aplicação de normas jurídicas
por instituições com nome e endereço e por agentes de carne e osso em ambientes socieconômicos/
políticos reais. São debates que se preocupam não apenas com ‘o Direito’, mas também com o con-
texto dos envolvidos em sua concretização […] Realistas se preocupam em complementar debates
jurídicos tradicionais, que tipicamente focam no ‘quid iuris’ – em apontar qual resposta determina
‘o Direito’, suas normas, seus princípios, seus valores –, com fatores endereçados por outras lentes.
Eles entendem que as normas e a linguagem jurídica gozam de alguma espécie de ‘autoridade’,
mas argumentam que há outras variáveis de ordem prática que impactam no exercício adequado dessa
autoridade […] Para realistas, compreender o Direito Público vai além de compreender os conceitos
jurídicos (primeiro passo), seria preciso também endereçar aspectos concretos, extra jurídicos, que não
são captados pelas abordagens e pelos conceitos jurídicos tradicionais […] A nova LINDB é realista e
demanda posturas realistas; ela positiva regras que limitam os efeitos da indeterminação jurídica em
alguns debates corriqueiros (direcionando desfechos mais coerentes em casos de incertezas) e salienta
a necessidade de decisões públicas (administrativas ou controladoras) que não se pautem apenas
194 Cristiana Fortini e Caio Mário Lana Cavalcanti

Lei nº 13.655/18 e que propugnam, respectivamente, que as consequências


práticas devem ser consideradas nas decisões administrativas e judiciais e
que a ciência jurídica deve ser avaliada não em abstrato, mas em atenção
ao cenário vivido, ao contexto experimentado, ao que realmente acontece
no mundo dos fatos.
Conclui-se, ante o exposto, que o princípio da instrumentalidade das
formas, malgrado geralmente correlacionado ao processo civil, igualmente
é aplicável aos processos administrativos e determina que as formalidades
legais não são fins propriamente ditos, senão instrumentos para consecução
de uma finalidade pública. E, justamente por isso, equívocos meramente
formais podem ser desconsiderados ou saneados se alcançada a finalidade
perseguida pelo ordenamento jurídico aplicável e se inexistentes prejuízos
desproporcionais a terceiros ou em desfavor da Administração.
O princípio do formalismo moderado – ou, para alguns, informalismo –,
por sua vez, ao complementar a ideia inerente à instrumentalidade das
formas, assevera que as formas do processo administrativo não podem
ser estanques, rígidas, inflexíveis, mas, conforme leciona Maria Sylvia
Zanella Di Pietro, “[…] só devem ser impostas na medida necessária e
suficiente para que a atuação da Administração Pública atinja os seus fins,
em especial a garantia dos direitos dos administrados.” (DI PIETRO, 2015)18.
Evita-se com princípio jurídico em comento, assim, a “superva-
lorização da forma”19 e a exigência de formalidades desnecessárias e
inócuas – a forma simplesmente pela forma –, que não se justificam
diante dos interesses dos administrados ou da Administração Pública20.
Tais diretrizes, aliás, contribuem para o desenvolvimento de um processo
administrativo mais célere e mais eficiente, que se preocupa mais com

pelas normas ou princípios jurídicos cabíveis, mas, também, pelo contexto da decisão. Os arts. 20 e
22 são os que melhor simbolizam essa segunda faceta.” TOSTA, André Ribeiro. Realismo e a LINDB:
amor à primeira vista?. In: MAFFINI, Rafael; RAMOS, Rafael (coord.). A nova LINDB. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2020, p. 6-8; 17-18. Cf. também: TABORDA, Maren Guimarães. Realismo, natureza das
coisas e publicidade: discussão sobre os critérios hermenêuticos da Lei 13.655/2018. In: MAFFINI, Rafael;
RAMOS, Rafael (coord.). A nova LINDB. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2020, p. 33.
18
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Princípios do processo judicial no processo administrativo. Revista
Consultor Jurídico, 10 de dezembro de 2015. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2015-dez-10/
interesse-publico-principios-processo-judicial-processo-administrativo. Acesso em: 5 nov. 2022.
19
MARRARA, Thiago. Princípios do processo administrativo. In: BITENCOURT NETO, Eurico; MARRARA,
Thiago (coord.). Processo administrativo brasileiro: estudos em homengem aos 20 anos da lei federal
de processo administrativo. Belo Horizonte: Fórum, 2020, p. 101.
20
Nesse sentido: LIMA, Arnaldo Esteves. O processo administrativo no âmbito da administração pública
federal: lei n. 9.784 de 29/01/1999. Belo Horizonte: Del Rey, 2014, p. 34 e 35.
Lei nº 14.133/21: a instrumentalidade das formas e
o formalismo moderado no controle administrativo licitatório 195

as finalidades públicas que com uma formalização rígida, marca da


atual Administração Pública Gerencial, em contraponto à Administração
Pública Burocrática.
Costuma-se mencionar, ademais, que, a nível federal, o princípio
do formalismo moderado ou mitigado encontra correspondência legal no
art. 2º, parágrafo único, incisos VIII e IX, da Lei nº 9.784/99, que indicam,
respectivamente, que serão observadas as “formalidades essenciais à
garantia dos direitos dos administrados” e que adotar-se-ão “[…] formas
simples, suficientes para propiciar adequado grau de certeza, segurança
e respeito aos direitos dos administrados.”. A nível estadual, em redação
similar, destacam-se, a título ilustrativo, os incisos VI e VII do art. 5º
da Lei Estadual nº 14.184/02, do Estado de Minas Gerais, que advertem
respectivamente que, nos processos administrativos mineiros, são obser-
vadas a “[…] observância das formalidades essenciais à garantia dos
direitos dos postulantes e dos destinatários do processo” e a “adoção
de forma que garanta o adequado grau de certeza, segurança e respeito
aos direitos das pessoas.”.
Veja-se, por conseguinte, que a ideia subjacente aos dispositivos legais
indicados revela que as formalidades nos procedimentos administrativos
devem ser simples e se justificam tão somente para garantir os direitos
dos administrados, mormente a segurança jurídica. Também por isso,
portanto, à luz de um formalismo mitigado, eventuais impropriedades
meramente formais, que não geram maiores transtornos ou prejuízos para
o processo administrativo ou para terceiros, podem ser desconsideradas
ou convalidadas pelo administrador público em prol do particular21.
Acredita-se, em contrapartida, que o princípio do formalismo
moderado pode ser suscitado apenas em prol do administrado, e nunca
em seu detrimento de forma a permitir que uma impropriedade formal
praticada pela Administração Pública cause prejuízo ao particular.
Defende-se ser impróprio que o Estado (em sentido lato), com toda a
robustez da máquina pública e com todo o pessoal técnico à sua disposição,

Nesse contexto, de acordo com Fábio Zambitte Ibrahim: “Em virtude do informalismo, pequenas
21

falhas e omissões, que não comprometam a matéria tratada, podem ser corrigidas posteriormente ou,
até mesmo, ignoradas. Aliás, se passíveis de omissão sem prejuízo para o processo, deveriam ser
eliminadas do mesmo, pois a demanda administrativa deve possuir procedimento o mais singelo
possível.” Cf: IBRAHIM, Fábio Zambitte. Processo administrativo é mais eficaz sem formalidades. Revista
Consultor Jurídico, 10 de outubro de 2012. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2012-out-10/
fabio-zambitte-processo-administrativo-eficaz-formalidades. Acesso em: 05 nov. 2022.
196 Cristiana Fortini e Caio Mário Lana Cavalcanti

possa flexibilizar as normas legais e regulamentares que ele próprio


criou anteriormente em detrimento do administrado, cenário que, aliás,
implicaria frustração da confiança legítima do particular e comporta-
mento contraditório do Poder Público, o que, por sua vez, causa violação
respectiva aos princípios da confiança e da vedação ao comportamento
contraditório (nemo potest venire contra factum proprium).
Também com essa percepção, ilustrativamente, pela inaplicabili-
dade do formalismo moderado em prol da Administração Pública e em
detrimento do particular, Fernanda Marilena aduz que “[…] o informa-
lismo não é total; é benefício somente para o administrado e nunca
para a Administração. Desse modo, é possível a sua definição nas
seguintes palavras: informalismo para o administrado, formalismo para
a Administração.”22. Do mesmo modo, explica Hely Lopes Meirelles
que o informalismo há de ser aplicado “sempre em benefício do
administrado”23 e, igualmente, Sérgio Ferraz e Adilson Abreu Dallari
frisam que o titular do informalismo é o particular, “[…] sendo que
somente em seu benefício pode haver alguma informalidade.”24.
Conclui-se, ante o exposto, que, embora os princípios da instrumen-
talidade das formas e do formalismo moderado ou mitigado não sejam
coincidentes, ambos têm fundamentos similares, que convergem para a
superação da ideia de forma enquanto fim em si mesma e para o privilégio
das finalidades públicas, que devem ser realçadas e preponderadas diante
das formalidades que, aliás, nada mais são senão instrumentos para a
concretização dos fins administrativos.

2. Anotações sobre a aplicação dos supracitados princípios no


novo procedimento licitatório

Uma vez minudenciados os princípios do formalismo moderado e da


instrumentalidade das formas em âmbito administrativo, dois dispositivos
legais da Lei nº 14.133/21 merecem ser sublinhados nesta oportunidade,

22
MARINELA, Fernanda. Direito administrativo. 7. ed. rev., ampl., reformada e atual. Niterói: Impetus,
2013, p. 1105.
23
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 32. ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 687.
24
FERRAZ, Sérgio; DALLARI, Adilson Abreu. Processo administrativo. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2012,
p. 125. No mesmo sentido, cf: MARRARA, Thiago. Princípios do processo administrativo. In: BITENCOURT
NETO, Eurico; MARRARA, Thiago (coord.). Processo administrativo brasileiro: estudos em homenagem
aos 20 anos da lei federal de processo administrativo. p. 100-101.
Lei nº 14.133/21: a instrumentalidade das formas e
o formalismo moderado no controle administrativo licitatório 197

na medida em que concretizam e revelam a essência subjacente àqueles


mandamentos, quais sejam, o art. 5º, o 147 e o art. 169, § 3º, I.
O art. 5º arrola os princípios norteadores do passo a passo da contra-
tação pública. Razoabilidade, interesse público, proporcionalidade e
segurança pública e dita a relevância de se considerarem os ditames da
Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro. A citada lei, sobretudo
após as alterações de 2015, reforçam a busca por segurança jurídica,
com realce para o art. 2125. Bastaria, portanto, tais regras para que a
convalidação fosse prestigiada e a nulidade fosse avaliada a partir dos
efeitos que dela pudessem ocorrer.
O art. 147 da nova lei dispõe que, constatadas irregularidades no
procedimento licitatório ou na execução contratual, a regra primeira
e o pressuposto a ser seguido é o saneamento do vício, ou seja, meras
inconformidades que não causam maiores prejuízos às finalidades
administrativas devem ser convalidadas – a convalidação dos vícios
“de menor gravidade”26, inclusive, deve ser a regra a ser observada
no agir administrativo como um todo27, sendo a convalidação, pois,
se possível, um ato vinculado28.
Destarte, verificada a irregularidade, não é a solução ótima a
anulação de pronto do procedimento licitatório ou a decretação da
nulidade do contrato administrativo dele decorrente, máxime quando
a impropriedade é irrelevante, irrisória e não gera quaisquer danos para

25
Art. 21. A decisão que, nas esferas administrativa, controladora ou judicial, decretar a invalidação
de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa deverá indicar de modo expresso suas con-
sequências jurídicas e administrativas Parágrafo único. A decisão a que se refere o caput deste artigo
deverá, quando for o caso, indicar as condições para que a regularização ocorra de modo proporcional
e equânime e sem prejuízo aos interesses gerais, não se podendo impor aos sujeitos atingidos ônus ou
perdas que, em função das peculiaridades do caso, sejam anormais ou excessivos.
26
FURTADO, Lucas Rocha. Curso de direito administrativo. 3. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2012, p. 267.
27
Como esclarece Raquel Urbano Melo de Carvalho: “Um ato que apresenta desconformidade grave em
face das disposições jurídicas seria objeto de rechaçamento absoluto pelo ordenamento, merecendo
ser expelido mediante ato de invalidação. Já o ato cujo vício for de menor intensidade e que, assim,
não justifica expulsão do sistema, sujeita-se à convalidação […] com efeito, é o interesse público que
fundamenta o entendimento de que há dois institutos aptos a recompor a legalidade violada por um
determinado vício. Isto porque, se uma desconformidade pode ser sanada, não se justificaria a su-
pressão do ato, à luz do próprio interesse social. Não há que se falar em invalidação, se o ato pode ser
convalidado […]”. Cf: CARVALHO, Raquel Melo Urbano de. Curso de direito administrativo. Salvador:
Juspodivm, 2008, p. 433.
28
Nesse sentido: CARDOZO, José Eduardo Martins. Artigos 147 a 150. In: DAL POZZO, Augusto Neves;
CAMMAROSANO, Márcio; ZOCKUN, Maurício (coord.). Lei de licitações e contratos administrativos
comentada: Lei 14.133/21. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021, p. 651.
198 Cristiana Fortini e Caio Mário Lana Cavalcanti

terceiros ou para os fins públicos. Assim, conforme ensina Irene Patrícia


Nohara, aquelas medidas extremadas apenas têm vez “[…] quando não
for possível o saneamento da irregularidade no procedimento licitatório
ou na execução contratual.”29.
Veja-se, pois, que a própria ideia de convalidação das irregularidades
guarda harmonia com os ditames da instrumentalidade das formas e do
formalismo moderado, porque parte do pressuposto que uma improprie-
dade formal, por si só e isoladamente considerada, não pode dar azo
à nulidade do procedimento licitatório ou do instrumento contratual,
solução que poderia desaguar na ineficiência administrativa30. É preciso,
assim, proceder a uma análise casuística, caso a caso, no afã de verificar:
em primeiro lugar, se o vício pode ser saneado, porque, se assim o for,
assim o será; em segundo lugar, se a impertinência formal é relevante ou
se implica no contexto analisado prejuízos desproporcionais aos licitantes
ou danos às finalidades licitatórias, mormente aquelas descritas no art. 11
da Lei nº 14.133/21, porque, se assim não o for, a decretação da nulidade
por vir a ser excessiva.
Ademais, não sendo possível o saneamento da irregularidade –
repita-se, a regra é sanear a impropriedade, mantidos intactos o procedi-
mento licitatório e o contrato administrativo –, a suspensão da execução
contratual ou a sua nulidade devem considerar uma série de aspectos
práticos e pragmáticos, devidamente listados nos incisos do art. 147 da
Lei nº 14.133/21.
Destacam-se, nessa esteira, o caput e os incisos do mencionado
artigo, que, respectivamente, tratam da regra do saneamento das
irregularidades formais e trazem os aspectos que devem ser considerados
quando da suspensão ou nulidade do contrato administrativo:

Art. 147. Constatada irregularidade no procedimento


licitatório ou na execução contratual, caso não seja

29
NOHARA, Irene Patrícia. Nova lei de licitações e contratos: comparada. São Paulo: Thomson Reuters
Brasil, 2021, p. 493. No mesmo sentido, Rafael Carvalho Rezende Oliveira esclarece que “[…] a partir
da premissa de que o formalismo na Administração Pública não pode ser encarado de forma absoluta,
o legislador somente autoriza a anulação dos atos irregulares nas hipóteses em que não for possível o
saneamento.”. Cf: OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Nova lei de licitações e contratos administrativos:
comparada e comentada. Rio de Janeiro: Forense: 2021, p. 339.
30
Nesse sentido: NÓBREGA, Theresa Christine de Albuquerque (coord.). Comentários à Lei nº 14.133/2021:
desafios, oportunidades e transformações das licitações e contratos administrativos. São Paulo:
MP Editora, 2021, p. 493.
Lei nº 14.133/21: a instrumentalidade das formas e
o formalismo moderado no controle administrativo licitatório 199

possível o saneamento, a decisão sobre a suspensão


da execução ou sobre a declaração de nulidade do
contrato somente será adotada na hipótese em que se
revelar medida de interesse público, com avaliação,
entre outros, dos seguintes aspectos:
I – impactos econômicos e financeiros
decorrentes do atraso na fruição dos benefícios do
objeto do contrato;
II – riscos sociais, ambientais e à segurança da
população local decorrentes do atraso na fruição dos
benefícios do objeto do contrato;
III – motivação social e ambiental do contrato;
IV – custo da deterioração ou da perda das parcelas
executadas;
V – despesa necessária à preservação das instalações
e dos serviços já executados;
VI – despesa inerente à desmobilização e ao posterior
retorno às atividades;
VII – medidas efetivamente adotadas pelo titular do
órgão ou entidade para o saneamento dos indícios de
irregularidades apontados;
VIII – custo total e estágio de execução física e
financeira dos contratos, dos convênios, das obras ou
das parcelas envolvidas;
IX – fechamento de postos de trabalho diretos e
indiretos em razão da paralisação;
X – custo para realização de nova licitação ou
celebração de novo contrato;
XI – custo de oportunidade do capital durante o
período de paralisação. (BRASIL, 2021)

Ou seja, a atuação administrativa não deve ser guiada apenas


pela existência ou não de um vício, mas sobretudo tendo em vista
as consequências práticas da decisão e a realidade experimentada,
que devem ser sopesadas e efetivamente consideradas pelo gestor
público. Ora, a consideração por parte da Administração Pública dos
impactos financeiros e econômicos, dos riscos socioambientais, dos custos
de deterioração ou da perda das parcelas já executadas, das atitudes
do contratado para efetivamente sanar a irregularidade, das despesas
com a manutenção das instalações e com a desmobilização, dos custos
de oportunidade do capital e para a elaboração de uma nova licitação,
200 Cristiana Fortini e Caio Mário Lana Cavalcanti

das motivações contratuais, das despesas decorrentes da medida adminis-


trativa e do eventual fechamento dos postos de trabalho nada mais são
senão exemplos de reflexões acerca das consequências práticas do agir
administrativo e das suas decorrências para a realidade da gestão pública.
Trata-se, por conseguinte, de dispositivo legal que dialoga com o conse-
quencialismo e com o realismo jurídicos positivados pela Lei nº 13.655/18 no
âmbito da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB)31;32 e já
mencionados neste trabalho. Nesse sentido, a interpretação e a aplicação
do ordenamento jurídico não mais podem se dar tão somente de forma
abstrata e dissociada do contexto experimentado – como defendiam os
positivistas extremados –, mas de maneira a averiguar as suas implicações
efetivas na conjuntura administrada pelo Poder Público, afinal, se o agir
administrativo se pautar na formalidade extremada em detrimento do
interesse público, o próprio princípio da finalidade estaria prejudicado.
Perceba-se que os critérios alinhados no art. 147 não são taxativos.
São alguns dos parâmetros que devem ser analisados na construção da
decisão administrativa. Realmente, a paralisação pode lesar o interesse
público e essa é a ótica salientada no dispositivo. Nos incisos do art. 147
se vislumbram preocupações com o erário, diante de custos com novo
certame, fiscalização da obra, deterioração, entre outros, além de aspectos
sociais e ambientais.
A nova lei previu, como se vê, que, caso a paralisação ou a anula-
ção não se revele medida de interesse público, o poder público poderá
optar pela continuidade do contrato e pela solução da irregularidade
por meio de indenização por perdas e danos, sem prejuízo da apuração
de responsabilidade e da aplicação de penalidades cabíveis (art. 147,
parágrafo único). A decretação de nulidade pode traduzir contrariedade
ao interesse público, razão pela qual se requer uma análise sobre os prós
e contras que dela pudessem reverberar (art. 148).

31
Destacam-se, sobre o realismo e consequencialismo jurídicos, os caputs dos arts. 20, 21 e 22 da
LINDB: “Art. 20. Nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em
valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão. Art. 21.
A decisão que, nas esferas administrativa, controladora ou judicial, decretar a invalidação de ato,
contrato, ajuste, processo ou norma administrativa deverá indicar de modo expresso suas conse-
quências jurídicas e administrativas. Art. 22. Na interpretação de normas sobre gestão pública, serão
considerados os obstáculos e as dificuldades reais do gestor e as exigências das políticas públicas a
seu cargo, sem prejuízo dos direitos dos administrados.”.
32
Como já dissemos, o próprio final do art. 5º da Lei nº 14.133/21 assevera que os ditames da LINDB
serão observados.
Lei nº 14.133/21: a instrumentalidade das formas e
o formalismo moderado no controle administrativo licitatório 201

Mas, ainda que a conclusão seja pela nulidade, a Administração


Pública poderá modular os efeitos. A nulidade, em princípio, retroage
alcançando as situações quando ocorreram “[…] impedindo os efeitos
jurídicos que o contrato deveria produzir ordinariamente e desconstituindo
os já produzidos […]”, assegurado ao contratado o pagamento pelas
parcelas já executadas.
Mas o legislador admite que as consequências da nulidade tenham eficá-
cia em momento futuro suficiente para efetuar nova contratação, por prazo de
até seis meses, prorrogável uma única vez (art. 148, § 2º). O prazo concedido
favorece a busca de uma solução administrativa para o desafio.
Para mais e além, outro dispositivo legal que merece destaque no bojo
dos princípios ora discutidos é o art. 169, § 3º, I, da Nova Lei de Licitações
e Contratos Administrativos. Segundo ele, quando as três linhas de defesa
administrativa, quando do controle administrativo das contratações,33

[…] constatarem simples impropriedade formal,


adotarão medidas para o seu saneamento e para
a mitigação de riscos de sua nova ocorrência,
preferencialmente com o aperfeiçoamento dos
controles preventivos e com a capacitação
dos agentes públicos responsáveis. (BRASIL, 2021)

É de se notar, mais uma vez, com fundamento último na instrumen-


talidade das formas e no formalismo moderado, a intenção do legislador
ordinário federal de minimizar os efeitos das impropriedades meramente
formais, de maneira a reforçar a ideia segundo a qual a regra a ser seguida
é o saneamento, a convalidação dos vícios, sendo a nulidade do ato ultima
ratio no bojo das contratações públicas, devendo ser decretada apenas
em casos realmente sérios e relevantes. Recupera-se, assim, como escla-
recem Fabrício Motta e Fernanda de Moura Ribeiro Naves, a “diretriz

33
Nos termos do art. 169 da Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos: “Art. 169. As contra-
tações públicas deverão submeter-se a práticas contínuas e permanentes de gestão de riscos e de
controle preventivo, inclusive mediante adoção de recursos de tecnologia da informação, e, além de
estar subordinadas ao controle social, sujeitar-se-ão às seguintes linhas de defesa: I – primeira linha
de defesa, integrada por servidores e empregados públicos, agentes de licitação e autoridades que
atuam na estrutura de governança do órgão ou entidade; II – segunda linha de defesa, integrada
pelas unidades de assessoramento jurídico e de controle interno do próprio órgão ou entidade;
III – terceira linha de defesa, integrada pelo órgão central de controle interno da Administração e
pelo tribunal de contas.”
202 Cristiana Fortini e Caio Mário Lana Cavalcanti

legal de aproveitamento dos atos”34, em detrimento do seu afastamento


a qualquer preço e mediante qualquer irregularidade.
Assim, uma vez mais, o legislador está a dizer que as formas, antes
supervalorizadas, devem ser relativizadas e observadas não em si (um olhar
interno), mas sob o prisma dos seus efeitos (um olhar externo). Assim,
podendo convalidar o ato, ausentes quaisquer prejuízos sérios a serem
externalizados com a sua manutenção no mundo jurídico, o saneamento
é a medida que se impõe. A convalidação administrativa, como regra a
ser seguida pelo administrador público, novamente é reforçada na Nova
de Lei de Licitações e Contratos Administrativos, algo que há muito já
era defendido pelos administrativistas.
De mais a mais, por derradeiro, interessante como o legislador
atesta a sua preocupação com o caráter pedagógico, prévio e preventivo
do controle, inclusive mediante a capacitação dos servidores públicos35,
em detrimento do controle de viés apenas punitivo, posterior e repressivo,
o que inclusive coaduna com as novas diretrizes do Direito Administrativo,
que cada vez mais vem se preocupando de forma privilegiada com a preven-
ção dos danos e com a qualificação dos servidores públicos, em contra-
ponto ao punitivismo dissociado da avaliação das razões que ensejam as
práticas irregulares ou ilegais36.

34
MOTTA, Fabrício; NAVES, Fernanda de Moura Ribeiro. Artigos 169 a 173. In: DAL POZZO, Augusto Neves;
CAMMAROSANO, Márcio; ZOCKUN, Maurício (coord.). Lei de licitações e contratos administrativos
comentada: Lei 14.133/21. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021, p. 713.
35
A profissionalização dos recursos humanos, inclusive, é um dos eixos estruturantes da Lei nº 14.133/21.
Nesse sentido, sugere-se a leitura: FORTINI; Cristiana; AMORIM; Rafael Amorim de. Um novo olhar para
a futura lei de licitações e contratos administrativos: a floresta além das árvores. Portal Licitações e
Contratos. Disponível em: www.licitacaoecontrato.com.br. Acesso em: 07 nov. 2022.
36
A Lei nº 14.230/21, que alterou substancialmente a Lei nº 8.429/92, igualmente exemplifica essa
preocupação com a capacitação dos servidores públicos, na diretriz de uma atuação preventiva em
detrimento da meramente repressiva. Nesse sentido, o art. 23-A da Lei de Improbidade Administrativa,
incluído pela Lei nº 14.230/21, que assevera ser “[…] dever do poder público oferecer contínua capaci-
tação aos agentes públicos e políticos que atuem com prevenção ou repressão de atos de improbidade
administrativa.”. Inclusive, há doutrinadores membros do Ministério Público que igualmente defendem
uma atuação do Parquet mais pedagógica e preventiva, em detrimento do viés meramente repressivo.
Cf, nesse sentido: ISMAIL FILHO, Salomão. A importância da atuação preventiva do Ministério Público
ombudsman em prol da boa administração, no combate à improbidade administrativa. Revista do
Conselho Nacional do Ministério Público, improbidade administrativa, n. 5. Brasília: CNMP, 2015, p. 124.
No mesmo sentido: ALMEIDA, Gregório Assagra de. O Ministério Público no neoconstitucionalismo: perfil
constitucional e alguns fatores da ampliação de sua legitimação social. In: CHAVES, Cristiano et al.
(coord.) Temas atuais do Ministério Público: a atuação do Parquet nos 20 anos da Constituição Federal.
2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 17-60; CAVALCANTI, Caio Mário Lana. Comentários à lei
de improbidade administrativa. Rio de Janeiro: CEEJ, 2020, p. 365.
Lei nº 14.133/21: a instrumentalidade das formas e
o formalismo moderado no controle administrativo licitatório 203

Conclusão

Não há dúvidas que a Lei nº 14.133/21 manteve um certo padrão


formalista. Todavia, para além de vários outros aspectos, a valorização dos
princípios da instrumentalidade das formas e do formalismo moderado,
de modo a prestigiar as finalidades públicas em contraponto às imperti-
nências formais sanáveis, reforça o foco que de fato deve ser observado.
Optou-se, dentre esses dispositivos, por destacar os artigos 5º, 147,
148 e 169, § 3º, I, ambos da Lei nº 14.133/21, porquanto representam
bem a relativização do caráter formalista da licitação, na perseguição
da construção de um processo licitatório menos atravancado e na valori-
zação do modelo de Administração Pública Gerencial (que persegue
os resultados), em detrimento da concepção da Administração Pública
Burocrática (que tem na forma marca característica).

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702

A confidencialidade das propostas


no diálogo competitivo: necessidade
de ponderação do princípio da
publidadade com os princípios
da propriedade privada e da livre
concorrência para a efetivação do
princípio da eficiência

Luiz Fernando Silva Oliveira1


Juiz de Direito no estado de São Paulo

Sumário: Introdução. 1. Antecedentes históricos do diálogo competitivo.


2. A inserção do instituto na dogmática da NLLCA. 3. A resistência ao instituto
em Portugal e a possível resistência no Brasil. 4. O princípio da publicidade
disposto no art. 37 da CF/88. 5. A confidencialidade como mecanismo de
proteção dos princípios da propriedade privada e da livre concorrência.
6. A ponderação de interesses entre os princípios da publicidade, da proprie-
dade privada e da concorrência para dar efetividade ao princípio da eficiência
na administração pública. Conclusão. Bibliografia.

Palavras-chave: licitação. diálogo competitivo. confidencialidade.


publicidade. propriedade privada. livre concorrência.

Resumo: o presente trabalho visa a mostrar para a comunidade


jurídica a inovação da Lei nº 14.133/21 relativamente à confidencialidade
inserida na licitação na modalidade diálogo competitivo, como meio
de proteger as criações de projetos de engenharia e evitar prejuízos para
seus criadores nos casos de o projeto não ser o escolhido pela Administração
Pública. O raciocínio aqui apresentado vem demonstrar que a ausência de
publicidade na fase de negociações não acarreta prejuízos para o interesse

Mestre em Direitos Difusos e Coletivos pela Ponifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).
1

Especialista em Direito Econômico e Negocial pela Escola Paulista da Magistratura (EPM). Juiz Eleitoral.
208 Luiz Fernando Silva Oliveira

público, na medida em que ao projeto escolhido será dada publicidade,


e somente os projetos não escolhidos não terão publicidade, ou seja,
os proprietários da propriedade imaterial escolhida terão acesso ao proje-
to vencedor da licitação e poderão confrontá-la com os seus projetos.
A confidencialidade deve ser assegurada para que os projetos não escolhi-
dos pela Administração não sejam utilizados indevidamente por terceiros,
o que significa que a confidencialidade visa proteger tanto a propriedade
privada quanto a concorrência, o que não compromete a transparência
decorrente do princípio constitucional da publicidade.

Introdução

A significativa posição de quinto maior país do mundo em extensão territorial,


com área de 8.510.345,540 km², publicado no Diário Oficial da União 38,
de 23.02.2022, conforme Portaria PR-73, de 21 de fevereiro de 2022, e dados
do Instituto Brasileito de Geografia e Estatística – IBGE2, faz do Brasil um
grande mercado nas mais diversas áreas do empreendedorismo.
A população estimada em 213.317.639 pessoas3 é outro fator que
comprova o tamanho do mercado a ser explorado, com oferecimento
de produtos e serviços e grandes oportunidades de lucros.
A grande densidade geográfica está distribuída em 26 Estados-membros
mais o Distrito Federal, e 5.570 municípios, segundos dados do IBGE 2016,
e soma dos entes públicos União, Estados-membros, Distrito Federal,
e municípios, são 5.597 pessoas jurídicas de direito público, cada uma
com competência constitucional para criar autarquias, empresas públicas,
fundações e sociedades de economia mista.
Isso significa que o Estado brasileiro é um grande adquirente de
produtos e serviços para satisfazer as necessidades dos administrados
nas mais diversas áreas, como educação, saúde, energia, transportes,
dentre muitas outras áreas.
Passados 28 anos da promulgação da Lei nº 8.666/93, e depois da
edição de normas subsequentes para otimizar as licitações, tais como a Lei
nº 10.520/2002 (Lei do Pregão), a Lei nº 12.462/2011 (Regime Diferenciado

2
Disponível em: https://www.ibge.gov.br/. Acesso em: 27 set. 2022.
3
Jornal Valor Econômico. IBGE estima população brasileira em 212,7 milhões antes de Censo. Disponível
em: https://valor.globo.com/brasil/noticia/2022/07/22/ibge-estima-populao-brasileira-em-2127-milhes-
antes-de-censo.ghtml. Acesso em: 19 jan. 2023.
A confidencialidade das propostas no diálogo competitivo 209

de Contratações), o Congresso Nacional aprovou a nova lei de licitações,


sancionada pelo Presidente da República sob o número 14.133, de 1º de
abril de 2021, como Lei de Licitações e Contratos Administrativos.
O cenário político do país favoreceu a tramitação do projeto
de lei, porque, a partir da edição da Lei de Improbidade Administrativa
(Lei nº 8.429/92), os administradores públicos passaram a ser acionados
judicialmente por atos de improbidade.
Muitos dos processos instaurados por improbidade adminstrativa
o foram pela prática de atos revestidos de fraudes, desvios de verbas
públicas, lesão ao erário e enriquecimento indevido de agentes públicos
e agentes econômicos. Outros muitos processos foram instaurados por
ilegalidades que deveriam ter sido resolvidas pela Lei da Ação Civil Pública
(Lei nº 7.347/85), pela Lei da Ação Popular (Lei nº 4.717/65), e pela Lei
do Mandado de Segurança, atualmente a Lei nº 12.016/2009.
Entretanto, muitos atos ilegais sem objetivo de lesão ao erário
e sem enriquecimento indevido foram impugnados judicialmente
com base na Lei de Improbidade Adminstrativa, geralmente com base
em violação de princípios da Administração Pública, previstos no
art. 11 da Lei, e esse comportamento tornou-se uma constante que
praticamente esvaziou a Lei do Mandado de Segurança, a Lei da Ação
Popular e a Lei da Ação Civil Pública.
Os embaraços gerados por uma condenação com fundamento na
prática de atos de improbidade administrativa, principalmente a suspen-
são de direitos políticos, fazia com que muitos administradores públicos
deixassem de exercer o poder-dever de decidir com base na autotutela e
autoexecutoriedade dos atos administrativos, preferindo a judicialização de
questões que deveriam ser resolvidas no interior da Administração Pública.
Esse comportamento tornou-se corriqueiro, principalmente por
prefeitos, para evitar a instauração de inquérito civil público e posterior
ajuizamento de ação de improbidade administrativa, com todos os
reflexos negativos de exposição na imprensa, acarretando prejuízos
políticos, prejuízos financeiros, com a contratação de advogados para
a defesa judicial, além dos efeitos maléficos de eventual condenação
por atos de improbidade administrativa, com a obrigação de devolução
de verbas públicas aplicadas erroneamente, sem dolo de lesar o erário
e de se enriquecer indevidamente.
A essa situação deu-se o nome de Direito Administrativo do Medo.
210 Luiz Fernando Silva Oliveira

Diante desse quadro histórico, some-se a necessidade de melhorar


a eficiência da Administração Pública, porque a Lei nº 8.666/93 foi editada
quando não se pensava em mídias sociais, em contratações eletrônicas.
Não havia a previsão legal de parcerias público-privadas nem a reforma do
Estado iniciada no Governo FHC, com a criação das agências reguladoras.
Portanto, a Lei nº 14.133, de 1º de abril de 2021, veio depois da
inserção do consequencialismo no direito público, nos arts. 20 e seguin-
tes do Decreto-Lei nº 4.657/42, a Lei de Introdução às Normas do Direito
Brasileiro – LINDB. O consequencialismo exige que o Juiz, ao decidir,
considere as consequências práticas da sua decisão: “Art. 20. Nas esferas
administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em
valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências
práticas da decisão.”.
Depois da inserção do consequencialismo na LINDB, quando o juiz
houver de decretar a nulidade de um ato da Administração Pública, deverá
constar da própria decisão qual a solução jurídica e prática da decisão,
ou seja, quando o magistrado decidir que uma medida administrativa está
incorreta, ele deverá mostrar o caminho a ser trilhado pela Administração.
Essa é a determinação constante do art. 21, caput e parágrafo unico
da LINDB, com a seguinte redação:

Art. 21. A decisão que, nas esferas administrativa,


controladora ou judicial, decretar a invalidação
de ato, contrato, ajuste, processo ou norma
administrativa deverá indicar de modo expresso
suas consequências jurídicas e administrativas.
(BRASIL, 1942, grifo nosso)

Parágrafo único. A decisão a que se refere


o caput deste artigo deverá, quando for o caso,
indicar as condições para que a regularização
ocorra de modo proporcional e equânime e sem
prejuízo aos interesses gerais, não se podendo
impor aos sujeitos atingidos ônus ou perdas que, em
função das peculiaridades do caso, sejam anormais
ou excessivos4. (BRASIL, 1942, grifo nosso)

4
Decreto-Lei nº 4.657, de 4 de setembro de 1942 – Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro.
A confidencialidade das propostas no diálogo competitivo 211

Somente depois da inserção do consequencialismo no direito púlbico


é que foi editada a Lei nº 14.133, de 1º de abril de 2021 – Nova Lei de
Licitações e Contratos Administrativos (NLLCA), e, poucos meses depois,
foi editada a Lei nº 14.230, de 25 de outubro de 2021, que alterou o espírito
da Lei nº 8.429/92, Lei de Improbidade Administrativa (LIA).
Portanto, a NLLCA foi editada em um cenário jurídico preparado
para a inovação, protegendo devidamente o administrador público dos
riscos do denominado Direito Administrativo do Medo, vez que, ao decidir
pela nulidade de atos da Administração Pública, os juízes estão obrigados
a apresentar as soluções que entendem corretas para substituir a decisão
do administrador público nulificada pelo Poder Judiciário.
Na verdade:

A idéia da NLLCA foi de distensionar o ambiente


de contratações públicas, de há muito conturbado
pela preocupação do administrador público de
ser responsabilizado como mau gestor quando na
verdade agiu de boa-fé, com o objetivo de buscar
o interesse público. De um lado, é preciso prevenir e
reprimir a má gestão pública e o mau uso do dinheiro
do contribuinte, coibindo os atos de improbidade
administrativa que acarretam enriquecimento
ilícito, causam prejuízo ao erário público e violam
princípios da Administração Pública, mas por
outro lado, é preciso garantir ao administrador
público o exercício do mandato político a ele
conferido legitimamente pelo voto, sem considerar
a discricionariedade administrativa, prima facie,
como sinônimo de ilicitude5.

Nessa quadra, a NLLCA trouxe para as licitações públicas a modali-


dade de licitação denominada diálogo competitivo, instituto totalmente
inovador no direito brasileiro, sem nenhum precedente semelhante já
adotado no Direito Administrativo pátrio.

5
Oliveira, Luiz Fernando Silva. A nova Lei de Licitação e as futuras eleições: anistia geral a condenados?
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2022.
212 Luiz Fernando Silva Oliveira

1. Antecedentes históricos do diálogo competitivo

A Comissão Europeia é o órgão executivo da União Europeia (EU) com


competência para elaborar estudos e apresentar pareceres para o aprimo-
ramento da comunidade europeia. É a Comissão o órgão que apresenta as
propostas legislativas para aperfeiçoar o sistema legal da União Europeia,
sendo que:

Detém ainda a Comissão competência para formular


recomendações e pareceres sobre matéria prevista
nos tratados instituintes das Comunidades. Ela tem
poder de decisão e deve colaborar para a formação dos
atos de competência do Conselho e do Parlamento6.

Nessa medida, a Comissão Europeia é encarregada de elaborar estudos


para o aprimoramento legislativo da União Europeia, e esses estudos são
realizados mediante a confecção dos chamados livros verdes, documentos
por meio dos quais os estados-membros da EU, os organismos internacionais
e os cidadãos são convidados a participar, apresentar propostas, sobre
uma matéria, e, depois, em caso de aprovação pelo parlamento europeu,
a nova norma passa a compor os chamados livros brancos.
Nos idos anos de 1996, a Comissão Europeia já demonstrava a necessidade
de flexibilização das contratações públicas mediante o estabelecimento de
tratativas entre as entidades contratantes e a iniciativa privada.
Isso foi exposto no Livro Verde COM (96) 583 (Bruxelas, 27.11.1996 COM
[96] 583 final)7, em que a Comissão entendeu a necessidade de um diálogo
entre a entidade contratante e a iniciativa privada, e o fez no item 5.23:

El sector privado, que teme la posible infracción del


principio de igualdad de trato, ha dado a conocer
su reticencia a comprometerse en estudio o debate
alguno antes 37 Véase la exposición del capítulo 3.

6
José Souto Maior Borges. Curso de Direito Comunitário: instituições de direito comunitário comparado -
União Européia e Mercosul. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 597.
7
LIBRO VERDE LA CONTRATACIÓN PUBLICA EN LA UNIÓN EUROPEA: REFLEXIONES PARA EL FUTURO. Bruselas,
27.11.1996 COM (96) 583 final. N° de catálogo: CB-CO-96-627-ES-C. ISBN 92-78-12851-1. Oficina de
Publicaciones Oficiales de las Comunidades Europeas L-2985 Luxemburgo. Disponível em: https://eur-lex.
europa.eu/legal-content/PT/TXT/PDF/?uri=CELEX:51996DC0583&from=ES. Acesso em: 7 out. 2022.
A confidencialidade das propostas no diálogo competitivo 213

de la convocatoria del concurso sin tener la garantía


de que no se verá posteriormente excluido de los
procedimientos de adjudicación. La Comisión
reconoce que, dada la complejidad de la mayor
parte de los proyectos —algunos de los cuales pueden
exigir soluciones enteramente novedosas—, puede
ser necesario un diálogo técnico entre los poderes
adjudicadores y las empresas privadas interesadas
antes de la publicación del concurso. Si los poderes
adjudicadores establecen barreras específicas —
relativas tanto al fondo como al procedimiento— que
eviten solicitar o aceptar informaciones que puedan
restringir la competencia, el principio de la igualdad
de trato no se verá conculcado8. (grifos nossos)

Os estudos desenvolvidos e expostos no livro verde sobre os contra-


tos públicos mostraram que a Comissão da União Europeia concluiu pela
necessidade de uma aproximação do setor público com a iniciativa privada
para melhor aproveitamento dos conhecimentos técnicos desta última
no desenvolvimento de projetos para as entidades contratantes.
Os estudos realizados pela Comissão Europeia resultaram na Diretiva
2004/18/CE9 do Parlamento Europeu sob a denominação de Diálogo
Concorrencial, cujo art. 29 previu sua utilização para os casos de contratos
particularmente complexos, em que a Administração Pública apresenta
ao mercado suas necessidades e exigências e expõe a necessidade de um

8
Em português: “Temendo uma potencial infração ao princípio da igualdade de tratamento, o setor
privado mostrou-se reticente em relação à eventual participação em um estudo ou discussão anterior
à publicação do anúncio de concurso sem a garantia de que não será posteriormente excluído dos pro-
cessos de celebração. A Comissão reconhece que, dada a complexidade da maior parte dos projetos,
que podem por vezes exigir soluções totalmente novas, pode revelar-se necessário proceder,
antes da publicação do concurso, a um diálogo técnico entre as entidades adjudicantes e os par-
ceiros privados interessados. Se as entidades adjudicantes, por meio da instituição de salvaguardas
específicas – tanto relativas aos aspectos processuais como materiais – evitam solicitar ou aceitar
informações que teriam por efeito restringir a concorrência, o princípio da igualdade de tratamento
não seria infringido. (grifos nossos)
9
DIRECTIVA 2004/18/CE DO PARLAMENTO EUROPEU E DO CONSELHO de 31 de Março de 2004.
Jornal Oficial da União Europeia, Bruxelas, 30 abr. 2004. Disponível em: https://eur-lex.europa.eu/.
Acesso em: 7 out. 2022.
214 Luiz Fernando Silva Oliveira

diálogo com a iniciativa privada com o objetivo de identificar e definir os


meios que melhor possam satisfazer o interesse público10.
Posteriormente, a União Europeia editou a Diretiva 2014/24/EU11,
visando aperfeiçoar as contratações públicas nos países que compõem
a comunidade, cujo art. 30º estampa o diálogo concorrencial em oito itens.
No item 2, o documento prevê que as autoridades adjudicantes dão a
conhecer as suas necessidades e os seus requisitos no anúncio de concurso,
definindo-os no próprio anúncio e/ou na memória descritiva, ou seja,
o documento da EU define que as entidades contratantes devem dar
a conhecer suas necessidades para buscar o auxílio da iniciativa privada.
No item do documento está inserido que as entidades contratantes
iniciam o diálogo com os particulares interessados para definir os meios
que melhor possam satisfazer as suas necessidades.
A partir da experiência europeia, o legislador brasileiro importou
para o direito pátrio o instituto do diálogo concorrencial, aqui denominado
diálogo competitivo.

2. A inserção do instituto na dogmática da NLLCA

A Lei 14.133/21 – NLLCA trouxe para as licitações públicas do país o


instituto da Eunião Europeia a fim de flexibilizar as contratações públicas,
e o art. 6º, inciso XLII, dispõe o seguinte:

[…] diálogo competitivo: modalidade de licitação para


contratação de obras, serviços e compras em que a
Administração Pública realiza diálogos com licitantes
previamente selecionados mediante critérios
objetivos, com o intuito de desenvolver uma ou mais
alternativas capazes de atender às suas necessidades,
devendo os licitantes apresentar proposta final após
o encerramento dos diálogos […] (grifos nossos)

10
Directiva 2004/18/CE, artigo 29, n. 3: “As entidades adjudicantes darão início, com os candidatos selec-
cionados nos termos das disposições pertinentes dos artigos 44.o a 52º, a um diálogo que terá por objectivo
identificar e definir os meios que melhor possam satisfazer as suas necessidades. Durante esse diálogo,
poderão debater com os candidatos seleccionados todos os aspectos do contrato.” (grifos nossos)
11
DIRETIVA 2014/24/UE DO PARLAMENTO EUROPEU E DO CONSELHO de 26 de fevereiro de 2014 relativa
aos contratos públicos e que revoga a Diretiva 2004/18/CE. Jornal Oficial da União Europeia, Buxelas,
28 mar. 2014. Disponível em: https://eur-lex.europa.eu/. Acesso em: 7 out. 2022.
A confidencialidade das propostas no diálogo competitivo 215

O objetivo dessa modalidade licitatória é desenvolver uma ou mais


alternativas capazes de atender às necessidades da Administração Pública,
o que significa que a utilização do diálogo competitivo é reservada para
situações em que o ente contratante não tem uma solução para o caso,
ou, em caso de já ter a solução, pretende ouvir os particulares sobre
a possibilidade de aperfeiçoamento do trabalho a ser executado.
A própria Diretiva 2014/24 – UE, no considerando 42, dispõe que:

Os Estados-Membros deverão poder prever o recurso


ao procedimento concorrencial com negociação ou
ao diálogo concorrencial nas situações em que um
concurso aberto ou limitado sem negociação não
seja passível de gerar resultados satisfatórios na
ótica da contratação pública. Importa recordar
que o recurso ao diálogo concorrencial aumentou
significativamente, em termos de valores dos
contratos, nos últimos anos. Revelou-se útil nos casos
em que as autoridades adjudicantes não conseguem
definir as formas de satisfazer as suas necessidades
ou avaliar o que o mercado pode oferecer em termos
de soluções técnicas, financeiras ou jurídicas.
Tal pode, nomeadamente, verificar-se quando
se trata de projetos inovadores, da execução de
projetos de infraestruturas de transportes integrados
em larga escala, de grandes redes informáticas
ou de projetos que obriguem a financiamentos
complexos e estruturados. Sempre que pertinente,
as autoridades adjudicantes deverão ser incentivadas
a nomear um chefe de projeto para garantir a boa
cooperação entre os operadores económicos e
a autoridade adjudicante durante o procedimento
de adjudicação. (grifos nossos)

Na NLLCA, a utilização do diálogo competitivo vem inserida no art. 32,


para ser utilizada quando o objeto se referir às seguintes condições:
a) inovação tecnológica ou técnica; b) impossibilidade de o órgão ou
entidade ter sua necessidade satisfeita sem a adaptação de soluções
disponíveis no mercado; e c) impossibilidade de as especificações técnicas
serem definidas com precisão suficiente pela Administração.
216 Luiz Fernando Silva Oliveira

O fato de o procedimento ser previsto para situações em que


a Administração não sabe como fazer ou, quando o sabe, pretende
obter da iniciativa privada soluções mais adequadas leva-nos a concluir
que a aplicação do instituto não será corriqueira, porque, na verdade,
a Administração, geralmente, sempre sabe o que quer, como quer, e sabe
como fazer, pois, sendo o maior contratante do país, o Poder Público
tem experiência de como resolver as questões a ele atinentes.
Há outra situação em que o procedimento pode ser utilizado, e está
no inciso II, do art. 32, para quando for o caso de definir e identifi-
car os meios e as alternativas que possam satisfazer as seguintes
necessidades: a) a solução técnica mais adequada; b) os requisitos técni-
cos aptos a concretizar a solução já definida; e c) a estrutura jurídica ou
financeira do contrato.
Na mesma linha do já explicitado, não é fácil encontrar na inicia-
tiva privada um agente econômico com maior expertise que a própria
Administração Pública para aperfeiçoar as soluções técnicas já existentes,
o que leva o instituto a uma utilização restrita.
Entretanto, não é o caso de somente tecer críticas ao novel instituto
previsto na NLLCA, porque se, de um lado, sua utilização será restrita,
de outro lado, a previsão de procedimentos licitatórios fechados consti-
tui um óbice à contribuição da iniciativa privada para melhor atender
ao interesse público, porque, se existem audiênicas públicas para
ouvir a sociedade civil, não seria coerente impedir a participação dos
agentes econômicos na discussão de projetos que eles próprios têm
interesse em executar.
Nessa trilha, o diálogo competitivo vem para melhorar o ambiente
de negócios entre os particulares e a Administração Pública, porque vai
permitir que os agentes econômicos apresentem soluções e propostas que
os procedimentos licitatórios burocráticos e fechados nunca permitiram.
Assim entendido, a doutrina tem sustentado que:

Partindo da constatação que a nova modalidade


licitatória introduzida pela Nova Lei de Licitações
teve inspiração europeia, pode-se inferir que o
motivo de sua introdução no Brasil foi o mesmo,
ou seja, conseguir introduzir soluções tecnológicas
mais eficientes nos contratos públicos, a partir de
interações com o setor privado durante o processo
de contratação, para cenários nos quais o setor
A confidencialidade das propostas no diálogo competitivo 217

público não esteja seguro quanto à melhor solução


técnica a ser adotada12.

3. A resistência ao instituto em Portugal e a possível resistência no Brasil

Apesar de a União Europeia ter inserido o diálogo concorrencial na


Diretiva 2004/18 e na Diretiva 2014/24 para que os estados-membros
adotassem o instituto nas suas legislações internas, e de Portugal ter
inserido-o no seu direito positivo, a aplicabilidade dessa modalidade
de licitação no país ibérico não é tranquila.
Isso porque a doutrina portuguesa tem manifestado desconfiança do
instituto em razão da fase de negociações ser confidencial.
Ao tecer comentários ao Código dos Contratos Públicos, Luciana Souza
Santos, em artigo intitulado “O diálogo concorrencial”, sustenta que:

Já na Diretiva nº 2004/18/CE, o diálogo concorrencial


se havia também revelado o procedimento
pré-contratual mais complexo e particular de entre
os previstos, o que, porventura, justificará o facto
de não ter sido muito utilizado pelas entidades
adjudicantes nacionais, configurando, de certo modo,
em Portugal, um insucesso13. (grifos nossos)

Segundo a articulista:

[…] a moldura legal do diálogo concorrencial


deveria ter sido repensada no momento em que
se laborou na alteração do CCP, porquanto, se foi
manifesto o fracasso do anterior regime naiconal
desse procedimento – o escasso número de escritos,
em Portugal, sobre a matéria, denota isso mesmo -,

12
PEREIRA, Guilherme Abreu Lima e. Diálogo Competitivo. O que é e como essa nova modalidade licita-
tória pode impactar a atuação dos tribunais de contas nas análises prévias dos editais de concessões
comuns E PPP. Cadernos da Escola Paulista de Contas, São Paulo, 2021.
13
SANTOS, Luciana Souza. O diálogo concorrencial. In: Comentários ao Código dos Contratos Públicos.
I Volume, 4. ed., p. 809-840. Gomes, Carla Amado; Pedro, Ricardo; Caldeira, Tiago Serrão Marco
(Coord.). AAFDL. Depósito Legal: 487584/21. Agosto/2021.
218 Luiz Fernando Silva Oliveira

mantê-lo, em 2017, revela uma atitude legislativa


pouco conscienciosa14. (grifo nosso)

A desconfiança acerca do instituto em Portugal tem por fundamento


a existência de confidencialidade na fase de negociações, uma vez que
o art. 214º, quando trata das formalidades a observar, impõe a vinculação
ao sigilo na fase de negociações.
Essa vinculação da entidade adjudicante ao sigilo, no caso,
a Administração Pública, vem expressa no item 3, do art. 214º,
cuja redação é a seguinte:

As soluções apresentadas ou outras informações que,


no todo ou em parte, tenham sido tramsmitidas
com caráter de confidencialidade pelos candidatos
durante as sessões da fase de diálogo, só com o
consentimento expresso e por escrito dos mesmos é
que podem ser divulgadas aos outros candidatos ou
a terceiros15. (grifo nosso)

É certo que outros estados-membros da União Europeia utilizam o


diálogo concorrencial como modalidade de licitação, mas, no Brasil, haverá
tendência à desconfiança pela mesma motivação existente em Portugal,
o sigilo na fase de negociações.
A doutrina brasileira já abordou o assunto:

Na França, por exemplo, esta modalidade de certame


foi aplicada em relação à contratação de grupos
hospitalares, e na Inglaterra, serviu para selecionar
propostas de construção das grandes estruturas
olímpicas do evento de 2012. Devemos perceber
que esta é uma modalidade dotada de bastante
subjetividade. E esta característica, no Brasil, sempre
causa desconfiança, dado que isto corriqueiramente
se mostrou perigoso em termos de fraude16.

14
Luciana Souza Santos, Op. Cit., p. 816.
15
PORTUGAL. Leis, decretos, etc. Código dos contratos públicos. 12. ed. (Códigos anotados). CDU 346.
Almedina. Biblioteca Nacional de Portugal.
16
HEINEN, Juliano. Curso de Direito Administrativo. 2. ed. rev., atual. e ampl. Salvador:
Juspodivm, 2021, p. 1.108.
A confidencialidade das propostas no diálogo competitivo 219

Assim como em Portugal, no Brasil, há tendência de desconfiança


com o diálogo competitivo enquanto modalidade de licitação, porque o
sigilo da fase de diálogos pode – não há certeza, abrir a possibilidade
de favorecimentos.
Ao defender a racionalidade do direito, Luiz Guilherme Marinoni
cita o “homem cordial” tratado em “Raízes do Brasil”, como o modo de
comportamento no interior da Administração Pública brasileira. Para ele:

No famoso capítulo intitulado ‘Homem cordial’,


Buarque de Holanda trabalha com os conceitos
weberianos de patrimonialismo e burocracia. Esses
conceitos são usados como ferramentas para a
demonstração do significado de ‘homem cordial’,
um modo de comportamento pessoal típico à formação
da cultura brasileira, avesso à impessoalidade e à
racionalidade formal, nitidamente relacionado ao
modelo das instituições e da Administração Pública
brasileiras – que ainda permanece na cultura do país17.

Na obra “Raízes do Brasil”, o autor fala sobre a mistura do público


com o privado e dos interesses pessoais que, historicamente, movem a
máquina governamental brasileira:

Não era fácil aos detentores das posições públicas


de responsabilidade, formados por tal ambiente,
compreenderem a distinção fundamental entre
os domínios do privado e do público. Assim,
eles se caracterizam justamente pelo que separa
o funcionário ‘patrimonial’ do puro burocrata
conforme a definição de Max Weber. Para o
funcionário ‘patrimonial’, a própria gestão política
apresenta-se como assunto de seu interesse
particular; as funções, os empregos e os benefícios
que deles aufere relacionam-se a direitos pessoais
do funcionário e não a interesses objetivos, como
sucede no verdadeiro Estado burocrático, em que
prevalecem a especialização das funções e o esforço
para se assegurarem garantias jurídicas aos cidadãos.

17
MARINONI, Luiz Guilherme. A ética dos precedentes. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 77.
220 Luiz Fernando Silva Oliveira

A escolha pessoal dos homens que irão exercer


funções públicas faz-se de acordo com a confiança
pessoal que mereçam os candidatos, e muito menos
de acordo com as suas capacidades próprias18.

Considerando que na Europa, onde o diálogo concorrencial é bastante


incentivado e difundido pela União Europeia, e utilizado em França
e Inglaterra, mas tratado com desconfiança em Portugal, entre nós,
há possibilidade de difusão do mesmo receio existente no país lusitano,
tanto porque somos povos irmãos, com as mesmas características,
quanto pela proximidade do direito brasileiro com o português, e princi-
palmente porque, no Brasil, pululam casos de favoritismos na relação
público/privado.
Resta saber em que medida serão tratadas, a desconfiança, de um lado,
e o incentivo legal, de outro, para a utilização do diálogo competitivo no
Direito Administrativo Brasileiro, e como a sigilosidade é tratada à luz
da Constituição Federal, vez que o art. 37 tem como um dos princípios
da Administração Pública o princípio da publicidade.

4. O princípio da publicidade disposto no art. 37 da CF/88

A Constituição Federal, art. 37, caput, dispõe que:

Art. 37. A administração pública direta e indireta


de qualquer dos Poderes da União, dos Estados,
do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá
aos princípios de legalidade, impessoalidade,
moralidade, publicidade e eficiência. (BRASIL, 1988)

Está expressamente previsto que a publicidade é um princípio


constitucional que deve reger as relações entre a Administração Pública
e os administrados, tanto com os cidadãos destinatários dos benefí-
cios proporcionados pelo Estado, quanto nas relações negociais que
ela pratica com a iniciativa privada para proporcionar o bem-estar
dos cidadãos, e também nas relações jurídicas interna corporis, do Direito
Administrativo Ordenador.

HOLANDA, Sergio Buarque de. Raízes do Brasil. 26. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 145-146.
18
A confidencialidade das propostas no diálogo competitivo 221

Nosso legislador constituinte originário quis proteger o exercício da


cidadania e impedir a prática de favorecimentos na Administração Pública e,
para tanto, inseriu a publicidade como princípio basilar da Administração.
É com base na publicidade das ações do poder público que está
estruturado o Estado Democrático de Direito, e Norberto Bobbio, citando
Kant, defendeu a publicidade dos atos estatais e lecionou o seguinte:

No ‘Apêndice’ à Paz Perpétua, Kant, enunciou e


ilustrou o princípio fundamental segundo o qual
‘todas as ações relativas ao direito de outros homens
cuja máxima não é suscetível de se tornar pública
são injustas’, querendo com isto dizer que uma ação
que sou forçado a manter secreta é certamente não
apenas uma ação injusta, mas sobretudo uma ação
que se fosse tornada pública suscitaria uma reação
tão grande que tornaria impossível a sua execução19.

A publicidade é condição essencial para permitir a tutela da probi-


dade administrativa e os direitos dos cidadãos. O art. 5º contém muitos
dispositivos que a asseguram, a saber, o inciso XIV, segundo o qual,
é assegurado a todos o acesso à informação; inciso XXXIV, alínea “a”,
que assegura a todos o direito de petição aos Poderes Públicos em defesa
de direitos ou contra ilegalidade ou abuso de poder; inciso LXXII, para
conceder habeas data visando assegurar o conhecimento de informações
relativas à pessoa do impetrante, constantes de registros ou bancos de
dados de entidades governamentais ou de caráter público, e também para
a retificação de dados, quando não se prefira fazê-lo por processo sigiloso,
judicial ou administrativo, dentre muitos outros dispositivos existentes
no texto constitucional.
No plano infraconstitucional, a Lei do Acesso à Informação,
Lei nº 12.527/2011, traduz a mais ampla acessibilidade de informação
dos cidadãos aos dados e atos do Poder Público.
Na NLLCA o princípio da publicidade foi inserido no art. 5º, e o § 3º,
do art. 31 dispõe que:

BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia. Uma defesa das regras do jogo. 17. ed. São Paulo:
19

Paz e Terra, 2020, p. 53.


222 Luiz Fernando Silva Oliveira

§ 3º Além da divulgação no sítio eletrônico oficial,


o edital do leilão será afixado em local de ampla
circulação de pessoas na sede da Administração
e poderá, ainda, ser divulgado por outros
meios necessários para ampliar a publicidade e
a competitividade da licitação. (BRASIL, 2021)

Nessa quadra, a publicidade dos atos da Administração Pública está


sedimentada no Direito Adminstrativo brasileiro, e a defesa da probidade
administrativa tem custado muito caro a toda a coletividade, que busca
incessantemente a proteção do interesse público, sendo a transparên-
cia dos atos estatais condição sine qua non para possibilitar o controle
da Administração, pelos administrados.
Acontece que a publicidade dos atos estatais é um princípio da
administração que não pode ser analisado isoladamente, e sim em harmo-
nia com todo o texto constitucional. Como todo princípio, a publicidade
não está acima dos demais princípios constitucionais, e não há princípio
absoluto, daí que, em cada caso concreto, cabe ao intérprete atuar para
distensionar o ambiente no conflito principiológico que vier a surgir.

5. A confidencialidade como mecanismo de proteção dos princípios


da propriedade privada e da livre concorrência

A Lei 14.133/21, art. 32, § 1º, inciso IV, dispõe o seguinte:

§ 1º Na modalidade diálogo competitivo,


serão observadas as seguintes disposições:
IV - a Administração não poderá revelar a outros
licitantes as soluções propostas ou as informações
sigilosas comunicadas por um licitante sem o seu
consentimento; § 2º Os profissionais contratados
para os fins do inciso XI do § 1º deste artigo
assinarão termo de confidencialidade e abster-se-ão
de atividades que possam configurar conflito
de interesses. (BRASIL, 2021, grifos nossos)

A NLLCA trouxe para as licitações o dinamismo da iniciativa privada no


que pertine à propriedade imaterial, e, para proteger as invenções e evitar
concorrência desleal, a lei prevê a confidencialidade das soluções propostas,
A confidencialidade das propostas no diálogo competitivo 223

de modo que somente a proposta vencedora será revelada, e isso para


evitar que outros atores econômicos se aproveitem do valor intangível
dos demais interessados.
Hodiernamente os ativos intangíveis representam a maior parte
do valor de uma corporação, como marcas, patentes, know-how,
sinais gráficos, dentre outros ativos imateriais.
Em matéria de Direito Empresarial e Direito Internacional do
Comércio, a confidencialidade é fundamental, por exemplo, para contratos
de transferência de tecnologia, e é questão pacificada na doutrina que:

O valor de mercado de uma empresa não consiste


apenas na soma dos valores individuais de suas
instalações, estoques e maquinário – chamados,
genericamente, de ativos tangíveis – bem como
de seus ativos financeiros, como dinheiro em
caixa, depósitos bancários, títulos de crédito, etc.
atualmente, na medida em que produtos e serviços
agregam cada vez mais tecnologia, o know-how da
empresa, sua reputação, marca, presença em vários
mercados, clientela efetiva ou ocasional e potencial
de crescimento representam a parte ‘intangível’
de seu valor, que pode, em muitos casos, superar
consideravelmente a parte tangível20.

No caso do diálogo competitivo, quando um interessado apresenta


uma proposta, há a expectativa de que o ente adjudicante se interesse pela
inovação e efetive a contratação, todavia, se isso não ocorrer, a inovação
não será inutilizada, porque será utilizada em outro empreendimento.
Por isso, a necessidade de manter em sigilo a propriedade imaterial
apresentada ao ente contratante, para evitar concorrência desleal por
parte de terceiros.
Como já dito acima, a propriedade imaterial tem mais valor
agregado que os ativos tangíveis de uma corporação, e, se A adminis-
tração Pública quiser se aproximar da iniciativa privada e gozar das suas
potencialidades, tais como os inventos desenvolvidos pelas corporações
privadas, a solução é proteger os ativos intangíveis dessas corporações,
evitando-se a divulgação, para impedir a concorrência desleal.

20
NETO, José Cretela. Contratos Internacionais: cláusulas típicas. Campinas: Millenium, 2011, p. 491.
224 Luiz Fernando Silva Oliveira

É uma questão pacífica que:

Em décadas mais recentes, contudo, a propriedade


intelectual passou a ser mais valorizada, mas sua
proteção apresenta-se bastante mais complexa.
Afinal, basta publicar, sem autorização do
proprietário, uma idéia que possa revolucionar
determinado mercado, para infringir diritos de uns,
e possibilitar o uso dessa idéia por muitos21.

A confidencialidade existe para proteger os ativos intangíveis das


corporações, e essa proteção está prevista na Constituição Federal,
art. 170, incisos II e IV, nos seguintes termos:

Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização


do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim
assegurar a todos existência digna, conforme os ditames
da justiça social, observados os seguintes princípios:
[…]
II – propriedade privada;
[…]
IV – livre concorrência. (BRASIL, 1988)

Sendo a propriedade privada um princípio da ordem econômica e,


considerando que o art. 5º, inciso XXII, garante o direito de propriedade,
logo, a Constituição Federal garante à iniciativa privada a proteção
da sua propriedade imaterial, que deve ser implementada por meio
de leis infraconstitucionais.
Como decorrência da proteção à propriedade privada, é necessário
incentivar a livre concorrência e, para tanto, o ordenamento jurídico
precisa construir mecanismos contra a concorrência desleal.
É exatamente por isso que a confidencialidade foi inserida no ordena-
mento jurídico, para proteger os atores econômicos de práticas antiéticas
e inibidoras do desenvolvimento e da criação.
Como o Direito Administrativo vive um momento de migração
para o direito privado, com a utilização de experiências da iniciativa

21
Op. Cit., p. 492.
A confidencialidade das propostas no diálogo competitivo 225

privada no setor público, de terceirização de serviços pela Administração,


ao setor privado, a NLLCA veio para dar ênfase nessa amalgamação de
elementos de Direito Público e Direito Privado para ter como produto
a melhoria da atuação do Poder Público.
E nessa fusão de elementos de Direito Público com os de Direito Privado,
a confidencialidade, originária das relações jurídicas da iniciativa privada,
fundiu-se com a publicidade própria do Direito Administrativo,
com o objetivo de proteger a propriedade privada e a livre concorrência,
visando à proteção patrimonial daqueles que se dispuserem a contribuir
com a gestão pública.

6. A ponderação de interesses entre os princípios da publicidade,


da propriedade privada e da concorrência para dar efetividade
ao princípio da eficiência na administração pública

Desde os primórdios da colonização, o Brasil convive com as dificul-


dades decorrentes da malversação de dinheiro público, dos favores para
os “amigos da corte” e, por isso, está enraizado no nosso pensar cotidiano
que a publicidade é elemento imprescindível para combater os favoritismos
nas relações da Administração Pública com a iniciativa privada.
A Constituição Federal erigiu a publicidade como princípio da adminis-
tração expresso no art. 37, essencial para a proteção da probidade na
administração da coisa pública, salvo quando o sigilo for imprescincível
à segurança da sociedade e do próprio Estado.
Essa previsão constitucional resulta no dever do Estado de fornecer
informações de interesse particular e coletivo dos administrados, o que está
previsto no inciso XXXIII, do art. 5º, segundo o qual:

[…] todos têm direito a receber dos órgãos públicos


informações de seu interesse particular, ou de
interesse coletivo ou geral, que serão prestadas
no prazo da lei, sob pena de responsabilidade,
ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à
segurança da sociedade e do Estado. (BRASIL, 1988)

O inciso XXXIV, dispõe que são a todos assegurados, independentemente


do pagamento de taxas:
226 Luiz Fernando Silva Oliveira

a) o direito de petição aos Poderes Públicos em


defesa de direitos ou contra ilegalidade ou abuso
de poder; b) a obtenção de certidões em repartições
públicas, para defesa de direitos e esclarecimento de
situações de interesse pessoal. (BRASIL, 1988)

Como decorrência da garantia constitucional do direito dos adminis-


trados de ter conhecimento das ações estatais, a publicidade é condição
de validade dos atos administrativos e, segundo a doutrina:

[…] a publicidade deve ser compreendida como


o fio condutor à eficácia do ato administrativo.
Caso ausente a publicidade necessária ao ato, este não
produzirá efeitos. Há entendimentos, inclusive,
no sentido de que a ausência de publicidade poderia
conduzir à invalidade do ato administrativo22.

Se de um lado, a publicidade é um princípio da Administração Pública,


imprescindível para a transparência da administração da coisa pública,
de outro lado, a propriedade privada e a livre concorrência também são
princípios constitucionais que devem ser observados no Estado Democrático
de Direito, e todos os princípios constitucionais têm coexistência harmô-
nica dentro do texto constitucional, de modo que um princípio não
está acima do outro.
A propriedade privada é princípio constitucional da atividade econômica,
previsto no art. 170, inciso II, da CF/88, e a Constituição Federal adotou
a forma de Estado capitalista:

A opção do texto constitucional, embora não o diga


expressamente, é pelo capitalismo e a apropriação
privada dos meios de produção, com alguns preceitos
apontando para uma socialização, sem, contudo,
comprometer a essência do sistema23.

22
HEINEN, Juliano. Curso de Direito Administrativo. 2. ed. rev., atual. e ampl. Salvador:
Juspodivm, 2021, p. 241.
23
CARVALHO, Kildare Gonçalves. Direito Constitucional. 11 ed. rev. e atual. Belo Horizonte:
Del Rey, 2005, p. 803.
A confidencialidade das propostas no diálogo competitivo 227

É a própria Constituição que garante o direito de propriedade,


cuja proteção é assegurada pelo Estado brasileiro, um Estado Capitalista,
fundado na apropriação privada dos meios de produção e, por isso,
os detentores de propriedade têm o direito assegurado no texto constitucional.
Da mesma forma que a propriedade privada, a livre concorrência é
um princípio constitucional da atividade econômica, previsto no inciso IV
do art. 170 da Carta Política e, para o Estado usufruir da contribuição da
iniciativa privada visando à melhoria dos serviços públicos e para melho-
rar cada vez mais a qualidade das obras públicas, ele deve propiciar aos
atores econômicos que participam de licitações públicas a proteção para
que terceiros não atuem de forma parasitária e se apropriem dos bens
imateriais cuja propriedade lhes pertencem.
Como já dissemos, em Portugal, há resistência ao diálogo concorrencial,
apesar de já inserido na legislação interna daquele país, em obediência
às Diretrizes da União Europeia, o que significa praticamente o desuso
do instituto no país lusitano e, aqui no Brasil, é exatamente no confli-
to entre o princípio da publicidade com os princípios da propriedade
privada e da livre concorrência que poderá haver resistência ao diálogo
competitivo no Brasil.
Entendemos que não é o caso de resistir a essa modalidade de licitação
e deixá-la como letra morta no ordenamento jurídico, porque o Direito
Administrativo vive um momento de adoção de muitos dos institutos
do Direito Privado, o que contribui para a melhoria dos serviços públi-
cos e também para o aperfeiçoamento das tecnologias na execução
de obras públicas.
A contribuição da iniciativa privada para o setor público não pode
ser desconsiderada nem deixada em plano secundário, porque o setor
privado irá sempre atuar em parceria com o poder público na prestação
de serviços e execução de obras, seja fornecendo tecnologia, que significa
propriedade imaterial, seja fornecendo somente o trabalho.
Por isso, deixar de utilizar o diálogo competitivo e abrir mão do
potencial da iniciativa privada de fornecer bens imateriais para o poder
público em nome do princípio da publicidade não é a melhor opção para
o Estado Brasileiro e a comunidade jurídica deve refletir sobre isso.
De um lado, há o interesse público tutelado pelo princípio da publici-
dade dos atos da Administração Pública, para proteger a Administração da
malversação dos recursos públicos e proteger a coletividade de favoritismos,
que violam a impessoalidade. De outro lado, há o interesse dos atores
228 Luiz Fernando Silva Oliveira

econômicos que vão participar de licitações, tutelado pelos princípios da


propriedade privada e da livre concorrência.
A NLLCA prevê as hipóteses de utilização da licitação na modalidade
diálogo competitivo:

Art. 32. A modalidade diálogo competitivo é restrita


a contratações em que a Administração:
I - vise a contratar objeto que envolva as seguintes
condições:
a) inovação tecnológica ou técnica;
b) impossibilidade de o órgão ou entidade ter sua
necessidade satisfeita sem a adaptação de soluções
disponíveis no mercado; e
c) impossibilidade de as especificações técnicas serem
definidas com precisão suficiente pela Administração;
II - verifique a necessidade de definir e identificar
os meios e as alternativas que possam satisfazer suas
necessidades, com destaque para os seguintes aspectos:
a) a solução técnica mais adequada;
b) os requisitos técnicos aptos a concretizar a solução
já definida;
c) a estrutura jurídica ou financeira do contrato.
(BRASIL, 2021)

Com base no texto normativo, observamos que não é em qualquer


situação que a Administração Pública poderá lançar mão do diálogo compe-
titivo como modalidade de licitação, porque a NLLCA prevê situações
específicas, nas quais a Administração Pública não tenha condições de
satisfazer suas necessidades sem a contribuição da iniciativa privada,
com o fornecimento de sua propriedade imaterial.
Não seria razoável incentivar a iniciativa privada a apresentar projetos
inovadores para a Administração escolher o que melhor se adequa às suas
necessidades, mediante a publicidade plena dos projetos, porque apenas
um projeto será o escolhido e, se houvesse divulgação dos projetos não
escolhidos, seria aberta a possibilidade de violação do direito de proprieda-
de privada por terceiros, que teriam conhecimento dos projetos e poderiam
utilizá-los indevidamente, em nítida violação ao direito de propriedade.
A apropriação indevida dos projetos divulgados e não escolhidos pela
Administração acarretaria deslealdade na concorrência, na medida em que
terceiros estariam se locupletando de projetos que não desenvolveram
A confidencialidade das propostas no diálogo competitivo 229

e praticando concorrência no mercado sem qualquer custo para o desen-


volvimento do projeto inovador.
Se a NLLCA não fizesse previsão da confidencialidade na fase de
negociações, seria difícil a Administração Pública atrair interessados
em participar de licitações para fornecimento de inovação, dado o risco
de prejuízos para as corporações, daí a previsão legal do sigilo na fase
de negociações, para proteger a propriedade privada e a livre concorrência.
Surge o ponto nevrálgico: a colisão do princípio da publicidade com
os princípios da propriedade privada e da livre concorrência no diálogo
competitivo. De um lado, pelo princípio da publicidade devem ser divul-
gados todos os atos estatais em todas as fases da licitação. De outro,
para efetivar os princípios da propriedade privada e da livre concorrência
deve ser preservada a confidencialidade dos projetos apresentados na
fase de negociações, de modo que o projeto vencedor da licitação será
divulgado e os demais permanecerão em sigilo.
O princípio constitucional da publicidade proíbe o sigilo; os princí-
pios constitucionais da propriedade privada e da livre concorrência
permitem o sigilo.
Eis o caso típico de colisão de princípios (publicidade X propriedade
privada + livre concorrência) e um dos lados terá que ceder. A solução
é a ponderação de interesses tutelados por cada um dos pólos.
Segundo Alexy:

Se dois princípios colidem – o que ocorre, por exemplo,


quando algo é proibido de acordo com um princípio e,
de acordo com outro, permitido -, um dos princípios
terá que ceder. Isso não significa, contudo, nem que
o princípio cedente deva ser declarado inválido,
nem que nele deverá ser introduzida uma cláusula
de exceção. Na verdade, o que ocorre é que um
dos princípios tem precedência em face do outro
sob determinadas condições. Sob outras condições
a questão da precedência pode ser resolvida de
forma oposta. Isso é o que se quer dizer quando se
afirma que, nos casos concretos, os princípios têm
pesos diferentes e que os principios com o maior peso
têm precedência. Conflitos entre regras ocorrem
na dimensão da validade, enquanto as colisões
entre princípios – visto que só princípios válidos
230 Luiz Fernando Silva Oliveira

podem colidir – ocorrem, para além dessa dimensão,


na dimensão do peso24.

É com base nessa linha de interpretação que o princípio da publicida-


de deverá ser mitigado e ceder espaço para os princípios da propriedade
privada e da livre concorrência, e o fato de a publicidade ceder espaço
para a propriedade privada e a livre concorrência irá concretizar o princípio
da eficiência da Administração Pública.
A mitigação do princípio da publicidade, em razão da confidencialidade
na fase das negociações no diálogo competitivo não irá acarretar prejuízos
para os participantes do certame licitatório nem para a coletividade.
Isso porque o participante vencedor terá seu projeto divulgado,
e os demais, que não foram vencedores, terão acesso ao projeto vencedor,
de modo que qualquer indício de favoritismo poderá ser objeto de
impugnação, porque cada um dos proprietários dos projetos não escolhidos
pela Administração conhece o seu próprio projeto e poderá levar a discussão
para o Poder Judiciário, caso em que o projeto que permaneceu confidencial
na fase de negociações terá a publicidade, em razão da judicialização
da controvérsia, salvo em caso de decretação do sigilo, pelo juiz.
O afastamento do princípio da publicidade para permitir a confi-
dencialidade na fase de negociações no diálogo competitivo irá proteger
a propriedade privada das corporações que se dispuserem a participar
de licitações. Esse mecanismo irá incentivar a iniciativa privada a
apresentar projetos inovadores, e, consequentemente, irá permitir maior
eficiência da Administração Pública, na medida em que ela poderá escolher
projetos que melhor atenderão o interesse coletivo, em situações em que
o Poder Público não teria como ter acesso a inovações.
A confidencialidade, longe de prejudicar o interesse público,
será benéfica para a coletividade, na medida em que a ausência de
divulgação dos projetos não escolhidos pela Administração será um meio
de proteção da livre concorrência no mercado, porque os proprietários das
inovações não terão plagiadas as suas propriedades imateriais, mantendo-as
protegidas da concorrência parasitária.

ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. Trad. Virgílio Afonso da Silva. 2. ed. São Paulo:
24

Malheiros Editores, 2011, p. 93-94.


A confidencialidade das propostas no diálogo competitivo 231

A proteção da propriedade privada imaterial, acarreta, consequen-


temente, a proteção da livre concorrência. Como a confidencialidade
é necessária para proteger tanto a propriedade quanto a concorrência,
ela é importante para incentivar a iniciativa privada a contribuir com a
Administração Pública mediante o fornecimento projetos inovadores,
que constituem propriedade imaterial.
Nessa trilha, a confidencialidade resulta em mecanismo de aprimora-
mento da eficiência do Estado, na medida em que protege a propriedade
privada e a livre concorrência, e constitui-se em fator de estímulo à
iniciativa privada e incentivo às corporações a participarem de licitações
para fornecimento de projetos inovadores.
Destarte, a mitigação do princípio da publicidade, além de não
prejudicar o interesse coletivo, constitui-se em mecanismo de propulsão
ao princípio da eficiência da Administração Pública.
Diante da abertura que a NLLCA deu para a Administração Pública
aprimorar sua eficiência ao utilizar a inovação tecnológica ou técnica
produzida pela iniciativa privada, em situações em que o ente adjudicante
não teria condições de produzir sozinho a mesma inovação, o receio da
má utilização da licitação na modalidade diálogo competitivo não deve
prevalecer, sob pena de prejuízos ao princípio da eficiência previsto
no art. 37 da Constituição Federal.
Caberá aos órgãos encarregados de proteger o patrimônio público a
tarefa de fiscalizar e, se necessário, corrigir desvios, mas, por ora, não é
o caso de resistir à utilização do instituto, devendo a comunidade jurídica
incentivar a sua utilização, consciente de que o Direito é dinâmico e
as novas experiências darão aos operadores do Direito Administrativo
o direcionamento necessário para a utilização do diálogo competitivo
em benefício do bem comum e, ao mesmo tempo, fecharem as lacunas
porventura surgidas com desvios de conduta na relação público/privado.

Conclusão

A NLLCA veio para melhorar o ambiente de contratações públicas e


foi editada depois da inserção do consequencialismo no direito público,
nos arts. 20 e seguintes do Decreto-Lei nº 4.657/42 (LINDB), e agora, o Juiz,
ao decidir, deve considerar as consequências práticas da sua decisão, e um
dos objetivos dessa previsão legal é o de distensionar o ambiente criado
com o chamado “Direito Administrativo do Medo”.
232 Luiz Fernando Silva Oliveira

Na União Europeia já existe a previsão do diálogo concorrencial


desde a Diretiva 2004/18/CE25 do Parlamento Europeu, e hoje está em
vigor na Diretiva 2014/24/EU26.
Seguindo as diretrizes do tratado da União Europeia, Portugal inter-
nalizou o instituto no seu Código de Contratos Públicos, Decreto-Lei
nº 18/2008, de 29 de janeiro, atualizado pela Lei nº 30/2021, no Capítulo V,
Secção I, artigos 204º até o 218º, todavia, há resistência à utilização do
diálogo concorrencial no país lusitano, motiavada pela confidencialidade
na fase de negociações.
No Brasil, ainda estão sendo utilizadas as leis anteriores à promulgação
da Lei nº 14.133/21, a partir de 1º de abril de 2024. a NLLCA será a única
Lei de licitações a ser aplicada e, assim como há resistência ao instituto
em Portugal, é perceptível a desconfiança que o diálogo competitivo
desperta em parte da comunidade jurídica, exatamente pela confiden-
cialidade na fase de negociações.
Na esteira do espírito da NLLCA, entendemos que não é o caso de
resistir à utilização do diálogo competitivo como modalidade de licitação
nas situações previstas na nova legislação: podemos extrair os seguintes
balizamentos da análise do instituto:

1) A NLLCA veio para distensionar o ambiente de contratações públicas


e acabar com o Direito Administrativo do Medo;
2) Uma das novidades da nova lei foi a inserção do diálogo compe-
titivo para situações em que a Administração Pública precisar
contratar objeto que envolva inovação tecnológica ou técni-
ca e não tiver condições de ter sua necessidade satisfeita sem
a adaptação e soluções disponíveis no mercado, dentre outras
situações específicas;
3) Os atos da Administração Pública devem ter publicidade como condi-
ção de validade, todavia, para que o Poder Público consiga atrair
a iniciativa privada para o fornecimento de inovação tecnológica,
é preciso proteger a propriedade privada e a livre concorrência,

25
DIRECTIVA 2004/18/CE DO PARLAMENTO EUROPEU E DO CONSELHO de 31 de Março de 2004. Publicado
no Jornal Oficial da União Europeia em 30 abr. 2004. Disponível em: https://eur-lex.europa.eu/.
Acesso em: 7 out. 2022.
26
DIRETIVA 2014/24/UE DO PARLAMENTO EUROPEU E DO CONSELHO de 26 de fevereiro de 2014 relativa
aos contratos públicos e que revoga a Diretiva 2004/18/CE. Publicado em 28 mar. 2014 no Jornal Oficial
da União Europeia. Disponível em: https://eur-lex.europa.eu/. Acesso em: 7 out. 2022.
A confidencialidade das propostas no diálogo competitivo 233

para que os participantes de licitações cujos projetos não sejam


escolhidos pela Administração não sejam prejudicados com a
utilização indevida, por terceiros, de sua propriedade imaterial;
4) A proteção da propriedade privada (imaterial) passa, necessariamente,
pela confidencialidade na fase de negociações, quando se
tratar de apresentação de projetos de inovação tecnológica,
para evitar o plágio dos projetos não escolhidos pela Administração,
essa previsão legal visa proteger a livre concorrência;
5) Em última instância, a confidencialidade prevista na fase de
negociações, ao proteger a propriedade privada e a livre concor-
rência, constitui estímulo para a iniciativa privada apresentar
projetos de inovação tecnológica, que resulta na efetivação do
princípio constitucional da eficiência da atuação do Poder Público;
6) Caberá aos órgãos de fiscalização e repressão atuarem para
a correção de rumos em casos de utilização indevida do diálogo
competitivo para desvios de finalidade, todavia, não é o caso de
deixar de utilizar o instituto porque é modalidade de licitação
incentivadora do aperfeiçoamento tecnológico no setor público.

Bibliografia

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2. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2011.
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BORGES, José Souto Maior. Curso de Direito Comunitário: instituições
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234 Luiz Fernando Silva Oliveira

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trad. Marco Aurélio Nogueira. 17. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2020.
CARVALHO, Kildare Gonçalves. Direito Constitucional. 11 ed. rev. e atual.
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DIRECTIVA 2004/18/CE DO PARLAMENTO EUROPEU E DO CONSELHO de 31 de
Março de 2004. Jornal Oficial da União Europeia, Bruxelas, 30 abr. 2004.
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DIRECTIVA 2014/24/UE DO PARLAMENTO EUROPEU E DO CONSELHO de 26 de
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HEINEN, Juliano. Curso de Direito Administrativo. 2. ed. rev., atual. e ampl.
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732

A nova Lei de Licitações e Contratos


Administrativos (Lei nº 14.133/21):
inexigibilidade/dispensa de licitação.
Responsabilidade solidária do
contratante e agente público (art. 73)

Flora Maria Nesi Tossi Silva1


Desembargadora do Tribunal de Justiça de São Paulo

Sumário: Introdução. A regra da obrigatoriedade da licitação como


preceito constitucional e exceções previstas em lei. 1. Processo de contra-
tação direta. 2. Inexigibilidade de licitação. 3. Dispensa de licitação
(licitações dispensáveis e dispensadas). 4. Responsabilidade solidária do
contratante e agente público pelos danos causados em caso de dolo, fraude
ou erro grosseiro, em caso de contratação indevida (art. 73). 4.1. Erro
grosseiro na pandemia da covid-19 (decisão do STF nas ADIS 6421, 6422,
6424, 6425, 6427, 6428 e 6431 MC/DF). 4.2. Necessidade de observância das
regras da Lei de Introdução às Normas Brasileiras (LINDB), com a redação
dada pela Lei no 13.655/2018, também no que se refere à aplicação do
art. 73, da Lei no 14.133/2021. 4.3. Não aplicação de dupla penalização na
esfera administrativa/cível (“non bis in idem”). Conclusão. Bibliografia.

Introdução. A regra da obrigatoriedade da licitação como preceito


constitucional e exceções previstas em lei

Os contratos da administração pública são regidos pelo princípio da


estrita legalidade. Os requisitos formais para sua concretização são rígidos
e o seu conteúdo se sujeita a limitações.

1
Mestre em Direito das Relações Sociais (Área de Concentração: Direito Processual Civil) pela Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Especialização em Direito Empresarial pela Escola
Paulista da Magistratura. Especialização em Direito de Família e Sucessões pela Escola Paulista
da Magistratura. Especialização em Direito Público pela Escola Paulista da Magistratura. Membro da
Academia Paulista de Magistrados.
238 Flora Maria Nesi Tossi Silva

Para que o contrato administrativo se concretize, há necessidade,


em regra, da realização de licitação, que vem a ser o procedimento pelo
qual são realizados vários atos destinados a verificar a proposta mais
vantajosa para a administração.
A licitação é, portanto, o procedimento administrativo, que envolve
a realização de diversos atos administrativos de acordo com as regras
previstas na lei.
A Constituição Federal prevê que a licitação é a regra e que é excep-
cional a contratação direta (art. 37, inciso XXI):

Art. 37. A administração pública direta e indireta


de qualquer dos Poderes da União, dos Estados,
do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá
aos princípios de legalidade, impessoalidade,
moralidade, publicidade e eficiência e também ao
seguinte: XXI – Ressalvados os casos especificados na
legislação, as obras, serviços, compras e alienações
serão contratados mediante processo de licitação
pública, que assegure igualdade de condições a todos
os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam
obrigações de pagamento, mantidas as condições
efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual
somente permitirá as exigências de qualificação
técnica e econômica indispensáveis à garantia
do cumprimento das obrigações. (BRASIL, 1988)

Estão sujeitas às normas gerais de licitação e contratação a


Administração Pública, direta e indireta, dentre as quais se incluem
as fundações instituídas e mantidas pelo Poder Público, nas diversas
esferas do governo e as empresas sob seu controle, nos termos do art. 22,
XXVII, da CF. Cabe à União legislar sobre o assunto, podendo os Estados,
Distrito Federal e Municípios efetuar normas meramente suplementares.
O legislador constitucional, ao inserir a obrigatoriedade da licita-
ção no texto constitucional, teve a finalidade de preservar os princípios
gerais da administração pública: legalidade, impessoalidade, moralidade,
publicidade e eficiência, previstos no “caput” do art. 37, da CF/1988.
Como visto, a obrigatoriedade de realização do procedimento licita-
tório é excepcionada pela própria Constituição Federal que estabelece
a possibilidade de ou a necessidade de a contratação pela administração
A nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos (Lei nº 14.133/21) 239

pública ser realizada sem um procedimento licitatório. A desnecessidade


de licitação, entretanto, não significa que o administrador poderá contratar
qualquer pessoa, por qualquer preço.
Em 1º de abril de 2021, entrou em vigor a nova Lei de Licitações e
Contratos (Lei no 14.133) que visa compilar diplomas normativos esparsos
e modernizar as licitações e contratos. Com a mencionada lei, houve a
modernização e compilação da Lei no 8.666/1993 (Lei Geral das Licitações),
Lei no 10.520/2004 (Lei do Pregão) e Lei no 12.462/2011 (Lei do Regime
Diferenciado de Contratações Públicas – RDC), as quais serão revogadas
a partir de dois anos de vigência da Lei no 14.133/2021. Até lá, o gestor
público pode optar por licitar de acordo com o ordenamento jurídico
anterior ou de acordo com a nova sistemática.
A Lei no 14.133/2021, diferentemente da Lei no 8.666/1993, traz um
capítulo específico sobre a contratação direta (capítulo VIII, da Lei
no 14.133/2021), subdividido em três seções, o que demonstra a impor-
tância que o legislador atribuiu ao assunto.
O art. 72 (que compõe a seção I, do capítulo VIII, de mencionada lei)
dispõe acerca das regras do processo de contratação direta, tendo sido
mantida a divisão desta em hipóteses de dispensa e inexigibilidade.
O art. 73 (que compõe a seção I, do Capítulo VIII, da mencionada Lei)
prevê hipóteses de responsabilidade solidária se houver contratação direta
de forma indevida.
O art. 74 (que compõe a seção II do capítulo VIII da referida lei)
trata da inexigibilidade de licitação.
O art. 75 (que compõe a seção II do Capítulo VIII da mencionada Lei)
trata da dispensa de licitação (licitações dispensáveis).
O art. 76 trata das licitações dispensadas (capítulo IX da referida Lei).
Como será analisado abaixo, a Lei no 14.133/2021 trouxe novo trata-
mento à contratação direta. Houve aumento quantitativo dos limites
para dispensa de licitação em razão do valor, bem como foram amplia-
das as hipóteses de dispensa e inexigibilidade. Os artigos 74 e 75 da
Lei no 14.133/2021 apresentam mais incisos que aqueles previstos nos
art. 25 e 24 da Lei no 8.666/1993.
Serão realizadas brevíssimas considerações quanto aos casos de
dispensa e inexigibilidade de licitação, previstos na Lei no 14.133/2021.
Na sequência, será efetuada análise do art. 73, de mencionado diploma
legal, abordando-se diversas questões pertinentes e relacionadas ao tema.
240 Flora Maria Nesi Tossi Silva

O objeto principal deste trabalho é a abordagem mais detalhada do


art. 73 da Nova Lei de Licitações. Por este motivo, não serão efetuadas
considerações aprofundadas sobre os vários temas correlatos a cada uma
das hipóteses de dispensa e inexigibilidade de licitação.

1. Processo de contratação direta

Como já analisado acima, em regra, as contratações da adminis-


tração devem ser precedidas de licitação, às quais devem ser aplicadas
as regras pertinentes.
No entanto, a Constituição Federal (art. 37, XXI) prevê exceções
a essa regra.
O fato de a administração não precisar realizar licitação em certas
hipóteses não significa que não exista um procedimento a ser seguido,
pois a lei relativa às licitações e contratos administrativos estabelece
medidas necessárias para garantir que os princípios da lei continuem
sendo respeitados.
Na Lei no 8.666/1993 não há, de forma específica e em seção própria
(como previsto no art. 72 da Lei no 14.133/2021), uma norma sobre
o processo de contratação direta. Apesar disso, naquele diploma legal
há regras mínimas sobre a matéria no art. 26, que dispõem sobre alguns
requisitos procedimentais básicos.
O processo de contratação direta sofreu mudanças na Lei
no 14.133/2021. Nesta, exigem-se mais documentos e justificativas para
motivar o procedimento. A divulgação deve ser efetuada por via eletrônica,
o que é salutar para ampliação do controle dos atos da administração,
até mesmo por parte da sociedade.
O art. 72 (seção I, do Processo de contratação Direta) da Lei
no 14.133/2021 prevê que o processo de contratação direta, que compreen-
de os casos de inexigibilidade e de dispensa de licitação, deverá ser
instruído com os seguintes documentos: I – documento de formalização
de demanda e, se for o caso, estudo técnico preliminar, análise de riscos,
termo de referência, projeto básico ou projeto executivo; II – estima-
tiva de despesa, que deverá ser calculada na forma estabelecida no
art. 23 da lei; III – parecer jurídico e pareceres técnicos, se for o caso,
que demonstrem o atendimento dos requisitos exigidos; IV – demonstração
da compatibilidade da previsão de recursos orçamentários com o compro-
misso a ser assumido; V – comprovação de que o contratado preenche
A nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos (Lei nº 14.133/21) 241

os requisitos de habilitação e qualificação mínima necessária; VI – razão da


escolha do contratado; VII – justificativa de preço; e VIII – autorização
da autoridade competente.
O parágrafo único de tal dispositivo legal prevê que o ato que autoriza
a contratação direta ou o extrato decorrente do contrato deverá ser
divulgado e mantido à disposição do público em sítio eletrônico oficial.
Como bem aponta Irene Patrícia Diom Nohara2: “[…] no item justi-
ficativa que motiva a razão de escolha do contratado, não será admitida
razão de escolha, isto é, motivo, que não seja correspondente ao interesse
público, sob pena de desvio de poder […]”.
O que pode ensejar a contratação direta é apenas a obtenção dos
interesses públicos, devendo o agente público observar as regras que lhe
atribuem competência para agir de determinado modo. Não é possível
utilizar motivos, para as contratações públicas, que sejam calcados em
mero favorecimento de determinados grupos empresariais ou para favore-
cimento dos próprios agentes públicos.
Como bem aponta Flávia Campos3, a documentação prevista no
art. 72 é necessária para garantir o controle da legalidade da contratação
direta, pois, conforme o art. 73, na hipótese de contratação indevida,
havida com dolo, fraude ou erro grosseiro, o contratado e o agente público
responderão solidariamente pelo dano causado ao erário, sem prejuízo
de outras sanções legais cabíveis (assunto que será abordado mais detida-
mente no item 4 do presente trabalho).

2. Inexigibilidade de licitação

Como bem explica José dos Santos Carvalho Filho4, “[…] na dispensa,
a licitação é materialmente possível, mas em regra inconveniente;
a inexigibilidade, é inviável a própria competição”.
A Lei no 8.666/93, ainda em vigor, enumera os casos de inexigibilidade
de licitação em seu artigo 25. No caput de tal dispositivo legal há indicação

2
NOHARA, Irene Patrícia Diom. Nova Lei de Licitações e Contratos Comparada. São Paulo: Thomson Reuters
Revista dos Tribunais, 2021, p. 304.
3
CAMPOS, Flávia. Comentários à Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos. São Paulo:
Foco, 2021, p. 49.
4
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 32. ed. São Paulo: Atlas, 2018.
242 Flora Maria Nesi Tossi Silva

de ser inexigível a licitação quando houver inviabilidade de competição,


sendo enumeradas as hipóteses.
Houve alterações pontuais nas hipóteses de inexigibilidade, na Lei
no 14.133/2021, como será analisado um pouco mais abaixo.
Segundo o art. 74 deste diploma legal, é inexigível a licitação quando
inviável a competição, em especial nos casos de:
I – aquisição de materiais, de equipamentos ou de gêneros ou contra-
tação de serviços que só possam ser fornecidos por produtos, empresa ou
representante comercial exclusivos;
II – contratação de profissional do setor artístico, diretamente ou
por meio de empresário exclusivo, desde que consagrado pela crítica
especializada ou pela opinião pública;
Para que a licitação seja inexigível, é necessário que o artis-
ta seja consagrado pela crítica especializada ou pela opinião pública.
Nesta circunstância não é possível criar um critério objetivo para se fazer
uma competição entre os interessados. Entretanto, a contratação deve
se dar diretamente ou por meio de empresário exclusivo, sendo que a
identificação do que é empresário exclusivo está no parágrafo 2º.
III – contratação dos seguintes serviços técnicos especializados de
natureza predominantemente intelectual com profissionais ou empresas
de notória especialização, veda a inexigibilidade para serviços de publi-
cidade e divulgação;

a) estudos técnicos, planejamentos, projetos básicos ou projetos


executivos;
b) pareceres, perícias e avaliações em geral;
c) assessorias ou consultorias técnicas e auditorias financeiras
ou tributárias;
d) fiscalização, supervisão ou gerenciamento de obras ou serviços;
e) patrocínio ou defesa de causas judiciais ou administrativas;
f) treinamento e aperfeiçoamento de pessoal;
g) restauração de obras de arte e de bens de valor histórico;
h) controles de qualidade e tecnológico, análises, testes e ensaios
de campo e laboratoriais, instrumentação e monitoramento de
parâmetros específicos de obras e do meio ambiente e demais
serviços de engenharia que se enquadrem no disposto neste inciso;
A nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos (Lei nº 14.133/21) 243

Os serviços enumerados são os mesmos previstos no art. 6º., XVIII,


da Lei no 14.133/2021 que apresentam natureza técnica e intelectual,
não possibilitando a utilização de critérios objetivos para se efetivar
licitação entre os eventuais interessados
Para que a licitação seja inexigível, é necessário que seja contratado
profissional ou empresa de notória especialização. O parágrafo 3º considera
o profissional ou empresa cujo conceito no campo de sua especialidade,
decorrente de desempenho anterior, estudos, experiência, publicações,
organização, aparelhamento, equipe técnica ou outros requisitos relacio-
nados com suas atividades, permita inferir que o seu trabalho é essencial
e reconhecidamente adequado à plena satisfação do objeto do contrato.
IV – objetos que devem ou possam ser contratados por meio
de credenciamento;
O credenciamento é procedimento auxiliar à licitação, previsto no
art. 79, em que a administração não visa firmar um contrato com pessoa
específica, mas sim possibilitar que todos os interessados que preencham
os requisitos possam se credenciar. Há inexigibilidade de licitação, pois não
haverá competição entre os credenciados.
V – aquisição ou locação de imóvel cujas características de instala-
ções e de localização tornem necessária sua escolha.
O contido no inciso V constitui importe mudança em relação à Lei
no 8.666/93, pois a aquisição ou locação é forma de licitação dispensável,
nos termos do art. 24, X, daquele diploma legal.
Por sua vez, o parágrafo 1º prevê que, para fins do disposto no
inciso I do caput do art. 74, a administração deverá demonstrar a invia-
bilidade de competição mediante atestado de exclusividade, contrato
de exclusividade, declaração do fabricante ou outro documento idôneo
capaz de comprovar que o objeto é fornecido ou prestado por produtor,
empresa ou representante comercial exclusivos, vedada a preferência
por marca específica.
E o parágrafo 2º prevê que, para fins do disposto no inciso II do caput
do art. 74, considera-se empresário exclusivo a pessoa física ou jurídica
que tebga contrato, declaração, carta ou outro documento que ateste a
exclusividade permanente e contínua de representação, no país ou em
Estado específico, do profissional do setor artístico, afastada a possibili-
dade de contratação direta por inexigibilidade por meio de empresário
com representação restrita a evento ou local específico.
244 Flora Maria Nesi Tossi Silva

O parágrafo 3º reza que, para fins do disposto no inciso IIII do caput


do art. 74, considera-se de notória especialização o profissional ou a
empresa cujo conceito no campo de sua especialidade, decorrente de
desempenho anterior, estudos, experiência, publicações, organização,
aparelhamento, equipe técnica ou outros requisitos relacionados com suas
atividades, permita inferir que o seu trabalho é essencial e reconhecida-
mente adequado à plena satisfação do objeto do contrato.
O parágrafo 4º dispõe que, nas contratações com fundamento no
inciso III do caput do art. 74, é vedada a subcontratação de empresas
ou a atuação de profissionais distintos daqueles que tenham justificado
a inexigibilidade.
O parágrafo 5º prevê que, nas contratações com fundamento no
inciso V do caput do art. 74, devem ser observados os seguintes requisitos:
I – avaliação prévia do bem, do seu estado de conservação, dos custos
de adaptações, quando imprescindíveis às necessidades de utilização,
e do prazo de amortização dos investimentos;
II – certificação da inexistência de imóveis públicos vagos e dispo-
níveis que atendam ao objeto;
III – justificativas que de demonstrem a singularidade do imóvel
a ser comprado ou locado pela Administração e que evidenciem
vantagem para ela.
Analisando-se o conteúdo do artigo 74 da Lei no 14.133/2021,
verifica-se que esta reorganizou as hipóteses de inexigibilidade, inserindo
como uma das hipóteses a aquisição ou locação de imóveis cujas carac-
terísticas de instalações tornem necessária sua escolha e prevendo
(no art. 74, parágrafo 4º) os requisitos formais para as contratações.
Também previu o credenciamento, o qual constitui instrumento auxiliar
utilizado para contratação direta como inexigibilidade, tratado no art. 79
da mesma lei, e, ainda, a hipótese de serviço técnico especializado
(controles de qualidade e tecnológico, análises, teses e ensaios de campo
e laboratoriais, instrumentação e monitoramento de parâmetros especí-
ficos de obras e do meio ambiente e demais serviços de engenharia que
se enquadrem) no disposto no inciso.
Houve a troca da expressão trabalho “indiscutivelmente” mais
adequado à plena satisfação (antes prevista no § 1º do art. 25 da Lei
no 866/93) pela expressão “reconhecidamente” adequado, para configurar
a notória especialização.
A nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos (Lei nº 14.133/21) 245

Examinando-se o texto legal, verifica-se que a inexigibilidade


de licitação é decorrente da inviabilidade de competição.
Entretanto, a Lei no 14.133/2021 não apresentou a fórmula do
que constitui inviabilidade de competição. O art. 74 apenas forneceu,
em seus incisos e parágrafos, um rol exemplificativo do que é considerado
inviabilidade de competição.
Ricardo Marcondes Martins5 esclarece que as previsões legais de hipóte-
ses de inexigibilidade de licitação são numerus apertus (rol exemplificativo),
diferentemente das hipóteses de dispensa de licitação que são numerus
clausus (rol taxativo).
A ideia de inviabilidade de competição é objeto de discussões doutri-
nárias e jurisprudenciais, sem que se tenha, até o momento, alcançado
soluções que dirimam de uma vez por todas as controvérsias.
Marçal Justen Filho6, com base em exposição efetuada por Celso
Antonio Bandeira de Mello, esclarece que a inviabilidade de competição
pode se dar:
a) como situação anômala (situações em que não se encontram presentes
os pressupostos para a escolha objetiva da proposta mais vantajosa);
b) como decorrência/consequência. Trata-se de um gênero,
que comporta diferentes modalidades, em virtude da ausência de pressu-
postos necessários à licitação;
c) inexigibilidade como caso de “dupla crise” da licitação. Quando a
licitação, tal como estruturada pela lei, não consegue atingir o resultado
pretendido. A licitação, neste caso, não cumpre a função de selecionar
a proposta mais vantajosa.

3. Dispensa de licitação (licitações dispensáveis e dispensadas)

De acordo com a Lei no 8.666/93, os casos de dispensa de licitação


estão previstos nos arts. 17, I e II, e 24 de referida Lei.

5
MARTINS, Ricardo Marcondes. Inexigibilidade de Licitação: Comentários ao art. 74 da Lei 14.133/2021.
in: Cunha Filho, Alexandre Jorge Carneiro da; Arruda, Carmen Silvia L. de; Piccelli, Roberto Ricomini
(coord.). Lei de Licitações e Contratos Comentada – volume II. . São Paulo: Quartier Latin, 2022, p. 359.
6
JUSTEN Filho, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratações Administrativas
(Nova Lei 14.133/2021). São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021, p. 958.
246 Flora Maria Nesi Tossi Silva

No que se refere à Lei no 14.133/2021, houve poucas mudanças nos


casos de dispensa de licitação, destacando-se o aumento do valor de
contratação direta por licitação dispensável, como será verificado a seguir.
No art. 75 da Lei no 14.133/2021 o legislador manteve muitas das
hipóteses enumeradas, tendo, entretanto, realizado alteração da ordem de
sua apresentação. Também foram eliminadas algumas hipóteses constantes
da lei no 8.666/93 e tendo sido trazidas outras, visando, em princípio,
adequá-las aos tempos atuais.
O art. 75 da Lei no 14/133/2021 prevê que é dispensável a licitação:
I – para contratação que envolva valores inferiores a R$ 100.000,00
no caso de obras e serviços de engenharia ou de serviços de manutenção
de veículos automotores;
II – para contratação que envolva valores inferiores a R$ 50.000,00,
no caso de outros serviços e compras;
III – para contratação que mantenha todas as condições definidas no
edital de licitação realizada há menos de um ano, quando se verificar que:

a) naquela licitação não surgiram licitantes interessados ou não foram


apresentadas propostas válidas;
b) as propostas apresentadas consignaram preços manifestamente
superiores aos praticados no mercado ou incompatíveis com
os fixados pelos órgãos oficiais competentes.

IV – para contratação que tenha por objeto:

a) bens componentes ou peças de origem nacional ou estrangeira


necessários à manutenção de equipamentos, a serem adquiridos
do fornecedor original desses equipamentos durante o perío-
do de garantia técnica, quando essa condição de exclusividade
for dispensável para a vigência da garantia;
b) bens, serviços, alienações ou obras, nos termos de acordo inter-
nacional específico aprovado pelo Congresso nacional, quando
as condições ofertadas forem manifestamente vantajosas para a
administração;
c) produtos para pesquisa e desenvolvimento, limitada a contrata-
ção, no caso de obras e serviços de engenharia, ao valor de R$
300.000,00;
A nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos (Lei nº 14.133/21) 247

d) transferência de tecnologia ou licenciamento de direito de uso ou


de exploração de criação protegida, nas contratações realizadas
por instituição científica, tecnológica e de inovação (ICT) pública
ou por agência de fomento, desde que demonstrada vantagem
para a administração;
e) hortifrutigranjeiros, pães e outros gêneros perecíveis, no período
necessário para a realização dos processos licitatórios correspon-
dentes, hipótese em que a contratação será realizada diretamente
com base no preço do dia;
f) bens ou serviços produzidos ou prestados no país que envolvam,
cumulativamente, alta complexidade tecnológica e defesa nacional;
g) materiais de uso das forças armadas, com exceção de materiais
de uso pessoal e administrativo, quando houver necessidade de
manter a padronização requerida pela estrutura de apoio logístico
dos meios navais, aéreos e terrestres, mediante autorização por
ato do comandante da força militar;
h) bens e serviços para atendimentos dos contingentes militares das
forças singulares brasileiras empregadas em operações de paz
no exterior, hipótese em que a contratação deverá ser justificada
quanto ao preço e à escolha do fornecedor ou executante e
ratificada pelo comandante da forma militar;
i) abastecimento ou suprimento de efetivos militares em estada
eventual de curta duração em portos, aeroportos ou localidades
diferentes de suas sedes, por motivo de movimentação operacional
ou de adestramento;
j) coleta, processamento e comercialização de resíduos sólidos
urbanos recicláveis ou reutilizáveis em áreas com sistema de
coleta seletiva de lixo, realizados por associações ou cooperativas
formadas exclusivamente de pessoas físicas de baixa renda reconhe-
cidas pelo poder público como catadores de materiais recicláveis,
com o uso de equipamentos compatíveis com as normas técnicas,
ambientais e de saúde pública;
k) aquisição ou restauração de obras de arte e objetos históricos,
de autenticidade certificada, desde que inerente às finalidades
do órgão ou com elas compatível;
l) serviços especializados ou aquisição ou locação de equipamentos
destinados ao rastreamento e à obtenção de provas previstas nos
incisos II e V do caput do art. 3º da Lei no 12.850, de 2 de agosto
248 Flora Maria Nesi Tossi Silva

de 2013, quando houver necessidade justificada de manutenção


de sigilo sobre a investigação;
m) aquisição de medicamentos destinados exclusivamente ao trata-
mento de doenças raras definidas pelo Ministério da Saúde.

V – para contratação com vistas ao cumprimento do disposto nos


art. 3º, 3º-A, 4º, 5º e 20 da Lei no 10.973, de 2 de dezembro de 2004,
observados os princípios gerais de contratação constantes da referida lei;
VI – para contratação que possa acarretar comprometimento da
segurança nacional, nos casos estabelecidos pelo Ministro de Estado
da Defesa, mediante demanda dos comandos das Forças Armadas ou
dos demais ministérios;
VII – nos casos de guerra, estado de defesa estado de sítio, intervenção
federal ou de grave perturbação da ordem;
VIII – nos casos de emergência ou calamidade pública, quando
caracterizada urgência de atendimento de situação que possa ocasio-
nar prejuízo ou comprometer a continuidade dos serviços públicos ou
a segurança de pessoas, obras, serviços, equipamentos e outros bens,
públicos ou particulares e, somente para aquisição dos bens necessários
ao atendimento da situação emergencial ou calamitosa e para as parcelas
de obras e serviços que possam ser concluídas no prazo máximo de 1 ano,
contado da data de ocorrência da emergência ou da calamidade, vedadas a
prorrogação dos respectivos contratos e a recontratação de empresa já
contratada com base no disposto neste inciso;
Emergências ou calamidade pública podem ensejar, nos termos do
inciso VIII, a contratação direta, quando houver urgência de atendimento.
No entanto, devem ser observados os requisitos para que a licitação
seja dispensável.
A licitação só será dispensável para as contratações que visem atender
a situação emergencial ou calamitosa. Os contratos firmados devem ter
como prazo de conclusão, no máximo, o prazo de 1 ano. São vedadas as
prorrogações de tais contratos e a recontratação de uma empresa que
já tenha sido contratada com base na situação do inciso.
De acordo com o art. 75, parágrafo 6º, considera-se emergencial a
contratação por dispensa que tenha o objetivo de manter a continuidade
do serviço público. Devem ser observados os valores praticados pelo
mercado na forma do art. 23 da Lei 14.133/2021 e adotadas as providên-
cias necessárias para a conclusão do processo licitatório.
A nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos (Lei nº 14.133/21) 249

Como bem apontado por Wanderley José Federigh7, os doutrinadores


são praticamente uníssonos em mencionadas como exemplo de calami-
dade pública a existência de epidemia que coloque em risco a saúde
da população. O mundo todo, nos tempos atuais, tem convivido com a
pandemia de covid-19. No Brasil, embora tenha havido, inicialmente,
negativa da gravidade da situação, acabou sendo declarado o estado
de calamidade, para fins do art. 65 da Lei Complementar Federal nº 101,
de 4 de maio de 2000, tendo sido editado o Decreto Legislativo no 06/2020.
IX – para a aquisição, por pessoa jurídica de direito público interno,
de bens produzidos ou serviços prestados por órgão ou entidade que
integrem a administração pública e que tenham sido criados para esse
fim específico, desde que o preço contratado seja compatível com
o praticado no mercado;
X – quando a União tiver que intervir no domínio econômico para
regular preços ou normalizar o abastecimento;
XI – para celebração de contrato de programa com ente federativo
ou com entidade de sua administração pública indireta que envolva
prestação de serviços públicos de forma associada nos termos autorizados
em contrato de consórcio público ou em convênio de cooperação;
XII – para contratação em que houver transferência de tecnologia
de produtos estratégicos para o Sistema Único de Saúde (SUS), conforme
elencados em ato da direção nacional do SUS, inclusive por ocasião da
aquisição destes produtos durante as etapas de absorção tecnológica,
e em valores compatíveis com aqueles definidos no instrumento firmado
para a transferência de tecnologia;

7
FEDERIGH, Wanderley José. A licitação: Notas sobre a sua Dispensa e Inexigibilidade. in: Cunha Filho,
Alexandre Jorge Carneiro da; Arruda, Carmen Silvia L. de; Piccelli, Roberto Ricomini (Coord.). Lei de
Licitações e Contratos Comentada – volume II. São Paulo: Quartier Latin, 2022. p. 333. Mencionado autor
indica que, em 20 de março de 2020, o então Ministro da Saúde baixou Portaria nº 454, que declarou
o estado de transmissão comunitária do novo vírus em todo o território nacional. No Estado de
São Paulo, entrou em vigor o Decreto Estadual nº 64.879, de 20.03.2020, que reconheceu o Estado
de calamidade pública em todo o Estado, em decorrência da disseminação do vírus. Ressalta, ainda,
que, no âmbito do estado de calamidade pública, vários outros instrumentos legais entraram em vigor,
como a Lei Federal nº 13.979/2020, que trouxe as medidas aplicáveis enquanto vigorar o referido estado
de calamidade; o Decreto-Legislativo nº 06 de 20.03.2020, que reconheceu a ocorrência do mencionado
estado de calamidade pública, nos termos da solicitação do presidente da República, encaminhada por
meio de mensagem nº 93, de 18 de março do mesmo ano; a medida provisória 926/2020, que altera
a Lei nº 13.979/2020, para dispor sobre procedimentos para aquisição de bens, serviços e insumos
destinados ao enfrentamento da emergência de saúde pública.
250 Flora Maria Nesi Tossi Silva

XIII – para contratação de profissionais para compor a comissão de


avaliação de critérios de técnica, quando se tratar de profissional técnico
de notória especialização;
XIV – para contratação de associação de pessoas com deficiência,
sem fins lucrativos e de comprovada idoneidade, por órgão ou entidade da
Administração Pública, para a prestação de serviços, desde que o preço
contratado seja compatível com o praticado no mercado e os serviços
contratados sejam prestados exclusivamente por pessoas com deficiência;
XV – para contratação de instituição brasileira que tenha por finali-
dade estatutária apoiar, captar e executar atividade de ensino, pesquisa,
extensão, desenvolvimento institucional, científico e tecnológico e estímulo
à inovação, inclusive para gerir administrativa e financeiramente essas
atividades ou para contratação de instituição dedicada à recuperação
social de pessoa presa, desde que o contratado tenha inquestionável
reputação ética e profissional e não tenha fins lucrativos;
XVI – para aquisição, por pessoa jurídica de direito público interno,
de insumos estratégicos para a saúde produzidos por fundação que,
regimental ou estatutariamente, tenha por finalidade apoiar órgão da
administração pública direta, sua autarquia ou fundação em projetos
de ensino, pesquisa, extensão, desenvolvimento, institucional, científico
e tecnológico e de estímulo à inovação, inclusive na gestão administrativa
e financeira necessária à execução desses projetos ou em parcerias que
envolvam transferência de tecnologia de produtos estratégicos para o SUS,
nos termos do inciso XII do “caput” do art. 75, e que tenha sido criada para
esse fim específico em data anterior à entrada em vigor da Lei, desde que
o preço contratado seja compatível com o praticado no mercado.
Por sua vez, o parágrafo 1º do art. 75 dispõe que, para fins de aferição
dos valores que atendam aos limites referidos nos incisos I e II do caput
deste artigo, deverão ser observados:
I – O somatório do que for despendido no exercício financeiro pela
respectiva unidade gestora;
II – somatório da despesa realizada com objetos da mesma natureza,
entendidos como tais aqueles relativos a contratações no mesmo ramo
de atividade.
O parágrafo 2º do mesmo dispositivo legal prevê que os valores referi-
dos nos incisos I e II do caput do artigo 75 serão duplicados para compras,
A nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos (Lei nº 14.133/21) 251

obras e serviços contratados por consórcio público ou por autarquia


ou fundação qualificadas como agências executivas na forma da lei.
O parágrafo 3º dispõe que as contratações de que tratam os incisos I
e II do caput do art. 75 serão preferencialmente precedidas de divulgação
de aviso em sítio eletrônico oficial, pelo prazo mínimo de três dias úteis,
com a especificação do objeto pretendido e com a manifestação de
interesse da administração em obter propostas adicionais de eventuais
interessados, devendo ser selecionada a proposta mais vantajosa.
O parágrafo 4º do dispositivo legal em enfoque reza que as
contratações de que tratam os incisos I e II do caput do artigo serão
preferencialmente pagas por meio de cartão de pagamento, cujo extrato
deverá ser divulgado e mantido à disposição do público no Portal Nacional
de Contratações Públicas.
O parágrafo 5º dispõe que a dispensa prevista na alínea “c” do inciso
IV do caput do art. 75, quando aplicada a obras e serviços de engenharia,
seguirá procedimentos especiais instituídos em regulamentação específica.
O parágrafo 6º prevê que, para os fins do inciso VIII do caput do
artigo 75, considera-se emergencial a contratação por dispensa com
objetivo de manter a continuidade do serviço público, e deverão ser
observados os valores praticados pelo mercado na forma do art. 23 da Lei
no 14.133/2021 e adotadas as providências necessárias para a conclusão
do processo licitatório, sem prejuízo de apuração de responsabilidade
dos agentes públicos que deveram causa à situação emergencial.
O parágrafo 7º reza que não se aplica o disposto no parágrafo 1º
do art. 75 às contratações de até R$ 8.000,00 de serviços de manutenção
de veículos automotores de propriedade do órgão ou entidade contratante,
incluído o fornecimento de peças.
A Lei no 14.333/2021 prevê, como indicado acima, diversas hipóteses
de dispensa de licitação, havendo, ainda, outras hipóteses previstas em
leis esparsas, sendo que há possibilidade de surgirem outras, no futuro,
em futuras leis, em virtude de alterações da realidade fática, o que
exige um aprofundamento do estudo do tema pelos agentes públicos.
De qualquer forma, as hipóteses de dispensa de licitação constituem
numerus clausus.
252 Flora Maria Nesi Tossi Silva

Como bem esclarecem Wanderley José Federigh8 e Carmen Silvia


Lima de Arruda9 e nas hipóteses de dispensa de licitação há como
elemento comum a motivação e transparência da dispensa. O ato de
dispensa deve ser motivado, divulgado e mantido à disposição do público
em sítio eletrônico oficial, para que seja submetido à publicidade e
conhecimento de todos.
Carmen Silvia Lima de Arruda10 assevera, ainda, com propriedade,
que, para que haja a contratação direta por dispensa de licitação,
devem ser observados os princípios constantes do art. 5º. da Lei
no 14.133/2021: legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade,
eficiência, interesse público, probidade administrativa, igualdade, plane-
jamento, transparência, eficácia, segregação de funções, motivação,
vinculação ao edital, julgamento objetivo, segurança jurídica, razoabi-
lidade, competitividade, proporcionalidade, celeridade, economicidade
e do desenvolvimento nacional sustentável, bem como as disposições
do Decreto-Lei no 4.657, de 4 de setembro de 1942 (Lei de Introdução
às Normas do Direito Brasileiro).
Por sua vez, além das licitações dispensáveis, vistas até aqui neste
item 3 do presente trabalho, há as licitações dispensadas (tratadas no
art. 17, incisos I e II, da Lei no 8.666/93 e no art. 76 da Lei no 14.133/2021 –
Capítulo IX – Das Alienações).
Como bem aponta Wanderley José Federigh 11, as licitações
dispensáveis “[…] são aqueles casos nos quais a administração pode

8
FEDERIGH, Wanderley José. A licitação: Notas sobre a sua Dispensa e Inexigibilidade. in: Cunha Filho,
Alexandre Jorge Carneiro da; Arruda, Carmen Silvia L. de; Piccelli, Roberto Ricomini (Coord.).
Lei de Licitações e Contratos Comentada – volume II. São Paulo: Quartier Latin, 2022, p. 319-353.
9
ARRUDA, Carmen Silvia Lima de. Novas Hipóteses de Dispensa de Licitação da Lei 14.133/2021. in:
Cunha Filho, Alexandre Jorge Carneiro da; Arruda, Carmen Silvia L. de; Piccelli, Roberto Ricomini
(Coord.). Lei de Licitações e Contratos Comentada – volume II. São Paulo: Quartier Latin, 2022 p. 405.
10
ARRUDA, Carmen Silvia Lima de. Op. cit., p. 405.
11
FEDERIGH, Wanderley José. Op. cit. 339. Considerando os estreitos limites deste trabalho, remeto o
leitor para os estudos aprofundados sobre as licitações dispensáveis, dispensadas e inexigibilidade
de licitação na Lei nº 14.133/2021, e também sobre a nova Lei de Licitações e contratos, realizados por:
1) Wanderley José Federigh. Op. cit, p. 319/353; 2)MARTINS, Ricardo Marcondes. Inexigibilidade de
Licitação: Comentários ao art. 74 da Lei 14.133/2021; 3) ARRUDA, Carmen Silvia Lima. Novas hipóteses
de Dispensa de Licitação da Lei 14.133/2021, p. 377/409; e 4) SADI, Mário. Comentário Geral ao
Capítulo IX da Lei 14.133/2021, p. 417/427. Os quatro artigos em: Cunha Filho, Alexandre Jorge Carneiro da;
Arruda, Carmen Silvia L. de; Piccelli, Roberto Ricomini (Coord.). Lei de Licitações e Contratos Comentada –
Lei 14.133/2021; 5) Marçal JUSTEN Filho. Op. cit. 938/1123; 6) CAMPOS, Flávia Campos. Comentários
à Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos. São Paulo: Foco, 2021, p. 49/79; 6) THAMAY,
Rennan; GARCIA Júnior, Vanderlei; MACIEL, Igor Moura; PRADO, Jhonny. Nova Lei de Licitações e Contratos
A nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos (Lei nº 14.133/21) 253

realizar a licitação ou pode dispensá-la, de acordo com sua conveniência


e oportunidade […]”. As licitações dispensadas “[…] são aqueles casos em
que a dispensa é taxativa, devendo o certame ser direcionado a pessoa
específica […]”.
O art. 76 da Lei no 14/133/2021 prevê que a alienação de bens da
administração pública, subordinada à existência de interesse público
devidamente justificado, será precedida de avaliação e obedecerá
às normas apontadas nos incisos I e II.
O parágrafo 1º do art. 76 prevê que a alienação de bens imóveis da
Administração Pública cuja aquisição tenha sido derivada de procedimentos
judiciais ou de dação em pagamento dispensará autorização legislativa
e exigirá apenas avaliação prévia e licitação na modalidade leilão.
O art. 76 tem ainda os parágrafos 2º a 7º.
O art. 76 da Lei no 14.133/2021 apresenta grande proximidade com
as regras do art. 17 da Lei no 8.666/1993. Há similitude na estrutura
de organização das regras legais, bem como na redação.
Assim sendo, seguir-se-á a preservação da interpretação adotada
quanto à lei anterior, devendo, entretanto, haver cautela para não ignorar
alterações da própria sistemática.
Marçal Justen Filho12, ao comentar o art. 76 da Lei no 14.133/2021
esclarece que o art. 17 da Lei no 8.666/1993 foi objeto de diversos questio-
namentos perante o STF, tendo havido interpretação conforme no que
diz respeito a vários dispositivos. Assim, as decisões anteriores do STF
permanecem plenamente aplicáveis no que se refere ao art. 76 da Lei
no 14.133/2021 nos aspectos em que há identidade em relação ao diploma
da Lei no 8.666/1993.

Administrativos Comentada e Referenciada. São Paulo: Saraiva-Jur, 2021; 7) SARAI, Leandro (Org.).
Tratado da Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos – Lei 14.133/2021 Comentada por
Advogados Públicos. 2. ed. ver., atual. e ampl. São Paulo: Editora Jus Podium, 2022; 8) Nova Lei de
Licitações e Contratos: Impactos no Estado de São Paulo – Relatório do Grupo de Trabalho Instituído
pela Resolução PGE-3/2021 para analisar os reflexos da Nova Lei de Licitações e contratos no âmbito da
Administração Pública do Estado de São Paulo, elaborado por Maria Lia Pinto Porto Corona, Eugenia Cristina
Cleto Marolla, Rafael Carvalho de Fassio (coordenador do Grupo de Trabalho).
12
JUSTEN FILHO, Marçal. Op. cit., p. 1093.
254 Flora Maria Nesi Tossi Silva

4. Responsabilidade solidária do contratante e agente público pelos


danos causados em caso de dolo, fraude ou erro grosseiro, em caso
de contratação indevida (art. 73)

Como visto acima, há necessidade de procedimento administrativo


(nos moldes do art. 72 da Lei no 14.133/2021) para que sejam analisadas
as hipóteses de dispensa e inexigibilidade de licitação, sendo que deverão
ser apresentados os motivos de forma explícita, sob pena de nulidade
do procedimento, com possíveis danos aos contratantes e contratados.
Cumpre lembrar que, após a publicação da Lei no 8.666, a Lei 9.784/1999
(Lei de Processo Administrativo) trouxe preocupações mais específicas com
a motivação dos atos administrativos. O art. 2º da Lei 9.784/1999 dispõe
que a administração pública obedecerá, dentre outros, aos princípios
da motivação e da razoabilidade. Assim, nos processos administrativos,
devem ser indicados os pressupostos de fato e de direito que determinam
as decisões (art. 2º, parágrafo único, VII).
Por sua vez, o art. 50 da Lei de Processo Administrativo prevê que
todos os atos administrativos precisam ser motivados, com indicação
dos fatos e dos fundamentos jurídicos, quando afetarem direitos ou
interesses (inciso I).
Especificamente quanto à Lei no 14.133/2021, o art. 73 prevê que:

[…] na hipótese de contratação indevida, ocorrida


com dolo, fraude ou erro grosseiro, o contratado
e o agente público responsável responderão
solidariamente pelo dano causado ao erário,
sem prejuízo de outras sanções legais cabíveis […].

Verifica-se assim, que o art. 73 da Lei no 14.133/2021 traz inovações,


considerando que no art. 25, parágrafo 2º, da Lei no 8.666/93 há a previsão
de que, nos casos de dispensa de licitação, se comprovado superfaturamento,
respondem solidariamente pelo dano causado à Fazenda Pública o fornecedor
ou o prestador de serviços e o agente público responsável, sem prejuízo
de outras sanções legais cabíveis.
Há precariedade do termo do que vem a ser contratação direta indevida.
Não se pode considerar que toda contratação indevida seria ilegal, pois,
caso contrário, estar-se-ia efetuando interpretação ampliativa do art. 73,
ocasionando, em consequência, a aplicação de penalidade na esfera criminal.
A nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos (Lei nº 14.133/21) 255

Para que haja a responsabilidade pessoal do agente público e daquele


que contratou com o ente público, nas hipóteses previstas no art. 73,
há necessidade de estar presente o elemento subjetivo: dolo ou fraude
ou o erro grosseiro. Não basta a defeituosa avaliação das circunstân-
cias fáticas, para ensejar o dever de indenizar. Neste sentido, a título
de exemplo, encontram-se as observações realizadas, com propriedade,
por Guilherme Carvalho13 e Marçal Justen Filho14.
Dolo, segundo Clóvis Beviláqua, é o emprego de artifício astucioso
para induzir alguém à prática de ato que o prejudica e aproveita ao autor
do dolo ou a terceiro. No âmbito da administração pública, o ato doloso
a que se refere o art. 73 da Lei no 14.133/2021 constitui a vontade livre
e consciente do agente público e do terceiro contratado visando obter
vantagem ilícita que ocasione dano ao ente público (administração pública).
Nos termos do art. 145 do Código Civil, os negócios jurídicos são
anuláveis por dolo, quando este for a sua causa.
Consoante Silvio de Salvo Venosa15, fraude é o uso de meio engano-
so ou ardiloso com a finalidade de contornar a lei ou uma obrigação,
preexistente ou futura.
De Plácido e Silva16 enfatiza, por seu turno, a necessidade de inten-
ção danosa externa à relação das partes fraudadoras, para a configu-
ração da fraude.
No que se refere à relação da fraude como fator externo, depreende-se
do ensinamento de Serpa Lopes17 que, para a caracterização da fraude,
é necessário que um terceiro seja efetivamente lesado pelo ato fraudulento.
No caso dos contratos administrativos, impõe-se que a fraude seja
perpetrada pelo agente público e pelo contratado ocasionem dano ao erário.
No que se refere ao erro grosseiro, pode-se entender que tal conceito
é bastante flexível.

13
CARVALHO, Guilherme. Da contratação direta indevida prevista na Lei n. 14.133/2021. Revista CONJUR.
Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-set-17/licitacoes-contrtatação-direta-indeivda-pre-
vista-lei-141332022. acesso em: 10.11.2022.
14
JUSTEN FILHO, Marçal. Op. cit., p. 955.
15
VENOSA, Silvio de Salvo. Direito civil: parte geral. 11. ed. São Paulo: Atlas, 2011, p. 213.
16
PLÁCIDO e Silva, De. Vocábulo jurídico. 32. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2016, p. 645.
17
SERPA LOPES, Miguel Maria de. Curso de Direito Civil (Introdução, Parte Geral e Teoria dos Negócios
Jurídicos. Volume 1. 2. ed.. Rio de Janeiro-São Paulo: Freitas Bastos, 1957, p. 438.
256 Flora Maria Nesi Tossi Silva

No ordenamento jurídico, há uma certa indefinição quanto ao que


vem a ser erro grosseiro.
A lei 13.655/2018 que fez alterações na Lei de Introdução às Normas
de Direito Brasileiro (LINDB) prevê que o agente público responderá
pessoalmente por suas decisões ou opiniões técnicas em caso de dolo
ou erro grosseiro.
Segundo minha ótica, o erro grosseiro deve ser considerado como
aquele erro substancial e inescusável, que se equipara à culpa grave.
Conforme Sidney BITTENCOURT18 erro grosseiro consiste na inobservân-
cia dos deveres básicos de cuidado, com total imprudência e negligência
no trato com a coisa pública
Paulo Modesto19, por sua vez, considera que:

[…] erro, alguns afirmam, é a ignorância que se ignora.


Porém, é mais do que isso: na base do erro há uma
ignorância negligente de fatos e dados relevantes,
que não são indevidamente desconsiderados
no processo de decisão e produzem lesão que o
afetado não deve suportar. Erro grosseiro é a falsa
representação dos fatos ou do direito aplicável,
que fundamenta ação ou omissão lesiva, evitável,
antijurídica, grave e indesculpável” Por outra
perspectiva, uma segunda definição pode olhar
para o percurso decisório e, observado o contexto,
identificar no tempo o grave incumprimento do
dever de diligência exigível. Nesse caso, o erro
grosseiro confunde-se com a própria omissão grave no
cumprimento da diligência exigível do administrador
público quando da consideração do contexto fático
e normativo antecedente da ação ou omissão.

Como bem aponta Paulo Modesto20, no artigo doutrinário acima


apontado, o controle público da atividade administrativa exige atuação

18
BITTENCOURT, Sidney. Nova Lei de Licitações Passo a Passo. Belo Horizonte: Forum, 2022, p. 502.
19
MODESTO, Paulo. O erro grosseiro administrativo em tempos de incerteza. CONJUR – publicado em
30.07.2020. Disponível em: conjur.com.br/20-2020-jul-30/interesse-publico-erro-grosseiro-administrativo-
tempos-incerteza. Acesso em: 10 nov. 2022.
20
MODESTO, Paulo. Op. cit.
A nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos (Lei nº 14.133/21) 257

com boa-fé, segurança jurídica e motivação, tanto por parte do adminis-


trador público e o controlador púbico devem, quanto dos atos do agente
público. Os órgãos de controle, por sua vez, apresentam ônus de
argumentação e deveres de motivação. Lembra o mencionado jurista
que a motivação do controlador deve incluir hoje também a indicação das
consequências jurídicas e administrativas de suas decisões, nos termos
do art. 21, caput, da LINDB.
Esclarece, também, Paulo Modesto21, com propriedade, que, para se
avaliar se o juízo administrativo é equivocado ou não, há necessidade
de analisar as possibilidades do gestor e os meios à sua disposição para
o enfrentamento e o controle da incerteza na tomada de decisão.
Este entendimento, esclarece o jurista, harmoniza-se com o art. 22
da LINDB, que dispõe que deve se dar atenção ao contexto real na
interpretação de normas administrativas, que devem ser avaliadas
“[…] considerados os obstáculos e as dificuldades reais do gestor e as
exigências das políticas públicas a seu cargo, sem prejuízo dos direitos
dos administrados […]”, bem como “[…] as circunstâncias práticas que
houverem imposto, limitado ou condicionado a ação do agente […]” (§ 1º).
Os conceitos de conveniência e oportunidade empregados para identi-
ficar a discricionariedade são fluídos e, em consequência, há um espectro
amplo para identificar se o caso atende ou não aos regramentos legais.
Por este motivo, é muito importante a motivação específica do agente
público e do controlador, para identificar se houve ou não o cumprimento
das previsões legais.
Impõe-se que os entes que participam dos atos administrativos (tanto
o agente público quanto ao controlador público) analisem as questões
visando ao atendimento da boa-fé, cooperação, e que seja observada
a segurança jurídica e atendida a obrigatoriedade de motivação dos atos do
ente público. Os órgãos de controle também têm ônus de argumentação,
deveres de motivação e devem atender, assim como os agentes públicos,
o que prevê o art. 21, caput da LINDB, levando em conta, portanto,
as consequências jurídicas e administrativas de suas decisões.
Ainda que haja urgência ou incerteza, isto não autoriza a dispensa
do dever de eficiência, de boa administração, de avaliação dos riscos
e consequências jurídicas, da análise detalhada dos fatos e dos custos,

21
MODESTO, Paulo. Op. cit.
258 Flora Maria Nesi Tossi Silva

da observância e do cumprimento das normas de cautela e dos procedi-


mentos legais aplicáveis aos atos administrativos. A emergência pública
pode reduzir e até mesmo elidir a responsabilidade pessoal do gestor
por erros, se estes forem escusáveis ou inevitáveis, assumidos em circuns-
tâncias de incerteza severa e preservados os deveres de confiança de que
os atos foram realizados com diligência.
Paulo Modesto esclarece em seu artigo no Conjur, já acima apontado,
que Pedro de Holanda Dionísio22 faz abordagem vanguardista, e sugere
quatro critérios pragmáticos para identificar a escusabilidade do erro
administrativo: 1) a presença de grau mínimo de diligência na instru-
ção da decisão (quanto mais intensa a diligência e maior o espaço de
tolerância, sendo essa diligência mínima calibrada pelo grau de urgên-
cia da medida, pela dificuldade de obtenção das informações e pela
relevância da decisão; 2) proximidade do cargo ocupado pelo gestor do
erro analisado (quanto menos próximo for o erro das funções e conheci-
mentos exigidos pelo cargo, maior será o espaço de tolerância ao erro;
3) grau de incerteza fática ou jurídica envolvida na decisão (quanto ao
maior o nível de incerteza, maios o espaço de tolerância; e 4) grau de
aderência na escolha realizada em relação aos dados coletados pelo
administrador ao longo do processo decisório (quanto mais coerente for
a decisão em relação às informações obtidas, maior também deverá ser
o espaço de tolerância ao cometimento de equívocos).
Nos casos em que houver incerteza, há necessidade de analisar
o grau de previsibilidade e evitabilidade do dano e se foram cumpridos
os deveres de cuidado e avaliação diligente e informada. Esta situação
é objeto de previsão no art. 28 da LINDB, que impõe a responsabilidade
pessoal do agente em caso de dolo ou erro grosseiro.
Por sua vez, a Medida Provisória no 966/2020 (que não chegou a ser
transformada em lei porque não votada pelo Congresso) previa que o erro
grosseiro é caracterizado como sendo “[…] o erro manifesto, evidente e
inescusável praticado com culpa grave, caracterizado por ação ou omissão
com elevado grau de negligência, imprudência ou imperícia […]” (art. 2º.).
Como bem aponta Paulo Modesto na obra acima já apontada, a respon-
sabilidade pessoal de agentes públicos comuns é graduada, de modo
que visa analisar a questão de modo realista e visa ao atendimento da

22
MODESTO, Paulo. Op. cit. e DIONÍSIO, Pedro de Holanda. O Direito ao Erro do Administrador Público
no Brasil: contexto, fundamentos e parâmetros. Rio de Janeiro: GZ Editora, 2019. p. 115-162.
A nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos (Lei nº 14.133/21) 259

segurança jurídica, à semelhança do que é previsto para magistrados


(art. 143, I, do CPC/2015, e art. 49 da LC 39/1979), membros do Ministério
Público (art. 181, d, CPC/2015), advogados públicos (art. 184 do CPC/2015)
e defensores públicos (art. 187 do CPC/2015).
No caso de erro grosseiro, há violação grave do dever de diligência que
é exigido do agente público e ação ou omissão lesiva reprovável decorre
da falsa e culposa representação do contexto fático jurídico. Considera-se,
portanto, que se trata de culpa grave, no caso de erro grosseiro.
Conforme meu entendimento, não basta a interpretação equivocada da
legislação e sua aplicação no caso concreto, para ensejar a caracterização
do erro grosseiro. Há necessidade de que sejam descumpridas intepretações
consolidadas sobre o tema, daquelas consolidadas pelos tribunais jurisdi-
cionais ou pelos tribunais de contas ou, ainda, interpretações realizadas
de forma sedimentada pela administração.
No Acórdão do TCU nº 2860/2018 – Plenário, o Relator (Min. Augusto
Sherman) associou a ocorrência de erro grosseiro à “[…] conduta culposa
do agente público quando se distancia daquela que seria esperada do
administrador médio, avaliada no caso concreto […]”. O Min. Bruno Dantas,
por seu turno, ressaltou que o erro grosseiro ocorreria com a “[…] negli-
gência extrema, imperícia ou imprudência extraordinárias, que só uma
pessoa bastante descuidada ou imperita comete […]”.
Como examinado rapidamente nos tópicos anteriores, a lei estabelece
os pressupostos para a contratação, sendo que os pressupostos relativos
à dispensa de licitação são mais específicos e delimitados do que
os relativos à inexigibilidade.
Como bem aponta Marçal Justen Filho23, o reconhecimento da prática
de infração, a eventual invalidação dos atos praticados e a eventual
responsabilização do agente público e do particular devem ser efetuados
com observância das normas da LINDB, como será analisado no item
4.2 deste trabalho.
Para que haja a responsabilização dos agentes, há necessidade de
ocorrência de prejuízo, ou seja, não basta que o agente público adote
indevida forma de licitação para ensejar a responsabilização. Há neces-
sidade de que a contratação direta indevida ocasione prejuízo ao erário
bem como necessidade de provar a existência do dano ao erário.

23
JUSTEN FILHO, Marçal. Op. cit., p. 955.
260 Flora Maria Nesi Tossi Silva

Sem a existência de dano ao erário não há incidência do art. 73 da


Lei no 14.133/2021. Neste sentido, a título de exemplo, manifestam-se
Marçal Justen Filho24, Guilherme Carvalho25 e Juliano Heinen26.
Como apontam Marçal Justen Filho27, o dano ao erário não pode ser
apenas presumido, nem pode haver a consideração de que houve dano
ao erário apenas porque não foram obedecidos os todos os regramentos
para a efetivação da dispensa ou inexigibilidade de licitação.
Guilherme Carvalho 28 também sustenta que não há responsabilização
por presunção, pois o legislador foi enfático ao apontar os vocábulos dolo,
fraude ou erro grosseiro para ensejar a responsabilização do agente púbico
e do contratado. Como aponta mencionado jurista, “[…] cabe, portanto,
à administração pública o ônus de comprovar o prejuízo estatal […]”.
Incumbe, portanto, à administração demonstrar que houve o prejuízo,
bem como comprovar que houve o sobrepreço ou superfaturamento na
contratação, para ensejar a responsabilização pelo dano causado.
No mesmo sentido, encontra-se o posicionamento de Juliano Heinen29,
para quem compete ao Estado (ônus seu) demonstrar que ocorreu
o prejuízo ao erário.
Por sua vez, somente é possível haver a incidência do art. 73 da
Lei no 14.133/2021 se estiver presente no processo de contratação direta
indevida algum agente administrativo. Não é cabível atribuir apenas
ao contratado a responsabilidade pela indenização ao ente público.
Há necessidade de analisar caso a caso os eventuais vícios das contra-
tações diretas. Tais vícios decorrem do fato de não terem sido observados
os mecanismos de controle e fiscalização que devem ser utilizados para
manter a competição de forma adequada.
A ausência de licitação pode ensejar a oportunidade para desvios
dolosos ou falhas culposas, havendo necessidade de analisar caso a caso
concreto, para identificar o elemento subjetivo dos envolvidos e as circuns-
tâncias em que se deram a contratação e se houve ou não danos.

24
JUSTEN FILHO, Marçal. Op. cit. 955.
25
CARVALHO, Guilherme, op. cit.
26
HEINEN, Juliano. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos. Lei 14.133/2021. 2. ed.
São Paulo: JusPodium, 2022, p. 451.
27
JUSTEN FILHO, Marçal. Op. cit. 955.
28
CARVALHO, Guilherme, op. cit.
29
HEINEN, Juliano. Op. cit, p. 451.
A nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos (Lei nº 14.133/21) 261

Não é possível utilizar presunção de irregularidade em todas as


contratações diretas. Há necessidade de analisar como o procedimento
de dispensa ou inexigibilidade de licitação se deu, para identificar se
houve ou não irregularidade.
Concordo com Marçal Justen Filho30, que esclarece que não se
pode aceitar a tese formalista de que a ausência de licitação, por si só,
ocasiona a responsabilidade de indenizar. Ora, como já indicado acima,
há necessidade de apurar caso a caso, se houve o prejuízo. Há necessi-
dade de identificar o valor desembolsado pela administração com aquele
considerado adequado.
E, para identificar o valor adequado, devem ser utilizados os
parâmetros previstos no art. 23 da Lei no 14.133/2021, que prevê,
em seu caput que o valor previamente estimado da contratação deverá
ser compatível com os valores praticados pelo mercado, considerados os
preços constantes de bancos de dados públicos e as quantidades a
serem contratadas, observadas a potencial economia de escala e as
peculiaridades da execução do objeto. Somente se pode falar em dever
de indenizar por parte do agente público responsável e do contratado,
se houver efetivo prejuízo ao erário.
Os parágrafos 1º a 5º do art. 23, por sua vez, apresentam os detalhes
para a identificação do valor previamente estimado de contratação,
bem como devem ser levados em conta para identificar se o valor
desembolsado pela administração foi o adequado ou não.
Como bem aponta Marçal Justen Filho31, o art. 72 remete aos critérios
do art. 23 da Lei no 14.133/2021 para a fixação do valor estimado para
a contratação. E é juridicamente impossível considerar que a contrata-
ção direta é equivocada, apenas porque a contratação não foi precedi-
da de licitação. Se houve a estimativa de preço, não há possibilidade
de afirmar que se tivesse ocorrido a licitação, poderia ter sido obtido
preço menor. Somente é possível considerar que não houve regularidade,
se o orçamento estimativo padecia de defeitos e imprecisões.
Ainda segundo o mesmo doutrinador, com o qual concordo,
há duas ordens de fatores que ocasionam a contratação direta indevida:

30
JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratações Administrativas
(Nova Lei 14.133/2021). São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021, p. 956.
31
JUSTEN FILHO, Marçal. Op. cit., p. 956.
262 Flora Maria Nesi Tossi Silva

1) interpretação que infrinja a norma jurídica pertinente e 2) defeituosa


avaliação das circunstâncias fáticas.
Por outro lado, em julgado publicado no DJe de 08.05.2020 o Colendo
STJ decidiu:

Nos casos em que se discute a regularidade de


procedimento licitatório, a jurisprudência desta
Corte é no sentido de que a contratação direta
de empresa prestadora de serviço, quando não
caracterizada situação de inexigibilidade de licitação,
gera lesão ao erário, na medida em que o Poder
Púbico deixa de contratar a melhor proposta, dando
ensejo ao chamado dano in re ipsa, decorrente da
própria ilegalidade do ato praticado, descabendo-se
exigir do autor da ação civil púbica prova a respeito
do tema. (STJ, AgInt n. Resp. 1.520.982/SP, Rel. Min.
Sérgio Kukina, Primeira Turma Dje 08.05.2020).

Considerando o que foi dito acima, no que toca à interpretação


do art. 73 da Lei no 14.133/2021, com base nas regras da LINDB (com a
redação dada pela Lei no 13.655/2018), é possível que o Colendo STJ venha
a rever o seu posicionamento, no sentido de que a contratação direta
de empresa prestadora de serviço quando não caracterizada situação
de inexigibilidade licitação, gera lesão ao erário in re ipsa, passando a
adotar o entendimento de que a administração é que deve demonstrar
a existência do dano ao erário.
Como bem pondera Marçal Justen Filho, incumbe à autoridade
administrativa determinar o sentido e a extensão das normas que disci-
plinam a contratação direta. Esta atuação pode apresentar defeito,
o que acarreta uma contratação que não corresponde às existências
previstas na norma.
Entretanto, incumbe levar em consideração que é vedada a adoção
do crime de hermenêutica. Assim, se a interpretação é razoável e encon-
tra amparo na legislação, não há que se falar em infração e aplicação
do art. 73 da Lei no 14.133/2021.
Mencionado dispositivo legal está em consonância com o art. 28 da
Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB), com a redação
dada pela Lei no 13.655/2018. Isto significa que o agente público apenas
responderá se houver dolo, fraude ou erro grosseiro em sua conduta.
A nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos (Lei nº 14.133/21) 263

Por sua vez, no que diz respeito ao membro da advocacia pública,


o art. 53, parágrafo 6º, da Lei no 14.133/2021 prevê que este será civil
e regressivamente responsável quando agir com dolo ou fraude na elabo-
ração do parecer jurídico de que trata tal dispositivo legal.
Nos termos do que preleciona Marçal Justen Filho32, ocorre a contra-
tação direta indevida quando o sujeito que atua na administração pública
ignora a disciplina legal, desconsidera a orientação doutrinária e infringe
a jurisprudência prevalente. Trata-se, portanto, de casos patológicos,
que resultam em interpretação teratológica. Outra causa de contratação
direta indevida é a defeituosa avaliação das circunstâncias da realidade
(o agente considera que estão presentes os pressupostos fáticos previstos
na norma legal), mas a falha ocorre na avaliação da realidade.
Pode se caracterizar, ainda, contratação direta indevida, quando se
contrata particular destituído dos requisitos necessários para satisfazer
a disciplina normativa.
Conforme está expressamente previsto no art. 73 da no Lei 14.133/2021
serão responsabilizados pessoal e solidariamente pelo dano causado
o contratado e o agente público.
Segundo Marçal Justen Filho33, para que haja a responsabilização pessoal
do particular contratado, há necessidade de conduta autônoma a ele imputável
(ações ou omissões específicas pelo particular, que tenham contribuído ou
dado oportunidade para a realização da contratação direta indevida).
Ainda consoante Marçal Justen Filho34, a simples participação na
contratação não é suficiente para ensejar a responsabilização do particular.
Mencionado doutrinador considera que é indispensável a existência do
elemento subjetivo reprovável (dolo, qual seja, consciência da ilicitude
da contratação e vontade de participar desta irregularidade). Entende
mencionado jurista que não existe elemento subjetivo apto a ensejar a
responsabilização do particular quando este desconhece o defeito na atuação
da administração e que, se existiam elementos objetivos indicando a valida-
de da atuação administrativa, a participação do particular na contratação
direta não autoriza a imputação de infração à ordem jurídica, não sendo
possível imputar-lhe responsabilidade pela efetivação da contratação.

32
JUSTEN FILHO, Marçal. Op. cit., p. 956.
33
JUSTEN FILHO, Marçal. Op. cit., p. 957.
34
JUSTEN FILHO, Marçal. Op. cit., p. 957.
264 Flora Maria Nesi Tossi Silva

Discordo parcialmente do posicionamento de Marçal Justen Filho,


considerando que a ninguém é dado alegar o desconhecimento da lei.
Como já apontado ao longo do presente trabalho, haverá necessidade
de ser analisado cada caso concreto para identificar se haverá ou não
responsabilização solidária do agente público e do contratado. Se estão
presentes ou não os elementos anímicos (erro grosseiro, dolo ou fraude),
bem como se está ou não presente o dano ao erário.
Isto porque há situações em que a interpretação da norma jurídica
pode ensejar diferentes posicionamentos, não se podendo falar em punição
do agente e do contratado apenas porque houve interpretação da norma
de maneira diversa daquela apontada pela administração, se várias são
as intepretações possíveis acerca da regra jurídica.
Pode ser citado como exemplo o seguinte, apontado por Ricardo
Marcondes Martins35: a Lei no 8.666/93 proibia, em três dispositivos,
a especificação da marca (art. 7º, parágrafo 5º; art. 15, parágrafo 7º;
e art. 25, I). Mencionado jurista esclarece que, ao fixar a marca, a adminis-
tração reduz o universo de participantes no certame. Entretanto, pondera o
jurista que, apesar de tal previsão em lei, a doutrina e a jurisprudência
admitem várias exceções à proibição. A Lei no 14.133/2021, apesar de
também vedar a preferência de marca no parágrafo 1º do art. 74, explicitou
as exceções no art. 41, I, de modo parecido com o que está previsto no
art. 7º da Lei no 12.462/11 (Lei do RDC). Como indica referido doutrinador,
“[…] evidente que a necessidade de padronização, em prol da economi-
cidade e eficiência, pode justificar a fixação de marca e, pois, a redução
do universo de afluentes (letras ‘a’ e ‘b’ do inciso I do art. 41) […]”.
Lembra, ainda, Ricardo Marcondes Martins que a lição do Prof. Celso
Antonio Bandeira de Mello continua atual: “[…] se a fixação da marca
singularizar o fornecedor, continua vedada, salvo se a marca for a única
a atender a finalidade administrativa, vale dizer, se o bem for, em si,
singular (letra ‘c do inciso I do art. 41) […]”. Ora, neste caso, reputo que
não poderia haver a responsabilização do agente e do contratado, ainda que
tivesse ocorrido a dispensa de licitação de forma que inicialmente tivesse
sido considerada equivocada por parte da administração.

MARTINS, Ricardo Marcondes. Inexigibilidade de Licitação: Comentários ao art. 74 da Lei 14.133/21. in:
35

Cunha Filho, Alexandre Jorge Carneiro da; Arruda, Carmen Silvia L. de; Piccelli, Roberto Ricomini (Coord.).
Lei de Licitações e Contratos Comentada – volume II. São Paulo: Quartier Latin, 2022, p. 360-361.
A nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos (Lei nº 14.133/21) 265

A responsabilidade solidária do contratado e do agente responsá-


vel pela contratação direta indevida se resume, no âmbito do art. 73,
da Lei 14.133/2021, ao ressarcimento do dano causado à administração
pública, que, segundo já examinado anteriormente, deve ser comprovado
por esta. Em princípio, considero que pode haver até mesmo práticas
conciliatórias, visando à reparação ao erário, nos termos do art. 151 da
Lei no 14.133/2021, que prevê que o cálculo das indenizações constitui
direitos patrimoniais disponíveis, submetidos aos meios alternativos de
solução de controvérsias. Neste sentido, a título de exemplo, encontra-se
o posicionamento de Guilherme Carvalho36.
Havendo dano, e tendo sido caracterizada uma das hipóteses previstas
no art. 73, o agente público responsável e o contratado serão solida-
riamente responsáveis pelo ressarcimento, o que significa dizer que,
nos termos do art. 264 do Código Civil, é possível a cobrança total do
débito de qualquer um dos devedores, incumbindo a quem pagar cobrar
as respectivas quotar partes dos demais.
Em resumo: respondem de forma solidária o agente público e
o contratado, quando houver contratação direta indevida, por dolo,
fraude ou erro grosseiro, incumbindo à administração a prova do dano
ao erário. A boa fé dos envolvidos é presumida. A má-fé deve ser prova-
da pela administração.

4.1 Erro grosseiro na pandemia da covid-19 (decisão do STF nas


ADIS 6421, 6422, 6424, 6425, 6427, 6428 e 6431 MC/DF)

O STF já havia analisado a questão do erro grosseiro, no sentido de


culpa grave, para responsabilização de agentes públicos, em algumas
ocasiões, como, por exemplo, no que toca à responsabilização de agentes
públicos a partir de decisões sobre sanções aplicadas a pareceristas públi-
cos e situações semelhantes (MS 24.631/DF, Rel. Min. Joaquim Barbosa,
DJ de 1º.02.2008; MS 27867 AgR/DF, Rel. Min. Dias Toffoli, 18.09.2012;
MS 30928 AgR, Rel. Min. Roberto Barroso, DJe-171.15.08.2016.
O Colendo STF, depois da vigência da Lei no 13.655/2018, efetuou
maior aprofundamento do tema, analisando também a questão do erro
grosseiro, no julgamento do MS 3196 AgR, Primeira Turma, Rel. Min. Luiz Fux,
julgado em 12.11.2019, DJe-04-02.2020.

36
CARVALHO, Guilherme. op. cit.
266 Flora Maria Nesi Tossi Silva

Em 13 de maio de 2020, foi editada a medida provisória nº 966, publicada


no DOU de 14.05.2020 (dispunha sobre a responsabilização de agentes públicos
por ação e omissão em atos relacionados com a pandemia da covid-19).
O art. 1º de referida Medida Provisória estabelecia que somente
haveria a responsabilidade administrativa de agentes públicos por atos
relacionados à emergência de saúde da covid-19 ou combate a seus efeitos
econômicos e sociais no caso de ação ou omissão com dolo ou erro grosseiro.
Em seu parágrafo 1º, ficou estabelecido que, como regra geral, não haveria
responsabilização automática do agente público que tomasse decisão com
base em opinião técnica, exceto se houvesse elementos suficientes para
o decisor aferir o dolo ou o erro grosseiro da opinião técnica ou se houver
conluio entre os agentes. O artigo, em seu parágrafo 2º, estabelecia que
o mero nexo de causalidade entre a conduta e o resultado danoso não
implicaria responsabilização do agente público.
A Medida Provisória acima apontada, em seu artigo 2º, definia o
erro grosseiro como o erro manifesto, evidente e inescusável praticado
com culpa grave, caracterizado por ação ou omissão com elevado grau
de negligência, imprudência ou imperícia.
O art. 3º da Medida provisória acima apontada estabelecia os seguintes
elementos que deveriam ser considerados para a identificação do erro
grosseiro na conduta do agente público:
I – os obstáculos e as dificuldades reais do agente público;
II – a complexidade da matéria e das atribuições exercidas pelo
agente público;
III – a circunstância de incompletude de informações na situação
de urgência ou emergência;
IV – as circunstâncias práticas que houverem imposto, limitado ou
condicionado a ação ou a omissão do agente público;
V – o contexto de incerteza acerca das medidas mais adequadas
para enfrentamento da pandemia da covid-19 e das suas consequências,
inclusive econômicas.
A medida provisória no 966 de 13 de maio de 2020 perdeu a eficácia,
em decorrência do término do prazo para sua votação no congresso,
conforme verificado no site do Congresso Nacional37.

37
Disponível em: https://www.congressonacional.leg.br/materias/medidas-provisorias/-/mpv/141949.
Acesso em: 10 nov. 2022.
A nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos (Lei nº 14.133/21) 267

Em 21 de maio de 2020, no julgamento das ADIS 6421, 6422, 6424,


6425, 6427, 6428 e 6431 – MC/DF, o Colendo STF analisou o conceito
de erro grosseiro e aprofundou debates inéditos.
Na vigência da Medida Provisória no 966 de 13 de maio de 2020,
o E. STF (Rel. Ministro Luís Roberto Barroso) proferiu, por maioria
de votos, decisão que concedeu o provimento parcial à cautelar e fixou
interpretação conforme, tendo sido fixadas as seguintes teses:

1. Configura erro grosseiro o ato administrativo


que ensejar violação ao direito à vida, à saúde,
ao meio ambiente equilibrado ou impactos adversos
à economia, por inobservância: i) de normas e
critérios científicos e técnicos; ou (ii) dos princípios
constitucionais da precaução e da prevenção.
2. A autoridade a quem compete decidir deve
exigir que as opiniões técnicas em que baseará sua
decisão tratem expressamente: (i) das normas e
critérios científicos e técnicos aplicáveis à matéria,
tal como estabelecidos por organizações e entidades
internacional e nacionalmente reconhecidas;
e (ii) da observância dos princípios constitucionais da
preocupação e da prevenção, sob pena de se tornarem
corresponsáveis por eventuais violações e direitos.

No julgamento do caso pelo STF houve a manutenção do art. 28


da LINDB, sem qualquer ressalva. Houve consenso entre os Ministros do
STF sobre a importância de combate à inibição defensiva do gestor público
submetido a orientações vagas e instáveis do controlador.
A maioria dos julgadores do E. STF entendeu que não basta exigir
decisão do gestor baseada em pareceres técnicos fundamentados.
Indicou-se na decisão do Supremo Tribunal Federal que o gestor e o
parecerista devem observar as normas, critérios científicos e técnicos,
tal como estabelecidos por organizações e entidades internacionais e nacio-
nais reconhecidas, bem como dos princípios da precaução e prevenção.
Entretanto, tal decisão do E. STF criou, por certo, dúvidas nos gestores,
sobre qual o entendimento técnico prevalente na comunidade científica
para cada matéria a ser decidida pela administração pública. Será difícil
identificar em outras modalidades de casos (diversos da pandemia) sobre
qual o entendimento técnico pacificado, e, apesar disso, o gestor público não
268 Flora Maria Nesi Tossi Silva

estava ou estará isento de tomar uma determinada providência. Ademais,


o parâmetro da comunidade científica pode ser alterado ao longo do tempo.
Estas são questões que deverão ser analisadas em cada caso concreto,
levando em conta suas especificidades.
Como bem aponta Paulo Modesto38, a decisão do E. STF sobre a
questão da responsabilidade dos administradores no âmbito da atuação na
pandemia de covid-19 é digna de elogios, pois foi prudente e fundamentada,
mas trouxe novos problemas ao cenário jurídico e não finaliza o debate
sobre o que vem a ser o erro grosseiro em todo tipo de situações em que
há incerteza de natureza grave.
Somente com a análise reiterada de casos diferentes com situações
diversas pelos Tribunais poder-se-á falar em cristalização da jurisprudência
sobre o assunto.

4.2 Necessidade de observância das regras da Lei de Introdução às


Normas Brasileiras (LINDB), com a redação dada pela Lei no 13.655/2018,
também no que se refere à aplicação do art. 73 da Lei no 14.133/2021

Como já foi indicado acima, o reconhecimento da prática de infração


às normas sobre dispensa/inexigibilidade de contratação, a eventual invali-
dação dos atos praticados e a eventual responsabilização do agente público
e do particular devem ser efetuados com observância das normas da LINDB.
No que diz respeito à esta matéria, cumpre salientar que o art. 147 da
Lei no 14.133/2021, em posicionamento mais consentâneo com a realidade
(do que as disposições da Lei no 8666/93), prevê os casos de nulidade dos
contratos em que se verifique irregularidade no procedimento licitatório
ou na execução contratual, caso não seja possível o saneamento. Ainda
consoante o mesmo dispositivo legal, a decisão sobre a suspensão da
execução ou sobre a declaração de nulidade do contrato somente será
adotada na hipótese em que se revelar medida de interesse público,
com avaliação, entre outros, dos aspectos discriminados nos incisos
I a XI do art. 147 do diploma legal acima apontado.
A lei no 8666/93 previa que os defeitos verificados acarretavam neces-
sariamente a nulidade, cujos efeitos retroagiam à data do ato viciado.
O defeito, acarretava, de forma compulsória, a invalidação do ato e
desfazimento de todos os efeitos concretos que pudesse ter produzido.

38
MODESTO, Paulo. Op. cit.
A nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos (Lei nº 14.133/21) 269

O STF havia firmado as Súmulas 346 (“A administração Pública pode


declarar a nulidade de seus próprios atos”) e 473 (“A Administração
pode anular seus próprios atos, quando eivados de vícios que os tornam
ilegais, porque deles não se originam direitos; ou revogá-los, por motivo
de conveniência ou oportunidade, respeitados os direitos adquiridos,
e ressalvada, em todos os casos, a apreciação judicial”).
Entretanto, este posicionamento do STF, firmado com base
na Lei no 8666/93 já havia deixado de ser aplicado, no que toca à
inconstitucionalidade, uma vez que o art. 27 da Lei 9868/1999 admitiu
a modulação dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade:

Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato


normativo e tendo em vista razões de segurança
jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o
Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços
de seus membros, restringir os efeitos daquela
declaração ou decidir que ela só tenha eficácia
a partir de seu trânsito em julgado ou de outro
momento que venha a ser fixado.

Por sua vez, orientação semelhante foi prevista nos arts. 20 e 21 do


Decreto-lei no 46576/1942 (com a redação dada pela Lei no 13.655/2018).
Segundo os ditames da Lei no 14.133/2021, o reconhecimento da
existência de vício na contratação não impõe, necessariamente, a descons-
tituição do vínculo, com efeitos retroativos.
É admitida a preservação da licitação e do contrato, bem como a
modulação dos efeitos da pronúncia do vício. Assim, eventualmente,
uma contratação eivada de vícios pode ter sua execução preservada.
Pode até mesmo ocorrer a determinação de medidas para eliminar os
defeitos e os seus efeitos danosos. Se for o caso, é possível até mesmo
a adoção de providências de cunho compensatório, destinadas a suprimir
vantagens ou benefícios indevidos.
Esta orientação já vinha sendo utilizada há bastante tempo pelo TCU
em situações específicas.
Ademais, a Lei no 13.655/2018 acrescentou diversos artigos ao Decreto-Lei
n 4657/1942 (Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro – LINDB),
o

que visam reduzir a insegurança jurídica e tratar das decisões de invali-


dação dos atos administrativos. E a Lei no 14.133/2021, em seu artigo 5º,
270 Flora Maria Nesi Tossi Silva

expressamente reconhece a aplicação das normas da LINDB às situações


tratadas na Lei no 14.133/2021.
Regra importante para o tema encontra-se no art. 20 da LINDB
que prevê: “Nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se
decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consi-
deradas as consequências práticas da decisão.”.
Incumbe à autoridade examinar os atos e os valores jurídicos concretos,
realizando juízo de ponderação entre os atos praticados e as consequências
jurídicas do que será decidido.
E o parágrafo 1º do art. 20 dispõe que:

[…] motivação demonstrará a necessidade e a


adequação da medida imposta ou a invalidação de ato,
contrato, ajuste, processo ou norma administrativa,
inclusive em face das possíveis alternativas […].

O art. 21, parágrafo único, da redação atualizada da LINDB prevê:

[…] a decisão a que se refere o caput deste artigo


deverá, quando for o caso, indicar as condições para
que a regularização ocorra de modo proporcional
e equânime e sem prejuízo aos interesses gerais
não podendo impor aos sujeitos atingidos ônus ou
perdas que, em função das peculiaridades do caso,
sejam anormais ou excessivas.

Assim sendo, a LINDB admite que seja sanado o ato jurídico nos
casos em que os efeitos de seu desfazimento sejam excessivamente
nocivos. A decisão de invalidação do ato administrativo deve considerar
as consequências e sopesar o que ocasionará mais danos: a manutenção
ou o desfazimento do ato.
O art. 22 prevê que:

[…] na interpretação das normas sobre gestão pública


serão considerados os obstáculos e as dificuldades
reais do gestor e as exigências das políticas
públicas a seu cargo, sem prejuízo dos direitos
dos administrados.
A nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos (Lei nº 14.133/21) 271

E o parágrafo 1º dispõe que:

[…] em decisão sobre regularidade de conduta ou


validade de ato, contrato, ajuste, processo ou norma
administrativa, serão consideradas as circunstâncias
práticas que houverem imposto, limitado ou
condicionado a ação do agente.

Floriano de Azevedo Marques Neto e Rafael Véras de Freitas39 indicam


que muitas vezes os juízos são realizados pelos órgãos fiscalizadores,
quanto aos atos praticados pelos agentes públicos, muito tempo após a
conduta e que este distanciamento temporal acaba atrapalhando a avalia-
ção e acabam deixando de ser analisadas e ponderadas circunstâncias
que não podem ser desconsideradas pelos órgãos de controle. Com base
neste fato, reputam que o art. 22 da Lei no 13.655/2018 propicia a utili-
zação do pragmatismo no âmbito do Direito Administrativo sancionador.
Verifica-se, portanto, que tais regras impõem à autoridade que reali-
zará o controle da validade do ato administrativo a obrigação de avaliar em
que circunstâncias se deu a conduta das partes envolvidas. Isto é impor-
tante porque, muitas vezes, o agente público não dispunha de condições
materiais, de recursos ou de conhecimento para ter conduta diferente.
Há o dever de contextualização, devendo ser consideradas as
circunstâncias agravantes e atenuantes ligadas à atuação do agente
público (art. 22, parágrafo 2º), bem como deve ser efetuada a dosimetria
das sanções, levando em conta sanções anteriores da mesma natureza
e relativas aos mesmos fatos (art. 22, parágrafo 3º).
Estas regras se relacionam a dois temas do Direito Administrativo
Sancionador: a pluralidade de regimes incidente sobre os particulares
e a aceitação ou não do bis in idem. A nova LINDB trata destes temas,
como será analisado no tópico 4.3. deste trabalho.
O art. 27 prevê que:

[…] a decisão do processo, nas esferas administrativa,


controladora ou judicial, poderá impor compensação

39
AZEVEDO MARQUES, Floriano de. O art. 22 da LINDB e os novos contornos do Direito Administrativo
Sancionador. CONJUR. 22 de julho de 2018. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2018-jul-25/
opiniao-artigo-22-lindb-direito-administrativo-sancionador. acesso em: 10 nov. 2022.
272 Flora Maria Nesi Tossi Silva

por benefícios indevidos ou prejuízos anormais


ou injustos resultantes do processo ou da conduta
dos envolvidos.

Ora, todas estas normas devem ser ponderadas no momento de


aplicar a penalidade e responsabilização por ter sido efetuada dispensa
ou inexigibilidade de licitação de forma indevida, lembrando-se que,
para a responsabilização, o ato deve ter sido praticado com dolo, fraude ou
erro grosseiro e deve ter ocasionado danos ao erário (dano este que
deverá ser bastante sopesado), considerando as circunstâncias de cada
caso concreto, como já analisado anteriormente.

4.3 Não aplicação de dupla penalização na esfera administrativa/


cível (non bis in idem)

Como bem aponta Carlos Ari Sundfeld, a partir da década de 1980,


o Brasil vivenciou a luta pela redemocratização e seus desdobramentos,
sendo que os órgãos de controle se tornaram mais fortes e ativos. Surgiram
novas instâncias de fiscalização, como a Controladoria-Geral da União
(CGU), bem como novas leis que previram competências sancionadoras,
a exemplo da LAC e da Lei de Ação Civil Pública ( LACP)40.
O Brasil passou, a partir de então, a contar com forte controle
múltiplo, composto por diversos órgãos, como o Judiciário, o Ministério
Público, os Tribunais de Contas e as controladorias internas. Muitas vezes,
atuam de forma simultânea sobre as mesmas situações e com soluções
sancionadoras variadas.
Esclarece Carlos Ari Sundfeld41 que a expansão das possibilidades de
aplicação de sanções deu margem à ocorrência de aplicação de penalidades
com efeitos muito parecidos ou mesmo idênticos, contra o mesmo agente,

SUNDFELD, Carlos Ari. Direito Administrativo – O novo olhar da LINDB. Belo Horizonte: Forum, 2022, p. 147.
40

SUNDFELD, Carlos Ari. Op. cit., p. 148. Mencionado jurista cita em nota de rodapé relativa ao assunto
41

que Floriano de Azevedo Marques Neto e Juliana Palma defendem, nesse cenário, que haveria falta
de articulação entre as instituições de controle, na medida em que seriam poucas as iniciativas de
cooperação entre os entes. A cooperação estaria, ainda, restrita à fase de investigação e à instrução
processual, preservando-se a autonomia de cada ente para conduzir o seu próprio processo de respon-
sabilização (MARQUES NETO, Floriano de Azevedo; PALMA, Juliana Bornarcorsi de. Os sete impasses
do controle da administração pública no Brasil. In: Perez, Marco Augusto; Pagani, Rodrigo (coord).
Controle da Administração Pública. São Paulo: Forum, 2015, p. 33).
A nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos (Lei nº 14.133/21) 273

com base na mesma conduta, sendo provenientes de autoridades ou


instâncias estatais diferentes, tanto administrativas quanto judiciais.
Carlos Ari Sundfeld sustenta que, inicialmente, prevaleceu na jurispru-
dência e na literatura especializada a ideia de independência das sanções.
Segundo este posicionamento, as sanções provenientes de autoridades
ou instâncias diferentes não seriam propriamente repetições, ainda que
aplicadas em decorrência da mesma irregularidade. O STF, por exemplo,
sustentou em várias ocasiões que a possibilidade de punição em jurisdições
sancionadoras diversas não importava em punição reiterada.
Como houve fragmentação dos regimes sancionadores de forma
exponencial, houve movimento de reação ao crescimento do direito
administrativo sancionador. Atualmente, para fins da nova LINDB, é relevante
a preocupação com os critérios de dosimetria das sanções.
Afirma Carlos Ari Sundfeld42 que:

[…] a reação ao crescimento da atividade pública


sancionadora levou o mundo público a retomar a
discussão sobre a possível aplicabilidade, na esfera
administrativa, da tradicional ideia do non bis in
idem. Passou a defender a necessidade de utilizá-la
como critério para aplicação de sanções relativas a
questões administrativas, o que estava adormecido
até então.

Esta preocupação esteve presente, tanto que foi incluído o parágrafo


3º ao art. 22 da Lei no 13.655/2018, quando ainda se tratava de antepro-
jeto de lei.
Esclarece o mesmo jurista43 que administrativistas passaram a defen-
der que a vedação ao bis in idem seria aplicável em todos os sistemas
de responsabilização movimentados em torno do direito administrativo
sancionador, mesmo nos casos em que se atribua independência ou autono-
mia decisória a órgãos e entidades. O fundamento seria o dever consti-
tucional de proporcionalidade.
A norma que atualmente pode ser invocada para embasar este
entendimento de vedação ao bis in idem é o art. 22, parágrafo 3º,

42
SUNDFELD, Carlos Ari. Op. cit., p. 149.
43
SUNDFELD, Carlos Ari. Op. cit., p. 149-150.
274 Flora Maria Nesi Tossi Silva

da Lei no 13.655/2018, que prevê: “[…] as sanções aplicadas ao agente


serão levadas em conta na dosimetria das demais sanções de mesma
natureza e relativas ao mesmo fato […]”.
Embora tal norma se apresente em versão mitigada, contém parâme-
tros para a sanção-controle, bem como para a sanção-regulação.
O non bis in idem não foi acolhido em sua versão mais rígida, pois não
se proibiu a dupla sanção pelo mesmo fato. Entretanto, o mencionado
dispositivo legal prevê que devem ser consideradas as sanções anteriores
na dosagem das posteriores e, com isso, sugeriu que, em função do dever
de proporcionalidade, haveria vedação à aplicação de várias sanções de
origem diversa, a fim de evitar excesso sancionatório.
É certo que há discussão sobre a atividade estatal e quanto à polêmica
em torno do “non bis in idem”.
Entretanto, como a Lei no 14.133/2021 prevê que devem ser aplicadas,
no âmbito das contratações públicas previstas naquela lei, as regras
previstas na LINDB, entendo que é possível considerar que não é possível
aplicar duas penalidades administrativas ou uma penalidade administrativa
com uma cível, pelo mesmo fato que esteja caracterizado pelo art. 73
da Lei no 14.133/2021.
O art. 73 prevê que podem ser aplicadas as sanções ali previstas,
“[…] sem prejuízo de outras sanções cabíveis […]”.
Entretanto, há uma imprecisão técnica, pois o art. 73 não fez referên-
cia apenas à penalidade criminal prevista no art. 337-E do Código Penal
(inserido no Código Penal pelo art. 178 da Lei 14.133/2021).
Ora, o termo “outras sanções cabíveis” pode ser considerado
como compreendendo a responsabilidade com base na Lei no 8429/1992
(Lei de Improbidade Administrativa), Lei no 12.846/2013 (Lei Anticorrupção)
e no estatuto disciplinar do agente público.
Segundo minha ótica, não é possível, contudo, a aplicação cumulativa
de penalidades de ressarcimento ao erário na esfera cível/administrativa,
visando punir um mesmo fato. Com efeito, se houver vários processos ou
procedimentos em trâmite, visando a apuração e punição em relação ao
mesmo fato, como, por exemplo, procedimento administrativo, processo
cível de ressarcimento ao erário, ação civil pública de improbidade adminis-
trativa ou ação com base na lei anticorrupção, a penalidade de ressarci-
mento ao erário será aplicada nos processos, mas o pagamento efetivo do
valor da condenação relativa ao ressarcimento ao erário deverá ocorrer
A nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos (Lei nº 14.133/21) 275

uma única vez. Isto porque não é possível o locupletamento sem causa
por parte da administração.
Ademais, incumbe salientar que o parágrafo 5º do art. 21 da Lei de
Improbidade administrativa, com a redação dada pela Lei no 14.230/21
determinou que as penas eventualmente aplicadas em outras esferas
deverão ser compensadas com as sanções aplicadas nos termos da Lei
no 8.429/92. Destarte, as sanções aplicadas no âmbito das licitações e
contratos (art. 73 da Lei no 14.133/2021) deverão ser consideradas na
esfera da improbidade administrativa. No mesmo sentido do aqui apontado,
encontra-se, a título de exemplo, o posicionamento de Juliano Heinen44.
Em conclusão, se houver a contratação com dispensa ou inexigi-
bilidade indevida, devem ser aplicadas as penalidades pertinentes na
esfera cível/administrativa, de indenização ao erário, mas o valor que for
fixado a título de indenização ao erário, deve ser abatido, por exemplo,
de eventual sanção que venha a ser fixada a título de improbidade adminis-
trativa (desde que a situação também se enquadre nas hipóteses previstas
na legislação pertinente).
Lembre-se que os atos irregulares praticados na vigência da nova
lei de improbidade são passíveis de sanção apenas nas hipóteses de
atos dolosos, nos termos da Lei no 8429/92, com as alterações previstas
na Lei no 14/230/2021.
E os atos que ensejam indenização ao erário, nas hipóteses do
art. 73 da Lei 14.133/2021 são os decorrentes de dolo, fraude ou erro
grosseiro (neste se enquadra a hipótese de culpa grave), como analisado
no presente trabalho.
Ressalte-se que a contratação direta indevida não se confunde com
contratação direta ilegal, prevista no art. 337-E do Código Penal Brasileiro:

[…] admitir, possibilitar ou dar causa à contratação


direta fora das hipóteses previstas em lei.
Pena – reclusão, de quatro a oito anos, e multa.

A contratação direta indevida é diferente da conduta criminal.


Isto porque a contratação direta indevida não ocasiona os mesmos resultados

44
HEINEN, Juliano. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos. Lei 14.133/2021. 2. ed.
São Paulo: Juspodivm, 2022, p. 451.
276 Flora Maria Nesi Tossi Silva

da contratação direta ilegal, que requer dolo específico. No mesmo sentido


do que aqui apontado, manifesta-se Guilherme Carvalho45.
É possível a cumulação das penalidades da esfera cível/administra-
tiva com a penal, porque ambas apresentam naturezas distintas e não se
confundem. No mesmo sentido, a título de exemplo, o posicionamento
manifestado por Edilson Pereira Nobre Júnior46.
Por fim, incumbe lembrar que o art. 159 da Lei 14.133/2021 dispõe que:

[…] os atos previstos como infrações nesta lei ou em


outras leis de licitações e contratos da administração
pública e que também sejam tipificados como atos
lesivos na Lei 12.846, de 1º. de agosto de 2013, serão
apurados e julgados conjuntamente, nos mesmos
autos, observados o rito procedimental e a autoridade
competente definidos na referida Lei.

Edilson Pereira Nobre Júnior, no artigo jurídico acima já referenciado,


sustenta que lhe causa espécie a admissão do bis in idem no art. 159
da Lei 14.133/2021, prevendo que as penas de penas desta e as da Lei
nº 12.846/2013 sejam aplicadas aos mesmos fatos num mesmo procedimento.
Entretanto, e respeitado o posicionamento do nobre jurista, considero
que aquilo que o art. 159 da Lei 14.133/2021 efetivamente prevê é tão
somente que o mesmo fato que infrinja atos previstos em mencionada
lei ou em outras leis de licitações e contratos da administração pública
serão apurados e julgados em um mesmo procedimento. Mas isso, contudo,
não significa que haverá aplicação de penalidade dupla ou múltipla para o
mesmo fato. Reputo que o art. 159 se amolda aos intentos da LINDB, vedando o
bis in idem na aplicação de penalidade da esfera cível/administrativa.

Conclusão

1. Segundo as normas constitucionais, a efetivação de licitação é a regra.


A própria Constituição, entretanto, faz ressalvas à sua realização.

45
CARVALHO, Guilherme. Op. cit.
46
NOBRE JÚNIOR, Edilson Pereira. A vedação do ‘bis in idem’ e as sanções administrativas. JOTA.
Disponível em: https://www.jota.info/opinião-e-analise/colunas/direito-administrativo-sancionador/
a-vedacao-do-bis-in-idem-e-as-sancoes-administrativas. Acesso em: 10 nov. 2022.
A nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos (Lei nº 14.133/21) 277

2. As hipóteses de inexigibilidade de licitação previstas no art. 74


da Lei 14.133/2021 contém rol exemplificativo (numerus apertus),
diferentemente das hipóteses de dispensa de licitação previstas no art. 75
do mesmo diploma legal, que são numerus clausus. O art. 76 de referida
lei contém hipóteses de licitação dispensada (também em numerus cluaus).
3. Nos termos do art. 73 da Lei 14.133/2021, respondem de forma
solidária o agente público e o contratado, quando houver contratação direta
indevida, por dolo, fraude ou erro grosseiro, incumbindo à administração
a prova do dano ao erário. A boa fé dos envolvidos é presumida. A má-fé
deve ser provada pela administração.
4. Deve ser analisado cada caso concreto, bem como suas
especificidades, para identificar se haverá ou não a responsabilização
solidária do agente público e do contratado.
5. Para configurar a contratação irregular (direta indevida), há neces-
sidade das condutas de agente público e do contratado, que responderão
solidariamente, por terem atuado com dolo, fraude ou erro grosseiro,
causando dano ao erário.
6. O E. STF analisou o que vem a ser erro grosseiro no âmbito da
pandemia da covid-19 (decisão do STF nas ADIS 6421, 6422, 6424, 6425,
6427, 6428 e 6431 MC/DF). Entretanto, não é possível identificar se tal
posicionamento também será utilizado para questões envolvendo outras
situações fáticas.
7. Aplicam-se as regras da LINDB com a redação trazida pela Lei
13.655/2018, para interpretação e aplicação do art. 73 da Lei 14.133/2021.
8. Não é possível aplicar a penalidade prevista no art. 73 da
Lei 14.133/2021, sem haver a compensação com outras penalidades
aplicadas na esfera administrativa ou cível, sob pena de bis in idem.
Tal entendimento deflui do art. 159 da Lei 14.133/2021 e do ordenamento
jurídico, em especial do art. 22 da LINDB.
9. A sanção da esfera cível/administrativa não se confunde com
a criminal, de modo que não há bis in idem em aplicação de sanções que
envolvam estas duas esferas de atuação no que se refere a um mesmo fato.
278 Flora Maria Nesi Tossi Silva

Bibliografia

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182

Alteração unilateral do contrato


administrativo e a obrigação
de restabelecimento do
equilíbrio econômico-financeiro
na Lei nº 14.133/21

Ana Rita de Figueiredo Nery1


Juíza de Direito no estado de São Paulo

É tudo novo de novo


Paulinho Moska

Sumário: Introdução 1. Excepcionalidades do contrato administrativo


2. Desmistificação da natureza exorbitante e a interpretação dos contratos
administrativos 2.1 O cotejo entre as lógicas pública e privada e a conservação
dos contratos administrativos 3. A Lei no 14.133/21 e a alteração unilateral
do contrato administrativo 3.1 Hipóteses de alteração unilateral dos
contratos administrativos: alteração qualitativa e alteração quantitativa
3.2 Limites percentuais para acréscimos ou supressões decorrentes
de alterações unilaterais dos contratos administrativos 3.2.1 Limites
percentuais para acréscimos ou supressões decorrentes de alterações
unilaterais dos contratos administrativos e a transfiguração da causa
do contrato administrativo 3.3 Alteração unilateral dos contratos adminis-
trativos e o poder-dever de apuração da responsabilidade do responsável
técnico 3.4 Alteração unilateral e os parâmetros da Lei no 14.133/21
para fixação dos preços unitários para obras ou serviços 3.5 Redução da
diferença percentual entre o valor global do contrato e o preço global de
referência 3.6 Alterações unilaterais supressivas e o dever de reembolso
dos custos de aquisição 4. Alteração unilateral nas contratações integradas

Pós-doutoranda em Ciência Política na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade


1

de São Paulo (FFLCH/USP). Doutora em Direito do Estado pela Faculdade de Direito da Universidade de
São Paulo (FD/USP). Professora Assistente da Escola Paulista de Magistratura (EPM). Formadora pela Escola
Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (ENFAM). Autora do livro “Política e Administração
Pública“, publicado pela Editora Lumen Juris e indicado ao Prêmio Tese Destaque USP 2021.
282 Ana Rita de Figueiredo Nery

ou semi-integradas 5. Alteração unilateral e a obrigação de reequilíbrio


econômico-financeiro 5.1 A obrigação de restabelecimento imediato
do equilíbrio econômico-financeiro e a formalização do termo aditivo.
Conclusão. Bibliografia.

Introdução

A Lei no 8.666/93 respondeu pelo seu tempo. O ciclo de reformas


administrativas da década de 1990, berço da Lei de Licitações e Contratos
da Administração Pública de 1993, tinha um compromisso com a recupe-
ração das liberdades políticas, coroadas com a aprovação do texto
constitucional de 1988. A nova Constituição da República dava destaque
para os órgãos de controle da Administração Pública, para o princípio
da publicidade e para os instrumentos de participação democrática.
Segundo Bresser-Pereira, as reformas da década de 1990 compreenderam
três dimensões: uma institucional-legal, uma de gestão e, finalmente,
uma dimensão cultural2. A dimensão cultural, em especial, buscava atender
à demanda por maior confiança social na administração burocrática
e pela busca da legitimação a partir do abandono de alguns ideários sobre
o patrimônio público, às privatizações e às parcerias com o setor privado.
O Decreto no 2.300/86 e a Lei no 8.666/93 tiveram especial impor-
tância na dinâmica de realização dessa dimensão cultural, com destaque
para a incorporação de atores não estatais ao processo de entrega
da prestação de utilidades públicas. Um dos princípios fundamentais
do ciclo de reformas administrativas da década de 1990 é o de que
o Estado deve atuar estritamente dentro de margens em que o exercício
da autoridade seja imprescindível. Foi elementar às reformas da década
de 1990, portanto, a percepção de que a entrega de prestações úteis
à sociedade por meio de contratos administrativos não dependia inexo-
ravelmente do recurso a poderes exorbitantes ou das excepcionalidades
dos contratos administrativos.

2
BRESSER-PEREIRA, Luiz Carlos. Reforma Gerencial de 1995. Disponível em: http://www.bresserpereira.
org.br/rgp.asp. Acesso em: 1 jun. 2021. Bresser-Pereira, aliás, foi um dos grandes idealizadores desse
terceiro ciclo de reformas administrativas. Conhecedor da experiência administrativa internacional,
Luiz Carlos Bresser-Pereira comandou o Ministério da Administração e Reforma do Estado (Mare).
Alteração unilateral do contrato administrativo e a obrigação de
restabelecimento do equilíbrio econômico-financeiro na Lei nº 14.133/21 283

Na prática, contudo, a Lei no 8.666/93 não foi bem-sucedida


em dissipar as desconfianças que pesavam contra a Administração
Pública. Persistia a falta de confiança social na administração burocrática,
e os procedimentos enunciados pela Lei no 8.666/93 não foram suficientes
para legitimar o uso do patrimônio público.
Nesse contexto, a Lei no 14.133/21 surge não como um revés
à Lei no 8.666/93, mas como um novo capítulo nessa jornada iniciada
com as reformas da década de 1990. Além de compilar a produção
acadêmica, jurisprudencial e legislativa subsequente à Lei no 8.666/93,
a nova Lei no 14.133/21 carrega as aspirações contemporâneas em torno
do uso de recursos públicos e, assim como as leis que a antecederam,
deverá falar pelo seu tempo.
Contudo, diferente da Lei no 8.666/93, a Lei no 14.133/21 contará
com quase três décadas de experiência público-privada, além do amadu-
recimento da prática administrativa, da jurisprudência dos Tribunais
de Contas e do Poder Judiciário.
O tema que nos cabe é aquele das alterações unilaterais nos contratos
administrativos. Conforme será trazido, à primeira vista, a única alteração
substancial do tema seria aquela prevista no artigo 130, que trata
da necessidade de o poder público restabelecer, de imediato (no mesmo
termo aditivo), o equilíbrio econômico-financeiro do contrato. Contudo,
não se pode perder de vista que a Lei no 14.133/21 é editada em um
novo contexto econômico e social, que influenciará sua interpretação.
Assim, para análise do tema, pretende-se abordar, para além do conteúdo
da nova legislação, eixos interpretativos e um pouco do que foi produzido
na doutrina e na jurisprudência acerca do exercício dos poderes excep-
cionais pela Administração Pública.

1. Excepcionalidades do contrato administrativo

A Lei no 14.133/21, diferentemente do que fazia a Lei no 8.666/93


no parágrafo único do seu artigo 2º, não se dedica a definir o que vem a ser
“Contrato Administrativo”. Por outro lado, opta por arrolar as hipóteses
de aplicação em capítulo próprio, intitulado “Do âmbito de aplicação da lei”.
Tal como ocorreu com a Lei no 8.666/93, a Lei no 14.133/21 nasce sem
a pretensão de esgotar o regime jurídico dos contratos administrativos,
havendo disposições que explicitamente mantêm hígidas, por exemplo,
as disciplinas da Lei das Parcerias Público-Privadas, da Lei de Concessões
284 Ana Rita de Figueiredo Nery

Públicas e da Lei no 12.232/2010, a qual dispõe sobre a contratação de servi-


ços de publicidade prestados por intermédio de agências de propaganda3.
Nesse contexto, sabe-se que o regime jurídico dos contratos
administrativos, tradicionalmente, é marcado por um corpo de prerro-
gativas de que goza o poder público quando contrata com particulares.
Tais prerrogativas encontram-se inscritas nas regras e nos princípios que
asseguram ao poder público posição jurídico-subjetiva distinta daquela
ostentada pelos particulares nesse tipo de avença.
Assim, ainda que a Lei no 14.133/21 não esgote o tema dos contratos
administrativos, ela responde, em grande escala, pela pauta das excep-
cionalidades reconhecidas aos contratos administrativos, pela arquite-
tura jurídica dessas estruturas negociais excepcionais e pelos limites
de exercício desse poder exorbitante.
Lugar comum é a existência de um regime jurídico especial
dos contratos administrativos decorrente de certo número de princípios que
dominam a natureza jurídica de tais contratos. A Lei no 14.133/21, nesse
ponto, é generosa na previsão de mais de 20 princípios a serem ponderados
pelo aplicador4. O tema da natureza jurídica do contrato administrativo
e o problema do seu regime jurídico são verdadeiramente inseparáveis.
Todavia, a cada dia, a fronteira entre o contrato administrativo
e os contratos privados se torna menos perceptível. Pode-se dizer que
a disciplina legada à relação que nasce de um contrato administrativo
é resultante de uma peculiar combinação de princípios publicistas
e civilistas5. Em virtude daqueles, à Administração Pública contraente são

3
Lei nº 14.133/21, Art. 186. Aplicam-se as disposições desta Lei subsidiariamente à Lei nº 8.987,
de 13 de fevereiro de 1995, à Lei nº 11.079, de 30 de dezembro de 2004, e à Lei nº 12.232,
de 29 de abril de 2010.
4
“Art. 5º. Na aplicação desta Lei, serão observados os princípios da legalidade, da impessoalidade,
da moralidade, da publicidade, da eficiência, do interesse público, da probidade administrativa,
da igualdade, do planejamento, da transparência, da eficácia, da segregação de funções, da motivação,
da vinculação ao edital, do julgamento objetivo, da segurança jurídica, da razoabilidade,
da competitividade, da proporcionalidade, da celeridade, da economicidade e do desenvolvimento
nacional sustentável, assim como as disposições do Decreto-Lei nº 4.657, de 4 de setembro de 1942.”
(Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro).
5
Nas lições sempre atuais de Marcos Juruena Villela Souto, “[…] a lógica da função administrativa
e da perpetuação dos poderes administrativos se entrelaça com a lógica dos contratos privados;
e se contaminam mutuamente, sem se anularem. Essa dinâmica é instrumental, todavia, instrumento
posto amoldado – e justificado – pelos interesses públicos e privados implantados na avença.
O que se destaca é que os contratos de direito público, antes de tudo, são contratos, submetidos à estrutura
e às regras essenciais da Teoria Geral dos Contratos. Deste pensar é também Marcos Juruena Villela Souto,
Alteração unilateral do contrato administrativo e a obrigação de
restabelecimento do equilíbrio econômico-financeiro na Lei nº 14.133/21 285

reconhecidos, independentemente de expressa previsão contratual, poderes


unilaterais idôneos a incidir sobre a relação, extinguindo-a, suspendendo-a
ou modificando-a. Já em razão das raízes civilistas, a Administração
Pública, fora das hipóteses em que exercita sua potestade, é plenamente
obrigada a dar execução ao programa acordado com o parceiro privado,
e eventual violação das regras do contrato convencionado fazem-na
incorrer em responsabilidade contratual.
Por essa perspectiva, as excepcionalidades dos contratos adminis-
trativos não mais incidem (todas elas) como um bloco monolítico sobre
todos os contratos administrativos. São ferramentas facultadas ao poder
público, cujas forma e função devem estar amparadas pela lei e pelos
princípios jurídicos.
Na prática, as excepcionalidades dos contratos administrativos foram
lapidadas pelos órgãos de controle, pelas decisões das cortes de contas
e do Poder Judiciário. Essas forças trabalharam no sentido de desmistificar
a natureza exorbitante e de trazer linhas interpretativas mais seguras
para a execução do contrato administrativo.

2. Desmistificação da natureza exorbitante e a interpretação


dos contratos administrativos

Nas palavras de Hely Lopes Meirelles, em conceito sempre atual,


cláusulas exorbitantes são “[…] as que excedem do Direito Comum
para consignar uma vantagem ou uma restrição à Administração
ou ao contratado […]”6.
Alinhada a este conceito, Maria Sylvia Zanella Di Pietro:

São cláusulas exorbitantes aquelas que não seriam


comuns ou que seriam ilícitas em contrato celebrado
entre particulares, por conferirem privilégios
a uma das partes (a Administração) em relação
à outra; elas colocam a Administração em posição
de supremacia sobre o contratado7.

quando escreve que o contrato administrativo se abebera na fonte do direito privado, mais precisa-
mente na teoria geral dos contratos, para captar seus elementos essenciais sobre as quais vai justapor
suas prerrogativas que lhe marcam as características.”. (SOUTO, Marcos Juruena Villela. Licitações
e Contratos Administrativos. 2. ed. Rio de Janeiro: Esplanada, 1994, p. 170).
6
MEIRELES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 25. ed. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 202.
7
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 29. ed. São Paulo: Atlas, 2016, p. 314.
286 Ana Rita de Figueiredo Nery

A partir desse conceito, a literatura jurídica aponta como prerroga-


tivas exorbitantes: i) a exigência de garantia; a possibilidade de altera-
ção e rescisão unilateral do contrato; ii) a revisão de preços e tarifas;
iii) o exercício do poder de fiscalização e aplicação de penalidades;
iv) o poder de anulação; v) a retomada do objeto; vi) as limitações ao
uso da exceção de contrato não cumprido; e vii) a exigência das medidas
de compensação prevista no artigo 26, § 2º, da Lei no 14.133/218.
Em linhas gerais, a natureza exorbitante é sempre associada
à mutabilidade do contrato administrativo a partir da vontade da
Administração Pública. Sempre celebrado para a persecução de um deter-
minado interesse público, entende-se que o contrato administrativo deve
ser maleável, de forma a poder se adaptar e acompanhar as alterações,
por exemplo, quanto à necessidade de aperfeiçoamento de um projeto
em razão de causa superveniente que torne impraticável o projeto original.
Esta ideia da mutabilidade do contrato administrativo pró-Administração
pode se manifestar ora como elemento de interpretação, ora como
verdadeira fonte das obrigações das partes, sem prejuízo dos direitos
pecuniários do particular.
Por outro lado, a natureza exorbitante dos contratos administrativos
tradicionalmente se justifica pela posição do particular como de mero
colaborador da Administração9. Esse olhar sobre a posição do particular,
tendencialmente, atribuía à Administração Pública o direito de exigir
do contratado um esforço e uma diligência superiores ao que seria exigível
em um contrato privado10. O que seria, em princípio, uma vantagem para
a Administração Pública, refletia-se nos custos da operação contratual:
um dos elementos do custo é o risco inerente ao negócio, especialmente
incrementado quando o particular está sujeito ao temperamento das

8
Tais poderes são exaustivamente tratados em DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo.
29. ed. São Paulo: Atlas, 2016, p. 314 e seguinte.
9
A expressão foi utilizada por Maria João Estourinho (ESTOURINHO, Maria João. Requiem pelo Contrato
Administrativo. Coimbra: Almedina, 1990, p. 119).
10
Não há que se pensar que o particular que contrata com a Administração é parte fragilizada na relação
contratual; trata-se, muitas vezes, de grande grupo econômico ou de empresa com lastro multinacional.
Contudo, a partir uma observação ampla sobre os contornos dos contratos administrativos (menos
casuística), o que ainda hoje salta aos olhos nessa disciplina é que a decisão do particular de se vincular
à Administração Pública passa antes por uma escolha de se vincular ao nebuloso e instável ambiente
das contratações públicas. Disto decorre o número ainda reduzido de interessados nas contratações,
o alto custo dos financiamentos e, no âmbito doutrinário, o esforço hermenêutico de se adequar
a teoria à prática.
Alteração unilateral do contrato administrativo e a obrigação de
restabelecimento do equilíbrio econômico-financeiro na Lei nº 14.133/21 287

decisões político-administrativas, sem que previamente possa calcular os


limites dessa atuação exorbitante à qual se comprometeu.
A natureza exorbitante leva ao exercício das prerrogativas de autori-
dade pela Administração Pública, que lhe dá a faculdade de recorrer
ao exercício de seus poderes públicos para fiscalizar, impor alterações
ou sancionar a atuação do seu contratante particular, especialmente para
garantir a continuidade do serviço público.

É extremamente curiosa a forma como […] a doutrina


acaba por tecer uma teia de exceções e derrogações
que conduzem a uma situação na qual o juiz,
na verdade, apenas “deita uma vista de olhos furtiva
aos compromissos contratuais11.

Especialmente quanto ao poder de direção e fiscalização12 entende-se


não caber mais sob a ótica do planejamento e da responsabilidade fiscal
seguir, às cegas, a fórmula estanque segundo a qual o concessionário
gere e a Administração Pública controla13. Cabe à Administração Pública
planejar-se do ponto de vista orçamentário, gerindo os recursos vertidos
para o contrato e tomando conhecimento da forma como ele trabalha para
executar o contrato, bem como, eventualmente, ditar como o trabalho
deverá ser realizado, a fim de evitar desvios do seu pontual cumprimento.
O planejamento e a gestão transcendem a mera fiscalização e se justificam
na necessidade de se evitar “surpresas” prejudiciais ao interesse público.
O poder de sanção, por sua vez, traduz-se na possibilidade de o ente
público contratante punir o particular por eventuais faltas cometidas,
tais como a inexecução do contrato, o atraso na prestação, o cumprimento

11
ESTORINHO, Maria João. Requiem pelo Contrato Administrativo. Coimbra: Almedina, 1990, p. 119,
citando RAINAUD, Jean-Marie. Le contrat Administratif: volonté des parties ou Loi de Service Public.
Revue de Droit Public, n. 05, Paris, 1985, p. 1192.
12
A fiscalização talvez seja a grande palavra de ordem em termos de execução dos contratos administrativos.
Não obstante ser considerada prerrogativa exorbitante, o exercício eficiente do poder fiscalizatório
poupa o parceiro privado de se submeter a modificações unilaterais, bem como elimina prejuízos da
Administração Pública com atrasos na execução ou termos aditivos que acabam por comprometer
o erário. Dado esse papel preventivo, a fiscalização consubstancia excelente instrumento de preservação
da consensualidade e dos interesses conjugados, quando orientada pela boa-fé contratual e pela lisura
e probidade do agente responsável.
13
“La Administración dispone de um poder originário para controlar el servicio concedido y hacer que se
preste em las condiciones regulamentarias.” (FALLA, Fernando Garrido. Tratado de derecho adminis-
trativo, vol II. Madrid: Tecnos, 1992, p. 364).
288 Ana Rita de Figueiredo Nery

defeituoso ou o trespasse do contrato sem a necessária autorização da


Administração. Há uma ideia geral de que as sanções típicas do direito
contratual seriam insuficientes para assegurar as especificidades do contrato
administrativo, cabendo um poder coercitivo mais incisivo para garantir
o cumprimento da atividade pelo particular e intimidando a interrupção
da prestação por este.
Esses três grandes ícones da natureza exorbitante dos contratos
administrativos – a mutabilidade do contrato administrativo, a posição
do particular como mero colaborador e o exercício das prerrogativas
de autoridade14 – estabelecem um arcabouço jurídico próprio que pode,
sim, contribuir para a consecução do interesse público, mas pode, também,
esgarçar as bases do negócio jurídico distanciando a execução contratual
da causa do contrato administrativo15, com violação ao princípio licitatório
e comprometimento à eficiência.
Daí porque prerrogativas como de modificação unilateral do contrato
e mesmo de um certo “monopólio da interpretação” são algumas das
características hoje tidas como meramente facultativas, que serão ou não
previstas conforme as necessidades do contrato, sob pena de se onerar
injustificadamente todo e qualquer contrato administrativo em nome
da manutenção de uma “autoridade” esvaziada qualitativamente.
Daí falar-se hoje em desmistificação da natureza exorbitante16.
A partir da desmistificação da natureza exorbitante, a interpretação
dos contratos administrativos torna-se vital na verificação dos limites
do exercício do poder de alteração unilateral pela Administração Pública.
Como trazido na introdução deste texto, não se pode perder de vista, mesmo
para interpretação dos enunciados que foram mantidos da Lei no 8.666/93,
todo o percurso da doutrina e da jurisprudência na interpretação dos limites

14
Para Maria João Estorinho, esses seriam os três traços essenciais do contrato administrativo. ESTORINHO,
Maria João. Requiem pelo Contrato Administrativo. Coimbra: Almedina, 1990, p. 118.
15
“Cada contrato, quando observado em seu conteúdo, traduz, por um lado, um interesse que decorre
da vontade conjugada das partes; e, por outro, uma vocação a produzir determinados efeitos,
um núcleo de consequências jurídicas, por vezes inerentes ao próprio tipo de negócio, por vezes fruto
da criatividade das partes. Posto perceptível sob o prisma objetivo, o interesse ainda não se apresenta
vinculado aos efeitos contratuais de forma definitiva. Vale dizer que o interesse embute um feixe
de consequências jurídicas muitas das quais prescindíveis; que não passam de projeções indiretas
e acessórias àquele contrato; demasiadamente variadas para compor o núcleo essencial de efeitos
do contrato, isto é, a mínima unidade de efeitos jurídicos esperada pelas partes de forma a atribuir
ao pacto função individual própria. Aqui tem lugar a causa do contrato”. (NERY, Ana Rita de Figueiredo.
A causa do contrato administrativo: análise do conteúdo contratual como parâmetro de aplicação
do princípio da eficiência. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 25).
16
A expressão é referenciada por Maria João Estourinho (Requiem pelo Contrato Administrativo. Coimbra:
Almedina, 1990, p. 140).
Alteração unilateral do contrato administrativo e a obrigação de
restabelecimento do equilíbrio econômico-financeiro na Lei nº 14.133/21 289

e dos requisitos para as alterações unilaterais dos contratos administrativos.


Portanto, ainda que a Lei no 14.133/21 se limite, em muito, a compilar
entendimentos formados nos últimos anos sob a égide da Lei no 8.666/21
e textos de outras leis federais dedicadas a outros modelos de contratação
administrativa, compreender esse percurso mostra-se fundamental para
se extrair, da nova lei conteúdo mais compatível com a dinâmica contem-
porânea de contratações públicas. Tal percurso entende-se marcado
por duas orientações interpretativas muito claras em matéria de contratos
administrativos. A primeira diz respeito ao cotejo entre a lógica privada
e a lógica pública. A segunda diz respeito à conservação dos contratos
administrativos.

2.1 O cotejo entre as lógicas pública e privada e a conservação


dos contratos administrativos

A interpretação do contrato administrativo, contemporaneamente,


passa, de um lado, pelo cotejo entre a lógica pública e privada e, especial-
mente, pelo tanto dos aspectos do direito privado que passam despercebidos
quando o modelo de observação dos contratos administrativos se volta
mais aos meios de contratação que ao fim contratual17. Por outro lado,
importante perceber o reforço – no âmbito da Lei no 14.133/21 –
da ideia de conservação dos contratos administrativos e de manutenção
da execução obras e serviços, a despeito de eventuais nulidades
na formação do vínculo contratual.
O reconhecimento dessa comunicação entre o direito público
e o direito privado já era notada pelo Visconde de Uruguai, em uma
das primeiras lições do direito brasileiro sobre as fontes do direito
administrativo:

O direito administrativo é limitado pelo direito


constitucional ou político. Também o é pelo direito
civil ou penal; e por isso a jurisdição administrativa
deve parar no ponto em que começam a ação política,
e a aplicação do direito comum civil ou penal,
quer às propriedades, quer às pessoas18.

17
Nesse sentido, considera-se patente a maior dedicação da legislação administrativa aos instrumentos
e às modalidades de contratação que ao estudo da teoria contratual, o que é salutar na medida em que se
pode a todo tempo recorrer à teoria geral do direito para interpretação dos negócios jurídicos em geral.
18
URUGUAI, Visconde do. Ensaio sobre Direito Administrativo. 2. ed. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional,
1960, p. 39.
290 Ana Rita de Figueiredo Nery

Exemplo da incidência da lógica dos pactos privados aos contratos


administrativos, exatamente pela coincidência entre seus elementos
estruturais e qualitativos, diz respeito aos deveres de boa-fé e lealdade
no empenho real voltado à consecução do resultado pretendido19.
No mais, a vinculação rígida que antes se prestava a apartar contratos
administrativos e privados, não se apresenta instransponível no que respeita
aos contratos privados. A paridade pode ser, por exemplo, mitigada,
se verificado que uma parte é hipossuficiente – econômica ou tecnica-
mente –, como nos contratos de trabalho e consumeristas. Pelo prisma
tradicional, os contratos administrativos não tendiam à estabilidade,
que seria própria dos contratos privados, estabilidade esta que se impõe
atualmente em um modelo que exige aportes de capital e investimentos20.
Não obstante ser essencial para as atividades do Estado o complexo
de direitos, obrigações, prerrogativas e interesses legítimos próprios,
que nascem das relações administrativas e não se confundem com
a esquemática dos contratos privados, a adesão intransigente e indiscri-
minada aos mecanismos do regime de direito público – especialmente
à prerrogativa de alteração unilateral do contrato – nem sempre atende aos
princípios cardeais da Administração Pública. Nem sempre se pode afirmar
que o predomínio da lógica pública garantirá a eficiência e o alcance de um
resultado satisfatório à Administração Pública21.
Sintomático do recurso ao direito privado na interpretação
dos contratos administrativos é o destaque dado à conservação dos

19
Ao analisar as influências do Código Civil de 2002 sobre os Contratos Administrativos, Jessé Torres expõe,
por exemplo, que a boa-fé objetiva demanda maior rigor na fiscalização da execução dos contratos
administrativos: “A boa-fé é o substrato da eticidade, traduzindo-se em norma de conduta que salva-
guarda a veracidade do que foi estipulado, a sinceridade e a probidade das vontades manifestadas,
em virtude do que se pode esperar que será cumprido o pactuado sem distorções ou tergiversações,
tendo-se sempre em vista o adimplemento do fim visado ou declarado como tal pelas partes […]”.
PEREIRA JÚNIOR, Jessé Torres. Notas acerca das repercussões no novo Código Civil sobre os contratos
administrativos. Revista da EMERJ, vol. 7, n. 27, Rio de Janeiro, 2004. 21.
20
O espírito do processo de desestatização do Brasil, diversamente do que ocorreu em países europeus,
teve como norte uma questão pragmática, qual seja: a falta de recursos públicos. No caso europeu,
o que se buscava era essencialmente a eficiência de serviços já existentes e universais, que somente
seria atingida com o know-how do setor privado. Essa abordagem é de SOUTO, Marcos Juruena Villela.
Serviços Públicos Concedidos. Boletim de Direito Administrativo, out./2005, p. 1103.
21
Via de regra, cada imposição unilateral da Administração ao particular consubstancia um risco a ser
agregado ao custo do objeto da contratação, o que pode vir a comprometer a eficiência – especial-
mente quando o objeto é a prestação de um serviço – na medida em que o caminho natural para
a autocompensação do parceiro privado é a subtração dos custos da execução.
Alteração unilateral do contrato administrativo e a obrigação de
restabelecimento do equilíbrio econômico-financeiro na Lei nº 14.133/21 291

contratos administrativos na Lei no 14.133/21. Algumas alterações legais


sustentam esse argumento. Vamos a elas:
Primeiro, os artigos 147 e 148 da Lei no 14.133/21 dispõem que,
constatada irregularidade no procedimento licitatório ou na execução
contratual, caso não seja possível o saneamento, a decisão sobre a suspen-
são da execução ou sobre a declaração de nulidade do contrato somente
será adotada na hipótese em que se revelar medida de interesse público,
com avaliação prévia sobre impactos econômicos e sociais daí decorrentes.
Caso a paralisação ou anulação não se revele medida de interesse público,
o poder público deverá optar pela continuidade do contrato e pela solução
da irregularidade por meio de indenização por perdas e danos, sem prejuízo
da apuração de responsabilidade e da aplicação de penalidades cabíveis.
Em segundo lugar, a Lei no 14.133/21 não apenas reforça a figura
do seguro-garantia, como estabelece que esse seguro deverá garantir
o fiel cumprimento das obrigações assumidas pelo contratado, a critério
da autoridade competente.
Em terceiro lugar, importante lembrar que o projeto de lei que
deu origem à Lei no 14.133/21 estabelecia, nos §§ 2º e 3º do artigo 115
e no parágrafo único do artigo 142, que a execução de cada etapa do
contrato seria obrigatoriamente precedida de depósito em conta vinculada
dos recursos financeiros necessários para custear as despesas correspon-
dentes à etapa a ser executada. Esses valores vinculados ao contrato
administrativo seriam impenhoráveis. A execução do contrato contaria
com uma garantia financeira para recebimento de sua contraprestação.
Após o veto presidencial, manteve-se apenas a garantida da reserva
orçamentária (nota de empenho). Ainda que não se possa mais contar
com a vinculação prévia de recurso, inegável que a previsão participava,
durante as discussões do projeto de lei, de um grande movimento legis-
lativo favorável à garantia da execução dos contratos administrativos.
Por tudo isso, pode-se dizer que a conservação da execução dos
contratos administrativos é um eixo interpretativo fortalecido pela
Lei no 14.133/21. Nas disputas judiciais, tende-se a conduzir a interpre-
tação de litígios sobre a validade das alterações unilaterais dos contratos
administrativos para o prestígio à continuidade das obras e dos serviços.
Isso acontecerá, notadamente, quando não houver uma análise prévia
acerca dos impactos da suspensão da obra e dos serviços, análise esta que,
a teor do artigo 147 da nova lei, passa pelos impactos econômicos
e financeiros decorrentes do atraso na fruição dos benefícios do objeto
292 Ana Rita de Figueiredo Nery

do contrato; pelos riscos sociais, ambientais e à segurança da população


local decorrentes do atraso na fruição dos benefícios do objeto do contrato;
pela motivação social e ambiental do contrato; pelo custo da deterio-
ração ou da perda das parcelas executadas; pela despesa necessária
à preservação das instalações e dos serviços já executados; pela despe-
sa inerente à desmobilização e ao posterior retorno às atividades;
pelas medidas efetivamente adotadas pelo titular do órgão ou entidade
para o saneamento dos indícios de irregularidades apontados; pelo custo
total e estágio de execução física e financeira dos contratos, dos convê-
nios, das obras ou das parcelas envolvidas; pelo fechamento de postos
de trabalho diretos e indiretos em razão da paralisação; pelo custo para
realização de nova licitação ou celebração de novo contrato e sobre
o custo de oportunidade do capital durante o período de paralisação.
Assentada a trajetória de desmitificação dos poderes exorbitantes
e as premissas que devem nortear a interpretação do contrato adminis-
trativo – cotejo entre o regime de direito público e a lógica privatista,
e o reforço à conservação da execução dos contratos administrativos –
resta aferir os espaços de incidência dessa interpretação à luz da disciplina
da alteração unilateral do contrato administrativo tal como prevista
na Lei no 14.133/2021.

3. A Lei n. 14.133/21 e a alteração unilateral do contrato


administrativo

O tema da alteração dos contratos administrativos foi trazido


pela Lei no 14.133/2021 no capítulo VII. Valendo-se da mesma estra-
tégia topográfica que a Lei n o 8.666/93 22, tanto as alterações
unilaterais quanto as alterações decorrentes de acordo entre as partes
encontram-se sob o mesmo capítulo. O título do capítulo – “DA ALTERAÇÃO
DOS CONTRATOS E DOS PREÇOS” – traz de forma explícita conclusão
já há muito partilhada pelos comentaristas da Lei no 8.666/93 no sentido
de que a modificação do preço dos contratos administrativos, na esteira
da necessidade de manutenção do equilíbrio econômico-financeiro,
é consectária das alterações quantitativas e qualitativas. Daí porque

22
No Decreto nº 2.300/86, o capítulo se intitulava “Da alteração dos contratos” e seus artigos desenharam
a disciplina das alterações unilaterais dos contratos administrativos tal como depois reproduzida pela
Lei no 8.666/93 e agora pela Lei nº 14.133/21.
Alteração unilateral do contrato administrativo e a obrigação de
restabelecimento do equilíbrio econômico-financeiro na Lei nº 14.133/21 293

falar-se no título do capítulo, com certa redundância, em “alterações


dos contratos e dos preços”.
Enquanto nos contratos privados a regra é a imutabilidade unilateral de
seus termos, em se tratando de contratos administrativos, tem-se legítima
a possibilidade de alteração unilateral pela Administração, quando dita
providência for necessária à consecução do interesse público perseguido.
É inegável que a presença da Administração Pública traz às relações
das quais participe um regime jurídico especial, distinto e exorbitante
em relação ao direito comum. Pode-se dizer que o princípio da igual-
dade entre as partes cede espaço ao da desigualdade, para conferir
a prerrogativa ao Poder Público de fazer variar a obrigação da outra parte
na medida em que isso se afigure necessário à atividade estatal.
A Lei no 14.133/2021, em diversos pontos, limita-se a repetir a disci-
plina da alteração unilateral dos contratos administrativos já desenhada
na Lei nº 8.666/93. Contudo, como já dito, não se pode perder de vista,
para interpretação dos velhos e novos enunciados, todo o percurso
da doutrina e da jurisprudência na interpretação dos limites e dos requisitos
para as alterações unilaterais dos contratos administrativos. Ademais,
a análise sistemática desse tema à luz da Lei nº 14.133/2021 passa pelo
estudo das matérias agora compiladas em um mesmo texto legal, a exemplo
da disciplina das contratações integrada e semi-integrada, antes regidas
pela Lei nº 12.462/2011.
Tema a tema, passa-se a analisar a disciplina da alteração unilateral
do contrato administrativo à luz da Lei nº 14.133/2021, por suas hipóteses,
limites e modelos previstos na lei.

3.1 Hipóteses de alteração unilateral dos contratos administrativos:


alteração qualitativa e alteração quantitativa

No que diz respeito às alterações unilaterais dos contratos,


o artigo 124, inciso I, “a” e “b”, repete, com correções gramaticais,
o disposto no artigo 65, I, “a” e “b”, da Lei nº 8.666/95. Assim, foi mantida
a possibilidade de alteração unilateral dos contratos, pela Administração,
quando houver modificação do projeto ou das especificações, para melhor
adequação técnica aos seus objetivos e quando necessária a modificação
do valor contratual em decorrência de acréscimo ou diminuição quanti-
tativa de seu objeto, nos limites permitidos por esta Lei.
A repetição das hipóteses traz uma consequência prática óbvia
e relevante diante das regras de coexistência entre os sistemas
294 Ana Rita de Figueiredo Nery

estabelecidos pela Lei nº 14.133/2021 e pela Lei nº 8.666/93: do ponto


de vista das hipóteses de alteração unilateral dos contratos e dos preços
pela Administração Pública, pouco importa ao gestor a opção pelo manejo
da Lei nº 8.666/93 ou da Lei nº 14.133/21.
No mais, as hipóteses de modificação permanecem as mesmas.
Do ponto de vista qualitativo, é cabível a alteração unilateral para
atendimento do interesse público, assim descrito como “melhor adequação
técnica aos seus objetivos”. A modificação do projeto ou das especificações,
portanto, deve decorrer de uma necessidade de adequação técnica para
realização dos objetivos do contrato. Não se admite, por hipótese,
que a alteração qualitativa do contrato decorra da necessidade
de realização de um objeto distinto daquele originalmente previsto no
contrato administrativo.
Também é possível a alteração unilateral dos contratos administrativos
quando necessária a modificação do valor contratual em decorrência
de acréscimo ou diminuição quantitativa de seu objeto, nos limites permi-
tidos por esta Lei. Tais limites encontram-se previstos no artigo 125.
A reprodução textual do artigo 65 da Lei nº 8.666/93 acerca
das hipóteses de alteração unilateral do contrato reacende antiga discussão
não solucionada pela nova lei sobre a aplicação de limites percentuais
do artigo 125 às alterações qualitativas. É dizer que, para alguns autores23,
a alteração qualitativa, assim como a quantitativa, não poderia ultrapassar
os limites impostos no atual artigo 125 da Lei nº 14.133/21. Já para outros
autores24, as alterações qualitativas não se submeteriam aos limites prefixa-

23
Hely Lopes Meireles e Toshio Mukai.
24
Dentre esses: JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos.
11. ed. São Paulo: Dialética, 2005, p. 553-554; MARQUES NETO, Floriano Azevedo. Contrato Administrativo:
superveniência de fatores técnicos dificultadores da execução da obra. Boletim de Licitações e Contratos,
São Paulo: NDJ, fev./2001, vol. 14, p. 99 e “Alteração de contrato administrativo – Antecipação
de etapas de execução – Intangibilidade das condições econômicas e financeiras originais – Alteração
de regime de execução e pagamento como fator de neutralização dos ônus excedentes – Noção
jurídica da “antecipação de pagamentos” vedada em lei”. In: Interesse Público, vol. 14, 2002,
p. 69-70.; e GASPARINI, Diógenes. Direito Administrativo. 9. ed. Rio de Janeiro: Saraiva, 2004, p. 611.
Diógenes Gasparini resume sua posição nos seguintes termos: “Os incisos I e II do art. 65 da Lei federal
das Licitações e Contratos da Administração Pública preveem quando é possível a alteração unilateral
e a consensual. Cabe a alteração unilateral nos seguintes casos: ‘a) quando houver modificação do
projeto ou das especificações, para a melhor adequação técnica a seus objetivos; b) quando necessária
a modificação do valor contratual em decorrência de acréscimo ou diminuição quantitativa de seu
objeto, nos limites permitidos por essa Lei“. […] Não observam o limite de 25% as alterações qualita-
tivas que o objeto do contrato pode sofrer. Alterações qualitativas são as decorrentes da modificação
do projeto ou de suas especificações.
Alteração unilateral do contrato administrativo e a obrigação de
restabelecimento do equilíbrio econômico-financeiro na Lei nº 14.133/21 295

dos. Para esses autores, o limite para a realização de alterações unilaterais


qualitativas nos contratos administrativos seria a razoabilidade e impres-
cindibilidade da alteração, sendo necessária a demonstração casuística
sobre a necessidade da alteração para atendimento do interesse público.
Tal entendimento tem prevalecido no Tribunal de Contas da União25, para
o qual as modificações qualitativas do contrato administrativo não se
submetem ao limite financeiro de aumento de até 25% do valor inicial
do contrato porque é insuficiente a análise da repercussão da alteração
contratual qualitativa exclusivamente sob o enfoque financeiro.

3.2 Limites percentuais para acréscimos ou supressões decorrentes


de alterações unilaterais dos contratos administrativos

O artigo 125 da nova lei repete a dicção do §1º do artigo 65


da Lei nº 8.666/93 quanto aos limites percentuais para acréscimos ou
supressões decorrentes de alterações unilaterais. Assim, como ocorria
sob a égide da Lei nº 8.666/93, o contratado será obrigado a aceitar,
nas mesmas condições contratuais, acréscimos ou supressões de até 25%
do valor inicial atualizado do contrato que se fizerem nas obras, nos serviços
ou nas compras, e, no caso de reforma de edifício ou de equipamento,
o limite para os acréscimos será de 50%.
Discussão recorrente diz respeito à base de cálculo para verificação
dos limites, especialmente nos casos de serviços contínuos. O Tribunal
de Contas da União, a esse respeito, já entendeu que a base de cálculo
deve ser o valor original da avença, sem qualquer acréscimo oriundo das
prorrogações26. Em outros termos, o valor inicial atualizado do contrato
de prestação de serviço contínuo é a remuneração original, devidamente

25
Nesse sentido, o Acórdão TCU – 215/2009 – Plenário, que tem servido de base objetiva para o exame
casuístico da legitimidade das alterações contratuais qualitativas.
26
“No caso sob exame, os acréscimos de valor se deveram a alterações quantitativas de objeto
e não simplesmente a sucessivas prorrogações de serviços contínuos. Assim, nos termos do art. 65
da Lei de Licitações, o cálculo do limite previsto nos §§ 1º e 2º do dispositivo, deve tomar como
base o valor inicial atualizado do contrato, sem os acréscimos advindos das prorrogações.”
(TCU, Acórdão nº 1.550/2009-Plenário. Rel. Min. Raimundo Carreiro. DJ 15.07.2009). Ainda nesse
sentido: “Observe, como regra, o limite de 25% do valor inicial atualizado do contrato para a alteração
dos quantitativos dos itens contratados, de forma a garantir que as alterações não constituam ‘jogo de
preços’, conforme estabelecido no art. 65, § 1º, da Lei nº 8.666/93“ (TCU, Acórdão 265/2010- Plenário).
Importante trazer que para Marçal Justen Filho na hipótese de prorrogação de serviços contínuos
a base de cálculo do percentual de alteração deverá ser o valor total da avença, consideradas, portanto,
todas as prorrogações.
296 Ana Rita de Figueiredo Nery

reajustada, contida na proposta apresentada pelo contratado, e não


o valor global decorrente do somatório dos valores após prorrogações.
Aumentos ou supressões sucessivas, em percentuais inferiores a 25%,
são autorizadas. O que se espera, à luz do princípio da conservação dos
contratos e do princípio licitatório, é que, no caso de redução, ao menos
75% do objeto inicialmente programado seja executado. De outro lado,
em caso de acrescimento, que, somados os aumentos, não se tenha a execu-
ção de mais de 125% do objeto inicial, considerado sempre o valor inicial.

3.2.1 Limites percentuais para acréscimos ou supressões


decorrentes de alterações unilaterais dos contratos administrativos
e a transfiguração da causa do contrato administrativo

Observa-se que a reprodução quase integral das regras da Lei nº 8.666/93


que estabeleciam limites à alteração unilateral por parte da Administração
Pública tende a manter viva a discussão sobre a dicotomia entre poderes
da administração e a vinculação contratual, pelo que se torna neces-
sário aprofundar o tema dos limites à alteração unilateral qualitativa
ou quantitativa do contrato administrativo e posicionar as discussões
contemporâneas em torno do tema.
A esse respeito, o artigo 126 traz interessante previsão no sentido
de que as alterações unilaterais a que se refere o inciso I do caput do
artigo 124 da Lei não poderão transfigurar o objeto da contratação.
O que seria, nesse sentido, o objeto da contratação? Qual seria o conteúdo
imutável de um contrato administrativo?
Tem-se por premissa que é relevante para o interesse público
a tutela da eficácia do contrato, garantindo-se não só a produção de seus
efeitos, mas também e, principalmente, a própria manutenção do vínculo
até o fim da execução, com todos os seus consectários.
Para tanto, entende-se que, quando a lei fala em objeto do contrato,
não se limita às prestações e contraprestações, mas à causa do contrato
administrativo. A causa do contrato é elemento merecedor de atenção
pelo intérprete na persecução dos objetivos funcionais do contrato,
seja quanto à realização do escopo contratual para as partes seja na
indicação da projeção social do contrato. O impulso normativo para essa
compreensão é o princípio da eficiência, que impõe à Administração
Pública um esforço no sentido de evitar os riscos de frustração da atividade
administrativa. A movimentação de recursos públicos não se dirige apenas
Alteração unilateral do contrato administrativo e a obrigação de
restabelecimento do equilíbrio econômico-financeiro na Lei nº 14.133/21 297

à garantia do mínimo, mas do satisfatório, do aceitável, que consolida


a prestação estatal de maior excelência possível.
Em termos práticos, salvo previsão contratual no sentido da existência
de cláusulas modificáveis e cláusulas imodificáveis, não se poderia deter-
minar, ex ante, a existência de um conteúdo imutável do contrato adminis-
trativo. A função econômico-individual do contrato serviria como um lastro
objetivo, para além do qual a alteração significaria a própria violação do
princípio licitatório, havendo que se manter íntegra a causa do contrato
em resposta ao comando constitucional que exige a manutenção das
condições efetivas da proposta e a realização de licitação como principal
via de contratação pela Administração Pública.
Acredita-se que os verdadeiros limites de alteração contratual,
em termos qualitativos e quantitativos, ombreados aos percentuais tratados
no artigo 125 da Lei nº 14.133/21, são extraídos do artigo 126, cuja inter-
pretação não pode se limitar às prestações e contraprestações enunciadas no
contrato. Está-se a falar da conservação das bases do negócio e da proteção
do dever constitucional de licitar, o que, dependendo da complexidade do
contrato, dependerá da compatibilidade da alteração qualitativa e da
quantitativa com a causa do contrato observado o fio condutor da conser-
vação da execução dos contratos administrativos.
Em outros termos, impõe-se que tal modificação, além dos limites
percentuais, se circunscreva ao diâmetro da função socioeconômica
do contrato e, consequentemente, mantenha íntegra a síntese dos efeitos
objetivamente almejados e acordados pela parte privada. A modificação
imposta pela Administração Pública deve obedecer ao feixe de efeitos
que tem origem na celebração do contrato e que se estende durante
toda a execução. Note-se que não basta à análise da causa a observação
pontual do conteúdo da manifestação de vontades. Por análise objetiva,
não se pode ter apenas o contrato, mas todos os elementos da fase
de execução que eventualmente aproximaram as partes; acresceram
o contrato de elementos essenciais e, assim, igualmente se inseriram
no “efeito envolvedor da causa”.
Partidário da relevância do que chama de “essência do contrato”
para definição dos limites à alteração dos contratos, Caio Tácito, tratando
especificamente das alterações qualitativas:

Diversamente, as modificações qualitativas não


têm proporção prefixada, mas devem respeitar
a essência do objeto do contrato, do qual é expressão
objetiva sua finalidade, caracterizada no projeto
298 Ana Rita de Figueiredo Nery

básico, a que se reporta o edital. As alterações


qualitativas, precisamente porque são, de regra,
imprevisíveis, senão mesmo inevitáveis, não têm
limite preestabelecido, sujeitando-se a critérios
de razoabilidade, de modo a não se desvirtuar
a integridade do objeto do contrato27.

Fato é que se alastraram ambientes de flexibilização da estrutura


dos contratos administrativos e, a cada novo cenário – a exemplo
da edição da Lei nº 14.133/21 –, novos juízos de congruência entre
o objeto licitado, a execução planejada e os limites de alteração unila-
teral podem ser realizados.

3.3 Alteração unilateral dos contratos administrativos e o poder-


dever de apuração da responsabilidade do encarregado técnico

Conforme artigo 124, § 1º, da Lei nº 14.133/2021, se as alterações


disciplinadas no artigo 124 e seguintes decorrerem de falhas de projeto,
as alterações de contratos de obras e serviços de engenharia ensejarão
apuração de responsabilidade do responsável técnico e adoção das providên-
cias necessárias para o ressarcimento dos danos causados à Administração.
O enunciado não estabelece uma presunção legal de que as alterações
unilaterais decorram de falhas de elaboração do projeto. Todavia,
por sua dicção, a Lei nº 14.133/2021 passa a recomendar que, diante
de indícios de que problemas de projeto geraram alterações unilaterais –
por acréscimos ou supressões –, seja inaugurada apuração preliminar no
âmbito do órgão ou entidade contratante, como exercício do controle
interno. A partir do resultado de tal apuração, caso se tenha concluído
que a alteração unilateral decorreu de falha de projeto segue-se, a inicia-
tiva de responsabilização do responsável técnico, o que poderá tramitar
na esfera administrativa ou na judicial.
Trata-se, por fim, de um poder-dever ínsito à Administração Pública
e que, a teor do que restou decidido pelo Supremo Tribunal Federal

27
TÁCITO, Caio. Contrato administrativo – Alteração quantitativa e qualitativa: limites de valor. Boletim
de Licitações e Contratos, mar./1997. São Paulo: NDJ, p. 115-121.
Alteração unilateral do contrato administrativo e a obrigação de
restabelecimento do equilíbrio econômico-financeiro na Lei nº 14.133/21 299

no Tema 77728, por analogia, pode, inclusive, submeter o gestor público


a responder por ato de improbidade administrativa.

3.4 Alteração unilateral e os parâmetros da Lei nº 14.133/2021


para fixação dos preços unitários para obras ou serviços

O artigo 127 da Lei nº 14.133/2021, por sua vez, modifica a regra


até então prevista no artigo 65, § 4º, da Lei nº 8.666/93 e aplicável aos
contratos em que não houverem sido contemplados preços unitários para
obras ou serviços. A nova lei traz parâmetros objetivos para fixação dos
preços unitários que, a partir de agora, serão fixados por meio da aplicação
da relação geral entre os valores da proposta e o valor do orçamento-base
da Administração sobre os preços referenciais ou de mercado vigentes
na data do aditamento, respeitados os limites do artigo 125.
Até então, a Lei nº 8.666/93 contava com um consenso entre
as partes para estabelecimento de preços unitários para obras e serviços,
de se observar que diversos contratos, notadamente aqueles que envolviam
prestação de serviços e eram desprovidos de descrição clara acerca dos
custos de cada serviço ou da repercussão de cada serviço no preço final
sujeitavam as partes a cenários de insegurança jurídica quando a redução
quantitativa era necessária.
Entende-se que não quer, a regra do artigo 127, afastar a possibilidade
de os preços unitários serem fixados consensualmente, contanto que se
preserve a relação original de equivalência entre vantagens e encargos do
contratado, evitando-se que a margem de lucro do particular seja incre-
mentada com a inclusão de novos serviços. Tanto no caso das alterações
unilaterais quanto no caso das alterações decorrentes de acordo entre as
partes é possível, observados os princípios previstos no artigo 5º da Lei,
notadamente o da economicidade e da transparência, que as partes consin-
tam em relação aos parâmetros para fixação do preço de referência para
o aditamento que será realizado. Importa, a teor do que dispõe o artigo 130
da Lei nº 14.133/21 que a Administração restabeleça, no mesmo termo
aditivo, o equilíbrio econômico-financeiro inicial, repita-se, evitando-se
que a margem de lucro do particular seja incrementada com a inclusão
de novos serviços.

28
Brasil. Supremo Tribunal Federal. Tema 940. Tese: O Estado responde, objetivamente, pelos atos dos tabe-
liães e registradores oficiais que, no exercício de suas funções, causem dano a terceiros, assentado o dever
de regresso contra o responsável, nos casos de dolo ou culpa, sob pena de improbidade administrativa.
300 Ana Rita de Figueiredo Nery

3.5 Redução da diferença percentual entre o valor global


do contrato e o preço global de referência

Diz o artigo 128 que, nas contratações de obras e serviços de engenharia,


a diferença percentual entre o valor global do contrato e o preço global
de referência não poderá ser reduzida em favor do contratado em decor-
rência de aditamentos que modifiquem a planilha orçamentária. Significa
que, se houver modificação unilateral que impacte a planilha orçamentária,
sem prejuízo da manutenção do equilíbrio econômico-financeiro inicial,
não poderá – a favor do contratado – ser reduzida a diferença percentual
entre o valor global do contrato e o preço global de referência.
A norma replica disposição do Decreto nº 7.983/2013 que, no âmbito
da União, estabelece regras e critérios para elaboração do orçamento
de referência de obras e serviços de engenharia.
Assim dispõem os artigos 14 e 15 do Decreto nº 7.983/2013:

Art. 14. A diferença percentual entre o valor


global do contrato e o preço global de referência
não poderá ser reduzida em favor do contratado
em decorrência de aditamentos que modifiquem
a planilha orçamentária.

Parágrafo Único. Em caso de adoção dos regimes


de empreitada por preço unitário e tarefa, a diferença
a que se refere o caput poderá ser reduzida para
a preservação do equilíbrio econômico-financeiro
do contrato em casos excepcionais e justificados,
desde que os custos unitários dos aditivos contratuais
não excedam os custos unitários do sistema
de referência utilizado na forma deste Decreto,
assegurada a manutenção da vantagem da proposta
vencedora ante a da segunda colocada na licitação.

Art. 15. A formação do preço dos aditivos contratuais


contará com orçamento específico detalhado
em planilhas elaboradas pelo órgão ou entidade
responsável pela licitação, na forma prevista
no Capítulo II, observado o disposto no art. 14
e mantidos os limites do previsto no § 1º do art. 65
da Lei nº 8.666, de 1993.
Alteração unilateral do contrato administrativo e a obrigação de
restabelecimento do equilíbrio econômico-financeiro na Lei nº 14.133/21 301

Em 2019, o Plenário do Tribunal de Contas da União respondeu


a Consulta apresentada pelo Ministro da Integração Nacional acerca
da metodologia a ser adotada nos critérios de aprovação de preços em termos
aditivos de contratos de obras públicas. Segundo trazido pelo consulente,
haveria possível divergência entre o Acórdão 1.874/2007-TCU-Plenário
e o manual ‘Orientações para Elaboração de Planilhas Orçamentárias de
Obras Públicas’ do Tribunal de Contras da União (2014), no que tange
à adoção dos valores dos preços dos insumos na elaboração de composi-
ções de custos unitários de serviços novos.
Em resposta, o plenário do Tribunal de Contas da União assim decidiu:

[…] em caso de necessidade de celebração


de termos aditivos em contratos de obras públicas,
deve ser observado o disposto nos artigos14 e 15
do Decreto 7.983/2013, sendo necessário, para tanto,
que se realize análise da planilha confrontando
a situação antes e depois do aditivo pretendido para
averiguar quanto à eventual redução no percentual
do desconto originalmente concedido […]

E ainda:
[…] na hipótese de celebração de aditivos
contratuais para a inclusão de novos serviços,
tal qual consta na publicação ‘Orientações para
Elaboração de Planilhas Orçamentárias de Obras
Públicas’ (TCU, 2014), o preço desses serviços deve
ser calculado considerando o custo de referência
e a taxa de BDI de referência especificada no
orçamento-base da licitação, subtraindo desse
preço de referência a diferença percentual entre
o valor do orçamento-base e o valor global do
contrato obtido na licitação, com vistas a garantir
o equilíbrio econômico-financeiro do contrato
e a manutenção do percentual de desconto ofertado
pelo contratado, em atendimento ao art. 37,
inciso XXI, da Constituição Federal e aos artigos 14
e 15 do Decreto n. 7.983/2013.
302 Ana Rita de Figueiredo Nery

O que não consta da Lei nº 14.133/21, mas que se extrai de referida


decisão do Tribunal de Contas da União29 é que, nas situações em que,
em virtude do aditivo, houver diminuição do desconto originalmente
concedido ao contratado, pode-se incluir parcela compensatória negativa
como forma de se dar cumprimento ao artigo 14 do Decreto n. 7.983/2013,
ressalvada a exceção prevista em seu parágrafo único.
De fato, o Decreto nº 7.984/2013, no artigo 14, parágrafo único,
excepciona a necessidade de inclusão de parcela compensatória negativa
na medida em que estabelece que, em caso de adoção dos regimes
de empreitada por preço unitário e tarefa, a diferença a que se refere o caput
pode ser reduzida para a preservação do equilíbrio econômico-financeiro
do contrato, excepcionalmente e mediante justificativa, desde que os
custos unitários dos aditivos contratuais não excedam os custos unitários
do sistema de referência utilizado, assegurada a manutenção da vantagem
da proposta vencedora ante a da segunda colocada na licitação.
Vê-se que o artigo 128 da Lei nº 14.133/21 reproduz o artigo 14
do Decreto nº 7.984/2013 e, assim, de forma inequívoca, estende para
todos os contratos administrativos celebrados sob sua égide a disciplina
até então prevista expressamente apenas para contratos executados com
recursos orçamentários da União.

3.6 Alterações unilaterais supressivas e o dever de reembolso dos


custos de aquisição

O artigo 129 da Lei nº 14.133/21 repete, em linhas gerais, a previsão


do artigo 65, § 4º, da Lei nº 8.666/93. Nas alterações contratuais para
supressão de obras, bens ou serviços, se o contratado já houver adqui-
rido os materiais e os colocado no local dos trabalhos, estes deverão
ser pagos pela Administração pelos custos de aquisição regularmente
comprovados e monetariamente reajustados, podendo caber indenização

29
No mesmo sentido: “Os aditivos para inclusão de serviços novos (art. 65, § 3º, da Lei 8.666/1993) devem
observar, no mínimo, o mesmo desconto inicial do ajuste, ou seja, a mesma diferença percentual
entre o valor global contratado e aquele obtido a partir dos custos unitários do sistema de referência
aplicável.“ (Acórdão 855/2016-TCU-Plenário, Relator: Min. Benjamin Zymler) e ainda: “Na celebração
de aditivos contratuais, deve ser mantido o desconto proporcional oferecido pela contratada em
relação ao valor total estimado pela Administração, de modo a se evitar o “jogo de planilhas“,
tanto para modificação de quantidades de itens existentes quanto para inclusão de novos serviços“.
(Acórdão 1153/2015-TCU-Primeira Câmara, Relator: Min. José Múcio Monteiro).
Alteração unilateral do contrato administrativo e a obrigação de
restabelecimento do equilíbrio econômico-financeiro na Lei nº 14.133/21 303

por outros danos eventualmente decorrentes da supressão, desde que


regularmente comprovados.
Não se admite, portanto, o reembolso por custos supostos ou presumi-
dos a partir de parâmetros de reembolso do contrato, como a planilha de
preços com Benefícios e Despesas indiretas, tal como previsto no artigo 23,
§ 2º, da Lei nº 14.133/21.
Por fim, conforme já reconhecido pelo Tribunal de Contas da
União, o ente contratante detém a prerrogativa de abater do valor
a ser reembolsado eventuais débitos e multas decorrentes do contrato
(Acórdão 874/2018 –TCU – Plenário).

4. Alteração unilateral nas contratações integradas ou semi-integradas

A Lei nº 14.133/21 comtempla de forma expressa as contratações


integrada e semi-integrada. Esses modelos de contratação, até então
regulamentados apenas pela Lei nº 12.462/11, foram incorporados
ao ordenamento jurídico brasileiro para atender às contratações
de obras e serviços necessários aos eventos esportivos realizados no
Brasil: Copa das Confederações, Copa do Mundo e Olimpíadas.
A contratação integrada é aquela licitada com elementos de
anteprojeto e que prevê o desenvolvimento do projeto básico e executivo,
além da execução da obra ou serviço pelo contratado. Assim, a licitação
integrada envolve a possibilidade de um só interessado ter a seu cargo
não só a elaboração dos projetos básico e executivo, como também
a sua própria execução, concentrando atividades que, por sua natureza,
reclamariam executores diversos.
Já na contratação semi-integrada licita-se com o projeto básico,
sendo o contratado responsável por elaborar e desenvolver o projeto
executivo, além de executar a obra ou serviço.
Na medida em que nesses modelos de contratação a Administração
Pública se vale do know-how do particular executor para melhor desen-
volvimento dos projetos que o antecedem, natural que as hipóteses
de alteração do contrato durante a sua execução sejam excepcionais.
Assim, como regra geral, dispõe o artigo 133 que “[…] nas hipóteses
em que for adotada a contratação integrada ou semi-integrada, é vedada
a alteração dos valores contratuais […]”. As exceções são i) para restabe-
lecimento do equilíbrio econômico-financeiro decorrente de caso fortuito
ou força maior; ii) por necessidade de alteração do projeto ou das especi-
ficações para melhor adequação técnica aos objetivos da contratação,
304 Ana Rita de Figueiredo Nery

a pedido da Administração, desde que não decorrente de erros ou omissões


por parte do contratado, observados os limites estabelecidos no art. 125
desta Lei; iii) por necessidade de alteração do projeto nas contratações
semi-integradas, nos termos do § 5º do art. 46 desta Lei; e iv) por ocorrência
de evento superveniente alocado na matriz de riscos como de responsa-
bilidade da Administração.
Dentro dessas hipóteses, a única que se enquadra como alteração
unilateral provocada pela Administração Pública nos moldes do artigo 124, I,
da Lei nº 14.133/21 é aquela “[…] por necessidade de alteração do projeto
ou das especificações para melhor adequação técnica aos objetivos
da contratação, a pedido da Administração, desde que não decorrente de
erros ou omissões por parte do contratado, observados os limites estabe-
lecidos no art. 125 desta Lei.”.
Ainda assim, diferentemente da regra geral estabelecida no
artigo 124, I, “a”, da Lei nº 14.133/21, a necessidade de alteração dos
valores contratuais não pode decorrer de erros ou omissões por parte
do contratado, isto é: que decorram de falhas na elaboração do projeto
básico ou do projeto executivo, ressalvados os eventos supervenientes
alocados na matriz de riscos como de responsabilidade da Administração
ou os casos de fortuito ou força maior (art. 133, I e IV da Lei nº 14.133/21).
Por fim, a lei afasta expressamente a possibilidade de alteração
do contrato para modificação do valor contratual em decorrência
de acréscimo ou diminuição quantitativa de seu objeto e restringe,
portanto, para o âmbito das contratações integrada e semi-integrada,
a aplicação do artigo 124, I da Lei n. 14.133/21.

5. Alteração unilateral e a obrigação de reequilíbrio econômico-


financeiro

Nos contratos administrativos, como em qualquer negócio jurídi-


co, as partes se submetem a uma álea ordinária. A adesão das partes
ao contrato envolve, portanto, a manutenção do status ordinário dessa
álea. O direito ao equilíbrio econômico-financeiro, de base constitu-
cional30, assenta-se na ideia de que, durante a execução do contra-
to, deve ser assegurado ao particular o restabelecimento desse status

Constituição Federal, art. 37, XXI: “[…] ressalvados os casos especificados na legislação, as obras,
30

serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure
igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento,
Alteração unilateral do contrato administrativo e a obrigação de
restabelecimento do equilíbrio econômico-financeiro na Lei nº 14.133/21 305

ordinário que baseou a tomada de decisão no sentido da celebração do


contrato administrativo.
O direito ao equilíbrio econômico-financeiro é garantido pelos
instrumentos da revisão (reequilíbrio), correção monetária, repactuação
e reajuste. A par da conhecida distinção entre os institutos, importa
para o presente trabalho a seguinte percepção: enquanto que, na seara
do reajuste, da repactuação e da correção monetária, existe um critério
temporal para a retomada do equilíbrio econômico-financeiro do contrato,
no âmbito da revisão31 há que se demonstrar a ocorrência de um “[…] fato
extraordinário e superveniente que desequilibre excessivamente a relação
de equivalência entre os encargos do contratado e a remuneração”32.
O que vem a ser, todavia, um fato extraordinário, imprevisível
causador de desequilíbrio contratual? Em uma perspectiva constitucional,
o equilíbrio contratual volta-se à desigualdade de prestações que
interfere a realização da função econômico-individual do contrato.
Não prospera, aqui, a ideia de um equilíbrio exclusivamente vinculado
ao binômio prestação-contraprestação33. É necessário que se enfrente
o escopo das manifestações de vontade e os efeitos por elas antevistos,

mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências
de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações […]”.
31
Amparando-se no art. 65, inciso II, alínea “d“, a revisão (reequilíbrio) pressupõe que o equilíbrio
econômico-financeiro tenha sido rompido por fato superveniente e imprevisível, ou previsível,
mas de conseqüências incalculáveis. Para que haja revisão do contrato administrativo, é preciso
demonstrar que as cautelas prévias estabelecidas pelas partes, inclusive o próprio reajustamento,
não foram suficientes para assegurar a manutenção do equilíbrio econômico-financeiro, demandando
um procedimento destinado a reordená-lo. Neste segundo caso, evidentemente, não é necessária
a previsão contratual, bastando a demonstração dos requisitos legais para que se pleiteie a recom-
posição da equação econômico-financeira do contrato. GARCIA, Flávio Amaral. Aspectos práticos da
Cláusula de Reajuste nos Contratos Administrativos. In: OSÓRIO, Fábio Medina; SOUTO, Marcos Juruena
Villela (coord.). Direito Administrativo: estudos em homenagem a Diogo de Figueiredo Moreira Neto.
Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 559.
32
GARCIA, Flávio Amaral. Aspectos práticos da Cláusula de Reajuste nos Contratos Administrativos.
In: OSÓRIO, Fábio Medina; SOUTO, Marcos Juruena Villela (coord.). Direito Administrativo: estudos
em homenagem a Diogo de Figueiredo Moreira Neto. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 559.
33
Neste sentido: “O equilíbrio financeiro ou equilíbrio econômico do contrato administrativo, também
denominado equação econômica ou equação financeira, é a relação que as partes estabelecem
inicialmente, no ajuste, entre os encargos do contrato e a retribuição da Administração para a justa
remuneração da obra, do serviço ou do fornecimento. Em última análise, é a correlação entre objeto
do contrato e sua remuneração, originariamente prevista e fixada pelas partes em números absolutos
ou em escala móvel. Essa correlação deve ser conservada durante toda a execução do contrato,
mesmo que alteradas as cláusulas regulamentares da prestação ajustada, a fim de que se mantenha
a equação financeira ou, por outras palavras, o equilíbrio econômico-financeiro do contrato.“. MEIRELLES,
Hely Lopes. Licitação e Contrato Administrativo. 11. ed. São Paulo: Malheiros, 1996, p. 165.
306 Ana Rita de Figueiredo Nery

com todos os riscos que lhes são próprios. O equilíbrio econômico-financeiro


abrange, portanto, todos os encargos impostos à parte, ainda quando não se
configurem como “deveres jurídicos“ propriamente ditos. Decorre daí que
o evento causador do desequilíbrio poderá não ser um obstáculo instranspo-
nível à execução, mas tão-somente gerador de uma impossibilidade relativa
de inexecução. Em outras palavras, exige-se uma conformação material –
e não apenas formal – com o conteúdo do contrato celebrado.
Ilustrativamente, em 1995, a Companhia Estadual de Água e Esgotos
do Rio de Janeiro – CEDAE celebrou contratos de prestação de serviço
com empresas especializadas em guarda e vigilância, após procedimento
licitatório. Contudo, seis meses após a apresentação das propostas
foi celebrada convenção coletiva que concedia à categoria dos vigilantes
aumento salarial na ordem de 86,57%. Discutiu-se à época se o evento
justificaria a incidência do artigo 65, II, d, da Lei nº 8.666/93 e, assim,
a revisão do contrato.
À época da apresentação das propostas, a álea previsível de reajuste
salarial tinha como parâmetro a Lei nº 8.880/9434, que assegurava aos traba-
lhadores na data-base de cada categoria reajuste salarial em percentual
correspondente à variação acumulada do IPC-r, o que não ultrapassava
a ordem de 20,3%. Acrescenta-se que, mesmo admitidos para cálculo
os valores reais do IPC-r até janeiro de 1995, ainda assim o valor cumulativo
não seria maior que 22,04%.
Em se tratando de contrato de prestação de serviços de guarda
e vigilância, o mesmo núcleo de efeitos contratuais que aponta para
a existência de um ônus inafastável de se arcar com o aumento salarial
dos vigilantes, aponta também para a manutenção de um resultado
econômico-financeiro (margem de lucro) compatível com o momento
da apresentação da proposta. Logo, se à época da apresentação das propos-
tas o risco ínsito à causa do contrato tinha como baliza objetiva a margem

“Art. 29 – O salário mínimo, os benefícios mantidos pela Previdência Social e os valores expressos em cru-
34

zeiros nas Leis nºs 8.212 e 8.213, ambas de 1991, serão reajustados, a partir de 1996, inclusive, pela
variação acumulada do IPC-r nos doze meses imediatamente anteriores, nos meses de maio de cada ano.
§ 1º – Para os benefícios com data de início posterior a 31 de maio de 1995, o primeiro reajuste,
nos termos deste artigo, será calculado com base na variação acumulada do IPC-r entre
o mês de início, inclusive, e o mês imediatamente anterior ao reajuste.
§ 2º Sem prejuízo do disposto no art. 27, é assegurado aos trabalhadores em geral, no mês da primeira
data-base de cada categoria após a primeira emissão do Real, reajuste dos salários em percentual
correspondente à variação acumulada do IPC-r entre o mês da primeira emissão do Real, inclusive
e o mês imediatamente anterior à data-base.“
Alteração unilateral do contrato administrativo e a obrigação de
restabelecimento do equilíbrio econômico-financeiro na Lei nº 14.133/21 307

de aumento salarial prevista na Lei nº 8.880/94 é esta que deve servir


de parâmetro para o intérprete na aferição do desequilíbrio contratual.
No caso concreto, a Procuradoria Geral do Estado do Rio de Janeiro
concluiu pela necessidade de reajuste dos preços contratuais na proporção
em que o índice corretivo estipulado pela convenção coletiva (86,57%)
excedesse a margem legal (de cerca de 20%). No mesmo sentido opinou
Caio Tácito35.
Em síntese, o equilíbrio contratual remonta àquilo que, a partir
da causa do contrato, estiver circunscrito em um diâmetro de risco
além do qual se tem caracterizada a desproporção e a imprevisibilidade.
Nesse ponto, mostra-se de grande importância a possibilidade de previsão
expressa da matriz de riscos como item do edital e cláusula contratual
para fins de compartilhamento dos riscos do contrato entre as partes,
conforme trazido pela Lei n– 14.133/21, o que será fundamental para
compreensão dos limites das alterações unilaterais dos contratos.
Por fim, importante notar que a Lei nº 14.133/21, em boa hora, deixou
a estratégia legislativa de tentar identificar hipóteses que seriam ou não
seriam objeto de reequilíbrio econômico-financeiro. A Lei nº 8.666/93,
artigo 65, § 5º, nesse sentido, dispunha que quaisquer tributos ou encargos
legais criados, alterados ou extintos, bem como a superveniência
de disposições legais, quando ocorridas após a data da apresentação
da proposta, de comprovada repercussão nos preços contratados, impli-
carão a revisão destes para mais ou para menos, conforme o caso.
Anota-se apenas que a Lei nº 14.133/21 deixou de tratar do registro
do empenho de dotações orçamentárias pelo ente contratante nos casos de
alterações contratuais. Nesse sentido, o artigo 65, § 8º, da Lei nº 8.666/93
estabelecia que a variação do valor contratual para fazer face ao reajuste
de preços previsto no próprio contrato, as atualizações, compensações
ou penalizações financeiras decorrentes das condições de pagamento nele
previstas, bem como o empenho de dotações orçamentárias suplementares
até o limite do seu valor corrigido, não caracterizam sua alteração, podendo
ser registrados por simples apostila, dispensando a celebração de aditamento.

A íntegra do parecer encontra-se publicada em TÁCITO, Caio. Contrato administrativo. Equilíbrio


35

econômico-financeiro. Empresa estatal. In: Temas de Direito Público: estudos e pareceres, vol. 3.
Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 266.
308 Ana Rita de Figueiredo Nery

5.1 A obrigação de restabelecimento imediato do equilíbrio


econômico-financeiro e a formalização do termo aditivo

A teor do artigo 130 da Lei nº 14.133/21, caso haja alteração unila-


teral do contrato que aumente ou diminua os encargos do contratado,
a Administração deverá restabelecer, no mesmo termo aditivo, o equilíbrio
econômico-financeiro inicial. Como regra, a formalização do termo aditivo
é condição para a execução, pelo contratado, das prestações determinadas
pela Administração no curso da execução do contrato.
Sempre que ocorrer uma alteração unilateral no contrato administrativo,
a Administração Pública deverá rever a equação econômico-financeira
do contrato. Isso não é novidade. A novidade trazida pela Lei no 14.133/21
é a obrigação de que o restabelecimento do equilíbrio econômico-financeiro
seja feito imediatamente, no mesmo termo aditivo em que figurarem
as alterações impostas pela Administração Pública no exercício da
sua prerrogativa.
A lei ressalva a possibilidade de antecipação das prestações
determinadas pela Administração no caso de justificada necessidade.
Havendo justificativa fundada, portanto, o particular poderá ser compelido
a executar o contrato à luz das novas condições impostas pela Administração
Pública. Nesse caso, contudo, a formalização do aditivo contratual deverá
ocorrer no prazo máximo de um mês.
Como regra, o pedido de restabelecimento do equilíbrio econômico-
financeiro deverá ser formulado durante a vigência do contrato
e antes de eventual prorrogação. A lei repisa, todavia, que a extinção do
contrato não configurará óbice para o reconhecimento do desequilíbrio
econômico-financeiro, hipótese em que será concedida indenização por
meio de termo indenizatório (Art. 131, caput e parágrafo único).

Conclusão

Como visto, a Lei nº 14.133/21 traz mais um capítulo – não necessariamente


novo – para a jornada iniciada com as reformas da década de 1990,
e que tem o mérito de compilar a produção acadêmica, jurisprudencial
e legislativa subsequente à Lei nº 8.666/93. A despeito das poucas
novidades, a edição de uma nova lei é sempre uma janela de oportunidades
para releitura e atualização interpretativa do texto legal à luz novo
contexto social, político e econômico em que é publicada.
Alteração unilateral do contrato administrativo e a obrigação de
restabelecimento do equilíbrio econômico-financeiro na Lei nº 14.133/21 309

Nesse sentido, tem-se que a Lei nº 14.133/21 chega em um momento


de maior maturidade e experimentação do Estado de bem-estar social.
Falar da contratação de obras e serviços pelo Estado é falar de ambiente
econômico extremamente dinâmico e de enorme impacto no desenvolvi-
mento social. Ademais, tais contratações são cada vez mais impactadas
pela internacionalização dos atores econômicos e pelos setores financeiro
e securitário. A esse respeito, projeções internacionais estimavam que
em 2020 e 2021 haveria recorde de investimentos privados em infraestrutura,
especialmente por conta das taxas de juros baixas e da estagnação
de algumas frentes investimento.
Sobre as alterações unilaterais dos contratos administrativos,
viu-se que o direito contratual privado de base oitocentista era calcado
em premissas incompatíveis com a situação de prevalência de uma
das partes em um contrato. A excessiva liberdade contratual, a presunção
de igualdade entre as partes e o dogma da autonomia de vontade,
como dito, criavam um abismo entre a necessária ideia de “exorbitância
dos poderes da Administração Pública“ e os instrumentos contratuais
do direito privado.
Todavia, esses dois ambientes contratuais se afastaram de suas
concepções iniciais. Enquanto no contexto privado o desequilíbrio entre
as partes e o arquétipo do contrato de adesão fazem familiar a ideia
de preponderância de umas das partes, nos contratos administrativos,
a tônica do planejamento e da responsabilidade fiscal em torno das
avenças promovidas pelo Estado consolidam uma tendência de se priorizar
estruturas consensuais ao uso de prerrogativas exorbitantes. É como
se o ius variandi do Estado, nos últimos anos, tivesse se tornado mais
uma via de adequação do contrato público à vontade da administração,
cuja utilização não estaria fincada em um poder-dever do ente público,
mas em uma faculdade jurídica. O uso das “exorbitâncias“, assim, não se
justificaria, senão como via mais eficiente para a realização do interesse
público enxerto na contratação.

Embora, em princípio, seja até razoável o padronizar


algumas cautelas, não no será naquilo que
se negue à Administração a possibilidade de avaliar
casuisticamente a conveniência e a oportunidade
de inserir ou não, em cada contrato, as modulações
ditas exorbitantes. Esta preferência pela escolha
da técnica flexível a discricionariedade em lugar
da técnica rígida da vinculação, não encontra qualquer
impedimento na legislação brasileira, pois essa
310 Ana Rita de Figueiredo Nery

imposição da generalização de cláusulas inafastáveis


nos contratos administrativos não repousa sobre
qualquer assento constitucional, senão que
é de previsão meramente legal, nada impedindo,
portanto, que o legislador ordinário delegue ao
administrador público pela oportunidade de avaliar
a legitimidade do emprego de qualquer delas depois
de examinadas as hipóteses, caso a caso36.

Nesse cenário, a Lei nº 14.133/21 reforça “[…] a passagem de uma


viciosa relação de supremacia a uma virtuosa relação de ponderação […]”37.
Significa que eventual utilização de prerrogativas não decorrerá, portanto,
da mera natureza administrativa do contrato, mas de um posicionamento
motivado da administração a partir do caso concreto, considerada toda
a pauta principiológica exposta no artigo 5º da nova lei e os benefícios
ao interesse público, ilustrados no seu artigo 147.
Embora a Lei nº 14.133/21 repise a possibilidade de recurso aos
poderes excepcionais para alteração unilateral dos contratos administrativos
com o fim de melhor atender ao interesse público, importante lembrar
das passadas da doutrina e da jurisprudência no sentido da desmitificação
da natureza exorbitante e do recurso à consensualidade. A obrigação
insculpida no artigo 130, por exemplo, de restabelecimento imediato
do equilíbrio econômico-financeiro, joga luzes para o fato de, nem sempre,
o recurso a poderes excepcionais ser a opção mais eficiente e econômica
para a Administração Pública.
Nesse processo interpretativo e de análise casuística das vantagens
e desvantagens do recurso aos poderes excepcionais, entende-se que muitas
respostas deverão ser buscadas pelo gestor público na Lei de Introdução
às Normas do Direito Brasileiro, a começar pelos parâmetros tendentes
a eliminar irregularidades, incertezas jurídicas ou situação contenciosa
na aplicação do direito público.

36
MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. O Futuro das Cláusulas Exorbitantes nos Contratos Administrativos.
Revista de Direito da Associação dos Procuradores do Novo Estado do Rio de Janeiro, vol. XVII,
Rio de Janeiro: Lumen Iuris, p. 15-16.
37
MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo, O futuro das Cláusulas Exorbitantes nos Contratos Administrativos.
Revista da Associação dos Procuradores do Novo Estado do Rio de Janeiro: Parcerias Público-Privadas,
vol. XVII, p. 22.
Alteração unilateral do contrato administrativo e a obrigação de
restabelecimento do equilíbrio econômico-financeiro na Lei nº 14.133/21 311

Na orientação seminal da hermenêutica jurídica, a interpretação da


lei deve ser dirigida pelas exigências do bem comum. Cabe ao intérprete
preocupar-se com as consequências de cada interpretação de forma que
o resultado seja compatível com o contexto econômico, político e social,
sob pena de gerar resultados interpretativos incompatíveis com o bem
geral e com as necessidades da prática38. Na letra de Paulinho Moska, os
desideratos de um novo tempo são cantados assim:

Vamos começar
Colocando um ponto final
Pelo menos já é um sinal
De que tudo na vida tem fim
Vamos acordar
Hoje tem um sol diferente no céu
Gargalhando no seu carrossel
[…]
É tudo novo de novo.

Bibliografia

BRESSER-PEREIRA, Luiz Carlos. Reforma Gerencial de 1995. Disponível em:


http://www.bresserpereira.org.br/rgp.asp. Acesso em: 1 jun. 2021.
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GASPARINI, Diógenes. Direito Administrativo. 9. ed. Rio de Janeiro:
Saraiva, 2004.
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1981/94. Pesquisa e Planejamento Econômico, Rio de Janeiro, v. 26, n. 1,
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article/viewFile/765/705. Acesso em: 1 jun. 2021.

38
MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. 21. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017.
312 Ana Rita de Figueiredo Nery

JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratos


Administrativos. 11. ed. São Paulo: Dialética, 2005.
MARANGONI, Gilberto. Anos 1980, década perdida ou ganha? Desafios
do Desenvolvimento, Brasília, DF, v. 9, n. 72, 2012. Disponível
em: http://www.ipea.gov.br/desafios/index.php?option=com_
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6 dez. 2017.
MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. 21. ed.
Rio de Janeiro: Forense, 2017.
MEIRELES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 25. ed. São Paulo:
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São Paulo: Malheiros, 1996.
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NERY, Ana Rita de Figueiredo. A causa do contrato administrativo: análise
do conteúdo contratual como parâmetro de aplicação do princípio
da eficiência. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.
PAULINHO MOSKA. Tudo novo de novo. Rio de Janeiro: Som Livre, 2003.
PEREIRA JÚNIOR, Jessé Torres. Notas acerca das repercussões no novo
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Rio de Janeiro, v. 7, n. 27, 2004.
RAINAUD, Jean-Marie. Le Contrat Administratif: volonté des parties ou Loi
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SOUTO, Marcos Juruena Villela. Licitações e Contratos Administrativos. 2. ed.
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TÁCITO, Caio. Contrato administrativo. Equilíbrio econômico-financeiro.
Empresa estatal. In: Temas de Direito Público: estudos e pareceres, vol. 3.
Rio de Janeiro: Renovar, 2002.
URUGUAI, Visconde do. Ensaio sobre Direito Administrativo. 2. ed.
Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1960.
313

Extinção dos contratos administrativos,


recebimento do objeto, pagamento e
nulidade (NLLC, artigos 137-154)

Christianne de Carvalho Stroppa1


Advogada

Sumário: Introdução. 1. Extinção dos contratos administrativos.


2. Recebimento do objeto. 3. Pagamento. 4. Nulidades. Conclusão. Bibliografia.

Introdução

Sancionada em 1º de abril de 2021, a Lei nº 14.133/2021, denominada


“Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos – NLLC”, nos termos do
art. 193, inciso II da Lei, após o transcurso de dois anos de sua publicação
oficial, irá revogar integralmente a Lei nº 8.666/1993, a Lei nº 10.520/2002
e os arts. 1º a 47 da Lei nº 12.462/2011. Durante esse período, muito embora
tenha entrado em vigor na data de sua publicação, como previsto no art. 194,
nos termos do contido nos arts. 190 e 191, se verificarão algumas regras de
transição: (i) contratos firmados antes de 1º de abril de 2021 continuarão
sendo regidos pela Lei vigente no momento de suas formalizações; e (ii) até
o dia 1º de abril de 2023 a Administração Pública poderá optar por licitar/
contratar diretamente conforme o regime de legislação até então vigente ou
a nova, cumprindo indicar, uma dessas duas opções, na instrução pertinente2.
A NLLC não foi totalmente disruptiva, pois manteve a sistemática já
existente, entretanto, incorporando o denominado Direito Administrativo
dos Negócios3 às necessidades cotidianas da Administração Pública,

1
Doutora e mestra em Direito Administrativo pela PUC/SP, Assessora de Controle Externo no TCM/SP,
Professora de Direito Administrativo na PUC/SP.
2
EQUIPE ZÊNITE. Lei nº 14.133/21: A nova Lei de Licitações está vigente e é aplicável. Blog Zênite.
Disponível em: https://www.zenite.blog.br/lei-no-14-133-21-a-nova-lei-de-licitacoes-esta-vigente-e-
-e-aplicavel/. Acesso em: 15 nov. 2022.
3
“[…] o dos que s focam em resultados e, para obtê-los, fixam prioridades, e com base nelas gerenciam
a escassez de tempo e de recursos”. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2006-dez-21/
direito_administrativo_oscila_entre_papeis_negocios?pagina=2. Acesso em: 15 nov. 2022.
314 Christianne de Carvalho Stroppa

inova ao tratar de temas Diálogo Competitivo (arts. 6º, inciso XLII, 28,


inciso V, e 32) Procedimento de Manifestação de Interesse (arts. 78,
inciso III, e 81), Arbitragem (arts. 138 e 151 a 154), Startups (art. 81,
§ 4º), entre outros.
Um destaque importante se refere à Governança das Contratações4,
expresso, especialmente, no parágrafo único do art. 11 da Lei nº 14.133/20215,
que, como linha mestra, terá o condão de orientar todas as contratações a
serem realizadas.
Sobre a temática da execução dos contratos, procurou a Lei
nº 14.133/2021 disciplinar a temática atinente à extinção dos contratos,
recebimento do objeto, pagamentos e nulidades.

1. Extinção dos contratos administrativos

O art. 115 da Lei nº 14.133/2021 apresenta o mesmo conteúdo do


art. 66 da Lei nº 8.666/1993. nesse sentido, o contrato deverá ser execu-
tado fielmente pelas partes, de acordo com as cláusulas avençadas e as
normas desta Lei, e cada parte responderá pelas consequências de sua
inexecução total ou parcial.
O dever de fiel execução dos contratos decorre da circunstância de
que eles tornam concreto o interesse público, objetiva a subjetividade
do pacto e seguros os direitos e obrigações; para tanto, devem utilizar
uma linguagem clara, precisa e objetiva e prever modelos de execução
e gestão contratual (art. 6º, incisos XII e XXIII)6.
Quando a Administração Pública formaliza um contrato, tem por
objetivo que ele seja plena e efetivamente adimplido pelas partes.

4
Governança das aquisições compreende essencialmente o conjunto de mecanismos de liderança,
estratégia e controle postos em prática para avaliar, direcionar e monitorar a atuação da gestão das
aquisições, com objetivo de que as aquisições agreguem valor ao negócio da organização, com riscos
aceitáveis. (TCU. Acórdão nº 2.622/2015 – Plenário. Rel. Min. Augusto Nardes).
5
Art. 11. Parágrafo único. A alta administração do órgão ou entidade é responsável pela governança
das contratações e deve implementar processos e estruturas, inclusive de gestão de riscos e controles
internos, para avaliar, direcionar e monitorar os processos licitatórios e os respectivos contratos,
com o intuito de alcançar os objetivos estabelecidos no caput deste artigo, promover um ambiente
íntegro e confiável, assegurar o alinhamento das contratações ao planejamento estratégico e às leis
orçamentárias e promover eficiência, efetividade e eficácia em suas contratações.
6
MOREIRA, Egon Bockmann. Execução de contratos, governança e fiscalização na Nova Lei de Licitações.
Palestra proferida para o Centro de Estudos da PGE de Mato Grosso. Disponível em: https://www.
youtube.com/watch?v=WKnHSLfpCwU. Acesso em: 15 nov. 2022.
Extinção dos contratos administrativos, recebimento do objeto,
pagamento e nulidade (NLLC, artigos 137-154) 315

Dessa forma, a regra sempre será a extinção decorrente do exaurimento


do objeto, com a plena e efetiva execução do pactuado.
Lembra Luciano Ferraz que:

[…] os contratos devem ser cumpridos como


contratados pelas partes pacta sunt servanda),
respondendo cada uma perante a outra pelo
respectivo inadimplemento. O descumprimento dos
contratos pelo contratado (particular) atrai um
regime sancionatório severo, previsto nos artigos
155 a 163 da Lei 14.133/21. O inadimplemento
pela Administração também tem consequências
contratuais e legais, que receberam um tratamento
mais explícito na Lei 14.133/21 se comparado com a
disciplina da Lei 8.666/937.

A extinção antecipada deve ser vista como situação excepcional,


“[…] podendo advir de comportamentos atribuíveis às partes ou não, como
ocorre no caso fortuito e na forma maior […]”8. Nesse contexto, existem
situações em que a extinção contratual decorrerá de inadimplemento,
entretanto, hipóteses advirão em que a ocorrência de inadimplemento,
caracterizada como irrelevante ou secundária, não envolvendo a satisfa-
ção de deveres relevantes, acarretará a imposição de sanções, mas não a
decretação de sua extinção9. Isso porque o rompimento prematuro, ainda
que provocado por inadimplemento do contratado, não é sempre a forma
mais adequada de gerir o interesse público.
Interessante sublinhar que a Lei não mais fala em rescisão,
já que esta palavra tinha seus problemas de indefinição, pois, sob a
égide da Lei nº 8.666/1993, também se referia à rescisão unilateral.
A Lei nº 14.133/2021 optou pela palavra “extinção”. O termo utilizado
pelo art. 78 da Lei nº 8.666/1993 era “rescisão”. Apenas uma única

7
FERRAZ, Luciano. Contratos na Nova Lei de Licitações e Contratos. In: DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella
(Coord.). Licitações e contratos administrativos: inovações da Lei 14.133/21. Rio de Janeiro: Forense,
2021, p. 572.
8
FERRAZ, Luciano. Contratos na Nova Lei de Licitações e Contratos. In: DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella
(Coord.). Licitações e contratos administrativos: inovações da Lei 14.133/21. Rio de Janeiro: Forense,
2021, p. 214
9
JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à lei de licitações e contratações administrativas. São Paulo:
Thomson Reuters Brasil, 2021, p. 1463
316 Christianne de Carvalho Stroppa

vez, e por falha de revisão, a nova Lei faz uso da palavra “rescisão”
(art. 90, § 7º).
Referida substituição pode não ter resolvido os problemas, “[…] pois
cria também problemáticas interpretativas, dado que extinção contratual é
geralmente considerada gênero, do qual decorrem muitas outras espécies
além da extinção implementada por rescisão unilateral da Administração”10.
Ademais, parcela da:

[…] doutrina tem diferenciado os termos ‘rescisão’


(inadimplemento de uma das partes), ‘resolução’
(impossibilidade de continuidade do contrato,
sem culpa das partes) e ‘resilição’ (vontade das
partes que não desejam prosseguir com o contrato)
admitindo-se a resilição unilateral (denúncia) ou
bilateral (distrato). Dessa forma, nem todas as
hipóteses do art. 78 da Lei 8.666/1993 e do art. 137
da nova Lei de Licitações envolveriam tecnicamente
rescisão do contrato11.

A NLLC agrupou as hipóteses de extinção do contrato em dois grupos:


(i) o que se encontra nos incisos do caput do art. 137 e indica basicamente
eventos que configuram inadimplemento do particular ou que autorizam
a rescisão independentemente de inadimplemento das partes; (ii) o que
consta do § 2º do art. 137 e estabelece as causas que autorizam a extinção
por requerimento do particular12.
Por outro lado, a diferença mais significativa com a Lei nº 8.666/1993
decorre de textual referência ao direito à extinção do contrato pelo
contratado, quando da ocorrência de uma das hipóteses arroladas no § 2º
do art. 137. Ou seja, é possível afirmar que a Lei nº 14.133/2021 cria
situação de extinção unilateral a favor do contratado, em decorrência de
comportamentos atribuíveis à Administração Pública13, implica dizer que

10
NOHARA, Irene Patrícia. Direito administrativo. 10. ed. São Paulo, Atlas, 2020, p. 474.
11
OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Nova Lei de licitações e contratos administrativos: comparada e
comentada. Rio de Janeiro: Forense, 2021, p. 325.
12
GROTTI, Dinorá Adelaide Musetti. Artigos 137 a 139. In: DAL POZZO, Augusto; CAMMAROSANO, Márcio;
ZOCKUN, Maurício (Coord.). Lei de Licitações e Contratos Administrativos Comentada: Lei 14.133/21.
São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021, p. 610.
13
“Esse direito decorre da ocorrência de fatos supervenientes atribuídos à Administração que impedem ou
agravam a execução do contrato (art. 137, § 2º, I a V). Alguns deles traduzem fatos da Administração,
Extinção dos contratos administrativos, recebimento do objeto,
pagamento e nulidade (NLLC, artigos 137-154) 317

a Lei “[…] adotou um tratamento mais severo para hipóteses de rescisão


por inadimplemento da Administração […]”14.
Como anotado na Lei nº 8.666/1993, o contratado, apenas após
o transcurso dos prazos nela referidos (atraso de pagamento superior
a 90 dias, por exemplo15), é que poderia pleitear a paralisação das
atividades e a rescisão do ajuste, invocando, para tanto, a exceptio
non adimpleti contractus16. Não se verificava hipótese de rompimento
de vínculo unilateralmente pelo contratado, já que dependente da
aquiescência da Administração Pública17.
Situação diversa é a indicada no § 2º, art. 137, da Lei nº 14.133/2021,
posto que, ocorrendo uma das hipóteses descritas nos seus incisos, basta
que o contratado comunique, formal e motivadamente, sua vontade em
extinguir o contrato, não competindo à Administração Pública qualquer
juízo de valor sobre o solicitado. Estará o contratado exercendo, de forma
lícita, um direito legalmente atribuído, do qual não pode a Administração
Pública se negar a reconhecer.

indicando conduta culposa desta e gerando o desfazimento do vínculo pela resolução do contrato”
(CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual direito administrativo. 35. ed. São Paulo: Atlas, 2021, p. 261).
14
JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à lei de licitações e contratações administrativas. São Paulo:
Thomson Reuters Brasil, 2021, p. 1462.
15
“Outro ponto de destaque sobre a (in)segurança nas relações público-privadas é a diminuição para
dois meses do prazo para que os parceiros privados possam opor a exceção do contrato não cumprido
ou pleitear judicialmente a rescisão dos contratos em razão do inadimplemento da Administração
Pública (art. 136, § 2º, inciso IV e §3º, inciso II). Estudos demonstram que o atraso nos pagamentos
é um dos motivos mais relevantes para que uma empresa decida por não participar de uma licitação
– especialmente em contratações em que participam micro e pequenas empresas, que necessitam do
adimplemento tempestivo dos negócios jurídicos para manter a liquidez de seus fluxos de caixa [2].
O dispositivo tende a reduzir, portanto, os riscos assumidos pelo contratado de ser levado à ruína pela
necessidade de dar continuidade à execução do contrato administrativo em razão do inadimplemento
público”. (BINENBOJM, Gustavo; TOLEDO, Renato. A exorbitância contratual na Nova Lei de Licitações.
Disponível em: https://www.jota.info/coberturas-especiais/inova-e-acao/a-exorbitancia-contratual-
-na-nova-lei-de-licitacoes-26042021. Acesso em: 15 nov. 2022).
16
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 35. ed. rev. e atual. São Paulo:
Malheiros, 2021, p. 585.
17
Sob a ótica da Lei nº 8.666/1993, o que se “[…] verifica em boa parte das situações é o simples interesse
do contratado de romper o vínculo, às vezes com disponibilidade para concluir algumas tarefas e em
outras situações nem isso. Não há, entretanto, comportamento culposo prévio, não há força maior nem
caso fortuito, não há interesse exclusivo e relevante da própria Administração Pública para extinguir
unilateralmente o contrato. Do ponto de vista da Administração Pública, cabe-lhe, diante desse fato,
verificar se é pertinente aquiescer com o pedido do contratado. Afinal, não há interesse público prévio
que conduzisse à rescisão unilateral do contrato, mas somente o pedido de extinção do vínculo que
coloca uma nova realidade que precisa ser considerada pelo órgão competente.” (CARVALHO FILHO,
José dos Santos. Manual direito administrativo. 35. ed. São Paulo: Atlas, 2021).
318 Christianne de Carvalho Stroppa

Trata-se de expressão de competência vinculada da Administração


Pública18, implicando em uma atuação sem margem alguma de liberdade
para decidir ou agir, pois a lei tipificou o único possível comportamento
diante de hipótese prefigurada em termos objetivos 19. Admite-se,
no entanto, a utilização dos comandos da Lei de Introdução às Normas do
Direito Brasileiro – LINDB (Decreto-Lei nº 4.657/1942, com as inclusões
trazidas pela Lei nº 13.655/2018), especialmente diante do dever de
ponderação das consequências fáticas, práticas e jurídicas do decidir e
de ponderação de possíveis soluções alternativas.
Certamente, não há posição uniforme na doutrina. No sentido de
se tratar de direito do contratado, invoca-se que a Nova Lei de Licitação
não deixou lacunas acerca desse assunto. O contratado, ou seja, aquele
que presta serviços para qualquer órgão público, também tem o direito
de extinguir o contrato quando se sentir lesado20.
O procedimento a ser observado na extinção implica: (i) motivação
formal nos autos do processo; (ii) plena garantia do exercício do contradi-
tório e da ampla defesa; e (iii) enquadramento nas hipóteses justificadoras.

2. Recebimento do objeto

Quando a Administração Pública formaliza uma relação contratual,


seja por processo licitatório ou por contratação direta, pretende que o
objeto seja íntegra e fielmente executado. Nesse sentido, destaca-se
que o contrato deverá ser executado fielmente pelas partes, de acordo
com as cláusulas avençadas e com as normas da Lei nº 14.133/2021,
respondendo cada parte pelas consequências de sua inexecução total ou
parcial (art. 115).
Uma das principais etapas necessárias para isso é a atinente ao
recebimento do objeto, qual seja a “[…] declaração ou confirmação da

18
“Há situações que podem autorizar o contratado a pretender a extinção do negócio jurídico.
No caso, ele terá direito a assim o fazer nas hipóteses listadas no § 2º do art. 137, as quais,
na nossa ótica, são taxativas” (HEINEN, Juliano. Comentários à lei de licitações e contratos ad-
ministrativos. Salvador: Juspodivm, 2021, p. 694)
19
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 35. ed. rev. e atual. São Paulo:
Malheiros, 2021, p. 346.
20
ZUCCO, Fabiano. Extinção contratual com a administração pública: é possível? Disponível em:
https://www.rcc.com.br/blog/extincao-contratual-com-a-administracao-publica-e-possivel/.
Acesso em: 16 nov. 2022.
Extinção dos contratos administrativos, recebimento do objeto,
pagamento e nulidade (NLLC, artigos 137-154) 319

Administração Pública de que o contrato foi executado de forma correta


e seu objeto foi cumprido pelo particular contratado de acordo com as
disposições do contrato […]”21, tanto que:

• deve ser definida na fase preparatória – inciso III, art. 18;


• deve estar contido como cláusula editalícia – “caput”, art. 25;
• é uma das informações que poderá constar do Termo de Referência,
na hipótese de compras – inciso II, § 1º, art. 40;
• o recebimento definitivo, quando for o caso, deve constar como
cláusula contratual necessária – inciso VII, art. 92;
• é previsto como marco para contagem de vigência de contrato
firmado sob o regime de fornecimento e prestação de serviço
associado – art. 113.

Embora a Lei nº 14.133/2021, em seu art. 2º, enumere que se aplica


a alienação e concessão de direito real de uso de bens; compra, inclusive
por encomenda; locação; concessão e permissão de uso de bens públicos;
prestação de serviços, os técnico-profissionais especializados; obras e
serviços de arquitetura e engenharia; e contratações de tecnologia da
informação e comunicação; ao tratar do recebimento, apenas faz referên-
cia a obras, serviços e compras.
Fica patente que a Administração Pública deve expedir regula-
mento específico sobre essa importante etapa de execução contratual,
detalhando o recebimento tanto para esses objetos, quanto para os
demais arrolados no citado art. 2º. Ademais, deverão ser definidos
os prazos e métodos para a realização dos recebimentos provisórios
e definitivos.
O recebimento provisório, enquanto “simples transferência da posse
do bem ou dos resultados do serviço para a Administração”:

[…] não acarreta liberação integral do particular


nem significa que a Administração reconheça que
o objeto é bom ou que a prestação foi executada
corretamente. Não importa quitação para o particular.
A Administração deverá, a partir do recebimento

21
FERNANDES, Felipe; PENNA, Rodolfo. Nova lei de licitações e contratos para a Advocacia Pública.
São Paulo: Editora Juspodivm, 2021, p. 235.
320 Christianne de Carvalho Stroppa

provisório examinar o objeto para verificar sua


adequação às exigências da lei, do contrato e
da técnica […]22

Produzindo, como principal efeito a “[…] liberação do particular dos


riscos sobre a coisa, a partir da transferência da posse. Se a coisa de perder
ou deteriorar, por evento não imputável ao particular, a Administração
arcará com as consequências”23.
O recebimento definitivo “pressupõe a análise e a avaliação detalhada
da prestação contratual, para sua consequente aceitação”24, a justificar
a diferença com o recebimento provisório.
O recebimento das obras e serviços pode ocorrer de forma:

a) provisória, quando verificado o cumprimento das exigências de


caráter técnico, mediante termo detalhado elaborado pelo respon-
sável por seu acompanhamento e fiscalização;
b) definitiva, mediante termo detalhado que comprove o atendimento
das exigências contratuais, sendo de responsabilidade de servidor
ou comissão designada pela autoridade competente.

No caso específico de projeto de obra, o recebimento definitivo pela


Administração não eximirá o projetista ou o consultor da responsabilidade
objetiva por todos os danos causados por falha de projeto.
Por sua vez, na hipótese de obra, o recebimento definitivo pela
Administração não eximirá o contratado, pelo prazo mínimo de cinco
anos, admitida a previsão de prazo de garantia superior no edital e no
contrato, da responsabilidade objetiva pela solidez e pela segurança dos
materiais e dos serviços executados e pela funcionalidade da construção,
da reforma, da recuperação ou da ampliação do bem imóvel, e, em caso de
vício, defeito ou incorreção identificados, o contratado ficará responsável
pela reparação, pela correção, pela reconstrução ou pela substituição

22
JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à lei de licitações e contratações administrativas. São Paulo:
Thomson Reuters Brasil, 2021.
23
JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à lei de licitações e contratações administrativas. São Paulo:
Thomson Reuters Brasil, 2021, p. 1512
24
TORRES, Ronny Charles Lopes de. Leis de licitações públicas comentadas. 12. ed. rev., ampl e atual.
São Paulo: Juspodivm, 2021, p. 716.
Extinção dos contratos administrativos, recebimento do objeto,
pagamento e nulidade (NLLC, artigos 137-154) 321

necessárias. “Note-se que a lei admite prazo de garantia superior, desde


que fixado no edital e no contrato”25.
Destaca-se que a Lei nº 14.133/2021 faz expressa referência à
responsabilidade objetiva, a significar não ser necessária a demons-
tração de dolo ou culpa da contratada para que fique caracterizada
sua responsabilidade.
Destaca-se que, não obstante tenha sido efetuado o recebimento
provisório ou definitivo, não será excluída a responsabilidade civil pela
solidez e pela segurança da obra ou serviço nem a responsabilidade
ético-profissional pela perfeita execução do contrato, nos limites estabe-
lecidos pela lei ou pelo contrato. Referido comando se alinha à previsão
contida no art. 119 da mesma legislação, que sinaliza a obrigação do
contratado em “[…] reparar, corrigir, remover, reconstruir ou substituir,
a suas expensas, no total ou em parte, o objeto do contrato em que se
verificarem vícios, defeitos ou incorreções resultantes de sua execução
ou de materiais nela empregados”26.
O recebimento das compras, por sua vez, pode ocorrer:

a) provisoriamente, de forma sumária, com verificação posterior da


conformidade do material com as exigências contratuais, a ser
efetuada pelo responsável por seu acompanhamento e fiscalização;
b) definitivamente, mediante termo detalhado que comprove o
atendimento das exigências contratuais, sendo de atribuição de
servidor ou comissão designada pela autoridade competente.

Possível afirmar que a Lei nº 14.133/2021 imprimiu maior celeridade


ao recebimento do objeto contratado, não mais prevendo a necessidade
de fazê-lo mediante termo circunstanciado ou recibo, por outro lado,
trouxe enorme insegurança jurídica ao suprimir o prazo máximo para o
recebimento provisório e definitivo do bem, produto ou serviço, deixando
que essa informação conste apenas do instrumento contratual27.

25
NOHARA, Irene Patrícia. Direito administrativo. 10. ed. São Paulo, Atlas, 2020, p. 482.
26
SOUZA, Alyne Gonzaga de. Art. 140. In: SARAI, Leandro (Org.). Tratado da nova lei de licita-
ções e contratos administrativos: Lei 14133/21 Comentada por Advogados Públicos. São Paulo:
Ed. Juspodivm, 2021, p. 1296
27
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio; ZOCKUN, Carolina Zancaner; ZOCKUN, Maurício. Artigo 140. In:
DAL POZZO, Augusto; CAMMAROSANO, Márcio; ZOCKUN, Maurício (Coord.). Lei de Licitações e Contratos
Administrativos Comentada: Lei 14.133/21. 1. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021, p. 631
322 Christianne de Carvalho Stroppa

Caso o objeto esteja em desacordo com o contrato, poderá ocorrer


sua rejeição, no todo ou em parte, “[…] exigindo-se, se isso for possível,
os reparos e correções necessários […]”28.
A aceitação poderá ser presumida caso a Administração venha a:

[…] adotar conduta incompatível com a rejeição e não


promover qualquer ressalva. Caso a Administração
receba a coisa e comece a utilizá-la de imediato,
sem qualquer protesto, tem-se de entender que a
aceitou. Não poderia pretender, posteriormente,
rejeitar a coisa. Teria ocorrido a preclusão lógica de
sua faculdade de rejeição da coisa, salvo eventual
vício oculto, que somente possa ser identificado
mediante o uso do objeto29.

Para possibilitar a perfeita análise do objeto, será possível a realização


de ensaios, testes e demais provas, exigidas por normas técnicas oficiais.
Aliás, nos termos do § 6º do art. 17, é admissível que o edital determine
a certificação do objeto contratual por parte de organização indepen-
dente acreditada perante o Inmetro como condição para a aceitação do
objeto contratado. Nesse caso, salvo disposição em contrário constante
do edital ou de ato normativo, essas análises poderão correr por conta
do contratado.

3. Pagamento

A obrigação de pagamento é gerada pela expedição da Nota de


Empenho (art. 61 da Lei nº 4.320/1964)30 independentemente de o serviço
ter sido prestado ou a mercadoria ter sido entregue. Esse documento
indica: nome do credor, a representação e a importância da despesa,
bem como a dedução desta do saldo da dotação própria.

28
FERRAZ, Luciano. Contratos na Nova Lei de Licitações e Contratos. In: DI PIETRO, Maria Sylvia
Zanella (Coord.). Licitações e contratos administrativos: inovações da Lei 14.133/21. Rio de
Janeiro: Forense, 2021, p. 200.
29
JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à lei de licitações e contratações administrativas. São Paulo:
Thomson Reuters Brasil, 2021, p. 1513.
30
A Nota de Empenho, em regra, substitui o Termo de Contrato, de conformidade com o art. 62, ‘caput’
e § 4º da Lei nº 8.666/1993 e no art. 95 da Lei nº 14.133/2021.
Extinção dos contratos administrativos, recebimento do objeto,
pagamento e nulidade (NLLC, artigos 137-154) 323

Dessa forma, segundo o art. 60 da mesma norma, é vedada a realização


de despesa sem prévio empenho, estando a sanção prevista no art. 4º,
inciso VI, do Decreto-lei nº 201, de 27 de fevereiro de 1967.
Depois, há a fase de liquidação da despesa que, segundo o art. 63,
consiste na verificação do direito adquirido pelo credor tendo por base
os títulos e documentos comprobatórios do respectivo crédito.
Ato subsequente, ocorre o pagamento31, que consiste na entrega de
numerário ao credor. Então, a rigor:

[…] e nos exatos termos da legalidade estrita,


a Administração Pública somente pode realizar
o pagamento após o cumprimento das etapas de
realização da despes e que trata a Lei nº 4.320/64,
quais sejam: a realização do empenho e a liquidação
da despesa prévias32.

Segundo o art. 64, a ordem de pagamento é o despacho exarado


por autoridade competente, determinando que a despesa seja paga.
Sobre o tema disciplina a Lei nº 14.133/2021:

Art. 25. O edital deverá conter o objeto da licitação


e as regras relativas à convocação, ao julgamento,
à habilitação, aos recursos e às penalidades da
licitação, à fiscalização e à gestão do contrato,
à entrega do objeto e às condições de pagamento.
Art. 92. São necessárias em todo contrato cláusulas
que estabeleçam:
……………………..
VI – os critérios e a periodicidade da medição,
quando for o caso, e o prazo para liquidação e
para pagamento.

Ante o referido dispositivo, resta claro que a Administração


Pública licitante pode, livremente, estabelecer as condições de

31
Determina o art. 62 da Lei nº 4.320/1967: O pagamento da despesa só será efetuado quando ordenado
após regular liquidação.
32
SANTOS, José Anacleto Abduch. Pandemia e pagamento antecipado. Blog Zênite. Disponível em: https://
www.zenite.blog.br/pandemia-e-pagamento-antecipado/. Acesso em: 16 nov. 2022.
324 Christianne de Carvalho Stroppa

pagamento a que tem direito o contratado pela execução do ajuste


e que no momento refletem melhor o interesse público. Apenas
deve se atentar que, nos termos do inciso IV, §  2º, art.  137,
da Lei nº 14.133/2021, o contratado passa a ter o direito de extinguir o
contrato caso ocorra atraso superior a dois meses, contado da emissão
da nota fiscal, dos pagamentos ou de parcelas de pagamentos devidos
pela Administração.
Aliás, diversamente da Lei nº 8.666/1993, a Nova Lei de Licitações
e Contratos Administrativos não estabelece expressamente o prazo para
o pagamento, devendo a matéria ser objeto de regulamentação por cada
ente federativo.
A regra para a Administração Pública é no sentido de que o pagamen-
to (obrigação) ocorra somente após a execução do contrato pelo parti-
cular ou de parcela deste (direito). De acordo com a Lei nº 4.320/1964,
o pagamento somente pode ser realizado após a liquidação da despesa,
a qual “[…] consiste na verificação do direito adquirido pelo credor
tendo por base os títulos e documentos comprobatórios do respectivo
crédito […]” (art. 63)33.
Nos termos da lei, por conseguinte, o pagamento da despesa está
condicionado ao procedimento prévio de liquidação, cuja finalidade é a
constatação do direito do credor diante dos documentos comprobatórios
do respectivo crédito. No que diz repeito aos créditos decorrentes de
fornecimentos e prestações de serviços, a exigência contida no inciso III do
§ 2º do dispositivo em análise expressa a obrigatoriedade da precedência
do adimplemento da obrigação ao efetivo pagamento, o que implica em
proibição de pagamento antecipado.
Portanto, a realização do pagamento pela Administração exige o adimple-
mento das obrigações contratuais pelo contratado, o que, na forma do
art. 40, § 3º, da Lei nº 8.666/1993, ocorre com a “[…] prestação do serviço,

33
Artigo 63 – A liquidação da despesa consiste na verificação do direito adquirido pelo credor, tendo por
base os títulos e documentos comprobatórios do respectivo crédito.
§ 1º – Essa verificação tem por fim apurar:
I – a origem e o objeto do que se deve pagar;
II – a importância exata a ser paga;
III – a quem se deve pagar a importância, para extinguir a obrigação.
§ 2º – A liquidação da despesa por fornecimentos feitos ou serviços prestados terá por base:
I – o contrato, ajuste ou acordo respectivo;
II – a nota de empenho;
III – os comprovantes de entrega do material ou da prestação do serviço.
Extinção dos contratos administrativos, recebimento do objeto,
pagamento e nulidade (NLLC, artigos 137-154) 325

a realização da obra, a entrega do bem ou de parcela deste, bem como


qualquer outro evento contratual a cuja ocorrência esteja vinculada a emissão
de documento de cobrança […]”. Mesmo que a Lei nº 14.133/2021 não tenha
redação semelhante, a ideia que se coloca é a mesma.
Ainda, importante verificar que a caracterização do adimplemento
contratual, no âmbito das contratações públicas, pressupõe a realização do
recebimento do objeto pela Administração. Nesses moldes, o recebimento
do objeto pela Administração constitui outro requisito indispensável para
a regular realização do pagamento.
Cumpridos os requisitos enumerados, resta à Administração efetuar
o pagamento devido pela regular execução do ajuste. O principal efeito
da realização do pagamento é a extinção da obrigação. Isso significa que
o pagamento, como regra, importa o reconhecimento de que as parcelas
ajustadas foram realizadas no modo e tempo devidos, conferindo quitação
ao contratado e liberando-o das obrigações assumidas.
O principal efeito gerado a partir do pagamento do contrato pela
Administração é a extinção da relação jurídica firmada com o particular,
seja quanto às parcelas contratuais executadas e pagas, seja quanto à totali-
dade das obrigações contratuais. E, para que isso ocorra regularmente,
é necessário que o particular execute e entregue o objeto e a Administração
realize seu recebimento.
Como consequência, com o intuito de garantir que a Administração
Pública efetue o pagamento, indicou no art. 141 a obrigatoriedade de
ser observada uma ordem cronológica para cada fonte diferenciada de
recursos, subdividida nas seguintes categorias: fornecimento de bens;
locações; prestação de serviços; e realização de obras34. Desde que previa-
mente justificada e posterior comunicação ao órgão de controle interno da
Administração e ao tribunal de contas competente, poderá a autoridade
competente alterar referida ordem cronológica.
Outro ponto inovador se refere às regras de remuneração variá-
vel (art. 144), lembramos, apenas, que já havia previsão na Lei
nº 12.462/2012 (RDC).
Na Lei nº 14.133/2021, foi prevista a remuneração variável vinculada
ao desempenho do contratado. Esse tipo de contratação, foi indicada para
todos os objetos (obras, fornecimentos e serviços, inclusive de engenharia).

34
Recentemente foi regulamentada pela Instrução Normativa SEGES/ME nº 77/2022.
326 Christianne de Carvalho Stroppa

Em síntese:

[…] os critérios para esses pagamentos se baseiam: metas,


padrões de qualidade, critérios de sustentabilidade
ambiental e prazos de entrega. Todas as regras devem
estar estabelecidas no edital de licitação e no contrato.
Inclusive poderá haver ajustes percentuais sobre o valor
economizado, observando as regras a serem dispostas
no regulamento, ainda pendente35.

Acerca da possibilidade da realização de pagamento antecipado,


nos termos do § 1º, art. 145, da Lei nº 14.133/2021, Ronny Charles
Lopes de Torres, lembrando que a regra é que o mesmo não deva
ser utilizado pela Administração, alerta, ante a vantagem ou até
que seja o meio para o atendimento da necessidade administrativa,
que sua admissão:

[…] deve propiciar sensível economia de recursos


ou representar condições indispensável para a
obtenção do bem ou para a prestação do serviço.
Além disso, deverá ser previamente justificada
no processo licitatório e expressamente prevista
no edital de licitação ou instrumento formal de
contratação direta36.

Daí por que não nos parece exagerado afirmar que se impõe como
dever do Administrador aproveitar as peculiaridades do mercado, diante de
conjuntura favorável, visando garantir preços estáveis para os insumos de
que necessita para a prestação de suas atividades públicas.
Destarte, por envolver risco de não recebimento das mercadorias,
deve a Administração se revestir de meios suficientes para salvaguardar a
verba pública, com a finalidade de garantir o cumprimento das obrigações
pelo contratado ou de reaver os recursos empregados.

35
FURTADO, Madeline Rocha; VIEIRA, Antonieta Pereira. As Regulamentações da Lei nº 14.133/2021 –
o que ainda virá por aí? ONLL. Disponível em: https://www.novaleilicitacao.com.br/2022/08/02/
as-regulamentacoes-da-lei-no-14-133-2021-o-que-ainda-vira-por-ai/. Acesso em: 16 nov. 2022.
36
TORRES, Ronny Charles Lopes de. Leis de licitações públicas comentadas. 12. ed. rev., ampl e atual.
São Paulo: Ed. Juspodivm, 2021, p. 730.
Extinção dos contratos administrativos, recebimento do objeto,
pagamento e nulidade (NLLC, artigos 137-154) 327

Para tanto, deverá estar previsto no contrato a ser firmado e,


objetivando assegurar o adimplemento das obrigações contratuais,
a exigência de garantia suficiente para cobrir o valor dos serviços,
nas modalidades previstas na Lei de Licitações e Contratos – art. 96
da Lei nº 14.133/2021.

4. Nulidades

Uma vez reconhecida a invalidade, seja no procedimento licitatório


ou na execução contratual, seu expurgo pode ser efetuado das seguintes
formas: (i) invalidação; (ii) convalidação; e (iii) saneamento.
Nas lições de Weida Zancaner:

a) A invalidação consiste na fulminação do ato ou da relação jurídica


por ele gerada com efeitos ex tunc, retroativos, isto é, desde o
instante de seu nascimento.
Portanto, com a invalidação visa-se, mediante um expediente
jurídico, reproduzir o status quo ante, ou seja, situação símile à
existente antes da edição do ato viciado, por meio da eliminação do
ato ou da relação jurídica por ele gerada, com efeitos retroativos.
b) A convalidação é o suprimento da invalidade, por ato da Administração
Pública, com efeito retroativo. Consiste em um ato, exarado pela
Administração Pública, que deve se referir forçosamente ao ato
a convalidar, para suprir seus defeitos e resguardar os efeitos por
ele produzidos.
c) O saneamento, por sua vez, é a estabilidade de um ato inválido
pelo decurso do tempo ou o suprimento da invalidade por ato
do particular37.

A convalidação apenas se coloca como precedente à invalidação


quando o ato puder ser corrigido, ou seja, “quando o ato possa ser produ-
zido validamente no presente”38.

37
ZANCANER, Weida. Convalidação dos atos administrativos. Enciclopédia Jurídica da PUC. Disponível em:
https://enciclopediajuridica.pucsp.br/verbete/8/edicao-1/convalidacao-dos-atos-administrativos.
Acesso em: 19 nov. 2022.
38
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 35. ed. rev. e atual. São Paulo:
Malheiros, 2021, p. 389.
328 Christianne de Carvalho Stroppa

Alerta Celso Antônio Bandeira de Mello que os atos administrativos


“[…] praticados em desconformidade com as prescrições jurídicas
são inválidos. A noção de invalidade é antitética à de conformidade
com o Direito (validade) […]”39, como decorrência, o “[…] princípio
da legalidade importaria sempre à Administração o dever de invalidar
seus atos eivados de vícios, para restaurar a ordem jurídica por ela
mesma ferida.”40.
Entretanto, sendo o procedimento licitatório, bem como a execu-
ção contratual, um processo ampliativo de direito, a doutrina destaca
a ocorrência de ‘barreiras’ à sua invalidação41, haja vista a presença,
ao lado do princípio da legalidade, de outros princípios a serem respei-
tados, seja por

[…] se referirem ao Direito como um todo –


como, por exemplo, o princípio da segurança
jurídica –, ou por serem protetores do comum
dos cidadãos – como, por exemplo, a boa-fé,
princípio que também visa a protege-los quando
de suas relações com o Estado42.

Dentre as barreiras existentes, a estabilização das relações jurídicas


implica, como destacado por Bruno Aurélio, que cabe ao agente competente
verificar, analisando o caso concreto, se:

[…] [a] situação jurídica criada pelo ato viciado atrai


proteção jurídica que imponha sua permanência como
meio mais eficaz de o ordenamento ser restabelecido.
Isso não significa dizer que caberá ao administrador
avaliar o que lhe parece ser o mais adequado ao sistema
jurídico, mas que a conjugação de determinados fatores

39
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. p. 379.
40
ZANCANER, Weida. Da convalidação e da invalidação dos atos administrativos. 3. ed., São Paulo:
Malheiros, 2008, p. 64-65.
41
“Tais barreiras nada mais são que fatores impeditivos da invalidação, isto é, fatores que impedem o
exercício do dever de invalidar, e que podem ser extraídos do próprio ordenamento jurídico.” (SIMÕES,
Mônica Martins Toscano. O processo administrativo e a invalidação dos atos viciados. São Paulo:
Malheiros, 2004, p. 152-153).
42
ZANCANER, Weida. p. 74.
Extinção dos contratos administrativos, recebimento do objeto,
pagamento e nulidade (NLLC, artigos 137-154) 329

de ordem normativa determinará a estabilização do


ato ou o dever de sua retirada43.

E, na mesma senda, assim dispõe Almiro do Couto e Silva:

É importante que se deixe bem claro, entretanto, que o


dever (e não o poder) de anular os atos administrativos
inválidos só existe quando, no confronto entre o
princípio da legalidade e o da segurança jurídica,
o interesse público recomende que aquele seja
aplicado e este não. Todavia, se a hipótese inversa
verificar-se, isto é, se o interesse público maior for
o de que o princípio aplicável é o da segurança jurídica
e não o da legalidade da Administração Pública,
então, a autoridade competente terá o dever (e não
o poder) de não anular, porque se deu a sanatória do
inválido, pela conjunção da boa-fé dos interessados
com a tolerância da Administração… Deixando o ato
de ser inválido, e dele havendo resultado benefícios
e vantagens para os destinatários, não poderá ser
mais anulado, porque, para isso, falta precisamente
o pressuposto da invalidade44.

Em suma, mesmo que não válida a condição posta, certo que “[…]
a proteção diretamente conferida pelos princípios gerais do Direito, capitanea-
dos pelos princípios da segurança jurídica e da boa-fé, é, de per si, impeditiva
da invalidação, ou seja, mantenedora dessas declarações estatais”45.
Em complemento à defesa da manutenção dos atos praticados,
destaca-se o contido no art. 20 da Lei nº 13.655/2015, que alterou a
Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB), in verbis:

Art. 20. Nas esferas administrativa, controladora


e judicial, não se decidirá com base em valores

43
AURÉLIO, Bruno. Atos administrativos ampliativos de direitos. São Paulo: Malheiros, 2011, p 200,
acréscimo nosso.
44
SILVA, Almiro do Couto e. Princípios da legalidade da Administração Pública e de segurança jurídica
no Estado de Direito contemporâneo. RDP 84/61. São Paulo: RT, out./dez., 1987, grifo nosso.
45
AURÉLIO, 2011, p. 200-201.
330 Christianne de Carvalho Stroppa

jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as


consequências práticas da decisão.
Parágrafo único. A motivação demonstrará a
necessidade e a adequação da medida imposta ou
da invalidação de ato, contrato, ajuste, processo
ou norma administrativa, inclusive em face das
possíveis alternativas.

Para Marçal Justen Filho46, o art. 20 da LINDB é orientado a reduzir


a indeterminação das decisões estatais, que muitas vezes se restringe a
invocar princípios abstratos.
Segundo ele, o processo decisório exige a concretização de normas
e valores ideais, o que impõe tomar em consideração as situações da
realidade. Se uma norma pode propiciar diferentes conclusões para o
caso concreto, é indispensável analisar os potenciais efeitos pertinentes
a cada qual. Essa exigência é ainda mais relevante em vista do princípio
da proporcionalidade. É inviável aplicar a proporcionalidade sem tomar
em vista os efeitos que a opção hermenêutica produzirá. O parágrafo
único do art. 20 admite, além disso, adotar soluções alternativas à
simples invalidação de um provimento administrativo nas hipóteses de
vícios ou defeitos.
Acrescenta Justen Filho que as inovações introduzidas pela Lei
nº 13.655/2018 destinam-se preponderantemente a reduzir certas
práticas que resultam em insegurança jurídica no desenvolvimento
da atividade estatal. O art. 20 relacionar-se-ia a um dos aspectos
do problema, versando especificamente sobre as decisões proferidas
pelos agentes estatais e fundadas em princípios e valores de dimensão
abstrata. A finalidade buscada seria reduzir o subjetivismo e a super-
ficialidade de decisões, impondo a obrigatoriedade do efetivo exame
das circunstâncias do caso concreto, tal como a avaliação das diversas
alternativas sob um prisma de proporcionalidade.
Sob esse prisma, caso se decida pela invalidação do certame, deve-se,
obrigatoriamente, indicar as consequências práticas para o Tribunal,

46
JUSTEN FILHO, Marçal. Artigo 20 da LINDB — Dever de transparência, concretude e proporcionalidade nas
decisões públicas. Revista de Direito Administrativo, Edição Especial – Direito Público na Lei de Introdução
às Normas de Direito Brasileiro – LINDB – Lei nº 13.655/2018, Rio de Janeiro, nov. 2018, p. 13-41.
Extinção dos contratos administrativos, recebimento do objeto,
pagamento e nulidade (NLLC, artigos 137-154) 331

considerando a importância e relevância do objeto licitado e o impacto


da não concretização da contratação.
Por oportuno, não obstante ainda não adotada no âmbito do Tribunal,
merece ser apontada a redação do art. 147 da Lei nº 14.133/2021 –
Nova Lei de Licitações e Contratações, segundo a qual, constada a irregu-
laridade no procedimento licitatório, não sendo possível o saneamento,
a declaração de nulidade somente será adotada na hipótese em que
se revelar medida de interesse público, avaliando-se, como aspectos,
os descritos nos incisos desse artigo.
Em reforço à sugestão de manutenção do ato praticado, como opção
à convalidação e à invalidação, destaca-se a construção de uma “nova”
teoria da invalidação na seara do Direito Administrativo, incorporando
ideias consequencialistas e mais próximas da realidade de uma socie-
dade complexa, eis que pautadas na análise dos riscos e nos impactos
econômico-sociais, em um contínuo movimento pendular entre o mundo
fenomênico e o arcabouço jus normativo.
Importante análise do tema, colocando a questão de forma didática,
conclui:

[…] que a evolução (inclusive gramatical) crescente das


regras que envolvem as condições para o desfazimento
do ato ou do contrato administrativo e as exigências
da sociedade complexa tornaram anacrônica a teoria
das invalidades do Direito Administrativo Clássico.
O disciplinamento das condições para o desaparecimento
do ato ilegal criador de direitos não pode mais ser
estruturado apenas em torno do princípio da legalidade,
exceto se consideramos a legalidade em seu aspecto
funcional, ou seja, como produto de uma série de outros
princípios voltados a equilibrar os interesses envolvidos
nas contratações públicas.
Desta feita, ao analisar-se a eventual nulidade de
um ato ou contrato administrativo, deve-se levar
em conta as consequências práticas da decisão
e, principalmente, a estabilização dos interesses
envolvidos. Continuar a apresentar o regime de
invalidades levando em consideração apenas a summa
diviso clássica levaria a distorcer a percepção desse
equilíbrio e enviar um sinal errado ao destinatário da
norma. Por isto, o Novo Marco Legal de Contratações
332 Christianne de Carvalho Stroppa

Públicas, sobretudo pelo art. 146, tende a promover


importante avanço na conformação de uma teoria
das invalidades menos dissonante da realidade47.

Ou seja, a invalidação pode ser colocada como última ratio, conside-


rando e ponderando-se os interesses públicos envolvidos, o que, amparado
também no princípio da proporcionalidade, que deve gerir todas as relações
administrativas, pode tornar imperiosa a necessidade de manutenção do
certame realizado. Como consequência, para que seja possível a anulação de
contratos e de procedimentos licitatórios, a Administração Pública deverá,
em princípio, analisar todos os aspectos elencados nos incisos do art. 147,
bem como outros fatores de interesse público que entender pertinente.

Conclusão

A Lei nº 14.133/2021 chegou para implementar diversas mudanças,


seja no processo licitatório, seja na execução contratual, especialmente
quanto aos institutos da extinção dos contratos, recebimento do objeto,
pagamentos e nulidades, se tomada como referência a Lei nº 8.666/1993.
Para garantir que o contrato seja fielmente cumprido pelas partes,
prevê a Lei nº 14.133/2021 a necessidade de que o instrumento contratual
indique regras referentes a prazo de pagamento, recebimento do objeto,
bem como redesenha as hipóteses de sua extinção, inclusive afirmando
ter o contratado direito à extinção unilateral, por exemplo, quando o
atraso do pagamento for superior a dois meses, contado da emissão da
nota fiscal, dos pagamentos ou de parcelas de pagamentos devidos pela
Administração (inciso IV, § 2º, art. 137).
Em complemento, como garantia de que o objeto será executado,
com fundamento na ideia de consequencialismo balizada pela LINDB,
a invalidação do contrato se coloca como uma decorrência do atendi-
mento do interesse público envolvido na contratação.
Evidente que há muitas novidades a serem implementadas.

47
TEIXEIRA JÚNIOR, Flávio Germano de Sena; NÓBREGA, Marcos. A Teoria das Invalidades na Nova Lei de
Contratações Públicas e o equilíbrio dos interesses envolvidos. Disponível em: https://ronnycharles.
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Extinção dos contratos administrativos, recebimento do objeto,
pagamento e nulidade (NLLC, artigos 137-154) 333

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733

O regime de nulidades dos contratos


administrativos na Lei nº 14.133/21

Floriano de Azevedo Marques Neto1


Professor

Natalia de Sousa da Silva2


Advogada

Sumário: Introdução. 1. A Súmula 473 e o ranço da nulidade mandatória.


2. A evolução do tema da nulidade como comando automático. 2.1. Devido
processo legal. 2.2. Dever de Indenizar. 3. Os efeitos da nulidade incon-
sequente. Referência a casos. 4. O regime dos artigos 20 e 21 da LINDB.
5. O novo regime de nulidades da NLCP. Conclusão. Bibliografia.

Resumo: o artigo tem como objetivo retratar a evolução da disciplina


das nulidades dos contratos administrativos, identificando a desidratação
e a superação da nulidade mandatória insculpida na Súmula 473 do STF,
especialmente em face das garantias previstas no Estado Democrático
de Direito. Nesse sentido, demonstra-se que a LINDB foi um passo importante
para compatibilizar o interesse público com o regime de nulidades vigente
na Lei nº 8.666/1993, sendo também responsável por inspirar os preceitos
fundamentais do tema na Lei nº 14.133/2021, “Nova de Licitações e
Contratos Públicos”. Contudo, compreende-se que foi essa última lei que
verdadeiramente instaurou um novo regime para a declaração de nulidade
em contratos administrativos, reconhecendo a excepcionalidade e exigindo
um exame de racionalidade prévia, especialmente sobre efeitos da nulida-
de acerca do interesse público remanescente na contratação irregular.

1
Professor Titular de Direito Administrativo da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP).
Doutor e Livre-Docente pela mesma Universidade.
2
Especialista em Direito Administrativo pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP)
e Mestra em Direito do Estado pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). Advogada
associada do escritório Manesco, Ramires, Perez, Azevedo Marques Sociedade de Advogados.
338 Floriano de Azevedo Marques Neto e Natalia de Sousa da Silva

Palavras-chave: Contratos Administrativos. Nulidades. Nova Lei


de Licitações – Lei nº 14.133/2021. Controle. Lei de Introdução às Normas
do Direito Brasileiro – LINDB.

Introdução

Como temos há algum tempo defendido, a Lei nº 14.133/2021, também


conhecida como “Nova Lei de Licitações e Contratos Públicos”, ou apenas
NLCP, aproxima-se muito mais do que se afasta do teor de sua antecessora.
Isso porque inspira-se e segue os mesmos moldes da Lei nº 8.666/1993,
não apresentando conteúdo verdadeiramente disruptivo perante o sistema
de licitações e contratos públicos que já vige no Brasil há quase 30 anos3.
Subsidiam nosso entendimento as incorporações de práticas
já positivadas, entendimentos jurisprudenciais e doutrinários já amplamente
difundidos na área das contratações públicas, sem grandes inovações
no cenário jurídico existente. São exemplos as consolidações em uma
única norma do pregão como modalidade licitatória (Lei nº 10.520/2002)
e os mecanismos oriundos Regime Diferenciado de Contratações – RDC
(Lei nº 12.462/2011).
É como se a nova lei viesse para consolidar consensos que foram
formados à luz da antiga, havendo, desse modo, poucas alterações
que possam ser consideradas como verdadeiras inovações.
Poucas em quantidade, mas grandes em sua importância. As inovações
trazidas pela nova norma denunciam que ela não passou à margem
de uma das maiores preocupações do direito administrativo contem-
porâneo: a racionalidade do controle da administração pública e sua
necessária compatibilização com o interesse público.
Na perspectiva do controle dos procedimentos licitatórios
e dos contratos, entendemos que a NLCP inaugurou um novo regime legal
para a decretação de nulidade dos contratos administrativos, caracterizado
pela excepcionalidade, eficiência e segurança jurídica.
Nesse sentido, a ideia primordial da nova lei é a excepcionalidade
da anulação dos contratos e das licitações. Basta ver que o art. 147
da Lei nº 14.133/2021 estabelece que a constatação de irregularidades

MARQUES NETO, Floriano de Azevedo. Uma Lei que Vale pelo que Revoga – Uma Panorâmica Sobre
3

a Lei nº 14.133/2021. Revista do Advogado, São Paulo, v. 153, p. 7-12, 2022.


O regime de nulidades dos contratos
administrativos na Lei nº 14.133/21 339

no procedimento licitatório ou na execução de contratos administrativos


apenas ensejará sua suspensão ou a sua nulidade quando comprovada
a compatibilidade dessas medidas com o interesse público.
Para a avaliação do que seria compatível com o interesse público,
a própria NLCP apresenta critérios a serem observados pela administração
pública contratante, estando entre eles o custo para a realização de uma
nova licitação ou celebração de um novo contrato (art. 147, inc. X).
Diante disso, na sistemática da NLCP, nem toda irregularidade
em licitação ou contrato administrativo implicará na nulidade do proce-
dimento ou do ajuste. A nulidade torna-se situação excepcional e deve
ser produto do exercício da racionalidade administrativa, segundo
critérios por ela mesma estabelecidos, os quais imputam ao administrador
a obrigação de avaliar a conveniência da decretação de nulidade à luz
do interesse público na contratação e das consequências sociais, ambientais
e econômicas dessa decisão.
Vemos que esse cenário não era regra na legislação anterior,
uma vez que a interpretação conjunta do disposto pelos §§ 1º e 2º do art. 49
e pelo caput do art. 59, ambos da Lei nº 8.666/1993 permitia uma inter-
pretação bastante formalista da nulidade dos contratos administrativos,
de modo que toda e qualquer ilegalidade implicaria mandatoriamente
na anulação do ajuste. Como veremos no decorrer deste artigo, a doutrina
caminhou no sentido de mitigar esse formalismo, o que, por sua vez,
não retira os méritos da nova lei de licitações, que tende a afastar
de uma vez por todas a nulidade mandatória.
Destarte, o art. 148 da Lei nº 14.133/2021 destaca expressamente
a imprescindibilidade da análise prévia dos efeitos da decretação
de nulidade sobre o interesse público, embora, de outro lado, mantenha
parte da essência do art. 59 da Lei nº 8.666/1993 ao atribuir efeitos
ex tunc à decisão de nulidade do contrato administrativo. Assim, de forma
bastante contraditória, a ideia de que é possível extirpar o procedi-
mento ou a contratação ilegal do mundo fático, como se ela nunca
tivesse existido, mantém-se.
A contradição é observada pela mitigação dessa ficção jurídica nos
próprios termos da nova lei, eis que a NLCP prevê um regime de transição
entre a decretação de nulidade do contrato administrativo e a celebração
de um novo ajuste em substituição ao anulado. Permite, desse modo,
que os efeitos da nulidade decretada tenham eficácia diferida para
340 Floriano de Azevedo Marques Neto e Natalia de Sousa da Silva

momento futuro (art. 148, § 2º), de modo que não só reconhece como


também autoriza que o contrato anulado continue a produzir efeitos.
Esses breves e iniciais comentários já evidenciam que
a Lei nº 14.133/2021 não trouxe um novo regime de nulidades dos contratos
públicos por meio da revogação da disciplina anterior.
Em verdade, pode-se dizer que a nova lei de licitações adequou
o regime de nulidades dos contratos aos ditames da Constituição de 1988,
especialmente por privilegiar a instrumentalidade da administração
à consecução do interesse público. A adequação, contudo, foi de tal profun-
didade que fez surgir um novo sistema ou regime, expressando mudanças
que a doutrina e os contratados há muito tempo esperavam no âmbito
do Estado Democrático de Direito.
As medidas estabelecidas para o tema somam-se ao movimento
de busca pela racionalidade das decisões administrativas. Movimento
esse já positivado pela Lei nº 13.655/2018 que, alterando substancialmente
o Decreto-Lei nº 4.657/1942, também denominado Lei de Introdução
às Normas do Direito Brasileiro – a LINDB, previu parâmetros de controle dos
atos administrativos, compatibilizando-o com a ideia de uma administração
pública focada em resultados4.
A confluência entre os parâmetros de controle contidos desde
a Lei nº 13.655/16 na LINDB e aqueles previstos na NLCP é expressamente
mencionada nessa última norma, que, em seu art. 5º, determinou a obser-
vância do Decreto-Lei nº 4.657/1942 na aplicação da nova lei de licitações.
Nessa perspectiva, é possível afirmar que tanto a LINDB reformada
quanto a NLCP estabelecem de forma clara a compatibilidade entre
os meios de controle e os fins almejados pela administração, sendo esses
últimos sempre relacionados à consecução do interesse público, exigindo,
desse modo, uma verdadeira análise de eficiência prévia às decisões
de decretação de nulidade nos contratos administrativos.
No mais, se há um consenso sobre as alterações na LINDB é que elas
sobrevieram com o fito de privilegiar a segurança jurídica no controle,
o que está claramente descrito em seu art. 30, segundo o qual “[…]
as autoridades públicas devem atuar para aumentar a segurança jurídica

4
PAGANI DE SOUZA, Rodrigo. Em busca de uma administração pública de resultados. In: PAGANI DE SOUZA,
Rodrigo; PEREZ, Marcos Augusto. Controle da Administração Pública. Belo Horizonte: Fórum, 2017.
O regime de nulidades dos contratos
administrativos na Lei nº 14.133/21 341

na aplicação das normas […]”. Esse é outro importante ponto de confluência


entre a LINDB e a NLCP.
Nesse aspecto, a nova lei de licitações substitui a mera imperiosidade
da autotutela administrativa na anulação dos seus próprios atos pelas
ideias de exercício razoável dessa prerrogativa e de garantia das legítimas
expectativas geradas diante da contratação. Assim, o que vemos é que
a disciplina parametrizada das nulidades contratuais garante segurança
jurídica para todas as partes envolvidas direta (contratante e contratado)
e indiretamente (sociedade).
No decorrer desse artigo, demonstraremos que as alterações
realizadas na legislação das contratações públicas, especificamente
acerca do tema da nulidade dos contratos, são decorrentes de tendências
do direito administrativo brasileiro atual, em especial da superação da
ideia autoritária de supremacia do interesse público, que, há muito tempo,
tem se demonstrado incompatível com a heterogeneidade dos “interesses
públicos” hodiernos e com os valores fundamentais do Estado Democrático
de Direito5, entre eles o devido processo legal.

1. A Súmula nº 473 e o ranço da nulidade mandatória

A autotutela, nas palavras de Maria Sylvia Zanella Di Pietro,


é a prerrogativa que confere à administração “[…] a possibilidade de
anular os [seus atos] ilegais e revogar os inconvenientes ou inoportunos,
independentemente de recurso ao Poder Judiciário […]”6.
Editada em 1969 pelo Supremo Tribunal Federal – STF, a Súmula nº 4737
é o exemplo recorrente de consagração da autotutela administrativa,
mas, a bem da verdade, parece-nos estar com os dias contados.
Cumpre destacar que, logo em sua primeira parte, a Súmula prevê
que “[…] a administração pode anular seus próprios atos, quando eivados
de vícios que os tornam ilegais, porque deles não se originam direitos […]”.
Expressa-se, portanto, a ideia de que é possível a anulação de ato ilegal

5
MARQUES NETO, Floriano de Azevedo. Regulação estatal e interesses públicos. São Paulo: Malheiros,
2002, p. 144-170.
6
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 25. ed. São Paulo: Atlas, 2012, p. 70.
7
Súmula 473. A administração pode anular seus próprios atos, quando eivados de vícios que os tornam
ilegais, porque deles não se originam direitos; ou revogá-los, por motivo de conveniência ou oportu-
nidade, respeitados os direitos adquiridos, e ressalvada, em todos os casos, a apreciação judicial.
342 Floriano de Azevedo Marques Neto e Natalia de Sousa da Silva

na própria esfera administrativa, sem que seja necessária a interpelação


judicial. Ocorre que, por um longo período, a possibilidade de anulação
prevista na Súmula ganhou contornos de dever.
Nessa perspectiva, permitiu-se duas interpretações bastantes
perigosas sobre a Súmula nº 473 do STF: a nulidade mandatória
e o não reconhecimento dos direitos gerados a partir dos atos anulados.
Dizemos perigosas, pois essas violam princípios fundamentais do Estado
Democrático de Direito, com destaque para a segurança jurídica.
A nulidade mandatória configura-se a partir da compreensão
de que a existência de todo e qualquer tipo de ilegalidade é suficiente
para a peremptória anulação do ato viciado. Especialmente no contexto
pós-Constituição Federal de 1988, essa interpretação já vinha encontrando
dificuldades em ser admitida pela doutrina, que, libertando-se das amarras
da legalidade estrita e ciente dos desafios impostos pela necessidade de
um Estado mais ativo na consecução dos direitos e garantias fundamentais,
compreendia a impossibilidade de invalidar todo e qualquer ato adminis-
trativo ilegal sem, antes, tentar sanar a ilegalidade verificada.
Weida Zancaner afirmou ser possível transmutar o dever de anular
o ato administrativo ilegal no dever de não invalidar, seja por força
do princípio da segurança jurídica, seja por este aliado ao da boa-fé,
“quando em causa atos ampliativos de direitos”8.
Assim, haveria limites à nulidade do ato administrativo ilegal, os quais
superavam o mero formalismo consagrado na Súmula 473 e imputavam
à administração pública o dever de avaliar a conveniência da decretação
da nulidade do caso concreto à luz, principalmente, das consequências
dessa decisão9.
As conclusões alçadas pela doutrina foram pouco a pouco encontrando
respaldo na legislação. A exemplo disso, a Lei nº 9.784/1999, Lei do Processo
Administrativo Federal, passou a prever expressamente a possibilidade
de convalidação do ato administrativo quando este apresentar defeitos

8
ZANCANER, Weida. Da convalidação e da invalidação dos atos administrativos. 2. ed. São Paulo:
Malheiros, 2001, p. 110.
9
Sobre o tema, Juarez Freitas: “[…] a afirmação da autonomia e da juridicidade do princípio da boa-fé
ou da confiança do administrado na Administração Pública e, vice-versa, conduz, forçosa e logicamente,
ao reconhecimento de limites – menos formais do que substanciais para decretação da nulidade de um
ato administrativo, ou a anulação do mesmo […]”. FREITAS, Juarez. Repensando a natureza da relação
jurídico-administrativa e os limites principiológicos à anulação dos atos administrativos. in: Estudos
de Direito Administrativo. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 1997, p. 23-24.
O regime de nulidades dos contratos
administrativos na Lei nº 14.133/21 343

sanáveis (art. 55). Outros exemplos são as recentes alterações na LINDB


que, além de exigir a ponderação da decisão de nulidade em face de suas
futuras consequências, permitem que sejam celebrados compromissos para
eliminar irregularidades jurídicas na aplicação do direito público (art. 26).
Diante disso, doutrina e legislação colocaram a nulidade mandatória
em xeque, em razão de sua notória incompatibilidade com os valores
da Constituição Cidadã.
Somou-se a esse movimento de contestação da referida Súmula 473
a segunda interpretação dela advinda: o não reconhecimento dos direitos
gerados a partir dos atos anulados. De acordo com essa interpretação,
ainda calcada no formalismo excessivo, a ilegalidade do ato administrativo
e sua consequente decretação de nulidade, como dever da administração
pública no exercício da autotutela, poderiam justificar, por si só, eventual
privação de bens e direitos dos particulares.
Trata-se da ausência de qualquer ponderação sobre as consequências
da decisão de decretação de nulidade. Tal acepção, que em nada
se adequa ao direito fundamental ao devido processo legal, insculpido
no art. 5º, inc. LIV, da Constituição Federal de 1988, somente era admissível
no seio do Estado Antidemocrático em que a Súmula nº 473 foi editada.
Especialmente no âmbito das contratações públicas, as interpretações
conferidas ao entendimento sumular revelaram-se não só formalistas
como também autoritárias, ao negar a validade e a eficácia aos contratos,
que eram celebrados e/ou executados de boa-fé e, posteriormente,
declarados nulos, seja por ilegalidades em seus próprios termos ou
no bojo do procedimento licitatório10.
A Lei nº 8.666/1993 ao prever, em seu art. 59, que a decretação
de nulidade do contrato administrativo retroagiria, impedindo os efeitos
jurídicos do contrato e desconstituindo aqueles já produzidos, em certa
medida, ecoava o tratamento trazido pela Súmula nº 473, em que pese,
seja reconhecido o esforço dos §§ 2º e3º do seu art. 49, de compatibilizar

10
Sobre esse tema, destacamos a explicação de Marçal Justen Filho: “A temática da invalidação do ato
administrativo no Brasil vinha sendo submetida a enfoque formalista, que se tornou incompatível com
os princípios consagrados na Constituição de 1988. A doutrina costumava repetir lições hauridas no
passado e que traduziam concepções autoritárias do Estado, sem vínculo com o Estado Democrático
de Direito albergado presentemente. Nessa linha, pode lembrar-se o próprio entendimento consa-
grado na Súmula 473 do STF, em que se afirmava que do ato nulo não surgem direitos adquiridos.”.
JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos: Lei 8.666/1993.
18. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019, p. 1237.
344 Floriano de Azevedo Marques Neto e Natalia de Sousa da Silva

o procedimento decisório para nulidade dos contratos e das licitações com


o devido processo legal. A Lei nº 14.133/2021, embora mantenha a ideia
da retroatividade, impõe como regra a excepcionalidade da anulação,
o que contradiz o âmago da Súmula nº 473, que, como vimos, impõe
a nulidade como absolutamente mandatória.
Como aprofundaremos no tópico seguinte, as alterações legislativas
têm se encaminhado para enterrar as interpretações encetadas pela referida
Súmula, sendo esse cenário também visível a partir do novo regime
de nulidade dos contratos tratado na Lei nº 14.133/2021.
Há, desse modo, um ranço instaurado contra a Súmula nº 473,
STF, que, como sustentado por Egon Bockmann Moreira, não atende
às necessidades e à dinâmica do direito administrativo atual, por pressupor
a ideia de que a ilegalidade de um ato administrativo implica necessaria-
mente na sua nulidade absoluta11.

2. A evolução do tema da nulidade como comando automático

2.1 Devido processo legal

Os embates explicitados diante do disposto pela Súmula 473 do STF


denotam que o regime das nulidades dos atos e contratos administrativos
deve ser compatível com direitos fundamentais previstos na Constituição
de 1988, entre eles o devido processo legal.
Naquilo que se refere especificamente aos contratos administrativos,
é necessário destacar que a decretação de nulidade necessariamente
implicará em consequências ao contratado, as quais podem restringir
direitos previamente entabulados no ajuste anulado. Nessa perspectiva,
o contratado tem legítimo interesse na manutenção do contrato adminis-
trativo, de modo que sua participação no processo decisório da nulidade
é imprescindível para sua validade.
É dizer: um contrato não pode ser anulado sem que haja a participação
do contratado, a quem se viabiliza a oportunidade de defender seus
interesses na manutenção do ajuste.

11
MOREIRA, Egon Bockmann. Súmula 473: é hora de dizer adeus – Ela cumpriu seu papel, mas hoje traz
problemas. JOTA, Brasília, 01/10/2019. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/
colunas/publicistas/sumula-473-e-hora-de-dizer-adeus-01102019. Acesso em: 19 jan. 2023.
O regime de nulidades dos contratos
administrativos na Lei nº 14.133/21 345

Em verdade, por meio dos incisos LIV e LV do art. 5º da CF/88,


impede-se que a decretação de nulidade dos contratos seja automática,
pois os dispositivos em comento são categóricos ao estabelecer que
“[…] ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido
processo legal […]” e “[…] aos litigantes, em processo judicial ou adminis-
trativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla
defesa, com os meios e recursos a ela inerentes […]”, respectivamente.
Assim, os dispositivos constitucionais expressos no sentido de garantir
o devido processo legal, a ampla defesa e o contraditório, inclusive
no âmbito dos processos administrativos, foi mais um golpe na ideia
nulidade dos contratos como comando automático.
Como já mencionado, a Lei nº 8.666/1993, antecessora da NLCP,
ao tratar da nulidade do procedimento licitatório e ao afirmar que, quando
for nula licitação, nulo também será o contrato (§§ 2º e 3º do seu art. 49),
já assegurava o exercício do contraditório e da ampla defesa por parte
dos particulares interessados.
A evolução das normativas constitucional e infraconstitucional sobre
o tema denota que a prerrogativa da autotutela administrativa para
anulação de seus próprios atos foi compatibilizada com a necessidade
de processualização do direito administrativo, como uma tentativa
de equilibrar o controle interno das nulidades dos contratos com o
interesse particular.
Trata-se da aferição prática de um diagnóstico anunciado por
Maria Sylvia Zanella Di Pietro que, ao analisar o “[…] impacto das crises sobre as
características originais do direito administrativo […]”, anotou que, embora
as prerrogativas da administração continuem a existir na atual dinâmica
administrativista, sua existência é “[…] equilibrada em relação aos direitos
individuais, especialmente em decorrência da aplicação aos processos
administrativos do devido processo legal, com direito de defesa, direito
de recorrer, enfim, poder participar do processo […]”12.
São exatamente essas tentativas de equilibrar os interesses públicos
e privados, bem como de compatibilizá-los com os preceitos constitucionais
de processualização, que foram introduzidas na LINDB e fundamentam
a disciplina da NLCP sobre o tema da nulidade dos contratos administrativo.

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. O direito administrativo da crise. In: O Direito Administrativo
12

na Atualidade. Estudos em homenagem ao centenário de Hely Lopes Meirelles. São Paulo: Malheiros,
2017, p. 895.
346 Floriano de Azevedo Marques Neto e Natalia de Sousa da Silva

2.2 Dever de indenizar

Se, de um lado, o devido processo legal impede que haja a decretação


automática de nulidade dos contratos administrativos, de outro,
uma vez anulados, impõe-se à administração pública o dever de indenizar
os particulares que, de boa-fé, contrataram com o Estado.
Isso porque tanto a Lei nº 8.666/1993 quanto a Lei nº 14.133/2021
preveem a possibilidade de retroatividade da decisão que declara a nulidade
do contrato, ou do procedimento licitatório que o ensejou. Nessa perspectiva,
esclarece-se que a retroatividade visa a colocar todas as partes (privada
e estatal) na situação jurídica anterior à existência do ato ou contrato
administrativo anulado, eliminando, inclusive, eventuais prejuízos
decorrentes da sua anulação.
Marçal Justen Filho, ao tratar do tema comentando a Lei nº 8.666/1993,
aduz: “[…] o desfazimento do ato estatal e a reposição dos fatos no estado
anterior importa, de modo necessário, a eliminação dos prejuízos eventual-
mente sofridos por determinado sujeito, em virtude da eficácia fática dos
atos impugnados[…]”13.
Fica, pois, nítido que o objetivo é impedir o enriquecimento sem causa
da administração pública que, até a anulação do contrato, tenha recebido
os bens ou serviços oriundos do ajuste anulado.
Cumpre ressaltar que a Lei de Licitações anterior à Lei nº 14.133/2021,
no parágrafo único do seu art. 59, já previa a necessidade de indenização
do particular contratado “[…] pelo que houver executado até a data em
que ela for declarada [a nulidade do contrato] e por outros prejuízos
regularmente comprovados, contanto que não lhe seja imputável […]”.
O dever de indenizar é mantido no texto da NLCP no § 1º do seu art. 148,
que estabelece o pagamento de perdas e danos quando não for possível
a restituição das partes à situação anterior.

3. Os efeitos da nulidade inconsequente. Referência a casos

Como visto nos capítulos anteriores, a nulidade mandatória dos contratos


administrativos eivados de ilegalidades não se configura mais como uma
regra compatível com o ordenamento jurídico pós-Constituição de 1988.
Há, nesse sentido, necessidade de sopesamento das consequências
da declaração de nulidade dos contratos administrativos e da ilegalidade

13
JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos: Lei 8.666/1993.
18. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019, p. 1240.
O regime de nulidades dos contratos
administrativos na Lei nº 14.133/21 347

que macula o ajuste. Assim, passa a se compreender como plenamente


possível que, em detrimento da anulação do contrato, proceda-se à sua
regularização a posteriori.
A medida tem como objetivo evitar prejuízos aos interesses
da administração e do contratado pela declaração inconsequente
da nulidade dos contratos. Isso porque há casos em que a irregularidade
do contrato não implica necessariamente em dano ou iminência de dano ao
erário, à administração ou aos administrados, em contrapartida, a anulação
do ajuste pode, sim, por exemplo, levar à suspensão de serviços contínuos,
prejudicando a coletividade, ou ainda, ensejar contratação emergencial
mais cara – portanto menos vantajosa – para a realização do mesmo
serviço, que, por vezes, já vem sendo executado de maneira satisfatória.
A jurisprudência tem, antes mesmo da edição da NLCP, se deparado
com esses desafios, que exigem do julgador uma análise racional de compa-
tibilidade entre os meios de controle, suas consequências e a eficiência
administrativa na consecução do interesse público.
A solução adequada que tem sido encontrada não é a vetusta alternativa
peremptória prevista na Súmula 473 do STF. O que o foro cotidiano tem
exigido é coragem do julgador para analisar de forma ponderada as conse-
quências e alternativas possíveis frente ao caso concreto, sempre pautando-se
pelo animus de uma administração pública focada em resultados.
Como exemplo, em junho de 2020, foi submetido à apreciação do
Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo um pedido do Ministério Público
Estadual para declaração de nulidade de contrato administrativo de conces-
são de serviço de transporte público, sob o fundamento de que teria havido
cessão do contrato para terceiro à margem do regramento contratual.
A desembargadora relatora, ciente das consequências danosas que
a declaração de nulidade poderia causar no caso concreto, indeferiu
a liminar pleiteada pelo parquet apontando que a medida seria
“desnecessária e mais onerosa à Administração”, uma vez que

[…] a declaração de nulidade do contrato exigirá


a realização de uma contratação de emergência
por prazo inferior a dez meses, sendo pouco provável
o interesse de alguma empresa em razão do alto
investimento necessário e do pequeno prazo para
o retorno […]14.

14
TJ/SP, Agravo de Instrumento nº 2256387-56.2019.8.26.0000, rel. Des. Teresa Ramos Marques, j. pela
10ª Câmara de Direito Público em 26/06/2020.
348 Floriano de Azevedo Marques Neto e Natalia de Sousa da Silva

Em outro caso, o Tribunal de Contas da União entendeu não ser adequada


a declaração de nulidade em contrato administrativo vigente há mais
de dez anos. No Acórdão nº 2075/2021 – Plenário, o Ministro Raimundo
Carneiro consignou a necessidade de ponderação sobre a conveniência
da nulidade contratual, especialmente frente às consequências
do rompimento de uma relação jurídica estabilizada, cujos efeitos seriam
indesejáveis para as contratantes, implicando ainda em altos custos
de desmobilização, indenizações, perdas de investimentos e ações judiciais
por parte da Contratada. No julgado, o relator anotou que o:

[…] raciocínio coaduna-se com a jurisprudência desta


Corte de Contas, que em casos similares, mesmo
identificando vícios na formalização de contratos
ou certames que os precedem, vem optando pela
manutenção do vínculo, por entender que tal medida,
em alguns casos, resta mais favorável ao interesse
público […]15.

Assim, sem ainda adentrar ao mérito das alterações legislativas,


que tanto contribuem para uma avaliação racional da validade dos
contratos administrativos em face de suas consequências, o que vemos
é que a jurisprudência já apresenta, aqui e acolá, elementos para combater
a declaração de nulidade inconsequente dos contratos administrativos.

4. O regime dos artigos 20 e 21 da LINDB

As alterações promovidas pela Lei nº 13.655/2018 na LINDB destacam-


-se por instituir no direito positivo parâmetros racionais para o controle
da administração pública com base em princípios.
As principais contribuições para a formação dos referidos parâmetros
de controle são as inclusões da análise das consequências da decisão
controladora, bem como da exigência de proporcionalidade e razoabilidade
entre as medidas impostas pelo controle e as referidas consequências.
É para esse sentido que o os arts. 20 e 21 da LINDB caminham,
prevendo, muito antes da edição da Lei nº 14.133/2021, critérios, inclusive,
para a anulação dos contratos administrativos.

15
TCU, Acórdão n. 2075/2021 – Plenário, rel. Min. Raimundo Carreiro, julg. em 01/09/2021.
O regime de nulidades dos contratos
administrativos na Lei nº 14.133/21 349

Nesse sentido, o caput do art. 20 da LINDB exige do controlador interno


ou externo que, quando exercer suas competências com fundamento em
valores jurídicos abstratos, considere “as consequências práticas da decisão”.
A medida visa a estabelecer não só a efetividade do quanto decidido,
mas a compatibilidade da decisão controladora com os interesses gerais.
A disposição normativa é uma resposta aos controles desmedidos
e inconsequentes dos órgãos de controle externo quanto à administração
pública, bem como dela mesma sobre seus próprios atos. Isso porque,
por vezes, o controle da administração balizado apenas em princípios
administrativos, sem a análise racional das consequências da decisão
controladora, enseja verdadeiras bizarrias, que em nada contribuem para
a consecução dos interesses da sociedade e podem, inclusive, prejudicá-los.
Por exemplo: pensemos na necessidade de contratação emergencial
em razão da anulação de um contrato para compra de medicamentos
por vícios formais no instrumento convocatório da licitação da qual
o ajuste decorreu, que não impediram a apresentação de propostas pelas
licitantes e a escolha de uma proposta vantajosa para a Administração
e inferior ao valor praticado no contrato emergencial. Nesse caso,
a anulação, em que pese pudesse estar fundamentada no princípio
da legalidade dos atos administrativos, não estaria a causar danos ao erário?
Diante disso, o parágrafo único do art. 20 da LINDB não só determinou
a análise das consequências efetivas da decisão controladora, como também
estabeleceu uma regra jurídica: a motivação do ato administrativo deve
demonstrar que a decisão é proporcional aos elementos de fato sobre
os quais ela imprime seus efeitos.
Na perspectiva da proporcionalidade, o dispositivo expressa que
a motivação do ato decisório controlador deve demonstrar sua necessidade
e sua adequação, ambos elementos ínsitos à regra da proporcionalidade,
para qualquer medida a ser imposta pelo controlador, mas especialmente
aquelas que visem à “invalidação de ato, contrato, ajuste, processo
ou norma administrativa”. A necessidade e a adequação devem também
ser demonstradas “em face das possíveis alternativas”.
Nesse sentido, cumpre anotar que, acerca da proporcionalidade
e sua relação com a necessidade e adequação, Virgílio Afonso da Silva expli-
ca que, para aferir se uma medida é proporcional em um caso concreto,
faz-se necessário, primeiro, analisar se ela é adequada e, em seguida,
se é necessária. Desse modo, considera-se adequada quando o objetivo
pretendido é alcançado ou fomentado por uma dada medida. Ao passo
350 Floriano de Azevedo Marques Neto e Natalia de Sousa da Silva

que será considerada como necessária quando for a melhor alternativa


para o melhor resultado16.
Assim, sob a égide da LINDB, o objetivo é garantir que o controle exercido
seja compatível com os valores fundamentais do Estado Democrático de
Direito, o que somente será possível de ser aferido mediante a motivação
do ato controlador, que deve demonstrar os elementos jurídicos e, princi-
palmente, os fáticos que ensejaram a decisão.
Daí porque o art. 21, caput, dessa lei exige que o controlador
indique expressamente as “consequências jurídicas e administrativas”
ao decretar a invalidação do ato, contrato, ajuste ou norma administrativa.
Ademais, o parágrafo único do mesmo artigo prevê que “[…] a decisão
que, nas esferas administrativa, controladora ou judicial, decretar
a invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa
[…]” indique as condições para saneamento da irregularidade que a ensejou,
especialmente quando “[…] os efeitos nocivos do seu desfazimento forem
muito significativos […]”17.
Com isso, a LINDB instaura um regime racional de controle administrativo,
focado na análise efetiva das consequências da decisão controladora,
bem como na demonstração de sua proporcionalidade e razoabilidade
no caso concreto.

5. O novo regime de nulidades da NLCP

É possível afirmar que a LINDB já tratava da anulação dos contratos


administrativos antes da NLCP, razão pela qual a Lei nº 14.133/2021
consolida os preceitos do controle racional da administração pública por
meio da ponderação das consequências efetivas da decretação de nulidade.
Contudo, a principal inovação da NLCP, quando comparada à LINDB,
é a previsão de que a anulação dos contratos administrativos é medida
excepcional. Nesse sentido, o art. 147, caput, da Lei nº 14.133/2021
é bastante claro ao estatuir que a nulidade contratual ou a suspensão da
execução do contrato apenas ocorrerá “caso não seja possível o saneamento”.

16
SILVA, Virgílio Afonso da. O Proporcional e o Razoável. In: Revista dos Tribunais. n. 798, 2002, p. 23-50.
17
JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos: Lei 8.666/1993.
18. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019, p. 1130.
O regime de nulidades dos contratos
administrativos na Lei nº 14.133/21 351

É nesse exato aspecto que a NLCP é inovadora, pois, mesmo o art. 21


da LINDB, que prevê singelamente a possibilidade de saneamento
de irregularidades constatadas pela administração pública, não coloca essa
solução como primeira hipótese. Assim, em que pese a LINDB tenha méritos
por aclarar os parâmetros do controle dos atos e contratos administrativos,
na perspectiva da nulidade dos ajustes, é a NLCP quem estabelece um
novo regime de controle.
Lembramos que, embora tenha havido um movimento pela racionalidade
e proporcionalidade da decretação de nulidade nas contratações
públicas, antes da Lei nº 14.133/2021, imperava, como regra, que os
procedimentos licitatórios e contratos administrativos ilegais deveriam
ser mandatoriamente anulados. A partir da nova lei de licitações,
essa hipótese encontra respaldo apenas como solução subsidiária, quando
não for comprovadamente possível o saneamento da irregularidade.
Como subsidiária, a decretação de nulidade torna-se muito mais difícil
de ser operada, eis que o art. 147 da NLCP prevê ao menos 11 critérios
ou aspectos para avaliação pelo gestor público que pretende anular
o contrato, com o objetivo de motivadamente comprovar a confluência
da anulação com o interesse público.
Os critérios estabelecidos não deixam de ser um procedimento mais
detalhado para a aferição da proporcionalidade da medida, tal como exigido
pela LINDB por meio dos requisitos de necessidade e adequação mencionados em
seu art. 20. No entanto, a Lei nº 14.133/2021, ao estabelecer seus próprios
critérios para análise da compatibilidade da decretação de nulidade com
o interesse público, tende a garantir a segurança jurídica no processo
administrativo que avalia a irregularidade.
Ainda quanto a esses critérios, além dos aspectos sociais, econômicos
e ambientais, destacamos que o inc. VII do art. 147 da NLCP exige
que sejam apontadas pelo administrador as medidas efetivamente adotadas
para o saneamento da irregularidade que ensejará a anulação do contrato
ou do procedimento licitatório. Nessa perspectiva, reforça-se a nova ideia
de que o “poder-dever” da administração pública deixa de ser a decretação
de nulidade para ser o saneamento e convalidação da contratação.
Por fim, necessário ainda elencar e repassar alguns outros pontos que,
inclusive, já anotamos nas páginas anteriores, trazidos pelo novo regime
de nulidades dos contratos administrativos:
352 Floriano de Azevedo Marques Neto e Natalia de Sousa da Silva

(i) mantém a decretação de nulidade com efeitos ex tunc


(art. 148, caput, da Lei 14.133/2021);
(ii) prevê que, não sendo possível o retorno à situação fática anterior,
a nulidade deve ser resolvida pelo pagamento de perdas e danos
(art. 148, § 1º, da mesma lei); e
(iii) sendo imperiosa a declaração de nulidade, mesmo em face
de contrato que possua relevância para continuidade da atividade
administrativa, é possível diferir a eficácia dessa declaração para
momento futuro por um prazo de até seis meses, prorrogável
uma vez por igual período, com objetivo de viabilizar uma
nova contratação.

Conclusão

As alterações na LINDB sobre a disciplina do controle da administração


pública constituíram-se como verdadeiros fundamentos para o novo
regime de nulidades dos contratos administrativos positivado pela
Lei nº 14.133/2021. Há, nesse sentido, uma confluência de ideias entre
os dois atos normativos, os quais visam a compatibilizar a disciplina
do controle de legalidade dos contratos públicos com as perspectivas
de uma administração pública focada em resultados, ou seja, que se pauta
pela eficiência de seus atos e pela segurança jurídica de suas decisões.
O ponto de inflexão entre as duas normas é a exigência de uma racio-
nalidade jurídica clara no decidir controlador, que deve considerar não
somente os efeitos práticos da decisão, mas também possíveis alternativas
diante da situação de fato que se impõe.
Nesse sentido, o dever de ponderação dos efeitos da nulidade frente
aos fatos é expresso tanto pela LINDB quanto pela NLCP, o que, em aspectos
práticos, nos leva a compreender que essa exigência é requisito de
validade para a decisão controladora que trata do tema da nulidade
dos contratos administrativos.
Há que se reconhecer e destacar as inovações trazidas pela NLCP
sobre o tema, uma vez que foi a Lei nº 14.133/2021 que efetivamente
inverteu a lógica do controle de legalidade dos contratos administrativos,
ao determinar que a decretação de nulidade ocorrerá apenas em casos
excepcionais e desde que comprovada sua adequação ao interesse público.
O regime de nulidades dos contratos
administrativos na Lei nº 14.133/21 353

A processualização de decisões administrativas dessa natureza


vem para privilegiar os direitos fundamentais ao devido processo legal,
ao contraditório e à ampla defesa. Além disso, permitem maior transparência
e efetividade para as decisões administrativas, estando em plena
consonância com o Estado Democrático de Direito instaurado pela
Constituição de 1988.

Bibliografia

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ao centenário de Hely Lopes Meirelles. São Paulo: Malheiros, 2017. v. 1.
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de Direito Administrativo. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 1997.
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Administrativos: Lei 8.666/1993. 18. ed. rev.  atual. e ampl. São Paulo:
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MARQUES NETO, Floriano de Azevedo. Uma Lei que Vale pelo que revoga –
Uma Panorâmica Sobre a Lei nº 14.133/2021. Revista do Advogado,
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MARQUES NETO, Floriano de Azevedo. Regulação estatal e interesses
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MOREIRA, Egon Bockmann. Súmula 473: é hora de dizer adeus –
Ela cumpriu seu papel, mas hoje traz problemas. JOTA, Brasília, DF, 1 out. 2019.
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PAGANI DE SOUZA, Rodrigo. Em busca de uma administração pública
de resultados. In: PAGANI DE SOUZA, Rodrigo; PEREZ, Marcos Augusto.
Controle da Administração Pública. Belo Horizonte: Fórum, 2017.
SILVA, Virgílio Afonso da. O Proporcional e o Razoável. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2002.
ZANCANER, Weida. Da convalidação e da invalidação dos atos
administrativos. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2001.
553

Meios alternativos de solução de


controvérsias na nova Lei de Licitações
e Contratos Administrativos

Alternative means of resolving disputes


in the new law on public tenders and
administrative contracts

Paula Fernanda de Souza Vasconcelos Navarro1


Juíza de Direito no estado de São Paulo

Sumário: Introdução. 1. Meios alternativos de solução de controvérsias


previstos pela nova lei de licitações. 2. A conciliação e a mediação como
meios alternativos de solução de conflitos. 3. O comitê de resolução de
disputas. 4. A arbitragem. Conclusão. Bibliografia.

Contents: Introduction. 1. Alternative Dispute Settlement Means


provided for by the new bidding law. 2. Conciliation and mediation as
alternative dispute resolution means. 3. The dispute resolution committee.
4. Arbitration. Conclusions. References.

Palavras-chave: lei de licitações e contratos administrativos. meios


alternativos de solução de conflitos. conciliação. mediação. comitê de
resolução de disputas. arbitragem. restabelecimento do equilíbrio econô-
mico e financeiro. inadimplemento das obrigações. cálculo de indenizações.

1
Mestre e doutoranda em Direito Público pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).
Juíza de Direito Titular da 9ª Vara da Fazenda Pública de São Paulo. Coordenadora da Unidade de
Processamento das Execuções contra a Fazenda Pública (UPEFAZ), setor de precatórios. Coordenadora
do Centro de Apoio dos Juízes da Fazenda Pública (CAJUFA) para o biênio 2021/2022. Diretora da
Associação Paulista dos Magistrados (Apamagis). Foi advogada em 2005 e procuradora do estado de
São Paulo de 2006 a 2008.
356 Paula Fernanda de Souza Vasconcelos Navarro

Keywords: law on bidding and administrative contracts. alternative


means of conflict resolution. conciliation. mediation. dispute resolution
committee. arbitration. restoration of economic and financial balance.
default of obligations. calculation of indemnities.

Resumo: o presente artigo trata dos meios alternativos de solução


de controvérsias na nova lei de licitações e contratos administrativos,
dentre eles a previsão de realização de conciliação, de mediação, a possi-
bilidade de instalação do comitê de resolução de disputas e a utilização
da arbitragem. Tais institutos têm a função de dirimir as controvérsias
de cunho patrimonial disponível oriundas da licitação ou do contrato
administrativo, em especial em temas como o restabelecimento do equilí-
brio econômico-financeiro do contrato, em caso de inadimplemento de
obrigações contratuais por quaisquer das partes e ao cálculo de indeni-
zações. Tem como objetivo a solução das questões controversas na esfera
extrajudicial, sem a necessidade de intervenção do Poder Judiciário,
como mecanismo de maior rapidez e eficiência na gestão do contrato e
com o benefício de redução de custos às partes e a toda sociedade.

Abstract: this article deals with the alternative means of resolving


disputes in the new law of bidding and administrative contracts, including
the provision of conciliation, mediation, the possibility of installing a
dispute resolution committee and the use of arbitration. Such institutes
have the function of settling disputes of a patrimonial nature available
arising from the bidding or the administrative contract, especially in
matters such as the reestablishment of the economic-financial balance
of the contract, in the event of default of contractual obligations by
any of the parties and the calculation of indemnities. Its objective is to
resolve controversial issues in the extrajudicial sphere, without the need
for intervention by the Judiciary, as a mechanism for greater speed and
efficiency in contract management and with the benefit of reducing costs
for the parties and society as a whole.
Meios alternativos de solução de controvérsias na
nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos 357

Introdução

A tradicional concepção do direito público brasileiro vem sendo


repensada nas últimas décadas, em especial em razão da interconexão de
seus principais temas com os demais ramos do direito, notadamente após
o advento da Constituição Federal de 1988 que consagrou o respeito aos
direitos fundamentais como corolário do Estado Democrático de Direito.
Fala-se, de um lado, em publicização do direito privado, expressão
cunhada por autores civilistas, que demonstra uma inquietação da doutrina
com a chamada relativização da autonomia da vontade, mormente com
a inspiração do Código Civil de 2002 que solidificou a adoção do sistema
aberto de normas no âmbito do direito civil nacional.
Por outro lado, os doutrinadores afetos ao direito público chamam
o fenômeno de privatização do direito público, debatendo-se sobre a
possibilidade de utilização de fórmulas próprias do direito privado para
os institutos tradicionalmente afetos ao direito público, com as conve-
niências e vicissitudes daí decorrentes.
Segundo a Professora Dinorá Grotti ao tratar do tema das parcerias
na administração pública2:

No bojo da chamada globalização e da Reforma do


Estado ganha vulto a ideia de Estado baseado no
princípio da subsidiariedade. De acordo com esse
princípio, de um lado, o Estado deve abster-se de
exercer atividades que o particular tem condições de
desempenhar por sua própria iniciativa e com seus
próprios recursos; de outro, o Estado deve fomentar,
coordenar, fiscalizar a iniciativa privada, de sorte
a permitir aos particulares, sempre que possível,
o sucesso na condução de seus empreendimentos.

Portanto, de um lado a outro, observa-se que a sociedade atual,


cada vez mais, estabelece relações privadas permeadas de conteúdo
publicista, com a relativização da autonomia da vontade e a exigência
da boa-fé objetiva dos contratantes em geral, enquanto o Estado se vê

2
GROTTI, Dinorá Adelaide Musetti. Parcerias na administração pública. Revista de Direito do Terceiro
Setor, Belo Horizonte, v. 6, n. 11, 2012. Disponível em: http://dspace.almg.gov.br/xmlui/bitstream/
item/3135/000000FC.pdf?sequence=1. Acesso em: 7 abr. 2022.
358 Paula Fernanda de Souza Vasconcelos Navarro

compelido a adotar métodos próprios das relações privadas para suas


atividades, o que lhe traz desafios nunca enfrentados.
A nova lei de licitações e contratos administrativos é exemplo desse
fenômeno, eis que aderiu à política própria de utilização de meios alter-
nativos de solução de conflitos tradicionalmente ligada ao direito privado,
dentre eles a conciliação, a mediação, a utilização de comitês de solução
de litígios e até a arbitragem, mas o fez para as questões controversas,
envolvendo o tema das licitações e dos contratos administrativos.
Embora a temática seja nova para o tema das licitações, eis que
a Lei nº 8.666/93 não trazia essa possibilidade legal, é preciso destacar
que não foi a primeira vez que o legislador brasileiro previu a possibi-
lidade de utilização de meios alternativos de solução de conflitos ao
administrador público.
O artigo 26 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Lindb),
com as alterações promovidas pela Lei nº 13.655/2018, também abarca
essa possibilidade, como também a Lei nº 13.140/2015, que disciplina a
autocomposição de conflitos no âmbito da Administração Pública.
Se por um lado a prática pode ser entendida como positiva, na medida
em que condecora uma política de anteposição bélica da administração
pública; por outro, não se pode perder de vista que o Poder Público lida
com interesses públicos indisponíveis e, nessa medida, não pode pautar
sua conduta pelos interesses secundários da administração e dos parti-
culares que com ela contratam, devendo respeito ao interesse primário
de toda a coletividade.
É nesse contexto de novidade do texto normativo da lei de licita-
ções que o presente artigo pretende caminhar, analisando não apenas os
meios alternativos de solução de conflitos propriamente ditos, mas em
especial os limites que o administrador público deve observar para pautar
a sua conduta quando na utilização das novas ferramentas colocadas à
sua disposição.

1. Meios alternativos de solução de controvérsias previstos pela


nova lei de licitações

A redação do caput do art. 151 da Lei nº 14.133/2021 trouxe a


seguinte redação: “[…] nas contratações regidas por esta Lei, poderão ser
utilizados meios alternativos de prevenção e resolução de controvérsias,
Meios alternativos de solução de controvérsias na
nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos 359

notadamente a conciliação, a mediação, o comitê de resolução de disputas


e a arbitragem […]”.
A leitura do novel dispositivo demonstra que a intenção do legislador
foi nitidamente abrangente, franqueando à Administração submeter-se
aos mais variados métodos de resolução consensual de conflitos.
Não obstante, o parágrafo único do referido dispositivo legal trouxe
uma importante limitação, segundo a qual:

[…] será aplicado o disposto no caput deste artigo


às controvérsias relacionadas a direitos patrimoniais
disponíveis, como as questões relacionadas ao
restabelecimento do equilíbrio econômico-financeiro
do contrato, ao inadimplemento de obrigações
contratuais por quaisquer das partes e ao cálculo
de indenizações.

A congregação de ambos os dispositivos legais traz ao administrador


público uma primeira limitação à utilização dos meios alternativos de
solução de controvérsias, qual seja, elas devem versar sobre direitos
patrimoniais disponíveis.
De fato, parece salutar a preocupação do legislador, na medida
em que, conforme sublinhamos alhures, o poder público trata, no mais
das vezes, com direitos públicos indisponíveis, os quais não podem ser
objeto de negociação ainda que a utilização de métodos alternativos ao
Poder Judiciário se mostre adequado no caso concreto.
Trata-se, ademais, de utilização de institutos próprios das relações
privadas no âmbito estatal, com as limitações inexoráveis do administrador
público, de forma que é dever do legislador preocupar-se com a forma
adequada de transposição de institutos para a preservação do conteúdo
mínimo do direito administrativo.
Mas não é só.
A nova legislação tratou de especificar quais são os direitos patri-
moniais que considera disponíveis, dentre eles, as contendas envolvendo
disputas acerca do restabelecimento do equilíbrio econômico-financeiro
do contrato, aquelas ligadas ao inadimplemento de obrigações contratuais
por quaisquer das partes, e ao cálculo de indenizações.
A utilização do vocábulo “dentre eles” permite concluir que essas
hipóteses são meramente exemplificativas, cabendo ao administrador
360 Paula Fernanda de Souza Vasconcelos Navarro

público, mediante adequada motivação de seus atos, adotar os meios


alternativos de solução de controvérsias para quaisquer outras questões
envolvendo direitos patrimoniais disponíveis.
Por outro lado, não nos parece que a utilização da novel legislação
seja obrigatória ou configure direito subjetivo do contratante, seja em
vista do princípio da inafastabilidade do Poder Judiciário, seja porque os
meios alternativos são uma das formas de solução de conflitos colocadas
à disposição do administrador público, mas não a única, incumbindo-lhe
adotar aquela que lhe pareça mais adequada diante do caso concreto.

2. A conciliação e a mediação como meios alternativos de solução


de conflitos

A nova legislação trouxe de forma expressa a possibilidade de utili-


zação da mediação e da conciliação como meios alternativos de solução
de conflitos no âmbito das licitações e contratos administrativos.
Ambas são modalidades de resolução de conflitos que prescindem do
recurso ao Poder Judiciário, mas podem ser entabuladas com a intervenção
judicial, e pretendem ser mais céleres e de menor custo para os envolvidos.
Na mediação, o mediador atua para promover um diálogo entre
as partes, que chegam a uma solução de comum acordo. A conciliação,
por sua vez, assemelha-se à mediação, nas ações em que não houver
vínculo anterior entre as partes (CPC: art. 165). A mediação é regulada
pela Lei no 13.140/2015.
A nova lei também estabeleceu que os contratos licitatórios poderão
ser aditados para permitir a adoção dos meios alternativos de solução
de conflitos3.
Nesse ponto, a intenção do legislador converge com o Enunciado nº 10
da 1ª Jornada de Direito Administrativo, realizada em 2020 pelo Centro de
Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal (CEJ/CJF), que tratou da
possibilidade de aditamento dos contratos administrativos para esses fins,
conforme abaixo:

3
Art. 153 da Lei no 14.133/2021. Os contratos poderão ser aditados para permitir a adoção dos meios
alternativos de resolução de controvérsias.
Meios alternativos de solução de controvérsias na
nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos 361

Enunciado 10: Em contratos administrativos


decorrentes de licitações regidas pela Lei
n. 8.666/1993, é facultado à Administração Pública
propor aditivo para alterar a cláusula de resolução
de conflitos entre as partes, incluindo métodos
alternativos ao Poder Judiciário como Mediação,
Arbitragem e Dispute Board.

Não se pode dizer, contudo, que se trata de uma inovação no ordena-


mento jurídico pátrio, eis que a Lei de introdução às normas do direito
brasileiro – LINDB pavimentou definitivamente a aplicação de métodos
consensuais em diversas realidades da administração pública brasileira.
Os artigos 26 e 27 da LINBD4 estabelecem a possibilidade de a
autoridade administrativa celebrar compromisso com os interessados,
inclusive no âmbito processual, observando a legislação aplicável,
sempre que for necessário eliminar irregularidade, incerteza jurídica
ou situação contenciosa.
Na mesma esteira, também caminhou a lei das estatais –
Lei no 13.303/2016 e a Lei de Arbitragem, que agora também pode ser utili-
zada para as controvérsias nos contratos administrativos, tudo a demonstrar
um avanço em direção do moderno Direito Administrativo Sancionatório.
Houve, portanto, um impulsionamento dos mecanismos de controle
sancionatório por mecanismos de controle consensual, com viés essencial-
mente resolutivo e pragmático, próprio do novo modelo que ora se introduz
também na Lei de Licitações, autorizando a utilização dos métodos de
conciliação e mediação como meios alternativos de solução de conflitos
ligados às licitações e contratos administrativos.

4
Art. 26 da LINDB: “Para eliminar irregularidade, incerteza jurídica ou situação contenciosa na aplicação
do direito público, inclusive no caso de expedição de licença, a autoridade administrativa poderá,
após oitiva do órgão jurídico e, quando for o caso, após realização de consulta pública, e presentes
razões de relevante interesse geral, celebrar compromisso com os interessados, observada a legislação
aplicável, o qual só produzirá efeitos a partir de sua publicação oficial.§ 1º O compromisso referido
no caput deste artigo: I – buscará solução jurídica proporcional, equânime, eficiente e compatível
com os interesses gerais; II – (VETADO); III – não poderá conferir desoneração permanente de dever
ou condicionamento de direito reconhecidos por orientação geral; IV – deverá prever com clareza as
obrigações das partes, o prazo para seu cumprimento e as sanções aplicáveis em caso de descumpri-
mento. § 2º (VETADO).” (grifos nossos)
“Art. 27. da LINDB: “A decisão do processo, nas esferas administrativa, controladora ou judicial, poderá
impor compensação por benefícios indevidos ou prejuízos anormais ou injustos resultantes do processo
ou da conduta dos envolvidos. § 1º A decisão sobre a compensação será motivada, ouvidas previamente
as partes sobre seu cabimento, sua forma e, se for o caso, seu valor. § 2º Para prevenir ou regular a
compensação, poderá ser celebrado compromisso processual entre os envolvidos.” (grifos nossos)
362 Paula Fernanda de Souza Vasconcelos Navarro

3. O comitê de resolução de disputas

O comitê de resolução de disputa também se insere entre os meios


modernos de solução extrajudicial de litígios e pode ser compreendido
como um comitê colegiado, independente, geralmente formado por
especialistas da área em que o contrato administrativo se desenvolverá
(advogados, engenheiros, arquitetos, contadores etc.), indicados de
comum acordo pelas partes no momento da celebração do contrato ou
logo após, com o objetivo de acompanhar a execução do contrato e dirimir
as controvérsias que surgirem.
Geralmente é previsto nos contratos mais vultosos da administração
pública e naqueles em que há execução continuada ou diferida no tempo,
pois a prática hodierna já observou que em alguns casos, para que o objeto
do contrato chegue a bom termo, há necessidade de acompanhamento da
execução contratual por uma equipe multidisciplinar com poderes para
emitir decisões ou recomendações, conforme o caso concreto.
O comitê acompanha a execução do contrato em reuniões periódicas
com as partes, dirimindo conflitos quando necessário. Os especialistas
devem ser imparciais e equidistantes de ambas as partes, embora sejam
profissionais experientes e de confiança para a solução das controvérsias.
A maior vantagem, além de prevenir e dirimir possíveis litígios que
desaguariam na esfera judicial, é que o comitê auxilia as partes a manterem
o cronograma e o orçamento inicial da obra, ou seja, é uma importante
ferramenta de gestão contratual.
Tem função pacificadora ao auxiliar as partes a compreender as
dificuldades da execução do contrato e promover um constante diálogo,
o que reduz significativamente os conflitos que demandam efetivamente
uma decisão heterocompositiva do próprio comitê. Como consequência,
ganha-se tempo e reduz-se custos.
Segundo Francisco Maia Neto:

[…] o CRD – Comitê de Resolução de Disputas,


ou DRB – Dispute Resolution Board, em inglês,
é um método que encontra receptividade de fato
e de direito no Brasil, não só por sua utilização
já conhecida, mas por possuir mecanismos legais
no âmbito municipal e estadual, além de estar
presente na nova Lei de Licitações, tendo grande
Meios alternativos de solução de controvérsias na
nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos 363

aplicabilidade no setor de construção e infraestrutura,


compreendendo a formação de um painel de
especialistas que acompanha, monitora e intervém
na solução de conflitos durante a execução de um
contrato, especialmente aqueles de maior duração5.

O único critério que a nova legislação estabelece para os comitês


é aquele previsto no artigo 154, que fixa que o processo de escolha dos
árbitros, dos colegiados arbitrais e dos comitês de resolução de disputas
observará critérios isonômicos, técnicos e transparentes.
Importante mencionar também que o comitê de resolução de
disputas é um modelo aplicado no contexto dos contratos internacionais
de construção e engenharia e foi incorporado nos modelos contratuais
do Banco Mundial e da FIDIC (International Federation of Consulting
Engineers), os quais são amplamente respeitados e observados ao
redor do mundo e costumam servir como base para os mais relevantes
projetos de infraestrutura.
A doutrina estrangeira registra a existência de três tipos comitês de
resolução de disputas, os chamados dispute boards: I) Dispute Review
Boards: são aqueles que emitem apenas recomendações sobre determinada
controvérsia, desprovidas de caráter vinculante imediato; II) Dispute
Adjudication Bords: compreendem aqueles comitês que decidem as
controvérsias contratuais e as suas decisões possuem caráter vinculante;
III) Combined Dispute Boards: emitem recomendações e, em determinados
casos, decidem disputas contratuais.
A despeito da classificação da doutrina estrangeira, embora me pareça
possível a criação de comitês tanto com caráter meramente consultivo,
como aqueles que emitam decisões vinculantes às partes, o princípio
da inafastabilidade da jurisdição não autoriza, em âmbito nacional,
o afastamento da possibilidade de questionamento da decisão do comitê
à apreciação do Poder Judiciário.
Evidente, contudo, que os critérios que o magistrado deve utilizar
para sindicar eventual decisão do comitê de resolução de disputas é muito
mais rígido e deve se ater a questões de nulidades insanáveis e proteção
de direitos fundamentais, na medida em que a existência e a criação do

Disponível em: https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-consensuais/358305/demandar-ou-


5

resolver-eis-a-questao. Acesso em: 29 ago. 2022.


364 Paula Fernanda de Souza Vasconcelos Navarro

comitê, como também a indicação de seus membros, é medida escolhi-


da livremente entre as partes no momento da celebração do contrato,
de forma que as decisões do colegiado devem, salvo necessidade de
salvaguarda legal ou constitucional insanável, prevalecer.
Os comitês de resolução de disputas têm reduzida aplicação no
Brasil, muito em virtude da cultura litigante do Poder Público em todas
as esferas administrativas, como também pela falta de experiência dos
profissionais do mercado com o tratamento da matéria por meios alter-
nativos ao Poder Judiciário.
De toda sorte, ainda que timidamente, a legislação em alguns
municípios de maior envergadura nacional já começa a tratar do tema.
A Lei Municipal no 16.873/2018 do município de São Paulo reconhece a
viabilidade jurídica dos comitês de prevenção e a solução de disputas
para dirimir conflitos relativos a direitos patrimoniais disponíveis em
contratos continuados da administração pública direta e indireta.
Outras iniciativas também procuram incentivar a prática salutar.
Na I Jornada de Prevenção e Solução Extrajudicial de Litígios promo-
vida pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal
(CEJ/CJF), realizada em 2016, portanto, ainda antes da nova Lei de
Licitações, foram aprovados três enunciados que tratam especificamente
do tema. Veja-se:

Enunciado 49: Os Comitês de Resolução de Disputas


(Dispute Boards) são método de solução consensual
de conflito, na forma prevista no artigo 3º, § 3º,
do Código de Processo Civil Brasileiro.

Enunciado 76: As decisões proferidas por um


Comitê de Resolução de Disputas (Dispute Boards),
quando os contratantes tiverem acordado pela
sua adoção obrigatória, vinculam as partes ao
seu cumprimento até que o Poder Judiciário ou o
juízo arbitral competente emitam nova decisão ou
a confirmem, caso venham a ser provocados pela
parte inconformada.

Enunciado 80: A utilização dos Comitês de Resolução


de Disputas (Dispute Boards), com a inserção da
respectiva cláusula contratual, é recomendável
Meios alternativos de solução de controvérsias na
nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos 365

para os contratos de construção ou de obras de


infraestrutura, como mecanismo voltado para a
prevenção de litígios e redução dos custos correlatos,
permitindo a imediata resolução de conflitos surgidos
no curso da execução dos contratos.

Em 2020, o Enunciado 19 da I Jornada de Direito Administrativo


realizada pelo CEJ/CJF ratificou a possibilidade de utilização de métodos
adequados de resolução de controvérsias nas contratações públicas,
incluindo-se, entre eles, o Dispute Board, conforme abaixo:

Enunciado 19: As controvérsias acerca de equilíbrio


econômico-financeiro dos contratos administrativos
integram a categoria das relativas a direitos
patrimoniais disponíveis, para cuja solução se
admitem meios extrajudiciais adequados de
prevenção e resolução de controvérsias, notadamente
a conciliação, a mediação, o comitê de resolução de
disputas e a arbitragem.

Portanto, a despeito da pouca utilização em âmbito nacional, a nova


lei de licitações abriu as portas para o novo modelo do comitê de resolução
de disputas, o qual já é consagrado em âmbito internacional e tem sido
recomendado pelos especialistas da área, em especial para os contratos
administrativos mais vultosos e complexos.

4. A arbitragem

A arbitragem é o último meio alternativo de solução de conflitos


descrito pela nova Lei de Licitações e costuma ser considerada pela
iniciativa privada como um dos fatores que influenciam a tomada de
decisão em associar-se ao Estado no desenvolvimento de determinada
atividade econômica.
Por esse motivo, a utilização da arbitragem como meio alternativo de
solução de conflito também mereceu previsão específica na nova Lei de
Licitações e contratos administrativos, eis que se mostra um importante
instrumento colocado à disposição das partes para dirimir as questões
controversas envolvendo os contratos mais vultosos e complexos.
366 Paula Fernanda de Souza Vasconcelos Navarro

A Lei no 14.133/21 reflete uma decisão estratégica da Administração


Pública, visando maior eficiência no serviço público e na solução de
controvérsias nos contratos administrativos.
No âmbito federal, a possibilidade de utilização da arbitragem
já estava autorizada em legislações específicas, dentre elas na Lei de
Concessões Públicas (Lei no 8.987/95), Lei de Parcerias Público-Privadas
(Lei no 11.079/2004), Lei de Petróleo e Gás (Lei no 9.478/97), Lei de
Transportes Aquaviários e Terrestres (Lei no 10.233/2001) e na Lei dos
Portos (Lei nº 12.815/2013).
Alguns Estados e Municípios já aprovaram leis e decretos autorizadores
da adoção de Arbitragem e de outros métodos de solução de controvérsias
pela Administração Pública, dentre eles a Lei no 19.477/11 do Estado de
Minas Gerais, o Decreto no 64.356/19 de São Paulo e o Decreto no 46.245/18
do Rio de Janeiro.
Tal qual já previsto na Lei de Arbitragem (artigo 2º, § 3º), o artigo 152
da nova Lei de Licitações preceitua que a arbitragem será sempre de
direito e observará o princípio da publicidade, o que indica que os árbitros
deverão seguir as regras dispostas no ordenamento jurídico para decidir
o litígio, de forma que não podem se afastar das regras de direito, ainda
que visem buscar a solução que considerem mais justa.
Afasta-se, portanto, a possibilidade da chamada “arbitragem de
equidade”, medida salutar que evita a surpresa em relação ao decisium
e remete ao Poder Judiciário a possibilidade de inquinar a solução obtida
na esfera arbitral caso ela não esteja de acordo com o ordenamento
jurídico nacional.
Outra importante exigência da lei é a observância ao princípio da
publicidade, em reverência ao dever máximo de transparência insepará-
vel ao exercício da função administrativa, o que também é muito salutar
para pautar a atuação arbitral nos contratos administrativos, eis que a
arbitragem sempre esteve mais afeta às relações empresariais e privadas
nas quais a publicidade pode ser mitigada.
Ainda, pode-se concluir que a nova previsão legal afasta a discus-
são acerca da necessidade de prévia licitação para eleição e escolha de
árbitros e da câmera de arbitragem, na medida em que essa exigência
não constou expressamente da lei.
Isso porque, ao prestar o serviço às partes em conflitos e não direta-
mente à administração pública, a necessidade de prévia licitação para
escolha de árbitros e câmara de arbitragem cai por terra.
Meios alternativos de solução de controvérsias na
nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos 367

Não se afasta, contudo, o dever de motivação dos atos administra-


tivos como corolário de todo o sistema de direito público, de forma que
incumbe ao administrador público justificar as razões pelas quais escolheu
determinado árbitro e determinada câmara de arbitragem, em atenção
aos princípios norteadores de sua atuação.
O artigo 153 da Lei traz a possibilidade de aditamento dos contratos
já vigentes para permitirem a adoção dos meios alternativos de solução
de controvérsias, o que envolve não apenas a arbitragem, mas também a
conciliação, a mediação e o comitê de resolução de disputas, conforme
já se assentou.
Não se trata de uma completa novidade no ordenamento jurídico
brasileiro, pois a Lei nº 13.303/2016 (Lei de Estatais) também aventou essa
possibilidade, a qual também já era admitida na prática judiciária, eis que
os Enunciados nº 10 (já citado no item 3) e nº 18 da 1ª Jornada de Direito
Administrativo, realizada em 2020 pelo Centro de Estudos Judiciários do
Conselho da Justiça Federal (CEJ/CJF), que tratou da possibilidade de
aditamento dos contratos administrativos para estes fins, conforme abaixo:

Enunciado 18: A ausência de previsão editalícia


não afasta a possibilidade de celebração de
compromisso arbitral em conflitos oriundos de
contratos administrativos.

O artigo 154 da lei menciona que “[…] o processo de escolha dos


árbitros, dos colegiados arbitrais e dos comitês de resolução de disputas
observará critérios isonômicos, técnicos e transparentes.”.
Essa disposição legal, embora singela, traduz a salutar preocupação
do legislador com as boas práticas exigidas da administração pública,
em especial com os princípios basilares do direito administrativo, dentre
eles a impessoalidade, a moralidade e a eficiência, na medida em que,
embora autorize o ente público a buscar as diversas práticas conciliatórias
para resolução de conflitos, a escolha dos sujeitos que participarão desse
processo deve respeitar princípios próprios e inseparáveis da Administração
Pública, evitando-se a adoção de privilégios antirrepublicanos.
Portanto, com o crescimento da utilização da arbitragem pela
Administração Pública, observados os ditames da novel legislação,
será possível esperar alcançar-se alguns benefícios, dentre eles a celeri-
dade na obtenção de solução definitiva da controvérsia; a especialização
do julgador, principalmente em contratos vultosos, a economicidade às
partes; e a preservação das relações contratuais de longo prazo.
368 Paula Fernanda de Souza Vasconcelos Navarro

Conclusões

A nova lei de licitações e contratos administrativos trouxe como


novidade para o âmbito das licitações a possibilidade de adoção de meios
alternativos de solução de conflitos pelo administrador público.
Embora os institutos mencionados na nova lei não sejam em si uma
novidade, na medida em que outros diplomas legais também previram
essa utilização, não se pode afastar a conclusão de que o tema é novo e
ainda pouco utilizado na rotina diuturna do administrador público, ainda
muito afeto às soluções adjudicadas pelo Poder Judiciário acerca dos
conflitos oriundos das licitações e contratos administrativos.
Ocorre que a nova concepção do direito administrativo demanda cada
vez mais um impulsionamento dos mecanismos de controle consensual,
com viés essencialmente resolutivo e pragmático, com a finalidade de
tornar a administração mais eficiente, rápida e capaz de solucionar suas
contendas por meios alternativos ao Poder Judiciário.
Contudo, não se pode perder de vista que essa demanda pela
utilização de mecanismos alternativos à solução jurisdicional não pode
perder a conexão ética com valores próprios do direito público e dos
princípios que o inspiram, o que se pretendeu enfrentar no presente
texto, na medida em que os institutos ora elencados devem ser utiliza-
dos à luz do regramento teórico que deve nortear aqueles que atuam
na administração da coisa pública.
Assim, a conciliação, a mediação, o comitê de resolução de disputas,
a arbitragem e qualquer outro método alternativo de solução de conflitos no
âmbito das licitações e contratos administrativos tem como limitação as
questões envolvendo direitos patrimoniais disponíveis, dentre elas aquelas
relacionadas ao restabelecimento do equilíbrio econômico-financeiro do
contrato, ao inadimplemento de obrigações contratuais por quaisquer
das partes e ao cálculo de indenizações, mas também devem observar os
limites constitucionais e legais próprios do direito público já constantes
do ordenamento jurídico pátrio, em especial os seus princípios nortea-
dores, como a legalidade, a impessoalidade, a moralidade, a publicidade,
a eficiência, a proporcionalidade, a razoabilidade, dentre outros.
Observados tais parâmetros, espera-se que a utilização dos novos
mecanismos legais consiga alcançar alguns anseios legítimos dos particu-
lares que contratam com a administração pública, dentre eles a celeridade
na obtenção de solução definitiva da controvérsia, a especialização dos
Meios alternativos de solução de controvérsias na
nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos 369

partícipes da decisão que vinculará as partes, principalmente em contratos


vultosos, a economicidade aos contratantes e preservação das relações
contratuais de longo prazo, com benefício futuro que se estenderá à
toda a sociedade.

Referências

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JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à lei de licitações e contratos
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MASAGÃO, Mário. Natureza jurídica da concessão de serviço público.
São Paulo: Saraiva, 1933.
PIRES, Luis Manuel Fonseca. Controle judicial da discricionariedade
administrativa: dos conceitos jurídicos indeterminados às políticas
públicas. São Paulo: Campus Jurídico, 2020.
III
A nova Lei de Improbidade Administrativa
(Lei nº 14.230/21)
373

Improbidade administrativa e sua


reforma - principais alterações
da Lei nº 14.230/21 e seus
impactos nos processos em curso e
findos. Novatio legis in mellius em
Direito Administrativo Sancionador:
retroatividade ou irretroatividade
da lei nova1

Vicente de Abreu Amadei2


Desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo

Sumário: Introdução: as alterações da Lei nº 8.429/92 (Lei de


Improbidade Administrativa – LIA) pela Lei nº 14.230/21. 1. Breve
histórico legislativo. 2. A sistematização das inovações. 3. O elemento
subjetivo da improbidade administrativa. 4. A tipificação dos atos de
improbidade administrativa, especialmente as figuras do art. 11 da LIA.
5. O Direito Administrativo Sancionador. Aproximação histórico-conceitual
e cautelas para extração de seu conteúdo principiológico. 6. A fonte
de inspiração do Direito Administrativo Sancionador: Direito Penal ou
Direito público estatal? 7. A teoria elementar do Direito Administrativo
Sancionador. Esboço de sistematização no Direito Brasileiro. 8. Sobre a
(ir)retroatividade da lei nova mais favorável em Direito Administrativo
Sancionador. Esboços para soluções de questões de direito intertemporal
material. 9. As razões da irretroatividade das normas mais favoráveis
da Lei nº 14.230/21. 10. O combate à corrupção sistêmica. 11. Novatio
legis in mellius, retroatividade-tipificação, retroatividade-sanção e
retroatividade-prescrição. 12. Processo em trâmite e (ir)retroatividade da
Lei nº 14.230/21. 13. Processos findos, coisa julgada e (ir)retroatividade
da Lei nº 14.230/21. Conclusão. Bibliografia.

1
Artigo publicado, inicialmente, no site da Escola Paulista da Magistratura – EPM, em março de 2022.
2
Palestrante em cursos de extensão e de especialização em Direito Ambiental Artificial (Urbanístico),
Imobiliário, Notarial e Registral em diversas instituições (v.g. Pontifícia Universidade Católica de
São Paulo – PUC-SP, Escola Paulista da Magistratura-EPM, Universidade Secovi-SP).
374 Vicente de Abreu Amadei

Introdução: as alterações da Lei nº 8.429/92 (Lei de Improbidade


Administrativa – LIA) pela Lei nº 14.230/21

A Lei nº 14.230/21 não só modificou a Lei n° 8.429/92 (LIA), mas a


reformou profundamente (apenas os artigos 15 e 19 permanecem inalte-
rados), inovando e alterando, em pontos estratégicos, o regime jurídico
da improbidade administrativa, especialmente pelas novas referên-
cias dos elementos essenciais para a configuração do ato ímprobo
suscetível de sanção.
E isso tem, de fato, agitado a comunidade política, social e jurídica,
com alguns aplausos e muitas críticas, na avaliação geral de verificação
de avanço ou retrocesso na área da moralidade administrativa. E ainda se
apontam inúmeras incertezas e dúvidas quanto à sua adequada interpre-
tação e aplicação, especialmente em relação aos fatos ocorridos ao tempo
da lei antiga, aos processos em trâmite antes da lei nova, e até mesmo às
sentenças transitadas em julgado, especialmente os pendentes de cumpri-
mento (total ou parcial), para saber se escapam, ou não, dos efeitos da
lei nova, que são em grande parte mais benéficos aos infratores.
Basta observar, para se verificar o grande interesse em tais mudanças,
que essa lei é de 25 de outubro de 2021 – nasceu há pouco tempo – e,
conforme levantamento do Centro de Apoio dos Desembargadores do
Direito Público do TJSP (CADIP)3 até 26 de novembro de 2021, apenas em
artigos de juristas, professores e doutrinadores comentando as inovações,
em geral ou pontualmente, constavam pelo menos 63 trabalhos publicados
na internet. Sem contar os vários cursos, seminários, encontros, reuniões
e grupos de estudo pulverizados pelo Brasil, bem como as várias videoaulas
que já circulam em mídia eletrônica. Ademais, é suficiente passar os
olhos nesses trabalhos publicados para perceber que há orientações
para todo gosto, pois se apresentam vários caminhos de interpretação,
muitos deles contrapostos, a indicar o quão polêmico é o tema, que,
naturalmente, deve refletir em Juízo um cenário jurídico turvo até o
decantar jurisprudencial.

3
Esse material de interesse ao estudo e à pesquisa, elaborado pelo Centro de Apoio ao Direito Público
(CADIP), denominado Caderno Especial sobre as Alterações na Lei de Improbidade Administrativa
Lei nº 8.429/1992 (Lei nº 14.230/2021) está disponibilizado no site da Escola Paulista da Magistratura,
área de Jurisprudência, CADIP: https://www.tjsp.jus.br/Download/SecaoDireitoPublico/Pdf/Cadip/
EspCadipImprobAdm20211026.pdf?d=1638127284093.
Improbidade administrativa e sua reforma - principais alterações da
Lei nº 14.230/21 e seus impactos nos processos em curso e findos 375

Aliás, a discussão já ganhou foro no Supremo Tribunal Federal, em dois


feitos relevantes:
(i) a admitida repercussão geral para definir questões sobre a
eventual (ir)retroatividade das disposições da Lei nº 14.230/2021,
em especial em relação (I) A necessidade da presença do elemento
subjetivo – dolo – para a configuração do ato de improbidade
administrativa, inclusive no artigo 10 da LIA; e (II) A aplicação dos
novos prazos de prescrição geral e intercorrente (Tema nº 1199/STF,
ARE 843.989), destacando-se a não suspensão dos feitos nas instân-
cias ordinárias, suspendendo-se apenas os processamentos dos
Recursos Especiais em que for suscitada a aplicação retroativa da
Lei nº 14.230/21 (decisão de 03/03/2022 do relator Min. Alexandre
de Morais);
(ii) a liminar concedida pelo Ministro Alexandre de Moraes, em 17 de
fevereiro de 2022 (ADIs 7042/DF e 7043/DF),
(ii.i) fixando, provisoriamente, interpretação conforme a
Constituição Federal ao art. 17, caput e §§ 6º-A, 10-C e 14,
da LIA (com a redação da Lei nº 14.230/2021), para reconhecer
“legitimidade ativa concorrente entre o Ministério Público e
as pessoas jurídicas interessadas para a propositura da ação
por ato de improbidade administrativa”, com o argumento
de que “a supressão da legitimidade ativa das pessoas
jurídicas interessadas para a propositura da ação de impro-
bidade administrativa pode representar grave limitação ao
amplo acesso à jurisdição (CF, art. 5º, XXXV), com ferimento
ao princípio da eficiência (CF, art. 37, caput) e, no limite,
obstáculo ao exercício da competência comum da União,
Estados, Distrito Federal e Municípios para ‘zelar pela
guarda da Constituição’ e ‘conservar o patrimônio público’
(CF, art. 23, I), bem como, um significativo retrocesso quanto
ao imperativo constitucional de combate à improbidade
administrativa”, destacando que o prescrito no art. 129,
§ 1º, da Constituição Federal “parece indicar um comando
impeditivo à previsão de exclusividade por parte do Ministério
Público nas ações civis por ato de improbidade adminis-
trativa”, e não se deve conferir o “monopólio absoluto do
combate à corrupção ao Ministério Público”;
376 Vicente de Abreu Amadei

(ii.ii) suspendendo os efeitos do art. 17, § 20, da LIA (com a


redação da Lei nº 14.230/21), ao impor à advocacia pública na
esfera estadual a atribuição de promover a defesa do agente
público que tenha incorrido em improbidade administrativa
com base em parecer emitido pelo órgão público, ante possí-
vel inconstitucionalidade formal subjetiva, com afronta ao
pacto federativo e à autonomia dos Estados;
(ii.iii) suspendendo os efeitos do art. 3º da Lei nº 14.230/21 –
que prescreve a suspensão das ações de improbidade em curso
ajuizadas pela Fazenda Pública (inclusive em grau de recurso),
com prazo de um ano para o Ministério Público manifestar
interesse no prosseguimento, com extinção do feito sem
resolução de mérito em caso de desinteresse ou inércia –,
por congruência lógica à interpretação de conformação acima
referida (ii.i), uma vez que as normas desse artigo decorrem
da competência exclusiva do Ministério Público para promover
as ações de improbidade administrativa.

1. Breve histórico legislativo

A referida Lei nº 14.230/21 teve origem com o Projeto de Lei


nº 10887/2018 do Deputado Roberto de Lucena (PODE-SP) apresentado em
17 de outubro de 2018. Arquivado e depois desarquivado, em 28 de agosto
de 2019, foi designado relator o Dep. Carlos Zarattini (PT-SP). Nomeada uma
Comissão de Juristas, presidida pelo Min. Mauro Campbell, STJ, e realizadas
14 audiências públicas, foi apresentado o relatório (Dep. Carlos Zarattini),
em que consta a referência de que, para o anteprojeto, eram três as
premissas básicas apontadas pelo Min. Mauro Campbell:

1. incorporar ao projeto a jurisprudência consolidada


dos Tribunais Superiores na interpretação da LIA;
2. compatibilizar a lei com leis posteriores (novo CPC,
Lei Anticorrupção e Lei de Introdução às normas de
Direito Brasileiro – LINDB); e 3. sugerir novidades,
novos institutos, novas premissas, que corrijam os
pontos mais sensíveis da LIA. (BRASIL, 2018)
Improbidade administrativa e sua reforma - principais alterações da
Lei nº 14.230/21 e seus impactos nos processos em curso e findos 377

Após as audiências públicas e colhido material complementar, o relator


destaca a constatação do “aumento do número de ações de improbidade”
(dados do CNJ) e a avaliação política de

premente necessidade de adequação do texto legal,


de forma a afastar presunções acerca de elementos
essenciais para a configuração do ato de improbidade,
como, por exemplo, a ocorrência de dano, a presença
de dolo na conduta do agente e a extensão de seus
efeitos a terceiros. (BRASIL, 2018)

Daí, então, no tal relatório do Projeto de Lei, as principais alterações


propostas foram assim sintetizadas:

1. improbidade administrativa exclusivamente por


atos dolosos; 2. previsão expressa acerca da aplicação
da lei aos agentes políticos; 3. escalonamento das
sanções; 4. previsão de legitimidade privativa do
Ministério Público para a propositura da ação de
improbidade; 5. previsão de celebração de acordo
de não persecução cível; 6. regras mais claras
acerca da prescrição em matéria de improbidade.
(BRASIL, 2018)

2. A sistematização das inovações

Do histórico legislativo resumido já se antevê as principais altera-


ções que a Lei nº 14.230/21 introduziu na LIA. Contudo, sobretudo para
delimitar as questões em torno da aplicação de novas regras no tempo,
parece oportuno um esforço de sistematizá-las, distinguindo as inova-
ções normativas de direito material em relação às de direito processual,
pois enquanto essas (inovações processuais) têm aplicação irretroativa e
imediata, inclusive aos processos em curso, respeitando os atos processuais
praticados e as situações jurídicas consolidadas sob a vigência da norma
antiga (art. 14 do CPC), sem muitas discussões de direito intertemporal,
aquelas (inovações materiais) têm gerado acirrados debates, especial-
mente em relação à (ir)retroatividade das normas novas mais benéficas
que as antigas.
378 Vicente de Abreu Amadei

Apontam-se, então, a partir da estrutura da própria Lei nº 8.429/92,


como normas processuais referentes à ação de improbidade administra-
tiva aquelas insertas em seu Capítulo V (Do Procedimento Administrativo
e do Processo Judicial – arts. 14 a 18) e, daí, as reformas correlatas a
esse capítulo podem ser classificadas como processuais, seguindo a sorte
da solução de direito intertemporal adjetiva (art. 14 do CPC). Aqui,
então, merecem destaque as seguintes inovações processuais: (i) novas
regras sobre indisponibilidade de bens (art. 16), que são mais precisas e
detalhadas, anotada maior atenção à densidade probatória dos pressu-
postos de seu deferimento (§§ 3º, 4º, 7º), à delimitação de valores que
a justificam (§§ 5º e 6º, que, aliás, não mais podem computar os de
eventual aplicação de multa civil, diversamente do enunciado na tese
fixada no Tema 1.055/STJ), à sua expansão subjetiva a terceiros (§ 7º),
às consequências práticas da medida (§ 12 – por reflexo do prescrito no
art. 20 da LINDB) e à expressa vedação de sua incidência sobre determi-
nados valores e sobre os bens de família (§§ 13 e 14); (ii) especificações
processuais da ação de improbidade administrativa (art. 17), de natureza
exclusivamente repressiva (art. 17-D), com normas próprias de competência
e prevenção (art. 17, §§ 4º e 5º), de requisitos da petição inicial (§ 6º) e
de procedimento, observada a possibilidade de tutelas provisórias (§ 6º-A),
a melhor técnica de redação para as hipóteses de rejeição da petição
inicial (§ 6º-B), a possível interrupção do prazo para contestar em haven-
do possibilidade de solução consensual (§ 10-A), a fixação precisa da
tipificação do ato de improbidade administrativa imputável na decisão
de saneamento do feito (§10-C), a necessidade de maior cuidado com a
instrução (§§ 10-F, II, 18 e 19, I e II) e com a sentença, quer nos fundamentos
(art. 17-C, I, II e III), quer na eleição e na individualização da sanção
(art. 17-C, IV a VII), quer na capitulação (art. 17-C, I); (iii) peculiaridades
do sistema recursal, da mesma forma a supressão do reexame obriga-
tório de sentença de improcedência ou de extinção sem resolução de
mérito (art. 17, IV), a dispensa de preparo (art. 23-B) e o cabimento de
agravo em decisão sobre indisponibilidade de bens (art. 16, § 9º), rejeição
de preliminares suscitadas na contestação (art. 17, § 9º-A), conversão
de ação de improbidade em ação civil pública (art. 17, § 17), enfim,
admissível o agravo das decisões interlocutórias em geral (art. 17, § 21);
(iv) restrição do objeto da ação de improbidade administrativa ante sua
natureza repressiva e caráter sancionatório, destinada, pois à aplicação
das sanções de feição pessoal cominadas na LIA (art. 17-D), admitindo-se,
em caso de sua procedência, a condenação ao ressarcimento dos danos e à
Improbidade administrativa e sua reforma - principais alterações da
Lei nº 14.230/21 e seus impactos nos processos em curso e findos 379

perda ou à reversão dos bens e valores ilicitamente adquiridos, conforme


o caso, em favor da pessoa jurídica prejudicada pelo ilícito (art. 18);
(v) possibilidade da conversão de ação de improbidade em ação civil
pública, a qualquer momento (art. 17, § 16), quando não se vislumbrar
a possibilidade de aplicar as sanções de caráter pessoal previstas na LIA,
mas houver interesse residual (v.g. ressarcimento de danos) ou diverso que
o justifique, pertinente ao controle de legalidade de políticas públicas,
à proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros
interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos, que são vedados
à ação de improbidade (art. 17-D) e próprios da ação civil pública (art. 17-D,
parágrafo único e Lei nº 7.347/85); (vi) acordo de não persecução cível
(art. 17-B), no curso da investigação do ilícito e da ação de improbidade,
em fase cognitiva ou executiva (§ 4º), mediante, ao menos, o integral
ressarcimento do dano e a reversão à pessoa jurídica lesada da vantagem
indevida obtida, ainda que oriunda de agentes privados (art. 17-B, I e II),
bem como a satisfação dos requisitos legais (§§ 1º a 7º); (vii) disciplina
específica dos encargos econômicos do processo, afastando a obrigatorie-
dade de adiantamento de despesas processuais (v.g. custas, emolumentos
e honorários periciais) – (art. 23-B), a serem pagas ao final, em caso de
procedência da ação (art. 23-B, § 1º), prevista, enfim, a condenação dos
honorários sucumbenciais, em caso de improcedência, se comprovada
má-fé (art. 23-B, §2º).
As outras normas da lei (alheias ao Cap. V da LIA) podem ser classi-
ficadas como não processuais (stricto sensu), ou de direito material
(lato sensu): (i) a maior parte (arts. 1º a 13, 20 a 22 e 23-A), qualificada no
ramo do Direito Administrativo, especialmente na categoria conhecida por
Direito Administrativo Sancionador; (ii) uma e outra, em ramos diversos,
por exemplo o do Direito Penal (art. 19, aliás, inalterado) ou do Direito
Eleitoral imbricado no Direito Administrativo Sancionador (art. 23-C); e,
por fim, (iii) um artigo de lei a merecer considerações próprias, por sua
relevância e controvérsia acerca da natureza jurídica de suas normas (se de
direito processual ou de direito material), que dizem respeito à prescrição
(art. 23), ora mais favorável que a antiga redação: o prazo prescricional
de oito anos, contados da consumação do ilícito, admitindo-se, inclusive,
a forma intercorrente de sua ocorrência (art. 23, § 8º).
Dentre as inovações legais de direito material administrativo sancio-
nador, na esfera da improbidade administrativa, apontam-se apenas
algumas, consideradas de aguda relevância e de eventual impacto inter-
temporal (retroativo).
380 Vicente de Abreu Amadei

A primeira, diz respeito ao elemento subjetivo da improbidade


administrativa, que se desdobra em dois troncos de inovações:
(i) o da supressão de ato de improbidade praticado mediante culpa;
(ii) o da especificação de que o dolo que se exige, para a configu-
ração da existência do ato ímprobo, é o dolo específico (ou seja,
a “vontade livre e consciente de alcançar o resultado ilícito
tipificado nos arts. 9º, 10 e 11 desta Lei, não bastando a volunta-
riedade do agente” – art. 1º, § 2º, da LIA, em sua nova redação)
(BRASIL, 1992).
Observe-se, ademais, que a necessidade de dolo específico é, então,
para que se configure o ato de improbidade administrativa em todas as
condutas tipificadas nos arts. 9º, 10 e 11 da LIA. Em outras palavras, sem o
dolo específico o ato ímprobo nem sequer existe (está fora do plano da
existência da improbidade administrativa). E isso importa não apenas para
a qualificação do ato ilícito como ímprobo no âmbito intrínseco da LIA,
mas também têm consequências reflexivas em outros ramos do direito,
como nas esferas civil e eleitoral.
Assim, por exemplo, no campo da responsabilidade patrimonial,
sem existência de ato ímprobo doloso tipificado na LIA não se pode cogitar
em imprescritibilidade (Tema 897/STF), e, agora, ainda fica a pergunta:
sem dolo específico, se houver revisão retroativa da lei mais favorável,
inexistindo ato ímprobo pela nova lei (embora antes existente pela lei
antiga), ainda persistirá a imprescritibilidade da responsabilidade civil
correlata? E para os processos em curso? Não se nega a possibilidade de
conversão da ação de improbidade em ação civil pública para a respon-
sabilidade civil indenizatória; contudo, se não existe o ato ímprobo,
a indenização não é imprescritível.
Ou, então, no campo eleitoral, considerando a denominada Lei da
Ficha Limpa (Lei Complementar nº 135/2010), que estabeleceu, em atenção
ao comando constitucional (art. 14, § 9º, CF), a inelegibilidade (i) para os
agentes públicos que tiveram contas rejeitadas por irregularidade insanável
que configure ato doloso de improbidade administrativa, ou (ii) para os
condenados por ato doloso de improbidade administrativa que importe
lesão ao patrimônio público e enriquecimento ilícito, com suspensão dos
direitos políticos. Não se poderá indagar o mesmo, em se admitindo a
aplicação retroativa da lei mais favorável? Persistirá a inelegibilidade,
caso não se tenha expressado o dolo específico?
Improbidade administrativa e sua reforma - principais alterações da
Lei nº 14.230/21 e seus impactos nos processos em curso e findos 381

E o mesmo raciocínio, aliás, vale para as hipóteses de não mais


haver, pela lei nova, tipificação de ato de improbidade na LIA, embora
anteriormente (ao tempo da ocorrência dos fatos que justificaram a
persecução) houvesse.
Ademais, nesse segundo ponto de inovações substanciais legais
(a rigor, um amplo bloco de novidades), a Lei 14.230/21 foi rica, bastando
lembrar as novas redações que deu aos artigos 9º, 10 e 11 da LIA, em tipos
fechados e, em regra, bem mais favoráveis aos investigados, réus e conde-
nados por improbidade administrativa, em evidente novatio legis in mellius.
De fato, para além de constar em modo explícito, para todas as
figuras de improbidade, como elemento subjetivo integrante dos tipos,
a necessidade de “prática de ato doloso” (art. 9º), “ação ou omissão
dolosa” (arts. 10 e 11) (BRASIL, 1992), afastada, pois, a improbidade
culposa que era possível para os atos ímprobos causadores de dano
patrimonial ou lesão ao erário (art. 10), o artigo 11 da LIA (em que
se concentrava a maior parte das condenações), sofreu significativas
alterações, fixando-se o molde de tipificação fechada (em rol taxativo
de atos ímprobos), em contraposição à tipificação aberta (em rol exempli-
ficativo) que vigorava até então.
Aliás, em acréscimo, não falta no art. 11 da LIA, em sua nova redação,
a inclusão de diversos parágrafos com nítido propósito de restringir o
campo de incidência das figuras de condutas ímprobas: (i) por referência
ao dolo específico (“fim de obter proveito ou benefício indevido para si
ou para outra pessoa ou entidade” – § 1º – extensivo, aliás, “a quais-
quer atos de improbidade administrativa tipificados nesta Lei” – §2º),
na conduta funcional do agente público e para a necessidade de sua
comprovação; (ii) por imposição de “demonstração objetiva da prática
de ilegalidade no exercício da função pública, com indicação das normas
constitucionais, legais ou infralegais violadas” (§ 3º); (iii) por exigência
de “lesividade relevante”, independentemente “da ocorrência de danos
ao erário e de enriquecimento ilícito dos agentes” (§ 4º) (BRASIL, 1992),
a indicar que estão expurgados da improbidade administrativa os atos
ímprobos de lesividade irrelevantes (como, em Direito Penal, ocorre com
os crimes de bagatela: a insignificância exclui a tipicidade material – STF,
HC 84.412-SP, Rel. Min. Celso de Mello), inconfundíveis com os de “menor
ofensa”, aos quais se prevê apenas a mitigação das sanções (art. 12, § 5º)
(BRASIL, 1992).
382 Vicente de Abreu Amadei

Essa inovação legal, sem dúvida, é de grande impacto não só para


as futuras ações de improbidade administrativa, mas também, ao menos
potencialmente, pela discussão jurídica que se tem apresentado em torno
da eventual retroatividade dos efeitos ímprobo-abolicionistas da lei nova
(por equiparação ao que ocorre com a abolitio criminis no Direito Penal),
em relação ao universo dos fatos pretéritos ocorridos sob a vigência da lei
antiga, às ações de improbidade em curso e até mesmo àquelas já findas
e com condenação cobertas pela coisa julgada.
Não se olvide, ainda, as inovações relativas às sanções (art. 12 da LIA),
que, no que forem mais benéficas, podem, ao menos em tese, ensejar a
mesma sorte de questionamento por eventual impacto retroativo da lei
reformadora. Assim – ressalvadas as alterações que agravaram o sancio-
namento (v.g. por aumento do tempo máximo das sanções de suspensão
de direitos políticos e da proibição de contratar com o poder público:
art. 12, I, II e III) e aquelas que já estavam sedimentadas na jurisprudência
ou que decorrem de lógica jurídica (v.g. a de contagem retroativa do
prazo da sanção de suspensão dos direitos políticos, computando-se o
intervalo de tempo entre a decisão colegiada e o trânsito em julgado da
sentença condenatória: art. 12, § 10) –, pode-se afirmar como novatio
legis in mellius no campo sancionador da improbidade: (i) a redução do
teto da multa civil, para todas as hipóteses de improbidade (art. 12,
I, II e III); (ii) a exclusão da combinação das sanções de perda da função
pública e de suspensão de direitos políticos nas hipóteses de improbidade
do art. 11 (art. 12, III); (iii) a avaliação da responsabilização da pessoa
jurídica considerando os efeitos econômicos e sociais das sanções no
foco de preservar suas atividades (art. 12, § 3º); (iv) a redução da multa
civil em improbidade classificada como de menor ofensa (art. 12, § 5º);
(v) a limitação da sanção de proibição de contratar com o poder público
ao ente público lesado, extensível a outro(s) apenas por exceção justi-
ficada (art. 12, § 4º).
Nisso tudo, então, é oportuno agregar e ressaltar a inclusão do § 4º
do art. 1º na LIA, pela Lei nº 14.230/21, determinando que se aplicam
“ao sistema da improbidade disciplinado nesta Lei os princípios constitu-
cionais do direito administrativo sancionador” (BRASIL, 2021), para bem
compreender se, dentre eles, encontra-se, ou não, o da retroatividade
da lei nova mais favorável.
Para tanto, justifica-se aprofundar o exame de algumas dessas
inovações substanciais da Lei nº 14.230/21, no foco do Direito
Administrativo Sancionador.
Improbidade administrativa e sua reforma - principais alterações da
Lei nº 14.230/21 e seus impactos nos processos em curso e findos 383

3. O elemento subjetivo da improbidade administrativa

Nos primeiros tempos de vigência da LIA, a discussão era quanto à


eventual possibilidade de se configurar algum tipo de improbidade adminis-
trativa sem culpa, bastando para tanto a prova da ilicitude/imoralidade
(em modo similar à responsabilidade objetiva), tendo em conta que o
artigo 10 fazia expressa referência à conduta dolosa ou culposa, ao passo
que os artigos 9º e 11 nada prescrevem no ponto do elemento subjetivo4.
Prevaleceu o entendimento de que, nessa esfera, era indispensável o
elemento subjetivo para todas as figuras de improbidade administrativa,
observando-se que aquelas dos arts. 9º e 11 exigem dolo, à moda da
técnica legiferante do direito penal em que o silêncio afasta a conduta
culposa, mas não dispensa a dolosa, associando-lhes, então, as ideais
de desonestidade, má-fé e deslealdade com a Administração Pública
(v.g. REsp. 604.151/RS, Rel. Min. José Delgado, Primeira Turma, julgado em
25/04/2006), com atenção, ainda, à natureza sancionatória da improbidade
administrativa (STJ, REsp. 734.984/SP, Rel. Min. José Delgado, Primeira
Turma, julgado em 18/12/2007). Contudo, a Segunda Turma do STJ chegou
a posicionar-se no sentido de que bastava, nas figuras do art. 11 da LIA,
a mera ilicitude ou imoralidade administrativa (v.g. REsp. 737.279/PR,
Rel. Min. Castro Meira, Segunda Turma, j. 13/05/2008; REsp. nº 488.882/SP,
Rel. Min. João Otávio de Noronha, Segunda Turma, j. 17/04/2008),
mas aquela outra corrente da necessidade do dolo foi ganhando corpo,
nada obstante instaurada a divergência entre as Turmas do STJ.
Ante essa divergência, então, levada à questão à 1ª Seção do STJ,
compostas pelos ministros das duas Turmas, o entendimento fixado foi
no sentido de que bastava o dolo genérico (e não o específico), segundo
princípio da mera voluntariedade, ou seja, o da suficiência do animus
ou a simples voluntariedade de praticar determinada conduta, especial-
mente nas figuras de improbidade administrativa do art.  11 da LIA
(REsp. nº 875.163/RS, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, 1ª Seção,
j. 23/06/2010; a Segunda Turma mudou seu entendimento, no Recurso

4
Para estudo detalhado e aprofundado dessa matéria, a incluir o histórico das discussões e da evolução
jurisprudencial em torno do elemento subjetivo da improbidade administrativa, remeto o leitor aos
estudos de Vivian Maria Pereira Ferreira, que se tomou por base para o desenvolvimento deste ponto
(FERREIRA, Vivian Maria Pereira Ferreira. O dolo da improbidade administrativa: uma busca racional
pelo elemento subjetivo na violação aos princípios da Administração Pública. Revista Direito GV,
São Paulo, v. 15, n. 3, p. 1-31, 2019).
384 Vicente de Abreu Amadei

Especial 765.212/AC, Rel. Min. Herman Benjamin, j. 02/03/2010, fixando a


necessidade de “identificar-se na conduta do agente público, pelo menos,
o dolo genérico, sob pena de a improbidade se transformar em hipótese de
responsabilidade objetiva dos administradores” – cf. REsp. 1.319.541/MT,
Relator Min. Herman Benjamin, DJe de 18/09/2013).
Abriu-se, então, com o tempo, nova discussão: se realmente bastava,
ou não, o dolo genérico – simples voluntariedade – ou se era necessário
o dolo específico, na improbidade administrativa por violação de princí-
pios da Administração Pública (art. 11 da LIA). Entenda-se, se bastava
a conduta livre e consciente de praticar o ato ofensivo aos princípios
da Administração Pública, ou se era preciso a intenção específica de
afronta aos princípios ou, ao menos, o risco assumido conscientemente
de afrontá-los.
Assim, por exemplo, o entendimento do Ministro Mauro Campbell
Marques, sustentando que no campo do Direito Administrativo Sancionador
“aplica-se o princípio da culpabilidade, segundo o qual a punição de
qualquer pessoa depende da sua atuação com dolo ou culpa, admitindo-se
apenas excepcionalmente a responsabilização objetiva no âmbito não
sancionatório do Direito Civil”, distinguindo-se, assim, “ a voluntariedade
da vontade” e apontando “a necessidade de se perquirir pelo elemen-
to subjetivo (intenção e vontade) para que se possa falar em punição
por ato de improbidade administrativa”, enfatizando a necessidade de
investigar o “especial fim de agir” (cf. voto-vista do Min. Mauro Campbell
no REsp. 765.212/AC) (BRASIL, 2005), e nesse foco acompanhado pelo
Ministro Og Fernandes; mas, diversamente, outros Ministros apontaram a
suficiência do dolo genérico, ou seja, da simples voluntariedade, tal como
Francisco Falcão, Herman Benjamin e Assusete Magalhães (v.g. AgInt
no AREsp. 1005332/MG, Rel. Min. FRANCISCO FALCÃO, Segunda Turma,
j. 20/04/2021).
Presente a divergência, a orientação no sentido da necessidade
de configuração do dolo específico, parece ter prevalecido na 1ª Seção
do STJ (MS 21586/DF, 1ª Seção, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho,
j. 22/05/2019; MS 21553/DF, 1ª Seção, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho,
j. 22/05/2019).
O fato é que, agora, com a Lei 14.230/21 findou a discussão, não só
com a supressão do ato de improbidade praticado mediante culpa (antes
possível para as figuras do art. 10); bem como com a definição de que
o dolo necessário para todas as figuras de improbidade é o específico
(ou seja, a vontade livre e consciente de alcançar o resultado ilícito
Improbidade administrativa e sua reforma - principais alterações da
Lei nº 14.230/21 e seus impactos nos processos em curso e findos 385

tipificado nos arts. 9º, 10 e 11 desta Lei, não bastando a voluntariedade


do agente” (BRASIL, 1992) – art. 1º, § 2º, da LIA, em sua nova redação).
Admissível, pois o dolo direto ou indireto (eventual), mas sempre
específico, ou seja, com finalidade específica de alcançar o resultado
ilícito tipificado em cada uma das hipóteses de improbidade administrativa
(arts. 9ª, 10 e 11, da LIA); entenda-se, por exemplo, no quadro do art. 11
da LIA, o de alcançar lesividade relevante (noção mais ampla que a de
dano ao erário, ou de fim ilícito patrimonial, que está inserta no atual
§4º do art. 11 da LIA) determinada, segundo os elementos do tipo ilícito
que for imputado como ato ímprobo (o intuito específico de praticar a
conduta tipificada), não mais bastando a referência e verificação genérica
de imoralidade, desonestidade, má-fé administrativa da conduta. A má-fé,
então, é necessária, mas agora não é suficiente.
A configuração do dolo, pela vontade consciente e intenção do agente
deve estar orientada a fim específico, ao direcionamento da conduta
ilícita a resultado inerente ao tipo ímprobo imputado. E isso, sem dúvida,
vai exigir maior atenção na qualificação jurídica da conduta (quer pelo
autor da petição inicial, quer pelo juiz ao decidir), bem como na instru-
ção processual (nas provas destinadas à formação da culpabilidade por
dolo específico – art. 1º, § 3º, da LIA: “O mero exercício da função ou
desempenho de competências públicas, sem comprovação de ato doloso
com fim ilícito, afasta a responsabilidade por ato de improbidade adminis-
trativa” (BRASIL, 2021)), com maior cautela na verificação do contexto,
do entorno da conduta em que se pode colher, objetivamente, a intenção
do agente (prova indireta).
E, ressalte-se que, sem o dolo específico, elemento integrante
do tipo, ato ímprobo nem sequer existe. Dessa forma, sem existência
jurídica, como já se apontou, eventualmente admitida a retroatividade
pela novatio legis in mellius, os impactos dessa retroatividade são de
vastíssima amplitude, não só ao regime sancionatório da improbidade
administrativa (efeito intrínseco à LIA), mas também aos regimes de outros
campos do direito em que seus efeitos estão reflexivamente projetados
(efeitos extrínsecos à LIA).
Exame de resultado almejado de conduta de agente público,
por outro lado, também se faz considerando a prognose dos atos de gestão
administrativa, e, por isso, inspirado na LINDB (art. 20), também importa
verificar as consequências práticas da decisão administrativa classificada
como ímproba, mas sem cair em armadilha maquiavélica na qual fins
386 Vicente de Abreu Amadei

justificariam os meios, em pauta de conduta pragmático-consequencialista,


conscientemente descolada da ética (que envolve meios e fins)5.
Observe-se, ademais, a necessidade de mergulhar fundo no exame
da decisão ou opinião administrativa; e, no passo excludente de respon-
sabilidade dessas decisões ou opiniões, a LIA foi além da própria LINDB,
uma vez que o § 1º de seu art. 28 foi vetado6, mas agora o § 8º de seu
art. 1º, de comando equivalente, não foi7. Talvez aí seja possível consta-
tar incongruência no exercício do poder de veto; mas, ante a vigência
dessa norma (art. 1º, § 8º), não se pode deixar de enfatizar a atual
necessidade de maior cautela no exame de decisão ou opinião adminis-
trativa imputável como ímproba, quiçá, até mesmo, conforme o caso,
vislumbrar algum campo propício para eventual abolição infracional ou
revisão retroativa, se admitida.

4. A tipificação dos atos de improbidade administrativa,


especialmente nas figuras do art. 11 da LIA

Há, de fato, na estrutura normativa da transgressão ímproba


alguma proximidade – não identidade necessária – com a estrutura
normativa penal.

5
Para melhor estudo desse ponto, remeto o leitor ao que já escrevi em comentários ao art. 20 da LINDB:
AMADEI, Vicente de Abreu. Interpretação realista (em comentário ao art. 20 da LINDB). In: CUNHA
FILHO, Alexandre Jorge Carneiro da; ISSA, Rafael Hamze; SCHWIND, Rafael Wallbach. Lei de introdução
às normas do direito brasileiro: anotada. São Paulo: Quartier Latin, 2019. v. II.
6
De fato, o art. 28, § 1º, da LINDB, que foi vetado, previa que “Não se considera erro grosseiro a decisão
ou opinião baseada em jurisprudência ou doutrina, ainda que não pacificadas, em orientação geral ou,
ainda, em interpretação razoável, mesmo que não venha a ser posteriormente aceita por órgãos de
controle ou judiciais.” Mas foi vetado com as seguintes razões: “A busca pela pacificação de enten-
dimentos é essencial para a segurança jurídica. O dispositivo proposto admite a desconsideração de
responsabilidade do agente público por decisão ou opinião baseada em interpretação jurisprudencial ou
doutrinária não pacificada ou mesmo minoritária. Deste modo, a propositura atribui discricionariedade
ao administrado em agir com base em sua própria convicção, o que se traduz em insegurança jurídica.”
7
O art. 1º, § 8º, da LIA, voltou ao tema, para prever o mesmo teor excludente de responsabilidade
administrativa: “Não configura improbidade a ação ou omissão decorrente de divergência interpretativa
da lei, baseada em jurisprudência, ainda que não pacificada, mesmo que não venha a ser posteriormente
prevalecente nas decisões dos órgãos de controle ou dos tribunais do Poder Judiciário”. E, na expo-
sição de motivos da Lei 14.230;21, constou que “[…] Não são incomuns ações civis públicas por atos
de improbidade administrativa ajuizadas em razão de o autor legitimado possuir uma interpretação
acerca de princípios e regras destoante da jurisprudência dominante ou em desconformidade com
outra interpretação igualmente razoável, quer seja dos setores de controles internos da administração,
quer dos Tribunais de Contas. Em razão dessa situação de fato, assaz corriqueira, o texto faz incluir
o conceito de “interpretação razoável da lei, regulamento ou contrato. Cuida-se de cláusula aberta
que deverá ser objeto de preenchimento de seu sentido deôntico por parte dos intérpretes da lei e
colmatado pelo Poder Judiciário. A cláusula aberta da razoabilidade da interpretação é necessária,
haja vista a total impossibilidade de previsão de interpretações tidas por razoáveis, quando do momento
legislativo de criação da norma.”
Improbidade administrativa e sua reforma - principais alterações da
Lei nº 14.230/21 e seus impactos nos processos em curso e findos 387

Daí se diz, por exemplo, para o conjunto das transgressões disci-


plinares, conforme a doutrina de José Armando da Costa, que o ilícito
administrativo, com certa similitude com o ilícito penal, é composto de
“duas bases”, uma “hipotética” (“descrição legal da conduta punível”)
e uma “factual” (conduta do transgressor prevista em lei). A primeira
(“base hipotética”) “se desdobra em duas: base hipotética expressa e
base hipotética em branco”, aquela “descrita, pelo legislador” (em regra,
para “transgressões puníveis com sanções mais graves”), esta, não descrita
na regra legal, sob a margem de discricionariedade (em regra, para “faltas
disciplinares de natureza leve”). A segunda (“base factual”) “é, em alguns
casos típica, e, noutros casos, atípica” e “para ser caracterizada como
ilícito” basta “a voluntariedade do infrator” (COSTA, 2009, p. 190-191).
Esse norte, forjado no campo disciplinar administrativo, tem poten-
cial de projeção, como regra geral, para o Direito Administrativo
Sancionador (DAS), mas pode variar, como exceção, em suas espécies,
conforme ocorre no sistema da improbidade administrativa, que caminhou,
em todas suas configurações, não só com a imposição do dolo específico
(afastada a mera voluntariedade), mas também para a tipologia fechada
de base hipotética expressa, em rol exaustivo, tal como se verifica com a
nova redação do art. 11 da LIA, que se afastou de uma tipologia aberta,
em que preponderava a base hipoteca em branco e o rol exemplificativo.
Para melhor e bem compreender a reforma do art. 11 da LIA, é preci-
so ter atenção a dois pontos nucleares: (i) o da literalidade da norma,
em interpretação gramatical, especialmente do caput; (ii) o da revogação
de seus incisos I e II.
Confira-se, primeiro, o teor do art. 11, caput, da LIA, na antiga e
nova redação que lhe deu a Lei nº 14.230/21 (BRASIL, 1992; 2021).
Lei nº 8.429/1992 Lei nº 14.230/2021
Art. 11. Constitui ato de improbidade
Art. 11. Constitui ato de improbidade
administrativa que atenta contra os
administrativa que atenta contra os princí-
princípios da administração pública a ação
pios da administração pública qualquer
ou omissão dolosa que viole os deveres
ação ou omissão que viole os deveres de
de honestidade, de imparcialidade e de
honestidade, imparcialidade, legalidade,
legalidade, caracterizada por uma das
e lealdade às instituições, e notadamente:
seguintes condutas:

Observe-se, agora, o texto dos incisos I e II do art. 11 da LIA, que foram


revogados e que apontavam tipos de atos ímprobos: “I – praticar ato
visando fim proibido em lei ou regulamento ou diverso daquele previsto,
388 Vicente de Abreu Amadei

na regra de competência”; “II – retardar ou deixar de praticar, indevi-


damente, ato de ofício”.
Perceba-se, pois, nessa alteração do caput e na revogação dos
incisos I e II, o caminho no sentido de: (i) alterar o tipificado como
rol aberto (exemplificativo) em rol fechado (exaustivo ou taxativo):
“qualquer” (redação anterior) => “a” (redação nova); “e notadamente”
(redação anterior) => “caracterizada por uma das seguintes condutas”
(redação nova); (ii) minimizar, senão excluir, as bases hipotéticas em
branco de configuração do ato ímprobo (v.g. revogação dos incisos I e II),
para além de não mais se poder cogitar em improbidade “qualquer ação
ou omissão” de violação aos princípios da administração pública com a
marca da imoralidade (má-fé, desonestidade).
No mais, para a redação dos tipos de atos ímprobos previstos no
art. 11 da LIA em sua nova redação, verifica-se, igualmente, uma forte
tendência de redução de seu campo de incidência, ora por elementos
objetivos, ora – e com abundância – pelos elementos subjetivos do tipo,
reforçando nas várias figuras o dolo específico que já se havia apontado
em norma geral (art. 1º, §§ 2º e 3º):
(i) assim, na figura de seu inciso III (“revelar fato ou circunstância de
que se tem ciência em razão das atribuições e que deva perma-
necer em segredo”), acresceu-se finalidade (resultado ilícito)
singular: “propiciando beneficiamento por informação privilegiada
ou colocando em risco a segurança da sociedade e do Estado”8;
(ii) na figura do inciso IV (“negar publicidade aos atos oficiais”),
restringiu-se seu campo de incidência pela inclusão de exceção:
“exceto em razão de sua imprescindibilidade para a segurança da
sociedade e do Estado ou de outras hipóteses instituídas em lei”9;

8
“Essa solução importa restrição significativa para a configuração da improbidade”, especialmente
pela fórmula “colocando em risco a segurança da sociedade e do Estado”, que “propicia incerteza”
e exige atenção para se afastar de “interpretações fundadas em argumentação retórica, destituída
de concretude e de evidência da produção da produção efetiva de riscos” (JUSTEN FILHO, Marçal.
Reforma da lei de improbidade administrativa comparada e comentada: Lei 14.230, de 25 de outubro
de 2022. Rio de Janeiro: Forense, 2022. p. 119-120).
9
Essa cláusula de exceção, a rigor, não inova, mas apenas explicita a não configuração ao ilícito, pois onde
já há norma constitucional (art. 5º, XXXIII) ou legal para o sigilo, naturalmente (por congruência lógica)
publicidade não pode haver, e sem dever de dar publicidade, por si, não há como configurar-se ato
ilícito (e, obviamente, ímprobo). Em todo caso, o legislador, para deixar bem evidenciada a restrição
do campo de incidência da norma qualificadora ao ato ímprobo, preferiu apontar como exceção,
o que, a rigor e naturalmente, já se encontrava fora da incidência da figura ímproba. Convém, enfim,
Improbidade administrativa e sua reforma - principais alterações da
Lei nº 14.230/21 e seus impactos nos processos em curso e findos 389

(iii) na figura do inciso V (“frustrar a licitude de concurso público”),


de um lado alargou-se sua abrangência para outras modalidades
concorrenciais (as “de chamamento ou de procedimento licita-
tório”, além do “concurso público”), mas, de outro, reduziu-se à
conduta tipificada apenas àquela que frustrar o certame por ofensa
“à imparcialidade”, assim afrontando o “caráter concorrencial”, e,
ainda, com o dolo específico explícito (“com vistas à obtenção de
benefício próprio, direto ou indireto, ou de terceiros”);
(iv) na figura do inciso VI (“deixar de prestar contas quando esteja
obrigado a fazê-lo”), a redução veio pela inclusão de elemento
objetivo fático-circunstancial (“desde que disponha das condi-
ções para isso”) e pelo elemento subjetivo do dolo específico
(“com vistas a ocultar irregularidades”);
(v) revogaram-se, também, as figuras do inciso IX e X: a primeira
pertinente ao campo da acessibilidade (“deixar de cumprir a
exigência de requisitos de acessibilidade previstos na legislação”)
e a segunda, ao da transferência de recursos na área de saúde
(“transferir recurso a entidade privada, em razão da prestação de
serviços na área de saúde sem a prévia celebração de contrato,
convênio ou instrumento congênere”).
É verdade que a Lei 14.230/21, no referido art. 11, introduz duas
figuras de atos ímprobos (incisos XI e XII), em aparente quadro de lei mais
prejudicial que a antiga (que não as previa em figuras próprias), mas isso,
em verdade, é apenas na aparência, não em substância de comandos.
De fato, a figura pertinente à reprovação do nepotismo inserta no
inciso XI10, não é mais que adequação à Súmula Vinculante 13/STF11, que,

anotar que são inúmeras as hipóteses instituídas em lei orientadas a preservar o sigilo de atos oficiais
(v.g. Lei nº 13.709/2018 – LGPD, em seus arts. 46 a 49; Lei nº 14.133/2021, nova Lei de Licitações e
Contratos Administrativos, arts. 13, 18, §1º, VI, 75, III, “l”, 91, § 1º).
10
“Nomear cônjuge, companheiro ou parente em linha reta, colateral ou por afinidade, até o terceiro grau,
inclusive, da autoridade nomeante ou de servidor da mesma pessoa jurídica investido em cargo de direção,
chefia ou assessoramento, para o exercício de cargo em comissão ou de confiança ou, ainda, de função
gratificada na administração pública direta e indireta em qualquer dos Poderes da União, dos Estados,
do Distrito Federal e dos Municípios, compreendido o ajuste mediante designações recíprocas”.
11
“A nomeação de cônjuge, companheiro ou parente em linha reta, colateral ou por afinidade, até o
terceiro grau, inclusive, da autoridade nomeante ou de servidor da mesma pessoa jurídica investido em
cargo de direção, chefia ou assessoramento, para o exercício de cargo em comissão ou de confiança ou,
ainda, de função gratificada na administração pública direta e indireta em qualquer dos poderes da
União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, compreendido o ajuste mediante designações
recíprocas, viola a Constituição Federal”.
390 Vicente de Abreu Amadei

nesse limite, já contava com enquadramento no tipo aberto do art. 11 da


LIA em sua antiga redação. Contudo, a Lei 14.230/21 introduziu, para essa
figura, no § 5º do mesmo art. 11, a ressalva da “mera nomeação ou indicação
política por parte dos detentores de mandatos eletivos”, que, mais uma vez,
tem a função de restrição de campo de incidência de configuração do
ilícito e que induz incertezas (como aponta Marçal Justen Filho12).
De outro lado, a figura referente à improbidade por publicidade
ofensiva ao § 1º do art. 37 da Constituição Federal, que, na redação anterior
do art. 11 da Lei, também encontrava enquadramento, nada obstante a
ausência de figura típica específica, também sofreu restrição de campo
de incidência para configuração do ato ímprobo, quer pela circunstância
objetiva de que se tenha praticado “no âmbito da administração pública
e com recursos do erário” (logo, por exemplo, se for com recursos alheios
ao do erário, improbidade não haverá) e com “inequívoco enaltecimento”
(adjetivação de engrandecimento que pode comportar leitura restritiva,
no sentido de ir além da personalização de que cuida o § 1º do art. 37
da CF), quer pela necessidade de dolo específico (colhida nos §§ 1º e 2º
do mesmo art. 11, na redação da Lei 14.230/21).
Assim, substancialmente, até mesmo essas novas figuras de atos
ímprobos do art. 11 da LIA (incisos XI e XII), a rigor, caracterizam novatio
legis in mellius.
Diante, então, de tamanhas flexibilizações redutivas dos campos
de incidência das figuras por atos de improbidade prescritos no art. 11
da LIA, ora em rol fechado – manifestamente favoráveis aos acusados
e condenados com enquadramento nesse artigo de lei segundo o teor
da antiga redação –; ora em caso de eventual retroatividade ampla por
novatio legis in mellius, fica difícil imaginar alguma situação e condenação
pretérita que, em tese, não escape à reanálise retroativa. Nesse caso,
enfim, parece que será inevitável revolver a maior parte (volume que
não é pequeno!) não só de processos em curso, mas de condenações
por improbidades já pronunciadas, em forte abalo à estabilização e à
segurança jurídica do sistema.

12
“O conteúdo e a extensão dessa ressalva são incertos” […] e talvez se resolva sua inteligência e
aplicação pela sua adequação à orientação jurisprudencial do STF (RE 579.951) e pelo entendimento
de que a norma tenha o escopo de redução de seu campo de incidência apenas pela atual necessidade
do dolo específico: “enfim, o dispositivo reconhece a punibilidade da conduta, quando eivada de
intenção orientada a uma finalidade ilícita” (JUSTEN FILHO, Marçal. Reforma da Lei de Improbidade
Administrativa comparada e comentada: Lei 14.230, de 25 de outubro de 2022. Rio de Janeiro:
Forense, 2022. p. 126).
Improbidade administrativa e sua reforma - principais alterações da
Lei nº 14.230/21 e seus impactos nos processos em curso e findos 391

5. O Direito Administrativo Sancionador. Aproximação histórico-


conceitual e cautelas para extração de seu conteúdo principiológico

Outro ponto em que se encontra a matéria com feição de larga


abrangência é o da categoria do Direito Administrativo Sancionador (DAS),
que o § 4º do art. 1º da LIA, por inclusão da Lei 14.230/21, ora expressa
nos seguintes termos: “Aplicam-se ao sistema da improbidade discipli-
nado nesta Lei os princípios constitucionais do direito administrativo
sancionador” (BRASIL, 2021).
Acrescente-se, ademais, em paralelo a essa menção, o teor do
art. 17-B da LIA, igualmente incluído pela Lei 14.230/21, prescrevendo que
a ação por improbidade administrativa é repressiva,
de caráter sancionatório, destinada à aplicação de
sanções de caráter pessoal previstas nesta Lei, e não
constitui ação civil, vedado seu ajuizamento para o
controle de legalidade de políticas públicas e para
a proteção do patrimônio público e social, do meio
ambiente e de outros interesses difusos, coletivos e
individuais homogêneos.

Ficam, então, em aberto – e isso é de aguda relevância para se


compreender se haverá, ou não, retroatividade da lei nova mais favorável –
algumas questões: o que se deve compreender por Direito Administrativo
Sancionador (DAS)? Como é a mecânica de sua construção doutrinária
e jurisprudencial? Qual sua teoria elementar? Qual a principiologia
que o informa no âmbito da improbidade administrativa a partir das
matrizes constitucionais?
Destaque-se, de saída, que o Direito Administrativo Sancionador é
uma categoria jurídica doutrinária importada de países europeus (onde é
considerada há um bom tempo).
Parece suficiente, para a delimitação do Direito Administrativo
Sancionador na atualidade, compreender os movimentos na
Alemanha, que foram do Direito Penal de Polícia ao Direito Penal
Administrativo, e, depois, especialmente na Espanha, ao denominado
Direito Administrativo Sancionador.
Heinz Mattes apresenta, com profundidade, o devir histórico da
matéria na Alemanha13 e, em apertadíssima síntese, pode-se afirmar

13
MATTES, Heinz. Problemas de Derecho Penal Administrativo: História y Derecho Comparado. Tradução
(do original alemão, publicado por Ed. Duncker & Humblot, Berlim, 1977) de José Maria Rodriguez
Devesa. Madrid: Editoriales de Derecho Reunidas (EDERSA), 1979.
392 Vicente de Abreu Amadei

que a partir do final do século XIX, surgiram novos pontos de vista em relação
à teoria do direito penal de polícia, principalmente, com Max E. Mayer
(pois, com ele “se encerra a época do direito penal de polícia, que havia
começado com a teoria, apoiada na ideia do direito natural individua-
lista, formulada ao modo clássico por Feuerbach”14), com Reinhard Von
Frank (ao apontar a necessidade de separar “os delitos graves dos leves,
com tratamento diferenciado de ambos, tanto no aspecto jurídico material
como no jurídico processual”15) e, sobretudo, com James Goldschmidt,
quando, então, já iniciada “a transformação do Estado de polícia do
liberalismo tardio no moderno Estado administrativo”16.
De fato, daqueles novos pontos de vista e com os trabalhos precur-
sores de “Stahl, Lorenzo Von Stein e Otto Mayer, que desenvolveram a
teoria da Administração e do direito administrativo”17, foi possível James
Goldschmidt fixar a “teoria do direito penal administrativo”18, engendrado
pela Administração como poder penal administrativo distinto do poder
penal constitucional (direito penal de Justiça): aquele, para os delitos
administrativos, como fenômeno de Direito Administrativo; este, para os
delitos do Direito Penal19.
Embora a teoria do Direito Penal Administrativo (Goldschmidt) tenha
se fixado e difundido na primeira metade do século XIX, com diversos
debates, críticas e lapidações20, ela passou por algum adormecimento
no período da II Guerra Mundial e, depois, na “evolução do pós-guerra”,
voltou fortemente à cena, o que ficou conhecido como “renascimento
do direito penal administrativo”, especialmente com os estudos de
Eberhard Schmidt sobre o direito penal econômico21, até culminar em 1952

14
MATTES, Heinz. Op. cit., p. 169, tradução nossa.
15
MATTES, Heinz. Op. cit., p. 173, tradução nossa.
16
MATTES, Heinz. Op. cit., p. 177, tradução nossa.
17
MATTES, Heinz. Op. cit., p. 178-179, tradução nossa. Com Stahl, a ideia do cuidado com o bem comum
pela Administração e de que o Estado o deve fomentar, com mais atenção à ordem a ser corrigida,
com função preventiva dos ilícitos, em relação à ordem jurídica punitiva. Com Von Stein, a distinção
entre Administração e administração de justiça, e, daí, a configuração da pena na ordem adminis-
trativa, própria da competência da Administração. Com Otto Mayer, uma maior precisão do objeto
da Administração, no foco da tutela contra perturbações à boa ordem da comunidade frente ao ser
individual, atento à possibilidade de uma pena de conformação a preceitos jurídicos. Confira: MATTES,
Heinz. Op. cit., p. 179/184.
18
MATTES, Heinz. Op. cit., p. 179, tradução nossa.
19
MATTES, Heinz. Op. cit., p.186-194.
20
MATTES, Heinz. Op. cit., p.195-228.
21
MATTES, Heinz. Op. cit., p. 229.
Improbidade administrativa e sua reforma - principais alterações da
Lei nº 14.230/21 e seus impactos nos processos em curso e findos 393

(e, adiante, em 1968) com a lei alemã conhecida como de direito penal


de ordem, ou de infrações e penas de ordem, à moda de E. Schmidt.
E, ainda, como aponta Heinz Mattes, em direito comparado, quadro
similar também é o da situação jurídica da matéria em alguns outros
países europeus (Áustria, Suíça, França e Itália)22.
Agora, então, com Alejandro Nieto García, senão o maior, um dos
maiores juristas que estudaram essa matéria na Espanha, o caminho ao
Direito Administrativo Sancionador.
Convertida a ideia de Polícia em “uma modalidade dentre as múlti-
plas atividades administrativas, rompendo-se a velha identidade entre
Polícia e Administração”, a partir da Alemanha, buscou-se “um novo lugar
para residir as contravenções de polícia”, mas, na Espanha, “a concepção
policial se manteve durante mais tempo”, também passou por “uma fase
de Direito Penal Administrativo (até breve e simplesmente doutrinal)”
e ingressou, “quase por salto, a um Direito Administrativo Sancionador
de caracteres originais e em nada tributário do Direito estrangeiro”23.
E, assim, surgiu na Espanha o “Direito Administrativo Sancionador, criado,
batizado e desenvolvido pela Jurisprudência contencioso-administrativa –
logo complementada pela penal”, mas, “como seu nome indica e a diferen-
ça do velho Direito Penal Administrativo”, ele (DAS) “é em primeiro
plano Direito Administrativo, no qual o “Sancionador” impõe uma mera
modalização adicional ou adjetiva”. Em outras palavras, “o plus que
adiciona o ‘sancionador’ significa que este Direito está invadido, colorido,
pelo Direito Penal sem deixar de ser Administrativo”, e, assim, ele (DAS)
“pode funcionar perfeitamente de maneira autônoma e rigorosamente
independente do Penal”24.
No Brasil, vem agora, na lei, a menção aos os princípios consti-
tucionais do direito administrativo sancionador, mas não há em nosso
ordenamento jurídico alguma lei ou alguma norma legal (constitucional ou
infraconstitucional) – diversamente do que se pode encontrar em outros
países, como na Espanha25 – que expresse o seu conteúdo normativo ou

22
MATTES, Heinz. Op. cit., p. 231-238, 485.
23
GARCÍA, Alejandro Nieto Derecho Administrativo Sancionador. 4. ed. Madrid: Tecnos, 2008. p. 173, 177,
tradução nossa.
24
GARCÍA, Alejandro Nieto. Op. cit., p. 177, tradução nossa
25
A Espanha, desde 1992, conta com legislação sobre a matéria: a Lei espanhola 30/1992 contém normas
específicas acerca dos princípios do poder sancionador da Administração (arts. 127 a 133), bem como
do respectivo procedimento sancionador (arts. 134 a 138).
394 Vicente de Abreu Amadei

principiológico. É necessário, então, um esforço doutrinário e jurispru-


dencial, para compreender o Direito Administrativo Sancionador em nosso
país apenas por inferência das matrizes constitucionais comuns ao seu
campo de incidência plural no contexto do direito administrativo.
Daí, então, a grande divergência acerca de seu conteúdo e seus
contornos (ou limites) normativos ou principiológicos. Em todo caso,
parece certo, que aqui se abarca, como gênero, as diversas espécies
do Direito Sancionador inerentes ao Direito Administrativo, sem confu-
são com outras espécies do direito sancionador (categoria de maior
amplitude, que abarca o Direito Penal, o Direito Eleitoral Sancionador,
o Direito Político-Administrativo Sancionador e, também, o Direito
Administrativo Sancionador).
Cogitar, então, em princípios constitucionais do Direito Administrativo
Sancionador não importa equivalência alguma aos princípios do Direito
Penal (sancionador), do qual se distinguem, por natureza diversa, os princí-
pios do Direito Administrativo (sancionador). Pode sim, haver alguma
aproximação; não, contudo, identidade. Afinal, os princípios deste (DAS)
são próprios do universo do Direito Administrativo, atento, pois, ao que
é comum, a partir da matriz constitucional, ao Direito Sancionador que
incide na pluralidade disciplinar/ilícita/censória/punitiva que envolve a
Administração Pública (que vale, por exemplo, ao direito disciplinar
dos servidores públicos e delegados de serviços públicos, ao direito
sancionador das infrações de trânsito, do exercício do poder de polícia,
dos contratos administrativos e concessões públicas, etc., bem como ao
sistema de improbidade administrativa).
Assim, por exemplo, já se afirmou no STJ que os “princípios da
proporcionalidade, dignidade da pessoa humana e culpabilidade, aplicáveis
ao Regime Jurídico Disciplinar de Servidor Público e mesmo a qualquer
relação jurídica de Direito Sancionador” impõe a evidência de que

não há juízo de discricionariedade no ato


administrativo que impõe sanção a Servidor Público
em razão do cometimento de infração disciplinar,
de sorte que o controle jurisdicional é amplo, não se
limitando, portanto, somente aos aspectos formais
(MS 21586/DF, 1ª Seção, Rel. Min. Napoleão Nunes
Maia Filho, j. 22/05/2019).
Improbidade administrativa e sua reforma - principais alterações da
Lei nº 14.230/21 e seus impactos nos processos em curso e findos 395

Não se nega, até pela leitura da exposição de motivos da Lei


nº 14.230/21, que, essa lei “altera, de maneira direta, a lógica e o siste-
ma de sanções por atos de improbidade”, e, portanto, “algum paralelo
foi feito com o processo penal”. Todavia, daí e do prescrito no art. 1º,
§ 4º, e até mesmo do art. 17-D, ambos da LIA, afirmar que deve haver
uma automática transposição dos princípios específicos do direito penal
ao direito administrativo sancionador, vai uma longa distância.
Há, então, um núcleo principiológico e uma teoria elementar, comum
ao Direito Administrativo Sancionador, que não se pode desprezar, mas,
repita-se, por ausência de legislação específica há, em verdade, muita
divergência na matéria. E se deve buscar solução com muita prudência,
sem açodamento.
Afinal, é preciso ter atenção aos campos distintos do Direito Penal e
do Direito Administrativo, na esfera da tipificação dos ilícitos e sanciona-
mentos adequados e proporcionais. Essa, aliás, foi a razão histórica pela
qual o Direito Administrativo Sancionador apartou-se do Direito Penal.
E, como adverte Alejandro Nieto, “os tribunais (e os autores) tem
que ser conscientes de que, se for muito esticada, a corda rompe,
e o princípio fundamental de Direito Administrativo Sancionador, como de
todo exercício de Direito, é a prudência”26. Aliás, também vale para o
Brasil a cautela que esse jurista já apontou para a Espanha: se é certo
que o Direito Administrativo Sancionador pode ter seus “cimentos na
Constituição”, também é verdade que

sobre a natureza constitucional dos princípios


fundamentais do Direito Administrativo Sancionador
pesa algo mais que a sombra de uma dúvida, porque
até agora não se encontra – nem se encontrará a
menos que se modifique a Constituição – um texto
que o apoia mais ou menos diretamente.

Daí, nada obstante o bom propósito de se querer “cimentar solida-


mente este ramo do Direito”, é preciso muita cautela e prudência,
pois “as consequências de uma falsificação inicial deste calibre nunca
podem ser boas. A constitucionalização da matriz tem provocado uma
intensa rigidez do regime que se está pagando muito cara”27.

26
GARCÍA, Alejandro Nieto. Op. cit., p. 565, tradução nossa.
27
GARCÍA, Alejandro Nieto. Op. cit., p. 560-561, tradução nossa.
396 Vicente de Abreu Amadei

6. A fonte de inspiração do Direito Administrativo Sancionador:


Direito Penal ou Direito público estatal?

Ao se perceber, na Lei nº 14.230/21 tantas inovações decorrentes


de inspiração, até mesmo transposição, do que é próprio do regime de
Direito Penal ao regime da improbidade administrativa (v.g. o modo fechado
de tipificação), fica a impressão de que é no Direito Penal, a partir das
garantias individuais que lhe são próprias e expressas na Constituição
Federal, que se deve compreender, por inspiração, ou importação, o rol
dos princípios de Direito Administrativo Sancionador de que cuida o § 4º
do art. 1º da LIA.
Contudo, essa não parece ser a melhor solução, pelo que se colhe da
evolução histórica e da axiologia do Direito Administrativo Sancionador.
É de Alejandro Nieto a lição de que “o poder sancionador da
Administração é tão antigo como ela mesma” e foi “a partir do consti-
tucionalismo” e do “desprestigio ideológico da Polícia, que arrastou
consigo inevitavelmente o do poder sancionador da Administração”,
que  “se reconheceu o monopólio estatal da repressão” em favor
“dos Juízes e Tribunais”. Derivou, pois, esse monopólio de um “ius puniendi
superior do Estado”, único e ao qual está integrado o poder sancionador
da Administração. Assim, ante o movimento histórico de construção do
Direito Administrativo Sancionador em modo segregado ao Direito Penal,
“o lógico” seria aquele (DAS) nutrir-se “da substância do poder matriz”
(ius puniendi do Estado, ou seja, do Direito público estatal) e não do
Direito Penal como se tem verificado. E, nessa distorção, vislumbra-se “uma
substituição ilegítima, que importa denunciar e se necessário corrigir”28.
Não se olvide que o “Direito Penal é um direito garantista, preocupado
com o respeito ao direito dos acusados”; e o “Direito público estatal,
sem menosprezo das garantias individuais, põe em primeiro plano a prote-
ção e o fomento dos interesses gerais e coletivos”. Portanto, é preciso,
“transladar o Direito Administrativo Sancionador do campo do Direito
Penal […] ao do Direito público estatal”. Afinal, “não foi por acaso que
o velho nome Direito Penal Administrativo foi substituído por Direito
Administrativo Sancionador”29.

28
GARCÍA, Alejandro Nieto. Op. cit., p. 26, tradução nossa.
29
GARCÍA, Alejandro Nieto. Op. cit., p. 26-27, tradução nossa.
Improbidade administrativa e sua reforma - principais alterações da
Lei nº 14.230/21 e seus impactos nos processos em curso e findos 397

Ressalte-se que a centralidade da fonte inspiradora do Direito


Administrativo Sancionador no Direito público estatal, e não no Direito
Penal, em nada menosprezam as garantias individuais, as quais naquela
esfera (DAS) “não tem que proceder forçosamente do Direito Penal,
mas sim da autonomia própria do Direito Administrativo Sancionador”30.
E, ainda que não se caminhe por essa fonte de inspiração, a ênfase
no alicerce do Direito Administrativo Sancionador a partir de princí-
pios constitucionais, por si, não autoriza a equiparação principiológica
constitucional entre Direito Penal e Direito Administrativo Sancionador.
Afinal, mesmo considerando que neste campo (DAS) o “primeiro pilar”
seja a Constituição e “o segundo”, tenha se assentado no Direito Penal,
a evidência da construção histórica, ontológica e axiológica é a de que

O Direito Administrativo Sancionador encontra sua


identidade quando consegue determinar com precisão
o que o separa do Direito Penal, e assim demonstra
que não é um mero filho dele, ao modo de um Direito
Penal de bagatela ou de segunda categoria31.

7. A teoria elementar do Direito Administrativo Sancionador.


Esboço de sistematização no Direito Brasileiro

Partindo do Direito Administrativo atrelado à categoria superior do


ius puniendi do Estado (Direito Público Estatal), e aí imbricado o fluxo
de inspiração do Direto Administrativo Sancionador, avança-se no esforço
de sua construção sistemática brasileira. E nessa aproximação teórica
elementar, talvez seja de bom proveito começar com algumas máximas
ou regras gerais de interpretação:
(i) a “norma administrativa deve ser interpretada e aplicada da
forma que melhor garanta a realização do fim público a que se
dirige” (artigo 5º Lei Estadual nº 10.177/98), i.e., impõe-se a
“interpretação da norma administrativa da forma que melhor
garanta o atendimento do fim público a que se dirige, vedada
aplicação retroativa de nova interpretação” (artigo 2º, parágrafo

30
GARCÍA, Alejandro Nieto. Op. cit., p. 27, tradução nossa.
31
GARCÍA, Alejandro Nieto. Op. cit., p. 562, tradução nossa.
398 Vicente de Abreu Amadei

único, XIII, da Lei nº 9.748/99), observada, ainda, na hipótese de


“interpretação ou orientação nova” a necessidade de se “prever
regime de transição” (art. 23 da LINDB);
(ii) disposições que cominam penas reclamam “exegese rigorosa,
estrita”32, não comportam interpretação extensiva nem amplia-
ção analógica, e daí “vedado o uso de interpretação extensiva no
âmbito do direito sancionador” (STJ, AgInt nos EREsp. 1761937/SP,
Rel. Ministro Mauro Campbell Marques, Primeira Seção, julga-
do em 19/10/2021, DJe 22/10/2021, com referência à falta de
tipicidade em improbidade administrativa para pena de cassação
de aposentadoria33);
(iii) na avaliação da ocorrência, ou não, de infração administrativa
de agente público em geral (no âmbito, pois, do DAS), é preci-
so ter atenção às “consequências práticas” (art. 20 da LINDB),
às “circunstâncias práticas” (art. 22, § 1º, da LINDB), bem como
aos “obstáculos e as dificuldades reais do gestor e as exigências
das políticas públicas a seu cargo” (art. 22 da LINDB), que estão
da decisão ou conduta subjacente à infração em exame;
(iv) as clássicas máximas de Direito Penal in dubio pro reo ou in
dubio mitius interpretadum est sempre podem ser invocadas em
Direito Sancionador, bem como as que se reportam à interpre-
tação benigna em situação de dúvida ou de punição (in dubiis
benigniora praeferenda sunt e in poenalibus causis benignius
interpretandum est), pois decorrem da presunção de inocência
inerente a todo sistema de imputação pessoal de ilícitos;
(v) em sede de aplicação do Direito Administrativo (incluso o
Sancionador), as autoridades públicas (incluída as judiciais) “devem
atuar para aumentar a segurança jurídica”, preferindo, pois,
a exegese que confira estabilidade à que deságue em instabilidade
e insegurança jurídica (art. 30 da LINDB).

MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. 9. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1981. p. 323.
32

A 1ª Seção do STJ definiu pela impossibilidade dessa sanção, que não conta com previsão legal da LIA:
33

Embargos de Divergência em RESP nº 1.496.347-ES, Rel. desig. p/ ac. Min. Ministro BENEDITO GONÇALVES,
j. 24 de fevereiro de 2021: “A Lei Federal n. 8.429/92 é lei especial e posterior à Lei n. 8.112/90,
disciplinando, especificamente, “as sanções aplicáveis aos agentes públicos” que incorrem nos atos de
improbidade ali previstos (grifou-se). Portanto, no âmbito da persecução cível por meio de processo
judicial, e por força do princípio da legalidade estrita em matéria de direito sancionador, as sanções
aplicáveis limitam-se àquelas previstas pelo legislador ordinário, não cabendo ao Judiciário estendê-las
ou criar novas punições, sob pena, inclusive, de violação ao princípio da separação dos poderes”
(voto-vista do Min. Benedito Gonçalves).
Improbidade administrativa e sua reforma - principais alterações da
Lei nº 14.230/21 e seus impactos nos processos em curso e findos 399

Quanto à eleição da sanção, o critério da gravidade das condutas


castigadas – que serve para a distinção geral entre infrações penais e
administrativas, apoiando o princípio da intervenção mínima de Direito
Penal34 -, também informa o Direito Administrativo Sancionador, em si,
quer pela gradação legal das infrações (v.g. infrações graves e leves;
de lesividade relevante ou insignificante; de lesividade maior ou menor),
quer no julgamento do mérito do processo sancionador, pois, como é a
lição de Diógenes Gasparini no campo disciplinar em geral, a “autoridade
competente, em razão da gravidade do fato determinante da punição,
escolhe, dentre as penas, a que melhor atenda ao interesse público e que
melhor puna a infração praticada”35.
E, isso é assim, com igual respeito às normas da LINDB, ao prescre-
ver que é preciso, na “aplicação de sanções”, considerar “a natureza
e a gravidade da infração cometida, os danos que dela provierem para
a administração pública, as circunstâncias agravantes ou atenuantes e
os antecedentes do agente” (art. 22, § 2º), bem como levar em conta,
como regra geral, nas sanções aplicadas, a “dosimetria das demais sanções
de mesma natureza e relativas ao mesmo fato” (art. 22, § 3º).
Na esfera da improbidade administrativa, essa matéria tem colorido
especial e expresso no art. 12 da LIA, observando que as sanções “podem
ser aplicadas isolada ou cumulativamente, de acordo com a gravidade
do fato” (caput) e que a sanção de perda função pública (art. 9º e 10),
“atinge apenas o vínculo de mesma qualidade e natureza que o agente
público ou político detinha com o poder público na época do cometimen-
to da infração” (§1ª), estendendo-a apenas “em caráter excepcional”
(art. 9º), “aos demais vínculos, consideradas as circunstâncias do caso e a
gravidade da infração” (§ 1º) (BRASIL, 2021). E, no campo da duplicidade
de sancionamento pelo mesmo fato, vedado o bis in idem à pessoa jurídi-
ca enquadrada na LIA e na Lei nº 12.846/2013 (art. 3º, § 2º, e 12, § 7º,
ambos da LIA). Tudo, ainda, não se olvidando a necessidade de precisa
individualização da sanção, na forma detalhada do art. 17-C, IV a VII,
da LIA, em sua redação conferida pela Lei nº 14.230/21.
Outrossim, em ordem à uma teoria elementar, comum ao Direito
Administrativo Sancionador, não se pode deixar de destacar um núcleo
principiológico, mas, repita-se, por ausência de legislação específica há,
a rigor, muita divergência na matéria.

34
LORA, Alejandro Huergo, Las sanciones administrativas. Madri: Iustel, 2007. p. 143-153.
35
Op. cit., p. 244.
400 Vicente de Abreu Amadei

Parece, todavia, viável apontar ao Direito Administrativo Sancionador,


em primeira aproximação, os seguintes princípios36:
(i) princípio de legalidade: em sede administrativa sancionadora,
informa que apenas lei formal autoriza tipificar infrações e
cominar sanções37;
(ii) princípio de reserva legal ou de anterioridade: com raiz no
“princípio da legalidade dos delitos e das penas” em geral – que,
“para a honra dos povos hispanocêntricos, teve origem histórica
na outorga feita por Dom Afonso IX, Rei de Leóns e da Galícia,
às Cortes leonesas, no ano de 1.188”38 -, aponta que as infrações e
sanções devem estar previstas e previamente estatuídas em lei39;
(iii) princípio de tipicidade: indica que infrações e sanções devem
estar descritas em norma jurídica, de modo suficientemente claro
e preciso, mas, no foco da tipicidade das infrações funcionais,
basta, em regra, o tipo genérico, pois não se exige definição ou
tipo específico da falta disciplinar, enquanto, no foco da improbi-
dade administrativa, por exceção, prevalece a tipificação descri-
tiva e fechada, em rol exaustivo, desde o início de vigência da
Lei 14.230/21;

36
Neste breve estudo, aliás, procurei apontar por ocasião do artigo que escrevi e foi publicado na
Revista Brasileira de Estudos da Função Pública – RBEFP (AMADEI, Vicente de Abreu. Responsabilidade
Administrativa dos Notários e Registradores. Revista Brasileira de Estudos da Função Pública – RBEFP,
Belo Horizonte, v. 1, n. 2, p. 121–147, 2012). Logo, a mesma advertência que então apontei naquela
ocasião sobre essa principiologia vale para o momento reproduzir: “Abstração às questões de filosofia
do direito, que o trato dos princípios jurídicos remete ao tema atual da hipertrofia dos princípios,
inclusa as propostas de delimitação dos conceitos de princípios e normas em ordem a evitar essa
hipertrofia (v.g. a crítica de Alejandro Nieto, in Derecho Administrativo Sancionador, 4ª edição,
2ª reimpressão. Madri: Tecnos, 2008, p. 44/47), procuramos, focado apenas no critério da utilidade,
apontar as proposições gerais ou enunciados de verdades generativas (com potencial de dedução
de outras verdades) pertinentes à matéria, que se revelam, na prática, relevantes, sem pretensão
de atender rigor científico ou esgotar o ponto. Para aprofundamento, indicamos, além da referida
obra de Alejandro Nieto, os estudos de José Armando da Costa (Direito Administrativo Disciplinar,
2ª edição. São Paulo: Método, 2009, p. 55/85, 175, 229/231), de Celso Antônio Bandeira de Mello (Curso
de Direito Administrativo, 27ª edição. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 850/859), de Diógenes Gasparini
(Direito Administrativo, 12ª edição. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 242/245, 936/938 e 956), em que
estão apoiadas boa parte das assertivas indicadas”.
37
Daí cabe “mandado de segurança quando a lei não autoriza a imposição da pena aplicada” (STF, RE 84217,
Rel. Min. MOREIRA ALVES, j. 09/04/1976, RTJ 79-01/318 ou RDA 130/186). Como subprincípio derivado
do princípio de legalidade, ainda é possível apontar o da irretroatividade da lei prejudicial; mas,
para discutir o da ir(retroatividade) da lei favorável, em DAS, a análise se fará em item próprio.
38
É a lição de Ricardo Dip, in Registros de imóveis e notas: responsabilidade civil e disciplinar. São Paulo:
RT, 1977. p. 31.
39
A Lei estadual paulista nº 10.177/98 enfatiza a necessidade de observância ao princípio da reserva
legal na criação de “condicionamentos aos direitos dos particulares”, na imposição de “deveres de
qualquer espécie”, na previsão de “infrações” e prescrição de “sanções” (artigo 6º).
Improbidade administrativa e sua reforma - principais alterações da
Lei nº 14.230/21 e seus impactos nos processos em curso e findos 401

(iv) princípio de non bis in idem: comunica que, no âmbito interno


de cada ramo do direito e de cada regime sancionatório, é vedada
a duplicidade de sanções de igual natureza por um mesmo fato
infracional, e, em havendo tal duplicidade em regimes sancio-
natórios em um mesmo ramo, o apenamento prévio deve ser
compensado na aplicação da nova sanção (art. 22, § 3º, da LIA)40,
não se descurando, por fim, em sede de “sanções aplicadas a
pessoas jurídicas”, da vedação à duplicidade de sancionamento
para o mesmo fato infracional qualificado simultaneamente na Lei
de Improbidade Administrativa (LIA) e na Lei Anticorrupção (LAC –
Lei 12.846/13), em que se impõe, expressamente, a observância
ao “princípio constitucional do non bis in idem” (art. 12, § 7º e
art. 3º, § 2º, ambos da LIA);
(v) princípio de culpabilidade ou de mera voluntariedade: em sede
administrativa disciplinar e repressiva, o princípio de culpabili-
dade tem leitura própria, pois a responsabilidade pode pressupor
dolo ou culpa, mas, para as infrações formais, basta a simples
inobservância de dever funcional, e, assim, afirma-se o denomi-
nado princípio da mera voluntariedade, informando que, no âmbito
administrativo sancionador em geral não há necessidade de dolo ou
culpa, bastando o animus ou a simples voluntariedade de praticar
determinada conduta, salvo previsão legal diversa e específica em
sentido contrário, como atualmente se encontra na LIA, por força
da Lei nº 14.230/21, a exigir o dolo específico;
(vi) princípio de proporcionalidade: impõe “adequação entre
meios e fins, vedada a imposição de obrigações, restrições e
sanções em medida superior àquelas estritamente necessárias ao
atendimento do interesse público” (art. 2º, parágrafo único, VI,
da Lei nº 9.748/99, que traduz o princípio no âmbito processual
administrativo, mas cujo conceito também vale para o processo
judicial administrativo-repressivo);
(vii) princípio de motivação: na lição de Celso Antônio Bandeira
de Mello, a “Administração é obrigada a expor os fundamen-
tos em que está embasada a sanção”, sob pena de “nulidade

40
RIBEIRO, Carlos Vinicius Alves. Comentários ao § 3º, do art. 22, da nova redação da LINDB. In: CUNHA
FILHO, Alexandre Jorge Carneiro da; ISSA, Rafael Hamze; SCHIWIND, Rafael Wallbach (coord.). Lei de
introdução às normas do direito brasileiro: anotada, . São Paulo: Quartier Latin, 2019. v. 2, p. 214.
402 Vicente de Abreu Amadei

do apenamento”  41, e vale igualmente para o Poder Judiciário


em sua função jurisdicional repressiva, não se olvidando que no
regime sancionatório da improbidade administrativa, como já se
apontou, a fundamentação exige densidade e amplitude, não só
pela aplicação dos novos princípios do CPC/2015, mas também
pelas indicações da própria LIA em sua nova redação, a incluir o
campo do juízo fático-jurídico e da demonstração das provas em
que se sustenta a condenação;
(viii) princípio de prescrição: porque a sanção nesta seara importa em
punição ao infrator, a inércia da Administração Pública, no decurso
do tempo, resulta na extinção do ius puniendi, ou seja, da pretensão
punitiva do Estado, observando, com José Armando da Costa, que a
“prescritibilidade das sanções disciplinares é princípio mundialmente
sacramentado” 42, e o mesmo vale, com adaptações, para a esfera
judicial da improbidade administrativa, que, na atual redação da LIA,
contêm normas expressas sobre o ponto, mais benéficas aos supostos
infratores (prevista, inclusive, a figura da prescrição intercorrente).

Oportuno, finalizar o item, destacando o denso estudo de José Roberto


Pimenta Oliveira e Dinorá Adelaide Musetti Grotti sobre a matéria – acerca,
como intitulado, do Direito administrativo sancionador brasileiro: breve
evolução, identidade, abrangência e funcionalidades –, publicado em
março/abril de 2020 (antes, pois, da Lei 14.230/21), no qual, apontado
o fenômeno da expansão do DAS, identificam-se os seus princípios consti-
tucionais, segregando-os os materiais dos processuais, e, em resumo,
assim os catalogam:

Direitos e garantias constitucionais individuais


que merecem atenção cuidadosa no Direito
Administrativo Sancionador podem ser catalogados e
classificados como princípios materiais e processuais.
São materiais, vez que incidem diretamente na
relação jurídico-administrativa sancionadora:
legalidade, tipicidade, irretroatividade de norma
mais prejudicial, imputação adequada, pessoalidade,
proporcionalidade, prescritibilidade e non bis in idem.

41
Op. cit. p. 859.
42
Op. cit., p. 230.
Improbidade administrativa e sua reforma - principais alterações da
Lei nº 14.230/21 e seus impactos nos processos em curso e findos 403

São princípios processuais, vez que incidem na relação


jurídico-processual administrativa que objetiva a
produção do ato administrativo sancionador: devido
processo legal, imparcialidade, contraditório,
ampla defesa, presunção de inocência, garantia da
não-auto-responsabilização, inadmissibilidade de
provas ilícitas, recorribilidade, definição, a priori,
da competência administrativa sancionadora,
motivação e duração razoável do processo43.

Observe-se, nesse estudo, que, dentre os princípios constitucionais


materiais de Direito Administrativo Sancionador, por derivação do princípio
de legalidade, aponta-se o da irretroatividade de norma mais prejudicial44,
mas nele não há uma linha sequer em torno da eventual retroatividade
de norma mais favorável. Estaria, propositalmente, fora do catálogo?
Poder-se-ia entender implícito, ou incluído indiretamente, por inferência
ao da irretroatividade da norma mais prejudicial que se apontou?

8. Sobre a (ir)retroatividade da lei nova mais favorável em Direito


Administrativo Sancionador. Esboços para soluções de questões de
direito intertemporal material

Como já se antecipou, há inúmeras incertezas e dúvidas quanto à


adequada interpretação e aplicação das novas normas da LIA (sobretudo em
sede de direito intertemporal material): (i) aos fatos ocorridos ao tempo da
lei antiga, aplica-se a lei antiga ou a lei nova? (ii) aos processos em trâmi-
te antes da lei nova, impõe-se, ou não, a adaptação à Lei nº 14.230/21?

43
OLIVEIRA, José Roberto Pimenta; GROTTI, Dinorá Adelaide Musetti Grotti. Direito administrativo
sancionador brasileiro: breve evolução, identidade, abrangência e funcionalidades. Revista Interesse
Público, Belo Horizonte, ano 22, n.120, p. 83-126, 2020.
44
E, para ele, não há dúvida quanto à necessidade de sua observância. Basta, dentre muitos julgados
e vasta doutrina, apontar o bom precedente do STJ (caso em que se rejeitou a aplicação retroativa
da LIA, i.e., aos fatos ocorridos antes de sua vigência): “ADMINISTRATIVO. LEI DE IMPROBIDADE
ADMINISTRATIVA. APLICAÇÃO RETROATIVA A FATOS POSTERIORES À EDIÇÃO DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL
DE 1988. IMPOSSIBILIDADE. 1. A Lei de Improbidade Administrativa não pode ser aplicada retroativamente
para alcançar fatos anteriores a sua vigência, ainda que ocorridos após a edição da Constituição Federal
de 1988. 2. A observância da garantia constitucional da irretroatividade da lei mais gravosa, esteio da
segurança jurídica e das garantias do cidadão, não impede a reparação do dano ao erário, tendo em
vista que, de há muito, o princípio da responsabilidade subjetiva se acha incrustado em nosso sistema
jurídico. […]” – (REsp. 1129121/GO, Rel. Ministra ELIANA CALMON, Rel. p/ Acórdão Ministro CASTRO
MEIRA, SEGUNDA TURMA, julgado em 03/05/2012, DJe 15/03/2013).
404 Vicente de Abreu Amadei

(iii) as sentenças condenatórias transitadas em julgado – pendentes,


ou não, de cumprimento (total ou parcial) –, escapam, ou não, dos efeitos
da lei nova mais benéficos aos infratores?
É preciso cautela nessa avaliação e, de saída, evitar os polos extremos
de tentações interesseiras ou ideológicas: (i) um, de política abolicionista,
centrada apenas em interesses de tirar da lei nova proveito aos infratores
condenados, em vias de ser ou em risco de sofrer processos por improbidade
administrativa; (ii) outro, de desencanto com o estrago que se fez na LIA,
ante os nítidos propósitos da Lei nº 14.230/21 de minguar as condenações
por improbidade administrativa, reduzindo ou minimizando, neste campo,
a tutela da moralidade, centrada apenas em esforço ativista de ignorar ou
inconstitucionalizar as inovações legais, no escopo de preservar, em tudo
e o quanto der, a lei antiga, seja qual for o argumento.
A razoabilidade na interpretação e a prudência na aplicação, então,
se impõe, principalmente no ponto da transposição da abolitio criminis –
ou da regra da retroatividade da lei penal mais favorável (art. 5º, XL,
da CF) ao sistema da improbidade administrativa. E aí está a chave para
solução daquelas questões de direito intertemporal material.
Há diversos e respeitáveis entendimentos, e, ao que parece,
formam-se duas correntes principais, de relevantes e respeitáveis densi-
dades argumentativas:
(i) uma pela transposição da abolitio criminis ao regime jurídico da
improbidade administrativa, via princípios constitucionais que se
apontam também ao Direito Administrativo Sancionador, especial-
mente em campo de densidade infracional e punitiva como é o
da improbidade;
(ii) outra, pela inadmissibilidade dessa transposição, ante a especifici-
dade e distinção de fins, de bens jurídicos tutelados e de princípios
específicos e autônomos do Direito Administrativo Sancionador,
que não comungam com todos os princípios do Direito Penal.
No STF, a questão está posta em repercussão geral já admitida
(Tema nº 1199, ARE 843.989) e o voto do Rel. Min. Alexandre de Moares,
pela admissibilidade, bem resume a divergência de entendimentos que
reina no assunto.
Não se nega, ademais, uma forte tendência à resposta assertiva
para a aplicação da lei nova mais benéfica em todas aquelas situações
questionadas, invocando a expansão do Direito Administrativo Sancionador,
Improbidade administrativa e sua reforma - principais alterações da
Lei nº 14.230/21 e seus impactos nos processos em curso e findos 405

ao fundamento de que se reclama cada vez mais aproximação aos princí-


pios e critérios operacionais garantistas do Direito Penal. Assim tem sido a
orientação de boa parte da academia, e alguma tendência nessa direção
também se pode vislumbrar no STJ (é o que se pode ler no voto-vista da
Min. Regina Helena Costa, REsp. 1353267/DF, Rel. Ministro NAPOLEÃO
NUNES MAIA FILHO, Rel. p/ Acórdão Ministra REGINA HELENA COSTA,
Primeira Turma, julgado em 23/02/2021, DJe 25/03/202145).
Mas, mesmo no STJ, a questão – embora em exame no campo do
processo administrativo disciplinar (PAD), em matéria de prescrição advin-
da em lei superveniente –, não ganhou tanta elasticidade, inclusive em
face de argumentação calcada no Direito Administrativo Sancionador:
conclui-se, pelos fundamentos do voto do Relator Min. Herman Benjamin,
que a prescrição superveniente poderia ser aplicada ao processo em
curso, não, contudo, aos processos findos, destacando-se com a doutrina
de Fábio Medina Osório, que

se no Brasil não há dúvidas quanto à retroatividade


das normas penais mais benéficas, parece-me
prudente sustentar que o Direito Administrativo
Sancionador, nesse ponto, não se equipara ao
direito criminal, dado seu maior dinamismo”

“RECURSO ESPECIAL. DIREITO DA CONCORRÊNCIA. REGULAÇÃO ESTRUTURAL DO PODER ECONÔMICO


45

EXERCIDA PELO CADE. ATOS DE CONCENTRAÇÃO – MOMENTO DE SUA REALIZAÇÃO. ABOLITIO CRIMINIS –
INAPLICABILIDADE – MAIOR RESTRITIVIDADE DA LEI POSTERIOR. […] – (VOTO-VISTA – Rel. Min. Regina
Helena Costa, que ficou como relatora designada) […] VI. Da abolitio criminis. A abolitio criminis é a
supressão de tipo penal, deixando de considerar delito determinada conduta. Enseja a retroatividade
da lei abolicionista e beneficia os acusados e condenados com base no tipo extinto, nos termos do
art. 2º do Código Penal. Em exame acerca da natureza jurídica da norma constante do § 5º art. 54 da
Lei n. 8.884/1994, observo tratar-se de penalidade administrativa, imposta em razão do cometimento
de infração ali tipificada. O tema insere-se no âmbito do direito administrativo sancionador e, segundo
doutrina e jurisprudência, em razão de sua proximidade com o direito penal, a ele se estende a norma
do art. 5º, XVIII, da Constituição da República, qual seja, a retroatividade da lei mais benéfica. Nesse
sentido a jurisprudência desta Corte (1ª TURMA, REsp. n. 1.402.893/MG, Rel. Ministro SÉRGIO KUKINA,
j. em 11.04.2019, DJe 22.04.2019). A aplicação da abolitio criminis pressupõe nova lei, que suprima
ou reduza a pena do infrator pela prática de conduta outrora tipificada como crime. […] Na atual
Lei de Defesa da Concorrência, substitutiva da Lei n. 8.884/1994, a multa permanece e o prazo para
submissão da operação ao CADE tornou-se mais restrito, porquanto a apresentação do ato de concen-
tração deve se dar obrigatoriamente antes da produção de efeitos, sendo certo que esses efeitos não
poderão ocorrer antes da manifestação da autarquia reguladora (Lei n. 12.529/2011, art.88, §§ 2º,
3º e 4º). Logo, não há que se falar em existência de lei penal mais benéfica que viesse a ser aplicada.
Mais rigorosa é a lei posterior, porquanto exige a apresentação prévia do primeiro ato vinculativo da
concentração, sob pena de multa.”
406 Vicente de Abreu Amadei

(STJ, RMS 33.484/RS, Rel. Ministro HERMAN


BENJAMIN, Segunda Turma, julgado em 11/06/2013,
DJe 01/08 2013)46.

46
“ADMINISTRATIVO. RECURSO EM MANDADO DE SEGURANÇA. PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR.
PRAZO PRESCRICIONAL. REMISSÕES GENÉRICAS. LEGISLAÇÃO SUPERVENIENTE ESPECÍFICA. PRESCRIÇÃO.
IRRETROATIVIDADE 1. O ora recorrente, Oficial de Justiça à época, foi investigado por exigir custas
excessivas em processo judicial. O Conselho da Magistratura demitiu-o em 1986, após o regular pro-
cesso administrativo, em decisão ratificada pelo Órgão Especial. Pleiteou-se a revisão do processo,
em 1994, que, rejeitada por maioria de votos, ensejou a impetração de Mandado de Segurança,
o qual foi denegado. 2. A demissão a bem do serviço público do recorrente foi confirmada pelo órgão
especial em 1987, e o ato demissório deu-se em 1989. O pedido de revisão ocorreu mais de cinco
anos depois, porquanto admissível sua propositura, uma única vez, a qualquer tempo (art. 249 da
Lei 10.098/1994). 3. In casu, quando julgado o processo administrativo (1986), não havia norma
sobre prescrição no Código de Organização Judiciária (Lei Estadual 5.256/1966), que tratou da Ação
Disciplinar (arts. 756 e ss.). O acórdão recorrido valeu-se de dupla remissão para aplicar a prescrição
prevista na legislação penal. Essa lacuna normativa perdurou até a edição da LCE 10.098/1994,
que passou a regulamentar expressamente a prescrição da Ação Disciplinar em prazo mais curto,
favorável ao recorrente. 4. Caso a lacuna da legislação local tivesse sido suprida ao longo do PAD
mediante edição de lei nova que regulasse a prescrição no âmbito administrativo, estar-se-ia diante
de norma superveniente que seria levada em consideração no julgamento do processo administrativo
e poderia resultar na sua extinção. 5. Contudo, o pedido de revisão tem prazo aberto e pode ser
apresentado a qualquer momento. A valer a proposição do recorrente, passados 5, 10, 20 ou 40 anos,
havendo mudança na lei a respeito dos prazos prescricionais, todos os processos administrativos que
ensejassem de advertência a demissão poderiam ser rejulgados, adotando-se a legislação eventualmente
mais benéfica. 6. A diferença ontológica entre a sanção administrativa e a penal permite a transpor com
reservas o princípio da retroatividade. Conforme pondera Fábio Medina Osório, “se no Brasil não há
dúvidas quanto à retroatividade das normas penais mais benéficas, parece-me prudente sustentar que
o Direito Administrativo Sancionador, nesse ponto, não se equipara ao direito criminal, dado seu maior
dinamismo”. 7. No âmbito administrativo, a sedimentação de decisão proferida em PAD que condena
servidor faltoso (acusado de falta grave consistente na cobrança de custas em arrolamento em valor
aproximadamente mil vezes maior) não pode estar sujeita aos sabores da superveniente legislação sobre
prescrição administrativa sem termo ad quem que consolide a situação jurídica. Caso contrário, cria-se
hipótese de instabilidade que afronta diretamente o interesse da administração pública em manter em
seus quadros apenas os servidores que respeitem as normas constitucionais e infraconstitucionais no
exercício de suas funções, respeitadas as garantias do due process. 8. Precedente em situação similar
indica: “quanto à alegação de prescrição administrativa, questão que em tese poderia determinar a
anulação do ato que cassou a nomeação do recorrente na função de Oficial do Registro de Imóveis da
Comarca de Palhoça/SC, verifica- se que as leis apresentadas (9.873/99 e 9.784/99) foram editadas após
a ocorrência da nomeação do recorrente em 1992 e após o próprio ato de cassação ocorrido em 1998,
não podendo retroagir para alcançar a situação do recorrente. Precedentes: RESP nº 646107/RS,
Rel. Min. Francisco Falcão, DJ de 14/03/2005; MS 9092/DF, Rel. Min. Paulo Gallotti, DJ 25.09.2006
e EDcl no AgRg no RESP nº 547668/PE, Rel. Min. Gilson Dipp, DJ de 02/05/2005” (AgRg no AgRg
no REsp. 959.006/SC, Relator Ministro Francisco Falcão, Primeira Turma, DJ 7.5.2008). 9. Recurso
Ordinário não provido” (RMS 33.484/RS, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado
em 11/06/2013, DJe 01/08/2013).
Improbidade administrativa e sua reforma - principais alterações da
Lei nº 14.230/21 e seus impactos nos processos em curso e findos 407

No Tribunal de Justiça de São Paulo, igualmente, há posicionamentos


distintos: (i) alguns julgados pela irretroatividade (não só em face de lei
mais benéfica no campo de sanções por infrações de trânsito47, mas também
em face da Lei nº 14.230/21, na sede da improbidade administrativa48);

47
(i) Ap. 1008189-53.2021.8.26.0344, Rel. Des. ANTONIO CARLOS VILLEN, 10ª Câmara de Direito Público,
j. 25/02/2022: “MOTORISTA. Carteira Nacional de Habilitação. Penalidade. Detran. Pretensão à anulação
de decisão que, em procedimento administrativo, aplicou ao autor a penalidade de suspensão do direito
de dirigir. Pedido fundado na tese de retroatividade das alterações introduzidas no art. 261 Código de
Trânsito Brasileiro pela Lei nº 14.071/2020. Aumento da pontuação necessária para a aplicação da pena
de suspensão, caso, no período de 12 (doze) meses, o infrator não tenha praticado nenhuma ou apenas
01 (uma) infração gravíssima. Sentença que reconheceu a aplicabilidade da nova lei e julgou procedente
a ação. Impossibilidade, pois, além de o autor ter atingido os 20 pontos exigidos na redação original
do CTB, antes da alteração legislativa, o procedimento administrativo se encerrou também antes da
vigência da nova lei. Precedentes. Recursos oficial, que se considera interposto, e voluntário providos
para julgar improcedente a ação”; (ii) Ap. 1000765-92.2021.8.26.0300, Rel. Des. VICENTE DE ABREU
AMADEI, 1ª Câmara de Direito Público, j. 22/02/2022: “APELAÇÃO E REEXAME NECESSÁRIO – Mandado de
Segurança – Pretensão à suspensão dos efeitos de processo de suspensão do direito de dirigir, em razão
da aplicação retroativa da Lei Federal nº 14.071/2020, que aumentou o teto máximo de pontuação para
suspensão do direito de dirigir – Inadmissibilidade – Coisa julgada administrativa configurada – Revisão
retroativa inviável – Norma de natureza administrativa de regulação do trânsito – Ausência de natureza
penal em sentido estrito – Não aplicação do princípio da aplicação retroativa da norma penal mais
benéfica, nem mesmo à luz da teoria do Direito Administrativo Sancionador (DAS) – Não configuração
dos requisitos necessários para concessão da medida – Sentença de procedência da demanda reformada.
RECURSO VOLUNTÁRIO E REEXAME NECESSÁRIO PROVIDOS”.
48
(i) Emb. Decl. 1003043-67.2017.8.26.0248, Rel. Desª. TERESA RAMOS MARQUES, 10ª Câmara de
Direito Público, j. 14/02/2022: “EMBARGOS DE DECLARAÇÃO Improbidade Administrativa – Retroação
de lei nova – Omissões e contradições – Pretensão de rediscussão do mérito do processo –
Impossibilidade: – O princípio da retroatividade da lei nova mais benéfica não se aplica às penalidades
por improbidade administrativa. – Ausente omissões, contradições, obscuridades e erros materiais”;
(ii) Emb. Decl. 1000167-28.2016.8.26.0264, Rel. Des. FLORA MARIA NESI TOSSI SILVA, j. 24/02/2022:
“[…] entendo que não ocorre a retroação da Lei nº 14.230/21, que deu nova redação a diversos artigos
da Lei nº 8.429/92, como pretende a ora embargante, pois a conduta descrita como ímproba nos
presentes autos ocorreu quando ainda não vigente esse novo dispositivo legal. Ora, conquanto a nova
lei exija pronta aplicação de seus dispositivos processuais, na forma do art. 14 do Código de Processo
Civil, o mais trazido por ela, ou seja, em assuntos de direito material, não há essa aplicação por
força do art. 5º, caput, XL, da Constituição Federal, o § 4º do art. 1º da Lei 8.429/92, com a nova
redação, e mesmo o art. 6º, da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB), pois não
cuidam da chamada novatio legis in mellius, a exigir pronta e imediata aplicação para situações
ímprobas acontecidas antes dessa nova circunstância legal. A ação em que se pretende a condenação
por ato de improbidade administrativa possui índole civil, administrativa. Não possui caráter penal.”;
(iii) AI 2264638-92.2021.8.26.0000, Rel. Des. CARLOS VON ADAMEK, 2ª Câmara de Direito Público,
j.  27/01/2022; “AGRAVO DE INSTRUMENTO – AÇÃO CIVIL PÚBLICA POR ATO DE IMPROBIDADE
ADMINISTRATIVA – PRESCRIÇÃO INTERCORRENTE – AUDIÊNCIA DE INSTRUÇÃO E JULGAMENTO –
Impossibilidade, a princípio, de aplicação retroativa da Lei nº 14.230/21, visto que ela não contém
previsão nesse sentido – Inteligência do art. 6º da LINDB – Sem olvidar a polêmica no C. STJ acerca
da possibilidade de retroatividade da lei mais benéfica em se tratando de direito administrativo
408 Vicente de Abreu Amadei

(ii) outros, pela retroatividade, apanhando os processos em curso (em acusa-


ções por improbidade administrativa, por efeito da Lei nº 14.230/21,
mais benéfica49).

sancionador, mesmo que adotada a posição que admite a aplicação retroativa da Lei nº 14.230/21,
é certo que não verificada a prescrição intercorrente – Mesmo após a edição da Lei nº 14.230/21,
permanece aplicável o entendimento firmado pelo E. STF no julgamento do Tema de Repercussão
Geral nº 897, vez que calcado em norma constitucional (art. 37, § 5º, da CF), logo, prevalecente sobre
norma infraconstitucional (art. 23 da Lei nº 8.429/92, com a redação dada pela Lei nº 14.230/21) –
A ausência de distinção entre o referido precedente vinculante e o presente caso torna inviável o
acolhimento da tutela pleiteada – Inteligência do art. 927, III e § 1º e 489, § 1º, VI, ambos do CPC/15 –
A aplicação analógica da Súmula nº 383 do STF ao caso em tela a fim de preencher a lacuna aberta pela
Lei nº 14.230/21, conforme autorização legal contida no art. 4º da LINDB, também afasta a verificação
da prescrição intercorrente, mormente em homenagem ao princípio constitucional da proibição da
proteção insuficiente, a fim de evitar a nulidade prevista no § 10-F, II do art. 17 da Lei nº 8.429/92, incluído
pela Lei nº 14.230/21 (mantendo-se, pois, a designação de audiência de instrução e julgamento para
a produção da prova oral, atendendo, inclusive ao pedido dos próprios agravantes deduzido ao r. Juízo
‘a quo’), e diante do disposto no art. 206-A do Código Civil – Decisão mantida – Recurso desprovido.”
49
(i) Ap. 1009214-10.2017.8.26.0161, Rel. Des. LEONEL COSTA, 8ª Câmara de Direito Público, j. 22/02/2022:
“RECURSO DE APELAÇÃO – AÇÃO CIVIL PÚBLICA – IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA – PRESCRIÇÃO
INTERCORRENTE […] Aplicabilidade, quanto aos processos em curso, das modificações da Lei de
Improbidade Administrativa instituída pela Lei nº 14.230, de 25 de outubro de 2021 – Aplicabilidade
imediata quanto às normas processuais nos termos do artigo 14, do CPC e, por analogia, do artigo 2º,
do CPP – Aplicabilidade imediata e retroativa das normas materiais mais benéficas ao agente, nos termos
do artigo 5º, inciso XL, da Constituição Federal: “XL – a lei penal não retroagirá, salvo para benefi-
ciar o réu” – “Lei penal” que deve ser entendida como sendo todo o jus puniendi estatal – Direito
administrativo sancionador que compartilha com o direito penal, das garantias constitucionais funda-
mentais, tais como, o devido processo legal, o contraditório, a ampla defesa, os princípios da legalidade,
da tipicidade, da culpabilidade, da pessoalidade das penas, da individualização da sanção, da razoabilidade
e da proporcionalidade e, como não poderia deixar de ser, da retroatividade da lei mais benéfica […]”;
(ii) Ap. 1016807-89.2018.8.26.0344, Rel. Des. PAULO BARCELLOS GATTI, 4ª Câmara de Direito Público,
j. 21/02/2022: “Não se olvide que por se tratar de legislação superveniente própria do direito material
sancionador (art. 1º, §4º, da LF nº 8.429/92, com a redação atribuída pela LF nº 14.230/2021), suas dis-
posições devem ser aplicadas de imediato e, inclusive, retroativamente, desde que para beneficiar
o acusado (art. 5º, inciso XL, da CF/88”; (iii) Ap.1000388-26.2018.8.26.0204, Rel. Desª ANA LIARTE,
4ª Câmara de Direito Público, j. 21/02/2022: “APELAÇÃO – IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA […] Alterações
legislativas realizadas pela Lei nº 14.230/2021 – Aplicação retroativa das normas mais benéficas ao
Requerido – Art. 1º, § 4º, da Lei de Improbidade Administrativa – Art. 5º, XL, da CF – Revogação do
art. 11, inciso I, da Lei de Improbidade Administrativa, aplicada retroativamente ao Requerido […]”;
(iv) Ap. 1000508-44.2019.8.26.0104, Rel. Des. OSCILD DE LIMA JÚNIOR, 11ª Câmara de Direito Público,
j. 21/01/2022: “AÇÃO DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA Município de Guarantã – Pretensão de con-
denação do réu a ressarcir os cofres públicos no valor indicado na inicial, correspondente a suposto
dano causado ao erário, por ausência de pagamento de precatório e pagamento apenas parcial de
requisições de pequeno valor, bem como ao reconhecimento dos atos de improbidade administrativa
correspondentes – Ilegalidades que não podem ser equiparadas a atos de improbidade administrativa –
Necessidade de configuração de dolo e de efetivo dano ao erário para que o réu seja condenado, de acordo
com os termos da Lei nº 14.230 de 2021, que promoveu alterações na Lei nº 8.429/92 – Sentença de
improcedência mantida. Recurso desprovido”.
Improbidade administrativa e sua reforma - principais alterações da
Lei nº 14.230/21 e seus impactos nos processos em curso e findos 409

9. As razões da irretroatividade das normas mais favoráveis da


Lei nº 14.230/21

Antes de descer apressadamente à planície das respostas com


axiomas de que isso ou aquilo é, ou não, do próprio Direito Administrativo
Sancionador, é necessário examinar em detalhe e ponderadamente,
no esforço de se extrair a axiologia de fundo do regime jurídico de
improbidade administrativa (os maiores valores inerentes nesse campo),
fundamental para se atingir a rainha das interpretações, a teleológica.
Isso, pois, impõe alongar os argumentos neste item, e nos subse-
quentes, ao que se pede a paciência do leitor, na esperança de que,
ao menos em linhas gerais, bem se compreendam as razões ora expostas,
imbricadas, aliás, no universo de dois blocos de regramentos próximos,
mas maiores, em que a solução proposta está inserida: (i) o da categoria
denominada Direito Administrativo Sancionador (DAS), para o qual já se
anteciparam os pressupostos de sua adequada cognição; e (ii) o do sistema
normativo de combate à corrupção sistêmica.
Consciente, ademais, do chão movediço em que se pisa, mas conven-
cido da solução adequada, penso que a razão está com a corrente que
não admite a retroatividade da lei mais favorável, por força exclusiva da
teoria e dos princípios constitucionais de direito administrativo sancionador,
ou seja, das normas insertas no § 4º do art. 1º e no art. 17-B, ambos da LIA,
na redação da Lei nº 14.230/21.
A uma, porque se justifica a leitura restritiva do art. 5º, XL,
da Constituição Federal – “a lei penal não retroagirá, salvo para benefi-
ciar o réu” – que parece ser a de melhor técnica, data máxima vênia
o entendimento majoritário oposto que se vem formando. Admite-se,
pois, como de Direito Administrativo Sancionador apenas o princípio de
irretroatividade da lei mais prejudicial, o qual, aliás, nem depende do
art. 5º, XL, da Constituição Federal, pois lhe basta o da irretroatividade
geral das leis, pelo qual só se apanham os fatos que ocorrem após a vigên-
cia da lei nova; não, contudo, o da retroatividade da lei nova favorável,
que é próprio do Direito Penal.
Nem se diga que, acolhendo o princípio da irretroatividade da
lei prejudicial está implícito, ou se deve necessariamente acolher,
o da retroatividade da lei benéfica, pois nisso há vício de lógica.
Um independe do outro.
410 Vicente de Abreu Amadei

Alejandro Nieto afirma, com precisão, no direito espanhol, acompa-


nhando López Menudo, que o princípio da irretroatividade das normas
sancionadoras desfavoráveis, em termos lógicos, não encerra o da
retroatividade das sancionadoras mais favoráveis, e, daí, este último
(retroatividade), que não tem sede constitucional, mas depende de
norma legal infraconstitucional (que, no direito espanhol há, mas no
nosso não há), tem sua solução na previsão, ou não, da lei. Em outras
palavras, isso significa, para o direito espanhol (em que há, note-se bem,
norma geral prescrevendo a retroatividade da lei nova mais favorável),
que “as normas sancionadoras favoráveis ‘podem’ ser tanto retroati-
vas como irretroativas”, conforme assim dispor a lei: “Entendo, pois,
em conclusão, que a regra da retroatividade das normas sancionadoras
favoráveis tem caráter legal e não constitucional”50.
Se assim é até mesmo no Direito Administrativo Sancionador
espanhol, em que há norma legal expressa para a retroatividade da lei
nova favorável51, o que dizer para o Direito Administrativo Sancionador
brasileiro, em que não há lei alguma equivalente?
Ademais, a expressão “lei penal” na Constituição Federal tem sentido
próprio (basta verificar todas as vezes que o constituinte emprega termo
“penal” ou vocábulos a ele correlatos52), enquadramento singular, ou seja,
delimitação de campo de incidência no Direito Penal ou a ele relacionado,
em modo específico ou como regra especial.
A duas, porque o próprio art. 37, § 4º, da Constituição Federal –
primeira fonte da matriz constitucional referente à matéria –, prescreve
a necessidade de um regime jurídico sancionatório de improbidade
administrativa “sem prejuízo da ação penal cabível”, a afastar a identi-
dade formal e substancial dos ilícitos, das sanções e, por consequência,
do substrato teórico fundamental e principiológico em que se apoiam o
Direito Administrativo Sancionador aplicado à improbidade administrativa
e ao Direito Penal.
Isso, naturalmente, não significa desprezar as garantias individuais no
Direito Administrativo Sancionador, nem que não se possam delas extrair

50
Op. Cit., p. 243 e 244, tradução nossa
51
“Las disposiciones sancionadoras producirán efecto retroactivo en cuanto favorezcan al presunto
infractor” (art. 128.2 da LPAC, Lei do Procedimento Administrativo Comum, Lei 30/1992).
52
Arts. 5º, XL, LVII, § 4; 12, II, “b”; 21, XIV; 22, I; 32, § 4º; 37, § 4º; 53; 62, § 1º, “b”; 129, I; 144§ 5º-A;
e 228, todos da Constituição Federal.
Improbidade administrativa e sua reforma - principais alterações da
Lei nº 14.230/21 e seus impactos nos processos em curso e findos 411

princípios constitucionais de direito administrativo sancionador (materiais


e processuais), mas apenas que ele tem sua autonomia, sem necessária
correspondência (ou identidade) com todas as garantias individuais e
princípios constitucionais do Direito Penal.
Assim, para se extrair os referidos princípios constitucionais, é preciso
ponderar valores, evitar resultados de extrema rigidez e inflexibilidade do
sistema sancionador administrativo, considerar os fins próprios do Direito
Administrativo (e nele do DAS), especialmente os de atendimento a fins
de interesse geral e de padrões éticos de probidade, evitando, por último,
soluções que causem instabilidade e afronta à segurança jurídica (art. 30
da LINDB). E, com esse manancial de significativos valores, a retroatividade
da lei mais favorável não comunga.
A três, porque a expressão Direito Administrativo Sancionador é de
construção doutrinária – e em nosso direito ainda volátil e sem a sua
precisão normativa –, indicativa de categoria do Direito Administrativo,
com axiologia própria e diversa da que informa o Direito Penal.
E isso se pode verificar, em abundância, nos itens anteriores deste
estudo, a incluir o de sua evolução histórica e doutrinária europeia
(principalmente a espanhola).
Ademais, como também já se apontou, até mesmo a denominação
do Direito Administrativo Sancionador (não mais chamado Direito Penal
Administrativo) e, porque não, do Direito Penal, revelam essa evidência:
após distinguir as normas primárias (prescritivas de condutas), secundárias
(cominatórias de sanções ao descumprimento das condutas prescritas) e
terciárias (assecuratórias de execução das sanções cominadas), Alejandro
Nieto observa que enquanto no Direito Penal prevalecem as normas secun-
dárias (as primárias estão implícitas nas secundárias – daí o seu nome
“Direito Penal” e sua forte conotação garantista), no Direito Administrativo
Sancionador a situação é, licitamente, inversa, pois “se enumeram cuida-
dosamente as obrigações”, mas a fórmula consequente ao descumprimento
é “substituída por uma declaração genérica”, ou seja, infração é contrariar
os comandos estabelecidos nas normas primárias53.
É certo que, com as inovações da Lei nº 14.230/21, as formulações
dos tipos e os critérios de sanções estão mais aproximados aos do Direito
Penal, mas isso não significa que o Direito Administrativo Sancionador

53
Op. cit., p. 44-45.
412 Vicente de Abreu Amadei

(universo mais amplo que o da improbidade administrativa) carrega,


por si, os mesmos princípios constitucionais garantistas do Direito Penal,
a incluir o da retroatividade da lei nova mais favorável.
Não é, pois, da referência principiológica constitucional do Direito
Administrativo Sancionador, em si, que se pode extrair identidade princi-
piológica constitucional ao Direito Penal.
A quatro, porque o regime jurídico de improbidade administrativa
está inserto nos sistemas maiores de tutela da moralidade pública (de perfil
constitucional) e de combate à corrupção sistêmica (de caráter interna-
cional internalizado no Brasil em normas de status constitucional), que se
irradiam pelos vários ramos do direito, pulverizando esse interesse público
de largo espectro por todo o direito, e que respeita, em cada um, o que
lhe é próprio, a incluir sua natureza e o trato jurídico específico do ilícito
e das sanções em cada um desses horizontes jurídicos.
Em outras palavras, a matriz comum constitucional – a incluir a
internacional internalizada – não estabelece uma unificação de natureza
infracional e sancionatória na matéria, nem uma principiologia comum à
moda do Direito Penal, mas, ao contrário, é de sua ratio iuris o seu carácter
difuso, expansivo, e de mera irradiação axiológica (valorativa) por todas as
searas do direito, respeitando, em cada uma, seu fim específico, seu modo
operacional, enfim, sua natureza própria, quer material, quer formal.
Afinal, é nessa preservação multidisciplinar que se amplia o tema
que se busca, com maior intensidade, tutelar (a moralidade) e comba-
ter (a corrupção).
A cinco, porque a abolitio improbitatis não se encontra expressa
na lei nova, nem sequer em mens legis da Lei 14.230/21, e não cabe ao
Judiciário abolir ilícito que o legislador assim não fez nem quis fazer,
em contexto de carência de norma própria, constitucional ou legal,
que a autorize.
Aliás, o legislador foi expresso e rico em prescrições normativas
para apontar o dolo específico; poderia fazer o mesmo, em ao menos um
artigo, para indicar a tal abolição, destinada à aplicação retroativa da lei
de improbidade mais benéfica, mas assim não fez. E esse seu não fazer
revela, em modo objetivo, a mens legis de não retroatividade em matéria
tão relevante e de enorme repercussão político-social.
Improbidade administrativa e sua reforma - principais alterações da
Lei nº 14.230/21 e seus impactos nos processos em curso e findos 413

O argumento de que a mens legis seria contrária a essa conclusão,


pela inferência da abolitio do conjunto normativo inovador, ou por extração
indireta à menção do Direito Administrativo Sancionador, não convence,
até porque poderia significar torpeza legislativa – a lei não diz, mas oculta-
mente quis dizer, e, assim, não serão dos legisladores o ônus político de
tamanha anistia, mas do Judiciário, que leu a norma e lhe deu a inter-
pretação jurídica extensiva, nele ficando o ônus do abrir as trancas para
os infratores já condenados por improbidade –, e não parece adequado
acolher tal argumento que resvala em afirmar improbidade legislativa.
Convêm, por fim, nos itens seguintes, aprofundar algumas referências
aqui apontadas.

10. O combate à corrupção sistêmica

A Lei de Improbidade Administrativa integra o sistema normativo


anticorrupção, de larga amplitude, que é preciso compreendê-lo não
só para a extração das diretrizes comuns que se irradiam aos diversos
âmbitos de combate à corrupção, mas também para bem compreender e
delimitar o campo em que cada ramo (sistema ou regime jurídico menor)
está chamado a contribuir.
Sabe-se, ademais, que essa pulverização normativa tem apoio em
matriz constitucional e tem avançado em razão de uma política internacio-
nal de combate à corrupção, fixada em tratados internacionais ratificados
pelo Brasil, com previsões de cooperação internacional neste âmbito.
Assim, na esfera constitucional, embora o ponto não encontre siste-
matização dessa matéria, é possível constatar que o combate à corrupção,
por repressão ou prevenção, perpassa, necessariamente, três ramos
distintos do direito: (i) o político-administrativo-penal (v.g. art. 85 ao
se reportar a “crimes de responsabilidade os atos do Presidente da
República que atentem contra a Constituição Federal e, especialmente,
contra: […] V – a probidade na administração”); (ii) o administrativo-civil
(v.g. art. 37, § 4º ao apontar que:

Os atos de improbidade administrativa importarão


a suspensão dos direitos políticos, a perda da
função pública, a indisponibilidade dos bens e
o ressarcimento ao erário, na forma e gradação
previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível.
414 Vicente de Abreu Amadei

(iii) o eleitoral (v.g. art. 14, § 9º, que, imerso no regramento dos


direitos políticos, prevê que

Lei complementar estabelecerá outros casos de


inelegibilidade e os prazos de sua cessação, a fim de
proteger a probidade administrativa, a moralidade
para exercício de mandato considerada vida pregressa
do candidato, e a normalidade e legitimidade das
eleições contra a influência do poder econômico ou
o abuso do exercício de função, cargo ou emprego na
administração direta ou indireta.

Para além da Constituição Federal de 1988, destacam-se (i) a Convenção


Interamericana contra a Corrupção (Convenção da Organização dos Estados
Americanos – OEA, de 29 de março de 1996, assinada em Caracas, interna-
lizada e promulgada pelo Decreto 4.410/2002), (ii) a Convenção das Nações
Unidas contra a Corrupção, conhecida por Convenção de Mérida (cidade
onde foi assinada, no México), internalizada e promulgada pelo Decreto
nº 5.687, de 31 de janeiro de 2006; (iii) a Convenção da OCDE contra a
corrupção (Convenção sobre o Combate da Corrupção de Funcionários
Públicos Estrangeiros em Transações Comerciais Internacionais, concluí-
da em Paris, em 17 de dezembro de 1997), internalizada e promulgada
pelo Decreto nº 3.678, de 20 de novembro de 2000).
A sensibilidade internacional caminhou no sentido de que a corrupção
tornou-se sistêmica e um problema global, a reclamar medidas conjuntas
das nações para o seu combate. O Brasil, então, tem se alinhado a essas
demandas internacionais, em corresponsabilidades multilaterais das Nações.
E, em tais convenções, não se esqueça o teor do art. 5º, § 3º, CF/88:

Os tratados e convenções internacionais sobre direitos


humanos que forem aprovados, em cada Casa do
Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos
dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes
às emendas constitucionais.
Improbidade administrativa e sua reforma - principais alterações da
Lei nº 14.230/21 e seus impactos nos processos em curso e findos 415

Assim, como instrumento à implementação de direitos humanos,


via reflexa, aquelas convenções internacionais têm sido consideradas
normas de status constitucional54.
Deste modo, partindo desse conjunto normativo maior, no plano
infraconstitucional, verifica-se a irradiação da política nacional e inter-
nacional de tutela da moralidade (especialmente a administrativa)
e de combate à corrupção, espalhada em diversos ramos do direito,
todas centradas no eixo comum de que essa tutela e tal combate são
de feições jurídicas multidisciplinares, espraiadas por todos os ramos
e setores do direito (nacional e internacional; penal, administrativo,
eleitoral, e civil), abarcando uma pluralidade de instrumentos, a cada
dia ampliados (v.g. acordo de leniência, delação premiada) e, em regra,
cada vez mais densos, bem como atentos ao universo de todos agentes
envolvidos (públicos e privados, pessoas físicas e pessoas jurídicas,
empresas públicas e empresas privadas).
Assim, ganham destaque, para além da Lei do Crime de
Responsabilidade55 e do Código Penal56; no âmbito eleitoral, a Lei da Ficha
Limpa57; no âmbito administrativo-civil, a chamada Lei Anticorrupção58; e,
nesse contexto, a Lei de Improbidade Administrativa.
A Lei de Improbidade Administrativa, portanto, responde ao chamado
de tutela à moralidade administrativa e de combate à corrupção sistêmica
em modo próprio e peculiar: vai além da disciplina censória ou disciplinar

54
V.g. BLANCHET, Luiz Alberto; MARIN, Tâmera Padoin Marques. A corrupção como violação de direitos
humanos e a necessária efetividade da Lei nº 12.846/13. Revista de Direito Administrativo Constitucional,
Belo Horizonte, ano 18, n. 71, p. 267-294, jan./mar. 2018. Confira: “destaca-se um movimento mundial
de tipificação penal de condutas e, em especial, de regulamentação de instrumentos civis e adminis-
trativos que buscam reparar danos causados ao patrimônio público ou à moralidade administrativa,
considerando que as práticas corruptas, além de prejuízos econômicos, violam direitos humanos,
na medida em que impedem a racional aplicação de recursos públicos em prol de toda a sociedade”
(BLANCHET, Luiz Alberto; MARIN, Tâmera Padoin Marques. Op. cit., p. 274).
55
A Lei 1.097/50, que define os crimes de responsabilidade e regula o respectivo processo de julgamento
contra o Presidente da República ou Ministros de Estado, contra os Ministros do Supremo Tribunal Federal
ou contra o Procurador Geral da República
56
No foco punitivo de pessoas naturais por práticas de corrupção passiva (art. 317) e ativa (art. 333),
além dos demais crimes contra a Administração Pública.
57
Lei Complementar nº 135/2010, que teve por fim alterar a Lei Complementar no 64, de 18 de maio
de 1990, e estabelecer, de acordo com o § 9º do art. 14 da Constituição Federal, casos de inelegibi-
lidade, prazos de cessação e determina outras providências, para incluir hipóteses de inelegibilidade
que visam a proteger a probidade administrativa e a moralidade no exercício do mandato.
58
Lei nº 12.846/2013, que dispõe acerca da responsabilização administrativa e civil de pessoas jurídicas
pela prática de atos contra a administração pública, nacional ou estrangeira.
416 Vicente de Abreu Amadei

por infrações funcionais regrada nos Estatutos do Funcionalismos Públicos


e aquém dos crimes objeto de tipificação e sanção do Direito Penal,
situando-se num campo intermédio de sancionamento, preservando-se
sua natureza administrativo-civil, sem confusão alguma àquelas de feição
eleitoral (Lei da ficha limpa), penal (Código Penal), político-administrativo
(crimes de responsabilidade) e disciplinar-administrativa (Estatutos de
Funcionários Públicos).
Esse ponto, parece-me importante frisar: há um tronco comum,
o da tutela da moralidade (especialmente a administrativa) e o do combate
à corrupção sistêmica, que se irradia pelos vários ramos do direito, pulve-
rizando esses interesses públicos de largo espectro por todo o direito,
mas respeita, em cada um, o que lhe é próprio, a incluir sua natureza
e o trato jurídico específico do ilícito e das sanções em cada um desses
horizontes jurídicos.
Em outras palavras, a matriz comum constitucional (a incluir a
internacional internalizada) não estabelece uma unificação de natureza
infracional e sancionatória na matéria, mas, ao contrário, é de sua ratio
iuris o seu carácter difuso, expansivo, e de mera irradiação axiológica
(valorativa) por todas as searas do direito, respeitando, em cada uma,
sua natureza e sua operacionalidade.
Afinal, é nessa preservação multidisciplinar que se amplia o ponto
que se busca, com maior intensidade, tutelar (a moralidade) e comba-
ter (a corrupção).
Perdoem-me a analogia, que apresento apenas para fins didáticos:
quando maior a variedade de instrumentos numa orquestra, respeitando
a natureza de cada um, mas os fazendo soar em conjunto e harmonia,
no mesmo tema musical, melhor ficar o resultado.
Tratar, pois, os princípios do regime jurídico da improbidade adminis-
trativa, via mera interpretação expansiva do Direito Administrativo
Sancionador, equiparando-o aos do Direito Penal e admitindo a retroati-
vidade da Lei nº 14.230/21, pela novatio legis in mellius, sem previsão
normativa constitucional ou legal específica, também pode configurar
afronta aos princípios maiores do conjunto normativo de raiz constitucional
de combate à corrupção sistêmica, com grave desestabilização aos proces-
sos em cursos e findos (em que constam condenações por improbidade já
pronunciadas e transitadas em julgado) e retrocesso.
Em suma, nesse passo, a interpretação extensiva (quiçá melhor
dizer integração analógica) de resultado retroativo-abolicionista pode
Improbidade administrativa e sua reforma - principais alterações da
Lei nº 14.230/21 e seus impactos nos processos em curso e findos 417

eventualmente ser considerada como interpretação de retrocesso à tutela


de direitos humanos no âmbito do combate à corrupção sistêmica.

11. Novatio legis in mellius, retroatividade-tipificação,


retroatividade-sanção e retroatividade-prescrição

Ingressado no caminho da irretroatividade das normas da


Lei nº 14.230/21, ainda que mais favoráveis, aplicando-as apenas a partir
de sua vigência, ficam despiciendas as análises das regras de direito
benéficas que se pode, ou não, aplicar retroativamente, pois irretroa-
tividade alguma haverá (quer no campo do direito processual, quer no
campo do direito material; quer em tema de tipicidade ou atipicidade de
atos ímprobos [abolitio improbitatis], quer em tema de sanção [abolitio
vel diminutio sanctionis], quer em tema de prescrição).
Contudo, ao se admitir a retroatividade das normas mais favoráveis
da Lei nº 14.230/21, é preciso descer a essa análise, para se verificar se
tal retroatividade abarca todas, ou apenas algumas das novas normas
mais benéficas, e com isso, compreender até que ponto vai esse efeito
retroativo (qual o seu limite).
De saída, compreenda-se que a inovação legal mais favorável, no caso,
pode se encontrar na esfera antecedente da hipótese normativa, isto é,
da nova configuração do ilícito ou da desfiguração do ilícito antes previsto
(campo da tipicidade); ou, então, na esfera consequente da cominação
normativa, isto é, da sanção (campo do apenamento); ou, ainda, na esfera
da pretensão sancionadora (campo do ius puniendi do Estado).
Assim, em tese, seria possível cogitar em retroatividade-tipificação
(que toca à tipicidade dos atos ímprobos), retroatividade-sanção (que toca
à repressão por improbidade) e retroatividade-prescrição (que toca à
pretensão sancionadora por improbidade).
Sabe-se, por exemplo, que, em Direto Penal, a extensão da retroati-
vidade de lex mitior é de solução expressa em normas e, nelas, a retroa-
tividade pode ser de maior ou menor extensão: assim, por exemplo,
o Código Penal de 1940, em sua redação original, restringia a aplica-
ção da lei mais benigna aos casos de abolitio criminis e de cominação
de pena mais brandas, mas, depois, foi ampliado, com a redação da
Lei nº 7.209/84, para abarcar qualquer outro modo de favorecimento do
agente (art. 2º, caput e parágrafo único, do CP).
418 Vicente de Abreu Amadei

Não há lei no Brasil para o Direito Administrativo Sancionador. Nem a


LIA contém prescrição alguma sobre o assunto.
Como resolver a retroatividade da Lei nº 14.230/21? Em modo amplo,
(i) para toda forma de favorecimento, (ii) em modo intermédio apenas
para abolitio improbitatis, abolitio sanctionis e diminutio sanctionis
(abrandamento de sanções cominadas), ou (iii) em modo restrito apenas
para abolitio improbitatis?
Haveria limite para a retroatividade in bonum (i) até o ajuizamento
da ação, (ii) até o recebimento da petição inicial na ação ajuizada, (iii) até
a sentença condenatória pronunciada, (iv) até a confirmação condenatória
de segundo grau, (v) até a formação da coisa julgada, (vi) até o decurso
do tempo para ajuizamento da ação rescisória; (vii) até a satisfação da
sanção, ou (viii) nem sequer o cumprimento da sanção a poderá obstar, mas,
diversamente, ela poderá até justificar ação revisional, a qualquer tempo,
quiçá, ainda, repetição de indébito (para multa civil paga em excesso) ou
indenização (para situações de abolitio improbitatis ou abolitio sanctionis)?
Sem lei, como solucionar essas questões? Novamente por transposição
analógica das regras e orientações do Direito Penal? Com inspiração no
Direito público estatal e temperamento no Direito Administrativo?
As questões ficam abertas. As discussões, nesse caminho de retroa-
tividade in bonum, tendem a crescer e apontam um longo período de
divergência jurisprudencial e insegurança jurídica, até a decantação
dos julgados nas múltiplas facetas que o ponto toca, sem contar, ainda,
com seus reflexos em outros campos do direito, como o eleitoral (inele-
gibilidade por efeito de improbidade administrativa) e o civil-patrimonial
(imprescritibilidade da responsabilidade civil indenizatória por improbidade
administrativa), já aludidos em item anterior.
Em relação à prescrição, aliás, os debates são intensos, com diversos
posicionamentos e longas argumentações, e, ao que parece, o caminho
de maior razoabilidade vai ao encontro da irretroatividade das novas
regras (art. 23 da LIA, na redação da Lei nº 14.230/21), não retroagindo
às ações por ajuizar, às já ajuizadas nem apanhando os processos em
curso para retroagir as regras de prescrição intercorrente, salvo a partir
da data de início de vigência da Lei nº 14.230/21, observando-se, assim,
tanto o princípio da actio nata, como o de não-surpresa, o de proteção
da confiança no regime jurídico então vigente e o de segurança jurídica
das relações processuais.
Improbidade administrativa e sua reforma - principais alterações da
Lei nº 14.230/21 e seus impactos nos processos em curso e findos 419

Em relação à prescrição intercorrente (art. 23, § 8º, da LIA),


acresça-se que sua natureza híbrida, processual (na configuração,
entenda-se: existência e validade) e material (nos efeitos, por atingir
a pretensão sancionadora), mas com peso mais processual que material
(ante a preponderância dos elementos de existência e dos requisitos
de validade em face dos fatores de eficácia, na medida em que esses
pressupõem aqueles), atrai para a matéria o art. 14 do CPC, reforçando
o argumento de sua irretroatividade.
E, em relação à prescrição comum (art. 23, caput, §§ 1º a 7º, da LIA),
que é de direito material (pois têm todos seus elementos de existência,
requisitos de validade e fatores de eficácia em lei, a partir de fatos jurídi-
cos alheios ao processo, operando-se, pois, com abstração ao ajuizamento
da ação), é preciso ponderar duas importantes circunstâncias, que igual-
mente reforçam a sua irretroatividade: (i) primeiro, a circunstância de
que não se está apenas diante de norma redutora de prazo prescricional,
preservando-se todos demais elementos de sua configuração, mas sim
diante de instituto prescricional novo (instituto novo, pois novo é o termo
a quo e todos os demais requisitos de sua configuração, a incluir sua conta-
gem e os marcos de suspensão e interrupção, embora de igual efeito ao
antigo, i.e., extintivo da pretensão sancionadora); (ii) segundo, a circunstân-
cia de que o campo da retroatividade-prescrição é de mão dupla, ou seja,
in bonum para um (suposto infrator), mas simultaneamente in pejus para
outro (sociedade acusadora), e ainda ele é bem diverso dos campos da
retroatividade-tipicidade e da retroatividade-sanção, pois nessas o foco é a
(não)configuração do ato ímprobo e seu (não)sancionamento, mas naquela
tão somente a possibilidade da ação judicial e da persecução sancionadora.
Para melhor explicar essa primeira circunstância que envolve a
prescrição ordinária, vale a pena relembrar o caminho de solução e a
sedimentação jurisprudencial da matéria em torno da prescrição aquisitiva
da usucapião especial de imóvel urbano, também conhecida por usucapião
constitucional (art. 183 da CF – norma constitucional autoaplicável).
O efeito era o mesmo, comum a toda espécie de usucapião (aquisição
da propriedade pela posse contínua), mas a norma não só apontou o
reduzido prazo para usucapir (cinco anos) como também prescreveu
vários requisitos novos e específicos para tanto. Fosse, então, apenas uma
redução de prazo (como no passado ocorreu com a usucapião extraordi-
nária, de 40 para 30, e depois para 20 anos), poder-se-ia reconhecer sua
aplicação retroativa (salvo aos processos em curso – Súmula 445/STF),
mas o conjunto de inovações, com várias circunstâncias novas, revelaram
420 Vicente de Abreu Amadei

a presença de instituto jurídico novo, a reclamar sua irretroatividade.


Embora agora se esteja diante de prescrição extintiva (não aquisitiva),
o raciocínio é o mesmo e, porque não se está ante norma que apenas reduz
o prazo prescricional da pretensão sancionadora de ato ímprobo, mas o
reconfigura por completo, então há inovação substancial do instituto a
reclamar a irretroatividade da lei nova.
Quanto à segunda circunstância, outro paralelo também ajuda na
compreensão: enquanto para condenar por improbidade administrativa o
critério é o de rigidez na verificação e comprovação dos fatos tipificados
em lei, a autorizar a aplicação de sanção (esfera, pois, da tipicidade e do
sancionamento), a ponto de justificar a máxima in dubio pro reo; para o
recebimento da petição inicial, bastam, além dos requisitos formais,
indícios suficientes de materialidade e autoria (art. 17, II, §§ 6º-B e 7º),
a ponto de justificar a outra máxima in dubio pro societate59. Então, se a
prescrição da pretensão sancionadora da improbidade administrativa é,
em sua reformulação normativa, simultaneamente, lei mais favorável
ao suposto infrator e mais prejudicial à sociedade, porque optar pela
retroatividade in bonum e não pela irretroatividade in pejus, matando a
ação antes mesmo de ser ajuizada? Será que o interesse público da morali-
dade administrativa e do combate à corrupção sistêmica não justifica,
no âmbito administrativo sancionador, caminhar pela irretroatividade,
desgarrando-o, no ponto, do Direito Penal?

12. Processo em trâmite e (ir)retroatividade da Lei nº 14.230/21

Para os processos em curso, além da cautela já apontada para a


questão referente ao ponto da (ir)retroatividade da prescrição segundo
as normas da lei nova, é preciso atenção às inovações processuais da
Lei nº 14.230/21, não se esquecendo que, para elas, a solução de direito
intertemporal tem sede no art. 14 do CPC: as novas normas processuais
não retroagem e serão aplicadas “imediatamente aos processos em curso,
respeitados os atos processuais praticados e as situações jurídicas conso-
lidadas sob a vigência da norma revogada”.

59
Nessa fase de recebimento da petição inicial da ação de improbidade administrativa, é reiterada a
orientação do STJ: “vale o princípio do in dubio pro societate, a fim de possibilitar o maior resguardo
do interesse público” (REsp. 1163499/MT, Rel. Min. MAURO CAMPBELL MARQUES, Segunda Turma,
j. em 21/09/2010).
Improbidade administrativa e sua reforma - principais alterações da
Lei nº 14.230/21 e seus impactos nos processos em curso e findos 421

Em relação às inovações substanciais (de direito material) da


Lei nº 14.230/21, para os processos em curso, contudo, as situações
são mais complexas.
Se reconhecida a retroatividade, com abolitio improbitatis,
por exemplo, a solução não será diversa da improcedência da demanda,
admitindo-se, no limite, a conversão da ação de improbidade em ação
civil pública, nos termos e para os fins do art. 17, § 16, c.c. o art. 17-B,
ambos da LIA, prosseguindo-se, então, se o caso, para solução da pretensão
indenizatória de ressarcimento de dano ao erário.
Todavia, quando a situação, embora com retroatividade in bonum,
justificar desclassificação para algum dos tipos da LIA, na nova redação
da Lei nº 14.230/21, será necessário – em não havendo na petição inicial
(antecedente à Lei nº 14.230/21) todos os elementos do tipo novo,
nem havendo no feito decisão de que cuida o art. 10-C (lei nova ainda
não em vigor quando dessa fase do processo) –, baixar o feito para o
aditamento da exordial, reabrindo a oportunidade de defesa e de eventual
instrução complementar, uma vez que não se pode proferir sentença
condenatória por tipo diverso da demanda (art. 10-F, I, da LIA).
Se, de outra banda, o caminho for o da irretroatividade, mesmo
assim, poderá haver um sério problema de apenamento.
De fato, a irretroatividade da Lei nº 14.230/21 pode salvar a confi-
guração e a declaração do ato ímprobo pelo tipo legal em vigor ao tempo
da consumação dos fatos (mesmo na hipótese de abolitio improbitatis).
Entretanto, como fica a aplicação da sanção? Será possível aplicar a sanção
da lei antiga (daquele tempo da consumação da infração)? Será viável
aplicar a sanção da lei nova? Será o caso de sentença meramente decla-
ratória do ato ímprobo sem infligir sanção alguma?
Note-se que a questão é complexa, pois a sentença condenatória
(e essa é a natureza da sentença de procedência de demanda por impro-
bidade administrativa) exige que a condenação se faça por sanção com
força jurídica (vigente, correlata e legalmente cominada para o ilícito
configurado) ao tempo da sentença. Todavia, (i) a sanção para o tipo
antigo não mais existe no tempo da sentença, e (ii) a sanção nova do tipo
novo tem aplicação irretroativa, apenas se pode infligir para a prática
do tipo novo.
Nesses casos, então, encontrando-se a ocasião da sentença no tempo
de vigência da Lei nº 14.230/21, parece não haver outra solução àquela
antevista por Ricardo Barros Leonel:
422 Vicente de Abreu Amadei

a nova disciplina da tutela da probidade deve se


traduzir, para os casos pendentes, em sentenças de
parcial procedência, com acertamento (declaração)
da ocorrência do ilícito, sem, entretanto, aplicação
de sanção, que na época da decisão condenatória
deixou de existir60

E o interesse de agir dessa declaração, aliás, perdura não por mero


capricho nem por simples “certificação estatal (oferecimento de certeza) a
respeito da efetiva ocorrência dos fatos que eram ilícitos”61, mas sobretudo
pelos efeitos secundários que essa declaração de ato ímprobo configurado
(existente) tem em outras esferas jurídicas, como a eleitoral (com possível
inelegibilidade), a civil-patrimonial (preservando a imprescritibilidade da
responsabilidade indenizatória) e a funcional-infracional (ou administrativo-
-disciplinar, no âmbito estatutário dos servidores públicos).
Aponte-se, enfim, que se a sentença condenatória foi proferida
antes da vigência da Lei nº 14.230/21, considerando, pois, a configu-
ração do ato ímprobo e a aplicação da sanção vigente na LIA a esse
tempo, ainda que o processo esteja pendente, em fase recursal, após essa
lei nova, não haverá problema algum, pois a condenação não se opera no
grau recursal, que exerce apenas o juízo revisor, e a lei superveniente,
nesse caso, somente teria importância se admitido seu efeito retroativo,
o que, na hipótese em exame, não se cogita. Segue-se nessa situação,
a aplicação da LIA em sua redação antecedente à Lei nº 14.230/21.

13. Processos findos, coisa julgada e (ir)retroatividade da


Lei nº 14.230/21

Em processos findos, com condenação por improbidade administra-


tiva ao tempo anterior à Lei nº 14.230/21, cobertos pela coisa julgada,
a aplicação retroativa dessa lei nova, fundada em intelecção do Direito
Administrativo Sancionador, pela cláusula novatio legis in mellius, é,
com o máximo respeito ao entendimento diverso, indevida, como já se
apontou, inclusive por inadequada interpretação extensiva cujo resultado

60
LEONEL, Ricardo de Barros. Nova LIA: aspectos da retroatividade associada ao Direito Sancionador.
ConJur: São Paulo, 17 nov. 2021. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-nov-17/leonel-lia-
retroatividade-associada-direito-sancionador. Acesso: 13 abr. 2023.
61
LEONEL, Ricardo de Barros. Op. Cit.
Improbidade administrativa e sua reforma - principais alterações da
Lei nº 14.230/21 e seus impactos nos processos em curso e findos 423

importa em interpretação de retrocesso aos direitos humanos no âmbito


do combate à corrupção sistêmica.
Mas não é apenas isso.
Novamente, até no Direito Administrativo Sancionador espanhol,
em que há norma legal expressa para a retroatividade in bonum (coisa
inexistente no Brasil), há forte oposição a esse entendimento.
De fato, ainda com a doutrina de Alejandro Nieto, é preciso
compreender que enquanto no Direito Penal a retroatividade é absoluta,
em Direito Administrativo Sancionador (espanhol), quando possível,
ela é relativa, pois, para as normas administrativas “a retroatividade
somente atinge os fatos sobre os quais ainda não houve um pronuncia-
mento administrativo firme”62.
Ora, se até a coisa julgada administrativa afasta a revisão retroativa
de lei mais favorável, sob pena de grave insegurança jurídica do sistema
de sanções do Direito Administrativo, como maior razão a coisa julgada
judicial a deve afastar.
Outrossim, se os tempos atuais são particularmente preocupados com
a necessidade de fomento à segurança jurídica (v.g. novo CPC/2015 e a
recente reforma da LINDB), será contraditório o caminho de desprestígio
e de flexibilização da coisa julgada, pilar fundamental da estabilização
de situações jurídicas consolidadas, elevado ao status constitucional de
cláusula pétrea (art. 5°, XXXVI, da CF).
E, em adendo, como já se apontou ao se cuidar dos nortes de herme-
nêutica do nosso Direito Administrativo (incluso o Sancionador) é dever
das autoridades decisórias (inclusas as judiciais) “atuar para aumentar a
segurança jurídica”, preferindo, pois, a exegese que confira estabilidade
à que deságue em instabilidade e insegurança jurídica (art. 30 da LINDB).
O Terceiro Grupo de Câmaras do Tribunal de Justiça de São Paulo,
por sua vez, já enfrentou a matéria julgando improcedente ação
rescisória com esse propósito de ataque à coisa julgada no âmbito da
improbidade administrativa:

AÇÃO RESCISÓRIA. Pretensão à rescisão de


acórdão que condenou o autor, pela prática de
ato de improbidade, ao pagamento de multa civil,
ressarcimento do dano, perda da função pública,

62
Op. Cit., p. 244, tradução nossa.
424 Vicente de Abreu Amadei

suspensão de direitos políticos e proibição de


contratar com o Poder Público. 1. Prova nova
é aquela obtida posteriormente ao trânsito em
julgado, cuja existência era ignorada ou de que
não se pôde fazer uso, capaz, por si só, de lhe
assegurar pronunciamento favorável. Hipótese não
materializada quando a prova é incapaz de alterar o
desate. 2. Violação manifesta aos arts. 9º, caput,
e 11 da Lei nº  8.429, de 1992 não identificada.
Elemento subjetivo necessário à configuração
do ato ímprobo demonstrado. 3. Os critérios de
proporcionalidade, de justeza, de razoabilidade,
utilizados como parâmetros na aplicação das
sanções ao ato ímprobo não são passíveis de serem
revistos na via estrita de ação rescisória, porquanto
não se constituem como violação ‘literal’ de
dispositivo legal”. Precedentes 4. Impossibilidade
de aplicação da lei nova, mais branda, na hipótese
de acórdão transitado em julgado, sob pena
de violação da cláusula pétrea insculpida no
art. 5°, XXXVI, da Constituição da República.
5. Ação julgada improcedente. (Ação Rescisória
2259847-80.2021.8.26.0000, Rel. Des. COIMBRA
SCHMIDT, j. 25/01/2022).

Se, enfim, nem ação rescisória é viável, com maior razão é inade-
quada a ação revisional (própria do Direito Penal) para destruir sentença
condenatória de improbidade administrativa, de natureza civil (não penal),
proferida em ação civil (não penal).
Nesse eventual excesso, pois, haverá a necessidade, mais uma vez,
de bem frisar que o fim do Direito Administrativo Sancionador não é o
mesmo do Direito Penal:

O objetivo do Direito Administrativo Sancionador


não é a proteção do autor da infração, mas sim o
seu castigo com respeito às garantias… Em outras
palavras, as garantias procedimentais e materiais são
um modo, uma limitação à atuação administrativa
repressora que em caso algum pode paralisá-la ou
fazê-la inoperante63.

63
Op. cit., p. 36, tradução nossa.
Improbidade administrativa e sua reforma - principais alterações da
Lei nº 14.230/21 e seus impactos nos processos em curso e findos 425

Por isso, a “tomada de empréstimo das técnicas garantistas do Direito


Penal nem sempre são adequadas ao Direito Administrativo Sancionador”64.

Conclusão

As reformas da Lei de Improbidade Administrativa pela Lei nº 14.230/21


foram tão amplas e profundas – com enormes agitações, debates e
divergências nas comunidades políticas, sociais e jurídicas; alguma incons-
titucionalidade já apontada em liminar concedida no âmbito do STF
(ADIs 7042/DF e 7043/DF); repercussão geral já admitida para solucio-
nar questões referentes à eventual (ir)retroatividade das novas disposi-
ções (Tema 1199/STF) –, que, de fato, exigem estudos minuciosos em
diversos aspectos.
Neste artigo, após um breve histórico legislativo e uma breve
visão panorâmica e sistemática das alterações, constatou-se o evidente
manancial de disposições mais favoráveis aos acusados por atos ímprobos
(v.g. tipificação fechada, exigência de dolo específico em todas figuras
ímprobas, abrandamento de sanções, abertura ao acordo de não persecução
cível, prescrição reconfigurada e intercorrente) e foram selecionados
alguns tópicos de aprofundamento, considerando, especialmente, aqueles
de fortes impactos nos processos em curso e já findos (com sentenças
condenatórias transitadas em julgado).
Assim, foi preciso mergulhar na construção doutrinária do Direito
Administrativo Sancionador, investigando seu caminho histórico
(da Alemanha à Espanha, chegando ao Brasil, com expressa referência
na lei nova examinada), sua compreensão e teoria elementar, em busca
de seus valores e princípios maiores, para, então, enfrentar o ponto de
grande e atual polêmica acerca da novatio legis in mellius nessa matéria.
A investigação sobre a (ir)retroatividade da lei nova mais favorável
em Direito Administrativo Sancionador, revela-se de profunda comple-
xidade, sobretudo no Brasil, que carece de legislação específica sobre a
matéria, anotado os graves riscos que a cega ou a apressada transposição
de princípios próprios do Direito Penal pode causar no sistema sanciona-
dor administrativo em geral, com potencial de desestabilização e aguda
insegurança jurídica.

64
Op. cit., p. 27, tradução nossa.
426 Vicente de Abreu Amadei

A exigência de cautela e prudência nesse assunto toca à autono-


mia do Direito Administrativo Sancionador, suas fontes de inspiração e
axiológicas diversas daquelas inerentes ao Direito Penal, nada obstante
alguns paralelos estruturais normativos e operacionais, observando que
as garantias constitucionais de direitos individuais têm consideração em
ambos, mas medidas e pesos distintos, sem rasa identidade, por atenção
à necessidade de se preservar em cada ramo sua natureza e fins próprios,
que até suas denominações indicam: o Penal, sendo “penal”, ante a
prevalência nesse ramo das normas secundárias (cominatórias de sanções)
às primárias (prescritivas de condutas), com forte conotação garantis-
ta individual; o Administrativo Sancionador, sendo “administrativo”,
sem tamanha força garantista, ante a necessidade de se atender aos fins
de interesses gerais e aos padrões éticos de moralidade administrativa.
Oportuno, pois, absorver, quanto à discussão sobre a (ir)retroativi-
dade in bonum da lei nova de Direito Administrativo Sancionador (DAS)
algumas sábias advertências de doutrina e experiência espanhola, bem mais
amadurecida que a nossa nesse campo, a qual, mesmo diante de legislação
disciplinadora do DAS, com previsão especifica para a retroatividade da
lei superveniente mais favorável (que não há no Brasil), poda excessos:
não a classifica como princípio constitucional de direito administrativo
sancionador, acentua seu caráter legal (não constitucional), reconhece
que é a lei que deve dispor sobre a retroatividade ou irretroatividade
benéfica, e, quando admitida, enfatiza que deve ser relativa (não absoluta
como em Direito Penal), atingindo apenas os fatos sobre os quais ainda
não houve um pronunciamento administrativo firme (a que denominamos
coisa julgada administrativa).
E, plantando esse tema no Brasil e no âmbito da improbidade
administrativa, reconhecida a divergência de pensamentos e respeitado
o entendimento oposto, parece-me, como se procurou em detalhada e
ampla fundamentação discorrer, que o caminho da retroatividade das
disposições favoráveis da Lei nº 14.230/21 não é o mais adequado, e,
ainda, a interpretação extensiva do art. 5º, XL, in fine, da Constituição
Federal, para migrar a retroatividade in bonum do Direito Penal ao Direito
Administrativo Sancionador, pode não apenas indicar inadequação de rumo,
desviando-se da natureza (administrativa, na substância; civil, no processo)
e dos fins maiores em que a matéria se encontra, com graves repercussões
na estabilidade e na segurança jurídica das relações e situações jurídicas
consolidadas (possível desatenção ao art. 30 da LINDB), e, ainda, trazer
consigo o risco e a inconveniência, nacional e internacional, por seu
Improbidade administrativa e sua reforma - principais alterações da
Lei nº 14.230/21 e seus impactos nos processos em curso e findos 427

eventual resultado retroativo-abolicionista dilatado (atingindo, quiçá,


um vasto universo de coisas julgadas) de ser apontada como interpreta-
ção de retrocesso no campo do combate à corrupção sistêmica em que o
regime da improbidade administrativa está imbricado.
São Paulo, 4 de março de 2022.

Bibliografia

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art. 20 da LINDB). In: CUNHA FILHO, Alexandre Jorge Carneiro da; ISSA,
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BLANCHET, Luiz Alberto; MARIN, Tâmera Padoin Marques. A corrupção
como violação de direitos humanos e a necessária efetividade da
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428 Vicente de Abreu Amadei

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comparada e comentada: Lei 14.230, de 25 de outubro de 2022. Rio de
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Rafael Hamze; SCHWIND, Rafael Wallbach. Lei de Introdução às Normas
do Direito Brasileiro – Anotada. São Paulo: Quartier Latin, 2019. v. II.
924

O reencontro da improbidade
administrativa com o propósito da
Constituição Federal de 19881

Luis Manuel Fonseca Pires2


Juiz de Direito no estado de São Paulo

Vitor Marques3
Advogado

Sumário: Introdução. 1. Surgimento da LIA. 2. Alterações recebidas


pela LIA até 2021. 3. Cenário fático que exigiu a reforma da LIA. 4. Desafios
para a Lei nº 14.230/2021. Conclusão. Bibliografia.

Introdução

Ao regular o parágrafo 4º do artigo 37 da Constituição Federal de 1988,


a Lei nº 8.429/92 (Lei de Improbidade Administrativa – LIA) surge no
ordenamento jurídico brasileiro como texto legal, prioritariamente, voltado
ao combate à corrupção. A Constituição Federal de 1988 introduziu uma
importante ideia para o enfrentamento da corrupção: a improbidade
administrativa. Afirmada expressamente nos arts. 15, V, e 37, parágrafo 4º,
o termo “improbidade administrativa” sinalizou a possibilidade de abertura

1
Artigo originalmente publicado em DAL POZZO, Augusto Neves; OLIVEIRA, José Roberto Pimenta.
Lei de improbidade administrativa reformada. Revista dos Tribunais, 2022.
2
Livre-docente, doutor e mestre em Direito Administrativo pela Pontifícia Universidade Católica de
São Paulo (PUC-SP). Professor de Direito Administrativo da PUC-SP. Juiz de Direito titular da 3ª Vara da
Fazenda Pública na capital. Publicou, entre outros, os seguintes livros: Estados de exceção: a usurpação
da soberania popular e Controle judicial da discricionariedade administrativa: dos conceitos jurídicos
indeterminados às políticas públicas. Colíder do grupo de pesquisa Sistema de Justiça e estado de
exceção, vinculado à Faculdade de Direito da PUC-SP.
3
Mestre em Direito pela PUC-SP. Atualmente é Secretário de Justiça do Município de Cotia (SP).
Coordenador da Coordenadoria de Combate à Corrupção da Comissão de Direito Administrativo da
OAB/SP (triênio 2019-2021). Associado do Instituto de Direito Administrativo Sancionador Brasileiro
(IDASAN). Membro do grupo de pesquisa Sistema de Justiça e estado de exceção, vinculado à Faculdade
de Direito da PUC-SP.
430 Luis Manuel Fonseca Pires e Vitor Marques

de um importante capítulo de responsabilidade jurídica que não preci-


saria se encontrar no âmbito do Direito Penal. A Constituição Federal
assentou a autonomia da improbidade administrativa e franqueou o
caminho para a construção de uma identidade própria desse campo da
responsabilidade político-jurídica. E, a partir desse pressuposto constitu-
cional, a Lei n. 8.429/92 sistematizou o que seria, no cenário do Direito
Sancionador geral, a “improbidade administrativa”: regras e princípios de
uma instância de responsabilidade ora lida como apartada das instâncias
clássicas – civil, penal e administrativa –, ora reconduzida à responsabi-
lidade administrativa pela compreensão gradual, e acertada, de que ela
não se reduziria às infrações e sanções na esfera administrativa-funcional.
Mas essa percepção levou tempo e sofreu desvios.
Ao longo dos anos de aplicação, experimentou-se na prática uma
ampliação do conceito de improbidade administrativa e, consequente-
mente, uma distorção de seu uso. A par do combate à corrupção surgiram,
a pretexto de qualificarem-se como atos de improbidades administrativas,
intervenções indevidas em políticas públicas.
A LIA iniciou sua trajetória sob uma disputa de âmbitos de respon-
sabilidade, ora pela leitura da responsabilidade civil, outras tantas
vezes com natureza penal, mas paulatinamente se encaminhando para o
campo da responsabilidade administrativa que deixou de ser compreen-
dida sob uma perspectiva estrita, administrativa-funcional (reduzida ao
processo administrativo disciplinar), para ampliar-se e comportar em
seu meio diversas linhas, e uma delas, com autonomia constitucional,
a improbidade administrativa.
Nesse curso, a LIA preservou essencialmente a redação original até
a recente mudança, quase 30 anos de vigência. Durante a construção
de sua própria identidade, a LIA, ao lado do combate à grave má gestão
do interesse público, com o passar dos anos, paulatinamente, tornou-se
também instrumento para coibir a atuação de gestores públicos, os quais
se viam sempre na iminência do ajuizamento de ações de improbidade
administrativa baseadas muitas vezes em falhas formais ou em divergência
interpretativa acerca de normas regulamentares.
O movimento de banalização das ações judiciais com vistas à imposi-
ção das duras penas previstas na LIA ocasionou forte ofensa ao princípio
da segurança jurídica e inibição na atuação administrativa do agente
público. Tal fenômeno recebeu o nome de “apagão das canetas”.
O reencontro da improbidade administrativa com
o propósito da Constituição Federal de 1988 431

1. Surgimento da LIA

A improbidade administrativa surge de forma inédita na versão


promulgada da Constituição Federal de 1988. Importante destacar que
na análise do histórico do parágrafo 4º do artigo 37 da Constituição4
demonstra-se que os conceitos de improbidade e corrupção se alteram com
grande frequência nas diversas fases e minutas do texto constitucional.
Tal intercambialidade não deixa de chamar atenção. Isto porque o termo
probidade administrativa, embora presente no ordenamento jurídico
desde, pelo menos, 1950 – com a Lei nº 1.079/50 –, não dispensava a
mesma objetividade do termo corrupção. Enquanto este abrange condutas
específicas, aquele tenta enquadrar todo um conjunto de atos voltados
ao ideal republicano da gestão pública5.
Também é interessante notar, tal como adiantamos na introdução,
que a intercambialidade entre os dois conceitos acabou por criar uma
indefinição sobre a natureza civil, penal ou administrativa da improbidade.
Em verdade, a proteção da probidade administrativa foi introduzida ao
longo das discussões constituintes por meio da emenda nº 559, proposta
pelo Constituinte Hélio Costa, com o seguinte teor:

Os atos de improbidade administrativa são crimes


inafiançáveis, e importarão na suspensão dos
direitos políticos, na perda da função pública,
na indisponibilidade dos bens e no ressarcimento
do erário, na forma e gradação prevista em lei,
sem prejuízo da ação penal correspondente.

4
Cf.: BRASIL. Congresso. Câmara dos Deputados. Centro de Documentação e Informação. Quadro histórico
artigo 37, § 4º da Constituição Federal de 1988. Disponível em: https://bd.camara.leg.br/bd/bitstream/
handle/bdcamara/35539/quadro_historico_art.%20037_%C2%A74.pdf?sequence=2&isAllowed=y.
Acesso em: 29 nov. 2021.
5
A simples leitura dos tipos de crimes de responsabilidade contra a probidade na Administração Pública
(art. 9º da Lei nº 1.079/50) é suficiente para verificar a grande abrangência do conceito: “1) omitir
ou retardar dolosamente a publicação das leis e resoluções do Poder Legislativo ou dos atos do Poder
Executivo”; “2) não prestar ao Congresso Nacional, dentro de 60 (sessenta) dias após a abertura da sessão
legislativa, as contas relativas ao exercício anterior”; “3) não tornar efetiva a responsabilidade dos seus
subordinados, quando manifesta em delitos funcionais ou na prática de atos contrários à Constituição”;
“4) expedir ordens ou fazer requisição de forma contrária às disposições expressas da Constituição”;
“5) infringir, no provimento dos cargos públicos, as normas legais”; “6) Usar de violência ou ameaça
contra funcionário público para coagí-lo a proceder ilegalmente, bem como utilizar-se de suborno ou
de qualquer outra forma de corrupção para o mesmo fim”; “7) proceder de modo incompatível com a
dignidade, a honra e o decôro do cargo”.
432 Luis Manuel Fonseca Pires e Vitor Marques

Percebe-se, realmente, que existia certa confusão com relação ao


regime jurídico para tratamento dos ilícitos envolvendo a proteção da
probidade administrativa, uma vez que a emenda anteriormente proposta,
ora define os atos de improbidade como crimes inafiançáveis, ora ressalta
que as penas se aplicam “sem prejuízo da ação penal correspondente”.
A ausência de uma definição clara acerca da probidade – e, conse-
quentemente, da improbidade administrativa – talvez justifique o lapso
de mais de três anos para regulamentação do disposto no parágrafo 4º do
artigo 37 da Carta Magna, vindo a ocorrer somente diante das acusações
que alimentavam o movimento pelo impeachment do então Presidente
Fernando Collor. Como resposta, o Poder Executivo encaminhou ao
Congresso Nacional o Projeto de Lei (PL nº 1.446/91) que circunscrevia o
tema da improbidade administrativa aos atos tipificados como “enriqueci-
mento ilícito no exercício de cargo, emprego ou função da administração
pública” e reforçava a noção de que seu conteúdo estava ligado à “prática
desenfreada e impune de atos de corrupção, no trato com os dinheiros
públicos” – conforme se verifica na exposição de motivos subscrita pelo
então Ministro da Justiça Jarbas Passarinho.
Todavia, já ao longo do processo legislativo foi alargado o conceito
pretendido originalmente no PL, introduzindo-se a forma culposa de impro-
bidade por dano ao erário e a modalidade de improbidade por ofensa aos
princípios da Administração Pública. Assim, nota-se que o que foi concebido
originalmente para ser um mecanismo de combate à desonestidade no
uso dos recursos públicos, passou, por opção do Legislativo à época, a ser
uma ferramenta de combate dos desvios genéricos do agente público6.
Por se tratar de uma legislação voltada a perseguir desvios indesejados
por todos na condução da Administração Pública, a Lei nº 8.429/92 passou
boa parte de sua existência sem alterações significativas. Como outras
leis que buscam bons objetivos, havia sobre a LIA uma certa blindagem
contra críticas.
Mas, nesse percurso pela busca de uma identidade do que seria
“improbidade administrativa”, qual a sua natureza jurídica, a ciência
jurídica conseguiu amadurecer para identificar, primeiro, a sua autonomia
constitucional decorrente da expressa referência a um novo instituto no

Uma boa medida para a amplitude do gênero de desvios combatidos pela redação original da Lei nº 8.429/92
6

é a tipificação do art. 11, que, além de conter os princípios previstos no art. 37, caput, da Constituição
Federal, agregou conceitos cuja definição é inexistente, como o caso da “lealdade às instituições”.
O reencontro da improbidade administrativa com
o propósito da Constituição Federal de 1988 433

texto constitucional. Sinais, conforme dito na introdução, de que não se


tratava de um capítulo do Direito Penal. O art. 12, caput, da Lei 8.429/92,
em sua original redação, reafirmou essa possibilidade ao explicitamente
afirmar que independentemente das sanções penais, civis e administrativas,
uma vez identificada a improbidade administrativa, as penas dispostas no
artigo deveriam ser aplicadas.
A compreensão sobre o instituto da “improbidade administrativa”
encontrou horizontes mais precisos: ou a leitura da improbidade adminis-
trativa como gênero autônomo de responsabilidade jurídico-constitucional,
ou como espécie da responsabilidade administrativa desde que ela fosse
relida para não mais se restringir às infrações funcionais de servidores
públicos e o respectivo processo disciplinar, e sim como gênero no qual se
abrem diversa linhas: administrativa-funcional (infrações funcionais em
processo disciplinar), improbidade administrativa, infrações tributárias,
infrações de trânsito, infrações relacionadas à vigilância sanitária e,
ainda, por edificações de obras e licenciamento de atividades empresarias,
meio ambiente etc.

2. Alterações recebidas pela LIA até 2021

De modo geral, a LIA recebeu poucas alterações substanciais até a


promulgação da Lei nº 14.230/21. Porém, dois movimentos de mudanças
chamam atenção.
O primeiro deles diz respeito a uma série de alterações no processa-
mento das ações de improbidade, em especial nos parágrafos do artigo 17
da LIA, ocorridas ao longo do governo do então Presidente Fernando
Henrique Cardoso. Tratava-se, à época, de incluir na LIA mecanismos
de controle do abuso do direito de ação em matéria de improbidade
administrativa, conforme se observa da exposição de motivos da Medida
Provisória nº 2.088-35, de 27 de dezembro de 2000, subscrita pelo então
Ministro da Justiça José Gregori.
A ideia corrente na época de edição da MP era a de que a mera
acusação de improbidade já carrega em si um estigma ao acusado,
maculando sua imagem perante a sociedade, o que justificaria um
controle maior sobre o ajuizamento temerário das ações. Por essa razão,
foram introduzidas algumas características do processo penal no rito das
ações de improbidade – como a defesa prévia (art. 17, § 6º, incluído
pela MP nº 2.088-35/00) e aplicação do art. 221, caput, e § 1º do Código
434 Luis Manuel Fonseca Pires e Vitor Marques

de Processo Penal (art. 17, § 12, incluído pela MP nº 2.088-35/00) –


assim como a previsão de multa na apresentação de imputação manifes-
tamente improcedente (art. 17, § 11, incluído pela MP nº 2.088-35/00)
e possibilidade de reconvenção por parte do réu (art. 17, § 10, incluído
pela MP nº 2.088-35/00).
Nota-se, portanto, que não configura novidade o entendimento
agora expresso na Lei nº 14.230/21 de que se faz necessário no sistema
de Direito Administrativo Sancionador a observância de um núcleo mínimo
de garantias compartilhadas com o Direito Penal, voltadas à contenção
do abuso dos instrumentos de controle e sancionamento estatal.
Outras alterações se destacam não pelo reflexo no processamento das
ações de improbidade, mas como indicadoras da mudança de perspectiva
e amplitude da LIA e inevitavelmente, certa vulgarização do instituto.
São exemplos dessas alterações:

i) O artigo 18 da Lei nº 11.107/05 – “dispõe sobre normas gerais de


contratação de consórcios públicos e dá outras providências” –,
que incluiu no artigo 10 da LIA os incisos XIV e XV, dispositivos
que caracterizaram como improbidade “celebrar contrato ou
outro instrumento que tenha por objeto a prestação de serviços
públicos por meio da gestão associada sem observar as formalida-
des previstas na lei” e “celebrar contrato de rateio de consórcio
público sem suficiente e prévia dotação orçamentária”.
ii) O artigo 77 da Lei nº 13.019/14 – “estabelece o regime jurídico
das parcerias entre a administração pública e as organizações
da sociedade civil” –, que alterou no artigo 10 da LIA a redação
dada ao inciso VII, bem como incluiu os incisos XVI a XX, disposi-
tivos que caracterizaram como improbidade “frustrar a licitude
de processo licitatório ou de processo seletivo para celebração
de parcerias com entidades sem fins lucrativos, ou dispensá-los
indevidamente”; “facilitar ou concorrer, por qualquer forma,
para a incorporação, ao patrimônio particular de pessoa física
ou jurídica, de bens, rendas, verbas ou valores públicos transfe-
ridos pela administração pública a entidades privadas mediante
celebração de parcerias, sem a observância das formalidades legais
ou regulamentares aplicáveis à espécie”; “permitir ou concorrer
para que pessoa física ou jurídica privada utilize bens, rendas,
verbas ou valores públicos transferidos pela administração pública
O reencontro da improbidade administrativa com
o propósito da Constituição Federal de 1988 435

a entidade privada mediante celebração de parcerias, sem a


observância das formalidades legais ou regulamentares aplicáveis
à espécie”; “celebrar parcerias da administração pública com
entidades privadas sem a observância das formalidades legais
ou regulamentares aplicáveis à espécie”; “frustrar a licitude de
processo seletivo para celebração de parcerias da administração
pública com entidades privadas ou dispensá-lo indevidamente”;
“agir negligentemente na celebração, fiscalização e análise das
prestações de contas de parcerias firmadas pela administração
pública com entidades privadas”; “liberar recursos de parcerias
firmadas pela administração pública com entidades privadas sem a
estrita observância das normas pertinentes ou influir de qualquer
forma para a sua aplicação irregular”.
iii) O artigo 78 da Lei nº 13.019/14 – “estabelece o regime jurídico
das parcerias entre a administração pública e as organizações da
sociedade civil” –, que incluiu no artigo 11 da LIA o inciso VIII,
dispositivo que caracterizou como improbidade “descumprir
as normas relativas à celebração, fiscalização e aprovação de
contas de parcerias firmadas pela administração pública com
entidades privadas”.
iv) O artigo 103 da Lei nº 13.146/15 – “institui a Lei Brasileira
de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com
Deficiência)” – que incluiu no artigo 11 da LIA o inciso IX, dispo-
sitivo que caracterizou como improbidade “deixar de cumprir a
exigência de requisitos de acessibilidade previstos na legislação”.
v) O artigo 4º da Lei Complementar nº 157/16, que incluiu o
artigo 10-A da LIA, dispositivo que caracterizou como improbi-
dade “qualquer ação ou omissão para conceder, aplicar ou manter
benefício financeiro ou tributário contrário ao que dispõem o
caput e o § 1º do art. 8º-A da Lei Complementar nº 116, de 31 de
julho de 2003”.
vi) O artigo 3º da Lei nº 13.650/18 – “dispõe sobre a certifica-
ção das entidades beneficentes de assistência social, na área de
saúde” – que incluiu no artigo 11 da LIA o inciso X, dispositivo
que caracterizou como improbidade “transferir recurso a entidade
privada, em razão da prestação de serviços na área de saúde sem a
prévia celebração de contrato, convênio ou instrumento congênere,
nos termos do parágrafo único do art. 24 da Lei nº 8.080, de 19 de
setembro de 1990”.
436 Luis Manuel Fonseca Pires e Vitor Marques

Todas essas alterações listadas têm em comum o fato de decla-


rarem como improbidade administrativa condutas que, embora devam
ser afastadas da Administração Pública, não representam propriamente
nenhuma ruptura com os deveres de “observância de princípios éticos,
de lealdade, de boa-fé, de regras que assegurem a boa administração e
a disciplina interna na Administração Pública”7. Assim, o que parece ter
orientado a introdução dessas novas tipificações de improbidade foi o uso
das sanções da LIA como forma de alcançar a imperatividade de temas
arbitrariamente selecionados pelo legislador e, consequentemente, alargar
o conceito de improbidade.
Conforme se verifica das alterações aqui apresentadas, a LIA não
contou com alterações normativas de relevo ao longo dos seus anos de
vigência. Entre as ocorridas, pode-se identificar dois grupos de alterações,
que sintetizam momentos distintos da aplicação da Lei nº 8.429/92:
o primeiro deles voltado a evitar abusos por parte da LIA como ferramenta
de controle e as consequências políticas advindas desse comportamento;
o segundo, já em momento posterior, direcionado ao reforço de contun-
dência na observância de determinadas normas de Direito Público e o
alargamento do conceito de improbidade.

3. Cenário fático que exigiu a reforma da LIA

As alterações observadas até aqui, contudo, não parecem ter tido


sucesso, seja na coibição dos atos de improbidade administrativa, seja na
maior racionalidade do sistema punitivo desses atos.
Conforme narra Rodrigo Valgas dos Santos8, o CNJ, quando da fixação
da Meta 18, relatava a existência de 43.773 ações de improbidade em
curso em 31 de dezembro de 2011, sendo reduzido para 23.266 ao final
de 2012. Apenas no ano de 2017, no estado de Santa Catarina, foram
ajuizadas uma média de 2,11 ações de improbidade por município, segundo
o supracitado professor.
Se os crescentes números de ações de improbidade apontam para uma
disfuncionalidade dos mecanismos da LIA para refrear os atos ímprobos,
menos animadores são os dados acerca da racionalização das condenações.

7
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella Direito Administrativo, p. 973.
8
SANTOS, Rodrigo Valgas dos Direito administrativo do medo: risco e fuga da responsabilização dos
agentes públicos. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020. E-book.
O reencontro da improbidade administrativa com
o propósito da Constituição Federal de 1988 437

Em pesquisa realizada por Carlos Ari Sundfeld e Ricardo Alberto


Kanayama9, que apurou os acórdãos proferidos pelo Tribunal de Justiça
do Estado de São Paulo com base no artigo 11 da LIA, mostrou que em
apenas um ano foram proferidos 353 acórdãos que tratavam de ações de
improbidade por violação dos princípios da Administração Pública. Desses,
244 tiveram como resultado o reconhecimento do ato de improbidade.
E 60% dos acórdãos condenatórios envolviam a aplicação genérica dos
princípios. Explicam os autores que aplicação genérica dos princípios,
no contexto das condenações por improbidade, significa:

Por aplicação genérica, compreendem-se as decisões


afirmando simplesmente que “os princípios da
administração haviam sido violados” ou que, apesar
de mencionarem princípios específicos, deixam
de explicar o motivo para se concluir por sua
violação. Já por aplicação parcialmente genérica,
compreendem-se as decisões que citam conceitos
dos princípios presentes na doutrina, mas não
contextualizam no caso concreto. São decisões com
textos-padrão.

Os dados empíricos não deixam dúvidas com relação ao status conquis-


tado pela LIA no sentido de tornar-se a principal ferramenta para controle
e sancionamento dos gestores públicos, superando, inclusive, as ações
penais em assuntos conexos. Ademais, a falta de critérios e rigor técnico
na estruturação das decisões10 parece gerar facilidade nas condenações,
incentivando a opção dos órgãos legitimados para a predileção pelo
ajuizamento de ações de improbidade em detrimento de outras ações cuja
técnica para julgamento é mais desenvolvida e exigida. A tipicidade dos atos
de improbidade administrativa alargou-se tanto, sobretudo em relação ao
art. 11, que passou a comprometer a segurança jurídica. A operatividade

9
SUNDFELD, Carlos Ari; KANAYAMA Ricardo Alberto. A promessa que a Lei de Improbidade Administrativa
não foi capaz de cumprir. Publicações da Escola da AGU, v. 12, n. 2, 2020. Disponível em https://
seer.agu.gov.br/index.php/EAGU/article/view/2789.
10
Lembra Rodrigo Valgas que: “No Brasil, proliferam sem maior rigor técnico as teorias da ‘cegueira
deliberada’, do dano ‘in re ipsa’, da teoria do ‘domínio do fato’ no âmbito das condenações por impro-
bidade, alargando-se demasiadamente – sem qualquer suporte normativo consistente – a incidência
aparentemente ‘correta’ da Lei de Improbidade Administrativa” (SANTOS, Rodrigo Valgas dos. Direito
administrativo do medo: risco e fuga da responsabilização dos agentes públicos. São Paulo: Thomson
Reuters Brasil, 2020. E-book).
438 Luis Manuel Fonseca Pires e Vitor Marques

da LIA, muitas vezes, enveredou-se por uma dificuldade muito recorrente


associada à tipicidade das infrações administrativas que foi bem-posta
por Daniel Ferreira: “O imbróglio, ao contrário, sempre vem à tona a
partir do que se ‘imagina’ esteja contido na disposição normativa […]”11.
Ainda, outros problemas podem ser citados na aplicação da LIA –
ao menos até a vinda da Lei nº 14.230/21 –, os quais são tidos com
relativo consenso entre os seus operadores, tais como: existência de tipos
demasiadamente abertos; a dificuldade na diferenciação dos conceitos de
culpa e dolo, principalmente diante de teses jurisprudenciais que permitem
condenações com base no chamado “dolo genérico”; ausência de critérios
para calcular a dosimetria da pena, o que deságua na condenação em
blocos, independentemente da conduta dos agentes.
É inegável, portanto, que alguma reforma se fazia necessária para
sedimentar no ramo da proteção à probidade administrativa uma maior
racionalidade na utilização desse instituto; maior precisão do conceito
de improbidade, após quase 30 anos de experiência; e, também, permitir
a criação de um ambiente seguro para o exercício das funções públicas,
notadamente a função administrativa. É nessa busca que se constituiu,
em fevereiro de 2018, pela Câmara dos Deputados, a comissão formada
por juristas de diversos matizes e áreas de operação com vistas a refor-
mular os dispositivos da LIA.

4. Desafios para a Lei 14.230/2021

Ultrapassado o trâmite legislativo, surge a Lei nº 14.230/21,


que apresenta uma reforma quase integral do sistema de repressão à
improbidade administrativa. Embora tenha se mantido a Lei nº 8.429/92,
pode-se dizer que estamos agora diante de uma nova legislação, visto que
a quase totalidade de seus dispositivos foi alterada.
Entre as principais mudanças, podemos destacar resumidamente:

i) A extinção da modalidade culposa, exigindo-se a comprovação do


dolo para o sancionamento dos agentes;
ii) A necessidade de comprovação de atuação dolosa de terceiros
beneficiados, induzindo ou concorrendo para a execução do ato
ímprobo, para estender-lhe a cominação das penas;

FERREIRA, Daniel. Teoria geral da infração administrativa a partir da Constituição Federal de 1988, p. 264.
11
O reencontro da improbidade administrativa com
o propósito da Constituição Federal de 1988 439

iii) Exclusão da sanção de perda da função pública e suspensão dos


direitos políticos no tipo de improbidade por ofensa aos princípios;
iv) Ampliação dos rigores na observância dos requisitos para ajuiza-
mento das ações de improbidade;
v) Proibição ao julgamento antecipado da lide, sem a devida dilação
probatória pretendida pelo réu, na hipótese de condenação
do acusado;
vi) Ampliação da pena máxima da suspensão dos direitos políticos
para as hipóteses dos artigos 9º e 10°.
A nova LIA, depois de larga experiência amadurecida em debates e
reflexões no meio acadêmico e em sua aplicação na jurisprudência, encon-
trou a sua identidade – e reencontrou-se com a Constituição – ao expli-
citamente afirmar-se no campo do denominado Direito Administrativo
Sancionador (art. 1º, § 4º). Significa dizer que a improbidade adminis-
trativa, apesar de sua autonomia constitucional (arts. 15, V, e 37, § 4º),
é um capítulo da responsabilidade administrativa – que não se restringe
à responsabilidade administrativa-funcional. Reconhecer o horizonte da
responsabilidade administrativa como gênero leva a afirmar que há diversas
espécies, como a administrativa-funcional, a improbidade administrativa,
fiscalização de obras, vigilância sanitária, infrações tributárias, infrações
ao meio ambiente etc. Como diz Fábio Medina Osório:

Inegavelmente, sabe-se que o Direito Administrativo


Sancionador alcança, em tese, situações tão
díspares como as atitudes de particulares que
atentam contra a ordem pública, v.g., nos casos de
infrações urbanísticas, como as atitudes submetidas
a especiais relações jurídicas, v.g., agentes públicos
praticantes de atos de improbidade. São hipóteses
distintas, é de convir, e essa distinção há de ser
reconhecida em terreno doutrinário. Há, ainda,
as chamadas relações submetidas a um Direito
Administrativo disciplinar […]12.

Mas também implica reconhecer que, apesar das características


próprias da responsabilidade administrativa, a exemplo da descrição de
tipos infracionais não guardar a mesma precisão fática que se encontra nos

12
OSÓRIO, Fábio Medina. Direito administrativo sancionador, p. 450-451.
440 Luis Manuel Fonseca Pires e Vitor Marques

tipos penais, ainda assim há um conjunto amplo e fundamental de garantias


e proteções do cidadão em relação ao Estado. Em outros termos, há uma
matriz constitucional do Direito Sancionador que assegura garantias aos
acusados que é tão comum ao Direito Civil, ao Direito Penal e ao Direito
Administrativo Sancionador. Os direitos fundamentais inscritos no art. 5º
da Constituição Federal que se referem ao Direito Sancionador (não há
exclusividade do Direito Penal) servem a qualquer âmbito de respon-
sabilidade: civil, penal ou administrativa (e dentro da administrativa,
aplica-se à improbidade administrativa).
Tomando-se por referência a larga experiência doutrinária sobre o
Direito Administrativo Sancionador na Espanha, pode-se acolher a lição
de Alejandro Nieto de que

[…] o Direito Administrativo Sancionador não


deve ser construído com os materiais e com as
técnicas do Direito Penal mas sim desde o próprio
Direito Administrativo, do qual obviamente forma
parte, e desde a matriz constitucional e do Direito
Público estatal”13.

Quer dizer, as naturezas penal e administrativa são distintas, mas há


uma estrutura comum, uma matriz constitucional igualmente aplicável a
qualquer expressão do poder punitivo.
Vale ressaltar, ainda, que tais alterações na LIA, em sua maioria, estão
em sintonia com um movimento maior, que vem sendo experimentado
no ordenamento jurídico brasileiro ao longo dos últimos anos. Ao menos
desde 2015, com a vinda do mais recente Código de Processo Civil, vê-se a
preocupação na inovação legislativa em suprir a carência na fundamen-
tação das decisões judiciais. Um exemplo dessa preocupação da redação
do Código pode ser encontrado no artigo 489, parágrafo 1º, reprovando
as decisões judiciais que contornam a necessária fundamentação.
Em 2018, com a reforma da Lei de Introdução às Normas do Direito
Brasileiro (LINDB), buscou-se cercear o uso abusivo e arbitrário de concei-
tos jurídicos indeterminados, fazendo com que o julgador se afastasse
do subjetivismo no emprego de tais noções. Também em 2019 tivemos
a aprovação da Lei nº 13.964/2019, popularmente chamada de “Pacote

13
NIETO, Alejandro. Derecho administrativo sancionador, p. 32.
O reencontro da improbidade administrativa com
o propósito da Constituição Federal de 1988 441

Anticrime”, que alterou o Código de Processo Penal, fazendo incluir no


artigo 315, parágrafo 2º, as mesmas disposições aqui comentadas do Código
de Processo Civil acerca da necessidade de fundamentação das decisões.
Tais dispositivos, na visão do professor Georges Abboud, compõem:

uma reação do Legislativo contra a atuação


performática e ativista do Poder Judiciário que,
recentemente, valendo-se de conceitos vazios e
atécnicos, tem se furtado do dever de fundamentar
juridicamente suas decisões (artigo 93, IX,
da Constituição)14.

E, verdadeiramente, pareceu ser esse o intento do legislador nas


alterações da LIA. Vários dispositivos ali incluídos nada mais fazem do que
concretizar, agora na forma de Lei, garantias fundamentais a qualquer
acusado dentro de um sistema regido pelo princípio do devido processo
legal, da ampla defesa e do contraditório. É esse o caso, por exemplo,
o intento das normas contidas no artigo 17, parágrafo 10-C (vedação à
alteração do fato principal e capitulação legal apresentada pelo autor);
parágrafo 10-F, I e II, do mesmo artigo (nulidade da decisão de mérito
que condene o requerido por tipo diverso daquele definido na petição
inicial ou que negue a produção de provas tempestivamente especificada);
artigo 11, parágrafos 3º e 4º (necessidade de explicitação das normas
constitucionais, legais ou infralegais violadas para condenação com base
em ofensa aos princípios e da lesividade relevante desses).
Ainda nas palavras de Georges Abboud, as transformações recentes na
sistemática decisória, em especial aquelas voltadas para o controle decisó-
rio do Judiciário, devem ser interpretadas por meio de uma hermenêutica
integrativa que dignifique essas novas legislações enquanto garantidoras de
direitos do elo mais frágil em processos acusatórios estatais: os acusados.
As alterações inserem-se fortemente nos paradigmas do Direito
Administrativo Sancionador. Intensifica-se a segurança jurídica,
aperfeiçoa-se a tipicidade das infrações por improbidade administrativa,
eleva-se o rigor da fundamentação necessária seja para o processamento

ABBOUD, Georges. A (in)dignidade da legislação e o pacote “anticrime”. Consultor Jurídico, 10 jan. 2020.
14

Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-jan-10/georges-abboud-indignidade-legislacao-pacote-


anticrime. Acesso em: 29 nov. 2021.
442 Luis Manuel Fonseca Pires e Vitor Marques

da acusação, seja para a imposição de medidas preventivas de restrição


patrimonial, seja por fim para eventual condenação por atos ímprobos e
a consequente imposição de sanções. Para exemplificar essas referências,
vale destacar alguns incisos do art. 11 da LIA. O inciso VI, na redação
antiga, dizia “deixar de prestar contas quando esteja obrigado a fazê-lo”
e foi modificado para “deixar de prestar contas quando esteja obriga-
do a fazê-lo, desde que disponha das condições para isso, com vistas a
ocultar irregularidades”. O acréscimo não é aleatório. Ao se acrescentar,
especialmente, o propósito de ocultar irregularidades a tipicidade da LIA
deu importância à relação de pertinência entre conduta e resultado, o que
se ajusta à necessidade de perquirir o dolo (consciência e voluntariedade)
e reforça que a improbidade se configura pelo fim de violar a ética da
função administrativa; portanto, eventual decisão de condenação deve
amplificar-se em fundamentação para qualificar o ato de improbidade
porque é preciso apontar o propósito ilícito.
A relação de pertinência reaparece no inciso V. Antes se dizia, “frustrar
a licitude de concurso público”, e na nova redação se afirma “frustrar,
em ofensa à imparcialidade, o caráter concorrencial de concurso público,
de chamamento ou de procedimento licitatório, com vistas à obtenção de
benefício próprio, direto ou indireto, ou de terceiros”. A tipicidade da
improbidade administrativa não se dá em abstrato por suposta violação
de um princípio jurídico. Mas sim se a conduta for movida com o fim de –
no caso do inciso, obtenção de benefício. Ajustam-se aqui as lições de
Daniel Ferreira: “Mostra-se melhor, para a construção da Teoria Geral da
Infração, assumi-lo como ‘expressão de vontade’, de um ‘querer algo’
e ‘ativo’, que não se confunde com o ‘desejo’ porque este pode nunca
vir a se manifestar”15. A relação de pertinência entre conduta e resul-
tado é traço característico do regime jurídico do Direito Administrativo
Sancionador, porque permite alinhavar legalidade, tipicidade e dolo no
contexto dos fundamentos do Estado de Direito.
A maior precisão descritiva ocorrida em alguns incisos da nova lei
cumpre a advertência bem-posta por Celso Antônio Bandeira de Mello:

A configuração das infrações administrativas,


para ser válida, há de ser feita de maneira
suficientemente clara, para ‘não deixar dúvida

15
FERREIRA, Daniel. Op. cit., p. 276.
O reencontro da improbidade administrativa com
o propósito da Constituição Federal de 1988 443

alguma sobre a identidade do comportamento


reprovável, a fim de que, de um lado, o administrado
possa estar perfeitamente ciente da conduta
que terá de evitar ou que terá de praticar para
livrar-se da incursão em penalizações e, de outro,
para que dita incursão, quando ocorrente,
seja ‘objetivamente’ reconhecível16.

A conexão entre conduta e fim almejado ilumina a presença do dolo


e eleva, por consequência, a exigência de qualidade da fundamentação
das manifestações jurídicas – tanto de quem acusa quanto de quem
condena – para que prevaleça a clareza e a transparência das razões pelas
quais alguém é acusado ou condenado por improbidade administrativa.
É um reforço à tipicidade do Direito Sancionador em geral – no qual se
encontra não apenas o Direito Penal, mas também o Direito Administrativo
Sancionador. Como dizem os espanhóis Eduardo García de Enterría e
Tomás-Ramón Fernández, a tipicidade comporta

[…] dupla exigência: do princípio geral de liberdade,


com base no qual se organiza todo o Estado de Direito,
que impõe que as condutas sancionáveis sejam
exceção a essa liberdade e, portanto, exatamente
delimitadas […] em segundo lugar, a correlata
segurança jurídica […] que não se cumpriria se a
descrição do que é passível de sanção não permitisse
um grau de certeza suficiente para que os cidadãos
possam prever as consequências dos seus atos […]17.

Ou, nas palavras do espanhol Alejandro Nieto, apesar de naturezas


jurídicas distintas tanto o Direito Penal quanto o Direito Administrativo
Sancionador “[…] encontram uma raiz comum no Direito Público estatal
baseado em uma ‘potestas puniendi’ única de titularidade estatal […]”18.
Daí por que ter se consolidado na doutrina a conclusão da incidência
de uma matriz constitucional comum a qualquer intervenção da potestade
punitiva. Por exemplo, ao se falar do princípio da legalidade, deve-se

16
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo, p. 869.
17
GARCÍA DE ENTERRÍA, Eduardo; FERNÁNDEZ, Tomás-Ramón. Curso de direito administrativo, v. 2., p. 201.
18
NIETO. Alejandro. Op. cit., p. 563.
444 Luis Manuel Fonseca Pires e Vitor Marques

compreender, como destaca o espanhol Juan Alfonso Santamaría Pastor,


que é imperativo “[…] o complemento da irretroatividade das normas
sancionadoras […]”, o princípio da proporcionalidade, princípio non bis
in idem, entre outros19. Na mesma linha, o espanhol Miguel Sánchez
Morón (2005) destaca a proibição de analogia in peius, a irretroatividade de
normas sancionadoras desfavoráveis e a retroatividade das favoráveis, entre
outros princípios do regime jurídico do Direito Administrativo Sancionador20.
Se é verdade que é preciso ter cuidado com as referências ao direito
comparado, em relação ao Direito Sancionador as premissas assentadas
na Constituição da Espanha convergem com as inscritas na Constituição
do Brasil para efeito de elaboração dos principais fundamentos do regime
jurídico sancionador. Na doutrina brasileira, as garantias do Estado de
Direito em relação ao poder punitivo são reconhecidas; e, para exemplificar
nos temas legalidade e tipicidade, vale mencionar a defesa da aplicação
de lei mais benéfica nos estudos de Rafael Munhoz de Mello21, Daniel
Ferreira22, Heraldo Garcia Vitta23, entre outros.

Conclusão

Tentou-se ao longo deste texto apresentar algumas das caracte-


rísticas do surgimento da defesa da probidade administrativa enquanto
norma constitucional, quer dizer, âmbito autônomo de responsabilidade,
fazendo-se perceber alguns entraves na definição sobre improbidade,
o que ao longo do tempo ensejou o alargamento do conceito sem o
necessário acompanhamento das garantias devidas a um processo de
natureza acusatória.
A vinculação da improbidade com conceitos de ampla dimensão e
baixa densidade conceitual não demorou para apresentar como conse-
quência o abuso na utilização das ações de improbidade, o que pode
ser percebido não apenas nos movimentos de adequação pretéritos de
alteração da LIA – que ora tentavam limitar a atuação temerária dos
acusadores, ora ampliava a função da LIA como instrumento de aplicação

19
SANTAMARÍA PASTOR, Juan Alfonso. Princípios de derecho administrativo general, v. 2., p. 392-407.
20
SÁNCHEZ MORÓN, Miguel. Derecho administrativo, p. 664-665.
21
MELLO, Rafael Munhoz de. Princípios constitucionais de direito administrativo sancionador, 2007.
22
FERREIRA, Daniel. Sanções administrativas, 2001.
23
VITTA, Heraldo Garcia A sanção no direito administrativo, 2003.
O reencontro da improbidade administrativa com
o propósito da Constituição Federal de 1988 445

de normas de Direito Público –, mas também no aumento substancial


das ações de improbidade e ausência de critérios claros e objetivos dos
parâmetros de condenação.
A reforma era inevitável e necessária. O desarranjo institucional das
funções estatais já se mostrava no surgimento de diversas legislações cujo
fito específico era agregar às decisões judiciais maior aderência ao texto
legal, restringindo o uso arbitrário das competências de controle em prol
de uma maior segurança jurídica, em especial daqueles legitimados para
executarem políticas públicas.
Portanto, o surgimento da Lei nº 14.230/21 recupera o sentido do
conceito de improbidade administrativa, aproximando-o do escopo almejado
pela Constituição Federal, com a finalidade de garantir maior racionalidade,
segurança jurídica e previsibilidade do Ministério Público e do Judiciário
para toda a sociedade. A nova LIA valoriza essa instância de responsabilidade
jurídica ao localizá-la no capítulo do Direito Administrativo Sancionador,
que tem por fundamentos os direitos fundamentais dos acusados, um dos
pilares e legados do Estado de Direito. Como lembra Rafael Munhoz de
Mello, o “[…] princípio constitucional do Estado de Direito e seus subprincí-
pios formam a base do regime jurídico punitivo, aplicado às manifestações
do poder punitivo estatal […]”24. Ou, de acordo com a larga tradição do
direito espanhol a respeito do Direito Administrativo Sancionador, e nas
palavras de dois dos maiores expoentes mundiais da ciência do Direito
Administrativo, Eduardo García de Enterría e Tomás-Ramón Fernández,
o mesmo “ius puniendi” do Estado pode manifestar-se tanto pela via
judicial quanto na administrativa25.

Bibliografia

ABBOUD, Georges. A (in)dignidade da legislação e o pacote “anticrime”.


Consultor Jurídico, 10 jan. 2020. Disponível em: https://www.conjur.com.br/
2020-jan-10/georges-abboud-indignidade-legislacao-pacote-anticrime.
Acesso em: 29 nov. 2021.
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 29. ed. Rev., atual.
e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2016.

MELLO, Rafael Munhoz de. Princípios constitucionais de direito administrativo sancionador, p. 101-102.
24

GARCÍA DE ENTERRÍA, Eduardo; FERNÁNDEZ, Tomás-Ramón. Curso de direito administrativo, v. 2, p. 190-191.


25
446 Luis Manuel Fonseca Pires e Vitor Marques

FERREIRA, Daniel. Teoria geral da infração administrativa a partir da


Constituição Federal de 1988. Belo Horizonte: Fórum, 2009.
FERREIRA, Daniel. Sanções Administrativas. São Paulo: Malheiros, 2001.
GARCÍA DE ENTERRÍA, Eduardo; FERNÁNDEZ, Tomás-Ramón. Curso de
Direito Administrativo. Trad. José Alberto Froes Cal. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2014. v. 2.
MELLO, Celso Antônio Bandeira. Curso de Direito Administrativo. 29. ed.
São Paulo: Malheiros, 2009.
MELLO, Rafael Munhoz de. Princípios constitucionais de direito
administrativo sancionador: as sanções administrativas à luz da Constituição
Federal de 1988. São Paulo: Malheiros, 2007.
NIETO, Alejandro. Derecho Administrativo Sancionador. 4. ed. Madrid:
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OSÓRIO, Fábio Medina. Teoria da Improbidade Administrativa: má gestão
pública, corrupção, ineficiência. 5.  ed., São Paulo: Thomson Reuters
Brasil, 2020.
OSÓRIO, Fábio Medina. Direito Administrativo Sancionador. 2. ed.
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PASTOR, Juan Alfonso Santamaria. Princípios de Derecho Administrativo
General. 2. ed. Madrid: Iustel, 2009. v. 2.
SANCHEZ MORÓN, Miguel. Derecho administrativo. Parte general. Madrid:
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SUNDFELD, Carlos Ari; KANAYAMA, Ricardo Alberto. A promessa que a Lei
de Improbidade Administrativa não foi capaz de cumprir. Publicações da
Escola da AGU, v. 12, n. 02, 2020. Disponível em https://seer.agu.gov.br/
index.php/EAGU/article/view/2789.
VITTA, Heraldo Garcia. A Sanção no Direito Administrativo. São Paulo:
Malheiros, 2003.
744

Mudou o sistema ou mudou o


Direito? Alguns impactos da nova Lei
de Improbidade Administrativa na
conformação sociojurídica do sistema
de tutela da moralidade

Alessandra Lopes Santana de Mello1


Juíza de Direito no estado de São Paulo

Alexandre de Mello Guerra2


Juiz de Direito no estado de São Paulo

[…] Pois política não é um jardim de infância;


em política, obediência e apoio são a mesma coisa.
Hannah Arendt

Sumário: Introdução. 1. Substrato fático: Ação Penal nº 1.044/DF.


2. O Direito, enquanto sistema, está em crise? 3. A moralidade adminis-
trativa, enquanto como valor fundamental da República, está em risco?
Proposições conclusivas. Bibliografia.

Introdução

Este ensaio tem como ponto de partida o trabalho apresentado


por Alessandra Lopes Santana de Mello no programa de estudos de

1
Doutoranda em Filosofia do Direito PUC-SP. Mestre em Direito Constitucional pela PUC-SP. Mestre em
Direito Constitucional Comparado pela Universidade do Alabama (EUA). Membro do Grupo de Pesquisa
Sistema de Justiça e Estado de Exceção, da PUC-SP.
2
Mestre e Doutor em Direito Civil pela PUC-SP. Estágio pós-doutoral em curso na Faculdade de Direito
da Universidade de São Paulo (FDUSP). Pós-graduado em Direito Público pela Escola Paulista da
Magistratura (EPM). Coordenador Regional e Professor da Escola Paulista da Magistratura e da Faculdade
de Direito de Sorocaba. Professor convidado nos cursos de pós-graduação da EPM e PUC-SP (COGEAE).
Membro fundador do Instituto de Direito Privado, do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil
e do Instituto Brasileiro de Direito Contratual. Associado ao Instituto de Direito Administrativo Sancionador.
448 Alessandra Lopes Santana de Mello e Alexandre de Mello Guerra

Pós-Graduação em Direito, na Pontifícia Universidade Católica de


São Paulo (PUC–SP) – subárea Filosofia do Direito, na disciplina
Ordenamento e Sistema, ministrada pelo Professor e Livre-Docente
Tercio Sampaio Ferraz Junior. A dinâmica da investigação tem como
ponto de partida a seguinte situação concreta: em 21 de abril de 2022,
o Presidente da República Federativa do Brasil fez editar um decreto
que concedeu indulto individual (graça constitucional) ao Deputado
Federal Daniel Lúcio da Silveira, condenado pelo Supremo Tribunal
Federal pela prática de crimes. O referido decreto fora editado antes
mesmo do trânsito em julgado da condenação criminal, trazendo em si
uma série de considerações, que pretendem contextualizar e justificar
a deliberação presidencial.
Nos limites de investigação propostos pela nova Lei de Improbidade
Administrativa, é nosso objetivo perquirir se tal decisão encontra-se
dentro ou fora da moldura estabelecida pelo ordenamento jurídico, no ano
de 2022. Os dilemas interpretativos oriundos do decreto presidencial nos
incitam averiguar se, hoje, mudou o sistema (ou se mudou o Direito) e
quais as suas implicações, à vista da construção do sistema de tutela da
probidade administrativa que se erigiu nas três últimas décadas, à luz da
Carta Constitucional do Brasil de 1988.

1. Substrato fático: Ação Penal nº 1.044/DF

Em 20 de abril de 2022, o Supremo Tribunal Federal procedeu


ao julgamento da Ação Penal nº 1.044. Trata-se de ação movida pelo
Ministério Público Federal em face do Deputado Federal Daniel Lúcio
da Silveira. Processada a causa, a pretensão condenatória foi julgada
procedente em parte: o réu foi condenado por incitar, por duas vezes,
a prática do crime consistente em tentar impedir, com emprego de
violência ou grave ameaça, o livre exercício de qualquer dos Poderes
da União ou dos Estados (Lei nº 7.710/83, art. 23, inc. IV, c/c art. 18,
tipo penal hoje previsto no art. 359-L do Código Penal, em face da
Lei nº 14.197/21) e, por três vezes, por coação no curso do processo
(Código Penal, art. 344).
A pena fora fixada em oito anos e nove meses de reclusão, em regime
inicial fechado, e a trinta e cinco dias-multa, no valor unitário de cinco
salários-mínimos nacionais, corrigidos. Foi decretada a suspensão dos
direitos políticos, nos termos do art. 15, inc. III, da Constituição Federal
Mudou o sistema ou mudou o Direito? Alguns impactos da nova Lei de Improbidade
Administrativa na conformação sociojurídica do sistema de tutela da moralidade 449

de 1988, bem como a perda do mandato parlamentar, em atenção ao


art. 55, incs. III, VI e VI, c/c §3º, da Constituição Federal, e art. 92 do
Código Penal3. O v. acórdão fora publicado em 23 de junho de 2022.
As condutas foram perpetradas em três vídeos por ele postados nas
redes sociais, em 17 de novembro de 2020, 6 de dezembro de 2020 e 15 de
fevereiro de 2021, intitulados, respectivamente, Na ditadura você é livre,
na democracia é preso; Convoquei as Forças Armadas para intervir no STF
e Fachin chora a respeito da fala do General Villas Boas.
Em tais vídeos, levados a público pela rede mundial de computa-
dores, além de desferir inúmeras agressões verbais contra os Ministros
do Supremo Tribunal Federal (contra os quais foram proferidas, dentre
muitas outras, as ofensivas expressões “cretinos”; “marginais”;
“escória”; “lixo do Poder Judiciário” e “cambada de imbecil”), o réu
fez graves ameaças à integridade física de alguns dos membros da Corte
Constitucional. Incitou a população a fazer um cerco e uma invasão
aos edifícios-sedes do Supremo Tribunal Federal, com a finalidade de
retirar os ministros “à base da porrada”. Aludiu aos méritos do Ato
Institucional nº 5, para rememorar a cassação de Ministros ao tempo
da Ditadura militar. Proferiu inverdades (incomprovadas) ao sustentar
que o Min. Roberto Barroso “fraudou as eleições de 2020”. Buscou
explicitamente desacreditar a Justiça Eleitoral do Brasil, entre outras
muitas falas perniciosas4.

3
Para completa compreensão dos elementos técnicos constantes do julgado, ver: https://redir.stf.jus.br/
paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=761505043 Acesso: 1.11.2022.
4
Seguem passagens das falas proferidas pelo Deputado Federal Daniel Silveira nos vídeos divulgados no
site YouTube e demais redes sociais em que participa, in verbis: “[…] Eu quero que o povo entre dentro
do STF, agarre o Alexandre de Moraes pelo colarinho dele, sacuda aquela cabeça de ovo dele e jogue
dentro de uma lixeira; Se continuarem dessa maneira, o STF e a Justiça Eleitoral não vão mais existir
porque nós não permitiremos. É verdade. Nós não vamos permitir que uma justiça eleitoral totalmente
detentora de um monopólio de poder exista. Nós não queremos […] eu não quero como eleitor e cidadão;
mas a Rosa Weber, malandramente, né? Preparando o terreno para você, Barroso fez lá uma portaria
administrativa modificando a contagem dos votos, centralizando no TSE, segundo ela, por orientação
da Polícia Federal que se detectou um risco ao sistema de processo eleitoral, deveria ter investigado e
sanado a questão; quando bater um cabo e um soldado na porta de vocês… não adianta fechar a porta não,
porque vai ser arrombada. Sabe por quê? Porque vocês estão abrindo essa precedência, vocês estão
descumprindo a Constituição. Sim, sim as Forças Armadas podem sim intervir. É o que nós queremos.
Eu confesso que a maioria dos brasileiros pedem isso. Tenho certeza absoluta disso. Sabem por que?
Porque vocês não respeitam a lei. Vocês são tão oligofrênicos […] na verdade não, não são […] vocês
são canalhas mesmo […] que vocês tomam decisões sempre em prol da injustiça. Do crime. O STF não
precisava existir, não precisava. Ele deveria ser extinto […]; claramente tivemos centenas de milhares
de fraudes por todos os 5.570 municípios do Brasil; A Justiça Eleitoral nunca deverá ter existido, ela é
desnecessária é, uma máquina de fazer dinheiro. Uma máquina de fazer dinheiro e dinheiro de corrupção,
450 Alessandra Lopes Santana de Mello e Alexandre de Mello Guerra

Nesse cenário, o Supremo Tribunal Federal reconheceu ter o réu


praticado condutas atentatórias ao Estado Democrático de Direito e às
instituições republicanas. Foi reconhecida a ilegalidade das ameaças
com o objetivo de impedir o exercício da Judicatura e atentar contra
a independência do Poder Judiciário. Pela Corte, foi declarado que tais
manifestações não se encontram sob o pálio do Direito fundamental de
liberdade de expressão ou sob a imunidade constitucional assegurada
aos parlamentares. É que, em resumo, tais direitos não se prestam para
acobertar a prática de crimes, como é fato notório.
Declarou-se que o Deputado Federal não pretendeu transmitir informa-
ções, expressar ideias sobre questões políticas ou sobre temas de interesse
geral, mas, apenas, vocalizou expressões degradantes e ofensivas, que consti-
tuem ilícitos penais, travestindo opiniões pessoais como se fatos fossem.
Diante disso, a Corte Suprema afastou a existência de imunidade parlamentar,
ao argumento lógico de que tal prerrogativa deve guardar conexão com o
desempenho da função legislativa em si, servindo para atender ao debate
livre de ideias (não como um escudo protetor de condutas ilícitas).
Em prosseguimento, a Corte Constitucional do Brasil negou ter o réu
exercido legítima liberdade de expressão, por se ter veiculado manifes-
tações de ódio e ideias contrárias à ordem constitucional e ao Estado de
Direito. O pluralismo de ideias, a livre discussão e a ampla participação
política são valores estruturantes do sistema democrático. A liberdade de
expressão não pode servir à destruição do próprio regime democrático,
malferindo as instituições republicanas, a separação de Poderes e de
outros direitos fundamentais, decidiu o Supremo Tribunal Federal.
Ainda, asseverou a Corte que o uso de redes sociais agravou as
intimidações proferidas e denotou seu potencial danoso, ampliando
exponencialmente o alcance de mensagens hostis, com nítida aptidão para
insuflar a invasão de tribunais, a agressão de magistrados, a extinção de
órgãos constitucionais e, até mesmo, a promoção de intervenção militar,
o que se seguiu por todo Brasil, como noticiado pela imprensa nacional,
por inúmeras oportunidades, sob os brados “Eu autorizo”5.

vocês não me engam mais e não podem parar com essa porcaria […]” Disponível em: https://redir.stf.jus.
br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=761505043. Acesso em: 1 nov. 2022. Ainda, para ade-
quada compreensão do que se está a tratar, ver: https://www.youtube.com/watch?v=Dg645IucBCw e
https://www.youtube.com/watch?v=ePJFyzVXJAE Acesso 1.11.2022.
5
A respeito, exemplificativamente, ver, no periódico Correio Brasiliense, a matéria intitulada Aos gritos
de “eu autorizo”, bolsonaristas lotam sede das Forças Armadas no Rio. Disponível em: https://www.
Mudou o sistema ou mudou o Direito? Alguns impactos da nova Lei de Improbidade
Administrativa na conformação sociojurídica do sistema de tutela da moralidade 451

A despeito disso, o Decreto Presidencial em foco tratou a questão


de modo radicalmente contrário ao quanto fora deliberado pelo Poder
Judiciário. O Presidente da República6 concedeu ao condenado a extinção
de sua punibilidade. Afirmou que o ato do parlamentar foi uma medida
fundamental à manutenção do Estado Democrático de Direito; à preser-
vação da liberdade de expressão; do sistema de freios e contrapesos na
tripartição dos Poderes e do interesse social.
De fato, a concessão de indulto individual (graça) ou indulto
coletivo é um ato de competência privativa do Presidente da República
(CF/1988, art. 84, inc. XII). Tal espécie normativa não encontra balizas
legais bem definidas pela Carta Constitucional. No exercício de seu poder
discricionário, o Presidente da República tem competência, em princípio,
para conceder tal benefício, seja espontaneamente, seja mediante provo-
cação do condenado ou de outro ente (CPP, art. 734), ressalvados os crimes
de tortura, de tráfico ilícito de entorpecentes, de terrorismo e crimes
hediondos (CF, art. 5º, XLIII).
Ocorre que o Presidente da República concedeu graça constitucional
ao acusado, por meio de Decreto Presidencial de 21 de abril de 2022,
no dia seguinte ao julgamento (21 de abril de 2022), antes mesmo da
publicação do v. acórdão, de sorte que o Deputado Federal Daniel Silveira
não cumprirá as penas a ele impostas pelo Supremo Tribunal Federal.

correiobraziliense.com.br/politica/2022/11/5048911-aos-gritos-de-eu-autorizo-bolsonaristas-lotam-sede-
-das-forcas-armadas-no-rio.html Acesso: 1 nov. 2022.
6
“DECRETO ___ DE 21 DE ABRIL DE 2022. O PRESIDENTE DA REPÚBLICA, no uso da atribuição que lhe
confere o art. 84, caput, inciso XII, da Constituição, tendo em vista o disposto no art. 734 do Decreto-
Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941 - Código de Processo Penal; Considerando que a prerrogativa
presidencial para a concessão de indulto individual é medida fundamental à manutenção do Estado
Democrático de Direito, inspirado em valores compartilhados por uma sociedade fraterna, justa e res-
ponsável; Considerando que a liberdade de expressão é pilar essencial da sociedade em todas as suas
manifestações; Considerando que a concessão de indulto individual é medida constitucional discricionária
excepcional destinada à manutenção do mecanismo tradicional de freios e contrapesos na tripartição
de poderes; Considerando que a concessão de indulto individual decorre de juízo íntegro baseado ne-
cessariamente nas hipóteses legais, políticas e moralmente cabíveis; Considerando que ao Presidente
da República foi confiada democraticamente a missão de zelar pelo interesse público; e Considerando
que a sociedade encontra-se em legítima comoção, em vista da condenação de parlamentar resguar-
dado pela inviolabilidade de opinião deferida pela Constituição, que somente fez uso de sua liberdade
de expressão […]” (BRASIL, 2022). Ainda, ver: https://congressoemfoco.uol.com.br/area/governo/
veja-a-integra-do-decreto-de-bolsonaro-que-perdoa-daniel-silveira/ Ainda: https://br.video.search.
yahoo.com/search/video?fr=mcafee&ei=UTF-8&p=daniel+silveira+presidente+decreto+you&type=E-
210BR105G0#id=3&vid=1464fe167bd163434d525e0c17f6fb6f&action=view e https://br.video.search.
yahoo.com/search/video?fr=mcafee&ei=UTF-8&p=daniel+silveira+presidente+decreto+you&type=E-
210BR105G0#id=1&vid=6db17735f5a13a51bbafba3b0ce3c5f5&action=click Acesso: 1 nov. 2022.
452 Alessandra Lopes Santana de Mello e Alexandre de Mello Guerra

A promulgação desse decreto, no panorama que ora se faz sublinhar,


suscita sérias questões em torno de sua constitucionalidade, seja por vícios
de forma, seja por desvio de finalidade. É discutível, por exemplo, se a
graça pode ser concedida em favor de pessoa ainda não condenada em
caráter definitivo (ainda no curso do processo), considerando a possibi-
lidade de manejo da via recursal própria à modificação da condenação
pelo próprio órgão julgador.
Discute-se, ainda, se o indulto pode ser aplicado para crimes nos quais
o bem jurídico tutelado são as instituições democráticas ou a Administração
de Justiça, em virtude da relevância intrínseca a esses bens jurídicos.
De se indagar se, assim agindo, houve violação aos limites impostos pela
moralidade/probidade administrativa, à medida que, especificamente
no caso em tela, o Chefe do Poder Executivo Federal concedeu graça
em favor de um notório aliado político, com quem mantém relação de
amizade, consigo e com os seus familiares.
“Ô animal, votei em você”; foi a amistosa saudação que o Presidente
da República dirigiu a Daniel Silveira nos instantes que antecederam a um
forte abraço, cercado por fartos risos demonstrativos de afeto recíproco7.
Some-se a tudo que, a pretexto de zelar pela realização do interesse
público, o Presidente da República adotou uma medida que explicitamente
favoreceu sua imagem para os eleitores.
Não se pretende nesse ensaio proceder a um juízo técnico circunscrito
à constitucionalidade do Decreto Presidencial. O que se almeja é identificar
se o decreto presidencial em causa se insere, ou não, na moldura da lei e
quais são os impactos diante da Nova Lei de Improbidade Administrativa
(Lei nº 14.230/21). É nosso propósito investigar se o Decreto Presidencial
contribuiu à disrupção do sistema jurídico e os impactos da medida
presidencial na sedimentação da probidade administrativa no Estado
Democrático de Direito, que lhe é pedra angular.
A análise comparativa entre o julgamento do Supremo Tribunal
Federal na Ação Penal nº 1.044/DF e a motivação apresentada pelo
Presidente da República por ocasião da promulgação de referido Decreto
Presidencial permite constatar que ambos se lastreiam nas mesmas
razões. Significa dizer, os mesmos valores e preceitos tutelados pela
Constituição Federal (liberdade de expressão, preservação do Estado

7
Para identificação da afável relação de proximidade que anima o relacionamento dos envolvidos, ver:
https://www.youtube.com/watch?v=RB2SIx6Uy9g. Acesso: 1 nov. 2022.
Mudou o sistema ou mudou o Direito? Alguns impactos da nova Lei de Improbidade
Administrativa na conformação sociojurídica do sistema de tutela da moralidade 453

Democrático de Direito e interesse público) foram utilizados, a um só


tempo, paradoxalmente, para condenar e para absolver Daniel Silveira.
Será isso possível?

2. O Direito, enquanto sistema, está em crise?

A discrepância acima identificada não decorre do emprego de


técnicas hermenêuticas distintas ou da adoção de teorias de Direito
ou correntes filosóficas diversas. Como se sabe, a aplicação do Direito
não conduz necessariamente a uma única solução correta. No entanto,
adverte Hans Kelsen8, “há uma moldura dentro da qual existem várias
possibilidades de aplicação, pelo que é conforme ao Direito todo ato que
se mantenha dentro deste quadro ou moldura, que preencha esta moldura
como sendo a única correta”.
Eleita como um princípio fundamental da República Federativa
do Brasil (CF/1988, art. 1º), a Democracia pressupõe a permanente
preservação dos direitos políticos, dos direitos civis, das liberdades
fundamentais e dos direitos sociais, todos conquistados historicamente,
e que sujeitam não apenas o Estado, mas também os indivíduos. Decorre
como corolário lógico dessa asserção o fato de a liberdade de expressão
não poder fulminar o próprio mecanismo que a sustenta, qual seja,
o Estado Democrático de Direito.
Estabelecidas essas premissas, impõe-se reconhecer que tal Decreto
Presidencial não se sustenta, em termos jurídicos ou axiológicos, estando
fora da moldura da ordem jurídica. A própria conduta agraciada aviltou
os valores defendidos pela ordem jurídica, assim encerrando clara
contradictio in terminis. Tal grave paradoxo revela a existência de
uma crise entre Poderes da República, isto é, a presença de uma crise
política, cujas causas são múltiplas e ultrapassam as fronteiras da
Ciência do Direito.
A pressa do Presidente da República fala por si. Ao explicitamente
antagonizar o julgamento do Supremo Tribunal Federal concedendo o
indulto individual, demonstra qual é o seu real desiderato. Não por acaso
o condenado, que sei viu beneficiado com a extinção da punibilidade,
membro do Poder Legislativo Federal, aviltou, deliberadamente, a honra
do Poder Judiciário e da Justiça Eleitoral, enaltecendo as Forças Armadas

8
KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2009, p. 390.
454 Alessandra Lopes Santana de Mello e Alexandre de Mello Guerra

e rememorando as glórias do Ato Institucional nº 5, de 13 de dezembro de


1968 (que simboliza o período mais grave da Ditadura militar brasileira).9
O embate deflagrado entre os chefes de Poderes coloca em xeque a
própria solidez das instituições republicanas e seus pilares. São confron-
tadas a Democracia, a separação de Poderes, os mecanismos de freios e
contrapesos, a autoridade das decisões judiciais, o respeito à Constituição
Federal, a higidez do processo eleitoral, o pluralismo político, a aceitação
dos resultados das urnas. Todo arcabouço que escora a existência e
sobrevivência do próprio Estado de Direito é posto à prova.
É chegado o momento de enfrentar a provocação que foi o título
desse breve ensaio: mudou o sistema ou mudou o Direito?
A partir do século XVI, com o surgimento do Estado Moderno, emergiu
a preocupação em construir o Direito como um sistema, que, tal qual a
ciência moderna, cria hipóteses, estabelece limites de controle dessas
hipóteses e alcança um quadro rigoroso de proposições, as quais passam
a ter caráter normativo. A exemplo do que ocorre nas ciências naturais,
considerou-se que as proposições normativas deveriam: (i) partir do
quadro geral para o particular (método dedutivo de investigação) e
(ii) articular-se entre si por nexos lógicos, de forma a permitir a criação
de tantas outras normas quanto necessárias para a solução de novas
questões, sem perder, contudo, a primazia da unidade do sistema10.
Segundo Savigny11, a unidade própria das normas jurídicas deveria
encontrar apoio na sua historicidade, pois o Direito é um produto histó-
rico da vida em sociedade. Resumidamente, o legislador teria por missão
central captar a manifestação cultural de um determinado povo, de acordo

9
Especialmente para os mais jovens leitores, para compreender o contexto, o significado e os nefastos
fins do Ato Institucional nº 5, ver: Vozes do AI-5 (Fantástico, 1998). Disponível em: https://www.
youtube.com/watch?v=ZFllFYFyBAQ. Acesso em: 11 jan. 2023. Ainda, Folha de S. Paulo. AI-5, 50 anos:
Vozes no Palácio das Laranjeiras. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=eby7f5PL8eU.
Acesso em: 11 jan. 2023; 1964: Reportagem Especial | O governo Costa e Silva e o AI-5. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=pMgTjvBDi74. Acesso em: 11 jan. 2022.
10
Sobre o conceito de sistema, cf.: LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito. 4. ed. Lisboa:
Fundação Calouste Gulbenkian, 2005; CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento sistemático e conceito
de sistema na ciência do Direito. 4. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2008.
11
Para desenvolvimento das ideias, ver: https://www.conjur.com.br/2013-nov-24/embargos-culturais-
-dimensao-historica-direito-pensamento-savigny. Ainda, SONTAG, Kenny. Tendências teórico-jurídicas
decorrentes da escola histórica do direito: pandectística, germanística e história do Direito na ciência
do direito positivo alemã do século XIX. Revista da Faculdade de Direito da UFMG, Belo Horizonte,
n. 66, p. 421-456, 2015. Disponível em: https://www.direito.ufmg.br/revista/index.php/revista/
article/download/1711/1625. Acesso: 1 nov. 2022.
Mudou o sistema ou mudou o Direito? Alguns impactos da nova Lei de Improbidade
Administrativa na conformação sociojurídica do sistema de tutela da moralidade 455

com sua história, isto é, o papel do intérprete é desvendar (revelar) o que


(de jurídico) existe na própria sociedade, em um determinado contexto
espaço-temporal.
A lei serviria, nessa quadra, como meio técnico apto a conferir
certeza aos comportamentos dos indivíduos em sociedade. As codificações
que surgiram na passagem do século XVIII para o XIX tiveram por escopo
sistematizar e conferir certeza para o ordenamento jurídico, reduzindo-o
a um conjunto mínimo de regras capazes, por utopia, de suprir toda e
qualquer lacuna e, assim, dirimir todos os conflitos sociais (dogma/ilusão
da completude da lei)12.
No plano concreto, o ordenamento jurídico passou a ser concebido
como o fruto de uma construção (e não apenas uma mera revelação),
em que as normas fragmentadas passam a emanar de um poder soberano,
que centralizou/incorporou todas as capacidades/possibilidades normativas
da sociedade (poder de império). O trabalho de sistematização da ordem
jurídica exigiu, então, que o Estado servisse como a única fonte do Direito,
bem como que houvesse um ponto de partida, um ponto inicial do qual
derivariam todas as outras normas jurídicas, em relações de implicação
(antecedente-consequente) em uma estrutura de subordinação (relação
de superioridade-inferioridade).
A Constituição Federal surge, nesse panorama, para limitar o Poder do
Estado e, simbolicamente, para densificar a decisão política inicial respon-
sável por conferir unidade ao sistema. Diversas são as teorias que buscam
explicar a construção das normas jurídicas e do Direito. Ora separam o ser
(norma jurídica) do dever ser (norma moral). Ora concebem o Direito com
elementos que devem ser conjugados na concepção/aplicação de normas
jurídicas, à medida que o Direito não se apoia apenas na autoridade e na
força, mas em uma prática social dotada de conteúdo valorativo funciona-
lizado13. No entanto, dentre tantas possibilidades, é possível reconhecer

12
A respeito da unidade do sistema, ver: PIRES, Luis Manuel Fonseca. Interpretação jurídica: Do dogma
da completude ao sistema aberto. In: GUERRA, Alexandre de Mello (coord.). Estudos em homenagem
a Clóvis Beviláqua por ocasião do centenário do Direito Civil codificado no Brasil. São Paulo: Escola
Paulista da Magistratura, 2018. v. 1., p. 57-65. Disponível em: https://www.tjsp.jus.br/download/
EPM/Publicacoes/ObrasJuridicas/cc02.pdf?d=636808302116832601 Acesso: 1 nov. 2022.
13
A respeito da migração da perspectiva estrutural para funcional do Direito, é impossível deixar de referir a:
BOBBIO, Norberto. Da estrutura à função: novos estudos de teoria do Direito. Barueri: Manole, 2006.
Para compreensão mínima da passagem estrutural-funcional do Direito, ler: https://edisciplinas.usp.
br/pluginfile.php/4178086/mod_folder/content/0/6.%20Bobbio%20Norberto%20-%20Estrutura%20e%
20funcao%20na%20teoria%20do%20direito%20de%20Kelsen.pdf?forcedownload=1. Acesso: 1 nov. 2022.
456 Alessandra Lopes Santana de Mello e Alexandre de Mello Guerra

que a teoria estruturante do Direito, idealizada por Hans Kelsen, é dotada


de grande valor científico. Facilita a compreensão do Direito como um
sistema, e demonstra a forma de raciociná-lo sistematicamente.
Mario Giuseppe Losano14 leciona que a hierarquização das normas
jurídicas no modelo piramidal (no qual uma norma extrai seu fundamento
de validade da norma superior – não podendo aviltá-la, sob pena de
incorrer em invalidade) permite o permanente controle da produção/
validação de normas jurídicas. Esse método confere dinamismo para o
sistema jurídico, tornando-o capaz de se autoproduzir e se autocorrigir,
preservando sua coerência e unidade. Segundo ele, a compreensão
do ordenamento jurídico como um sistema atende às necessidades de
formação/organização do Estado Moderno, em cuja complexa sociedade
industrial enfrenta o incremento de problemas e reclama a hipertrofia
de soluções normativas e judiciais.
Por outro lado, acentua Losano, em que pese a importância da concep-
ção sistemática (sistêmica) do Direito desde o início da Modernidade
como uma resposta ao incremento da complexidade das relações sociais,
desde a segunda metade do século XX, tal valor fundamental de unidade
e sistematicidade encontra-se abalado: os avanços da tecnologia não
aprimoraram a visão sistemática do Direito, mas, ao reverso, culminaram
por enfraquecê-la.
Hoje, com a Revolução Digital, o surgimento de meios céleres de
comunicação e os avanços da globalização impuseram que os Estados
Nacionais não mais detivessem o monopólio do Poder. Os ordenamentos
jurídicos, por consequência, em certa medida, perderam o senso de
unidade. Mesmo os países de menor proeminência no plano interna-
cional sofrem os influxos da economia globalizada, da política inter-
nacional e das sociedades multiculturais, as quais são permeadas por
centros distintos de interesses e Poder. O Direito nacional, nesse cenário,
vê-se a cada dia mais obrigado a conviver com outras ordens jurídicas
(internacional e comunitária), em um mesmo tempo e espaço territorial,
o que, segundo GUNTHER TEUBNER15, é um fenômeno inevitável nas
sociedades pós-modernas;

14
LOSANO, Mario Giuseppe. Modelos Teóricos, inclusive na prática: da pirâmide à rede. Novos Paradigmas
nas relações entre direitos nacionais e normativas supraestatais. Revista do Instituto dos Advogados
de São Paulo. São Paulo. V. 8. N. 16, julho/dezembro 2005, p. 264-284.
15
TEUBNER, Gunther. Fragmentos Constitucionais. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 271.
Mudou o sistema ou mudou o Direito? Alguns impactos da nova Lei de Improbidade
Administrativa na conformação sociojurídica do sistema de tutela da moralidade 457

Isso não se prende unicamente com a falta de poder


centralizado, que poderia ser confrontada com um
empenho político fortificado, mas sim prende-se
com as próprias estruturas sociais profundas,
que já Max Weber havia visto e caracterizado como
o politeísmo da modernidade. Mesmo partidários
engajados da unidade da constituição, veem-se
forçados a concluir que a unidade da constituição
do Estado Nacional já se dissolveu no antagonismo
constante das constituições civis com as racionalidades
que lhes são estranhas umas as outras, em um clash
of civil constitutions, que é exaurido através de um
novo direito de colisão. […] A unidade da constituição
pode ser tematizada então apenas como uma fábrica
imaginária sobre um plano simbólico atras da
multiplicidade realmente existente de constituições,
ela aparece então, em todo caso, como necessidade
de uma crença coletivamente compartilhada na
‘unidade da constituição’. O resto é colisão […].
(TEUBNER, 2016, p. 271)

Para além do surgimento de novas ordens jurídicas paralelas ao


ordenamento jurídico nacional, Tercio Sampaio Ferraz Junior16 aponta outras
mudanças relevantes que derivam da Revolução Digital: (i) o isolamento
dos indivíduos nas realidades virtuais; (ii) a desconexão com o mundo
físico; e (iii) a perda crescente de interesse sobre as questões coletivas
(como consequência de uma ideologia individualista).
Na lúcida crítica de Hannah Arendt17, a busca pela felicidade, no mundo
contemporâneo, ainda não está na realização do bem comum, mas, apenas,
na subtração da dor e dos medos18. A própria ideia de bem tornou-se
ainda mais relativa na perspectiva dos indivíduos informáticos; a política
(que remete à noção de senso de coletividade), passou a pesar sobre o

16
FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Das Figuras paradigmáticas às figuras imagéticas: reflexões sobre
política e direito a partir de uma fraternidade intelectual com Celso Lafer. In: O Direito, entre o
Futuro e o Passado. 1. ed. São Paulo: Noesis, 2014, p. 79-80.
17
ARENDT, HANNAH. A condição humana. 10 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007, p. 384.
18
A profunda análise crítica que a autora faz da questão do Holocausto, do Tribunal de Nuremberg e do
julgamento de Otto Adolf Eichmann, com merecida justiça, coloca a filósofa no seleto rol das pensa-
doras mais relevantes do século XX. Para um contato inicial com sua notável contribuição, ver: Hannah
Arendt - Julgamento Eichmann. https://www.youtube.com/watch?v=s44XqBj12Oc; Hannah Arendt e
a banalidade do mal. https://www.youtube.com/watch?v=06jufTlnFbU Acesso: 1 nov. 2022.
458 Alessandra Lopes Santana de Mello e Alexandre de Mello Guerra

homem como um destino trágico do ser em sociedade, como sublinha Tercio


Sampaio Ferraz Junior19. As noções de liberdade e responsabilidade na vida
em sociedade perdem-se diante das dificuldades de controle das redes e
do imenso fluxo de dados que trafegam pelo mundo virtual:

Segue daí uma terceira transformação: a consciência


moral deixa de ser vista como um problema do
dever e passa a um problema de utilidade da
conduta em termos de sua relevância técnica […]
a responsabilidade, na moral e no direito, na vida
social e na intimidade individual, só aparentemente
se funda em convicções ou mesmo em resultados
das convicções, pois passa a fundar-se nessa vaga
percepção de que: onde nada pode ser feito,
algo precisa ser feito. Por quem? Ninguém sabe.
(FERRAZ JUNIOR, 2014, p. 80)

Nesse novo mundo, a crise dos conceitos20 é geral. Perecem a verda-


de e o senso de coletividade. As mudanças a nós trazidas pela Revolução
Digital são inúmeras, intensas e repercutem gravemente na dinâmica das
relações de Poder, no Estado, no comportamento social, no Direito e nos
paradigmas construídos no tempo.
O ilícito comportamento do Deputado Federal que nos animou a
desenvolver essa reflexão é um flagrante exemplo das crises e das mudanças
que desafiam os juristas na contemporaneidade. Conquanto não haja
provas de quaisquer dos fatos por ele alegados (adulteração do resultado
das eleições de 2018, falta de funcionamento das urnas eletrônicas,
ausência de imparcialidade da Justiça Eleitoral, prática de crimes de
corrupção por Ministros do STF etc.), é certo que os seus superficiais
discursos viralizaram nas redes sociais. Pulverizaram, como erva daninha,
a contaminar a reflexão crítica da coletividade, característica própria
da racionalidade humana. Serviu como combustível ao nefasto império
da Guerra das Narrativas. Nutriu a apologia ao domínio da pós-verdade:
o fato é o acidental; a opinião é o essencial. Afinal, o que é a verdade?,
indagou Pilatos ao próprio Cristo, sem resposta alguma Dele receber21.

19
Ob. cit, p. 80.
20
FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Ob. cit., p. 80.
21
“Pilatos entrou no pretório, chamou Jesus e perguntou-lhe: És tu o rei dos judeus? Jesus respondeu:
Dizes isso por ti mesmo, ou foram outros que to disseram de mim? Disse Pilatos: Acaso sou eu
Mudou o sistema ou mudou o Direito? Alguns impactos da nova Lei de Improbidade
Administrativa na conformação sociojurídica do sistema de tutela da moralidade 459

No Brasil, o momento atual é caracterizado pela crise dos paradigmas


civilizatórios. No discurso do parlamentar, a verdade (aqui entendida
como os fatos demonstráveis e comprováveis objetivamente) mostrou-se
irrelevante, secundária, como algo indiferente na missão de reger os
pronunciamentos públicos. Permitiu-se que meras opiniões fossem levia-
namente expressas como se fossem comprovados fatos objetivos. Parcela
expressiva da sociedade consumiu, sem qualquer aversão ou a menor
ojeriza, tais discursos de ódio e fakes news22, com eles passando a alimen-
tar os seus próprios discursos.
Não é de estranhar o fato de o próprio Chefe do Poder Executivo
sentir-se seguro em declarar publicamente que os ataques ao Estado
Democrático de Direito, a prolação de inverdades e a incitação pública
contra a separação de Poderes são manifestações de legítimo exercício
de liberdade de expressão. Tampouco apavora sua despreocupação em
resguardar a unidade do sistema jurídico. O ethos da indiferença23,
no dizer de Tercio Sampaio Ferraz Junior, enfraquece os paradigmas da
lei e desarruma a pirâmide, prejudicando seriamente a concepção siste-
mática do Direito e a confiança nele depositada como centro de força/
poder vital à preservação da paz social.

3. A moralidade administrativa, enquanto como valor fundamental


da República, está em risco?

Resta-nos examinar se a nova Lei de Improbidade Administrativa


coloca em risco o sistema de proteção da moralidade administrativa.
A resposta, a nosso ver, está a depender da postura hermenêutica que
os intérpretes terão diante das potencialidades do Sistema de Direito.

judeu? A tua nação e os sumos sacerdotes entregaram-te a mim. Que fizeste? Respondeu Jesus:
O meu Reino não é deste mundo. Se o meu Reino fosse deste mundo, os meus súditos certamente
teriam pelejado para que eu não fosse entregue aos judeus. Mas o meu Reino não é deste mundo.
Perguntou-lhe então Pilatos: És, portanto, rei? Respondeu Jesus: Sim, eu sou rei. É para dar
testemunho da verdade que nasci e vim ao mundo. Tudo o que é da verdade ouve a minha voz.
Disse-lhe Pilatos: Que é a verdade?... Falando isso, saiu de novo, foi ter com os judeus e disse-lhes:
Não acho nele crime algum. Mas é costume entre vós que pela Páscoa vos solte um preso. Quereis,
pois, que vos solte o rei dos judeus? Então todos gritaram novamente e disseram: Não! A este não!
Mas a Barrabás!” (João, 16, 33-40).
22
Sobre o tema, ver: DONNINI, Rogério; DONNINI, Oduvaldo. Responsabilidade civil dos meios de
comunicação. Imprensa livre, mídias sociais, pós-verdade, fake news e deepfake. 2 ed. São Paulo:
Juspodium, 2022.
23
FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Ob. cit, p. 79.
460 Alessandra Lopes Santana de Mello e Alexandre de Mello Guerra

De um lado, há certo consenso em afirmar que a antes vigente


Lei de Improbidade Administrativa (Lei Federal nº 8.429, de 2 de junho
de 1992), trinta anos depois, realmente estava a exigir o aggiornamento.
A pretexto de se proteger o bem jurídico por ela resguardado, não é
possível negar que, em determinadas circunstâncias, o excesso de
rigor na aplicação literal das suas disposições causou perplexidade à
comunidade jurídica, consubstanciado no excessivo rigor na prestação
da resposta estatal.
Como resposta a tal rigor excessivo (que deflagra, por exemplo,
o que a doutrina refere como o apagão das canetas, significando o
receio do Administrador público em agir, pelo medo da severidade das
sanções próprias da improbidade), diversas medidas legislativas foram
adotadas, dentre as quais se destacam as alterações introduzidas pela
Lei nº 13.655/18 na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro.
Com o objetivo de mitigar o rigor no processo hermenêutico de
subsunção, por exemplo, o art. 20 de mencionado diploma estabelece
que “nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá
com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas
as consequências práticas da decisão”. No mesmo sentido é o art. 22
de referido diploma, segundo o qual “na interpretação de normas
sobre gestão pública, serão considerados os obstáculos e as dificulda-
des reais do gestor e as exigências das políticas públicas a seu cargo,
sem prejuízo dos direitos dos administrados”. Ou, ainda, a norma
disposta em seu art. 28, segundo a qual “o agente público responderá
pessoalmente por suas decisões ou opiniões técnicas em caso de dolo
ou erro grosseiro” (BRASIL, 2018).
Não obstante, a nova Lei de Improbidade Administrativa exige um
renovado esforço dos intérpretes no sentido de que não se perca toda
valiosa construção até hoje sedimentada. Dentre muitas outras, a principal
alteração trazida pela novel legislação, a nosso ver, é a extinção da forma
culposa de improbidade administrativa. Doravante, somente poderão ser
punidos por improbidade administrativa aqueles atos que tiverem “a vonta-
de livre e consciente de alcançar o resultado ilícito tipificado nos arts. 9º,
10 e 11, não bastando a voluntariedade do agente”, como expressamente
determina o parágrafo 2º do art. 1º da Lei nº 14.230/21 (BRASIL, 2021)24.

24
Para estudo profundo das principais modificações introduzidas pela nova LIA, ver o excelente traba-
lho de: AMADEI, Vicente de Abreu; TAVARES, Maria Laura de Assis Moura (coords.). Alterações na Lei de
Mudou o sistema ou mudou o Direito? Alguns impactos da nova Lei de Improbidade
Administrativa na conformação sociojurídica do sistema de tutela da moralidade 461

Outro ponto de relevo da nova LIA diz respeito à dosimetria de penas:


a Lei nº 14.230/21 põe termo à pena mínima de suspensão dos direi-
tos políticos de 8 anos e aumenta a pena máxima, que passa a ser de
14 anos, estabelecendo ainda maior sanção para o enriquecimento ilícito,
como dispõem os incisos I e II do art. 12. A introdução da prescrição inter-
corrente tem sido alvo das mais acirradas críticas (art. 23, § 8º), bem como
a taxatividade dos atos que configuram improbidade administrativa (art. 11,
caput) e a limitação de prazos para ressarcimento aos cofres públicos.
Nesse panorama, é preciso indagar se o comportamento que se fez
consubstanciar no mencionado Decreto Presidencial poderia impor a
responsabilidade pela prática de improbidade administrativa. A resposta,
a nosso ver, é negativa, lamentavelmente, diante da taxatividade do rol
das condutas que caracterizam atos de improbidade administrativa atenta-
tórios contra os princípios da Administração Pública, ao reverso do que se
observara no sistema antes vigente (o rol era meramente exemplificativo).
Com efeito, ao disciplinar os Atos de Improbidade Administrativa que
Atentam Contra os Princípios da Administração Pública, o art. 11 da nova
LIA afirma que “constitui ato de improbidade administrativa que atenta
contra os princípios da administração pública a ação ou omissão dolosa que
viole os deveres de honestidade, de imparcialidade e de legalidade, carac-
terizada por uma das seguintes condutas” (BRASIL, 2021). Se, de um lado,
a conduta presidencial malfere claramente os deveres de imparcialidade,
legalidade e honestidade, é dever de intérprete afirmar que não se poderia
enquadrá-la nas hipóteses taxativamente insculpidas nos incisos do art. 11.
Devemos aceitar a decepção finita, mas nunca perder de esperança
infinita. Essas palavras que são atribuídas a Martin Luther King são aqui
especialmente importantes.
A sanção a ser imposta ao agente público, conquanto não mais possa
ser verificada no plano intrínseco da Lei de Improbidade Administrativa,
pode vir a residir na caracterização da infração político-administrativa
própria dos crimes de responsabilidade, tais quais previstos na Lei Federal
nº 1.079, de 10 de abril de 1950.
No seu art. 4º, por exemplo, afirma a lei com clareza que “são crimes
de responsabilidade os atos do Presidente da República que atentarem

Improbidade Administrativa - Lei nº 8.429/1992 (Lei nº 14.230/2021). 3. ed. São Paulo: CADIP – Centro
de Apoio ao Direito Público do Tribunal de Justiça de São Paulo, 2022. Disponível em: https://www.tjsp.
jus.br/Download/SecaoDireitoPublico/Pdf/Cadip/EspCadipImprobAdm20211026.pdf Acesso: 1 nov. 2022.
462 Alessandra Lopes Santana de Mello e Alexandre de Mello Guerra

contra a Constituição Federal, e, especialmente, contra […] II – O livre


exercício do Poder Legislativo, do Poder Judiciário e dos poderes constitucio-
nais dos Estados; V – A probidade na administração; VIII – O cumprimento
das decisões judiciárias (Constituição, artigo 89)” (BRASIL, 1950). Não se
migrou, portanto, para um sistema de irresponsabilidade por improbi-
dade administrativa, o que seria deletério ao extremo à tutela da coisa
pública. Também não se pode afastar, ademais disso, eventual apuração
de responsabilidade penal por favorecimento pessoal (CP, art. 348).
O maior ou menor risco de o Estado ser leniente com a má-gestão da
coisa pública está diretamente ligado ao maior ou menor grau de eficácia
(aplicabilidade) que se dará aos institutos jurídicos protetivos já sedimen-
tados, em especial na tarefa de permanente expansão das diretrizes
constitucionais que, antes e acima de tudo, alicerçam as estruturas da
improbidade no parágrafo 4º do art. 37 da Constituição Federal: “os atos de
improbidade administrativa importarão a suspensão dos direitos políticos,
a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento
ao erário, na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação
penal cabível” (BRASIL, 1988).
Daí a vital importância em se compreender o conceito de Sistema
de Direito, que permeia, inspira e ilumina toda a produção jurídica25.
A unidade, a coerência e a organicidade mostram-se essenciais para que
não haja retrocessos na proteção da moralidade administrativa, ainda
que tal proteção não mais possa ser essencialmente regida pela Lei de
Improbidade Administrativa, mas, sim, por outros diplomas normativos que
se apresentam tão ou mais eficientes nessa proteção dos valores primaciais
da ordem jurídica. As leis de lavagem de ativos (Lei nº 9.613/98); anticor-
rupção (Lei nº 12.846/13); anticrime (Lei nº 13.964/19) e de organizações
criminosas (Lei nº 12.850/13), dentre muitas outras, permanecem, todas,
a compor o sistema brasileiro de combate à improbidade administrativa.

Proposições conclusivas

Diante de todo o apresentado neste ensaio, se realmente houve a


mudança do Direito, não houve a mudança do Sistema, que se pauta pela
abertura e mobilidade. Houve a modificação substancial da lei que tutela

Sobre o conceito de sistema, uma vez mais, ver: LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito.
25

4. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2005; CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento sistemático
e conceito de sistema na ciência do Direito. 4. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2008.
Mudou o sistema ou mudou o Direito? Alguns impactos da nova Lei de Improbidade
Administrativa na conformação sociojurídica do sistema de tutela da moralidade 463

a probidade administrativa, mas não se negou o dever de proteção da


moralidade que lhe é ínsita, que poderá ser buscado pelos mais diversos
caminhos, sempre sob o Império do Direito.
O Decreto Presidencial que nos animou, de fato, está fora da moldura
da lei. Obviamente, e pelas mesmas razões, está muito além da moldura
do ordenamento jurídico (conceito no qual a lei está contida). Mas não
é um ato isolado ou desconectado das inúmeras mudanças ocorridas no
mundo a partir da segunda metade do século XX.
O Decreto Presidencial serve, em verdade, como exemplo eloquente
das transformações que assolam nossa sociedade. As modificações sociais
estruturantes impactam, severamente, no comportamento dos indivíduos
e nas relações de Poder. Se a nova Lei de Improbidade Administrativa
não mais reprime condutas ímprobas, como antes se permitiu sancionar,
o sistema de Direito assim o fará.
A sociedade da comunicação aproxima as pessoas, mas banaliza a
verdade, desconecta os indivíduos do mundo físico, aumenta sobrema-
neira as tarefas diárias e enaltece a cultura do individualismo. Por óbvio,
as crises que decorrem de tantos paradoxos são inevitáveis, certo de
que o progresso não propiciou a prometida prosperidade. Uma vez mais,
na lição de Tercio Sampaio Ferraz Junior26,

[…] Aí reside a razão provável do paradoxo de


uma sociedade obsessivamente preocupada em
definir e proclamar uma lista crescente de direitos
humanos, mas impotente para fazer descer esses
direitos do plano de um formalismo abstrato e
inoperante e eva-los a uma efetivação concreta
nas instituições e práticas sociais. Na verdade,
entre a universalidade do direito e as liberdades
singulares, a relação permanece abstrata e,
no espaço dessa abstração, desencadeiam-se
formas muito reais de violência que acabam por
consumar a cisão entre Ética e Direito no mundo
contemporâneo: aquela degradada em moral do
interesse e do prazer, esse exilado na abstenção
da lei ou confiscado pela violência do cotidiano.
(FERRAZ JUNIOR, 2014, p. 72)

26
Ob. cit., p. 72.
464 Alessandra Lopes Santana de Mello e Alexandre de Mello Guerra

O Direito não ficará imune aos descontentamentos. No futuro, talvez


a própria visão sistemática do ordenamento jurídico não mais resista às
mudanças, assim como o Estado Democrático de Direito pode vir a ruir
em meio a tantas sucessivas e graves crises. Mas, até lá, é preciso que
a moralidade administrativa seja protegida pelos juristas, sob pena de
se aplaudir o caos e se apedrejar os progressos civilizatórios voltados à
permanente construção de uma sociedade livre, justa, solidária e verda-
deiramente comprometida com a ética administrativa.

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Mudou o sistema ou mudou o Direito? Alguns impactos da nova Lei de Improbidade
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466 Alessandra Lopes Santana de Mello e Alexandre de Mello Guerra

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TEUBNER, Gunther. Fragmentos Constitucionais. São Paulo: Saraiva, 2016.
764

Dano presumido ao erário e improbidade


no procedimento licitatório: breves
considerações sobre o Tema nº 1.096
do Superior Tribunal de Justiça e a
nova redação do Art. 10, inciso VIII,
da Lei de Improbidade Administrativa

André Acayaba de Rezende


Juiz de Direito no estado de São Paulo

Sumário: 1. Introdução. 2. O Tema nº 1.096 do Superior Tribunal de


Justiça. 3. A nova redação do Art. 10, inciso VIII, da Lei de Improbidade
Administrativa. 4. (I)retroatividade e aplicabilidade da nova redação do
Art. 10, inciso VIII, da Lei de Improbidade Administrativa e o Tema nº 1.096
do Superior Tribunal de Justiça e a aplicabilidade da nova redação do
Art. 10, inciso VIII, da Lei de Improbidade Administrativa. 5. Conclusão.
6. Referências bibliográficas.

1. Introdução

A Lei nº 14.230/2021 promoveu profundas alterações na Lei de


Improbidade Administrativa, tanto nos aspectos processuais, como nos
aspectos materiais, havendo até quem sustente se tratar efetivamente
de uma nova Lei de Improbidade Administrativa, alterando e revogando
algumas das condutas previstas nos artigos 9º a 11º da Lei nº 8.243/1991.
Dentre os atos de improbidade administrativa alterados encontra-se
aquele previsto no Art. 10º, inciso VIII, que punia, originalmente, a conduta
de “frustrar a licitude de processo licitatório ou de processo seletivo para
celebração de parcerias com entidades sem fins lucrativos, ou dispensá-los
indevidamente”, exigindo-se agora, com a nova redação, que tal conduta
se dê “acarretando perda patrimonial efetiva”.
A modificação enfrenta a controvérsia afetada ao Tema nº 1.096 do
Superior Tribunal de Justiça, submetida a julgamento a seguinte questão:
“Definir se a conduta de frustrar a licitude de processo licitatório ou
468 André Acayaba de Rezende

dispensá-lo indevidamente configura ato de improbidade que causa dano


presumido ao erário (in re ipsa)”.
Assim, pretende-se realizar, neste trabalho, breves considerações
acerca da controvérsia instalada sob a redação originária do Art. 10,
inciso VIII, da Lei nº 8.243/1991, que resultou no Tema nº 1.096 do Superior
Tribunal de Justiça, sua nova redação e eventual superação da controvérsia.

2. O Tema nº 1.096 do Superior Tribunal de Justiça

O Art. 10, inciso VIII, da Lei de Improbidade Administrativa, em sua


redação originária, punia a conduta do agente que “frustrar a licitude de
processo licitatório ou de processo seletivo para celebração de parcerias
com entidades sem fins lucrativos, ou dispensá-los indevidamente”.
Em se tratando de tipo legal previsto em um dos incisos do Art. 10
da Lei de Improbidade Administrativa, para além da conduta dolosa –
ou culposa, admitida antes da reforma promovida pela Lei nº 14.230/2021 –
“sempre será necessária a ocorrência de lesão ao patrimônio público para
a incidência” do dispositivo,

o que é constatado pelo teor do caput deste


preceito e pelo disposto no art. 12, II, o qual fala
em “ressarcimento integral do dano” na hipótese do
art. 10, enquanto nos demais casos de improbidade
tem-se o dever de “ressarcimento integral do dano,
quando houver”1.

A questão relativa à comprovação do dano oriundo da ilegalidade no


procedimento licitatório, no entanto, é matéria que deu ensejo a diver-
gência jurisprudencial, especialmente nas hipóteses em que, a despeito
destas circunstâncias, o contrato foi integralmente cumprido.
Há, de um lado, parcela da doutrina e jurisprudência a decidir
que o dano seria in re ipsa, dispensando, portanto, o autor da ação
de comprová-lo, bastando que a inicial descreva o ato ímprobo que se
enquadre no dispositivo, sendo que o dano corresponderá à integralidade
do valor pago ao contratado.

GARCIA, Emerson; ALVES, Rogério Pacheco. Improbidade administrativa. 9. ed. São Paulo:
1

Saraiva, 2017. p. 402


Dano presumido ao erário e improbidade no procedimento licitatório 469

Nesse sentido, no âmbito do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo,


cita-se precedente acolhendo o entendimento de que “na frustração da
licitude de licitação, o dano causado ao erário é ‘in re ipsa’, pois foi
impedida a contratação mais vantajosa pela Administração Pública”,
com determinação de “Ressarcimento do dano causado ao erário que
deve corresponder ao valor pago pelo Município”2 pelo contrato.
E, no âmbito do Superior Tribunal de Justiça:

nos casos em que o dano decorrer da contratação


irregular proveniente de fraude a processo licitatório,
como ocorreu na hipótese, a jurisprudência desta
Corte de Justiça tem evoluído no sentido de
considerar que o dano, em tais circunstâncias,
é in re ipsa, na medida em que o Poder Público
deixa de, por condutas de administradores, contratar
a melhor proposta3.

De outro lado, parcela da doutrina e da jurisprudência entendem pela


impossibilidade de que o dano seja presumido na hipótese, exigindo-se,
por parte do autor da ação, além da demonstração da dispensa indevida ou
da ilegalidade, que comprove o dano efetivamente causado pela conduta,
como eventual sobrepreço na contratação, que não teria ocorrido caso o
procedimento licitatório tivesse sido efetivamente observado garantindo
à administração a obtenção da melhor proposta.
Também no âmbito do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo,
cita-se precedente em que “Rechaçada, pois, a tese do ‘dano presumido
ou hipotético’ ao erário público a despeito de honrosas posições doutriná-
rias e jurisprudenciais, a contrário senso, bem como, do dolo genérico”4,
de modo que caberia ao autor da ação o ônus de comprovar os danos
causados pela conduta ímproba.
E, no âmbito do próprio Superior Tribunal de Justiça:

2
SÃO PAULO (Estado). TJSP. Apelação Cível 0001341-41.1999.8.26.0408; Relator (a): Kleber Leyser
de Aquino; Órgão Julgador: 3ª Câmara de Direito Público; Foro de Ourinhos – 1ª Vara Cível; Data do
Julgamento: 22/03/2022; Data de Registro: 23/03/2022.
3
BRASIL. STJ. REsp 728.341/SP, Rel. Ministro OG FERNANDES, SEGUNDA TURMA, julgado em 14/03/2017,
DJe 20/03/2017.
4
SÃO PAULO (Estado). TJSP. Apelação Cível 1000529-62.2017.8.26.0242; Relator (a): Marcelo Theodósio;
Órgão Julgador: 11ª Câmara de Direito Público; Foro de Igarapava – 1ª Vara; Data do Julgamento:
28/10/2021; Data de Registro: 28/10/2021.
470 André Acayaba de Rezende

para fins de subsunção da conduta ímproba à norma


insculpida no art. 10, VIII, da Lei 8.429/92, não basta
tão somente a alegação da existência de suposto ato
ímprobo, é imprescindível, também, a comprovação
do efetivo dano ao patrimônio público, de sorte
que não há falar em ato ímprobo com base em tal
preceito normativo5.

Neste contexto o Superior Tribunal de Justiça afetou para julgamento,


pelo rito do art. 1.036 e seguintes do CPC/2015, Tema nº 1.096, a contro-
vérsia que foi assim estabelecida: “Definir se a conduta de frustrar a
licitude de processo licitatório ou dispensá-lo indevidamente configura
ato de improbidade que causa dano presumido ao erário (in re ipsa)”
com determinação de suspensão dos recursos especiais e agravos em
recursos especiais interpostos nos tribunais de segunda instância ou em
tramitação no Superior Tribunal de Justiça.

3. Nova redação do Art. 10, inciso VIII, da Lei de Improbidade


Administrativa

A Lei nº 14.230/2021 conferiu nova redação ao Art. 10, inciso VIII,


da Lei de Improbidade Administrativa, passando a exigir que a conduta
de frustrar a licitude de processo licitatório ou de processo seletivo para
celebração de parcerias com entidades sem fins lucrativos, ou dispensá-los
indevidamente, acarretasse “perda patrimonial efetiva”.
Como se vê, a nova redação conferida ao dispositivo vem com o nítido
objetivo de superar a controvérsia instalada sob a redação da legislação
anterior, ao exigir a ocorrência de perda, de natureza patrimonial, que seja
efetiva, real, não podendo, portanto, ser mais presumida, como sustentava
parcela da doutrina e da jurisprudência.
Nesse sentido, como exposto por Daniel Santos de Freitas em artigo
publicado no Conjur,

a perda patrimonial efetiva tornou-se aspecto


nuclear da conduta ímproba descrita no artigo 10
da LIA, junto do elemento subjetivo doloso, o que

5
BRASIL. STJ. REsp 1.169.153, Primeira Turma, Rel. Min. Teori Albino Zavascki, DJe de 24/08/2011.
Dano presumido ao erário e improbidade no procedimento licitatório 471

impede o firmamento da Tese 1.096/STJ no sentido


de configuração de improbidade administrativa por
dano presumido ao erário pelo simples frustrar da
licitude de processo licitatório — o que não impede,
contudo, a configuração de improbidade por violação
dos princípios da Administração Pública, desde
que demonstrado o intuito do agente de obter
benefício próprio, direto ou indireto, ou de terceiros
(artigo 11, inciso V, LIA)6.

E, para além da exigência de perda patrimonial efetiva na norma


alterada, encontram-se na nova legislação outros dispositivos que indicam
a incompatibilidade do novo sistema com a presunção in re ipsa do dano.
Assim, na instrução, é vedada a imposição de ônus da prova ao réu,
na forma dos §§ 1º e 2º do art. 373 do Código de Processo Civil, nos termos
do Art. 17, §19, II, da LIA.
E, se adotada a tese do dano presumido, o ônus probatório acabaria
por ser deslocado ao réu, o que agora restou vedado, de modo que o ônus
de comprovar o dano efetivo será sempre do autor da ação.
Não há mais depoimento pessoal, e sim interrogatório do réu,
cujo silêncio não implicará em confissão ficta (ou presumida), nos termos
do Art. 17, §18, da Lei de Improbidade Administrativa.
No mesmo passo, também não há mais presunção de veracidade dos
fatos alegados pelo autor em caso de revelia (Art. 17, §19, inciso I, da LIA).
Ao final, também a sentença “deverá indicar de modo preciso os
fundamentos que demonstram os elementos a que se referem os arts. 9º,
10 e 11 desta Lei, que não podem ser presumidos” (grifo nosso) conforme
previsão expressa do Art. 17-C, inciso I, também acrescentado pela
Lei nº 14.230/2021.
Por consequência, a “perda patrimonial efetiva”, que é um elemento
do Art. 10, inciso VIII, da LIA, não mais poderá ser presumida na sentença,
ao contrário, deve ser indicada “de modo preciso”.
Não há dúvidas de que a indicação desta perda patrimonial efetiva
muitas vezes mostra-se complexa, notadamente nos casos em que houve

FREITAS, Daniel Santos de. Improbidade: principais jurisprudências e temas afetados pela Lei 14.230/2021.
6

Conjur, 29 jan. 2022. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-jan-29/freitas-principais-


jurisprudencias-temas-afetados-lei-14230. Acesso em: 3 out. 2022.
472 André Acayaba de Rezende

efetiva prestação de serviços, de forma regular e por preço próximo ao


de mercado, caso em que haveria dificuldade em se comprovar que,
se houvesse licitação com observância de todas as formalidades legais,
a administração teria obtido melhor proposta.
Assim, a exigência de dano ou perda patrimonial efetiva também
se traduz em novas exigências e desafios aos autores – o Ministério
Público ou o Ente Público interessado, nos termos do decidido pelo STF
no julgamento das ADI nº 7042 e 7043 – quando do ajuizamento da ação
de improbidade administrativa.
Nesse sentido, na inicial, ao individualizar a conduta do réu, o autor
deverá “apontar os elementos probatórios mínimos que demonstrem
a ocorrência das hipóteses dos arts. 9º, 10 e 11 desta Lei e de sua
autoria, salvo impossibilidade devidamente fundamentada” (Art. 17, §6º,
inciso I, da LIA).
Deverá, assim, apontar elementos probatórios mínimos que indiquem
a existência de “perda patrimonial efetiva” oriunda da ilicitude ou dispensa
indevida da licitação, sendo instruída com “documentos ou justificação
que contenham indícios suficientes da veracidade” destas circunstâncias
e do dolo imputado ao acusado, ressalvada impossibilidade devidamente
fundamentada, tudo sob pena de indeferimento da inicial (Art. 17, §6º,
inciso II, e §6º-B da LIA).
Além disso, eventual decreto de indisponibilidade de bens oriunda da
conduta irá considerar a “estimativa de dano indicada na petição inicial”
(Art. 16, §6º, da LIA).
E, por força dos dispositivos acima expostos, esta deverá corresponder
à “perda patrimonial efetiva” causada pela conduta.
Assim, nos casos em que os bens ou serviços tiverem sido devida-
mente e integralmente fornecidos, entende-se que a indisponibilidade
não mais poderia corresponder à totalidade do valor da licitação como
se dava anteriormente nos processos em que admitido o dano in re ipsa
oriundo da conduta.
Em suma, o que se verifica é que as alterações promovidas pela
Lei nº 14.230/2021 não só no próprio Art. 10, inciso VIII, da Lei de
Improbidade Administrativa, mas nos demais dispositivos acima citados,
acabaram por superar a controvérsia anteriormente estabelecida,
firmando-se a impossibilidade de presunção de dano ao erário na hipótese.
Dano presumido ao erário e improbidade no procedimento licitatório 473

4. (I)retroatividade e aplicabilidade da nova redação do Art. 10,


inciso VIII, da Lei de Improbidade Administrativa e o Tema nº 1.096
do Superior Tribunal de Justiça e a aplicabilidade da nova redação do
Art. 10, inciso VIII, da Lei de Improbidade Administrativa

Com o advento da Lei 14.230/2021 surgiu intenso debate jurispru-


dencial e doutrinário acerca de eventual retroatividade das alterações
promovidas pela nova legislação e sua aplicação nos processos em curso.
No entanto, em recente julgamento acerca da (i)retroatividade das
alterações promovidas na Lei de Improbidade Administrativa, o Supremo
Tribunal Federal, em sede de repercussão geral, Tema nº 1.119, fixou as
seguintes teses:

1) É necessária a comprovação de responsabilidade subjetiva para a


tipificação dos atos de improbidade administrativa, exigindo-se nos
artigos 9º, 10 e 11 da LIA a presença do elemento subjetivo dolo;
2) A norma benéfica da Lei 14.230/2021, revogação da modalidade
culposa do ato de improbidade administrativa, é irretroativa,
em virtude do artigo 5º, inciso XXXVI, da Constituição Federal,
não tendo incidência em relação à eficácia da coisa julgada;
nem tampouco durante o processo de execução das penas e
seus incidentes;
3) A nova Lei 14.230/2021 aplica-se aos atos de improbidade adminis-
trativa culposos praticados na vigência do texto anterior, porém
sem condenação transitada em julgado, em virtude da revogação
expressa do tipo culposo, devendo o juízo competente analisar
eventual dolo por parte do agente;
4) O novo regime prescricional previsto na Lei 14.230/2021 é
irretroativo, aplicando-se os novos marcos temporais a partir da
publicação da lei.

Como sintetizado em artigo publicado no Portal Conjur tratando da


decisão proferida no julgamento do Tema nº 1.199 de Repercussão Geral:

O Supremo Tribunal Federal decidiu: as inovações


em matéria de improbidade mais favoráveis ao
acusado não retroagem, salvo no que toca a norma
que extinguiu a improbidade culposa, que retroage
474 André Acayaba de Rezende

somente para atingir os processos em curso e os fatos


ainda não processados7.

Não obstante, as teses fixadas tratam, expressamente, apenas


do dolo, tipos culposos e prescrição, mas não da revogação e alteração
dos demais tipos previstos na LIA, de modo que, como pontuado pelos
próprios articulistas,

a polêmica que já se travava de forma acirrada na


doutrina apenas tende a se intensificar, posto que
não faltam os que não se conformam com a decisão,
controvérsia que, como já se está a visualizar, agora
impactará diretamente a aplicação da nova legislação
pelo Poder Judiciário, inclusive no que concerne
à adequada interpretação da própria decisão da
Suprema Corte (grifo nosso).

Nesse sentido, cita-se precedente recente do E. TJSP, que, inter-


pretando o julgamento do Tema nº 1.199 pelo Supremo Tribunal Federal,
entendeu, de forma diversa dos articulas acima citados, pela retroati-
vidade ampla de todas as alterações promovidas nos Artigos 9, 10 e 11,
decidindo-se que

ao definir o Tema de Repercussão Geral 1.199,


ao qual afetado o ARE 843.989, assentou que a nova
tipificação aplica-se aos fatos praticados na vigência
do texto anterior, porém sem condenação transitada
em julgado. Ainda que as teses tenham conferido
destaque ao elemento subjetivo, fato é que o que
a maioria da Corte decidiu concerne diretamente ao
direito material (grifo nosso)8.

7
MADALENA, Luis Henrique Braga; GUIMARÃES. Bernardo Strobel; SARLET, Ingo Wolfgang. STF decide
pela irretroatividade parcial da reforma na Lei de Improbidade. Conjur, 5 set. 2022. Disponível em:
https://www.conjur.com.br/2022-set-05/direitos-fundamentais-stf-irretroatividade-parcial-reforma-
lei-improbidade. Acesso em: 3 out. 2022.
8
SÃO PAULO (Estado). TJSP. Apelação Cível 1000557-51.2019.8.26.0083; Relator (a): Coimbra Schmidt;
Órgão Julgador: 7ª Câmara de Direito Público; Foro de Aguaí – Vara Única; Data do Julgamento:
03/10/2022; Data de Registro: 03/10/2022.
Dano presumido ao erário e improbidade no procedimento licitatório 475

Na espécie, decidiu-se que a conduta, embora se enquadrasse no


caput do artigo 11, sob a redação anterior, não mais estaria revestida de
tipicidade, uma vez que “agora, aplica-se o dispositivo numerus clausus
e nenhum dos nove incisos restantes admite aplicação ao caso”.
Haveria, assim, em relação à questão posta em análise duas possibilidades.
Adotando-se o entendimento acima esposado pelo E. TJSP, no sentido
de que a retroatividade alcança todas as alterações de direito material reali-
zadas pela Lei 14.230/2021, nos processos em curso haverá necessidade de
demonstração de dano patrimonial efetivo ao erário, a ser comprovado pelo
autor da ação, pois incidiria a nova redação dada ao Art. 10, inciso VIII, da LIA.
Nesse sentido, cita-se precedente do Tribunal de Justiça do Estado
de São Paulo em que, embora antes do julgamento do Tema nº 1.199,
entendeu pela retroatividade da exigência de dano efetivo que, não tendo
sido comprovado, resultou na improcedência do pedido, pois:

Com a recente alteração, a Lei de Improbidade


Administrativa passou a exigir efetiva e comprovada
perda patrimonial para caracterização do ato
de improbidade administrativa previsto no
artigo 10, excluindo a figura do dano presumido,
como anteriormente era previsto, por exemplo,
no inciso VIII, referente à dispensa de licitação.

Concluiu-se, assim, que:

diante da superveniência da Lei nº 14.230/21,


que  excluiu/alterou a tipificação das condutas
ímprobas conforme perseguidas na exordial,
constata-se que ela deve retroagir por força
do benefício constitucional previsto no artigo
5º, inciso XL da CF e do § 4º do artigo 1º da Lei de
Improbidade, acrescido pela Lei nº 14.230/21.
Sendo assim, é de rigor o provimento do recurso a
fim de julgar improcedente o pedido inicial com a
consequente inversão da sentença9.

9
SÃO PAULO (Estado). TJSP. Apelação Cível 3010759-26.2013.8.26.0451; Relator (a): José Luiz Gavião
de Almeida; Órgão Julgador: 3ª Câmara de Direito Público; Foro de Piracicaba – 1ª Vara da Fazenda
Pública; Data do Julgamento: 15/12/2021; Data de Registro: 15/12/2021.
476 André Acayaba de Rezende

E, por consequência, o julgamento do Tema nº 1.096 restaria preju-


dicado, diante da previsão expressa, na norma aplicável aos processos
em curso, de que para configuração da conduta é necessária a presença
de dano efetivo.
Não obstante, registra-se que, se adotado este entendimento haveria
necessidade de oportunizar-se ao autor da ação emenda à inicial, para indivi-
dualizar o dano patrimonial efetivo, bem como reabertura da fase instrutória,
se já encerrada, assegurando-lhe a comprovação deste dano.
Sem prejuízo, de outro lado, eventual medida cautelar de indispo-
nibilidade que tenha considerado o valor do contrato como o prejuízo
deverá ser reduzida para o valor do dano patrimonial efetivo indicado e
demonstrado na inicial, sumariamente, pelo autor da ação, nos termos
do Art. 16, §6º, da LIA.
De outro lado, adotando-se o entendimento de que a decisão proferida
no Tema nº 1.199 resultada na irretroatividade das inovações em matéria
de improbidade mais favoráveis ao acusado, o julgamento da controvérsia
afetada Tema nº 1.096 do STJ continua necessário.
Isto porque deverá definir se nos processos pendentes de julgamento
à luz da redação anterior do Art. 10, inciso VIII, da LIA, que não exigia
expressamente perda patrimonial efetiva, haveria dano presumido ao
erário (in re ipsa).

5. Conclusão

A Lei nº 14.230/2021 alterou o Art. 10, inciso VIII, da Lei de


Improbidade Administrativa, passando a exigir, para configuração da
conduta a ocorrência de perda patrimonial efetiva.
A alteração enfrenta a controvérsia que se encontrava afetada ao
Tema nº 1.096 do Superior Tribunal de Justiça, no sentido de “Definir se
a conduta de frustrar a licitude de processo licitatório ou dispensá-lo
indevidamente configura ato de improbidade que causa dano presumido
ao erário (in re ipsa)”.
Além da alteração no Art. 10, inciso VIII, verificou-se a existência
de outras alterações na LIA a indicar a incompatibilidade do regime de
presunção de dano à nova legislação.
Quando do julgamento do Tema nº 1.199 de Repercussão Geral o
Supremo Tribunal Federal tratou, expressamente, da retroatividade da
Dano presumido ao erário e improbidade no procedimento licitatório 477

revogação dos tipos culposos da LIA, mas não da retroatividade dos demais
tipos, verificando-se entendimentos divergentes na doutrina e na juris-
prudência acerca do alcance do julgamento nesta última hipótese.
Em havendo retroatividade da alteração no Art. 10, inciso VIII da LIA,
entende-se que o julgamento do Tema nº 1.096 do Superior Tribunal de
Justiça estaria prejudicado, sem prejuízo de se oportunizar ao autor da
ação emenda à inicial e eventual reabertura da fase instrutória para
comprovação da perda patrimonial efetiva agora exigido para configu-
ração da conduta.
De outro lado, reconhecida a irretroatividade da alteração, entende-se
que o julgamento do Tema nº 1.096 do Superior Tribunal de Justiça perma-
nece relevante para definir se, sob a égide da redação anterior, o dano ao
erário para configuração da conduta seria presumido (in re ipsa).

6. Referências bibliográficas

BRASIL. STJ. REsp 1.169.153, Primeira Turma, Rel. Min. Teori Albino
Zavascki, DJe de 24/08/2011.
BRASIL. STJ. REsp 728.341/SP, Rel. Ministro OG FERNANDES, SEGUNDA
TURMA, julgado em 14/03/2017, DJe 20/03/2017.
FREITAS, Daniel Santos de. Improbidade: principais jurisprudências e temas
afetados pela Lei 14.230/2021. Conjur, 29 jan. 2022. Disponível em: https://
www.conjur.com.br/2022-jan-29/freitas-principais-jurisprudencias-temas-
afetados-lei-14230. Acesso em: 3 out. 2022.
GARCIA, Emerson; ALVES, Rogério Pacheco. Improbidade administrativa.
9. ed. São Paulo: Saraiva, 2017.
MADALENA, Luis Henrique Braga; GUIMARÃES. Bernardo Strobel; SARLET,
Ingo Wolfgang . STF decide pela irretroatividade parcial da reforma na
Lei de Improbidade. Conjur, 5 set. 2022. Disponível em: https://www.
conjur.com.br/2022-set-05/direitos-fundamentais-stf-irretroatividade-
parcial-reforma-lei-improbidade. Acesso em: 3 out. 2022.
SÃO PAULO (Estado). TJSP. Apelação Cível 0001341-41.1999.8.26.0408;
Relator (a): Kleber Leyser de Aquino; Órgão Julgador: 3ª Câmara de
Direito Público; Foro de Ourinhos – 1ª Vara Cível; Data do Julgamento:
22/03/2022; Data de Registro: 23/03/2022.
SÃO PAULO (Estado). TJSP. Apelação Cível 1000529-62.2017.8.26.0242;
Relator (a): Marcelo Theodósio; Órgão Julgador: 11ª Câmara de Direito
478 André Acayaba de Rezende

Público; Foro de Igarapava – 1ª Vara; Data do Julgamento: 28/10/2021;


Data de Registro: 28/10/2021.
SÃO PAULO (Estado). TJSP. Apelação Cível 1000557-51.2019.8.26.0083;
Relator (a): Coimbra Schmidt; Órgão Julgador: 7ª Câmara de Direito
Público; Foro de Aguaí – Vara Única; Data do Julgamento: 03/10/2022;
Data de Registro: 03/10/2022.
SÃO PAULO (Estado). TJSP. Apelação Cível 3010759-26.2013.8.26.0451;
Relator (a): José Luiz Gavião de Almeida; Órgão Julgador: 3ª Câmara de
Direito Público; Foro de Piracicaba – 1ª Vara da Fazenda Pública; Data do
Julgamento: 15/12/2021; Data de Registro: 15/12/2021.
974

O elemento subjetivo e a tipicidade


da lei de improbidade no art. 11 da
nova lei

Luis Francisco Aguilar Cortez1


Desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo

Sumário: 1. Introdução. 2. Controlar a Administração Pública e


seus agentes. 2.1 Autoridades com responsabilidade. 3. Improbidade
e dolo. 3.1 A nova tipicidade e o contexto constitucional. 3.2 O elemento
subjetivo na Lei 14.230/2021 e o Direito Penal. 3.3 Limites e desafios.
4. Considerações finais.

1. Introdução

A Lei 14.230/2021 modificou substancialmente a conceituação e o


regramento da improbidade administrativa no direito brasileiro, entretanto,
diante do destaque constitucional atribuído ao tema e dos princípios e
conceitos gerais que disciplinam nosso ordenamento jurídico, as modifi-
cações introduzidas devem ser avaliadas em seu contexto normativo,
observado seu status constitucional e os bens jurídicos tutelados.
Tal delimitação já se iniciou e motivou as decisões do Supremo
Tribunal Federal na ARE 843.989, fixando teses de repercussão geral
quanto à irretroatividade da nova lei e necessidade de análise do elemento
subjetivo – dolo – para as ações em andamento, além de outros questio-
namentos, destacando-se a ADI 7042, ao afastar a legitimidade ativa
exclusiva do Ministério Público para as ações de improbidade, e a ADI 7043,
ao suspender a obrigatoriedade na atuação da advocacia pública para a
defesa de agentes públicos acusados pela prática de atos de improbidade2.
As decisões reforçam a necessidade de estabelecer, na aplicação
da nova lei, afinidades e diferenciações entre as modalidades de

1
Doutor pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo; Diretor da Escola Paulista da Magistratura
(EPM) – biênio 2020/2021; professor titular na Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-Campinas).
2
Acórdãos ainda não publicados.
480 Luis Francisco Aguilar Cortez

responsabilização penal, civil e administrativa, bem como parâmetros


para a aplicação do denominado direito administrativo sancionador, a fim de
preservar os bens jurídicos tutelados pela norma constitucional, permitindo
avaliar a responsabilidade por ato de improbidade como categoria diferen-
ciada no controle da atividade dos agentes públicos.
Não há dúvida, entretanto, quanto à nova opção legislativa na confi-
guração do elemento subjetivo como requisito para configuração do
ato de improbidade, em qualquer das suas modalidades, reconhecendo
maior proximidade com o Direito Penal, por meio do denominado Direito
Administrativo Sancionador.
Desenvolvemos aqui, nesta linha interpretativa, uma análise para
a aplicação da nova Lei de Improbidade no que se refere à exigência do
dolo para tipificação da conduta, conjugada com os fins e bens jurídicos
tutelados no exercício da atividade pública.

2. Controlar a Administração Pública e seus agentes

Os desafios históricos enfrentados com as diferentes configurações do


Estado para o exercício do poder, na busca do bem comum, colocaram o
Estado brasileiro, especialmente após os anos 1990, mais perto do modelo
de indutor de políticas públicas, reduzindo a intervenção estatal direta na
execução dos serviços e atividades, mantida sua capacidade de disciplinar
a atuação realizada por meio da iniciativa privada (Estado regulador).
Tal configuração do Estado e da Administração conduz à imple-
mentação de novas formulações jurídicas, além daqueles modelos e
procedimentos historicamente aplicados, bem como à necessidade de
reestruturação da própria relação Estado/Sociedade, de modo a garan-
tir legitimidade e eficiência na gestão pública, como instrumentos de
concretização dos direitos fundamentais.
A crescente complexidade e alcance das relações econômicas e sociais
refletem na ampliação da normatividade, seja com a maior influência de
normas técnicas e de gestão, em prejuízo das fontes normativas clássicas3;
seja com o enfraquecimento da lei em sentido estrito (e do Legislativo)
como principal fonte do Direito, a ensejar a predominância do Executivo

FRYDMAN, Benoit. O fim do Estado de Direito: governar por standars e indicadores. Porto Alegre:
3

Livraria do Advogado, 2018.


O elemento subjetivo e a tipicidade da lei de improbidade no art. 11 da nova lei 481

e do Judiciário na construção do Direito4; maior normatividade implica,


de outra parte, a ampliação da esfera de atuação dos agentes públicos.
No Brasil, a partir da Constituição Federal de 1988 e dos anos 1990,
foram introduzidas importantes mudanças normativas e estruturais,
acrescendo direitos protegidos constitucionalmente e mecanismos para
o acompanhamento das atividades públicas; no âmbito da Administração
podemos destacar a introdução do princípio da eficiência5, ao lado dos
demais princípios que regem a atividade pública6, com o incremento das
privatizações de serviços essenciais, a criação das agências reguladoras,
a aprovação da Lei de Responsabilidade Fiscal e das parcerias público-
-privadas, tudo a indicar um novo modelo para a atuação estatal.
As exigências para um diferente modelo de funcionamento da
Administração Pública, aqui entendida como todas as funções públicas
nas diferentes esferas de poder (federal, estadual e municipal; executivo,
legislativo e judiciário) e a necessidade de estabelecer novas formas de
legitimação do poder estatal perante a sociedade, tem demonstrado a
insuficiência dos mecanismos tradicionais de controle da Administração,
especialmente aquele focado no controle interno – realizado pela própria
Administração (autotutela) – e controle externo – realizado por meio
das diferentes funções estatais, nomeadamente: Legislativo e Judiciário,
bem como pela sociedade (notadamente via eleições).
Ao lado deste controle institucional7 ressaltou-se, então, a exigên-
cia de accountability, englobando o dever de prestar contas dos agentes
públicos e a possibilidade de sua responsabilização por irregularidades
na gestão dos recursos públicos8.

4
Paolo Grossi refere-se à multiplicação de fontes do Direito e a sua “destipificação” (GROSSI, Paolo.
Ritorno al diritto. Roma: Laterza, 2015). Sabino Cassese aponta a transformação da Jurisprudência em
fonte do Direito, fazendo com que o Juiz se torne legislador (CASSESE, Sabino. Le pouvoir des juges.
In: DELVOLVÉ, Pierre (coord.). Le pouvoir. Paris: PUF, 2022. p. 325-336).
5
Emenda Constitucional n. 19/1998.
6
Em especial o artigo 37 da Constituição Federal.
7
Refiro-me aqui as “instituições” como as estruturas formais, embora também sejam assim consideradas
as regras mais duradouras que estabelecem os padrões de comportamento da sociedade.
8
James Madison já alertava que “Ao modelar um governo para ser exercido por homens sobre homens,
a maior dificuldade é esta: primeiro é preciso aparelhar o governo para que controle os governados;
o passo seguinte é fazê-lo controlar-se a si mesmo. A dependência para com o povo é, sem dúvida,
o controle primordial sobre o governo, mas a experiência ensinou à humanidade que precauções
auxiliares são necessárias” (HAMILTON, Alexander; MADISON, James; JAY, John. Os artigos federalistas.
Tradução de Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993. p. 350).
482 Luis Francisco Aguilar Cortez

Na mesma direção a constatação da necessidade de estabelecer


padrões valorativos e éticos na atividade privada conduziu a implemen-
tação dos mecanismos de compliance.
Para fazer frente aos desafios surgidos, a doutrina já vem destacando
a necessária reformulação do próprio sistema de separação dos poderes,
no sentido de que este novo padrão deve incluir alguma forma de controle
da integridade na atuação dos agentes públicos9.
De certa forma, além de constatar que o Direito e as instituições
devem limitar o poder, é imprescindível evitar o risco de que apenas o
Poder Executivo ou agencias técnicas criem o Direito que irá limitá-los,
ou que o Estado monopolize a formação das instituições que exercem o
controle e a fiscalização10.

2.1 Autoridades com responsabilidade

O quadro normativo atual ampliou a possibilidade de avaliar os


atos e contratos administrativos e estabelecer limites para a atividade
pública, baseados em princípios e valores protegidos constitucional-
mente, e estabeleceu novo patamar no controle da Administração,
exercido pelos Tribunais de Contas e principalmente pelo Judiciário,
todos fortalecidos com os novos instrumentos normativos, com a maior
independência das instituições e a ampliação dos legitimados para
provocar a fiscalização.
Todavia, declarar inconstitucional uma lei, anular ou rever um ato ou
contrato, fixar limites valorativos para a atividade pública, são situações que
dificilmente atingiam a esfera individual dos responsáveis por aqueles atos.
Isto porque os mecanismos tradicionais de controle concentram-se em
combater o abuso ou desvio de poder entre as diferentes esferas de atuação
dos órgãos públicos para proteção individual ou coletiva, mas não geram,
ou raramente resultam, na possibilidade de responsabilização do agente
que estabeleceu aquela determinada prática administrativa irregular ou
dos demais envolvidos.

9
ACKERMAN, Bruce. La nueva división de poderes. Traducción de José Manuel Salazar. México: FCE, 2007.
Também destacando a questão da responsabilidade: ROSANVALLON, Pierre. Le bon gouvernement.
Paris: Seuil, 2015.
10
Os denominados novos riscos para as Democracias apontam para o rompimento do jogo democrático
valendo-se do controle centralizador das próprias instituições democráticas.
O elemento subjetivo e a tipicidade da lei de improbidade no art. 11 da nova lei 483

A vinculação dos agentes públicos aos respectivos estatutos funcionais,


a implicar na sua responsabilidade administrativa disciplinar, e a tipifica-
ção penal de condutas caracterizadoras de crimes contra a Administração
Pública mostraram-se insuficientes para inibir condutas indevidas,
principalmente para o controle da corrupção e para a implementação
das práticas de boa gestão pública.
O poder funcional das autoridades deve ter como contrapartida a
sua responsabilidade no exercício daquela função, a fim de equilibrar seu
exercício. Assumir funções públicas ou associar-se com a Administração,
significa aceitar limitações e controles, ter deveres vinculados às boas práti-
cas éticas e de gestão, pautas obrigatórias para reduzir os riscos de abusos
e desvios, a fim de manter a confiabilidade no sistema representativo.
No estudo da corrupção na Administração Pública é certo que o
corrompido ocupa uma posição de poder ou exerce função institucional
que lhe confere autoridade discricionária, por isso a maior necessidade
de controle11. Agentes que desempenham funções com as características
acima destacadas têm maior domínio sobre as próprias instituições que
integram, a demonstrar ser insuficiente a autotutela e, muitas vezes,
mesmo o controle horizontal entre as instituições.
Compreende-se, então, a preocupação do constituinte ao estabelecer
a responsabilização por ato de improbidade, destacando sua independência
em relação à esfera penal (art. 37, § 4º, da CF), com finalidades diversas
da sanção disciplinar ou civil.
Embora não se tenha avançado muito no debate quando da assem-
bleia constituinte, houve a preocupação direta em afastar a tipificação
da improbidade da esfera penal, o que ficou expresso no texto constitu-
cional, escolha reafirmada quando dos debates para aprovação da lei de
improbidade12 e, posteriormente, aceita pelo Supremo Tribunal Federal
quando do julgamento do RE 736.351/SC13.

11
“As causas da corrupção recaem em três grandes categorias: instituições, incentivos e ética pessoal.
[…] Para o enfretamento da grande corrupção, os firmuladores de decisão precisam ser responsabilizáveis
pelas suas decisões” (ROSE-ACKERMAN, Susan; PALIFKA, Bonnie Jo. Corrupção e governo. Tradução de
Eduardo Lessa. Rio de Janeiro: FGV, 2020. p. 625, 629).
12
Descreve o então ocorrido Fernando Gaspar Neisser em sua tese de doutorado A responsabilidade
subjetiva na improbidade administrativa: um debate pela perspectiva penal, orientador Alamiro
Velludo Salvador Neto, São Paulo, 2018.
13
Min. Roberto Barroso, j. 12 nov. 2013.
484 Luis Francisco Aguilar Cortez

Incorporou-se, ainda, ao nosso Direito a necessidade de estabelecer


“normas de conduta para o desempenho correto, honrado e adequado
das funções públicas” conforme previsto na Convenção Interamericana
contra a Corrupção, aprovada pela Organização dos Estados Americanos
em 1996 e aqui promulgada com o Dec. 4.410/2002.

3. Improbidade e dolo

Na Lei 8.429/1992 (redação inicial) havia, como se sabe, a possibilidade


de tipificação do ato de improbidade em três situações: enriquecimento
ilícito (art. 9º), dano ao erário (art. 10 e, posteriormente, acrescido do
art. 10-A) e violação aos princípios que regem a atividade pública (art. 11).
Os referidos artigos continham tipos “abertos”, com rol exemplifi-
cativo de situações nos seus vários incisos.
Apenas o artigo 10 era expresso quanto às condutas culposas e
dolosas e, quanto aos demais, afirmou-se na jurisprudência do STJ,
ao longo do tempo, a necessidade do dolo14, passando igualmente a
distinguir ineficiência ou falhas de gestão do ato de improbidade (a exigir
“desonestidade” na conduta ou mesmo mencionando a necessidade de
aferir má-fé)15.
As modificações ocorridas na Lei de Introdução as Normas do Direito
Brasileiro16 caminharam no mesmo sentido, referindo-se à necessidade
de avaliar as condições nas quais o gestor público agiu (arts. 20 e 22) e
prevendo a responsabilização apenas nos casos de dolo ou erro grosseiro
(art. 28).
Entretanto, os julgados e a doutrina administrativista não se aprofun-
daram na definição dos elementos constitutivos do elemento subjetivo da
improbidade administrativa17, mantendo-se a dificuldade da sua análise
no caso concreto.

14
Dolo genérico – Ag Int no REsp 1.590.530/PB, Min. Herman Benjamin, DJe 6/3/2017.
15
A respeito da evolução dos julgados do STJ ver o trabalho de FERREIRA, Vivian Maria Pereira. O dolo
da improbidade administrativa: uma busca racional pelo elemento subjetivo na violação aos princípios
da Administração Pública. Revista Direito GV, v. 15, n. 3, 2019. Disponível em: https://www.scielo.
br/j/rdgv/. Acesso em: 4 abr. 2022.
16
Alterações introduzidas por meio da Lei 13.655/18.
17
Conforme destaca Vivian Maria Pereira Ferreira em relação à doutrina: FERREIRA, Vivian Maria Pereira.
O dolo da improbidade administrativa: uma busca racional pelo elemento subjetivo na violação aos
O elemento subjetivo e a tipicidade da lei de improbidade no art. 11 da nova lei 485

3.1 A nova tipicidade e o contexto constitucional

Na conformação jurídica da improbidade no direito brasileiro, acima


exposta, e nos termos defendidos em trabalhos anteriores18, não há
uma identificação integral do regime jurídico do ato de improbidade
com o direito penal ou com a responsabilidade civil19; inexiste, ainda,
uma “padronização” do denominado direito administrativo sancionador20,
embora, evidentemente, todos partilhem de princípios e garantias comuns,
cuja ponderação na aplicação deve levar em conta os respectivos bens
jurídicos tutelados21.
A improbidade acolhida em nosso ordenamento não se destina
apenas a proteger a própria Administração dos maus gestores e puni-los,
o que seria atendido pelos controles tradicionais, mas, ao possibilitar o
controle daqueles que controlam a própria Administração, em todas as
suas esferas de poder, visa principalmente proteger o interesse público no
modelo representativo, na sua imprescindível relação com a sociedade,
reconhecendo que múltiplos interesse formam o interesse público,
o qual não se limita ao interesse da Administração ou do gestor público,
e transforma-se, então, em importante instrumento de cidadania.
Temos, então, uma maior “abertura” quanto aos bens jurídicos
tutelados, suprindo lacunas na responsabilização penal, civil e adminis-
trativa, tendo em vista a situação privilegiada de determinados agentes
públicos (poder decisório e de mando) e daqueles que, por seu inter-
médio, contratam e recebem recursos públicos, posição que fragiliza
os meios convencionais de controle; justifica-se tal mecanismo de
proteção porque o agente público tem, em regra, maior controle na
sua atividade (sem a avaliação direta de resultado exigida no mercado

princípios da Administração Pública. Revista Direito GV, v. 15, n. 3, 2019. Disponível em: https://www.
scielo.br/j/rdgv/a/t4j9F3M36jfcvPddbKMnXFK/?lang=pt. Acesso em: 4 abr. 2022.
18
Especialmente no trabalho de AMADEI, Vicente de Abreu. Improbidade administrativa e sua reforma.
Escola Paulista da Magistratura, São Paulo, 15 mar. 2022. Disponível em: https://epm.tjsp.jus.br/Artigo/
DireitoPublico/81817?pagina=1. Acesso em: 14 abr. 2023; e no meu trabalho: CORTEZ, Luis Francisco
Aguilar. As alterações na Lei de Improbidade e sua aplicação retroativa. Escola Paulista da Magistratura,
São Paulo, 18 mar. 2022. Disponível em: https://epm.tjsp.jus.br/Artigo/DireitoPublico/81858?pagina=1.
Acesso em: 14 abr. 2023.
19
A nova lei afastou, contrariamente à lei civil, a possibilidade de atos culposos configurarem improbidade.
20
Conclusão também adotada pelo STF no já referido julgamento da ARE 843.989.
21
A crescente possibilidade de flexibilização na aplicação do direito penal indica a conveniência de
conexão entre os regimes de responsabilidade sem, contudo, eliminar integralmente suas distinções.
486 Luis Francisco Aguilar Cortez

competitivo/privado) e, muitas vezes, interfere nos próprios limites


normativos que disciplinam sua conduta.
Não fosse essa a preocupação do constituinte, desnecessária seria a
inclusão da improbidade no texto constitucional como esfera sancionatória
diferenciada em relação ao direito penal22.
Assim, ao lado do inegável caráter sancionatório, o estímulo ao
exercício virtuoso das atividades públicas cumpre outros fins, especial-
mente como prevenção para as condutas de improbidade23, quando
há “quebra de confiança” no exercício de atividades públicas por
parte de determinados agentes, o que retira a própria legitimidade
da sua atuação e compromete a confiabilidade das instituições e do
regime democrático.
Significa, de outra parte, que ao valer-se do direito penal para buscar
uma melhor definição do elemento subjetivo exigido para configuração
do ato de improbidade24, não se pode esvaziar o preceito constitucional,
ao estabelecer a necessidade de conteúdo e avaliação específicos para
responsabilização dos agentes por ato de improbidade.
A melhor “calibragem” na aplicação das normas é foco de interesse
também no Direito Penal, cuja doutrina aponta a necessidade de reduzir
a sua expansão, oferecendo alternativas sancionatórias com menor
aplicação da pena de prisão e regras mais flexíveis, características de certa
“administrativização do Direito Penal”25, usando mecanismos de prevenção

22
Nesse sentido também não é possível a aplicação de um Direito Administrativo Sancionador integral-
mente correspondente ao Direito Penal na análise da improbidade, o que acarretaria, por via indireta,
o mesmo “esvaziamento” do preceito constitucional.
23
Ressalvadas as diferenças, caminhou nesse sentido a decisão do STF nas Ações Declaratórias de
Inconstitucionalidade 29 e 30, quando deliberou a respeito das mudanças introduzidas pela denominada
Lei da Ficha Limpa (LC 135/10) na Lei das Inelegibilidades (LC 64/90), ao reconhecer que a nova lei
não tinha conteúdo sancionatório mas sim estabelece “requisitos negativos” para habilitação a disputa
de cargos públicos eletivos.
24
Aponta Fernando Gaspar Neisser a necessidade de construção de um modelo intermediário no qual
“a ancoragem do modelo intermediário em ponto mais próximo ao Direito Penal representa a adoção de
um conjunto de garantias do qual não se pode abrir mão em um Estado Democrático de Direito. Seria
perversa a interpretação segundo a qual a mera mudança de rótulo – de Direito Penal para Direito
Civil – autorizasse o Estado a punir sem a observância de um núcleo mínimo de elementos, dos quais
os conceitos de dolo e culpa fazem parte” (NEISSER, Fernando Gaspar. A responsabilidade subjetiva
na improbidade administrativa. 2018. Tese (Doutorado em Direito Penal) – Universidade de São Paulo,
São Paulo, 2018. p. 258, 260).
25
CARLOS DE OLIVEIRA, Ana Carolina. Direito de intervenção e direito administrativo sancionador:
o pensamento de Hassemer e o Direito penal brasileiro. 2012. Dissertação (Mestrado em Direito
Penal) – Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2011.
O elemento subjetivo e a tipicidade da lei de improbidade no art. 11 da nova lei 487

técnica e orgânica e a criação de sistemas sancionatórios específicos,


com configurações e fins diversos – “sistemas intermediários”26-, o que
corresponde a uma inevitável graduação também na aplicação do Direito
Administrativo Sancionador.

3.2 O elemento subjetivo na Lei 14.230/2021 e o Direito Penal

A nova legislação reproduziu as três tipificações gerais de atos de


improbidade anteriormente existentes: enriquecimento ilícito, dano ao
Erário e violação aos princípios que regem a atividade pública, porém,
introduziu importantes modificações.
Para o objetivo desta reflexão, destacamos a expressa inclusão do
dolo (elemento subjetivo) como elemento integrante daqueles tipos,
sem distinção entre eles.
Foi além o legislador, ao delimitar no que consiste o dolo para fins
de configuração da improbidade, fixando que:

- considera-se dolo a vontade livre e consciente de


alcançar o resultado ilícito tipificado nos arts. 9º,
10 e 11 desta lei, não bastando a voluntariedade do
agente (art. 1º, § 2º).
- o mero exercício da função ou desempenho de
competências públicas, sem comprovação de ato
doloso com fim ilícito, afasta a responsabilidade por
ato de improbidade administrativa (art. 1º, § 3º ).
- […] somente haverá improbidade administrativa,
na aplicação deste artigo, quando for comprovada na
conduta funcional do agente público o fim de obter
proveito ou benefício indevido para si ou para outra
pessoa ou entidade (art. 11, § 1º).
- não se configurará improbidade a mera nomeação
ou indicação política por parte dos detentores de
mandato eletivo, sendo necessária a aferição de
dolo com finalidade ilícita por parte do agente
(art. 11, § 5º).

26
SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. A expansão do direito penal: aspectos da política criminal nas socie-
dades pós-industrais. Tradução de Luiz Otavio de Oliveira Rocha. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2002. p. 144-151.
488 Luis Francisco Aguilar Cortez

Preocupou-se o legislador não só em deixar expressa a exigência do dolo


para a caracterização do ato de improbidade, em todas as suas modalidades,
mas em explicitar a necessidade do ato de vontade direcionado ao fim ilícito.
Trata-se do dolo direto (ou imediato) referido na doutrina penal,
ou seja, quando o agente pratica a conduta dirigindo-a à realização do
resultado por ele inicialmente visado27.
Em contrapartida, exclui-se a possibilidade de configurar ato de
improbidade a conduta com dolo eventual, uma vez que a ele falta o
direcionamento a determinado resultado, embora assumido o risco quanto
a sua produção.
Não foi o caminho adotado pelo Código Penal (art. 18, I e II), todavia,
mesmo no direito penal, ainda que com diferente enfoque, já se destacou que

Na realidade, o especial fim ou motivo de agir, embora


amplie o aspecto subjetivo do tipo, não integra o
dolo nem com ele se confunde, uma vez, como vimos,
o dolo esgota-se com a consciência e a vontade de
realizar a ação com a finalidade de obter o resultado
delituoso, ou na assunção do risco de produzi-lo.
O especial fim de agir que integra determinadas
definições de delitos condiciona ou fundamenta a
ilicitude do fato, constituindo, assim, elemento
subjetivo do tipo de ilícito, de forma autônoma e
independente do dolo. A denominação correta,
por isso, é elemento subjetivo especial do tipo ou
elemento subjetivo especial do injusto, que se
equivalem, porque pertencem, ao mesmo tempo,
à ilicitude e ao tipo que a ela correspondem28.

Assim, embora discutível tal escolha do legislador para configurar o ato


de improbidade, é possível sua inclusão como elemento essencial definidor
do elemento subjetivo exigido para a configuração do ato de improbidade.
Com efeito, tais conceitos afastam a terminologia normalmente
utilizada para aferição da prática de improbidade, relativa a dolo genérico
e dolo específico, já menos utilizada em matéria penal29.

27
MASSON, Cleber. Direito penal: parte geral. 16. ed. Rio de Janeiro: Método, 2022.
28
BITENCOURT, Cesar Roberto. Tratado de direito penal. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 322-323.
29
“Para os defensores da teoria causal da ação, assume importância a classificação do dolo em genérico
e específico. O especial fim de agir recebe para seus partidários a denominação de dolo específico.
O elemento subjetivo e a tipicidade da lei de improbidade no art. 11 da nova lei 489

Anoto, ainda, que no referido julgamento do ARE 843.989 o relator ficou


vencido em parte porque na sua proposta original defendia a possibilidade
de analisar no caso concreto eventual má-fé ou dolo eventual do agente,
enquanto prevaleceu o entendimento da maioria para constar apenas a
necessidade de avaliar eventual dolo por parte do agente. Tudo indica que
deve prevalecer a necessidade de aferir a presença do dolo direto.
Nesta aproximação com o Direito Penal não há espaço, portanto,
para que se presuma a prática do ato de improbidade ou que se aproxime do
conceito de responsabilidade objetiva do agente, a exigir prova da vontade
do agente dirigida para o fim ilícito, cujo ônus compete ao autor da ação.
Evidentemente, tal exigência será ponderada em cada caso concreto,
porque em algumas situações, por exemplo, nos casos de enriquecimento
ilícito, a imensa variação positiva patrimonial pessoal sem origem lícita
não permitirá, diante da conjugação com o exercício atividades de gestão
de recursos públicos e celebração de contratos irregulares, presumir-se a
retidão de conduta ou ausência de dolo direto, como, aliás, está expresso
no art. 9º, VII, da nova lei, que transfere ao agente público a prova da
licitude daquela evolução patrimonial.
Da mesma maneira, mesmo em situações menos evidentes,
será necessário verificar as condições específicas da conduta do agente,
seu conhecimento dos fatos, a existência ou não de recomendações
técnicas (dos Tribunais de Contas, por exemplo), as circunstâncias reais
que enfrentava quando da tomada de decisão, enfim todo o contexto
existente30, para dele aferir o elemento subjetivo. Em outras palavras,
na avaliação das características externas e perceptíveis da conduta,
ao inquirir qual o sentido da ação praticada, é que será verificada a
presença ou não do dolo, tudo a exigir melhor análise de provas e uma
fundamentação adequada no julgamento das ações.
Verifica-se, conforme destacado, a crescente preocupação das teorias
penais que apontam para a aferição do dolo, a necessidade de avaliação
de “indicadores externos” reconhecendo que, embora o dolo corresponda
a uma condição interna do agente, é preciso analisar as circunstâncias

Com o advento da teoria da ação final, esta classificação vem sendo paulatinamente abandonada,
mas por razões pedagógicas continuam sendo mencionadas principalmente nos cursos e manuais de
direito penal.” (PIERANGELI, José Henrique. Código penal comentado. Atualizado por Maria Aparecida
Pierangeli Borelli Thomaz. São Paulo: Verbatim, 2013. p. 61).
30
Conforme também já apontava Vivian Maria Pereira Ferreira, op. cit., p. 11/13.
490 Luis Francisco Aguilar Cortez

ligadas a sua atuação31; condição, aliás, exposta na já mencionada Lei de


Introdução as Normas do Direito Brasileiro32.
A proximidade dos conceitos de dolo para a improbidade e para
o direito penal não impõe, todavia, idêntico rigor valorativo para o
campo probatório, avaliando-se as provas em função dos bens jurídicos
tutelados e resultados esperados, diante da menor carga sancionatória
na improbidade (sem penas restritivas de liberdade) e maior carga de
responsabilidade funcional quanto aos agentes públicos no exercício de
suas funções típicas.
As novas limitações introduzidas para os inquéritos civis e as crescen-
tes possibilidades de acordos de não persecução poderão fornecer os
instrumentos para reduzir excessos no campo sancionatório.

4. Considerações finais

O controle dos atos de improbidade administrativa é elemento essen-


cial dentro do sistema de controles da atividade pública, distinguindo-se
de outras modalidades, tendo em vista os diferentes bens jurídicos
tutelados e fins visados.
Os agentes públicos e aqueles que, por seu intermédio, atuam junto
à Administração Pública, ocupam posição diferenciada na destinação
dos recursos públicos e sua regulamentação, notadamente, quanto à
possibilidade de escolhas e sua fiscalização, a recomendar distinto grau
de exigência ética e formas de responsabilização.
A nova lei de improbidade optou por uma tipificação mais “fechada”
para a configuração do ato de improbidade e afastou a modalidade culposa,
a indicar maior proximidade com os conceitos utilizados no Direito Penal.
O elemento subjetivo exigido corresponde ao conceito de dolo direto
no Direito Penal, a exigir não só a voluntariedade do agente mas também
a vontade livre e consciente de alcançar o resultado ilícito previsto na lei.

31
HASSEMER, Winfried. Los elementos característicos del dolo. Tradução de Maria del Mar Diaz Pita.
Anuario de Derecho Penal y Ciencias penalesia, p. 909-932, 1990.
32
Art. 22. Na interpretação de normas sobre gestão pública, serão considerados os obstáculos e as difi-
culdades reais do gestor e as exigências das políticas públicas a seu cargo, sem prejuízo dos direitos
dos administrados.
§ 1º Em decisão sobre regularidade de conduta ou validade de ato, contrato, ajuste, processo ou
norma administrativa, serão consideradas as circunstâncias práticas que houverem imposto, limitado
ou condicionado a ação do agente.
O elemento subjetivo e a tipicidade da lei de improbidade no art. 11 da nova lei 491

Esta configuração exige melhor avaliação do contexto no qual o ato foi


praticado, especialmente quanto às suas condições e efeitos constatados,
com adequada avaliação probatória e correspondente fundamentação.
Os resultados esperados com a aplicação do Direito Penal e do Direito
Administrativo são distintos, a autorizar a construção de modelo comum
quanto as garantias essenciais, todavia, com critérios diversos para a
avaliação externa das condutas, diante da especial posição ocupada
pelos agentes públicos na gestão de recursos e no seu direcionamento,
a justificar correspondente responsabilidade funcional.
Implica reconhecer que os critérios de julgamento deverão ser
distintos, ainda que casuísticos, no sentido de que será maior a dificuldade
em estabelecer padrões gerais de conduta configuradores do elemento
subjetivo na forma exigida, tendo em vista as inúmeras situações fáticas
(externas) analisadas33.
Afastar, como regra, a possibilidade de presunção de conduta ímproba
e da responsabilização objetiva, não impede, contudo, que se busque a
máxima proteção aos bens jurídicos protegidos pelo status constitucional
atribuído à probidade administrativa.
Diante de algumas “simplificações” nas análises iniciais relativas à
norma agora vigente, doutrina e jurisprudência devem buscar um ponto de
equilíbrio para o novo regramento, a fim de não esvaziar os bens jurídicos
tutelados constitucionalmente e dar cumprimento à nova lei.

Referências bibliográficas

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Manuel Salazar. México: FCE, 2007.
AMADEI, Vicente de Abreu. Improbidade administrativa e sua reforma.
Escola Paulista da Magistratura, São Paulo, 15 mar. 2022. Disponível
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Acesso em: 14 abr. 2023.
BITENCOURT, Cesar Roberto. Tratado de direito penal. São Paulo:
Saraiva, 2011.
CARLOS DE OLIVEIRA, Ana Carolina. Direito de Intervenção e Direito
Administrativo Sancionador: o pensamento de Hassemer e o Direito penal

33
E existem limites para o próprio reexame de provas (Súmula 7 do STJ).
492 Luis Francisco Aguilar Cortez

brasileiro. 2012. Dissertação (Mestrado em Direito Penal) – Faculdade de


Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2011.
CASSESE, Sabino. Le pouvoir des juges. In: DELVOLVÉ, Pierre (coord.).
Le pouvoir. Paris: PUF, 2022.
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aplicação retroativa. Escola Paulista da Magistratura, São Paulo, 18 mar. 2022.
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Administração Pública. Revista Direito GV, v. 15, n. 3, 2019. Disponível em:
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Acesso em: 4 abr. 2022.
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indicadores. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2016.
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HAMILTON, Alexander; MADISON, James; JAY, John. Os artigos federalistas.
Tradução de Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993.
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de Maria del Mar Diaz Pita. Anuario de Derecho Penal y Ciencias penales,
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MASSON, Cleber. Direito penal: parte geral. 16. ed. Rio de Janeiro:
Método, 2022.
NEISSER, Fernando Gaspar. A responsabilidade subjetiva na improbidade
administrativa. 2018. Tese (Doutorado em Direito Penal) – Universidade
de São Paulo, São Paulo, 2018.
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Maria Aparecida Pierangeli Borelli Thomaz. São Paulo: Verbatim, 2013.
ROSANVALLON, Pierre. Le bon gouvernement. Paris: Seuil, 2015.
ROSE-ACKERMAN, Susan; PALIFKA, Bonnie Jo. Corrupção e governo.
Tradução de Eduardo Lessa. Rio de Janeiro: FGV, 2020.
SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. A expansão do direito penal: aspectos da
política criminal nas sociedades pós-industrais. Tradução de Luiz Otavio
de Oliveira Rocha. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.
394

Responsabilidade pessoal pela


ineficiência funcional - análise à
luz das modificações operadas pela
lei n. 14.230/21

Claudia de Abreu Monteiro de Castro1


Juíza de Direito no estado de São Paulo

Sumário: Introdução. 1. Estado gerencial: a eficiência como parâmetro


de atuação do administrador. 2. Má gestão pública, ineficiência funcional
e as mudanças operadas pela lei n. 14.230/21. 3. Dever de eficiência:
a remanescente tutela e os requisitos para responsabilidade civil do agente
público ineficiente. 5. Proposições conclusivas. Bibliografia.

Resumo: este artigo pretende evidenciar que a eficiência é um princí-


pio com valor normativo cuja frustração pode ensejar a responsabilidade
pessoal do agente público, mesmo diante das alterações promovidas pela
lei n. 14.230/21. Afora do campo da improbidade, a intenção é jogar luz
para a persistência dos mecanismos remanescentes de proteção dos direitos
difusos em jogo, o direito à eficiência e à racionalização e preservação
do patrimônio público, dando ênfase, no campo das sanções direcionadas
ao agente público, à responsabilidade civil.

Introdução

O advento da lei n. 14.230/21 acendeu intenso debate sobre as


razões, conveniência e adequação das reformas produzidas no campo da
improbidade administrativa. A par dos aplausos e críticas, com o advento
da norma, cuja vigência se iniciou em 26 de outubro de 2021, inaugura-se
novo cenário de imputação de responsabilidade pessoal ao agente público.
A improbidade administrativa passa a ganhar contornos cada vez mais

1
Juíza de Direito Titular da 1ª Vara de Pederneiras.
494 Claudia de Abreu Monteiro de Castro

específicos e restritos, aproximando-se quase que integralmente do direito


administrativo sancionador. A pretensão do legislador, bem-sucedida
ou não, parece ser clara: descolar a improbidade do campo da tutela dos
direitos difusos.
A anterior previsão de imputação de prática de improbidade por
atos culposos, quando deles adviessem danos ao erário, permitia que,
em casos de grave ineficiência funcional, o agente fosse pessoalmen-
te responsabilizado. A partir da inovação legal, se a ineficiência não
decorrer de atuação maliciosa, desonesta do agente público, não mais
receberá guarida da lei de improbidade.
Para evitar a paralização e lamentos inerentes ao discurso dos
críticos quanto à subtração da modalidade culposa, este artigo preten-
de enfatizar a via remanescente de promoção de responsabilidade
pessoal do agente público quando frustrada a eficiência de maneira
grave, mas não dolosa.
Importante registrar, e este é o ponto de início deste excerto,
que a eficiência deve ser um valor caro aos órgãos de controle da
atuação da Administração Pública, e, consequentemente, de seus
gestores pela qual esta se manifesta. A uma porque a centralidade da
crise de legitimidade institucional da Administração parece passar –
há décadas, diga-se – pela frustração da população com relação às
expectativas nela depositadas. A reforma administrativa materializou
esse sentimento de insatisfação, sendo que naquele momento, pelas
reformas constitucionais e legais promovidas, esperou-se pacificação
dos anseios frustrados.
Anos depois, parece que a crise de legitimidade e confiança quanto
à atuação estatal não arrefeceu, o que, na pós-modernidade, pode
ser identificado a partir das manifestações de 2013 e todos os demais
eventos que permeiam a recente história de nosso país.
A alteração da lei de improbidade é mais um ingrediente nesse
caldo. Nesse contexto, de modo a fortalecer o sistema normativo cuja
promessa é a atuação eficiente da Administração Pública, este artigo
pretende jogar luz na sua importância, fornecendo critérios para
responsabilidade civil pessoal do agente público que frustre a promessa
de eficiência e contribua para a persistência da multifatorial crise de
legitimidade e confiança depositada no Estado.
Responsabilidade pessoal pela ineficiência funcional -
análise à luz das modificações operadas pela lei n. 14.230/21 495

1. Estado gerencial: a eficiência como parâmetro de atuação


do administrador

O exercício da função administrativa sofreu profundas alterações ao


longo dos anos, sendo que as mudanças na conformação de seu exercício
passam pelos diferentes desenhos e anseios relacionados ao modo de agir
da Administração Pública.
A passagem do modelo burocrático para o modelo gerencial constitui
promessa para superação das crises econômicas que advieram no último
terço dos anos 19902. Nesse escopo, dois são os movimentos que visam
imprimir eficiência na atuação da Administração: (i) redução de despesas;
(ii) controle de resultados3.
O modelo burocrático teve sua importância e razão de ser, dando
ênfase ao procedimento, à forma, como garantia da boa Administração,
tudo com o objetivo de garantir a observância da legalidade e da impes-
soalidade. Nesse momento em que se estruturou o Estado de Direito,
a submissão à vontade do legislador reduz a liberdade do administrador.
Com o advento do Estado gerencial, não basta, para legitimar a
atuação da Administração, o cumprimento de formalidades. A atuação
somente será reconhecida como legítima se produzir resultados, gerando o
maior benefício com o emprego do menor volume de recursos disponíveis.
No Brasil, o marco fundamental da reforma gerencial da adminis-
tração pública é a Emenda Constitucional 19/984. Com a modificação da
Constituição, a eficiência passou a integrar o rol de princípios expressos

2
A respeito das motivações que impulsionaram tais mudanças, cito Luiz Carlos Bresser-Pereira:
“A causa fundamental por trás dessa primeira onda de reformas era a crise fiscal do Estado;
o objetivo ilusório, caminhar em direção ao estado mínimo desejado pelos ideólogos neoliberais.
Já nos anos 90, quando essa proposta se demonstrou ser irrealista do ponto de vista econômico
(não produzia desenvolvimento) e político (não tinha apoio dos eleitores), surge uma segunda geração
de reformas, encabeçadas pela reforma da administração pública, que têm como objetivo principal
reconstruir o Estado. Na primeira geração de reformas, já se falava em reforma administrativa mas
era confundida com o mero downsizing” (BRESSER-PEREIRA, 1998, p. 231).
3
De acordo com Fernando Luiz Abrucio: “A crise do Estado afetou diretamente a organização das
burocracias públicas. Primeiro a redução de gastos com pessoal, que era em vista como uma saída
necessária – os discursos das administrações de Thatcher e Reagan representaram o ponto máximo
dessa tendência. Segundo, a necessidade de aumentar a eficiência governamental, o que, para boa
parte dos reformadores da década de 80, implicava uma modificação profunda do modelo weberiano,
classificado como lento e excessivamente apegado as normas. Em suma, considerava-se o antigo modelo
ineficiente”. (ABRUCIO, 2006, p. 176-177).
4
Fruto das discussões que acompanharam o Plano Diretor da Reforma do Estado elaborado em 1995.
496 Claudia de Abreu Monteiro de Castro

previstos no art. 37, foram fixados limites para a remuneração de servi-


dores e estipulou-se a racionalização dos serviços públicos.
Nessa ordem de ideias, um dos mecanismos empregados para tornar
o gestor público mais eficiente, poroso às necessidades atuais frente à
complexidade social particular daquele momento, é a maximização do
espaço da discricionariedade do administrador. Revelando a tensão que se
coloca a partir dessa técnica, Maria Sylvia Zanella di Pietro pondera que

[…] os adeptos da Reforma da Administração Pública


propugnam pela ampliação da discricionariedade:
a ideia de substituir a Administração burocrática
pela Administração gerencial depende, em grande
parte, do reconhecimento de maior liberdade
decisória aos dirigentes; […] de outro lado,
há tendência também bastante forte, calcada no
direito positivo e na Constituição, que defende
maiores limites à discricionariedade administrativa,
exatamente pelo fato de que a sua atuação
tem fundamento na lei, mas também tem que
observar os limites impostos pelos princípios e
valores adotados explícita ou implicitamente pela
Constituição. Hoje a discricionariedade é limitada
(DI PIETRO, 2018, p. 36).

Assim, a discricionariedade constitui a arena em que se desenvolve –


ou deveria se desenvolver, pela perspectiva gerencial – a maior parte
das ações do gestor público. Discricionariedade constitui-se, nos termos
da norma de competência, em uma pluralidade de decisões legítimas.
O ato discricionário pressupõe que o gestor, antes de praticá-lo, ponderou
dentro de um espectro de margem de apreciação, sempre balizada pelos
limites do ordenamento jurídico.
A proliferação de normas que impõem programas, metas, e que
concedem ao administrador a faculdade de praticar determinados atos
não cogentes amplia a incidência de atos discricionários. E, no contexto
da introdução da eficiência como fator de balizamento de atuação do
exercício da função administrativa, a pluralidade de opções legítimas
passa pelo cotejo da eficiência, sendo que, nessa ordem de ideias, escolhas
que frustrem de maneira desmedida o dever de eficiência estão fora do
campo da discricionariedade. Consequentemente, sendo a opção ilegítima,
é passível de controle judicial, não apenas para anulação do ato, mas,
conforme se verá adiante, para responsabilizar o incauto agente público.
Responsabilidade pessoal pela ineficiência funcional -
análise à luz das modificações operadas pela lei n. 14.230/21 497

Conclui-se que com a adoção do Estado gerencial, a eficiência passa


a transbordar a esfera do desejo geral: torna-se um direito do cidadão,
um dever do Estado, e, para o que nos interessa prioritariamente nessa
incursão, um parâmetro de controle e responsabilização exercido pelo
Poder Judiciário.

2. Má gestão pública, ineficiência funcional e as mudanças operadas


pela Lei n. 14.230/21

A noção jurídica, dentro do direito administrativo, de boa administração –


e seu oposto, a má gestão pública – não passa unicamente pela observância
da legalidade. É necessário introduzir o elemento ético, tivesse ele ou não
previsão expressa na lei. Comentando a respeito, Fabio Medina Osório:

Ser bom administrador não equivaleria, em suas


origens, apenas ao mero cumprimento da lei,
da mesma forma como o mau administrador poderia
descumprir preceitos ligados à ética institucional,
à moral administrativa. Foi um ataque ao pensamento
positivista estrito predominante naquele momento
histórico. (OSÓRIO, 2022, p. 44).

Em acréscimo, conforme dito alhures, com a introdução da eficiên-


cia como fator de balizamento da atuação do Estado, não basta que a
atuação seja legal e ética. Deve produzir o resultado almejado com a
racionalização possível dos custos. Em outras palavras: a grave ineficiência
é uma das formas de má gestão pública, independentemente de terem
sido observados (i) os trâmites legais; (ii) inexistente a má-fé.
Neste último campo, Fabio Medina Osório (2022) chama a atenção
para o fato de que, a despeito do debate público centrar-se primordial-
mente no âmbito da corrupção5, esta constitui apenas uma das muitas
formas de má gestão pública. A má-fé não é o único elemento capaz de
causar danos sociais pelo exercício inadequado da função administrativa.

5
A questão da má gestão pública, em um marco mais geral, suporta problemas muito complexos e de
efeitos devastadores, que não se reduzem à corrupção ou mais especificamente à corrupção pública
e nem por isso podem situar-se num marco secundário de importância (OSÓRIO, 2022, p. 39).
498 Claudia de Abreu Monteiro de Castro

Assim, com o advento do Estado gerencial, não basta a ética como


móvel para aferição da boa conduta. O controle passa a ser realizado
na medição de resultados, ou seja, a posteriori, independentemente do
móvel do agente. A ética, portanto, tal qual elemento contrário à má-fé,
encontra-se no campo subjetivo, pré-existente à conduta. O resultado,
como fator de medição de eficiência, é verificado no campo objetivo,
posteriormente à prática do ato.
São esses os parâmetros de avaliação que, neste estudo breve, serão
segmentados, demonstrando-se a necessidade de tratamento diverso pelo
diferente desvalor da conduta, sem descuidar da necessária avaliação dos
resultados. De um lado, no campo do móvel do agente, a desonestidade
funcional, cuja lei de improbidade se encarregou de tutelar. De outro lado,
a ineficiência funcional, que, se apartada do elemento doloso, não encontra
remédio no campo da lei de improbidade a partir das inovações operadas
pela lei n. 14.230/21.
Mais adiante serão mencionados os parâmetros de sancionamento pela
prática de atos ineficientes, mas o que pode se adiantar, além da neces-
sidade de identificação de prejuízo, é que para fins de responsabilidade
do agente público é imprescindível que o dano seja praticado a título de
culpa. Isso porque, conforme se disse, se a frustração da eficiência dá-se
por desonestidade, o campo de atuação sancionadora é a improbidade
administrativa. Se a ineficiência não é decorrente de má-fé, somente
será sancionada a conduta caso se verifique que o agente agiu com culpa,
atraindo para si o regime jurídico da responsabilidade, em sentido amplo,
dos servidores públicos.
Daí a importância para o tema da supressão, pela lei n. 14.230/21,
da existência de condutas culposas no âmbito da improbidade administrativa.
Em sua conformação inicial, a lei de improbidade permitia o controle
judicial do agir administrativo ineficiente, quando praticado com culpa.
É o que se extrai da anterior redação original dada ao art. 10 da lei
n. 8.249/926. Consoante já se disse, a previsão não resistiu à reforma da
lei de improbidade administrativa operada pela lei n. 14.230/21.

Art. 10. Constitui ato de improbidade administrativa que causa lesão ao erário qualquer ação ou
6

omissão dolosa, que enseje, efetiva e comprovadamente, perda patrimonial, desvio, apropriação,
malbaratamento ou dilapidação dos bens ou haveres das entidades referidas no art. 1º desta Lei,
e notadamente (redação original).
Responsabilidade pessoal pela ineficiência funcional -
análise à luz das modificações operadas pela lei n. 14.230/21 499

No campo que nos interessa, duas alterações são especialmente


relevantes: a subtração da previsão legal da punição por atos culposos
que causem prejuízo ao erário (vide alterações no art. 10), bem como a
exigência de tipicidade expressa no que toca às condutas violadoras aos
princípios da administração pública (vide alterações no art. 11).
No tocante a este último, chama a atenção que nenhuma das condu-
tas com tipicidade expressa consiste em violação direta ao princípio da
eficiência, de modo que, ressalvada a ineficiência que decorre de parte
das condutas desonestas, tal princípio deixa de ser tutelado diretamente
pela via da improbidade. Ainda que algumas hipóteses de dano ao erário
constituam, por evidente, frustração à eficiência, a exigência de dolo
parece ser um fator distintivo para que, sob o manto da improbidade,
apenas atos eivados de má-fé possam ser sancionados7. Em outras palavras,
a ineficiência, entendida fora do campo da intenção deliberada de obtenção
de proveito pessoal, próprio ou de terceiros, não constitui improbidade.
Mas constitui ilícito. Como valor normativo que é, do princípio
constitucional que impõe a eficiência confluem deveres específicos cuja
frustração pode ensejar responsabilização.
Diante disso, pergunta-se: a conduta ineficiente, quando não colorida
pelo elemento da desonestidade, ainda encontra espectro de sanciona-
mento no ordenamento jurídico?
É evidente que sim.
O que as alterações na lei de improbidade promovem é uma diferen-
ciação nos graus de sancionamento da má gestão pública. Consoante
já dito, a má gestão pública, como gênero, não se reduz à improbidade.
A grave ineficiência funcional dos agentes públicos também é espécie de
má gestão pública, que, pelo grau distinto de reprovabilidade, deve ser
sancionada à sua maneira e tendo em conta balizas específicas. Não é
a lei de improbidade o instrumento que serve à repressão de condutas

7
Nesse sentido alguns dos parágrafos do art. 1º, que, quase repetitivos, evidenciam a necessidade de
comprovação de dolo:
Art. 1º […]
§ 1º Consideram-se atos de improbidade administrativa as condutas dolosas tipificadas nos arts. 9º,
10 e 11 desta Lei, ressalvados tipos previstos em leis especiais.
§ 2º Considera-se dolo a vontade livre e consciente de alcançar o resultado ilícito tipificado nos arts. 9º,
10 e 11 desta Lei, não bastando a voluntariedade do agente.
§ 3º O mero exercício da função ou desempenho de competências públicas, sem comprovação de ato
doloso com fim ilícito, afasta a responsabilidade por ato de improbidade administrativa.
500 Claudia de Abreu Monteiro de Castro

ineficientes. Mas a responsabilidade civil dos gestores públicos, por meio


das demandas propulsionadas pelo sistema de proteção direitos difusos.
De certa forma, a opção do legislador foi guardar maior proporciona-
lidade entre o desvalor da conduta e o sancionamento. A desonestidade é,
sem dúvidas, mais reprovável do que a ineficiência, do ponto de vista da
perspectiva subjetiva do sujeito. Tendo em vista a densidade das penas
previstas no art. 12 da lei n. 8.429/92, o Poder Legislativo restringiu sua
incidência para o primeiro caso.
Conclui-se que a má gestão pública implica em toda violação aos
deveres oriundos ao postulado da boa gestão, o que abarca desde a
corrupção, em sua gradação mais grave, mas também a grave ineficiência
funcional. A improbidade fica relegada a sancionar atos eivados de má-fé,
chamados, na lei, de dolo. Mas reduzir o sistema de tutela da eficiência
administrativa à improbidade é menosprezar os danos causados pelas
condutas não ímprobas, mas integrantes do corpo da má-gestão pública.
Na linha do que mencionado anteriormente, a despeito do menor desva-
lor da conduta, o desvalor do resultado, em casos de grave ineficiência
funcional, pode ser enorme. O prejuízo causado – não apenas aos cofres
públicos, mas à estima da Administração perante a sociedade – faz parte
da corrosão de credibilidade do Estado que há mais de 40 anos parece
permear o imaginário da população.
Como direito difuso que é, a eficiência pode e deve ser tutelada, e,
sua frustração, sancionada nos limites da proporcionalidade.

3. Dever de eficiência: a remanescente tutela e responsabilização


do agente público ineficiente

De proêmio, importante dizer que não se cogita observância ao


princípio republicano sem que os agentes públicos, responsáveis pelo
trato inadequado da coisa pública, sejam pessoalmente responsabilizados
por tal falta. Cabe ao ordenamento o balizamento e o fornecimento de
critérios para tanto, mas a irresponsabilidade está fora do campo de
trabalho da Constituição Federal.
Pois bem, constatada a ineficiência e percebida como um fator
frustrante para as metas objetivamente alcançáveis, além da atuação na
contramão da racionalização possível dos custos, interessa saber os meios
de controle jurisdicional e responsabilidade cabíveis.
Responsabilidade pessoal pela ineficiência funcional -
análise à luz das modificações operadas pela lei n. 14.230/21 501

Para os objetivos deste estudo, a centralização do debate cinge-se à


responsabilidade pessoal do agente público, sem descuidar da existência de
mecanismos para controle dos atos administrativos direcionados à própria
Administração. En passant, pode-se mencionar a ação civil pública tal
qual um mecanismo de tutela da eficiência, sendo que o pedido mediato
poderá direcionar-se à anulação de atos reputados como ineficientes8.
Nessa esteira, sabe-se que o Estado, conforme pessoa jurídica que é,
age ou omite-se a partir das condutas materializadas por seus propostos,
os agentes públicos. São estas pessoas, cujo comportamento no exercício
da função administrativa imputa-se ao ente abstrato, que, em caso de
grave ineficiência funcional, poderão ser pessoalmente responsabilizadas.
Pois bem, os campos de responsabilização, subtraída a responsa-
bilidade por improbidade administrativa, são aqueles delineados pelo
art. 121 da lei n. 8.112/909. Ou seja, o exercício irregular de suas funções,
abrangida aqui a atuação ineficiente, poderá ensejar responsabilidade
civil, penal e administrativa do servidor. Interessa-nos a responsabili-
dade civil, a qual, nos termos do art. 122 do mesmo diploma, decorre de
“ato omissivo ou comissivo, doloso ou culposo, que resulte em prejuízo
ao erário ou a terceiros” .
Tendo em vista esse parâmetro inicial, forneceremos os parâmetros
para responsabilização civil do agente público gravemente ineficiente.
O primeiro pressuposto para responsabilidade pessoal dos agentes
públicos no controle da eficiência é a competência para tomada e execução
de decisões no campo da competência discricionária.
Nessa esteira, é preciso retomar uma premissa fundamental: aquele
que age de maneira flagrantemente ineficiente transborda para fora
dos limites da competência discricionária. Em outras palavras: não nos
interessa, para fins de responsabilização, que o agente, dentre das opções

8
Para tanto, considera-se que a eficiência da Administração, como mecanismo de prestígio aos interesses
públicos primários e secundários, e meio de racionalização das verbas públicas, constitui direito difuso,
abrangido, nesses termos, pelo espectro de proteção do art. 1º, IV, da lei n. 7.347/85: Art. 1º Regem-se
pelas disposições desta Lei, sem prejuízo da ação popular, as ações de responsabilidade por danos
morais e patrimoniais causados: IV - a qualquer outro interesse difuso ou coletivo. 
9
Embora se trate de lei federal, aplica-se, como vetor interpretativo, aos servidores dos demais entes
federados. Não por outro motivo o dispositivo serviu de fundamento para julgamento no RE 1027633/SP,
Rel. Min. Marco Aurélio, em que se assentou a tese da dupla garantia no que toca ao acionamento direto
do servidor público pelo terceiro que sofrer prejuízo. No caso julgado, tratava-se de servidor municipal.
502 Claudia de Abreu Monteiro de Castro

legítimas10, escolha a menos eficiente. Nem toda frustração de resultados


pode ensejar a responsabilização. Existe uma margem de falibilidade
humana e funcional juridicamente tolerável. Nas palavras de Fabio
Media Osório

Isso porque ao sujeito é de ser outorgado certo


espaço tolerável de ineficiência, se considerarmos
esse termo vinculado à ideia de metas e resultados.
A frustração desses objetivos, embora possa
constituir suporte de uma determinada ineficiência,
certamente ficará fora do alcance de uma órbita
punitiva ou correcional (OSÓRIO, 2022, p. 63).

As dificuldades inerentes ao exercício da gestão pública não passa-


ram despercebidas pelo legislador, que pretendeu enfatizar a existência
da margem de tolerância quando das alterações promovidas na Lei de
Introdução às Normas do Direito Brasileiro, mais precisamente no art. 22,
o qual dispõe que “na interpretação de normas sobre gestão pública,
serão considerados os obstáculos e as dificuldades reais do gestor e as
exigências das políticas públicas a seu cargo, sem prejuízo dos direitos
dos administrados” .
Então, é o ato praticado fora dos contornos da discricionariedade
que sujeita o agente público à responsabilidade. Se a discricionariedade
é entendida como uma pluralidade de decisões legítimas, o ato grave-
mente ineficiente está à margem dessas opções. Para tanto, a percepção
de que a decisão não se enquadra na arena da discricionariedade deve
ser perceptível no âmbito de uma zona de certeza a respeito do tema.
Quero dizer o seguinte: se há dúvida, quanto à adequação da decisão
dentro da arena da discricionariedade, não me parece ser o caso de
grave ineficiência funcional, tendo em conta os parâmetros fornecidos
pelo dispositivo acima mencionado. Por outro lado, se a decisão tomada

10
Sobre o tema, para identificação do conteúdo da legitimidade das decisões possíveis, dentro do feixe
da norma de competência, o fator de balizamento deve ser a realização do interesse público. Ensina
Luis Manuel Fonseca Pires que “na competência discricionária encontram-se duas ou mais soluções como
uma pluralidade de opções legítimas, como uma liberdade, um indiferente, dentre as opções que são
definidas prima facie pela norma de competência; e mesmo diante do caso concreto, se persistirem
as opções - ao menos duas -, continuará a existir a discricionariedade administrativa. Sem dúvida
alguma, a escolha por qual ou tal opção concreta deve nortear-se pela melhor opção à realização do
interesse público”. (PIRES FONSECA, 2008, p. 148).
Responsabilidade pessoal pela ineficiência funcional -
análise à luz das modificações operadas pela lei n. 14.230/21 503

pelo administrador, pelo juízo da prudência mediana acessível a qualquer


cidadão, for evidentemente ilegítima, é esta certeza positiva que ensejará
sua responsabilização.
Trata-se, no fundo, da aferição da culpa do agente público na produ-
ção de ato ineficiente. É a frustração das metas por imprudência, negli-
gência e imperícia que dá azo à responsabilidade. Evidencia-se, a partir
da exigência da culpa, que a responsabilidade pessoal do agente público
está no campo da responsabilidade subjetiva.
No que toca à existência de prejuízo, o agente público somente
será responsabilizado caso se identifique que, em razão de sua atuação
ineficiente, seja qualificado e quantificado dano ao erário. Isto é, não é
qualquer ineficiência que poderá ser imputada, no campo da responsa-
bilidade civil, ao agente ineficiente, sendo imprescindível que dela se
extraia prejuízo material. Logicamente, o prejuízo deve ser atribuível à
conduta – positiva ou negativa – do agente público, do que se extrai a
necessidade de verificação do nexo causal.
Sendo o erário prejudicado, a demanda poderá ser propulsionada
pelo ente público lesado, sendo o Ministério Público legitimado concor-
rente, que poderá manejar ação civil pública em defesa do direito difuso
à eficiência e da preservação do patrimônio público.
Por fim, exemplos podem auxiliar na elucidação do que foi dito até o
momento. Em um caso recentemente julgado, o Ministério Público havia
ajuizado ação de improbidade em detrimento de determinado gestor
de hospital que havia recebido verbas públicas por meio de convênio.
Segundo se apurou, havia verba remanescente disponível para aquisição
de insumos, sendo que a disponibilidade era limitada até o último dia
do ano, quando deveria ser restituída ao poder público. O gestor deixou
transcorrer lapso temporal significativo para aquisição dos insumos, e,
no mês de dezembro, imbuído no intuito de fazer uso completo da verba
pública disponível, realizou aquisição apressada, cujo resultado foi a
realização de compra em valores acima do que efetivamente praticados
no mercado durante o ano. A alta dos preços no derradeiro mês do ano
deu-se porque alguns fornecedores informaram o fechamento das fábricas
naquela altura do ano. A sentença registrou a violação à eficiência:

A corrida desenfreada para compra de insumos antes


do limite temporal para devolução dos repasses
representa evidente má administração dos recursos
504 Claudia de Abreu Monteiro de Castro

públicos, o que viola, por evidente, o princípio da


eficiência. Ademais, conforme aponta relatório
pericial (fl. 622), algumas empresas fornecedoras
dos referidos produtos hospitalares, mesmo
tendo sido pagas e dezembro de 2012, ou seja,
no mesmo mês da compra, entregaram os produtos
que venderam somente no ano seguinte, o que
demonstra “não haver urgência nem risco de crise”
no atendimento hospitalar que justificasse a compra
dos insumos por valor superior. Sobre o princípio da
eficiência, deve ser entendido como o dever de boa
administração. Trata-se da obrigação de busca do
melhor desempenho no exercício da atribuição, com a
finalidade de buscar melhores resultados. Conclui-se
que a compra está maculada pelo verniz da ilicitude.
Não porque dispensada a licitação, como descrito na
petição inicial, mas porque violada diretriz básica da
administração de recursos públicos. (BRASIL, 2022)

Veja-se: no caso, não se extraiu dolo – no sentido qualificável a


título de improbidade – mas culpa do gestor incauto. Não se identificou a
intenção de beneficiamento pessoal ou de terceiro. Aliás, não comprovado
qualquer conluio ou ajuste prévio com as empresas vendedoras, até porque
foi realizada prévia pesquisa de orçamentos. Mas é evidente que frustrado
o dever de boa gestão, atuando o agente, naquela oportunidade, em franca
violação às normas objetivas de cuidado com a coisa pública.
O desfecho do caso foi o julgamento de improcedência da ação de
improbidade11, até porque, assentada a atuação culposa, com o advento

Operou-se o trânsito em julgado. Ementa: DEMANDA DE RESPONSABILIZAÇÃO POR ATOS DE IMPROBIDADE


11

ADMINISTRATIVA. AQUISIÇÃO DE BENS COM VALORES SUPERIORES AOS DE MERCADO E SEM OBSERVÂNCIA
DO PROCESSO LICITATÓRIO. SENTENÇA DE PARCIAL PROCEDÊNCIA NA ORIGEM. - Ainda que haja indicações
suficientes, na espécie, de imprudência nas aquisições objeto, calha que apreender uma ilegalidade,
a parte rei, não é o quanto basta para assentar uma correspondente improbidade. Nem toda actio
contra legem é necessariamente actio improba, porque esta última exige, para logo, um atributo
de perversão, de corrupção, de dissolução moral, e, além disto, que se trate de dolo ou culpa com
alguma intensidade (ou seja, não é todo desvio, não é o pecadilho, não é a falta leve). - Além disto,
admitiu-se, na origem, infringência culposa da norma do inciso V do art. 10 da Lei 8.429, de 1992,
conduta que, com o advento da Lei 14.230, de 2021, somente atrairá sanções por sua prática dolosa.
Provimento da apelação do demandado. Não acolhimento do recurso da Promotoria pública da Comarca”
(TJSP; Apelação 1000897-73.2017.8.26.0306; Relator (a): Ricardo Dip; Órgão Julgador: 11ª Câmara de
Direito Público; Foro de José Bonifácio - 2ª Vara; Data do Julgamento: 21/06/2022; Data de Registro:
21/06/2022) (BRASIL, 2022).
Responsabilidade pessoal pela ineficiência funcional -
análise à luz das modificações operadas pela lei n. 14.230/21 505

da lei n. 14.230/21, foi suprimida a previsão infringência culposa ao


art. 10 da Lei 8.429/92.
Ocorre que, a partir do estudo que se fez até o momento, conclui-se
nesse mesmo caso, caso intentada dentro do prazo prescricional, caberia
pretensão de responsabilizar civilmente o agente público responsável pela
compra dos insumos hospitalares.
Aplicando tudo o que se expôs até o momento, verifica-se (i) a compe-
tência para a gestão e administração dos recursos, sendo que dentro
do espectro de atribuições do agente está a realização de pesquisa de
preços e aquisição de insumos; (ii) a conduta comissiva praticada não está
no campo das decisões legítimas, de modo que não está protegida pela
margem de apreciação decorrente da discricionariedade; (iii) a ineficiência
é perceptível prima facie pela prudência média, do que se extrai a conduta
culposa; (iv) da ineficiência resultou dano quantificável, eis que há diferença
de preço entre a aquisição e a média de mercado; (v) existente o nexo
de causalidade entre o prejuízo e a conduta do agente.

4. Proposições conclusivas

Infelizmente, são comuns os exemplos que permeiam o Poder


Judiciário, não sendo raras as situações, muitas vezes noticiadas pela
mídia, em que a Administração Pública realiza a aquisição de bens com
validade próxima à expiração, não utiliza os bens adquiridos previstos
para aquele ano, tornando-os inservíveis para o ano seguinte, não realiza
planejamento adequado de despesas, entre outros exemplos. Basta uma
breve busca nos jornais para que seja constatado que o projeto de
Administração Gerencial parece cada vez mais uma promessa esvaziada.
A grave ineficiência é uma faceta da má gestão pública, sendo que,
até o advento da lei n. 14.230/21, cabia o sancionamento de tal conduta
via lei de improbidade. Após a inovação legislativa, quando destituída do
elemento desonesto, a grave ineficiência praticada fora dos limites do
dolo específico de malversação dos recursos públicos foi extirpada desse
sistema sancionador.
Sem embargos, é necessária a atuação repressiva em detrimento
de agentes públicos ineficientes, se não no duro campo da improbidade,
ao menos no campo da responsabilidade civil, de modo a não embargar a
aplicação do princípio republicano. A bem da verdade, parece-nos que o
sistema se harmonizou, nesse campo, com a proporcionalidade, eis que o
506 Claudia de Abreu Monteiro de Castro

menor desvalor da conduta desprovida de desonestidade induz a adequação


da limitação de responsabilidade ao campo patrimonial. O causador
do dano, que, por culpa, foi tão ineficiente a ponto de causar danos ao
erário, deve recompô-lo em igual medida.
Não se ignora a dificuldade do exercício da função administrativa,
o que vem sendo reconhecido no campo normativo por meio das alterações
legislativas recentes mencionadas anteriormente. O exercício da discricio-
nariedade, palco principal do exercício da gestão pública, vem ganhando
complexidade, mas nem por isso pode servir de escudo quando as decisões
do gestor transbordarem aos limites da ineficiência. Até porque, se grave-
mente ineficiente, a conduta não atende ao interesse público, não se
encontrando dentro da moldura em que se desenvolve a pluralidade de
decisões legítimas.
E, nessa linha de raciocínio, foram propostos elementos para a
atuação sancionadora no campo da responsabilidade civil, para os fins
que nos interessam: (i) competência para a prática de ato discricionário;
(ii) o ato realiza opção que, dentre as possíveis, não é legítimo à vista
da realização do interesse público, frustrando o princípio da eficiência;
(iii) culpa do gestor, na medida em que a ineficiência é perceptível prima
facie pela prudência média; (iv) dano ao erário; (v) nexo de causalidade
entre o prejuízo e a conduta do agente.
A responsabilidade civil dos agentes públicos não representa novidade
em nosso sistema, e parece-nos ser a resposta para que atos culposos
antes abarcados pela lei de improbidade sejam atualmente sancionados.
O ressentimento – legitimado ou não – com as alterações promovidas
pela lei n. 14.230/21, não pode ofuscar a existência de remédios à inefi-
ciência, inclusive com a responsabilização pessoal dos agentes públicos.
É essa a contribuição que este artigo pretende entregar: a ineficiência
pode e deve ser sancionada, persistindo mecanismos à disposição dos
legitimados para tanto.

Bibliografia

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a reforma da administração pública à luz da experiência internacional
recente. In: BRESSER-PEREIRA, Luiz Carlos; SPINK, Peter (org.). Reforma
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Introdução às Normas do Direito Brasileiro. Rio de Janeiro: Poder
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BRASIL. Lei nº 8.112, de 11 de dezembro de 1990. Dispõe sobre o regime
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aplicáveis em virtude da prática de atos de improbidade administrativa,
de que trata o §  4º do art. 37 da Constituição Federal; e dá outras
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BRASIL. Tribunal de Justiça Estado de São Paulo. Apelação 1000897-
73.2017.8.26.0306, de 21 de junho de 2022. DEMANDA DE RESPONSABILIZAÇÃO
POR ATOS DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. AQUISIÇÃO DE BENS COM
VALORES SUPERIORES AOS DE MERCADO E SEM OBSERVÂNCIA DO PROCESSO
LICITATÓRIO. SENTENÇA DE PARCIAL PROCEDÊNCIA NA ORIGEM. Relator:
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PIRES FONSECA, Luis Manuel. Controle judicial da discricionariedade
administrativa: dos conceitos jurídicos indeterminados às políticas
públicas. São Paulo: Fórum, 2008.
Acordo de não persecução cível: um
novo instrumento a serviço do combate
à improbidade administrativa1

Non-Persecution Agreement in
administrative improbity statute:
a new instrument to combat
administrative misconduct

Alexandra Fuchs de Araújo2


Juíza de Direito no estado de São Paulo

Alexandre Jorge Carneiro da Cunha Filho3


Juiz de Direito no estado de São Paulo

Sumário: 1. Introdução; 2. Consensualidade e atuação administrativa:


a busca por uma ação estatal de resultados; 3. Acordo de Não Persecução
Cível – ANPC - fazendo acordos com o ímprobo; 4. Os desafios para o
adequado manejo do ANPC; 4.1. A resistência de ordem cultural e as
dificuldades procedimentais antes do advento da Lei nº 14.230/2021;
4.2. Etapas previstas para a procedimentalização adequada do ANPC à luz
do art. 17-B da Lei nº 8.429/1992; 5. Conclusão; 6. Bibliografia.

Resumo: neste ensaio tratamos da introdução na nossa legisla-


ção do acordo de não persecução cível para ilícitos tipificados na Lei

1
A primeira versão deste texto foi publicada na Revista Digital da Escola Superior da Advocacia da
OAB/RJ, v. 3, ano 3, 2021. Disponível em: https://materiais.esa.oabrj.org.br/agradecimento-revista-
-esa-edicao-3. Acesso em: 25 set. 2021. Agora os autores retomam o tema em razão da aprovação da
Lei nº 14.230/2021, que trouxe requisitos específicos para a celebração do acordo de não persecução
civil no âmbito da Lei nº 8.429/1992, a justificar, portanto, uma reflexão acadêmica acerca do novo
quadro normativo hoje vigente a respeito do instituto.
2
Doutora em Direito do Estado. Professora da Escola Paulista da Magistratura. Pesquisadora vinculada
ao Grupo de Pesquisas DPP (Direito e Políticas Públicas) da Universidade de São Paulo (USP).
3
Doutor e mestre em Direito de Estado. Professor da Escola Paulista da Magistratura. Pesquisador vin-
culado ao Centro de Estudos de Direito Administrativo, Ambiental e Urbanístico (Cedau).
510 Alexandra Fuchs de Araújo e Alexandre Jorge Carneiro da Cunha Filho

de Improbidade Administrativa. Após contextualizarmos o tema sob a


perspectiva de estudos que preconizam a ampliação do uso de soluções
concertadas no exercício do Poder estatal como meio de se conferir maior
legitimidade e eficiência ao serviço público, discorremos sobre desafios
para o manejo republicano do instituto em nosso sistema jurídico.

Abstract: in this essay we discuss the introduction of the non-prosecution


agreement in the Statute n. 8.429/92. After contextualizing the theme
from the perspective of studies that advocate the expansion of the use of
concerted solutions in the exercise of State power as a means of providing
greater legitimacy and efficiency to the public service, we deal with
challenges for the republican management of the institute in our system.

Summary: 1. Introduction; 2. Consensuality and administrative action:


the search for responsiveness; 3. The non-prosecution agreement in the statute
n. 8.429/92; 4. Challenges and perspectives; 5. Conclusion; 6. Bibliography.

Palavras-chave: acordo de não persecução cível; lei de improbidade


administrativa; consensualidade; responsividade.

Keywords: non-prosecution agreement; administrative misconduct


statute; consensuality; responsiveness.

1. Introdução

O Código de Processo Civil de 2015 – CPC foi construído de forma


participativa e democrática. O respectivo procedimento agregou “novos
pontos de vista e possibilidades a partir, como dito no seu art. 1º, dos valores
e normas fundamentais estabelecidos na Constituição da República”4,

4
PEREIRA JÚNIOR, Jessé Torres; MARÇAL, Thaís. A convergência entre cooperação processual e consen-
sualidade administrativa, na gestão do Estado Democrático de Direito. In: OLIVEIRA, Rafael Carvalho
Rezende; MARÇAL, Thaís. Temas Relevantes de Processo Administrativo: 20 anos da Lei 9.784/1999,
Salvador: Juspodivm, 2019. p. 99-111.
Acordo de não persecução cível: um novo instrumento
a serviço do combate à improbidade administrativa 511

inaugurando uma nova etapa de diálogo entre o direito processual civil


e outros ramos das ciências jurídicas.
Destaca-se no novo CPC o princípio da cooperação, expresso no seu
art. 6º, segundo o qual “todos os sujeitos do processo devem cooperar
entre si para que se obtenha, em tempo razoável, decisão de mérito
justa e efetiva”.
Importado do direito europeu5, o novo princípio é um instrumento
vocacionado a permitir uma decisão judicial dialógica, colaborativa,
consensual, não necessariamente imposta às partes pelo Estado-juiz.
De acordo com Jessé Torres e Thaís Marçal:

Do art. 6º da Lei nº 13.105/2015 infere-se que o NCPC


é um código de sujeitos processuais coparticipativos/
cooperativos, afastada a centralidade do juiz ou
das partes, daí Marinoni, Arenhart e Mitidierro
sublinharem que o novo modelo processual outorga
nova dimensão ao papel do magistrado na condução
do processo, isonômico na sua condução e assimétrico
quando decide, ou seja, (i) é paritário no diálogo
e (ii) assimétrico na decisão. Tanto que, segundo
Guilherme Rizzo Amaral, o modelo cooperativo
pressupõe a efetiva participação das partes na
solução do caso, assim como os deveres judiciais:
(i) de diálogo; (ii) de auxílio; (iii) e de prevenção6.

O princípio da cooperação reclama a colaboração entre as pessoas


envolvidas em um litígio, “além de gerar o direito de as partes partici-
parem efetivamente do processo, em diálogo com o órgão jurisdicional
para a construção da solução mais justa para o caso concreto”7.
Uma das perspectivas pelas quais se pode analisar a introdução
do acordo de não persecução cível – ANPC em nosso sistema jurídico é
justamente a da busca de um processo judicial efetivo, de resultados que
justifiquem a sua razão de ser, e para os quais a cooperação entre seus

5
KOCHEM, Ronaldo. Introdução às raízes históricas do princípio da cooperação (Kooperationsmaxime).
Revista de Processo, v. 251, 2016. Disponível em: http://www.mpsp.mp.br/portal/page/portal/
documentacao_e_divulgacao/doc_biblioteca/bibli_servicos_produtos/bibli_boletim/bibli_bol_2006/
RPro_n.251.04.PDF. Acesso em: 27 jan. 2021.
6
PEREIRA JÚNIOR, Jessé Torres; MARÇAL, Thaís. Op. cit., p. 102
7
PEREIRA JÚNIOR, Jessé Torres; MARÇAL, Thaís. Op. cit., p. 102.
512 Alexandra Fuchs de Araújo e Alexandre Jorge Carneiro da Cunha Filho

atores pode, a depender das circunstâncias, corresponder ao meio mais


eficiente de se alcançar um desfecho que melhor atenda às expectativas
de seus interessados.
Neste ensaio vamos tratar da previsão de solução concertada em ações
de improbidade administrativa sob tais luzes, situando o crescimento do
manejo de módulos consensuais no nosso Direito Público como reflexo da
aspiração por uma Administração Pública mais responsiva, cuja atuação
não seja indiferente aos seus frutos para o bem-estar coletivo.

2. Consensualidade e atuação administrativa: a busca por uma


ação estatal de resultados

O princípio da cooperação processual, vigente de modo expresso em


nosso direito positivo desde 2015, ainda está em busca de canais que permi-
tam sua concretização no auxílio ao adequado equacionamento de litígios.
Tal postulado, contudo, não é imune a críticas, como se observa da
reflexão de Elpídio Donizetti:

O dever de cooperação, entretanto, encontra limites


na natureza da atuação de cada uma das partes.
O juiz atua com a marca da equidistância e da
imparcialidade, a qual não pode ser comprometida
por qualquer promiscuidade com as partes.
Por outro lado, o dever do advogado é a defesa do
seu constituinte. A rigor, não tem ele compromisso
com a realização da justiça. Ele deverá empregar
toda a técnica para que as postulações do seu cliente
sejam aceitas pelo julgador. Essa é a baliza que deve
conduzir o seu agir cooperativo. Em sendo assim,
meu caro leitor, retire da cabeça aquela imagem –
falsamente assimilada por alguns com o advento do
novo CPC – de juiz, autor e réu andando de mãos
dadas pelas ruas e advogado solicitando orientação ao
juiz para redigir as peças processuais. Não obstante
a apregoada cooperação, no fundo, será cada um
por si, o que não impede que a lealdade e a boa-fé
imperem nas relações processuais8.

8
DONIZETTI, Elpídio. Curso didático de direito processual civil. 19. ed. São Paulo: Atlas, 2016. p. 42-43.
Acordo de não persecução cível: um novo instrumento
a serviço do combate à improbidade administrativa 513

A opção por um processo civil mais dialógico, entretanto, não implica


o comprometimento da posição equidistante do juiz em relação às partes,
como imaginam alguns críticos. A imparcialidade não pode ser confundida
com neutralidade: o juiz é imparcial no julgamento, mas, a nosso ver,
não pode ser indiferente diante do desenrolar dos atos processuais.
A primeira contribuição relevante da positivação do princípio em tela
no CPC, portanto, pode ser entendida como um comando para que o juiz
abandone uma posição passiva diante dos atos processuais, a qual poderia
ser esperada por alguns como desdobramento do ideal de sua neutralidade
(ou imparcialidade, para quem confunde os dois conceitos), e adote uma
posição estratégica, com foco na solução do conflito submetido à sua
apreciação, e não apenas do processo que lhe dá forma.
A necessidade de um juiz estratégico já foi identificada por Susana
Henriques da Costa, nos processos que envolvem conflitos de interesse público:

A definição judicial sobre políticas públicas implica


mudança de rumos na gestão da administração e
realocação de recursos públicos que podem vir a
prejudicar outros direitos sociais. Tudo isso deve
ser levado em conta pelo juiz quando da decisão,
de forma a equilibrar os valores em jogo e buscar um
equacionamento mais adequado do conflito.
A função judicial deve também, nesse novo contexto,
ser estratégica. Essa característica se refere,
em especial, à postura adotada pelo magistrado na
execução de decisões envolvendo a implementação
de políticas públicas, em especial em demandas
coletivas. O cumprimento desta espécie de decisão
é complexo e desloca para a fase satisfativa do
processo um alto grau de atividade cognitiva9.

A postura estratégica, hoje, é uma necessidade para que o processo


atinja seu fim maior, qual seja, a solução do conflito subjacente à relação
processual, e é um caminho a ser perseguido pelo magistrado, em conso-
nância com o quanto previsto no artigo 6º do CPC, segundo o qual “todos

9
COSTA, Susana Henriques da. A imediata judicialização dos direitos fundamentais sociais e o mínimo
existencial: relação direito e processo. In: GRINOVER, Ada P.; WATANABE, Kazuo; COSTA, Susana H.
da (coord.). O processo para solução de conflitos de interesse público. Salvador: Juspodivm, 2017.
p. 397-422. p. 404.
514 Alexandra Fuchs de Araújo e Alexandre Jorge Carneiro da Cunha Filho

os sujeitos do processo devem cooperar entre si para que se obtenha,


em tempo razoável, decisão de mérito justa e efetiva, ou seja, com o
princípio da cooperação”.
O dever de cooperação permeia todos os processos judiciais, mas adquire
matizes específicos naqueles de interesse público, nos quais é exigido do juiz
um olhar mais aprofundado para o emaranhado de questões de fato e de
direito subjacente ao pedido formulado pelas partes, já que a sua solução
via imposição heterônoma muitas vezes não se esgota em efeitos individuais
bem delimitados, sem qualquer transbordamento para o mundo exterior.
Esse tipo de demanda de alguma forma se conecta com uma ação do
Poder Executivo, um grande litigante cuja atuação diária toca milhares de
pessoas, sendo que, a depender de como a decisão judicial for proferida,
o processo até poderá chegar ao fim do ponto de vista formal, mas não
solucionar, ou mesmo comprometer, a qualidade da ação administrativa
envolvida ou atingida pelo pronunciamento do Estado-juiz.
Considerando essa particularidade, a doutrina passa a falar em
um processo civil de interesse público, em contraposição a um direito
processual voltado exclusivamente à solução de controvérsias privadas
entre indivíduos singulares, como explica Carlos Alberto Salles:

A expressão utilizada (processo civil de interesse


público), no entanto, tem por finalidade chamar a
atenção para uma característica que não é do processo
em si, mas do tipo de interesse que passou a ser
objeto de adjudicação a partir da introdução em nosso
sistema processual das chamadas ações coletivas.
Pretende-se, com essa designação, distinguir aquelas
lides nas quais a prestação jurisdicional recai sobre
interesses individuais de outras, nas quais o objeto do
processo é uma decisão sobre um interesse público.
Observe-se que a oposição aqui estabelecida não é
simétrica entre direito privado e direito público,
cuja base está, sobretudo, na definição de um campo
de atuação do Estado. O público, no sentido pretendido
nesse trabalho, é definido não em contraposição
ao privado, mas ao individual, indicando aqueles
interesses pertencentes à generalidade das pessoas10.

10
SALLES, Carlos Alberto. Processo Civil de Interesse Público. In: GRINOVER, Ada Pellegrini; WATANABE,
Kazuo; COSTA, Suzana Henriques. O processo para solução de conflitos de interesse público. Salvador:
Juspodivm, 2017. p. 193-228. p.194.
Acordo de não persecução cível: um novo instrumento
a serviço do combate à improbidade administrativa 515

Assim, de forma mais intensa no processo civil de interesse público


do que no processo civil de interesse privado, o juiz tende a assumir a
posição estratégica que lhe é autorizada pelo artigo 6º do CPC, e pode
instigar a participação das partes, de modo a proferir uma sentença
que seja, de fato, a melhor solução para o conflito latente ao processo,
com maior vantagem para a sociedade.
Nesse sentido, afirma Humberto Theodoro Júnior:

[…] O novo CPC brasileiro esposa ostensivamente


o modelo cooperativo, no qual a lógica dedutiva
de resolução de conflitos é substituída pela lógica
argumentativa, fazendo que o contraditório,
como direito de informação/reação, ceda espaço a
um direito de influência. Nele, a ideia de democracia
representativa é complementada pela de democracia
deliberativa no campo do processo, reforçando, assim,
“o papel das partes na formação da decisão judicial”11.

A ideia de cooperação, neste contexto, cabe como uma luva para o


processo civil de interesse público, já que dialoga perfeitamente com o
modelo de administração dialógica, que é o defendido pela doutrina do
século XXI como aquele que substituirá o de administração insular, pautada
em um agir precipuamente unilateral e imperativo, que se dá em um iter
supostamente blindado do contato com os cidadãos, que foi aquele que
marcou o desenvolvimento da burocracia estatal entre os séculos XVII e XX12.
Em outra oportunidade, aliás, por um dos coautores do presente
ensaio já foi observado:

Esta necessidade de participação, no Estado


moderno, “põe em relevo uma nova configuração
da função administrativa, propondo readequações
na estrutura e gestão administrativas, notadamente

11
THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de direito processual civil: teoria do direito processual civil,
processo de conhecimento e procedimento comum. 56. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2015. p. 81-83.
12
“A democracia implica, além da atribuição do poder decisório às maiorias, a instauração de diálogo
permanente com as minorias, de respeito pela posição do outro e de garantia dos direitos Fundamentais,
sem exclusão. Por isto que a administração pública dialógica contrasta com a administração pública
monológica, refratária à instituição e ao desenvolvimento de procedimentos comunicacionais com a
sociedade, mercê da multiplicação das redes sociais e de seus instrumentos de comunicação instan-
tânea, em tempo real” (PEREIRA JÚNIOR, Jessé Torres e MARÇAL, Thaís. Op. cit., p. 104).
516 Alexandra Fuchs de Araújo e Alexandre Jorge Carneiro da Cunha Filho

voltadas à valorização do processo de diálogo” , e se


refere a quatro diferentes mudanças de atitude desta
função: 1) identificação do interesse público de modo
compartilhado com a população; 2) ao decréscimo da
discricionariedade; 3) atenuação da unilateralidade
na formação dos atos administrativos; e 4) às práticas
contratuais baseadas no consenso, negociação e
conciliação de interesses13.

Quando se está falando em alterar a forma prioritária da ação adminis-


trativa, ou seja, de unilateral para dialógica/consensual, talvez o principal
móvel seja o de busca de resultados da gestão. O gestor, preocupado com
as consequências da sua decisão, com o meio mais eficiente de satisfazer
o interesse público, pondera se seria melhor agir de forma autoritária,
ou com a oitiva e colaboração dos interessados, de modo a garantir a
eficiência da ação governamental desencadeada pelo exercício da compe-
tência que lhe cabe14.
Existe uma simetria clara entre o dever da Administração de dialogar
com os cidadãos e o dever dos magistrados de dialogar com as partes,
na busca da melhor solução para o conflito. Esse diálogo, por óbvio, deve se
dar dentro das regras processuais, com a observância do contraditório,
da ampla defesa, do princípio da não surpresa, visando à melhor solução
para o conflito, ou seja, a decisão mais eficiente para a sociedade, que vê
o seu nível de bem-estar incrementado pela ação estatal.
A cooperação entre as partes no processo pode conduzir a ajustes,
se não em relação à totalidade do conflito, ao menos quanto à parte dos
seus pontos controversos. Como concluíram Ana Paula Gonçalves Silva e
Frederico de Andrade Gabrich:

Uma vez que o princípio da cooperação visa a ordenar


o comportamento das partes, como já explanado,
para dar maior eficácia à solução dos conflitos,
além de se obter uma menor duração do tempo do
processo e menor dispêndio financeiro para o Estado,

13
ARAÚJO, Alexandra Fuchs. Participação democrática na administração. São Paulo: Quartier Latin,
2019. p. 22.
14
CHEVALLIER, Jacques. L’État post-moderne. 3. ed., Paris: LGPD, 2008, p. 138 et seq.; ROSANVALLON,
Pierre. Le bom gouvernement. Paris: Seuil, 2015. p. 212-213; MARQUES NETO, Floriano de A.; FREITAS,
Rafael Véras de. Comentários à Lei nº 13.655/2018. Belo Horizonte: Fórum, 2019. p. 105.
Acordo de não persecução cível: um novo instrumento
a serviço do combate à improbidade administrativa 517

não se pode deixar de associá-lo também aos meios de


solução consensual dos conflitos, como, por exemplo,
a mediação e a conciliação (art. 3º, §3º CPC), mesmo
no curso do processo (BRASIL, 2015).
[…]
De fato, são diversas as vantagens da solução
consensual de conflitos, tais como, dentre outros:
a pacificação social; diminuição significativa de custos
financeiros e emocionais; a celeridade; a sensação
de controle pelas próprias partes do procedimento,
com consequente sensação de satisfação e segurança;
e a maior possibilidade de se levar a efeito o acordo
realizado, já que as próprias partes o firmaram.
(BUZZI, 2017, p. 270).
Nesse sentido, a mediação, a conciliação e a
arbitragem surgem, portanto, como estratégias
jurídicas que podem utilizadas para atingir o
desiderato do princípio da cooperação, que é a
obtenção da solução de conflito de forma justa,
efetiva, sustentável e em tempo razoável15.

A doutrina questiona, entretanto, quanto à possibilidade de aplicação


do princípio da cooperação à esfera penal ou da improbidade administrativa,
em razão do bem jurídico em jogo nesse tipo de causa.

3. Acordo de não persecução cível – fazendo acordos com o ímprobo

No âmbito penal, quando se pensa nos efeitos que a introdução da


colaboração premiada no nosso sistema trouxe em termos de desvendar
esquemas criminosos e recuperar recursos, fica difícil defender que o
mecanismo da ação penal tradicional seja o que melhor propicie a satis-
fação de pautas públicas.
A colaboração premiada, introduzida no ordenamento pela
Lei 12.850/2013, tutela o interesse público de maneira muito mais eficaz
que a proibição de negociação, já que permite que intrincados esquemas

15
SILVA, Ana Paula Gonçalves; GABRICH, Frederico de Andrade. Princípio da cooperação: do conflito
à solução consensual dos conflitos. Revista de Processo, Jurisdição e Efetividade da Justiça, 2018.
Disponível em: https://www.indexlaw.org/index.php/revistaprocessojurisdicao/article/view/4032/pdf.
Acesso em 17 jan. 2021.
518 Alexandra Fuchs de Araújo e Alexandre Jorge Carneiro da Cunha Filho

de corrupção sejam descobertos e punidos, o que, sem a colaboração


dos participantes, provavelmente não seria possível. O Supremo Tribunal
Federal inclusive já se posicionou sobre a importância do acordo de
colaboração premiada como instrumento relevante para coibir delitos,
sobretudo contra o erário16.
No mesmo sentido, não há motivos para crermos que resultados
menos promissores serão alcançados pelo nosso aparato de justiça com a
introdução de autorização legal expressa de solução concertada no bojo
das ações de improbidade administrativa, instrumento integrante do
microssistema processual de tutela coletiva da probidade administrativa,
juntamente com a Lei nº 12.846/13.
A aplicação isolada na Lei nº 8.429/1992, editada num momento
histórico em que ainda prevalecia o estímulo a um sistema judicial baseado
no conflito, muitas vezes não colabora para a pacificação social, o que
justifica as críticas bastante contundentes feitas à lei por parte de diversos
doutrinadores, do que é exemplo a reflexão de Marco Perez:

O punitismo inerente ao sistema de controle instituído


pela Lei nº 8.429/1992, em que pese agradar
aparentemente à opinião pública, não colabora
com a melhoria da ação estatal simplesmente
porque a correção da atuação da Administração não
é sua razão principal de existir. Nesse contexto,
sob o impulso muitas vezes incontido e irracional
das massas e da mídia política e investigativa,
a jurisdição faz um uso cada vez mais intenso dos
princípios gerais do direito administrativo (a lei em
seu art. 11 menciona os “princípios da administração
pública” e cita expressamente os “deveres de
honestidade, imparcialidade, legalidade e lealdade
às instituições”). Ao contrário, no entanto, o uso
comumente feito desses princípios em outros
ordenamentos, aqui eles não são utilizados como
instrumento de conformação jurídica das condutas
da Administração em defesa do administrado,
mas como fundamento jurídico para a punição
de supostos infratores da probidade, fato que

16
ALGAYER, Tassiane Castamann. O acordo de leniência na Lei de Improbidade Administrativa. Revista
Eletrônica AJUFESC, Florianópolis, v. 9, 2020. p. 17.
Acordo de não persecução cível: um novo instrumento
a serviço do combate à improbidade administrativa 519

majora desmedidamente a discrição sancionatória


de magistrados, a ponto de inserir o exercício da
jurisdição nas perigosas fronteiras da perseguição
política, as singela emissão de opiniões políticas
subjetivas do julgador ou do mais puro arbítrio17.

Dessa forma, a redação conferida pela Lei nº 13.964/2019 ao §1º do


art. 17 da Lei nº 8.429/1992, que previa expressamente a possibilidade
de realização de acordo de não persecução cível envolvendo as apurações
feitas com base nesse último diploma, chegou em boa hora, oferecendo
maior coerência a um quadro normativo que, admitindo conciliação para
o desfecho de casos envolvendo ilícitos de maior gravidade (crimes18),
ainda a vedava formalmente em ilícitos de reprovabilidade normalmente
mais moderada19.
Pouco tempo depois, a Lei nº 14.230/2021, promovendo grandes
(e em parte bastante controversas20) alterações na Lei de Improbidade
Administrativa, revogou o referido §1º do art. 17, introduzindo em seu
texto um art. 17-B, segundo o qual:

Art. 17-B. O Ministério Público poderá, conforme


as circunstâncias do caso concreto, celebrar acordo
de não persecução civil, desde que dele advenham,
ao menos, os seguintes resultados:
I - o integral ressarcimento do dano;
II - a reversão à pessoa jurídica lesada da
vantagem indevida obtida, ainda que oriunda de
agentes privados.
§ 1º A celebração do acordo a que se refere o caput
deste artigo dependerá, cumulativamente:

17
PEREZ, Marcos Augusto. Testes de legalidade: métodos para o amplo controle jurisdicional da discri-
cionariedade administrativa, Belo Horizonte: Fórum, 2020. p. 274.
18
Vide a disciplina prevista para a colaboração premiada na Lei 12.850/2013, com a redação que agora
lhe foi dada pela Lei nº 13.964/2019 (art. 3-A et seq.).
19
Art. 17 da Lei 8.429/1992, em sua redação original: “A ação principal, que terá o rito ordinário,
será proposta pelo Ministério Público ou pela pessoa jurídica interessada, dentro de trinta dias da
efetivação da medida cautelar. § 1º É vedada a transação, acordo ou conciliação nas ações de que
trata o caput”(grifo nosso).
20
Como se pode constatar das matérias veiculadas nas ações diretas de inconstitucionalidade n. 7042 e
7043 propostas em face da nova lei.
520 Alexandra Fuchs de Araújo e Alexandre Jorge Carneiro da Cunha Filho

I - da oitiva do ente federativo lesado, em momento


anterior ou posterior à propositura da ação;
II - de aprovação, no prazo de até 60 (sessenta) dias,
pelo órgão do Ministério Público competente
para apreciar as promoções de arquivamento
de inquéritos civis, se anterior ao ajuizamento
da ação;
III - de homologação judicial, independentemente
de o acordo ocorrer antes ou depois do ajuizamento
da ação de improbidade administrativa.
§ 2º Em qualquer caso, a celebração do acordo a
que se refere o caput deste artigo considerará a
personalidade do agente, a natureza,
as circunstâncias, a gravidade e a repercussão
social do ato de improbidade, bem como as
vantagens, para o interesse público, da rápida
solução do caso.
§ 3º Para fins de apuração do valor do dano a ser
ressarcido, deverá ser realizada a oitiva do Tribunal
de Contas competente, que se manifestará,
com indicação dos parâmetros utilizados, no prazo
de 90 (noventa) dias.
§ 4º O acordo a que se refere o caput deste artigo
poderá ser celebrado no curso da investigação
de apuração do ilícito, no curso da ação de
improbidade ou no momento da execução da
sentença condenatória.
§ 5º As negociações para a celebração do acordo a
que se refere o caput deste artigo ocorrerão entre
o Ministério Público, de um lado, e, de outro,
o investigado ou demandado e o seu defensor.
§ 6º O acordo a que se refere o caput deste artigo
poderá contemplar a adoção de mecanismos e
procedimentos internos de integridade, de auditoria
e de incentivo à denúncia de irregularidades e a
aplicação efetiva de códigos de ética e de conduta no
âmbito da pessoa jurídica, se for o caso, bem como
de outras medidas em favor do interesse público e
de boas práticas administrativas.
§ 7º Em caso de descumprimento do acordo a que
se refere o caput deste artigo, o investigado ou
o demandado ficará impedido de celebrar novo
acordo pelo prazo de 5 (cinco) anos, contado
Acordo de não persecução cível: um novo instrumento
a serviço do combate à improbidade administrativa 521

do conhecimento pelo Ministério Público do


efetivo descumprimento.

Vencido o óbice legal para que a prática da conciliação também passe


a fazer parte do dia a dia da jurisdição na seara da improbidade21, resta a
resistência cultural e algumas dificuldades de ordem prática existentes
a respeito, sendo que, conforme referido linhas acima, o instituto não só
é consentâneo com um modelo Estado dialógico, atento aos efeitos que
sua atuação possa produzir na realidade, como também com o princípio
da cooperação insculpido no art. 6º do CPC/2015.

4. Os desafios para o adequado manejo do ANPC

4.1. A resistência de ordem cultural e as dificuldades procedimentais


antes do advento da Lei nº 14.230/2021

Nada obstante o equacionamento da questão sob o prisma legislativo,


a justiça negociada, por não fazer parte da nossa tradição jurídica22,

21
Valendo registrar que mesmo antes da alteração legislativa em comento havia posicionamento no
sentido da viabilidade da celebração de acordos no âmbito das ações de improbidade administrativa
considerando uma leitura sistemática do nosso arcabouço legal que disciplina a matéria (art. 60
da Lei nº 9.099/1995, art. 86 da Lei nº 12.529/2011, art. 3 da Lei nº 12.850/2013 e art. 16 da
Lei nº 12.846/2013). Nesse sentido ver MEGNA, Bruno Lopes. O “compromisso” para prevenir ou
regular a compensação a irregularidades: um “negócio jurídico administrativo-processual”. In: CUNHA
FILHO, Alexandre J. C. da; ISSA, Rafael H.; SCHWIND, Rafael W. Lei de Introdução às Normas do
Direito Brasileiro: anotada. São Paulo: Quartier Latin, 2019. v. 2, p. 380-388. p. 386; e SCHWIND,
Rafael Wallbach. Celebração de acordos nas ações de improbidade: necessidade de revisão do art. 17,
§1º, da Lei nº 8,429 à luz da evolução legislativa e da noção de self-cleaning do direito europeu.
In: CUNHA FILHO, Alexandre J. C. da; OLIVEIRA, André Tito da M.; ISSA, Rafael H.; SCHWIND, Rafael W.
(coord.). Direito, instituições e políticas públicas: o papel do jusidealista na formação do Estado.
São Paulo: Quartier Latin, 2017. p. 777-797. p. 794 et seq.
22
Os estudantes de nossas faculdades de Direito normalmente são instruídos a pensar na solução de
litígios pelo modelo adversarial, o que, no âmbito do Direito Público, ainda ganha o complicador
pela grande resistência para conciliar que a Fazenda Pública costuma apresentar em juízo, postura
que até pouco tempo atrás era defendida sob a alegação da indisponibilidade do interesse público
aliada à falta de autorização legal expressa para tanto. Quanto a este último aspecto parte da
doutrina sustenta que a introdução do art. 26 na LINDB representaria uma cláusula geral para a
celebração de acordos pela Administração Pública, o que, no contexto examinado, supriria a dita
carência legal. A respeito ver GUERRA, Sérgio; PALMA, Juliana B. de. Art. 26 da LINDB: novo re-
gime jurídico de negociação com a Administração Pública. Revista de Direito Administrativo,
Rio de Janeiro, p. 135-169, Rio de Janeiro, nov. 2018. Edição especial: Direito Público na Lei de
Introdução às Normas do Direito Brasileiro – LINDB (Lei nº 13.655/2018). p. 138 et seq.; VIANA,
Camila R. Cunha. O artigo 26 da LINDB e a consolidação do direito administrativo consensual.
522 Alexandra Fuchs de Araújo e Alexandre Jorge Carneiro da Cunha Filho

ainda deve percorrer um caminho de amadurecimento antes de revelar


seu potencial para aprimoramento de políticas públicas estatais.
Ao menos três questões nesse percurso nos parecem fundamentais.
Uma é a reflexão sobre o papel que o Estado deve ter na vida em coletivo.
Nossa Administração Pública, tendo uma origem dissociada do compro-
misso de prestar serviços de qualidade para a população23, ainda não
completou sua transformação rumo a tal objetivo.
Para que serve uma persecução penal ou por improbidade administra-
tiva? Esses processos são um fim em si mesmo ou seriam instrumentos para
a consecução de pautas de interesse geral como a tutela do patrimônio
público e da moralidade no desempenho dos afazeres estatais? Dizer que
“não se admitirá acordo” em uma ação versando sobre crimes ou atos
ímprobos, isso significa que eles terão uma punição exemplar e haverá a
recuperação de recursos desviados? Qual é a finalidade da pena em um
dado ordenamento jurídico24?
Absorvidos por uma rotina usualmente estafante do contencioso em
grandes centros urbanos, a maioria dos atores do nosso sistema de Justiça
não se dá ao luxo de fazer essas indagações de ordem filosófica, o que
de certa forma acaba por resumi-los à condição de engrenagens de uma
máquina que não pode parar, pautada pelo ritmo dos números tal como
lhes é assinalado pelos respectivos órgãos correcionais25.

In: CUNHA FILHO, Alexandre J. C. da; ISSA, Rafael H.; SCHWIND, Rafael W. Lei de Introdução às
Normas do Direito Brasileiro: anotada. São Paulo: Quartier Latin, 2019. v. 2, p. 339-344. p. 339;
MARQUES NETO, Floriano de A.; FREITAS, Rafael Véras de. Comentários à Lei nº 13.655/2018. Belo
Horizonte: Fórum, 2019. p. 102 et seq.
23
FAORO, Raymundo. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. 3. ed. São Paulo:
Globo, 2001. p. 198 et seq.
24
Floriano A. Marques Neto e Rafael Véras Freitas, após ponderarem que a discussão judicial sobre uma
sanção pode demorar anos nos escaninhos do nosso aparato de Justiça, sustentam: “[…] no âmbito de
um Estado Democrático de Direito a sanção deve ser a ultima ratio. É que, como já se teve oportuni-
dade de asseverar de que ‘dessa constatação parte outra de que a sanção não é um fim em si, mas um
dos meios – e não o único – para se evitar o descumprimento de uma obrigação jurídica e para viabi-
lizar a consecução das políticas públicas estabelecidas para um determinado setor’ “(MARQUES NETO,
Floriano de A.; FREITAS, Rafael Véras de. Comentários à Lei nº 13.655/2018. Belo Horizonte: Fórum,
2019. p. 105).
25
Para maiores elementos sobre a visão dos autores deste ensaio a respeito do tema, ver CUNHA
FILHO, Alexandre J. C. da; ARAÚJO, Alexandra Fuchs de. Multiplicando litígios: a eleição da métrica
sentenças-por-minuto como um meio sem fim: que lições podemos extrair da insolvência da UNIMED
Paulistana? In: COSTA, Daniel C. G. da; FONSECA, Reynaldo S. da; BANHOS, Sérgio S.; CARVALHO NETO,
Tarcísio V. de (coord.). Democracia, justiça e cidadania: desafios e perspectivas: homenagem ao Ministro
Luís Roberto Barroso. Belo Horizonte: Fórum, 2020. t. 2, p. 311-327.
Acordo de não persecução cível: um novo instrumento
a serviço do combate à improbidade administrativa 523

Ocorre que esse frenesi, como não deixa mentir o alto nível de
insatisfação dos contribuintes com o serviço público, vem fazendo água,
não habilitando nosso Judiciário a dar a atenção merecida aos fabulosos
crimes cometidos diariamente contra o erário, enquanto, por outro lado,
seus integrantes continuam a produzir estatísticas vistosas no que se
refere ao “batidão” das varas criminais, que geralmente envolve crimes
patrimoniais de porte pequeno a moderado, além do tráfico de drogas,
praticados via de regra por réus pobres e/ou usuários de drogas26.
No âmbito da ação de improbidade a realidade não é diferente.
Quantas ações do tipo envolvem enriquecimento sem causa e prejuízo
aos cofres públicos? Qual o tempo médio de tramitação desses feitos e,
ao final, qual o resultado produzido (em termos de punição dos envolvidos,
recuperação de recursos desviados e aprimoramento do funcionamento
das repartições a evitar que novos delitos da mesma espécie se repitam
no futuro)? Em havendo necessidade de produção de prova técnica nos
respectivos feitos, essa consegue ser realizada, apesar da isenção prevista
no art. 18 da Lei 7.347/8527? Em caso negativo, as instituições competentes
para analisar a matéria, incluindo órgãos acusadores, estão se empenhando
para a solução do impasse?
Entendendo o processo de improbidade como um processo civil de
interesse público, que reclamaria, segundo os ditames de um Estado
dialógico e responsivo28, uma ação estratégica por parte dos atores do
sistema de Justiça com vistas à satisfação de objetivos caros ao bem-estar
da população, imaginamos que esse tipo de análise precise começar a ser
feito pelos integrantes de nossas instituições29.

26
Para uma visão crítica sobre a jurisdição exercida entre nós para esse tipo de crime, ver SEMER, Marcelo.
Sentenciando tráfico: o papel dos juízes no grande encarceramento. São Paulo: Tirant, 2019.
27
Art. 18. Nas ações de que trata esta lei, não haverá adiantamento de custas, emolumentos, honorários
periciais e quaisquer outras despesas, nem condenação da associação autora, salvo comprovada má-fé,
em honorários de advogado, custas e despesas processuais (Disponível em: http://www.planalto.gov.
br/ccivil_03/leis/l7347orig.htm. Acesso em: 27 jan. 2021).
28
Que, como já apontado linhas acima, esse é justamente o modelo de Estado preconizado pela doutrina
contemporânea que se dedica ao tema, como se vê em CHEVALLIER, Jacques. L’État post-moderne.
3 ed. Paris: LGPD, 2008. p. 82 et seq., p. 239 et seq.; ROSANVALLON, Pierre. Le bon gouvernement.
Paris: Seuil, 2015. p. 212 et seq.; FERRAZ, Luciano. Controle e consensualidade: fundamentos para o
controle consensual da Administração Pública. 2. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2020. p. 88 et seq.
29
Alvissareira a respeito da notícia que o Ministério Público do Estado de São Paulo começou a adotar
como parâmetro de mensuração de suas atribuições critérios como “resolutividade” e “impacto social”
da atuação ministerial, tal como noticiado por EXNER, Tereza Cristina Maldonado Katurchi; SOUZA,
Motauri Ciocchetti de. Novas perspectivas de atuação da Corregedoria-Geral do Ministério Público
524 Alexandra Fuchs de Araújo e Alexandre Jorge Carneiro da Cunha Filho

Apenas assim será possível definir com alguma clareza quais


os propósitos a serem perseguidos com a ação de improbidade e,
dessa forma, refletir sobre como o seu desfecho pela via concertada
pode favorecer a empreitada30.
Respondida a primeira indagação, a segunda questão que se coloca
com a positivação do acordo de não persecução cível na Lei nº 8.429/1992
é como tal ferramenta pode ser empregada legitimamente em nosso
sistema, favorecendo a produção dos resultados visados com a ação de
improbidade, sem gerar distorções deletérias de outras ordens.
Quanto ao ponto, há toda uma agenda a ser elaborada, isso conside-
rando as críticas que passaram a ser feitas, com maior ou menor razão,
a partir da experiência incipiente aurida nos últimos anos com o uso
colaboração premiada em casos rumorosos envolvendo altas autoridades
da República.
Não vigendo mais o postulado de “indisponibilidade” da ação de
improbidade, exige-se do agente competente para a propositura do acordo
observância a procedimento pré-determinado31, transparência quanto
aos critérios adotados para aceitar conciliação em alguns casos e não em
outros, motivação adequada acerca da utilidade do manejo do instituto
para fins de satisfação de interesses públicos relevantes e vinculação a
precedentes gerados com a prática32.

de São Paulo: mudança de paradigmas. Cadernos Jurídicos, São Paulo, ano 21, nº 55, p. 163-168,
2020. p. 166 et seq.
30
Nesse sentido, ao menos no contexto do direito comunitário europeu, vale registrar que hoje ganha
relevância a chamada “self-cleaning”, em substituição à veia punitiva, como meio de se punir pessoas
físicas responsáveis por crimes e ilícitos cometidos em âmbito empresarial, mas resguardando a pessoa
jurídica respectiva enquanto elemento gerador de riqueza e cumpridor de função social. Logo, o que
se tem no exemplo dado é uma avaliação consequencialista do manejo da competência sancionatória
estatal, que para ser exercida legitimamente passa a depender de um filtro de proporcionalidade.
Sobre o mecanismo, ver SCHWIND, Rafael Wallbach. Celebração de acordos nas ações de improbidade:
necessidade de revisão do art. 17, §1º, da Lei nº 8,429 à luz da evolução legislativa e da noção de
self-cleaning do direito europeu. In: CUNHA FILHO, Alexandre J. C. da; OLIVEIRA, André Tito da M.;
ISSA, Rafael H.; SCHWIND, Rafael W. (coord.). Direito, instituições e políticas públicas: o papel do
jusidealista na formação do Estado. São Paulo: Quartier Latin, 2017. p. 777-797. p. 782 et seq.
31
Quanto ao ponto, relevantes as considerações feitas por Carlos Vinícius Alves Ribeiro sobre balizas a
serem adotadas para o exercício legítimo da atuação extrajudicial do Ministério Público, dentre as quais
está justamente a sua procedimentalização (RIBEIRO, Carlos Vinícius Alves. Ministério Público: funções
extrajudiciais: histórico, natureza jurídica, discricionariedade, limites e controle. Belo Horizonte:
Fórum, 2015. p. 163 et seq.).
32
SOUZA, Luciane Moessa de. Meios consensuais de solução de conflitos envolvendo entes
públicos -negociação, mediação e conciliação na esfera administrativa e judicial. Belo Horizonte:
Acordo de não persecução cível: um novo instrumento
a serviço do combate à improbidade administrativa 525

Quanto ao procedimento e critérios para a celebração do ajuste, com o


veto da Presidência ao art. 17-A que seria introduzido na Lei nº 8.429/1992
pela Lei nº 13.964/201933, havia uma lacuna a respeito, a qual vinha em
alguma medida sendo preenchida via atribuição regulamentar a cargo de
órgãos do Ministério Público34.
À vista da anomia parcial então verificada sobre a matéria no nosso
sistema35, alguns elementos já nos pareciam importantes para o controle
da discricionariedade que era conferida aos gestores e ao Ministério Público
para o manejo do ANPC nas ações de improbidade:

Fórum, 2012. p. 174-175; SANTOS, Bruno Grego. Transação extrajudicial na Administração Pública.
São Paulo: RT, 2019. p. 280-281.
33
A redação do dispositivo vetado sob o argumento de que seria inadequado reservar apenas ao Ministério
Público a possibilidade de formular proposta de acordo na ação de improbidade, era a seguinte:
“art. 17-A. O Ministério Público poderá, conforme as circunstâncias do caso concreto, celebrar acordo
de não persecução cível, desde que, ao menos, advenham os seguintes resultados: I – o integral res-
sarcimento do dano; II – a reversão, à pessoa jurídica lesada, da vantagem indevida obtida, ainda
que oriunda de agentes privados; III – o pagamento de multa de até 20% (vinte por cento) do valor do
dano ou da vantagem auferida, atendendo a situação econômica do agente. § 1º Em qualquer caso,
a celebração do acordo levará em conta a personalidade do agente, a natureza, as circunstâncias,
a gravidade e a repercussão social do ato de improbidade, bem como as vantagens, para o interesse
público, na rápida solução do caso. § 3º As negociações para a celebração do acordo ocorrerão entre
o Ministério Público e o investigado ou demandado e o seu defensor. § 4º O acordo celebrado pelo
órgão do Ministério Público com atribuição, no plano judicial ou extrajudicial, deve ser objeto de
aprovação, no prazo de até 60 (sessenta) dias, pelo órgão competente para apreciar as promoções de
arquivamento do inquérito civil. § 5º Cumprido o disposto no § 4º deste artigo, o acordo será encami-
nhado ao juízo competente para fins de homologação” (Disponível em: http://www.planalto.gov.br/
ccivil_03/_Ato2019-2022/2019/Lei/L13964.htm#art6. Acesso em: 27 jan. 2021).
34
Do que é exemplo a Resolução de nº 1.193/2020-CPJ, de 11 de março de 2020, do Ministério Público do
Estado de São Paulo, a qual refere em sua fundamentação a Resolução nº 179/2017 do CNJ, que antes
da alteração legislativa em comento já admitia a conciliação no âmbito da improbidade adminis-
trativa. Para consulta do primeiro texto (Disponível em: http://biblioteca.mpsp.mp.br/PHL_IMG/
RESOLUCOES/1193.pdf. Acesso em 27 jan. 2021). Para uma discussão sobre o ponto, ver CRHAK,
Victor Gomes. Acordo de não persecução cível. 2021. Monografia (Especialização em Direito Público) –
Escola Paulista da Magistratura, São Paulo, 2021. p. 39 et seq.
35
A anomia parcial, a nosso ver, não impedia a aplicação do instituto, tal como defendido por Gajardoni:
“Primeiro de tudo, acreditamos que a ausência de disciplina legal não é impedimento para a celebração
dos acordos, até por conta do entendimento de que isso já era possível mesmo antes do advento da
lei 13.964/2019. Até que venha a necessária lei em sentido estrito a disciplinar o tema genérica e
nacionalmente, o Conselho Nacional do Ministério Público (art. 130-A, § 2º, da CF) e as Procuradorias
de Justiça, no âmbito de suas atribuições, poderão editar normas administrativas estabelecendo pa-
râmetros mínimos para a celebração dos acordos no âmbito do MP (nacional e estadual)”. GAJARDONI,
Fernando. Primeiros e breves apontamentos sobre os acordos em tema de improbidade administrativa.
Genjurídico, 2020. Disponível em: http://genjuridico.com.br/2020/05/07/acordos-improbidade-
-administrativa/. Acesso em: 1 fev. 2021.
526 Alexandra Fuchs de Araújo e Alexandre Jorge Carneiro da Cunha Filho

1) que tais atos normativos, possuindo efeitos gerais, fossem subme-


tidos a procedimentos de consulta pública de modo a enriquecer
o respectivo conteúdo, nos moldes do que sinaliza o art. 29 da
Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro36;
2) em havendo legitimidade concorrente para a propositura da ação
de improbidade entre a pessoa jurídica interessada e o Parquet37,
que a decisão pela não persecução fosse formalizada em um
procedimento com a participação de ao menos esses dois atores;
3) que fosse garantido o direito de defesa ao investigado nas trata-
tivas para o acordo, ao qual deveria ser assegurada assistência
jurídica que lhe permitisse avaliar se as condições que lhe fossem
propostas para encerramento do inquérito civil atendessem ao
seu melhor interesse.

Sobre a motivação contextualizada do acordo, ônus que incumbe a


agentes de execução e controle da função administrativa nos moldes do
que prevê o Código de Processo Civil38 e a Lei de Introdução às Normas do
Direito Brasileiro39, tem-se que esta deveria ser exposta adequadamente
pelos proponentes, com descrição dos fatos investigados e da adequação da
solução encontrada à luz dos bens jurídicos em jogo na ação em comento.

36
“Art. 29. Em qualquer órgão ou Poder, a edição de atos normativos por autoridade administrativa,
salvo os de mera organização interna, poderá ser precedida de consulta pública para manifesta-
ção de interessados, preferencialmente por meio eletrônico, a qual será considerada na decisão.
§ 1º A convocação conterá a minuta do ato normativo e fixará o prazo e demais condições da con-
sulta pública, observadas as normas legais e regulamentares específicas, se houver” (Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del4657compilado.htm. Acesso em: 27 jan. 2021).
37
Art. 17, caput, da Lei nº 8.429/1992. A Lei nº 14.230/2021 pretendeu acabar com a possibilidade de a
pessoa jurídica de direito público lesada propor ação de improbidade administrativa, o que é objeto
de análise pelo Supremo Tribunal Federal enquanto escrevemos o presente ensaio (ver ADI 7.042).
38
Cujo §1º do art. 489 prevê detalhamento acerca do ônus de motivação das decisões judiciais, dispositivo
que potencialmente pode ser empregado para se exigir uma maior fundamentação das escolhas feitas
pelo gestor, isso até por força da redação do art. 15 do estatuto processual, o qual prevê a aplicação
subsidiária e supletiva de tal diploma ao processo administrativo. Tal aspecto é bem lembrado por
NOHARA, Irene Patrícia. Motivação do ato administrativo na disciplina de Direito Público da LINDB.
In: VALIATI, Thiago P.; HUNGARO, Luis Alberto; CASTELLA, Gabriel M. e (coord.). A Lei de Introdução
e o Direito Administrativo brasileiro. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019. p. 3-20. p. 14 et seq.
39
Sobre o dever de motivação contextualizada da ação administrativa, o qual foi normativamente refor-
çado pelo advento das inovações feitas na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro pela Lei
nº 13.655/2018, ver SOUZA, Rodrigo Pagani de; ALENCAR, Letícia Lins de. O dever de contextualização
na intepretação e aplicação do Direito Público. In: VALIATI, Thiago P.; HUNGARO, Luis Alberto; CASTELLA,
Gabriel M. e (coord.). A Lei de Introdução e o Direito Administrativo brasileiro. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2019. p. 51-72.
Acordo de não persecução cível: um novo instrumento
a serviço do combate à improbidade administrativa 527

Ainda, no que concerne à questão ora enfrentada, ressaltamos a neces-


sidade de um espaço institucional próprio em que os termos de acordo firma-
dos ficassem disponíveis à população em geral e aos órgãos de controle em
particular, logicamente ressalvando-se o acesso indiscriminado pela internet
a determinadas informações que fossem sigilosas, de modo a permitir que os
ajustes formados servissem de parâmetro para concertações futuras, a exigir,
pois, fundamentação consistente quando do estabelecimento de condições
diversas para circunstâncias análogas pelas autoridades envolvidas.
Finalmente, a terceira indagação a ser trilhada no caminho para
consolidação do instituto da não persecução cível entre nós é a do papel do
Judiciário no controle dos acordos que são levados para sua homologação.
Como está claro na lei, o acordo de não persecução civil é avença
que pode ser celebrada entre as partes antes, no curso ou na execução
da sentença da ação civil de improbidade administrativa (art. 17-B,
§4º da LIA).
Já o problema dos limites ao controle realizado pelos juízes sobre as
tratativas de acordo encetadas pelas partes de uma ação de improbidade
foi posto por Fernando Gajardoni nos seguintes termos:

Já nos acordos judiciais, o juiz participa da convenção


não porque integre sua formação, mas porque o CPC
exige que o feito seja encerrado por uma sentença
homologatória (art. 487, III, do CPC), que nos termos
do art. 515, II, do CPC, é título executivo judicial.
Neste caso, a dúvida que resta em aberto – e sobre
isso ainda não temos opinião formada –, é se a atuação
do Judiciário no caso serve, apenas, para controlar
os requisitos de validade do acordo na forma do art.
190, parágrafo único, do CPC (autonomia da vontade,
licitude do objeto, etc.), ou se o juiz pode recusar
a homologação, com espeque no art. 723, parágrafo
único, do CPC, por entender que o acordo de não
persecução penal não repara adequadamente os danos
ou sanciona, suficientemente, o agente infrator40,41.

40
GAJARDONI, Fernando. Primeiros e breves apontamentos sobre os acordos em tema de improbidade
administrativa. Genjurídico, 2020. Disponível em: http://genjuridico.com.br/2020/05/07/acordos-
-improbidade-administrativa/. Acesso em: 1 fev. 2021.
41
Art. 723 do C.P.C. (Dos Procedimentos de Jurisdição Voluntária) – “O juiz decidirá o pedido no prazo
de 10 (dez) dias. Parágrafo único. O juiz não é obrigado a observar critério de legalidade estrita,
528 Alexandra Fuchs de Araújo e Alexandre Jorge Carneiro da Cunha Filho

A inquietação, entretanto, começa a ser vencida quando se atenta


para a necessidade de decisões administrativas fundamentadas, em que o
motivo da escolha realizada é explicitado em um processo administrativo
bem instruído42.
Logo, caberá ao juiz competente para homologar o acordo avaliar se
dos respectivos termos constará a fundamentação suficiente sobre o porquê
de o desfecho dado ao caso ser consentâneo com o interesse público, o que
inevitavelmente conduzirá o julgador a, ainda que perfunctoriamente,
avaliar se as condições impostas ao acusado são adequadas para a garantia
dos bens jurídicos tutelados nesse tipo de demanda, em uma jornada que
certamente terá como ponto de partida um singelo teste: houve processo
administrativo prévio a amparar à tomada de decisão escrutinada43?
Caso se apure que não, a rejeição do assentimento judicial ao ato
sob exame nos parece ser a única saída possível, já que vocacionada ao
controle da compatibilidade do instituto com a nossa ordem constitucional.

4.2. Etapas previstas para a procedimentalização adequada do


ANPC à luz do art. 17-B da Lei nº 8.429/1992

Nada obstante a redação imprecisa e muitas vezes atécnica da Lei


nº 14.230/2021, a disciplina do acordo de não persecução cível que esta
trouxe para a Lei nº 8.429/1992, talvez por se inspirar no dispositivo
vetado que a Lei nº 13.964/2019 previa a respeito44, revela-se coerente
com o propósito do instituto, estabelecendo balizas importantes para o
seu manejo legítimo.
Afora a questão de limitar o manejo do ANPC ao Ministério Público
(art. 17-B, caput), o que está de acordo com o espírito da nova legislação,

podendo adotar em cada caso a solução que considerar mais conveniente ou oportuna” (Disponível em:
http:/ www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm. Acesso em: 3 fev. 2021).
42
Como pondera Marcos Perez: “A importância, na contemporaneidade, de associar-se motivo e processo
administrativo como elementos da legalidade da atuação administrativa está justamente em, com isso,
abrir-se um largo caminho para a atuação do controle jurisdicional da Administração, especialmente
no tocante à discricionariedade. Abandonam-se, desse modo, todos os resquícios da antiga teoria da
imunidade jurisdicional do mérito do ato discricionário” (PEREZ, Marcos Augusto. Testes de legalidade:
métodos para o amplo controle jurisdicional da discricionariedade administrativa. Belo Horizonte:
Fórum, 2020. p. 201).
43
PEREZ, Marcos Augusto. Testes de legalidade: métodos para o amplo controle jurisdicional da discri-
cionariedade administrativa. Belo Horizonte: Fórum, 2020. p. 239 et seq.
44
Vide nota de rodapé 31, supra.
Acordo de não persecução cível: um novo instrumento
a serviço do combate à improbidade administrativa 529

mas que provavelmente sofrerá impacto da decisão a ser dada pelo Supremo
Tribunal Federal quanto ao rol de legitimados a propor ações de responsa-
bilização por improbidade administrativa, a lei passa a prever expressa-
mente a necessidade de recomposição do dano imposto ao erário e/ou de
reversão da vantagem indevida obtida pelo agente como condições para
o desfecho concertado desse tipo de apuração (art. 17-B, caput, I e II).
Além disso, prevê-se, de modo acertado, que a pessoa jurídica
lesada deve ser ouvida no procedimento vocacionado à formulação do
ajuste (art. 17-B, §1º, I)45, que igualmente deverá passar pelo órgão do
Ministério Público competente para analisar pedidos de arquivamento
de inquéritos civis, isso caso a providência se dê antes da propositura da
ação de improbidade (art. 17-B, §1º, II), situação na qual a homologação
judicial também se faz necessária (art. 17-B, §1º, III)46.
A lei ainda estipula que, em havendo dano ao erário, o Tribunal de
Contas deverá se manifestar sobre o montante de ressarcimento previsto
(art. 17-B, §3º), sendo que, quanto às sanções a serem impostas ao infrator,
que expressamente não precisam ser aquelas já previstas na legislação
(art. 17-B, §6º), deverá haver motivação adequada a partir de critérios
já usados em diversos diplomas sancionadores (como a personalidade do
agente, gravidade da conduta e etc., conforme redação do art. 17-B, §2º).
Perante tal quadro nota-se que hoje há balizas legais mais seguras a
demarcar o caminho a ser seguido pelas autoridades nas negociações com
os acusados da prática de atos de improbidade de modo que a solução
concertada possa contribuir para que as ações respectivas possam tutelar de
modo mais eficiente os bens jurídicos resguardados pela Lei nº 8.429/1992.

5. Conclusão

No presente estudo analisamos como a introdução do acordo de não


persecução cível no âmbito da Lei nº 8.429/92 pode contribuir para que
tal diploma possa, de modo mais eficiente do que pela via do processo
adversarial, tutelar em especial a moralidade administrativa, bem jurídico
que justifica sua existência em nosso ordenamento jurídico.

45
A lei fala em “ente federativo lesado”, mas imaginamos que “pessoa jurídica lesada” seria o termo
mais adequado neste contexto, já que não há qualquer razão plausível para se excluir a vítima de um
ato de improbidade, ainda que não ente federativo, do processo de formação do acordo sob exame.
46
No que se refere ao papel a ser desempenhado pela homologação judicial para controle dos termos
do ANPC, ver considerações feitas no item 4.1 deste ensaio.
530 Alexandra Fuchs de Araújo e Alexandre Jorge Carneiro da Cunha Filho

Contextualizando o instituto sob o prisma de recentes inovações


incorporadas ao nosso processo civil, bem como do ideal de um Estado
mais dialógico e responsivo, concluímos pela compatibilidade do manejo
da ferramenta consensual como meio a serviço de uma organização política
que se paute pela busca de resultados favoráveis ao bem-estar coletivo.
Isso não significa, contudo, que não haja motivos para preocupação
quanto a possíveis desvios no emprego do acordo de não persecução pelas
autoridades competentes para tanto.
Considerando as vantagens existentes para se estimular a conclu-
são de processos complexos pela via concertada, cabe nos debruçarmos
sobre como, via valorização do processo de tomada de decisão que conduza
ao ajuste, tais riscos possam ser mitigados, de modo que sua utilização
venha ao encontro dos justos anseios do cidadão pela prestação de serviços
públicos de qualidade (inclusive através dos agentes estatais que tenham
por missão combater ilícitos envolvendo a Administração Pública).

6. Bibliografia

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Acordo de não persecução cível: um novo instrumento
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535

Aspectos processuais e procedimentais


da aplicação da nova Lei de Improbidade
Administrativa aos processos em curso
e a desconstituição das decisões
judiciais proferidas antes do advento
da nova lei

Mônica de Almeida Magalhães Serrano1


Desembargadora do Tribunal de Justiça de São Paulo

Sumário: 1. Introdução. Direito Administrativo e improbidade


administrativa: evolução histórica. 2. Os fenômenos da corrupção e
da improbidade administrativa: correta delimitação. 3. Promulgação
da Lei 8429/1992: circunstâncias políticas e sociais e reforma da lei de
improbidade. 4. Principais alterações trazidas pela Lei 14.230/2021 ao
regime da improbidade administrativa. 4.1. Da exigência de conduta
dolosa. 4.2. Regime de improbidade e Direito Administrativo Sancionador
e a tipificação taxativa. 4.3. A legitimidade ativa da ação de improbidade
administrativa. 4.4. Das cominações na Lei de Improbidade Administrativa.
4.5. Nova sistematização da prescrição na Lei de Improbidade Administrativa
5. Desconstituição das decisões judiciais proferidas antes do advento da
nova lei 6. Conclusões. Referências bibliográficas.

1. Introdução. Direito Administrativo e improbidade administrativa:


evolução histórica

O Direito Administrativo, como ramo autônomo, nasce em fins do


século XVIII e início do século XIX, com origem na França, em consonância
com o surgimento do Estado de Direito, como oportunamente apontado
por Maria Sylvia Zanella Di Pietro:

Mestre em Direito Constitucional e Doutora em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade
1

Católica de São Paulo (PUC-SP).


536 Mônica de Almeida Magalhães Serrano

Mas a formação do Direito Administrativo,


como ramo autônomo, teve início, juntamente com
o direito constitucional e outros ramos do direito
público, a partir do momento em que começou a
desenvolver-se – já na fase do Estado Moderno –
o conceito de Estado de Direito, estruturado sobre
o princípio da legalidade (em decorrência do qual
até mesmo os governantes se submetem à lei,
em especial à lei fundamental que é a Constituição)
e sobre o princípio da separação dos poderes,
que tem por objetivo assegurar a proteção dos
direitos individuais, não apenas nas relações entre
particulares, mas também entre estes e o Estado2

No contexto brasileiro, no período colonial colonial já se verificavam


alguns elementos do direito administrativo, claro que em um âmbito mais
organizacional, não existindo nesse momento como ramo autônomo e
princípios próprios.
No Império, é possível verificar o surgimento de uma Administração
Pública com maior ordenamento, apesar da existência de uma monarquia
constitucional e criação do Poder Moderador, concorrendo com os demais
Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário. Inclusive, sob influência
do direito francês, foi constituído o Conselho de Estado, com função
meramente consultiva:

À semelhança do Conseil d’État criado na França


em 1799, foi previsto pela Constituição como órgão
auxiliar dos Poderes Executivo e Moderador o
Conselho de Estado, o qual deveria servir como um
Tribunal Administrativo. Todavia, por não ter caráter
vinculante para o imperador, o órgão colegiado teve
pouco efeito prático, uma vez que suas funções
ficavam à mercê do monarca, que nenhuma verba
lhe consignava no orçamento da monarquia para o
seu funcionamento. Tanto que foi extinto em 1834
pelo Ato Adicional, retornando em 1841, quando da
maioridade de D. Pedro II, quando desempenhou papel

2
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 30. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017. p. 2.
Aspectos processuais e procedimentais da aplicação da nova
Lei de Improbidade Administrativa aos processos em curso 537

político de relevância no tocante ao aconselhamento


do monarca (TORRES, p. 203-227)3.

A formação do Direito Administrativo, com as linhas mais modernas,


surgiu a partir da República:

O Direito Administrativo brasileiro, na verdade,


começa a tomar seus contornos atuais com a República,
a partir de 1889. Nosso direito, com  influências
européias (França, Itália) e mesmo norte-americanas,
adapta-se ao fato de ter sido constituída uma
república federativa presidencialista, nos moldes
dos Estados Unidos, com o monopólio jurisdicional
do Judiciário (jurisdição una norte-americana),
que levou à supressão da jurisdição administrativa,
já então pouco existente no Brasil. Entretanto,
face às peculiaridades, a elaboração doutrinária
dessa época, mais ou menos até a Constituição de
1934 era, senão pobre, algo titubeante4.

O direito administrativo manteve constante evolução e aprimora-


mento, exceto no período de ditadura que se instalou sobre o País em 1964,
por força do golpe militar e novo fortalecimento do poder no Executivo,
quando reinavam medidas antidemocráticas e arbitrárias, além da edição
de vários Atos Institucionais para consagrar o regime.
Mas, por certo, é com a Constituição Federal de 1988 que o Direito
Administrativo se estrutura, com princípios e normas próprias, com a
consagração do Estado Democrático de Direito, tendo por fundamento a
soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais
do trabalho e da livre iniciativa e o pluralismo político.
A cidadania se torna elemento central, com o novo ordenamento
jurídico com ampla garantia dos direitos fundamentais, e o Direito
Administrativo passa a se compatibilizar com essa ambiência. De acordo

3
SILVA FILHO. Edson Alves. LIMA. Martônio Mont’Alverne Barreto. O pensamento constitucional do período
imperial e a formação da administração pública no Brasil. Revista do Programa de Pós-Graduação em
Direito, Salvador, v. 30, n. 2, p. 79-96, 2020.
4
ARAÚJO, Edmir Netto de. O direito administrativo e sua história. Revista da Faculdade de Direito,
Universidade de São Paulo, v 95, p. 147-166, 2000. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/rfdusp/
article/view/67460. Acesso em: 12 nov. 2022.
538 Mônica de Almeida Magalhães Serrano

com Maria Sylvia Zanella Di Pietro, “com a Constituição de 1988, optou-se


pelos princípios próprios do Estado Democrático de Direito. Duas ideias são
inerentes a esse tipo de Estado: uma concepção mais ampla do princípio
da legalidade e a ideia de participação do cidadão na gestão e no controle
da Administração Pública”5.
Os princípios fundamentais que regem a Administração Pública passam
a figurar expressamente na Constituição Federal, quais sejam, legalidade,
impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência (art. 37 da CF).
Com inovação, o princípio da moralidade administrativa, como pilar a
consagrar, ainda, o regime da improbidade administrativa, conforme
dispõe o artigo 37, parágrafo 4º:

§4º. Os atos de improbidade administrativa


importarão a suspensão dos direitos políticos,
a perda da função pública, a indisponibilidade
dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e
gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação
penal cabível.

O instituto da improbidade administrativa é estabelecido com maior


dimensão, cabendo ao ordenamento infraconstitucional a respectiva
regulamentação, o que só veio a ser efetivado com a promulgação da
Lei 8.429/92, que passa a ter eficácia, porém sem efeito retroativo,
como bem explicita Maria Sylvia Zanella Di Pietro:

Assim, embora a Constituição tenha sido


promulgada em 5-10-88, já prevendo as sanções
para os atos de improbidade, o artigo 37, § 4º,
não era autoaplicável, não podendo a Lei 8.429/92
ser aplicada com efeito retroativo6.

Importante lembrar que anteriormente à Lei 8.429/1992 vigiam


apenas as Leis 3.164/1957 (Pitombo-Godói Ilha) e 3502/1958 (Lei Bilac
Pinto), que disciplinavam a matéria e “tratavam do enriquecimento ilícito
do agente público, editadas com fundamento no art. 141, § 31, segunda

5
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 30. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017. p. 36.
6
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 30. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017. p. 1.008
Aspectos processuais e procedimentais da aplicação da nova
Lei de Improbidade Administrativa aos processos em curso 539

parte, da Constituição Federal de 1946”, as quais foram revogadas pela


Lei 8.429/19927.
Ademais, durante o período da ditadura militar, foi baixado o Ato
Institucional nº 5, em 1968, que vigorou até 1978, o qual estabelecia,
entre outros, a competência do Presidente da República para decretar
confisco de bens para quem tivesse enriquecido ilicitamente no exercício
de função pública, como esclarece Evelise Pedroso Teixeira Prado Vieira:

Anote-se que o sistema formado pelas Leis


Pitombo-Godói Ilha e Bilac Pinto conviveu, em certo
período, com regramento de exceção, instituído
pelo Ato Institucional 5, de 13 de dezembro
de 1968, que dava ao Presidente da República a
competência para, após investigação, decretar
o confisco de bens daqueles que houvessem
enriquecido ilicitamente no exercício de cargo ou
função pública, inclusive de autarquias, empresas
públicas e sociedades de economia mista (art.8º),
fazendo-se a restituição se provada a legitimidade
da aquisição (parágrafo único).

Esta competência conferida ao Presidente da República


existiu até a Emenda Constitucional 11, de 13 de
outubro de 1978, que revogou os Atos Institucionais
que contrariassem a Constituição Federal8.

Nesse contexto o regime da improbidade administrativa como ramo


autônomo se consubstancia.

2. Os fenômenos da corrupção e da improbidade administrativa:


correta delimitação

A partir da nova ordem constitucional e com o restabelecimento do


Estado de Direito Democrático exige-se da gestão pública uma atuação
íntegra, com a observância dos princípios da moralidade e eficiência.
Por certo, as condutas inadequadas do gestor público suscitam preocupações

7
VIEIRA, Evelise Pedroso Teixeira Prado. Direito administrativo. São Paulo: Verbatim, 2011. p. 149.
8
Ibid., p. 150
540 Mônica de Almeida Magalhães Serrano

e podem, de fato, deteriorar e corromper uma sociedade. Mas importa


diferenciar os institutos da corrupção e atos de improbidade. A corrupção,
de acordo com Manoel Gonçalves Ferreira Filho:

[…] é um mal gravíssimo, que prejudica as bases de


sustentação do Estado e ameaça a sociedade como
um todo, sendo fonte de descrédito das instituições
regentes de um governo democrático9.

Na antiguidade já se verificavam indícios de ocorrência da corrupção,


tais como referências existentes no Novo Império Egípcio ou no Código
de Hamurabi, como também na civilização grega:

Já a civilização grega apresentava figuras mais


elaboradas, especialmente a partir das épocas
clássica e helenística. De início, segundo Edmundo
Oliveira11, eram três os delitos de funcionários
contra a administração pública: o peculato (klopes),
a corrupção (dóron) e o abuso de autoridade (ádikia).
Klopes se referia aos crimes contra o patrimônio em
geral. Dóron se referia tanto à corrupção ativa como
à passiva. E Ádikia (cujo significado é injustiça) era o
abuso de autoridade. Mais tarde, iria ainda surgir um
delito específico de corrupção praticada por juízes e
a respectiva ação (graphè dekasmou)10.

No Brasil, o fenômeno da corrupção se fazia presente desde a colônia,


tornando-se praticamente elemento cultural da sociedade, com as conhe-
cidas práticas clientelistas e favores em troca de apoios políticos, o que
parece ter permanecido mesmo após a república. “Desde a colônia,
temos um Estado que nasce por concessão, no qual a instituição pública é

9
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Corrupção e Democracia. In: Revista de Direito Administrativo.
Rio de Janeiro: Renovar e Fundação Getúlio Vargas, nº226, out./2001.
10
TEIXEIRA, Juliana Ferrer. Corrupção passiva: análise do artigo 317 do Código Penal e sua relação com
as Leis n. 8.429/92, n. 9.034/95 e n. 9.613/98. 2010. Dissertação (Mestrado em Direito) – PUC-SP,
São Paulo, 2010.
Aspectos processuais e procedimentais da aplicação da nova
Lei de Improbidade Administrativa aos processos em curso 541

usada em benefício próprio. A corrupção persiste no Brasil devido a essa


estrutura de colonização”11.
Na legislação brasileira, o primeiro tratamento legislativo acerca da
corrupção se verifica no Código de 1830, que tipificava a corrupção em
dois dispositivos independentes, chamados de peita e de suborno.
O Código de 1830 vigorou até 1890, quando foi promulgado novo
Código, com a Proclamação da República, incluindo o título específico
dos crimes contra a administração pública, vigorando até o Código Penal
de 1940, com destaque, ainda, à reforma 1984, que manteve o título
dos crimes contra administração pública, com a inclusão dos crimes de
corrupção passiva e ativa:

Este Código de 1890 vigorou até 1940, quando uma


nova legislação foi elaborada e que ainda está em
vigor no Brasil. Com o advento da Lei nº 7.209,
de 1984, o atual Código Penal adotou uma nova
sistemática. Segundo Martins e Nascimento (2011),
a parte especial que trata de crimes contra a
Administração Pública está prevista no Título XI.
Esta parte do Código sofreu várias modificações
com o objetivo de abordar novas circunstâncias
da criminalidade moderna decorrentes das
organizações criminosas, atingindo bens e valores
da Administração Pública e também pelo surgimento
de ações criminosas praticadas por funcionários
públicos de modo geral. O Código Penal Brasileiro
qualifica, em  seus artigos  317 e 333, o  crime de
corrupção passiva e ativa12.

A corrupção é ilícito penal, enquanto a improbidade administrativa


está relacionada à infração cível, embora seja possível que um mesmo
ato ilícito tenha configuração tanto na esfera penal quanto na cível.

11
NEHER, Clarissa. Análise histórica mostra que corrupção no Brasil persiste desde o período colonial.
G1, Rio de Janeiro, 12 jun. 2017. Disponível em: https://g1.globo.com/educacao/noticia/analise-historica-
mostra-que-corrupcao-no-brasil-persiste-desde-o-periodo-colonial.ghtml. Acesso em: 10 nov. 2022.
12
GOMES, Gabriel Gorga. O Jeitinho Brasileiro e a Corrupção. Âmbito Jurídico, 1 ago. 2020. Disponível em:
https://ambitojuridico.com.br/cadernos/direito-penal/o-jeitinho-brasileiro-e-a-corrupcao/.
Acesso em: 10 nov. 2022.
542 Mônica de Almeida Magalhães Serrano

No Código Penal ficou mantida a classificação como crime corrupção


nas modalidades ativa e passiva, através os artigos 317 e 333. A improbidade
administrativa, por sua vez, tem base constitucional, com regulamentação
pela Lei 8429, de 1992, alterada pela Lei 14.230/2021, que dispõe sobre
três diferentes categorias, por meio dos artigos 9º, 10 e 11, ressalvados
tipos previstos em leis especiais13.
Marcos José Porto Soares e Alexandre Araujo Pereira destacam a
diferença entre os institutos, contrapondo-os, ainda, à má gestão da
coisa pública:

Para facilitar o entendimento, percebe-se a


utilidade de lançar aqui a seguinte figura, de três
círculos, dispostos de forma concêntrica, um dentro
do outro. 7 O maior é o da má gestão da coisa
pública, o segundo maior e por aquele envolto é o
da improbidade administrativa, e o menor e central
é o correspondente a corrupção. O que se pretende
demonstrar é que a má gestão é algo maior que
envolve a improbidade e a corrupção. Nesta linha,
nem todo ato do mau gestor será improbidade e nem
corrupção. Por sua vez, nem todo ato de improbidade
será corrupção. E por fim, todo ato de corrupção
terá caráter de improbidade e de má gestão, e todo
ato de improbidade também será de má gestão.
Por conseguinte, entende-se que a improbidade
administrativa e a corrupção são produtos inerentes
de uma má gestão pública14.

Marçal Justen Filho, outrossim, sublinha que a improbidade adminis-


trativa é uma manifestação de ilegalidade, mas nem toda e qualquer
atuação ilegal configura improbidade, além da diferença que deva ser
estabelecida entre a improbidade e imoralidade:

Também não é correto identificar improbidade e


moralidade. O conceito de imoralidade é muito mais
amplo do que o de improbidade. Há condutas que se

De acordo com as alterações a Lei 8.429/1992, com alterações da Lei 14.230/2021.


13

Disponível em: http://www.mpsp.mp.br/portal/page/portal/documentacao_e_divulgacao/doc_biblioteca/


14

bibli_servicos_produtos/bibli_boletim/bibli_bol_2006/RTrib_n.959.04.PDF. Acesso em: 17 abr. 2023.


Aspectos processuais e procedimentais da aplicação da nova
Lei de Improbidade Administrativa aos processos em curso 543

configuram como imorais, mas que não se qualificam


como ímprobas. Assim, suponha-se a situação de
uma autoridade que revele vício no consumo de
drogas e, como decorrência, passe a adotar condutas
ofensivas à integridade alheia – há situação concreta
ocorrida no Canadá, relativamente ao Prefeito
de uma grande cidade. Esse caso pode configurar
ofensa à moralidade, mas não se enquadra no
conceito de improbidade15.

Portanto, embora possam estar relacionados, configuram


institutos diferentes.

3. Promulgação da Lei 8429/1992: circunstâncias políticas e


sociais e reforma da lei de improbidade

Vale evidenciar as circunstâncias políticas e sociais em que foi


promulgada a Lei 8429/1992, bem como a importância de tal diploma
legal para o regime da improbidade administrativa.
Com efeito, nesse momento o Brasil enfrentava recente movimento
de redemocratização, após duro e longo período de ditadura militar.
Os cidadãos clamavam por maior moralidade e eficiência
na gestão pública, a assegurar, ainda, a efetividade de direitos e
garantias fundamentais.
Após vários protestos e movimentos sociais e estudantis, o primeiro
presidente civil foi eleito por meio de um colégio eleitoral – Tancredo
Neves, que faleceu antes mesmo da posse, levando ao cargo o vice
José Sarney. O novo período político se sedimentava, com a eleição
direta do primeiro presidente em 1990 – Fernando Collor de Mello,
cujos atos de corrupção de se tornaram um escândalo, tendo renun-
ciado após sofrer processo de impugnação de mandato (impeachment),
assumindo o vice Itamar Franco, que governou até 1992, sendo seu
sucessor Fernando Henrique Cardoso.

JUSTEN FILHO, Marçal. Reforma da Lei de Improbidade Administrativa comparada e comentada.


15

Rio de Janeiro: Forense, 2022. p. 15. O autor retrata que se trata de matéria “Prefeito de Toronto
viciado em crack pode ter novas revelações “, publicada no Correio Braziliense.
544 Mônica de Almeida Magalhães Serrano

Com novo regime jurídico constitucional, solidifica-se a redemocra-


tização do País, bem como os direitos políticos, econômicos e os direitos
fundamentais do cidadão16.
Desenrola-se uma clara preocupação para com a probidade adminis-
trativa, mediante adequado planejamento orçamentário e observância dos
objetivos da nova ordem constitucional, que adotou o regime denominado
orçamento programa, com o princípio de moralidade expresso a embasar
a improbidade administrativa17.
A partir da Lei 8429/92 ficou estabelecido um regime de improbidade
administrativa, não mais restrito ao enriquecimento ilícito, significando
instrumento essencial, com a criação de três modalidades de ato de
improbidade – atos que implicam enriquecimento ilícito (art.9º), atos que
causem danos ao erário (art.10) ou atos que atentam aos princípios da
administração pública (art.11).
Ocorre que, passados quase vinte e oito anos de sua edição, a atualiza-
ção se fazia necessária para eventuais correções de excessos ou distorções
e até mesmo para adequação em razão do simples transcorrer do tempo
que exige novos contornos sociais e legais.
Após acalorados debates, foi promulgada a Lei 14.230/2021,
que altera a denominada Lei de Improbidade, com origem no Projeto
de Lei 10.887/2018, do Deputado Roberto Lucena (PODE-SP), que foi
apresentado em 17 de outubro de 2018, e arquivado. Após pedido de
desarquivamento em 5 de fevereiro de 2019, houve a criação de uma
comissão especial, com designação do Deputado Carlos Zarattini (PT)
como relator em 28 de agosto de 201918.
O projeto final resultou do trabalho de uma Comissão de Juristas
criada pelo Presidente da Câmara dos Deputados Rodrigo Maia, presidida
pelo Ministro Mauro Campbell do STJ, que ressaltou a preocupação de
conter abusos e seguiu três premissas básicas:

16
Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios
e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
I – a soberania; II – a cidadania; III – a dignidade da pessoa humana; IV – os valores sociais do
trabalho e da livre iniciativa; V – o pluralismo político.
17
“Art. 166. Os projetos de lei relativos ao plano plurianual, às diretrizes orçamentárias, ao orçamento
anual e aos créditos adicionais serão apreciados pelas duas Casas do Congresso Nacional, na forma do
regimento comum”.
18
Disponível em: https://www.camara.leg.br/‌proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=‌2184458.
Acesso em: 15 nov. 2022.
Aspectos processuais e procedimentais da aplicação da nova
Lei de Improbidade Administrativa aos processos em curso 545

1. incorporar ao projeto a jurisprudência consolidada


dos Tribunais Superiores na interpretação da LIA;
2. compatibilizar a lei com leis posteriores (novo CPC,
Lei Anticorrupção e Lei de Introdução às normas de
Direito Brasileiro – LINDB); e 3. sugerir novidades,
novos institutos, novas premissas, que corrijam os
pontos mais sensíveis da LIA19.

A Lei 14.230/2021, apesar de não ter revogado a Lei 8429/92,


provocou modificação significativa, tendo praticamente alterado o regime
da improbidade administrativa.
O meio jurídico dividiu opiniões acerca das alterações introduzidas,
parte no sentido de defender a reforma, e parte para afirmar a ocorrência
de um verdadeiro retrocesso, já havendo, inclusive, ações diretas de
inconstitucionalidade questionando vários dispositivos legais.
O tempo, por certo, abrandará a polêmica, com o alcance de uma
adequada interpretação da legislação em voga.

4. Principais alterações trazidas pela Lei 14.230/2021 ao regime


da improbidade administrativa

4.1. Da exigência de conduta dolosa

O regime da improbidade administrativa foi quase que integralmente


alterado, mas uma das alterações mais marcantes se deu pela adoção
da conduta dolosa para caracterizar o ato de improbidade, tendo sido
suprimida a modalidade culposa. O art. 1º, § 1º, dispõe “Consideram-se
atos de improbidade administrativa as condutas dolosas tipificadas nos
arts. 9º, 10 e 11 desta Lei, ressalvados tipos previstos em leis especiais”.
Decorre de tal dispositivo que para a caracterização de ato de impro-
bidade deve existir dolo na conduta, consistente na “vontade livre e
consciente de alcançar o resultado ilícito tipificado nos arts. 9º, 10 e 11
desta Lei, não bastando a voluntariedade do agente”, estando as hipóteses
descritas taxativamente (art.1o, § 2o).

Disponível em: https://www.conjur.com.br/dl/especialistas-comentam-pl-visa.pdf. Acesso em:


19

15 nov. 2022.
546 Mônica de Almeida Magalhães Serrano

Outrossim, para caracterizar o ato de improbidade, o dolo deve ser


voltado à obtenção do resultado ilícito, como bem observam Gajardoni,
Cruz, Gomes Junior e Favreto, que afirmam se tratar de dolo específico:

Então o dolo específico, especialmente para fins


de caracterização de ato de improbidade, é o ato
eivado de má-fé. O erro grosseiro, a falta de zelo
com a coisa pública, a negligência, podem até
ser punidos em outra esfera, de modo que não
ficarão necessariamente impunes, mas não mais
caracterizarão atos de improbidade20.

A doutrina já debatia acerca de hipótese de improbidade por presun-


ção anteriormente às alterações havidas por força da Lei 14.230/2021.
Nesse sentido, Ricardo Marcondes Martins apresenta bom panorama
dessa discussão, em que parte da doutrina considerava inconstitucional o
inciso VII do art.9º da Lei 8429/1992, cujo teor assim se colocava: “adquirir,
para si ou para outrem, no exercício de mandato, cargo, emprego ou
função pública, bens de qualquer natureza cujo valor seja desproporcional
à evolução do patrimônio ou à renda do agente público”:

Há quem considere o dispositivo inconstitucional.


Marino Pazzaglini Filho, Márcio Fernando Elias
Rosa e Waldo Fazzio Jr defendem a necessidade
da prova pelo Ministério Público do nexo entre o
abuso do exercício funcional e o enriquecimento.
No mesmo sentido doutrina Francisco Octávio de
Almeida Prado, para quem a condenação exige
a prova de que o acréscimo patrimonial derivou
de vantagem patrimonial indevida, e o ônus da
prova cabe ao acusador. Em sentido contrário,
Wallace Paiva Martins Jr. vislumbra no dispositivo
autêntica inversão do ônus da prova, apesar das
alterações que o Projeto sofrera no Congresso,
e defende sua constitucionalidade21.

20
GAJARDONI, Fernando da Fonseca; CRUZ, Luana Pedrosa de Figueiredo; GOMES JUNIOR, Luiz Manoel;
FAVRETO, Rogerio. Comentários à Nova Lei de Improbidade Administrativa. 5. ed. São Paulo: Thomson
Reuters, 2021. p. 46.
21
MARTINS, Ricardo Marcondes. Estudos de direito administrativo neoconstitucional. São Paulo: Malheiros,
2015. p. 651
Aspectos processuais e procedimentais da aplicação da nova
Lei de Improbidade Administrativa aos processos em curso 547

O autor, contudo, defendia a constitucionalidade do dispositivo legal,


o que se mostrava correto, considerando o sistema vigente no momento:

A regra do inciso VII do art. 9º da Lei 8.429/1992,


por todos esses motivos, é plenamente constitucional.
Ao contrário do espírito da lei, que foi de banalização
da improbidade administrativa, o dispositivo consiste
num importante arma contra a corrupção brasileira.
Contudo, as razões apresentadas justificam não
apenas a validade da regra legislativa. O dever de
prestar contas, imposto aos agentes públicos, decorre
do próprio texto constitucional; a tutela do dinheiro
público está estampada no Texto Magno; a supremacia
do interesse público sobre o privado, idem. Mesmo
que não existissem ao sistema normativo vigente
a regra do referido inciso VII, ela seria extraída do
conjunto normativo22.

De toda forma, com as alterações advindas da Lei 14.230/2021,


tais discussões ficaram prejudicadas, e para a configuração de ato de
improbidade, qualquer que seja a tipologia, exige-se a comprovação da
conduta dolosa.

4.2. Regime de improbidade e Direito Administrativo Sancionador


e a tipificação taxativa

O artigo 1º, § 1º, da Lei de Improbidade Administrativa, já com


a redação dada pela Lei 14.230/2021, dispõe “Consideram-se atos de
improbidade administrativa as condutas dolosas tipificadas nos arts. 9º,
10 e 11 desta Lei, ressalvados tipos previstos em leis especiais”.
No parágrafo 4º do mesmo dispositivo legal, também já considerando
as alterações, consta “Aplicam-se ao sistema de improbidade disciplinado
nesta Lei os princípios constitucionais do direito administrativo sancionador”.
Decorre dessas disposições legais que se aplicam, pois, ao regime
de improbidade administrativa, os princípios do direito administrativo
sancionador, valendo trazer à tona a lição de Ricardo Barros Leonel
“O Direito Sancionador, entretanto – e esse dado é fundamental –, não é

22
Ibid., p. 653.
548 Mônica de Almeida Magalhães Serrano

sinônimo de Direito Penal. Está inserido no âmbito daquele, que possui


espectro mais”23.
Isso significa dizer que, respeitadas as posições doutrinárias contrárias,
não há completa sobreposição entre o direito sancionador e o direito
penal. Valiosa contribuição sobre a temática traz Alice Voronoff, cita por
Oliveira e Grotti:

Voronoff (2019) sublinha a subordinação do


Direito Administrativo Sancionador aos princípios
constitucionais da eficiência, proporcionalidade e
economicidade, que introduzem e legitimam forte
dimensão pragmática nesta seara. Reconhece as
garantias do Administrado no Estado Democrático de
Direito, como elemento da moralidade constitucional.
Com esta compreensão, o DAS não está submetido
ao Direito Penal. O Direito Penal pode contribuir na
elaboração de um ferramental próprio para o DAS.
Mas, aqui, a diretriz é contribuir para integrar, e não
desnaturar a índole administrativista dos sistemas
sancionadores administrativos. Neste contexto,
atribui ao DAS o objetivo de institucionalizar
modelos dinâmicos, especializados, sensíveis às
demandas e mudanças econômicas, sociais, factuais
e tecnológicas cada vez mais comuns. Modelos que
promovam o atendimento aos valores de coerência,
racionalidade e segurança jurídica na tutela dos
objetivos de interesse público24.

O direito sancionador tem se ampliado e evoluído no decorrer dos


tempos e, justamente por expressar um poder de punição pelo Estado,
deve respeitar princípios básicos constitucionais, como o princípio da
legalidade, do devido processo legal e do contraditório e ampla defesa,
mas trata-se de sistema que não se confunde com o direito penal.

23
LEONEL. Ricardo de Barros. Nova LIA: aspectos da retroatividade associada ao Direito Sancionador.
Consultor Jurídico, 17 nov. 2021. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-nov-17/leonel-lia-
retroatividade-associada-direito-sancionador. Acesso em: 12 nov. 2022.
24
OLIVEIRA, José Roberto Pimenta; GROTTI, Dinorá Adelaide Musetti. Direito administrativo sancionador
brasileiro: breve evolução, identidade, abrangência e funcionalidades. Interesse Público, 2020. p. 116.
Aspectos processuais e procedimentais da aplicação da nova
Lei de Improbidade Administrativa aos processos em curso 549

No tocante aos princípios norteadores do direito sancionador,


afirmam José Roberto Pimenta Oliveira e Dinorá Adelaide Musetti Grotti:

O Direito Administrativo Sancionador, no seu caráter


instrumental, deve respeitar os fundamentos da
República, destacadamente, todos os corolários
juridicamente atrelados ao respeito da dignidade da
pessoa humana. Direitos e garantias constitucionais
individuais que merecem atenção cuidadosa no
Direito Administrativo Sancionador podem ser
catalogados e classificados como princípios materiais
e processuais. São materiais, vez que incidem
diretamente na relação jurídico-administrativa
sancionadora: legalidade, tipicidade, irretroatividade
de norma mais prejudicial, imputação adequada,
pessoalidade, proporcionalidade, prescritibilidade
e non bis in idem. São princípios processuais,
vez que incidem na relação jurídico-processual
administrativa que objetiva a produção do ato
administrativo sancionador: devido processo
legal, imparcialidade, contraditório, ampla
defesa, presunção de inocência, garantia da
não-auto-responsabilização, inadmissibilidade de
provas ilícitas, recorribilidade, definição, a priori,
da competência administrativa sancionadora,
motivação e duração razoável do processo25.

Nessa linha de observação de princípios constitucionais fundamentais,


a Lei 14.230/2021 introduziu alterações importantes à Lei de Improbidade,
trazendo como supedâneo do princípio da legalidade o rol taxativo de
condutas que possam ser caracterizadas como ato de improbidade, cujas
hipóteses estão descritas nos artigos 9º, 10 e 11.
Cabe destacar, inclusive, como novidade, a previsão agora expressa
do nepotismo, na forma simples e modalidade cruzada, como ato de impro-
bidade administrativa, de acordo com art. 11, XI, da Lei de Improbidade.
Anteriormente, o Supremo Tribunal Federal já vedava essa prática por
violar a Constituição Federal, conforme Súmula Vinculante 13:

OLIVEIRA. José Roberto Pimenta; GROTTI, Dinorá Adelaide Musetti. Direito administrativo sancionador
25

brasileiro: breve evolução, identidade, abrangência e funcionalidades. Interesse Público, 2020. p. 122.
550 Mônica de Almeida Magalhães Serrano

A nomeação de cônjuge, companheiro ou parente


em linha reta, colateral ou por afinidade, até o
terceiro grau, inclusive, da autoridade nomeante ou
de servidor da mesma pessoa jurídica investido em
cargo de direção, chefia ou assessoramento, para o
exercício de cargo em comissão ou de confiança ou,
ainda, de função gratificada na administração pública
direta e indireta em qualquer dos Poderes da União,
dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios,
compreendido o ajuste mediante designações
recíprocas, viola a Constituição Federal.

Vale notar que mesmo no tocante às hipóteses elencadas no art. 11,


que disciplina ato de improbidade que atenta contra os princípios da
administração pública, não se admite mais uma interpretação que consi-
dere tão somente o tipo aberto, havendo descrição específicas a tipificar
a improbidade nos itens I a IX, além da exigência de comprovação de dano
relevante para sanção.
Gajardoni, Cruz, Gomes Junior e Favreto realçam:

Apesar dos termos do art. 11, caput, da Lei de


Improbidade Administrativa, o certo é que todos os
Princípios Constitucionais previstos no art.37, caput,
da CF recebem a proteção legal, aqui por força da
cláusula aberta do termo “[…] que atenta contra os
princípios da administração pública […]” utilizado no
texto legal ora analisado, sem que se possa falar em
interpretação extensiva, incompatível com as regras
do Direito Sancionador.

Contudo, o legislador passa a ser mais preciso em


dois aspectos: a-) exigência de dolo (ação ou omissão
dolosa), na linha da doutrina e da jurisprudência;
e b-) adota a tipificação que complementa o caput,
de forma que apenas as condutas descritas nos
incisos possam ser apenadas (“caracterizada por uma
das seguintes condutas: […]”26.

26
GAJARDONI, Fernando da Fonseca; CRUZ, Luana Pedrosa de Figueiredo; GOMES JUNIOR, Luiz Manoel;
FAVRETO, Rogerio. Comentários à Nova Lei de Improbidade Administrativa. 5. ed. São Paulo: Thomson
Reuters, 2021. p. 150.
Aspectos processuais e procedimentais da aplicação da nova
Lei de Improbidade Administrativa aos processos em curso 551

A configuração do ato de improbidade, considerando a indispensa-


bilidade da conduta dolosa e a tipicidade taxativa, por certo, apresenta
um desenho de maior segurança, a evitar abusos nas condenações,
e implementando princípios típicos do direito sancionador.

4.3. A Legitimidade ativa da ação de improbidade administrativa

O artigo 17 da Lei 8.429/1992, com as alterações da Lei 14.230/2021


dispõe que “a ação para a aplicação das sanções de que trata esta Lei
será proposta pelo Ministério Público e seguirá o procedimento comum
previsto na Lei 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil),
salvo o disposto nesta Lei”.
Assim, a legitimidade ativa passaria a ser privativa do Ministério
Público, excluindo a possibilidade de propositura da ação pela pessoa
jurídica interessada.
A legislação determinou, ainda, que o Ministério Público manifestasse
o interesse no prazo de um ano em assumir os processos já abertos,
sob pena de arquivamento dos feitos.
Talvez a inovação tivesse o condão de afastar a utilização das ações de
improbidade como instrumento político, o que não deveria ter alcançado
os feitos já em andamento, ficando resguardado o papel do Ministério
Público na defesa de interesses da sociedade.
Contudo, dissipada qualquer discussão, pois suscitada a inconstitu-
cionalidade do dispositivo legal, houve julgamento de mérito das Ações
Diretas de Inconstitucionalidade de números 7042 e 7043, de Relatoria
do Ministro Alexandre de Moraes, tendo por objeto, em seu conjunto,
os arts. 17, caput e §§ 14 e 20, e 17-B, da Lei 8.429/1992, alterados e
incluídos pelo art. 2º da Lei 14.230/2021, e os arts. 3º e 4º, X, da referida
Lei 14.230/2021.
O julgamento foi recentemente encerrado, tendo decidido o
Supremo Tribunal Federal, por maioria de votos, inválidos dispositivos
da Lei 14.230/2021, que conferiam ao Ministério Público​a legitimidade
exclusiva para a propositura das ações por improbidade:

O Tribunal, por maioria, julgou parcialmente


procedentes os pedidos formulados na ação
direta para: (a) declarar a inconstitucionalidade
parcial, sem redução de texto, do caput e dos
552 Mônica de Almeida Magalhães Serrano

§§ 6º-A e 10-C do art. 17, assim como do caput e


dos §§ 5º e 7º do art. 17-B, da Lei 8.429/1992,
na redação dada pela Lei 14.230/2021, de modo
a restabelecer a existência de legitimidade ativa
concorrente e disjuntiva entre o Ministério Público e
as pessoas jurídicas interessadas para a propositura
da ação por ato de improbidade administrativa e
para a celebração de acordos de não persecução
civil; (b) declarar a inconstitucionalidade parcial,
com redução de texto, do § 20 do art. 17 da
Lei 8.429/1992, incluído pela Lei 14.230/2021,
no sentido de que não existe “obrigatoriedade de
defesa judicial”; havendo, porém, a possibilidade dos
órgãos da Advocacia Pública autorizarem a realização
dessa representação judicial, por parte da assessoria
jurídica que emitiu o parecer atestando a legalidade
prévia dos atos administrativos praticados pelo
administrador público, nos termos autorizados por
lei específica; (c) declarar a inconstitucionalidade
do art. 3º da Lei 14.230/2021; e, em consequência,
declarou a constitucionalidade: (a) do § 14 do art. 17
da Lei 8.429/1992, incluído pela Lei 14.230/2021;
e (b) do art. 4º, X, da Lei 14.230/2021. Tudo nos
termos do voto ora reajustado do Relator,
vencidos, parcialmente, os Ministros Nunes
Marques, Dias Toffoli e Gilmar Mendes, nos termos
de seus votos. Presidência do Ministro Luiz Fux.
Plenário, 31.8.202227.

4.4. Das cominações na Lei de Improbidade Administrativa

A lei de Improbidade Administrativa, após alterações advindas da


14.230/2021, dispõe em seu artigo 12 sobre as cominações que o respon-
sável pelo ato de improbidade ficará sujeito, independentemente do
ressarcimento integral do dano patrimonial e das sanções penais comuns e de
responsabilidade, civis e administrativas previstas na legislação específica,

Disponível em: https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=6315955. Acesso em:


27

17 abr. 2023.
Aspectos processuais e procedimentais da aplicação da nova
Lei de Improbidade Administrativa aos processos em curso 553

que podem ser aplicadas isolada ou cumulativamente, de acordo com a


gravidade do fato, com as alterações a seguir descritas.
No tocante à hipótese do artigo 9º, a suspensão dos direitos políticos,
que era prevista entre oito e dez anos, passa a ter apenas o prazo máximo
de até quatorze anos, enquanto a multa civil ficou reduzida, passando a
ser equivalente ao valor do acréscimo patrimonial. Pela redação original
a multa poderia atingir até três vezes o valor do acréscimo patrimonial.
A proibição de contratar com o poder público ou receber benefícios ou
incentivos fiscais ou creditícios, direta ou indiretamente, ainda que por
intermédio de pessoa jurídica da qual seja sócio majoritário, pode ser
fixada até o prazo máximo de quatorze anos, enquanto na redação origi-
nária o prazo máximo era dez anos.
Já na hipótese do art.10, a suspensão dos direitos políticos, que era
prevista entre cinco e oito anos, passa a ter apenas o prazo máximo de
até doze anos, enquanto a multa civil também ficou reduzida, passando
de até duas vezes o valor do dano a ser equivalente ao valor do dano.
A proibição de contratar com o poder público ou receber benefícios ou
incentivos fiscais ou creditícios, direta ou indiretamente, ainda que por
intermédio de pessoa jurídica da qual seja sócio majoritário, passa a ser
de cinco para o máximo de doze anos.
Finalmente, na hipótese do art.11, não há mais previsão de suspen-
são de direitos políticos e a multa passa a ser de até 24 vezes o valor da
remuneração percebida pelo agente e não mais passa até cem vezes o
valor da remuneração percebida pelo agente, como previa a legislação
originária. Já a proibição de contratar com o poder público ou receber
benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios, direta ou indiretamente,
ainda que por intermédio de pessoa jurídica da qual seja sócio majoritário,
passa a ser pelo prazo não superior a quatro anos, enquanto a legislação
originária previa três anos.
A multa, ainda, pode ser aumentada até o dobro, se o valor calculado
na forma dos incisos I, II e III do caput do artigo12, em virtude da situação
econômica do réu, se mostrar ineficaz para a reprovação e prevenção do
ato de improbidade (art.12, §2º).
Vale dizer, ademais, que a sanção de proibição de contratação com
o Poder Público deve, em regra, limitar-se ao ente público lesado pelo
ato de improbidade e somente em caráter excepcional, por motivos
relevantes e devidamente justificados, observados os impactos econô-
micos e sociais das sanções, a fim de preservar a função social da pessoa
554 Mônica de Almeida Magalhães Serrano

jurídica, a sanção poderá extrapolar esse limite, de acordo com o art.12,


§4º e, na responsabilização da pessoa jurídica, deverão ser considerados
os efeitos econômicos e sociais das sanções, a viabilizar a manutenção
das atividades (art.12, § 3º).
Já a sanção da perda de função deverá, igualmente, nas hipóteses
dos incisos I e II do caput do art. 12, atingir apenas o vínculo da mesma
qualidade e natureza que o agente público ou político detinha com o
poder público na época do cometimento da infração, sendo possível ao
magistrado, na hipótese do inciso I do caput do mesmo dispositivo legal,
em caráter excepcional, entendê-la aos demais vínculos, consideradas as
circunstâncias do caso e gravidade da infração (ar.12, § 1º).
A sanção, ainda, quando se tratar de casos de menor ofensa aos
bens jurídicos tutelados pela Lei de Improbidade, poderá ficar limitada à
aplicação de multa, sem prejuízo do ressarcimento do dano e perda dos
valores obtidos, quando for o caso (art.12, § 5º).
Importante alteração traz o art. 12, parágrafo 6º, quando dispõe que,
se ocorrer lesão ao patrimônio público, a reparação do dano a que se
refere esta Lei “deverá deduzir ressarcimento ocorrido nas instâncias
criminal, civil e administrativa que tiver por objeto os mesmos fatos”.
Como bem esclarecem Gajardoni, Cruz, Gomes Junior e Favreto:

O art. 12 da Lei de Improbidade Administrativa na


sua redação original utilizava o critério usual do
Sistema Jurídico Brasileiro, qual seja, a independência
entre as esferas das responsabilidades penal,
civil e administrativa.

Sempre adotou a posição de que não haveria


qualquer violação ao sistema, nem bis in idem,
quando um mesmo fato possa justificar a aplicação
de três penalidades distintas contra uma mesma
pessoa, sendo certo que a absolvição na esfera
penal, como regra geral, poderia não ter qualquer
reflexo nas demais.

Começamos com as mudanças recentemente


aprovadas (Lei 14.230/2021). Uma das mais
importantes é que não se utiliza mais a expressão
“independentemente das sanções penais, civis e
administrativas previstas na legislação específica”.
Aspectos processuais e procedimentais da aplicação da nova
Lei de Improbidade Administrativa aos processos em curso 555

Aqui resta claro que as sanções nas outras áreas


do direito refletem nas sanções previstas na Lei de
Improbidade, em acertada opção do legislador28.

Por oportuno, o artigo 21, § 4º, dispõe:

§ 4º: A absolvição criminal em ação que discuta os


mesmos fatos, confirmada por decisão colegiada,
impede o trâmite da ação da qual trata esta Lei,
havendo comunicação com todos os fundamentos
de absolvição previstos no art. 386 do Decreto-Lei
nº 3.689, de 3 de outubro de 1941 (Código de
Processo Penal).

A doutrina já debate sobre o dispositivo legal ferir a independência


das instâncias penal, civil e administrativa, considerando, a exemplificar,
algumas hipóteses de absolvição, que podem não ter influência na esfera
cível, como no caso de não haver prova da existência do fato, como bem
aponta o Procurador de Justiça Rossini Lopes Jota:

Pois bem. O §4º, do Art. 21, da Lei 8429/92, com a


redação da Lei 14.230, de 2021, entretanto, mesmo
diante dos paradigmas seculares no que se refere
à relativa independência das instâncias (como foi
visto), fez inserir no mais expressivo mecanismo
de combate à corrupção, em suas modalidades
enriquecimento ilícito, dano ao patrimônio
público e violação de princípios da administração,
ao determinar, rompendo a clássica barreira
existente sobre as independências das instâncias,
que a absolvição criminal em ação que discuta os
mesmos fatos, confirmada por decisão colegiada,
impede o trâmite da ação da qual trata esta Lei,
havendo comunicação com todos os fundamentos
de absolvição previstos no art. 386 do Código de
Processo Penal. Entretanto, tal disposição não tem
como prevalecer. Primeiro porque não é incomum

GAJARDONI, Fernando da Fonseca; CRUZ, Luana Pedrosa de Figueiredo; GOMES JUNIOR, Luiz Manoel;
28

FAVRETO, Rogerio. Comentários à Nova Lei de Improbidade Administrativa. 5. ed. São Paulo: Thomson
Reuters, 2021. p. 171.
556 Mônica de Almeida Magalhães Serrano

que entre as instruções possa haver diferenças.


Uma testemunha que foi ouvida no inquérito civil
ou no processo judicial dele decorrente, pode não
ter sido arrolada no processo penal. Uma prova
qualquer, um documento que seja, às vezes até um
documento novo pode estar presente no processo
civil, mas não no penal e vice-versa. Uma perícia
que tenha sido realizada na ação de improbidade,
é bem possível que não tenha correspondência na
ação penal. São inúmeros os exemplos no aspecto
probatório, que recomendam que não se confundam
todas as hipóteses de absolvição na esfera penal,
com consequências na ação de improbidade29.

Importante destacar que resulta do caput do artigo 12 a ênfase ao


dever de reparação do dano patrimonial, se efetivo, que sempre deverá
ser observado, inclusive no caso de celebração de acordo de não persecu-
ção civil, que passa ser possibilitada pela Lei de Improbidade, por parte
do Ministério Público, conforme as circunstâncias do caso concreto, e,
justamente, desde que resguardado o integral ressarcimento do dano e
a reversão à pessoa jurídica lesada da vantagem indevida obtida, com o
cumprimento, ainda, das determinações do § 1º do art. 17-B e incisos.
Nota-se que houve o aumento do prazo de suspensão dos direi-
tos políticos, exceto nas hipóteses do artigo 11 da Lei de Improbidade,
bem como o aumento do prazo de proibição de contratação com o Poder
Público, além de redução de multas.
Em tal diapasão a legislação mostra aperfeiçoamento e êxito ao passo
que exibe possibilidade de sanções mais enérgicas, afastando, outrossim,
multas que poderiam configurar excessos e desproporcionalidades.
Contudo, vale aqui a advertência feita por Gajardoni, Cruz, Gomes
Junior e Favreto no sentido de que as penas de suspensão de direitos
políticos ou de proibição de contratar não são obrigatórias, podendo ser
qualquer prazo e até nenhum e refletem:

JOTA, Rossini Lopes. Efeitos da sentença penal absolutória na ação de improbidade administrativa: visão
29

crítica. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 11 fev. 2022. Disponível em: https://www.estadao.com.br/
politica/blog-do-fausto-macedo/efeitos-da-sentenca-penal-absolutoria-na-acao-de-improbidade-
administrativa-visao-critica/. Acesso em: 15 nov. 2022.
Aspectos processuais e procedimentais da aplicação da nova
Lei de Improbidade Administrativa aos processos em curso 557

De igual modo, a recíproca é verdadeira, não podem


as penas serem fixadas além dos limites previstos
em lei. E a gradação deve estar sempre relacionada
com a gravidade do ato praticado e os prejuízos
causados ao erário público e, por pressuposto,
à própria coletividade30.

Por certo, restará ao Judiciário o temperamento na interpretação


da legislação e aplicabilidade das respectivas sanções.
Significativo avanço pode ser destacado, igualmente, na possibilidade
que a legislação prevê quanto ao parcelamento do débito resultante da
condenação pela prática de improbidade, no caso de demonstração de
incapacidade financeira ou de saldar o montante de imediato, conforme
art.18, § 4º, da Lei de Improbidade, possibilitando o efetivo ressarci-
mento dos danos, além da vedação à indisponibilidade da quantia até
40 (quarenta ) salários mínimos depositados em caderneta de poupança ou
outras aplicações financeiras ou depósito em conta corrente, de acordo,
inclusive, com posição já firmada pelo Superior Tribunal de Justiça no
sentido de considerar a impenhorabilidade de valores correspondentes
até a quantia supra mencionada31.

4.5. Nova sistematização da prescrição na Lei de Improbidade


Administrativa

O conjunto de regras acerca de prescrição nas ações de improbidade


foi remodelado, apresentando nova sistematização.
De forma sintética, o prazo prescricional para a ação de improbidade
passa a ser único, de 8 (oito) anos, a partir do fato ou quando cessada
permanência quando se tratar de infração permanente, com delimitação
do prazo de suspensão pelo prazo máximo de 180 (cento e oitenta) dias
mediante a instauração de inquérito civil ou processo administrativo para
apuração do ato ilícito e previsão da prescrição intercorrente, com marcos
interruptivos expressa e claramente delimitados.

30
GAJARDONI, Fernando da Fonseca; CRUZ, Luana Pedrosa de Figueiredo; GOMES JUNIOR, Luiz Manoel;
FAVRETO, Rogerio. Comentários à Nova Lei de Improbidade Administrativa. 5. ed. São Paulo: Thomson
Reuters, 2021. p. 196.
31
Embargos de Divergência em Resp nº 1.330.567 – RS (2013/0207404-8) Relator: Ministro Luis Felipe Salomão.
558 Mônica de Almeida Magalhães Serrano

Mas é preciso detalhar. Primeiramente, vale precisar que a prescrição,


por assim dizer, de acordo com o Código Civil (art. 189), é a perda
do exercício da pretensão “Violado o direito, nasce para o titular a
pretensão, a qual se extingue, pela prescrição, nos prazos a que aludem
os Arts. 205 e 206”.
Pois bem, prevê o artigo 23 da Lei de Improbidade, já consideradas
as alterações havidas, que o prazo para a ação de improbidade será de
8 (oito) anos “A ação para a aplicação das sanções previstas nesta Lei
prescreve em 8 (oito) anos, contados a partir da ocorrência do fato ou,
no caso de infrações permanentes, do dia em que cessou a permanência”.
Aparentemente, o que se verifica é que houve um aumento do prazo
prescricional, se considerada a redação original, que previa, em regra,
o prazo de 5 (cinco) anos, resguardado, ainda, o prazo previsto em lei
específica para faltas disciplinares puníveis com demissão a bem do serviço
público, nos casos de exercício de cargo efetivo ou emprego.
Contudo, houve modificação do termo inicial para a contagem do
prazo prescricional. Anteriormente, o prazo previsto era de cinco anos,
com início da contagem após o término do exercício de mandato, de cargo
em comissão ou função e confiança ou da data da apresentação à
administração pública da prestação de contas final pelas entidades
referidas no parágrafo único da lei.
Após alterações, o prazo passa a ser único, mas contado do fato,
não mais considerando o término do exercício de mandato ou a apresen-
tação de prestação de contas à administração pública, o que tem
bastante significância.
Ademais, quando se tratar de infração permanente, o prazo prescri-
cional será contado do dia em que cessou a permanência, sendo perti-
nente esclarecer a diferença entre ato de efeito permanente e ato que
produz efeitos ao longo do tempo, como bem alerta Luana Pedrosa de
Figueiredo Cruz:

Com a alteração da legislação, há de se ter um


posicionamento mais cuidadoso, inclusive, para que
fique claro o que é ato de efeito permanente, pois,
ao nosso ver, não pode ser confundido com o ato
que produz efeitos ao longo do tempo.

Por exemplo, a contratação irregular (eventualmente


violando regras da Lei de Licitações, e que possa
Aspectos processuais e procedimentais da aplicação da nova
Lei de Improbidade Administrativa aos processos em curso 559

ser caracterizada como ato de improbidade), não é


necessariamente um ato de efeito permanente,
pois o ato irregular foi a contratação, e é a partir
dali que deverá ser contado o prazo prescricional
de 8 anos32.

Didaticamente, a autora expõe como exemplos a contratação sem


licitação, que configura ato de improbidade de infração instantânea, mesmo
que produza efeitos ao longo do tempo, e a conhecida “rachadinha”,
por sua vez, que é uma infração permanente, que a cada mês se renova33.
A Lei 14.230/2021 introduziu, ainda, a suspensão do prazo prescricio-
nal quando da instauração do inquérito civil ou de processo administrativo
para a apuração dos ilícitos referidos na Lei de Improbidade pelo prazo
máximo de 180 (cento e oitenta) dias corridos, após o qual será retomada
a contagem, concluído ou não o processo ou inquérito (art. 23 § 1º).
Já o inquérito civil ou processo administrativo terá prazo para conclu-
são de 365 (trezentos e sessenta e cinco) dias, prorrogável por mais uma
vez por igual período, mediante ato fundamentado e submetido à revisão
da instância competente do órgão ministerial, conforme lei orgânica
respectiva (art.23, § 2º).
Encerrado o prazo acima, deverá a ação ser proposta em
30 (trinta) dias, se não for caso de arquivamento do inquérito civil
(art.23, § 3º).
Pondera Marçal Justen Filho ao interpretar o parágrafo 2º do art.23
da LIA que deve o prazo de trinta dias ser reputado como não peremptório,
não se tratando, ainda, de prazo decadencial:

O prazo de trinta dias deve ser reputado como não


peremptório. Não é cabível reputar que, decorridos
esses trinta dias, tornar-se-ia vedado o exercício do
direito de ação. Essa interpretação é incompatível
com a regra do caput do art. 23, que fixa prazo
prescricional de oito anos.

32
GAJARDONI, Fernando da Fonseca; CRUZ, Luana Pedrosa de Figueiredo; GOMES JUNIOR, Luiz Manoel;
FAVRETO, Rogerio. Comentários à Nova Lei de Improbidade Administrativa. 5. ed. São Paulo: Thomson
Reuters, 2021. p. 557.
33
Ibid., p. 558.
560 Mônica de Almeida Magalhães Serrano

Nem caberia reputar que o referido prazo de trinta


dias seria decadencial, implicando a extinção da
pretensão de direito material. Essa interpretação
conduziria ao despropósito de existência de um
prazo decadencial de trinta dias apenas em relação
às hipóteses em que tivesse sido instaurado um
inquérito civil. […]34

O autor afirma, nesse sentido, que os prazos dos parágrafos 2º e 3º


do art. 23 da LIA seriam de natureza administrativa.
Por certo, de acordo com a nova sistemática de prazos prescricionais
introduzida no regime de improbidade, exige-se dos órgãos competentes
à realização dos atos fiscalizatórios e de controle um novo paradigma,
com foco nos atos perpetrados pelos gestores públicos, e uma atuação
que terá como desafio ter maior agilidade e eficiência.
Há prazos fixados para a conclusão de inquérito e processo adminis-
trativo para a apuração de atos ilícitos que possam configurar ato de
improbidade, os quais, apesar de não serem peremptórios, terão o limite
prescricional de oito anos, além dos novos ajustes à lei de improbidade
apontarem para uma lógica processual mais moderna de tramitação,
que exige maior fluidez e eficácia, em consonância, ainda, com o artigo 5º,
LXVIII, da CF.
É preciso atentar, outrossim, aos ditames do art. 17, § 6º, da LIA,
que determina que para a ação de improbidade a petição inicial deverá
individualizar a conduta do réu e apontar os elementos probatórios mínimos
que demonstrem a ocorrência das hipóteses que se enquadrariam nos
arts. 9º, 10 e 11 da lei e de sua autoria, salvo impossibilidade devidamente
fundamentada, com documentos ou justificação que contenham indícios
suficientes da veracidade dos fatos e do dolo imputado ou com razões
fundamentadas da impossibilidade de apresentação de qualquer dessas
provas, sob pena de ser rejeitada.
A petição inicial será rejeitada, igualmente, nas hipóteses previstas
pelo art. 330 do Código de Processo Civil ou quando manifestamente
inexistente o ato de improbidade imputado.

JUSTEN FILHO, Marçal. Reforma da Lei de Improbidade Administrativa comparada e comentada.


34

Rio de Janeiro: Forense, 2022. p. 254.


Aspectos processuais e procedimentais da aplicação da nova
Lei de Improbidade Administrativa aos processos em curso 561

Veja que o contexto da nova legislação exige não somente maior


agilidade e rapidez como também maior eficiência na apuração dos fatos
para que exista uma concreta e real punição aos atos ímprobos.
Relevante assinalar, ainda, que o artigo 23, § 8º, da LIA, com as
alterações advindas da Lei 14.230/2021, introduziu a denominada prescri-
ção intercorrente no regime da improbidade administrativa, consistente
na decorrência do prazo de 4 (quatro) anos, a ser considerado entre os
marcos interruptivos estabelecidos pela própria legislação, devendo, ainda,
o juiz ou tribunal reconhecê-la de ofício, após oitiva do Ministério Público.
Os marcos interruptivos estão expressamente previstos no art. 23,
§ 4º, da LIA:

§ 4º O prazo da prescrição referido no caput deste


artigo interrompe-se:

I – pelo ajuizamento da ação de improbidade


administrativa;

II – pela publicação da sentença condenatória;

III – pela publicação de decisão ou acórdão de


Tribunal de Justiça ou Tribunal Regional Federal
que confirma sentença condenatória ou que reforma
sentença de improcedência;

IV – pela publicação de decisão ou acórdão


do Superior Tribunal de Justiça que confirma
acórdão condenatório ou que reforma acórdão de
improcedência; e,

V – pela publicação de decisão ou acórdão do


Supremo Tribunal Federal que confirma acórdão
condenatório ou que reforma acórdão de
improcedência.

Vale lembrar a diferença entre a suspensão dos prazos e a interrupção,


sendo certo que nesta inicia-se nova contagem, sem considerar o perío-
do já transcorrido, prescrevendo o artigo 23, § 5º, que, interrompida a
prescrição, o prazo recomeça a correr do dia da interrupção, mas pela
metade do prazo previsto no caput, ou seja, 4 (quatro) anos. No caso da
suspensão, o prazo retoma de onde havia parado.
562 Mônica de Almeida Magalhães Serrano

Ressalte-se que a improcedência da ação não consta entre os marcos


interruptivos descritos no parágrafo da LIA, de tal forma que, interposto
recurso, não será reiniciado novo prazo para fins da contagem da prescri-
ção intercorrente. Aqui dependerá do tempo que já tenha decorrido até
a prolação da sentença e quando será julgado o recurso, pois haverá a
prescrição intercorrente pela só transcorrência do prazo de 4 (anos) desde
o ajuizamento até a decisão ou acórdão do Tribunal de Justiça ou Tribunal
Regional Federal competentes, o que mais uma vez requer novas condutas
de agilidade processual, não só por parte dos órgãos de controle e fisca-
lização, como também pelo Ministério Público e/ou parte interessada.
Para mais, a Lei de Improbidade, após as alterações havidas por força
da Lei 14.230/2021, nada dispõe sobre o prazo prescricional para as ações
de ressarcimento ao erário, fundadas na prática de ato doloso tipificado
na lei, de tal forma que tudo indica fica mantido o entendimento que já
fora sedimentado pelo Supremo Tribunal Federal sobre a questão, objeto
do Tema 897 (Repercussão Geral) no sentido da imprescritibilidade:

O Tribunal, por maioria, apreciando o tema 897


da repercussão geral, deu parcial provimento ao
recurso para afastar a prescrição da sanção de
ressarcimento e determinar o retorno dos autos ao
tribunal recorrido para que, superada a preliminar
de mérito pela imprescritibilidade das ações de
ressarcimento por improbidade administrativa,
aprecie o mérito apenas quanto à pretensão de
ressarcimento. Vencidos os Ministros Alexandre do
Moraes (Relator), Dias Toffoli, Ricardo Lewandowski,
Gilmar Mendes e Marco Aurélio. Em seguida,
o Tribunal fixou a seguinte tese: “São imprescritíveis
as ações de ressarcimento ao erário fundadas
na prática de ato doloso tipificado na Lei de
Improbidade Administrativa”, vencido o Ministro
Marco Aurélio. Redigirá o acórdão o Ministro Edson
Fachin. Nesta assentada, reajustaram seus votos,
para acompanhar a divergência aberta pelo Ministro
Edson Fachin, os Ministros Luiz Fux e Roberto
Barroso. Presidiu o julgamento a Ministra Cármen
Lúcia. Plenário, 8.8.201835.

35
STF, Pleno, RE 852475, Relator Ministro Alexandre de Moraes – Tema 897 – Prescritibilidade da pretensão
de ressarcimento ao erário em face de agentes públicos por ato de improbidade administrativa.
Aspectos processuais e procedimentais da aplicação da nova
Lei de Improbidade Administrativa aos processos em curso 563

5. Desconstituição das decisões judiciais proferidas antes do


advento da nova lei

Tema que tem gerado discussão é sobre a possibilidade ou não de


retroatividade da Lei de Improbidade, após alterações sofridas pela
Lei 14.230/2021.
No tocante aos atos processuais, incidirá a denominada ‘teoria de
isolamento dos atos processuais’, como regra de direito intertemporal,
como bem esclarece Humberto Theodoro Júnior:

A regra de direito intertemporal a prevalecer,


na espécie, é no sentido de que a lei processual nova
deve respeitar os atos processuais já realizados,
bem como os seus efeitos, aplicando-se somente aos
atos subsequentes que não tenham nexo imediato e
inafastável com o ato praticado sob o regime da lei
antiga ou com os seus efeitos. É exatamente dessa
maneira que se deve interpretar e aplicar a teoria do
sistema de isolamento dos atos processuais, no plano
do direito intertemporal36.

Assim, aplica-se a lei de forma imediata, mas os atos processuais


devem ser considerados de forma independente, ficando preservados os já
praticados. Nesse sentido, prescreve o artigo 14 do Código de Processo Civil:

Art. 14. A norma processual não retroagirá e será


aplicável imediatamente aos processos em curso,
respeitados os atos processuais praticados e as
situações jurídicas consolidadas sob a vigência da
norma revogada.

Mas grande dúvida paira sobre as demais normas, de conteúdo


material, e as que geram tratamento mais benéfico. Em tal caso, o que
se questiona é se seria possível a aplicabilidade da lei retroativa mais
benéfica, tal como ocorre no direito penal.
Como já tratado no item 4.2 acima, não se verifica uma total
correlação entre o Direito Penal e o Direito Administrativo Sancionador.

Disponível em: http://www.mpsp.mp.br/portal/page/portal/documentacao_e_divulgacao/doc_biblioteca/


36

bibli_servicos_produtos/bibli_boletim/bibli_bol_2006/RBA_n.0.08.PDF. Acesso em: 17 abr. 2023.


564 Mônica de Almeida Magalhães Serrano

A Lei de Improbidade Administrativa Direito Administrativo, em sua


nova versão, através do art. 1º, § 4º, disciplina a aplicabilidade dos princí-
pios do direito saneador, o que implica a adoção de princípios que lhe
são decorrentes, tal como o princípio da legalidade, do devido processo
legal, entre outros, em decorrência dos direitos e garantias individuais
implementados pela ordem constitucional.
Isso não significa a equiparação entre o direito sancionador e o direito
penal, sendo certo que não se aplica ao primeiro todos os princípios e
garantias próprios do Direito Penal.
Assim é que não há aplicabilidade ao direito sancionador nem ao
sistema de improbidade administrativa do princípio da retroatividade da
lei penal mais benéfica, como bem nos observa Ricardo Barros Leonel:

Tornando à improbidade, é importante recordar


que o artigo 37, § 4º, da CF tem redação que faz
clara distinção entre as sanções penais e aquelas
aplicáveis aos atos de improbidade administrativa,
que têm natureza e conteúdo civil (não penal).
Assenta que elas serão aplicáveis “sem prejuízo da
ação penal cabível”.

Por outro lado, ao tratar da irretroatividade da lei


penal incriminadora e da excepcional retroatividade
da lei penal mais benéfica, o art. 5º, XL, da CF é
taxativo ao firmar sua referência à “lei penal”37.

Dessa forma, não há que se falar em retroatividade de lei mais


benéfica para atos de improbidade.
A aplicabilidade se dá nos casos, por exemplo, de ações de impro-
bidade que tinham por objeto a condenação de ato ímprobo por conduta
culposa ante o implemento da conduta dolosa, ou que deixou de ter
tipicidade com as alterações havidas pela Lei 14.230/2021, se ainda não
definitivamente julgado.
Parte da doutrina defende a retroatividade da lei mais benéfica no
âmbito do direito administrativo sancionador, como Luana Pedrosa de
Figueiredo Cruz:

LEONEL, Ricardo de Barros. Nova LIA: aspectos da retroatividade associada ao Direito Sancionador.
37

Consultor Jurídico, 17 nov. 2021. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-nov-17/leonel-lia-


retroatividade-associada-direito-sancionador. Acesso em: 12 nov. 2022.
Aspectos processuais e procedimentais da aplicação da nova
Lei de Improbidade Administrativa aos processos em curso 565

No direito penal essa regra está consolidada no inciso


XL art. 5º da Constituição Federal que descreve o
princípio da irretroatividade da lei penal. Neste
contexto, a lei sempre retroagirá para trazer ao réu
uma situação mais benéfica.

A indagação é se tal princípio é aplicável no âmbito


do direito administrativo sancionador e a resposta é,
desde já, positiva. E está em total consonância
com a Justificativa do Projeto de Lei quando da sua
apresentação no Congresso Nacional: “Demais disso,
o texto também altera, de maneira direta, a lógica e
o sistema de sanções por atos de improbidade. Algum
paralelo foi feito com o processo penal, na medida
em que se optou por um modelo elástico e aberto,
baseado em parâmetros mínimos e máximos a serem
aplicados pelo magistrado mediante fundamentação
e justificação tal e qual o processo de dosimetria
estabelecido nos processos criminais”38.

O Supremo Tribunal Federal, de todo modo, enfrentando a questão


no bojo ARE 843989, com repercussão geral – Tema 1.199, firmou enten-
dimento pela irretroatividade nos casos de improbidade:

O Tribunal, por unanimidade, apreciando o


tema 1.199 da repercussão geral, deu provimento
ao recurso extraordinário para extinguir a
presente ação, e, por maioria, o Tribunal acompanhou
os fundamentos do voto do Ministro Alexandre de
Moraes (Relator), vencidos, parcialmente e nos
termos de seus respectivos votos, os Ministros André
Mendonça, Nunes Marques, Edson Fachin, Roberto
Barroso, Rosa Weber, Dias Toffoli, Cármen Lúcia,
Ricardo Lewandowski e Gilmar Mendes. Na sequência,
por unanimidade, foi fixada a seguinte tese:
“1)  É  necessária a comprovação de responsabilidade
subjetiva para a tipificação dos atos de improbidade
administrativa, exigindo-se – nos artigos 9º, 10 e 11
da LIA – a presença do elemento subjetivo – DOLO;

38
GAJARDONI, Fernando da Fonseca; CRUZ, Luana Pedrosa de Figueiredo; GOMES JUNIOR, Luiz Manoel;
FAVRETO, Rogerio. Comentários à Nova Lei de Improbidade Administrativa. 5. ed. São Paulo: Thomson
Reuters, 2021. p. 51.
566 Mônica de Almeida Magalhães Serrano

2) A norma benéfica da Lei 14.230/2021 – revogação


da modalidade culposa do ato de improbidade
administrativa –, é IRRETROATIVA, em virtude do
artigo 5º, inciso XXXVI, da Constituição Federal,
não tendo incidência em relação à eficácia da
coisa julgada; nem tampouco durante o processo
de execução das penas e seus incidentes; 3) A nova
Lei 14.230/2021 aplica-se aos atos de improbidade
administrativa culposos praticados na vigência
do texto anterior da lei, porém sem condenação
transitada em julgado, em virtude da revogação
expressa do texto anterior; devendo o juízo
competente analisar eventual dolo por parte do
agente; 4) O novo regime prescricional previsto na
Lei 14.230/2021 é IRRETROATIVO, aplicando-se
os novos marcos temporais a partir da publicação
da lei”. Redigirá o acórdão o Relator. Presidência
do Ministro Luiz Fux. Plenário, 18.8.202239.

Acabou por prevalecer o entendimento do Relator, Ministro Alexandre


de Moraes, no sentido de que a Lei de Improbidade está no âmbito do
direito administrativo sancionador e não do direito penal, de tal forma que,
mesmo consubstanciando norma mais benéfica, não retroage.
Desta forma, seguindo entendimento do Supremo Tribunal Federal,
a nova lei de improbidade só se aplicará a atos culposos praticados na
vigência da norma anterior se a ação ainda não tiver decisão definitiva.
Ademais, a continuidade da ação, caso não exista decisão definitiva,
dependerá de análise concreta da presença do elemento dolo, exigido
pela nova lei, sob pena de extinção. Nos casos em que há coisa julgada,
não se aplica a nova lei.
O julgamento incluiu também reflexos ao regime de prescrição,
tendo sido fixada a tese de irretroatividade, de tal forma que se aplica
a nova legislação a partir da publicação, seja no tocante à prescrição
inicial ou intercorrente.

Disponível em: https://portal.stf.jus.br/jurisprudenciaRepercussao/verAndamentoProcesso.asp?


39

incidente=4652910&numeroProcesso=843989&classeProcesso=ARE&numeroTema=1199. Acesso em:


17 abr. 2023.
Aspectos processuais e procedimentais da aplicação da nova
Lei de Improbidade Administrativa aos processos em curso 567

6. Conclusões

A Lei de Improbidade Administrativa sofreu alterações intensas,


a partir da Lei 14.230/2021, sendo possível afirmar que se trata de um
novo regime de improbidade administrativa.
A Lei de Improbidade, em sua versão original (8.429/1992), apesar de
significar quando edificada um caminho inovador no combate às atuações
ímprobas, necessitava, pelos anos já decorridos, ser atualizada, seja por
distorções que provocava, seja pela adequação às nuances sociais e legais
do mundo atual.
No âmbito doutrinário, parte dos autores defendem que a nova lei se
mostra mais concernente com os ditames democráticos e com instrumen-
tos de maior garantia, inclusive com a exigência, para fins de tipificação
de ato ímprobo, de conduta dolosa, o que afastaria a condenações com
base em meras presunções.
Por outro lado, parte da doutrina teme que a nova lei venha a signi-
ficar um afrouxamento no combate à corrupção e atos ilícitos.
Contudo, a nova lei de improbidade traz avanços, com instrumentos
que consagram a observância de direitos e garantias consagradas consti-
tucionalmente e, por certo, viabilizará eficácia com a interpretação de
seus dispositivos, de acordo com os princípios da proporcionalidade e
razoabilidade, cabendo ao Judiciário, em tal ponto, papel de vital impor-
tância na condução interpretativa.

Referências bibliográficas

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Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, v 95, p. 147-166, 2000.
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FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Corrupção e democracia. Revista de
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GAJARDONI, Fernando da Fonseca; CRUZ, Luana Pedrosa de Figueiredo,
GOMES JUNIOR, Luiz Manoel; FAVRETO, Rogerio. Comentários à Nova Lei
de Improbidade Administrativa. 5. ed. São Paulo: Thomson Reuters, 2021.
568 Mônica de Almeida Magalhães Serrano

GOMES, Gabriel Gorga. O jeitinho brasileiro e a corrupção. Âmbito


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cadernos/direito-penal/o-jeitinho-brasileiro-e-a-corrupcao/. Acesso em:
10 nov. 2022.
JOTA, Rossini Lopes. Efeitos da sentença penal absolutória na ação de
improbidade administrativa: visão crítica. O Estado de S. Paulo, São Paulo,
11 fev. 2022. Disponível em: https://www.estadao.com.br/politica/
blog-do-fausto-macedo/efeitos-da-sentenca-penal-absolutoria-na-acao-
de-improbidade-administrativa-visao-critica/. Acesso em: 15 nov. 2022.
JUSTEN FILHO, Marçal. Reforma da Lei de Improbidade Administrativa
comparada e comentada. Rio de Janeiro: Forense, 2022.
LEONEL. Ricardo de Barros. Nova LIA: aspectos da retroatividade associada
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965

Breves notas sobre a desconsideração


da personalidade jurídica no processo
de tutela da probidade administrativa

Flávio Luiz Yarshell1


Advogado

Introdução

Dentre as inúmeras alterações trazidas pela Lei 14.230/2021, uma que


parece ter relevância teórica e pragmática é a que diz com a disciplina da
desconsideração da personalidade jurídica. Assim ocorre não exatamente
por se tratar de uma novidade: para ficar no passado recente, o Código
de Processo Civil já houvera disciplinado o modo de se realizar referida
desconsideração, conforme regras dos artigos 133 a 137, aplicáveis subsidia-
riamente no âmbito do processo de improbidade, tanto quanto já deveriam
ser na esfera processual penal2 – o que tem relevância se considerada
a estreita relação entre esse último e os processos civis sancionadores,
dentre os quais se insere aquele de que ora se trata. Sem embargo disso,
a relevância do tema deriva, de um lado, da considerável complexidade
das alterações trazidas pela nova legislação; e, de outro, das dúvidas que,

1
Professor Titular do Departamento de Direito Processual da Faculdade de Direito da Universidade de
São Paulo (USP). Árbitro.
2
Vista a questão sob a óptica da funcionalidade da pessoa jurídica, a apreensão de bens com fun-
damento no art. 4º da Lei n. 9.613/1998 é explicável pela ideia de desconsideração da personali-
dade jurídica inversa. Colhe-se, aliás, da jurisprudência, caso em que se reconheceu exatamente
tratar-se de desconsideração inversa, não obstante, ali, corretamente, ter-se concluído que a
hipótese deveria ser tratada com cuidado (cf. TRF-1, 2ª Seção, MS n. 0066532-97.2014.4.01.0000,
rel. Juiz convocado Leão Aparecido Alves, j. 15.6.2016, p. 28.6.2016). De forma semelhante,
o art. 4ª da Lei 9.605/1998, que trata das sanções penais e administrativas derivadas de condutas
e atividades lesivas ao meio ambiente, dispõe expressamente que “Poderá ser desconsiderada a
pessoa jurídica sempre que sua personalidade for obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados
à qualidade do meio ambiente”. Sobre a desconsideração no âmbito do Direito penal, ver: LOBATO,
José Danilo Tavares. Responsabilidade penal da pessoa jurídica: uma inconsistência dogmática e de
princípios. Revista da EMERJ, vol. 13, n. 50, p. 270-271, 2010; FELICIANO, Guilherme Guimarães.
Desconsideração e consideração da pessoa jurídica no Direito Penal Ambiental: convergindo antí-
teses aparentes para a tutela penal do meio ambiente humano. Revista da Faculdade de Direito,
Universidade de São Paulo, v. 108, p. 491-528, 2013; YARSHELL, Flávio Luiz. Desconsideração da
personalidade jurídica no processo pena. Carta Forense, ago. 2018.
570 Flávio Luiz Yarshell

ainda hoje, permeiam o tema da desconsideração da personalidade


jurídica – tudo a sugerir novos desafios e questões no específico campo
da improbidade administrativa, sobre os quais doutrina e jurisprudência
deverão se debruçar.
O objetivo deste confessadamente limitado e despretensioso artigo é
o de indicar alguns desses potenciais pontos de relevo e de sugerir possíveis
soluções que permitam, de um lado, que o escopo de repressão aos atos de
improbidade não seja indevidamente frustrado; mas que, de outro lado,
não sejam praticadas violações ao devido processo legal e, menos ainda,
indevidas extensões de responsabilidade patrimonial, a pretexto de tutela
da probidade administrativa.

1. Exame da legitimidade passiva: os elementos configuradores


da improbidade não se confundem com os requisitos autorizadores da
desconsideração da personalidade jurídica

Para que se compreenda o fenômeno da desconsideração da perso-


nalidade jurídica no âmbito do processo sancionador de improbidade
administrativa, parece útil partir da análise da legitimidade passiva na
referida demanda, que abrange todos quantos estejam sujeitos às sanções
ao ressarcimento/devolução de bens e às sanções legais, previstas nos
§§ 6º e 7º do art. 1º, no art. 2º e no art. 3º da Lei 8.429/1992. Trata-se de
requisito cujo controle deve ser feito em estado de asserção3, de tal sorte
que saber quais pessoas devem efetivamente responder é questão relativa
ao mérito da causa – com a ressalva, justamente por isso, de ser possível
controle prévio pelo juiz se, desde logo, verificar que, nem mesmo em
tese, a pessoa demandada se enquadra nas figuras previstas pela Lei como

Na doutrina, ver, exemplificativamente: BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Legitimação para Agir.
3

Indeferimento de Petição Inicial. In: Temas de Direito Processual: 1ª Série. São Paulo: Saraiva, 1977. p. 200;
YARSHELL, Flávio Luiz. Tutela jurisdicional específica nas obrigações de declaração de vontade. São Paulo:
Saraiva, 1993. p. 112; WATANABE, Kazuo. Da cognição no processo civil. 3. ed. São Paulo: DPJ Editora, 2005.
p. 92-93; COSTA, Susana Henriques da. Condições da Ação. São Paulo: Quartier Latin, 2005. p. 135;
YARSHELL, Flávio Luiz. Tutela jurisdicional. 2. ed. São Paulo: DPJ Editora, 2006. p. 106-107; BEDAQUE,
José Roberto dos Santos. Direito e processo. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 92-97; LUCON,
Paulo Henrique dos Santos. Relação entre demandas. Brasília: Gazeta Jurídica, 2016. p. 169-170;
YARSHELL, Flávio Luiz. Curso de direito processual civil. 2. ed. São Paulo: Marcial Pons, 2020. p. 334-335.
Na jurisprudência, mais recentemente, ver: STJ, 3ª T., REsp n. 1.991.550/MS, rel. Min. Nancy Andrighi,
j. 23.8.2022, DJe 25.8.2022.
Breves notas sobre a desconsideração da personalidade jurídica
no processo de tutela da probidade administrativa 571

aptas à prática dos ilícitos ali previsto e, portanto, passíveis de submissão


às respectivas sanções.
Em duas passagens – nos §§ 7º e 15, dos artigos 16 e 17, respecti-
vamente – o texto alude à desconsideração da personalidade jurídica e,
em ambas, remete à aplicação subsidiária do CPC. Em se tratando de
improbidade que envolva pessoa jurídica, é preciso considerar os fatos e
fundamentos que lhe sejam imputados. Assim, para além de acusação que
eventualmente possa ser feita aos sócios, membros ou administradores por
atos próprios (art. 3º, § 1º), se atos forem também imputados à entidade,
então ela deverá figurar como demandada. Nesse caso, não se tratará de
desconsideração de personalidade jurídica, mas de responsabilidade civil
direta, vez que os fatos e fundamentos caracterizadores da improbidade
administrativa são diversos daqueles que justificam a desconsideração –
seja essa última invocada com base no art. 50 do Código Civil, seja com
base em algum outro dispositivo aplicável para esse fim específico.
Dessa forma, de desconsideração só se pode cogitar para efeito de
extensão de responsabilidade patrimonial, mas não para a aplicação das
penas previstas pela Lei, salvo se o “terceiro” de que se pudesse cogitar
(sociedade ou sócios, conforme o sentido da pretendida desconsideração)
tiver, ele próprio, praticado alguma das condutas típicas. Nesse caso,
à referida pessoa se deve chegar por imputação direta de ato ímprobo;
caso em que, aí sim, mediante o exercício do contraditório a partir
de postulação nesse específico sentido, ele estará também sujeito à
imposição das sanções do art. 12 (que não as medidas patrimoniais de
caráter restitutório).
Portanto, é preciso cuidado para separar fenômenos relativos ao
débito (Schuld), de um lado, e à responsabilidade (sem débito, Haftung)
de outro. Naquele primeiro, por exemplo, é que está situada eventual
solidariedade, fenômeno associado à obrigação. Tal é o que se extrai da
letra do art. 264 do Código Civil, que atrela o conceito de solidariedade
ao de obrigação. Como ensina a doutrina, que “É solidária a obrigação
de quem assume, em reforço, a dívida (adesão à dívida, Schuldbeitritt,
ou coassunção de dívida […]”4. Assim, “A obrigação solidária passiva
pode ser conceituada como a relação obrigacional, oriunda de lei ou de
vontade das partes, com multiplicidade de devedores, sendo que cada um

4
Cf. PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado. São Paulo: RT, 2012. t. 22,
§ 2754, n. 3. Versão e-book baseada na ed. atual. de 2012.
572 Flávio Luiz Yarshell

responde in totum et totaliter pelo cumprimento da prestação, como se


fosse o único devedor”5 – relembrando-se que

A obrigação, como categoria do direito material,


é portanto uma situação jurídica visivelmente
estática, que não contém em si nem oferece ao
titular do direito qualquer força ou autorização
para efetivamente trazer a seu patrimônio o que
lhe é devido, contra a vontade do obrigado […].

Já o tema da responsabilidade patrimonial

associa-se intimamente ao dessas atividades realizadas


pelo Estado-juiz no exercício da jurisdição, não se
confundindo com a problemática jurídico-substancial
da determinação da existência, inexistência, conteúdo
ou objeto dos direitos e obrigações6.

Disso é possível extrair que o surgimento da solidariedade, ao menos


por regra, deve ser contemporâneo à constituição da própria obriga-
ção na medida em que é naquele momento que se define quem são os
credores e os devedores. Se, depois daquele momento, alguém assume a
posição de devedor solidário em relação a uma dada obrigação anterior-
mente constituída, isso só poderá ocorrer por obra de eventual nova
manifestação de vontade; que, embora até prescinda da vontade do
devedor originário, jamais dispensaria a expressa e inequívoca declara-
ção da pessoa que também assumisse a dívida. Como destaca a doutrina,
“[…] se não houver menção explícita no título constitutivo da obrigação
ou em algum artigo de lei, ela não será solidária, porque a solidariedade
não se presume”7. Ela pode “surgir simultaneamente com a obrigação a
que adere, como acontece usualmente, como também em ato separado e

5
Cf. GONÇALVES, Carlos Roberto. Comentários ao Código Civil brasileiro. Rio de Janeiro: Forense, 2003.
v. 3, p. 171.
6
Cf. DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 2019.
v. 4, p. 326-327.
7
Cf. GONÇALVES, Carlos Roberto. Comentários ao Código Civil brasileiro. Rio de Janeiro: Forense, 2003.
v. 3, p. 148-149.
Breves notas sobre a desconsideração da personalidade jurídica
no processo de tutela da probidade administrativa 573

posterior, que faça menção à obrigação originária”8 – o que, como dito,


pressupõe a voluntária, expressa e inconfundível adesão de um terceiro
à dívida9, em verdadeira “associação de crédito mútuo”, para empregar
expressão cunhada pela doutrina brasileira clássica, que bem destacou:
“Por ser excepcional em nosso direito civil a solidariedade, e, pois,
impresumível, razão é conste no contrato ou no ato, inequivocamente”10 –
tal como resulta do disposto no art. 265 do Código Civil.
Essas constatações têm repercussão relevante na medida em que,
diversamente do que se passa no caso de extensão de responsabilidade
patrimonial fundada em desconsideração da personalidade jurídica (que,
diga-se, pressupõe alguma forma de abuso ou de fraude), tratando-se de
pretensão ao reconhecimento de débito, é imprescindível que o suposto
devedor tenha participado da formação da decisão condenatória, isto é,
que tenha integrado a fase de conhecimento, como decorre da letra expres-
sa do § 5º do art. 513 do CPC, taxativo ao estatuir que “O cumprimento da
sentença não poderá ser promovido em face do fiador, do coobrigado ou
do corresponsável que não tiver participado da fase de conhecimento”;
regra que, de resto, já se reconhecia sob a égide do diploma precedente,
consoante firme jurisprudência, bem ilustrada pelo teor do verbete 268
da jurisprudência sumulada do Superior Tribunal de Justiça11.
Sobre isso, bem já se ponderou que

Essa circunstância de responsabilidade patrimonial


executiva por débito alheio não se mescla com
as hipóteses de responsabilidade patrimonial
por fato de outrem, no mais das vezes advinda de
responsabilização solidária de caráter civil. O divisor
de águas entre as duas situações é a inexistência
de débito próprio na hipótese de responsabilidade
executiva secundária, além de ser esta materializável
diretamente na seara executiva, ao passo que,
nos cenários de responsabilidade patrimonial por
fato de outrem, em geral, há estipulação legal

8
Cf. GONÇALVES, Carlos Roberto. Comentários ao Código Civil brasileiro. Rio de Janeiro: Forense, 2003.
v. 3, p. 148-149.
9
Cf. LÔBO, Paulo. Obrigações. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2011. p. 137.
10
Cf. NONATO, Orosimbo. Curso de obrigações. Rio de Janeiro, Forense, 1959. v. 2, p. 171, 177.
11
“O fiador que não integrou a relação processual na ação de despejo não responde pela execução
do julgado”.
574 Flávio Luiz Yarshell

responsabilizando alguém por agir alheio, geralmente


em caráter solidário, porém exigente de apuração
judicial prévia com consequente condenação
em processo cognitivo, vale dizer, o responsável
patrimonial por fato de outrem será responsável
executivo primário, porque necessariamente
terá que ter tido contra si a prolação de sentença
condenatória prévia (será, portanto, devedor e
responsável patrimonial)12.

De forma coerente com esse pensamento, já havíamos asseverado,


em âmbito doutrinário, que

[…] se o demandante entende que determinada


pessoa está obrigada (plano do débito) a determinada
prestação, ele tem o ônus de inserir o suposto devedor
no polo passivo da relação processual em sua fase
cognitiva: uma coisa é desconsiderar personalidade
para estender responsabilidade patrimonial; outra –
juridicamente inviável – é instaurar execução
ou cumprimento de sentença à mingua de título
executivo. Tal é o que se extrai do § 5º do art. 513 e
do art. 783 do CPC 201513.

Esse é, aliás, o único entendimento possível à luz dos postulados


constitucionais do devido processo legal e do contraditório.
A propósito, isso faz lembrar da questão relativa ao momento da
desconsideração: se o Ministério Público ou a pessoa jurídica prejudica-
da desde logo tiverem – ou puderem ter – conhecimento de fatos que
autorizam a desconsideração, a bem da segurança jurídica e, ainda,
por lealdade, é ônus do demandante indicar tais fatos desde logo na
inicial e, nesse caso, observar-se-á o disposto no § 2º do art. 134 do CPC.

12
Cf. MELLO, Rogerio Licastro Torres de. Responsabilidade executiva secundária: a execução em face do
sócio, do cônjuge, do fiador e afins. São Paulo: RT, 2016. n. 17. Versão e-book baseada na 1ª ed. impressa.
13
Cf. YARSHELL, Flávio Luiz. O incidente de desconsideração da personalidade jurídica dono CPC 2015:
aplicação e outras formas de extensão da responsabilidade patrimonial. In: YARSHELL, Flávio Luiz;
PEREIRA, Guilherme Setoguti Julio. Processo societário II. São Paulo: Quartier Latin, 2015. p. 214-215.
Nesse mesmo sentido, cf. YARSHELL, Flávio Luiz. Do incidente de desconsideração da personalidade
jurídica. In: CABRAL, Antonio do Passo; CRAMER, Ronaldo. Comentários ao novo Código de Processo Civil.
2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2016. p. 229.
Breves notas sobre a desconsideração da personalidade jurídica
no processo de tutela da probidade administrativa 575

É certo que isso precipitará a vigência dos encargos decorrentes da


litispendência para o “terceiro”; que, nesse caso, desde logo assumirá
a posição de litisconsorte passivo (embora o fundamento que lhe seja
imputado seja diverso da improbidade). Mas, a contrapartida disso –
em prol da segurança jurídica – é se evitar que a desconsideração venha
a ocorrer muito tempo depois, com potenciais implicações patrimoniais
relevantes ou mesmo à duração do processo, e que inclusive podem
envolver outras pessoas; o que é bem ilustrado pela hipótese do § 3º do
art. 792 do CPC. De outra parte, justamente por se considerar o encargo
que a litispendência representa, será preciso que o juiz avalie com
cuidado a formação do polo passivo, evitando-se que o processo possa
se traduzir em ônus não razoável ou proporcional para o demandado.
Em última análise, a inclusão desde logo, pelo autor, permitirá que o
juiz avalie se efetivamente é – ou pode ser – caso de desconsideração,
de sorte a resolver o quanto antes possível esse tema.

2. Constrição de bens fundada em desconsideração da personalidade


jurídica: por regra, só deve ocorrer depois de processado e decidido o
incidente de desconsideração

Ao tratar da indisponibilidade de bens, cuja natureza é essen-


cialmente a de um arresto, a nova Lei passou expressamente a exigir
a demonstração do perigo da demora, que não pode ser simplesmente
presumido e que deve ser visto à luz da relevância dos fundamentos da
demanda (art. 16, §§ 3º e 4º)14. A prévia oitiva do réu – na esteira do
princípio constitucional do contraditório – deve ser a regra (§ 4º) e, nesse
particular, as mudanças trazidas pela Lei 14.230/2021 estão em linha
com as do CPC/15, no tocante às necessidades de estrita observância
do contraditório e do dever de motivação (artigos 9º, 10 e 489, § 1º).
Embora a medida possa recair sobre todos os bens sujeitos à regra
de responsabilidade patrimonial (inclusive de ativos que se encontrem
no Exterior, mediante cooperação), sua extensão é determinada pelo
valor do dano indicado na inicial, considerando-se eventual somatória
se e quando houver mais de um réu (§§ 5º e 6º do art. 16). Sobre isso, é

14
Em semelhante sentido, ver: JUSTEN FILHO, Marçal. Reforma da Lei de Improbidade Administrativa:
comparada e comentada. São Paulo: Forense, 2021. p. 191-192; COSTA, Rafael de Oliveira; BARBOSA,
Renato Kim. Nova Lei de Improbidade Administrativa: de acordo com a Lei n. 14.230/2021. São Paulo:
Almedina, 2022. p. 171.
576 Flávio Luiz Yarshell

necessário um juízo preliminar de plausibilidade dos alegados danos e


do respectivo valor, à luz dos elementos probatórios que possam instruir
a inicial (ou que surjam no curso do processo). Portanto, não devem
prevalecer simples alegações ou estimativas feitas pelo Ministério Público,
sujeito parcial que é. Aliás, se é dado ao juiz controlar, diante de título
executivo, os valores pretendidos pelo autor (CPC, art. 524 e §§ 1º a 5º),
com maior razão ele deve fazê-lo quando ainda se trabalha apenas com
a alegação do autor e sem cognição mais aprofundada. Isso pode ser
ilustrado pelo disposto no § 3º do art. 18 da Lei, que considera, para fins
de apuração de valor de ressarcimento, o desconto daquele relativo aos
“serviços efetivamente prestados.
No caso de bens de terceiro, há duas hipóteses consideradas pela
Lei (art. 16, § 7º), na esteira das considerações feitas no tópico anterior:
ou tal pessoa concorreu para o ilícito (em estado de asserção e elementos
preliminares de convicção) – caso em que não se trata de um terceiro
porque tal sujeito deve ser demandado, isto é, deve ocupar o polo passivo
da relação processual; ou se trata de pessoa à qual se poderá chegar por
desconsideração da personalidade jurídica – cujos fundamentos, como já
destacado, são diversos dos tipos previstos pela lei, como configuradores
de improbidade administrativa. No segundo caso, aplicam-se as regras
que norteiam a constrição de bens dos legitimados passivos por respon-
sabilidade direta e, claro, é de rigor que a medida seja precedida da
observância do devido processo legal.
Não se nega que,

em casos excepcionais e devidamente justificados,


será possível postergar o contraditório do terceiro,
mediante a edição de tutela provisória cautelar.
Isso porque, evidentemente, a oitiva prévia que se
dá ao terceiro não pode servir de oportunidade para
que ele frustre a medida executiva, se e quando
deferida. Portanto, excepcionalmente, mediante os
requisitos próprios da tutela de urgência (art. 300),
poderá ser determinada a apreensão de patrimônio
penhorável do terceiro supostamente responsável,
antes que decidida a pretensão de desconsideração15.

Cf. YARSHELL, Flávio Luiz. O incidente de desconsideração da personalidade jurídica dono CPC 2015:
15

aplicação e outras formas de extensão da responsabilidade patrimonial. In: YARSHELL, Flávio Luiz;
PEREIRA, Guilherme Setoguti Julio. Processo societário II. São Paulo: Quartier Latin, 2015. p. 224.
Breves notas sobre a desconsideração da personalidade jurídica
no processo de tutela da probidade administrativa 577

Mas, de nada adiantaria consagrar o instituto que, como visto,


dá grande importância ao contraditório prévio se, de outra parte, medidas
constritivas de urgência fossem deferidas com complacência. Por vias
oblíquas, estar-se-ia fazendo letra morta da importante inovação que o
CPC/15 positivou e que a Lei 14.230/2021 incorporou. Por outras palavras,
não é a simples potencialidade de desconsideração que pode autorizar a
invasão patrimonial porque, fosse assim, e as coisas continuariam a ser
como antes; ou até piores, na medida em que, no sistema precedente,
na disciplina legal dos embargos de terceiro, para além da previsão de
tutela liminar da posse prevista no art. 1.051 do CPC/1973, o art. 1.052
desse mesmo diploma era taxativo ao dizer que “determinará o juiz a
suspensão do curso do processo principal”.
A respeito do tema, já se lembrou que

Um dos argumentos de quem defende a necessidade


de penhorar primeiro e diferir a oportunidade de
defesa do sócio estaria lastreado no fato de que a
demora ou ciência prévia poderia ser um catalizador
das fraudes ou inviabilizar sua repressão.

Contudo, como bem se ponderou,

Vão passos largos, contudo, até assumir que o risco de


dilapidação possa, de imediato, permitir (autorizar)
a desconsideração sem participação efetiva,
em contraditório, da pessoa atingida, furtando-lhe
a possibilidade de documentar (em sentido amplo)
a inocorrência de fraude, uso regular da pessoa
jurídica, ou, mais genericamente, a inexistência
dos requisitos de direito material que autorizariam
a sua responsabilização16.

Ainda, é judiciosa a lição segundo a qual

Cf. VIEIRA, Christian Garcia. Desconsideração da personalidade jurídica no Novo CPC: natureza,
16

procedimentos e temas polêmicos. Salvador: JusPodivm, 2016. p. 151-154. De forma semelhante,


vide CINTRA, Lia Carolina Batista. Intervenção de terceiro por ordem do juiz: a intervenção iussu
iudicis no processo civil. São Paulo: RT, 2017. p. 164-166.
578 Flávio Luiz Yarshell

Quando o objetivo da disregard doctrine é


justamente o de estender os efeitos de certas e
determinadas obrigações, responsabilizando sócios
ou administradores por dívidas da sociedade, deve-se
ter em mente que, por regra, a execução pressupõe
a existência de título executivo contra aquele a
quem se dirigirão os atos expropriatórios, e, desta
maneira, não haverá possibilidade de se proceder
à execução sobre o patrimônio dos responsáveis
secundários, enquanto não julgado o pedido de
desconsideração da personalidade.

E mais:

Não haveria sentido em antecipar a condenação


sobre direitos patrimoniais, exceto em relação
às hipóteses de evidência, porque, se de um lado
temos o afirmado direito de propriedade de uma
parte, do outro também está presente interesse
da mesma natureza. Haverá, aí, hipótese em que
se deverá aguardar o tempo necessário para o
desenvolvimento da cognição exauriente, em tese,
de razoável duração17.

Como sabido, eventual fraude não se presume. Pelo contrário,


é da doutrina que o ônus da prova é sempre de quem alega sua suposta
existência. Para ilustrar, lembre-se da lição segundo a qual se a “fraude
é alegada pelo credor e seu reconhecimento beneficiará a ela, é a ele
que cabe o ônus de demonstrar a efetiva ocorrência do alegado fato
fraudulento”. E mais:

A conclusão só poderia ser diferente se a lei ditasse


alguma presunção de fraude. Mas, como isso
inexiste e seria mesmo iníquo, é sempre ao credor
que cumpre provar os fundamentos da pretendida
desconsideração da pessoa jurídica18.

17
Cf. RODRIGUES FILHO, Otávio Joaquim. Desconsideração da personalidade jurídica e processo:
de acordo com o Código de Processo Civil de 2015. São Paulo: Malheiros, 2016. p. 359-361.
18
Cf. DINAMARCO, Cândido Rangel. Desconsideração da personalidade jurídica, fraude, ônus da prova e
contraditório. In: Fundamentos do processo civil moderno. 6. ed. São Paulo, Malheiros, 2010. t. 1, p. 540.
Breves notas sobre a desconsideração da personalidade jurídica
no processo de tutela da probidade administrativa 579

Assim,

Precisamente porque a má-fé, malícia, fraude ou


abuso constituem fatos extraordinários na vida dos
negócios, prevalece a multissecular necessidade de
provar essas máculas de conduta, sob pena de ser
o juiz impedido de reconhecê-las […]. Presume-se
a boa-fé, porque é fato ordinário. A má-fé precisa
sempre ser provada […] porque é fato extraordinário
(na clássica lição de Malatesta, o ordinário se
presume e o extraordinário se prova)19.

De forma análoga, também já se ponderou que,

No caso de desconsideração com bloqueio de bens


prévios, está-se diante de uma situação que subverte
o modelo do devido processo legal, em especial
quanto ao ônus da prova. Se é milenar que a
boa-fé se presume e a má-fé se prova, caberia ao
exequente, em momento prévio e com contraditório,
provar a efetiva ocorrência da má-fé e não relegar
ao sócio atingido pela desconsideração o ônus de
(possível) prova negativa de que não houve uso
fraudulento da sociedade.

Também é judiciosa a lembrança de que

A dilapidação de bens não é exclusividade de situações


envolvendo o uso fraudulento de sociedades (embora
se possa admitir que pessoas jurídicas são utilizadas
para esse fim). O sistema é coeso e fértil em permitir
mecanismos para evitar esses danos e consequente
esvaziamento da tutela satisfativa que se persegue20.

Conforme amplamente destacado pela doutrina, a estrita observância


do devido processo legal exige a assim denominada primazia da cognição

19
Cf. Ibid., p. 538.
20
Cf. VIEIRA, Christian Garcia. Desconsideração da Personalidade Jurídica no Novo CPC: natureza,
procedimentos e temas polêmicos. Salvador: JusPodivm, 2016. p. 151-154.
580 Flávio Luiz Yarshell

plena e exauriente e seu corolário que é a regra da tipicidade dos provi-


mentos sumários. Isso pode ser bem ilustrado pela lição segundo a qual

Se uma moderada flexibilidade é inevitável,


para adequar a marcha do processo às exigências
de uma cognição adequada e da plenitude de
defesa, a predeterminação do procedimento na
lei é uma garantia fundamental, imposta pela
segurança jurídica e pela previsibilidade de que
devem desfrutar as partes para poderem ditar as
suas estratégias […] é a lei que deve estabelecer a
extensão das faculdades concedidas às partes e dos
poderes conferidos ao juiz […].

Assim, “A sumariedade da cognição deve decorrer da lei, pois isso


resulta necessariamente dos valores de justiça procedimental e de
equidade, ínsitos à garantia constitucional do devido processo legal”. Então,

a cognição sumária, além de prevista em lei, somente


se justifica para atender a valores constitucionais,
como a efetividade e a celeridade, não podendo
ser transformada num meio atípico e generalizado
de tutela jurisdicional, que impeça o acesso à
cognição plena e à obtenção de um provimento apto
à formação da coisa julgada21.

3. Do caráter excepcional e subsidiário da extensão de


responsabilidade patrimonial. Necessidade de, primeiramente,
buscarem-se bens do devedor e responsável patrimonial primário

A insolvência do devedor não é condição imprescindível para que se


cogite da extensão de responsabilidade patrimonial via desconsideração da
personalidade jurídica. Contudo, isso não significa dizer que a existência
de patrimônio do devedor – responsável patrimonial primário – seja um
dado e irrelevante para se decidir sobre se é ou não caso de se avançar
no patrimônio de responsáveis que não são devedores. Vale dizer: antes

Cf. GRECO, Leonardo. Cognição sumária e coisa julgada. Revista Eletrônica de Direito Processual,
21

v. 10, 2012, p. 275 et seq., esp. p. 278.


Breves notas sobre a desconsideração da personalidade jurídica
no processo de tutela da probidade administrativa 581

de se chegar ao patrimônio de quem não ostenta o débito, mas apenas


e eventualmente a responsabilidade, é fundamental esgotar as possibi-
lidades de expropriação dos bens do (suposto) devedor. Isso é racional e
afasta a necessidade de eventuais novas medidas com natureza regressiva,
do responsável que pagou em relação ao devedor propriamente dito
(CPC, art. 795, § 3º). Afinal, são “excepcionais os casos de obrigação sem
responsabilidade ou de responsabilidade sem obrigação”22. Por isso é que
o CPC prevê que, na extensão de responsabilidade patrimonial a outrem
que não exatamente o devedor, deve-se preferir a excussão de bens deste
último (art. 795, caput e parágrafos).
Dessa forma,

A regra é de que a responsabilidade dos sócios em


relação às dívidas sociais seja sempre subsidiária,
ou seja, primeiro exaure-se o patrimônio da pessoa
jurídica para depois, e desde que o tipo societário
adotado permita, os bens particulares dos sócios ou
componentes da pessoa jurídica serem executados23.

Isso certamente vale quando se quer estender responsabilidade


por dívida de um sócio à empresa (desconsideração inversa). Por outras
palavras, “A responsabilidade patrimonial secundária é excepcional e não
se presume, posto implicar o sacrifício do patrimônio de outrem para
satisfação de dívida alheia”. São postulados ressaltados pela generalidade
da doutrina, processual e civilista24.
A título de ilustração e reforço, vale lembrar que no direito estran-
geiro vigora, em geral, a regra da subsidiariedade do responsável secun-
dário, que goza de benefício de excussão prévia do patrimônio do devedor

22
Cf. DINAMARCO, Cândido Rangel. Execução civil. 5. ed. São Paulo: Malheiros, 1997. p. 249-250.
23
Cf. TARTUCE, Flávio. Manual de direito civil. 2. ed. São Paulo: Método, 2012. p. 148.
24
Cf. SANTOS, Moacyr Amaral. Primeiras linhas de direito processual civil. 22. ed. São Paulo: Saraiva, 2008.
v. 3, p. 269-270; LIMA, Alcides de Mendonça. Comentários ao Código de processo civil. Rio de Janeiro:
Forense, 1974. v. 6, t. 2, p. 465, 471-472; GRECO, Leonardo. O processo de execução. Rio de Janeiro:
Renovar, 2001. v. 2, p. 7-8; ASSIS, Araken de. Manual da execução. 11. ed. São Paulo: RT, 2007.
p. 202-203; WAMBIER, Luiz Rodrigues; ALMEIDA, Flávio Renato Correia; TALAMINI, Eduardo. Curso
avançado de processo civil. 8. ed. São Paulo: RT, 2006. v. 2, p. 110-111; ABELHA, Marcelo. Manual
de execução civil. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2007. p. 104; CAHALI, Yussef Said. Fraudes contra
credores. 4. ed. São Paulo: RT, 2008. p. 21-22; PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito
civil. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1981. v. 2, p. 29-30; MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de
direito civil: direito das obrigações. 17. ed. São Paulo: Saraiva, 1982. v. 1, p. 24-25.
582 Flávio Luiz Yarshell

primário. Nessa linha cumpre mencionar, em primeiro lugar, o Código


Civil francês (que, como é notório, constitui o modelo de base para os
demais Códigos de civil law), cujo art. 2.299, em matéria de contrato
de fiança, dispõe:

O fiador é obrigado a pagar ao credor somente


na ausência do devedor, que deve primeiro ser
discutido em sua propriedade, a menos que o fiador
tenha renunciado ao benefício da discussão, ou a
menos que esteja solidariamente obrigado com o
devedor; neste caso, o efeito de seu compromisso
é regido pelos princípios estabelecidos para dívidas
conjuntas e solidárias25.

Além disso, na mesma definição de fiança (cautionnement em língua


francesa), o Code civil francês estabelece, no seu art. 2288, que: “Aquele
que dá garantia a uma obrigação está obrigada ao credor a cumprir a
obrigação, se o devedor não a cumprir ele mesmo”26. Com base nessas
disposições, a doutrina francesa assinala a natureza subsidiária da respon-
sabilidade do fiador a respeito daquela primaria do devedor principal27.
Como é notório, o benefício de ordem encontra-se, de uma maneira
semelhante ao que ocorre no sistema francês, também no sistema brasileiro
a favor do fiador, no art. 827: “O fiador demandado pelo pagamento da
dívida tem direito a exigir, até a contestação da lide, que sejam primeiro
executados os bens do devedor”. Na mesma linha, o art. 2.304 Código
Civil italiano, em relação à sociedade em nome coletivo: “Os credores da
empresa, mesmo que a empresa esteja em liquidação, não podem exigir
o pagamento dos acionistas individuais, exceto depois que os ativos da
empresa tiverem sido executados”28. Trata-se de uma outra clara aplicação

25
No original: “La caution n’est obligée envers le créancier à le payer qu’à défaut du débiteur, qui doit
être préalablement discuté dans ses biens, à moins que la caution n’ait renoncé au bénéfice de
discussion, ou à moins qu’elle ne se soit obligée solidairement avec le débiteur; auquel cas l’effet de
son engagement se règle par les principes qui ont été établis pour les dettes solidaires”.
26
No original: “Celui qui se rend caution d’une obligation se soumet envers le créancier à satisfaire à
cette obligation, si le débiteur n’y satisfait pas lui-même”.
27
Nesse sentido, ver: PIETTE, Gaël. Cautionnement. In: Encyclopédie Dalloz. Paris : Dalloz, 2016. § 26.
Nessa linha, ver: SIMLER, Philippe; DELEBECQUE, Philippe. Droit civil: les sûretés, la publicité foncière.
6. ed. Paris: Précis Dalloz, 2012. n. 47.
28
No original: “I creditori sociali, anche se la società è in liquidazione, non possono pretendere il pagamento
dai singoli soci, se non dopo l’escussione del patrimonio sociale”. Sobre o tema, ver: CARBONI, Bruno.
Sussidiarietà e diritto di preventiva escussione. Rassegna di Diritto Civile, 2003. p. 28 et seq.
Breves notas sobre a desconsideração da personalidade jurídica
no processo de tutela da probidade administrativa 583

da regra da subsidiariedade, de tal sorte que, em primeiro lugar, devem


vir os bens do devedor e de extensão de responsabilidade patrimonial só
se deve cogitar em caráter excepcional.
Nem se pode dizer que isso não se aplicaria aos casos em que a
responsabilidade decorre de desconsideração – e isso sob pretexto,
quiçá, de que assim se estaria a prestigiar o uso abusivo da personalidade.
É que, como leciona a doutrina,

A justificativa deste incidente – trazer um terceiro


para submeter seu patrimônio à expropriação –
existe porque há risco de que o responsável pela
dívida (réu) não possua patrimônio suficiente para
arcar com a dívida pela qual ele responde29.

Ademais, “Não se pode perder de vista que a doutrina da desconside-


ração da personalidade jurídica nasceu sob o signo da excepcionalidade.
Apenas em caráter excepcional é que deve ser decidida”30. Assim,

Qualquer que seja a razão para responsabilizar


secundariamente o sócio, haverá a possibilidade do
exercício do direito do benefício de ordem (art. 795,
§ 1º, do Novo CPC), podendo o sócio indicar bens da
sociedade para que respondam à satisfação da dívida
antes que seus bens sejam atingidos31.

A aplicação do art. 795 do CPC, mesmo em caso de desconsideração


da personalidade jurídica é de rigor. Primeiro, as hipóteses de descon-
sideração não configuram atos ilícitos que ensejem punição em sentido
estrito. Segundo, a lei já prevê consequências patrimoniais gravosas para os
envolvidos, se e quando se reputar correto desconsiderar a personalidade.
Terceiro, a questão deve ser tratada com objetividade, como estritamente
patrimonial que é: ao credor, em ambiente de boa-fé, bastará ver atendida
a legítima expectativa (se credor realmente for) de ser satisfeito a partir
do patrimônio do próprio devedor. Fora daí, dar-se-ia margem ao abuso.

29
Cf. ABELHA, Marcelo. Manual de direito processual civil. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2016. p. 280.
30
Cf. LÔBO, Paulo. Direito civil: parte geral. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 169-172.
31
Cf. NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de direito processual civil. 10. ed. Salvador: JusPodivm,
2018. p. 1154.
584 Flávio Luiz Yarshell

Não se deve permitir que a extensão de responsabilidade, via desconsi-


deração, transforme-se em indevido meio de pressão sobre quem quer
que seja. Se o devedor tem patrimônio, não há razão lógica ou jurídica
para se alcançar terceiros, ainda que a título de desconsideração. Quarto,
se a lei prevê que a execução seja feita de forma menos gravosa para o
devedor (CPC, art. 805), com maior razão isso deve valer para o mero
responsável patrimonial, ainda que por desconsideração. Essa menor
onerosidade, portanto, deve se traduzir em que os meios executivos
recaiam sobre bens ofertados pelo devedor e responsável primário;
e apenas subsidiariamente sobre outro patrimônio.
Como já tivemos oportunidade de ponderar,

a vinculação entre débito e responsabilidade continua


a ser a regra. Sendo excepcional o descasamento
entre uma coisa e outra, as regras que disciplinam
a matéria – seja no plano contratual, seja no plano
legal – devem ser interpretadas de forma estrita.
O processo não é fonte autônoma de direitos
substanciais. A satisfação do credor, que o processo
há de proporcionar, deve respeitar os limites
estabelecidos naquele plano do ordenamento.
Não compete ao Judiciário alargar as hipóteses legais
de desvinculação entre débito e responsabilidade.
Essa ruptura, se e quando desprovida de fundamento
legal, é nociva e traz sério risco à segurança que
deve presidir as relações jurídicas. Não se há de ter
um processo civil melhor às custas de um responsável
patrimonial a qualquer preço. Uma coisa é trabalhar
para que a atuação dos meios executivos seja mais
racional e eficaz; outra é, a pretexto de satisfação
do credor, negar o devido processo legal32.

Nem se argumente, eventualmente, com o maior grau de liquidez do


patrimônio do terceiro a quem se estende a responsabilidade. Com efeito,
a liquidez é critério relevante na constrição (art. 848, V), mas não é
justificativa suficiente para se estender a responsabilidade patrimonial,

32
Cf. YARSHELL, Flávio Luiz. O incidente de desconsideração da personalidade jurídica dono CPC 2015:
aplicação e outras formas de extensão da responsabilidade patrimonial. In: YARSHELL, Flávio Luiz;
PEREIRA, Guilherme Setoguti Julio. Processo societário II. São Paulo: Quartier Latin, 2015. p. 213-214.
Breves notas sobre a desconsideração da personalidade jurídica
no processo de tutela da probidade administrativa 585

nem para transformar o que é subsidiário em principal. Basta ver que


o art. 50 do Código Civil, mesmo na redação dada pela Lei 13.874/19,
não considera a iliquidez do patrimônio como um critério supostamen-
te autorizador da desconsideração – ao contrário, como já se teve
oportunidade de decidir, em referência ao entendimento prevalente no
Superior Tribunal de Justiça,

À luz da previsão legal, […] a inexistência ou não


localização de bens da pessoa jurídica não caracteriza,
por si só, quaisquer dos requisitos previstos no art. 50
do Código Civil, sendo imprescindível a demonstração
específica da prática objetiva de desvio de finalidade
ou de confusão patrimonial33.

4. A título de conclusão

Como dito no início, a proposta era a de exame de questões emergentes


da nova Lei, relativamente à desconsideração da personalidade jurídica.
Alvitra-se que as novas disposições possam contribuir para a eficiência do
sistema de tutela da probidade administrativa, sem que, contudo, abram
margem para situações nas quais seja indevidamente expandido o conceito
de responsabilidade patrimonial desvinculada da obrigação (débito).

33
Cf. STJ, 4ª T., REsp n. 1.729.554-SP, rel. Min. Luis Felipe Salomão, j. 8.5.2018, DJe 6.6.2018.
785

Afastamento cautelar do agente


público na “nova” Lei de Improbidade
Administrativa

Fernando da Fonseca Gajardoni1


Juiz de Direito no estado de São Paulo

Sumário: 1. Tutelas provisórias de urgência na improbidade adminis-


trativa. 2. Afastamento cautelar do investigado no curso da investigação
ou da ação de improbidade administrativa: 2.1. Afastamento cautelar por
decisão da autoridade administrativa; 2.2. Nova hipótese de cabimento do
afastamento cautelar do agente: garantia da ordem pública; 2.3. Duração
da medida cautelar de afastamento do agente. Conclusão. Bibliografia.

1. Tutelas provisórias de urgência na improbidade administrativa

No curso da apuração da prática de improbidade administrativa –


que pode acontecer tanto no âmbito do Ministério Público (inquérito
civil ou ação de improbidade administrativa) quanto na esfera adminis-
trativa (Comissão Processante) – pode surgir a necessidade da obtenção
de medidas provisórias tendentes tutelar da idoneidade da investigação
(apuração da prática do ato de improbidade administrativa) ou da ordem
pública (evitar a reiteração de ilícitos), como, também, com escopo de
preservar o patrimônio do investigado, a fim de que se garanta a oportuna
reparação do patrimônio público lesado pelo ato ímprobo.
Prevê o art. 20, § 1º, da LIA (na forma da Lei 14.230/2021) que a:

autoridade judicial competente poderá determinar


o afastamento do agente público do exercício do
cargo, do emprego ou da função, sem prejuízo da

1
Doutor e Mestre em Direito Processual pela Faculdade de Direito da USP (FD/USP). Professor Doutor de
Direito Processual Civil da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da USP (FDRP/USP). Diretor Regional
do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP). Membro da IAPL (International Association of
Procedural Law). Juiz de Direito do TJSP desde 1998, atualmente atuando como Juiz Auxiliar do STJ.
588 Fernando da Fonseca Gajardoni

remuneração, quando a medida for necessária à


instrução processual ou para evitar a iminente
prática de novos ilícitos. (BRASIL, 2021).

Trata-se de medida cujo escopo é o de garantir a instrução da ação


civil de improbidade ou evitar a reiteração de ilícitos, sem finalidade
patrimonial, portanto.
Já o art. 16 da Lei de Improbidade Administrativa (na redação pela
Lei 14.230/2021) cuida da cautelar de indisponibilidade de bens do inves-
tigado ou do terceiro partícipe ou beneficiado (caput e § 7º)2, que pode
recair, inclusive, sobre contas bancárias e aplicações financeiras do
investigado no exterior, conforme leis e tratados internacionais (§ 2.º).
São, portanto, duas as tutelas provisórias típicas previstas na
Lei 8.429/92: (i) afastamento do agente público do exercício do cargo,
emprego ou função pública (art. 20, §§); e (ii) indisponibilidade (bloqueio)
de bens do indiciado ou de terceiros (art. 16, caput e § 7º)3.
Embora a Lei 8.429/1992 só trate das medidas de afastamento do
agente do cargo e da indisponibilidade/bloqueio de bens e ativos, parece
claro que a ação de improbidade administrativa não é imune ao alcance
das regras gerais acerca das tutelas provisórias previstas nos artigos 294
a 311 do Código de Processo Civil.

2
Disposição repetida na Lei de Corrupção Empresarial (art. 19, § 4º, da Lei 12.846/2013): “O Ministério
Público ou a Advocacia Pública ou órgão de representação judicial, ou equivalente, do ente público
poderá requerer a indisponibilidade de bens, direitos ou valores necessários à garantia do pagamento
da multa ou da reparação integral do dano causado, conforme previsto no art. 7º, ressalvado o direito
do terceiro de boa-fé”. (BRASIL, 2013).
3
Não se deve confundir as medidas judiciais de indisponibilidade de bens e afastamento cautelar do
agente do cargo, previstas nos arts. 16 e 20 da Lei 8.429/1992 (redação da Lei 14.230/2021), com as
medidas administrativas correlatas previstas no art. 44 da Lei 8.443/1992 (Lei Orgânica do Tribunal
de Contas da União). Por elas, a Corte de Contas pode, no início ou no curso de qualquer apuração,
de ofício ou a requerimento do Ministério Público, determinar, cautelarmente, o afastamento temporário
do responsável, se existirem indícios suficientes de que, prosseguindo no exercício de suas funções,
possa retardar ou dificultar a realização de auditoria ou inspeção, causar novos danos ao Erário ou
inviabilizar o seu ressarcimento, sendo possível, ainda, decretar, por prazo não superior a um ano,
a indisponibilidade de bens do responsável, tantos quantos considerados bastantes para garantir o
ressarcimento dos danos em apuração. O STF já teve oportunidade de reconhecer a constitucionalidade
das referidas cautelares administrativas, por considerar que elas não estão sujeitas à reserva judicial
(MS 35.506, Rel. Min. Marco Aurélio, Rel. p/acórdão Min. Ricardo Lewandowski, Pleno, j.13.10.2022).
Afastamento cautelar do agente público na
“nova” Lei de Improbidade Administrativa 589

Diante da necessidade do caso concreto, todas as demais medidas


de garantia patrimonial (arresto, arrolamento de bens, registro de
protesto contra alienação de bens – art. 301 do CPC)4 e probatórias
(produção antecipadas de provas – art. 381, I, do CPC) do sistema proces-
sual civil, inclusive as admissíveis com base no Poder Geral de Cautela
do Juiz (art. 301, in fine, do CPC)5 – como é o caso da suspensão do
contrato administrativo em curso6 –, poderão, desde que presentes os
respectivos requisitos legais, serem utilizadas a bem da obtenção de

4
A obtenção das referidas medidas cautelares de cunho patrimonial, embora não impeça a cessão de bens
e valores pelo agente ímprobo, possibilitará ao Ministério Público oportunamente, à luz dos arts. 792
do CPC e Súmula 375 do STJ, postular o reconhecimento da fraude à execução da operação, desde
que promova a respectiva averbação da restrição nos registros públicos dos bens/direitos cedidos.
Inclusive para fins de garantia do pagamento da multa civil, acréscimo patrimonial resultante da
atividade lícita, danos morais e sociais etc., rubricas não cobertas pela indisponibilidade do art. 16
da Lei 8.429/1992. Para análise mais aprofundada da questão, cf. GAJARDONI, Fernando da Fonseca;
CRUZ, Luana Pedrosa de Figueiredo; GOMES JR. Luiz Manoel; FAVRETO, Rogerio. Comentários à Nova
Lei de Improbidade Administrativa. 5. ed. São Paulo: RT, 2021, p. 295/300.
5
Conforme já anotei em outra seara, o poder geral de cautela do juiz (art. 798 do CPC) é “um poder
supletivo, ou melhor, integrativo da eficácia global da atividade jurisdicional”, com lastro constitu-
cional, decorrente da garantia de acesso à Justiça, que põe a salvo qualquer situação, mesmo não
prevista em lei, que demande tutela jurisdicional (art. 5.º, XXXV, da CF). Em nosso sentir, trata-se,
verdadeiramente, de norma processual em branco, que confere ao magistrado o poder de complementar
o comando normativo diante da situação de risco narrada e conceder tutelas cautelares não especi-
ficadas em lei. Não há como se negar, por isso, certa discricionariedade judicial quando se enfrenta
este tema (embora tal afirmação ainda esteja em fase de prematuro amadurecimento doutrinário).
A parte pode solicitar ao juiz qualquer providência garantidora da eficácia de um futuro ou concomi-
tante processo principal, mesmo que tal providência não tenha sido prevista. E o juiz pode concedê-la,
desde que presente a situação de risco narrada pelo autor (periculum in mora) e a plausibilidade do
direito invocado (fumus boni iuris)” (GAJARDONI, 2010, p. 535). Ver também: GAJARDONI, Fernando
da Fonseca; DELLORE, Luiz; ROQUE, Andre; OLIVEIRA JR., Zulmar. Comentários ao Código de Processo
Civil. 5 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2022, p. 440/442).
6
Marcelo de Figueiredo (2004) faz pertinente crítica ao legislador, por não ter previsto, paralelamente
ao afastamento cautelar do agente do cargo ou função do art. 20, §§, da LIA, a medida de suspensão
obrigatória do contrato administrativo lesivo ao patrimônio público ou à moralidade administrativa,
que a seu sentir seria necessária para resguardar o interesse público e a posição jurídica do Estado
quando o ato de improbidade se relacionar a vícios na contratação (Probidade Administrativa. 5. ed.
São Paulo: Malheiros, 2004. p. 309). Estamos plenamente de acordo com o autor quanto à ideia da
suspensão do contrato, mas não quanto à sua obrigatoriedade, que tanto quanto o afastamento cautelar
do agente público deve ficar a critério da autoridade judicial, conforme as particularidades do caso
concreto (possibilidade de êxito da medida). Em que pese ter a Lei 14.230/2021 perdido a oportunidade
de disciplinar a questão, não se vê óbice para que referida medida (suspensão do contrato adminis-
trativo) seja requerida pelo Ministério Público de modo atípico, com base no regramento geral sobre
o poder geral de cautela do juiz previsto nos arts. 300/301 do CPC. Inclusive há precedente do STJ
admitindo a concessão da medida atípica de suspensão do contrato administrativo, com base no Poder
Geral de Cautela do juiz, no âmbito da ação de improbidade administrativa (REsp n. 1.779.976/GO,
Rel. Min. Herman Benjamin, Segunda Turma, DJe de 3/5/2021).
590 Fernando da Fonseca Gajardoni

provas7 ou da preservação dos bens e direitos tuteláveis pela ação de


improbidade administrativa.8
Isso, aliás, é o que se extrai do art. 17, § 6º-A, da Lei 8.429/1992
(inserido pela Lei 14.230/2021), no sentido de que o Ministério Público
poderá requerer na ação de improbidade administrativa “as tutelas
provisórias adequadas e necessárias, nos termos dos arts. 294 a 310 da
Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015” .
Também é possível que se conceda, em sede de tutela provisória
antecipada (art. 300 CPC) ou de evidência (art. 311 CPC), medidas outras
de cunho satisfativo, por exemplo, a proibição, no curso da apuração
ou ação de improbidade administrativa, de contratação com o poder
público, ou de receber benefícios fiscais ou de qualquer outra natureza
da Administração. Nestes casos o que se estabelecerá é uma verdadeira
antecipação das próprias sanções do art. 12 da Lei 8.429/92, em vista
da urgência ou da evidência das alegações do autor, e não propriamente
uma medida conservativa, para assegurar o resultado útil do processo,
como são as medidas previstas nos artigos 16 e 20 da LIA.
Por fim, mas não menos importante, a Lei 8.429/1992 não é universo
paralelo, indene à incidência das demais normas que compõe o siste-
ma processual. Por isso, uma vez proferida sentença condenatória em
1ª instância, recomendável que o Ministério Público ou a pessoa jurídica
lesada se valham da hipoteca judiciária sobre os bens de raiz do agente
ímprobo para, com arrimo no art. 495 e §§ do CPC, garantir o pagamento
dos valores fixados a título de reparação, acréscimo patrimonial indevido
ou multa civil (art. 12 e incisos da Lei 8.429/1992).

7
Interessante precedente do TJSP reconheceu, no regime do CPC/73, a possibilidade de o Ministério
Público, por meio de cautelar inominada (e satisfativa) de busca e apreensão, apreender documentos
e contratos da Prefeitura Municipal de Santa Bárbara D’Oeste, para: “Ação Cautelar. Do Ministério
Público para, em diligência no Paço Municipal, extrair cópias de documentos a instruir inquérito civil
de averiguação de ato de improbidade. Suficientemente fundamentada a concessão. Satisfativa a
medida. Descabida cognição exauriente a comprometer sua eficácia. Esgotou-se a finalidade da ação.
Eventuais danos ocasionados devem ser ressarcidos por via própria. Cabível condenação nas verbas
de sucumbência” (TJSP, Apelação n. 0011389.86.2010.8.26.0533, Rel. Evaristo Santos, 6.ª Câmara de
Direito Público, j. 17.12.2012).
8
No mesmo sentido, cf.: PAZZAGLINI FILHO, Marino. Lei de improbidade administrativa comentada. 3. ed.
São Paulo: Atlas, 2006, p. 191; BUENO, Cássio Scarpinella. Curso sistematizado de direito processual
civil. São Paulo: Saraiva, 2010, v. 2, t. 3, p. 189.
Afastamento cautelar do agente público na
“nova” Lei de Improbidade Administrativa 591

2. Afastamento cautelar do investigado no curso da investigação


ou da ação de improbidade administrativa

A Constituição Federal, quando trata de independência e harmonia


dos Poderes da República (art. 2.º da CF/1988), sustenta um complexo
sistema de equilíbrio entre esses poderes, conhecido na doutrina norte-
-americana como o sistema dos checks and balances.
Esse equilíbrio não exclui completamente a possibilidade de que
um dos Poderes interfira na esfera do outro, mas exatamente por conta
da harmonia e independência que deve haver entre eles é mister que
haja previsão legal (explícita ou implícita) para que ocorra hipótese de
intervenção legítima.
Em se tratando de improbidade administrativa, o já referido art. 20,
parágrafo único, da LIA, em sua redação originária, previa uma única
hipótese tolerável de intervenção do Poder Judiciário nos demais Poderes.
Estabelecia-se que, do mesmo modo que a autoridade administrativa,
o órgão judicial competente poderia, antes do trânsito em julgado da
ação de improbidade administrativa, determinar o afastamento do agente
público do exercício do cargo, emprego ou função, sem prejuízo da
remuneração, quando a medida se fizesse necessária à instrução processual.
O pleito de afastamento cautelar do agente do cargo/função,
nos termos do art. 294, parágrafo único, do CPC e do art. 16, caput e § 8º,
da LIA (integralmente), poderia ser requerido de modo antecedente ou
incidental, antes ou no curso da ação de improbidade. No primeiro caso,
tratando-se de medida constritiva de direitos, deveria o Ministério Público
ou a pessoa jurídica lesada9 converter o pleito antecedente em principal

O Supremo Tribunal Federal, em 31 de agosto de 2022, compreendeu que os entes públicos que tenham
9

sofrido prejuízos em razão de atos de improbidade, também estão autorizados a propor ação e celebrar
acordos de não persecução civil em relação a esses atos. A decisão se deu no julgamento das Ações
Diretas de Inconstitucionalidade (ADIS) 7042 e 7043, em que os pedidos formulados pela Associação
Nacional dos Procuradores dos Estados e do Distrito Federal (Anape) e pela Associação Nacional dos
Advogados Públicos Federais (Anafe) foram julgados parcialmente procedentes. Entendeu-se que a
Constituição Federal prevê a legitimidade ativa concorrente e disjuntiva entre o Ministério Público e
os entes públicos lesados para a defesa do patrimônio púbico. Os titulares do direito – isto é, as pes-
soas jurídicas lesadas –, têm legitimação ordinária para defesa do seu patrimônio, sem prejuízo das
hipóteses de legitimação extraordinária, que é o caso do MP quando promove ação de improbidade para
pleitear um direito alheio. A supressão dessa legitimidade ordinária em prol da legitimação extraordi-
nária do MP, por norma infraconstitucional, feriria a lógica constitucional de proteção ao patrimônio
público. Consequência desse entendimento da Suprema Corte é que a Administração Pública, ao tomar
conhecimento do fato (por si ou por terceiros), pode ela mesmo propor as medidas necessárias a
bem da tutela da probidade administrativa (instauração de procedimento administrativo, pedido de
indisponibilidade ou de afastamento cautelar do agente do cargo, empregou ou função, propositura
da ação, celebração de ANPC, etc.), sem necessidade de submeter o caso ao Ministério Público como
originariamente imaginado no art. 7º da Lei 8.429/1992, na redação da Lei 14.230/2021, declarado
parcialmente inconstitucional, sem redução de texto, pela Suprema Corte.
592 Fernando da Fonseca Gajardoni

(ação de improbidade administrativa) no prazo de 30 dias úteis contados


da efetivação da medida (o afastamento), conforme art. 308 do CPC,
sob pena de ineficácia da tutela provisória dantes deferida e retorno do
agente ao cargo/função dantes ocupados.
A Lei 14.230/2021 mantém a possibilidade da concessão da referida
medida cautelar típica no âmbito da improbidade administrativa, inclusive
de modo antecedente ou incidental. Mas traz três grandes mudanças na
disciplina do tema, tratadas logo a seguir: (i) supressão da previsão legal
que autorizava o afastamento cautelar do agente por decisão administrativa
(art. 20, § 1º, da LIA); (ii) previsão de nova hipótese de cabimento do
afastamento cautelar do agente (art. 20, § 1º, da LIA); (iii) estabelecimento
de prazo de duração da medida cautelar de afastamento do agente do
cargo, emprego ou função pública (art. 20, § 2º, da LIA).
Por evidente, o agente indevidamente afastado do cargo poderá
tomar medidas judiciais para reverter a aplicação do art. 20, § 1º,
da LIA, ou para acusar a ocorrência de excesso de prazo no afastamento
(art. 20, § 2º). Além dos recursos previstos em lei (agravos), também tem
se admitido Mandado de Segurança (recurso ordinário constitucional) e
pedido de suspensão da liminar (arts. 15 da Lei 12.016/2009, 12, § 1.º,
da Lei 7.347/1985, 25, caput, da Lei 8.038/1990 e 4.º da Lei 8.437/1992)10.

2.1 Afastamento cautelar por decisão da autoridade administrativa.

A nova redação do § 1º do art. 20 exclui a possibilidade da autoridade


administrativa determinar o afastamento cautelar do agente público
do exercício do cargo/função. A norma, em seu novo formato, só faz
referência à autoridade judicial.
Trata-se de alteração de pouca relevância prática. As normas
que regem o processo administrativo disciplinar, conforme cada ente
federado, poderão autorizar à autoridade administrativa a decretação
do afastamento cautelar do agente para fins de garantia da instrução
processual administrativa.
É o que se dá, exemplificativamente, no âmbito dos servidores públi-
cos civis da União. O art. 147 da Lei 8.112/1990 é expresso:

10
Cf.: STJ, AgRg na SLS 857/RJ, CE, Rel. Min. Humberto Gomes de Barros, j. 29.05.2008.
Afastamento cautelar do agente público na
“nova” Lei de Improbidade Administrativa 593

Como medida cautelar e a fim de que o servidor


não venha a influir na apuração da irregularidade,
a autoridade instauradora do processo disciplinar
poderá determinar o seu afastamento do exercício
do cargo, pelo prazo de até 60 (sessenta) dias,
sem prejuízo da remuneração.

E o parágrafo único do dispositivo arremata: “O afastamento poderá


ser prorrogado por igual prazo, findo o qual cessarão os seus efeitos,
ainda que não concluído o processo”.
Não há, portanto, uma suposta “reserva judicial” quanto à possibilidade
de ser determinado, provisoriamente, o afastamento do agente público
praticante de infração administrativa equivalente ao ato de improbidade
administrativa. A Lei 14.230/2021 simplesmente suprimiu a previsão
sobre tal possibilidade do seu texto exatamente porque, não tratante
de sindicância ou processo administrativo disciplinar (mas sim da ação
judicial de improbidade administrativa), nada mesmo devia prever a esse
respeito, garantindo-se, com isso, que cada ente federado, dentro da sua
autonomia regulamentar, delibera a esse respeito11.

2.2 Nova hipótese de cabimento do afastamento cautelar do


agente: garantia da ordem pública

O novel §1º do art. 20 da Lei 8.429/1992, na redação dada pela


Lei 14.230/2021, traz duas (e não apenas uma como era no passado)
hipóteses justificadoras do afastamento cautelar do agente público do
cargo, emprego ou função: garantia da instrução processual ou para evitar
a prática de novos ilícitos.
A primeira hipótese, já existente no regime originário da
Lei 8.429/1992, tem por escopo proteger a instrução processual das
interferências prejudiciais que o investigado possa, no exercício do
cargo, realizar na colheita da prova do ato da improbidade (coação de
testemunhas, destruição de documentos etc.).

11
Contra o ato da autoridade administrativa que, com base na lei de regência dos processos administra-
tivos disciplinares, decide pelo afastamento cautelar do agente, tem-se admitido o manejo de medidas
judiciais, tais como o mandado de segurança (Lei 12.016/2009) ou da ação anulatória para reintegração
imediata no cargo, emprego ou função.
594 Fernando da Fonseca Gajardoni

A nova hipótese inserida no art. 20, § 1º, da LIA (com a redação


da Lei 14.230/2021), por sua vez, objetiva afastar o risco iminente de
reiteração ou cometimento de novos ilícitos, protegendo a ordem pública
administrativa por meio do afastamento do agente do exercício de suas
funções. Não bastam meras ilações de risco, sendo necessária a existên-
cia de dados concretos que demonstrem o perigo iminente de prática
de novos ilícitos com a manutenção do agente no exercício do cargo,
emprego ou função.
Valerão, aqui, mutatis mutandis, as referências já existentes na
doutrina e jurisprudência nacionais, do conceito de ordem pública para
fins de decretação da prisão preventiva do agente na seara processual
penal (art. 312 do CPP), doravante novo fundamento para o afastamento
cautelar do agente.
Como assinala doutrina especializada, o afastamento é:

medida violenta, que afasta o agente público


antes de ele ter sido definitivamente julgado e,
portanto, merece interpretação estrita e cuidadosa
para que não se transforme em forma abusiva de
combate político ou de vingança pessoal e não
viole as garantias do devido processo legal e da
presunção de inocência de todos quantos venham
a ser acusados da prática de atos de improbidade.
(MEIRELLES, 2001, p. 194)

Se, para os agentes públicos do quadro, a medida de afastamento


cautelar já é excepcional, para os agentes políticos eleitos pelo voto
popular, a medida é ultraexcepcional12. Além de haver expressa previsão

12
De acordo com o STJ, “a perda da função pública e a suspensão dos direitos políticos, como sanção
por improbidade administrativa, só se efetivam com o trânsito em julgado da sentença condenatória.
Assim, o afastamento cautelar do agente de seu cargo, previsto no parágrafo único, somente se legitima
como medida excepcional, quando for manifesta sua indispensabilidade. A observância dessas exigências
se mostra ainda mais pertinente em casos de mandato eletivo, cuja suspensão, considerada a tem-
porariedade do cargo e a natural demora na instrução de ações de improbidade, pode, na prática,
acarretar a própria perda definitiva. Nesta hipótese, aquela situação de excepcionalidade se configura
tão somente com a demonstração de um comportamento do agente público que, no exercício de suas
funções públicas e em virtude dele, importe efetiva ameaça à instrução do processo” (REsp 929.483/BA,
Rel. Min. Luiz Fux, Primeira Turma, j. 02.12.2008). No mesmo sentido já se decidiu que o art. 20,
parágrafo único, da LIA, na sua redação originária: “deve ser interpretada com temperamentos quan-
do se refere ao afastamento de prefeito municipal, uma vez que se volta contra agente munido de
mandato eletivo. Por essa razão, a decisão judicial que determina o afastamento de alcaide deve estar
Afastamento cautelar do agente público na
“nova” Lei de Improbidade Administrativa 595

constitucional (art. 15) vedando a cassação de direitos políticos (ainda


mais de forma antecipada), de convirmos que no Estado de Democrático
Direito o mandato eletivo deve ser respeitado para que não seja compro-
metido o direito constitucional ao livre exercício do voto e à soberania
popular (art. 1.º da CF/1988)13.
Exatamente em virtude disso, a jurisprudência superior tem deixado
bastante claro que as regras sobre afastamento cautelar do agente público,
previstas no art. 20, §§, da LIA, não se prestam a antecipar a sanção de
perda do cargo/função prevista no art. 12, I e II, da Lei, cuja efetivação,
inclusive, desde a redação originária da Lei de Improbidade Administrativa,
só é admitida após o trânsito em julgado da sentença condenatória (art. 20,
caput). A gravidade dos ilícitos imputados ao agente político e mesmo a
existência de robustos indícios contra ele não autorizam o afastamento

devidamente fundamentada, sob pena de se constituir em indevida interferência do Poder Judiciário no


Executivo. […] O período de afastamento cautelar e o seu termo inicial, contudo, variarão de acordo
com o caso concreto e com a intensidade da interferência promovida pelo agente público na instru-
ção processual. Não pode ser extenso a ponto de caracterizar verdadeiramente a perda do mandato
eletivo e tampouco pode ser exíguo de modo a permitir a contínua interferência do agente público
na instrução do processo que contra ele tramita” (STJ, AgRg na SLS 1.630/PA, rel. Min. Felix Fischer,
Corte Especial, j. 19.09.2012, DJe 02.10.2012).
13
Há decisões do Supremo Tribunal Federal, inclusive, negando a possibilidade de o Poder Judiciário afas-
tar agentes políticos do exercício do mandato: “O afastamento de deputado estadual de suas funções
por decisão precária do poder judiciário revela-se em descompasso com tal princípio”, ou seja, o da
Separação dos Poderes. Quando da prolação da decisão na SL 229/AL restou rejeitada, de forma clara,
a possibilidade de afastamento de legislador com fundamento em decisão precária (liminar), inclusive
pela própria natureza temporária do Mandato Parlamentar: “Não há, pois, a previsão constitucional de
cassação de mandato parlamentar por decisão do Poder Judiciário. O Estatuto do Parlamentar também
não contempla hipótese de afastamento temporário de deputado estadual do exercício de suas funções
por decisão liminar, antecipatória ou cautelar proferida por órgão judicante. Se nem mesmo decisão
condenatória transitada em julgado – decorrente da cognição exauriente dos elementos da causa e
caracterizada pela indiscutibilidade e imutabilidade (art. 467, CPC) – pode determinar a interrupção
do exercício das funções parlamentares, o que se dirá de decisão precária, baseada apenas na plau-
sibilidade das alegações do autor” […] “Ademais, tendo em vista o caráter temporário dos mandatos
parlamentares, a determinação de afastamento de deputado estadual de suas funções, até que se
conclua determinado processo ou fase processual, pode convolar-se em cassação indireta do mandato,
haja vista que o parlamentar poderá passar todo o período para o qual foi eleito, ou parte considerá-
vel dele, afastado de suas funções” […] “Assim, tendo em vista que a definição do conteúdo do princípio
da separação e harmonia entre os poderes estatais deve ser buscada no próprio Texto Constitucional
(interpretação constitucionalmente adequada), o afastamento de deputado estadual de suas funções
por decisão precária do Poder Judiciário revela-se em descompasso com tal princípio” […] “Resta,
portanto, configurada lesão à ordem pública, em termos de ordem jurídico-constitucional e jurídico-
-administrativa, pois a decisão judicial impugnada impede e usurpa, sem causa legítima, o exercício,
pelo Poder Legislativo, de suas funções” (SLs 229 297, Rel. Min. Gilmar Mendes). No mesmo sentido,
cf.: STJ, MC 14.08/MG, Segunda Turma, Rel. Min. Mauro Campbel Marques, j. 25.08.2009.
596 Fernando da Fonseca Gajardoni

cautelar, exatamente porque não é essa a previsão legal.14 Não há no regime


da improbidade administrativa, como há no processo penal (art. 312, CPP),
hipótese de afastamento cautelar para garantia da aplicação da futura
pena (de perda do cargo/função)15.
A jurisprudência também tem afirmado que a simples possibilidade
que o investigado venha a interferir na produção da prova (cogitação
teórica da possibilidade de sua ocorrência) não é suficiente para o
decreto cautelar de afastamento.16 Para que seja lícito e legítimo o
afastamento cautelar com base no art. 20, § 1º, da Lei 8.429/1992
(conforme Lei 14.230/2021), não bastam simples ilações, conjecturas
ou presunções. Cabe ao juiz indicar, com precisão e baseado em provas,
de que forma – direta ou indireta – a instrução processual ou a ordem
pública administrativa foi ou será afetada pelo agente público que se
pretende afastar, caso permaneça em exercício17.

2.3 Duração da medida cautelar de afastamento do agente

O afastamento cautelar do agente da função pública não pode durar


por mais tempo do que o necessário para que a prova seja colhida sem

14
“[…] a gravidade dos ilícitos imputados ao agente político e mesmo a existência de robustos indícios
contra ele não autorizam o afastamento cautelar, exatamente porque não é essa a previsão legal”
[…] “A decisão que determina o afastamento cautelar do agente político por fundamento distinto da-
quele previsto no Art. 20, parágrafo único, da Lei 8.429/1992, revela indevida interferência do Poder
Judiciário em outro Poder, rompendo o delicado equilíbrio institucional tutelado pela Constituição” […]
Surge, então, grave lesão à ordem pública institucional, reparável por meio dos pedidos de suspensão
de decisão judicial” […] “Para que seja lícito e legítimo o afastamento cautelar com base no Art. 20,
parágrafo único, da Lei 8.429/1992, não bastam simples ilações, conjecturas ou presunções. Cabe ao juiz
indicar, com precisão e baseado em provas, de que forma – direta ou indireta – a instrução processual
foi tumultuada pelo agente político que se pretende afastar” (STJ, AgRg na SLS 857/RJ, Corte Especial,
Rel. Min. Humberto Gomes de Barros, j. 29.05.2008). No mesmo sentido: “a mera menção à relevância
ou posição estratégica do cargo não constitui fundamento suficiente para o respectivo afastamento
cautelar” (STJ, AgRg na SLS 1.558/AL, Rel. Min. Ari Pargendler, Corte Especial, DJe 6/9/2012).
15
Por falar em processo penal – embora não se negue a possibilidade de o ato de improbidade apurado
configurar, concomitantemente, ilícito penal – tem se entendido pela impossibilidade de aplicação do
art. 20, § 1º, da LIA, no âmbito criminal, determinando-se, no curso da investigação, o afastamento
cautelar do agente pela prática do crime. Não há previsão legal para de tal medida e, ademais, em tema
de direito sancionatório (penal ou administrativo), as regras prejudiciais ao acusado sempre devem
ser interpretadas restritivamente. Neste exato sentido cf. STJ, RHC 8.749/MG, 5.ª T., j. 05.08.1999,
rel. Min. Felix Fischer.
16
Ver: STJ, MC 7324/AL, Rel. Min. José Delgado, Primeira Turma, DJ 15.02.2004; STF, SL 1241 MC/CE,
Min. Dias Toffoli, DJ 29.08.2019.
17
Ver: STJ, AgRg na SLS 857/RJ, CE, Rel. Min. Humberto Gomes de Barros, j. 29.05.2008.
Afastamento cautelar do agente público na
“nova” Lei de Improbidade Administrativa 597

que haja interferência do investigado. Colhida a prova e não havendo


mais possibilidade de o investigado interferir na sua produção deve ele,
imediatamente, retornar ao cargo, até porque esta interpretação é a mais
razoável dentro da economicidade18. Afinal, o agente está recebendo sua
remuneração sem trabalhar enquanto é investigado ou processado pela
prática do ato de improbidade19.
Esse é o escopo da terceira e última grande mudança no regime
jurídico do afastamento cautelar do agente na Lei 14.230/2021. Positivar
algo que já era jurisprudencialmente consenso: a necessidade de fixação de
um prazo certo e determinado para a duração do afastamento cautelar20.
Doravante, estabelece o novo § 2º do art. 20 da LIA (inserido pela
Lei 14.230/2021), que o afastamento será de até 90 dias21, prorrogá-
veis uma única vez por igual prazo, mediante decisão motivada da
autoridade judiciária.
Sem dúvida o limite temporal deve incidir para as hipóteses de
afastamento cautelar para fins de garantia da instrução processual
administrativa. Inclusive para servir de incentivo para o cumprimento,
pelo Poder Judiciário, do comando constitucional da razoável duração
do processo (art. 5º, LXXVIII, da CF).
Já no tocante ao afastamento para garantia da ordem pública adminis-
trativa (evitar a prática iminente de novos ilícitos), temos fundadas dúvidas
se é possível se estabelecer, sem alguma mitigação, um prazo certo e
predeterminado para o afastamento. Havendo indícios e risco concreto
de que o agente, ao retornar ao cargo, função ou emprego, vá reiterar na
prática do ilícito, não faz o mínimo sentido que ele retorne ao exercício.

18
Inclusive há precedente do STJ determinando que se fixe prazo certo para o afastamento e a conclusão
das investigações, pois que “a prorrogação [do afastamento] não pode representar uma interferência
indevida no mandato eletivo” (AgRg na SLS 1957/PB, Rel. Ministro Francisco Falcão, Corte Especial,
j. 17.12.2014).
19
O TJSP já assinalou que o afastamento dos vereadores acusados da prática de improbidade de suas
funções só se justifica quando isso se mostrar necessário para preservar a instrução processual, de modo
que se a demanda já se encontra com a fase de dilação probatória encerrada, o pressuposto para
o afastamento cautelar desapareceu, devendo os agentes retornarem às suas funções (AgIn 236.991-5,
4.ª Câmara de Direito Público, Rel. Des. Soares Lima, j. 12.09.2002).
20
O STJ considerava razoável, antes da Lei 14.230/2021, o prazo de 180 dias para afastamento cautelar do
agente público (AgRg na SLS n. 1.957/PB, Rel. Min. Francisco Falcão, Corte Especial, DJe de 9.03.2015;
AgRg na SLS nº 1.498/RJ, Rel. Min. Ari Pargendler, Corte Especial, DJe de 26.03.2012).
21
Evidentemente, se a instrução se encerrar antes do prazo de 90 dias (ou de sua prorrogação), a medida
deve cessar e o agente retorna ao exercício do cargo, já que não mais subsiste a razão para a manu-
tenção da cautela.
598 Fernando da Fonseca Gajardoni

Tem-se a impressão, portanto, que o rigor temporal do § 2º do art. 20


da LIA deve ser relativizado no caso concreto, sendo possível que se
mantenha o afastamento para além dos 180 dias estimados em lei22.
Rememore-se que a limitação temporal do art. 20, § 2º, da LIA,
na redação pela Lei 14.230/2021, consolidou na legislação o memo lapso
que a jurisprudência vinha fixando, exclusivamente, para os casos de
afastamento decretado com base na garantia da instrução processual,
único fundamento até então existente para o deferimento da medida.
Não há, portanto, correspondência histórica (e mesmo lógica) do dispo-
sitivo com a nova hipótese de afastamento cautelar do agente com base
na garantia da ordem pública.

Conclusão

Embora a Lei 14.230/2021 esteja sujeita a inúmeras críticas, muitas


delas absolutamente justas, no tocante ao afastamento do agente do
cargo, emprego ou função pública houve aperfeiçoamento do sistema
até então vigente.
A positivação de um prazo de duração de eficácia da medida
deferida, para além de incorporar ao texto legal entendimento jurispru-
dencial dominante, acentua o ideário da cautelaridade do afastamento
do agente, que, embora necessário, deve atender aos predicados da
brevidade e da provisoriedade, até porque os vencimentos continuam
sendo pagos ao servidor, sem a contrapartida prestação do serviço.
Do mesmo modo, a autorização legal para que, nos casos de risco de
prática de novos ilícitos no exercício do cargo, emprego ou função, seja o
agente afastado temporariamente, é bastante louvável, pois recrudesce
o combate aos atos de improbidade e protege, de modo mais efetivo,
o erário e a moralidade administrativa.

Há precedentes do STJ no sentido de que, excepcionalmente, ante as peculiaridades fáticas do caso


22

concreto, o prazo de 180 dias de afastamento pode se alongar, sendo o juízo natural da causa, em regra,
o mais competente para tanto (REsp n. 1.930.633/MG, Rel. Min. Herman Benjamin, Segunda Turma,
DJe de 17.12.2021; AgRg na SLS nº 1.854/ES, Rel. Min. Felix Fischer, Corte Especial, DJe 21.3.2014;
AgInt na SLS 2.790/ES, Rel. Min. Humberto Martins, Corte Especial, DJe 14.12.2020). Não acreditamos
que tal entendimento deixe de ser aplicado no regime da Lei 14.230/2021.
Afastamento cautelar do agente público na
“nova” Lei de Improbidade Administrativa 599

Bibliografia

BRASIL. Lei nº 8.112, de 11 de dezembro de 1990. Dispõe sobre o regime


jurídico dos servidores públicos civis da União, das autarquias e das
fundações públicas federais. Brasília, DF: Congresso Nacional, 1990.
BRASIL. Lei nº 12.846, de 1º de agosto de 2013. Dispõe sobre a
responsabilização administrativa e civil de pessoas jurídicas pela prática
de atos contra a administração pública, nacional ou estrangeira, e dá
outras providências. Brasília, DF: Congresso Nacional, 2013.
BRASIL. Lei nº 14.230, de 25 de outubro de 2021. Altera a Lei nº 8.429,
de 2 de junho de 1992, que dispõe sobre improbidade administrativa.
Brasília, DF: Congresso Nacional, 2021.
BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Apelação
nº 0011389.86.2010.8.26.0533. Ação Cautelar. Do Ministério Público para,
em diligência no Paço Municipal, extrair cópias de documentos a instruir
inquérito civil de averiguação de ato de improbidade. Suficientemente
fundamentada a concessão. Relator: Evaristo Santos. São Paulo, 17 dez. 2012.
BUENO, Cássio Scarpinella. Curso sistematizado de direito processual
civil. São Paulo: Saraiva, 2010, v. 2, t. 3.
FIGUEIREDO, Marcelo de. Probidade Administrativa. 5. ed. São Paulo:
Malheiros, 2004.
GAJARDONI, Fernando da Fonseca. A moderna ótica do Poder Geral
de Cautela do juiz. ARMELIN, Donaldo (coord.). Tutelas de urgência e
cautelares: estudos em homenagem a Ovídio A. Baptista Silva. São Paulo:
Saraiva, 2010.
GAJARDONI, Fernando da Fonseca; CRUZ, Luana Pedrosa de Figueiredo;
GOMES JR. Luiz Manoel; FAVRETO, Rogerio. Comentários à Nova Lei de
Improbidade Administrativa. 5. ed. São Paulo: RT, 2021.
GAJARDONI, Fernando da Fonseca; DELLORE, Luiz; ROQUE, Andre;
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MEIRELLES, Hely Lopes. Mandado de segurança, ação popular, ação civil
pública, mandado de injunção, habeas data. 23. ed. São Paulo:
Malheiros, 2001.
PAZZAGLINI FILHO, Marino. Lei de improbidade administrativa comentada.
3. ed. São Paulo: Atlas, 2006.
106

Tutela provisória na “ação de


improbidade administrativa”

Cassio Scarpinella Bueno1


Advogado

Sumário: Introdução. 1. Considerações iniciais. 2. O regime da tutela


provisória e as ações de improbidade administrativa. 3. Especificamente
a indisponibilidade de bens. 3.1 Legitimidade para o pedido de indispo-
nibilidade. 4. Afastamento do agente público. Conclusão. Bibliografia.

Introdução

Agradeço, em primeiro lugar, o honroso convite que me foi formulado


pelo eminente Desembargador Antonio Carlos Villen e pelo eminente
magistrado Juiz Alexandre de Mello Guerra para participar de obra
coletiva da Escola Paulista da Magistratura por ocasião do encerramento
dos trabalhos dos Grupos de Estudos de Magistrados intitulada Direito
Público Contemporâneo: a Lei de Introdução às Normas do Direito
Brasileiro (e as alterações introduzidas no Direito Público pela Lei
n. 13.655/18); as Novas Leis de Licitações e Contratos Administrativos
e Improbidade Administrativa.
Para tanto, apresento minha contribuição acerca das novidades
relativas ao instituto da tutela provisória na chamada ação de improbi-
dade administrativa que corresponde a um dos temas da aula que tive
o privilégio de ministrar no referido Grupo de Estudos e que se realizou,
de modo presencial, no dia 23 de junho de 2022. O texto base da exposição
foi revisto e atualizado especialmente para esta publicação.

Livre-Docente, Doutor e Mestre em Direito Processual Civil pela Faculdade de Direito da Pontifícia
1

Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Professor de direito processual civil e de direito proces-
sual tributário na mesma Faculdade nos cursos de doutorado, mestrado, especialização e graduação.
Presidente do Instituto Brasileiro de Direito Processual (triênio 2022-2024) e membro do Instituto
Iberoamericano de Direito Processual e da Associação Internacional de Direito Processual. Autor,
dentre outros, do Manual do poder público em juízo, publicado pela Editora Saraiva.
602 Cassio Scarpinella Bueno

1. Considerações iniciais

A tutela provisória deve ser compreendida como o conjunto de


técnicas processuais que buscam, por autorização judicial, a satisfação
antecipada ou, quando menos, o asseguramento de uma posição de vanta-
gem de um dos litigantes (em geral o autor) em detrimento do outro.
O Código de Processo Civil (CPC) de 2015, inovando substancialmente
em relação ao CPC de 1973, disciplina o tema no Livro V de sua Parte
Geral, sendo correto identificar a tutela provisória em três óticas diversas
embora complementares entre si.
A tutela provisória, quando analisada na perspectiva dos seus
fundamentos, pode ser fundamentada na urgência ou na evidência.
Na perspectiva do momento em que ela é requerida, a tutela provi-
sória pode ser requerida como forma de dar início ao processo (tutela
provisória antecedente) ou ao longo do processo, inclusive com a petição
inicial, concomitantemente à formulação dos pedidos de mérito (tutela
provisória incidental).
Por fim, mas não menos importante, é correto distinguir, na perspectiva
de a tutela provisória ser ou não capaz de satisfazer a pretensão,
a tutela antecipada que apresenta viés satisfativo (tutela antecipada)
daquela que tem como finalidade assegurar o resultado útil do processo
(tutela cautelar)2.
Por sua vez, a chamada ação de improbidade administrativa deve ser
compreendida como o procedimento especial cuja finalidade é aplicar as
penalidades reservadas a quem pratica atos capitulados como sendo de
improbidade administrativa nos termos do art. 37, § 4º, da CF e consoante
gradação da Lei n. 8.429/1992 com as diversas e profundas modificações
da Lei n. 14.230/2021. Cabe o destaque de que não há, propriamente,
uma ação de improbidade administrativa, porque não há, no atual estágio
evolutivo do direito processual civil, qualquer espaço para confundir insti-
tutos ínsitos ao direito processual com os de direito material. Tratando-se,
não obstante, de consagradíssima expressão idiomática ela é empregada
ao longo deste trabalho3.

2
Para uma exposição mais detalhada do assunto, cf.: BUENO, Cassio Scarpinella. Curso sistematizado
de direito processual civil. São Paulo: Saraiva Jur, 2022. v. 1. p. 712; 716.
3
Voltei-me ao tema em: BUENO, Cassio Scarpinella. Curso sistematizado de direito processual civil.
São Paulo: Saraiva Jur, 2022. v. 1. p. 297; 302.
Tutela provisória na “ação de improbidade administrativa” 603

2. O regime da tutela provisória e as ações de improbidade


administrativa

Em primeiro lugar, cabe evidenciar que é aplicável às ações de


improbidade administrativa o arcabouço atípico da tutela provisória,
tal qual consagrada pelo Livro V da Parte Geral do CPC, inclusive para
viabilizar o cumprimento provisório da sentença para fins satisfativos e
não meramente acautelatórios, tanto quanto para permitir que antes
do início do processo de improbidade o autor pleiteie alguma tutela
provisória de modo antecedente (arts. 303 a 310 do CPC)4. E isto deriva
da inequívoca aplicação subsidiária e supletiva do CPC que, em rigor,
independe de previsão legislativa específica.
É certo que a Lei n. 14.230/2021, ao introduzir o § 6º-A no art. 17
da Lei n. 8.429/1992, evidenciou a aplicabilidade dos arts. 294 a 310
do CPC para a espécie. Mas — e aqui a importância da afirmação que
acabei de lançar — não há referência à aplicação também do art. 311
do CPC, que disciplina a tutela provisória chamada de evidência, o que
não faz nenhum sentido do ponto de vista de uma adequada interpre-
tação sistemática dos dois diplomas normativos.
Até se pode querer sustentar que a falta de remissão expressa
ao precitado art. 311 justifica-se para que não se queira entender,
conforme entendia o Superior Tribunal de Justiça (STJ), inclusive em
sede de recurso especial repetitivo, que a indisponibilidade de bens
possa ser concedida independentemente de demonstração de prova de
dissipação patrimonial. Contudo, tal vedação foi feita de modo expresso
pelos §§ 3º e 4º do art. 16, analisados no n. 4, infra, não havendo razão
para generalizar a inaplicabilidade daquele dispositivo a quaisquer
outras hipóteses em que a concessão da tutela provisória pode se
justificar, dada a importância da previsão para o sistema processual
civil brasileiro, inclusive, mas não só, para a operacionalidade do
“direito jurisprudencial”5.

4
Até mesmo, mas não apenas, em função do disposto no caput do art. 7º da Lei n. 8.429/1992 que,
com a redação dada pela Lei n. 14.230/2021, passou a ser a seguinte: “Se houver indícios de ato de
improbidade, a autoridade que conhecer dos fatos representará ao Ministério Público competente,
para as providências necessárias.”.
5
Monografia fundamental sobre o tema é a de Rogéria Dotti, intitulada Tutela da evidência, que se
volta não apenas à dinâmica daquela modalidade de tutela provisória, mas também à demonstração
de sua razão de ser.
604 Cassio Scarpinella Bueno

Destarte, tenho para mim que a falta de remissão ao art. 311 do


CPC pelo precitado § 6º-A do art. 17 da Lei n. 8.429/1992, introduzido
pela Lei n. 14.230/2021 deve ser entendido como mero erro (material) do
legislador e que, como tal, não deve vincular o intérprete e o aplicador
do direito, razão de ser das remissões genéricas que faço ao longo deste
artigo ao Livro V da Parte Geral do CPC (correspondente à disciplina
codificada da tutela provisória como um todo), sem excepcionar o
referido art. 311.
Sem prejuízo de tal discussão, é certo que a Lei n. 8.429/1992,
com as modificações da Lei n. 14.230/2021, traz dispositivos específicos
a respeito do tema.

3. Especificamente a indisponibilidade de bens

O art. 16, que trata, sempre na redação e com as amplas modificações


da Lei n. 14.230/2021, do “pedido de indisponibilidade de bens dos
réus” que pode ser formulado pelo autor tanto em caráter antecedente
como incidente6. A finalidade daquela medida — é o caput do dispositivo
que a evidencia — é “… garantir a integral recomposição do erário ou
do acréscimo patrimonial resultante de enriquecimento ilícito” e não
depende de eventual representação prévia de autoridade administrativa
nos moldes do art. 7º, caput, da Lei n. 8.429/1992, também na redação
da Lei n. 14.230/2021, podendo, destarte, ser formulado por iniciativa
daquele que toma a iniciativa de ajuizar a ação de improbidade adminis-
trativa (art. 16, § 1º-A).
O pedido de indisponibilidade de bens pode incluir a investigação,
o exame e o bloqueio de bens, contas bancárias e aplicações financeiras

6
O tema sempre despertou muito interesse doutrinário e jurisprudencial, mesmo antes das profundas
modificações trazidas pela Lei n. 14.230/2021. Apenas para fins ilustrativos, noticio, a propósito,
que orientando meu no Curso de Especialização em Processo Civil da PUC-SP/Cogeae redigiu mono-
grafia sobre o assunto, apresentada em 2019. Refiro-me ao trabalho de Lucas Pedroso Klain intitulado
A indisponibilidade de bens na ação de improbidade administrativa, publicado no vol. 307 da Revista de
Processo. Em obra coletiva, que tive oportunidade de coordenar, foram vários os autores que se voltaram
ao tema: Carlos Mário Velloso Filho, A indisponibilidade de bens na Lei n. 8.429/1992; Enrique Ricardo
Lewandowski, Comentários acerca da indisponibilidade liminar de bens prevista na Lei 8.429, de 1992;
Evane Beiguelman Kramer, Considerações acerca do sequestro de bens de que trata a Lei 8.429, de 1992:
enfoque da questão sob a ótica da execução da sentença condenatória; Flávio Cheim Jorge e Marcelo
Abelha Rodrigues, A tutela processual da probidade administrativa (Lei 8.429, de 1992); Flávio Luiz
Yarshell, Lei 8.429, de 1992: ação cautelar sem correspondente ‘ação principal’? e José Roberto dos
Santos Bedaque, Tutela jurisdicional cautelar e atos de improbidade administrativa.
Tutela provisória na “ação de improbidade administrativa” 605

mantidas pelo réu no exterior, observando-se, a esse respeito, o que dispõem


as normativas próprias, inclusive tratados internacionais (art. 16, § 2º).
O § 3º do art. 16 exige, para o deferimento do pedido de indisponi-
bilidade de bens, que seja demonstrado perigo de dano irreparável ou de
risco ao resultado útil do processo, não sendo suficiente, destarte, o maior
ou menor vigor das alegações feitas pelo autor, mesmo quando acompa-
nhado de provas relativas à prática de ato definível como de improbidade.
Não obstante, conforme exige o mesmo dispositivo, o pedido só será
deferido se o magistrado se convencer da probabilidade da ocorrência
dos atos descritos na petição inicial com fundamento nos respectivos
elementos de instrução.
A exigência da lei justifica-se diante do entendimento que o STJ havia
alcançado em sede de recurso especial repetitivo, no sentido de que a
hipótese, por sua especialidade, afastaria a exigência da demonstração
do periculum in mora, sendo suficiente a plausibilidade da alegação7.
Um caso, pois, quando analisada a questão na perspectiva do art. 311
do CPC, de tutela provisória fundamentada na evidência, e não na urgência.
A doutrina, em geral, era bastante crítica àquele entendimento o que,
certamente, acabou por sensibilizar o legislador a negar que essa específica
situação autorize a concessão da tutela provisória independentemente da
demonstração concreta da necessidade premente da medida (“perigo de
dano irreparável ou de risco ao resultado útil do processo”)8.
O § 8º do art. 16, ao estabelecer que “Aplica-se à indisponibilidade de
bens regida por esta Lei, no que for cabível, o regime da tutela provisória de
urgência da Lei n. 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil)”

7
Eis a tese então fixada: “É possível a decretação da ‘indisponibilidade de bens do promovido em Ação
Civil Pública por Ato de Improbidade Administrativa’, quando ausente (ou não demonstrada) a prática
de atos (ou a sua tentativa) que induzam a conclusão de risco de alienação, oneração ou dilapidação
patrimonial de bens do acionado, dificultando ou impossibilitando o eventual ressarcimento futuro”
(BRASIL, 2014) (Tema 701; STJ, 1ª Seção, REsp 1.366.721/BA, rel. p./acórdão Min. Og Fernandes,
j.m.v. 26-2-2014, DJe 19-9-2014). Desde então, a orientação vem sendo acolhida por ambas as
Turmas da 1ª Seção daquele TribunaL. Assim, v.g.: 2ª Turma, AgInt no AgInt no AREsp 660.851/ES, rel.
Min. Og Fernandes, j.un. 18-5-2021, DJe 9-6-2021; 1ª Turma, AgInt no AREsp 1.547.826/ES, rel. Min
Napoleão Nunes Maia Filho, j.un. 11-11-2020, DJe 17-11-2020 e 2ª Turma, AgInt no REsp 1.842.562/
MA, rel. Min. Herman Benjamin, j.un. 6-10-2020, DJe 18-12-2020.
8
É o que já sustentava no n. 14 do Capítulo 5 da Parte I do meu Curso sistematizado de direito pro-
cessual civil, vol. 2, tomo III. Também em tom crítico, era o entendimento de Fernando da Fonseca
Gajardoni, Periculum in mora presumido nas cautelares sobre bens na Lei de Improbidade Administrativa:
reflexões à luz do CPC/2015 e do tema 701 da jurisprudência do STJ, esp. p. 530/531, destacando,
ainda, a necessidade de ser observada, invariavelmente, a proporcionalidade da medida com os danos
descritos, p. 531/534.
606 Cassio Scarpinella Bueno

enfatiza o regime aplicável à medida, colocando-a à parte da tutela provisória


da evidência do art. 311 do CPC. Não há, contudo, consoante escrevi no n. 3,
supra, e com a ressalva do parágrafo anterior, por que deixar de aplicar o
art. 311 do CPC generalizadamente às ações de improbidade administrativa.

A parte final do §  3º do art.  16, ao impor que o


pedido de indisponibilidade só seja concedido
“após  a oitiva do réu em 5 (cinco) dias” é
relativizado pelo § 4º do mesmo dispositivo, segundo
o qual “a indisponibilidade de bens poderá ser
decretada sem a oitiva prévia do réu, sempre que
o contraditório prévio puder comprovadamente
frustrar a efetividade da medida ou houver outras
circunstâncias que recomendem a proteção liminar,
não podendo a urgência ser presumida”.

A previsão que busca, de modo pertinente, conciliar os princípios do


contraditório e da efetividade, levando em conta a efetiva demonstração
da necessidade imediata da medida, o que legitima a postergação do
contraditório. Trata-se, em última análise, da mesma ratio que levou
o STF a considerar inconstitucional, na ADI 4296, o art. 22, § 2º, da Lei
n. 12.016/2009, que disciplina o mandado de segurança, e que merece
ser aplicada à presente hipótese, a despeito de estar diante de uma
ação de improbidade administrativa9.
O § 5º do art. 16 prescreve que o montante indicado na petição inicial
como dano ao erário ou como enriquecimento ilícito deve ser conside-
rado como limite para a somatória dos valores declarados indisponíveis,
ainda que haja mais de um réu. A preocupação do legislador é a de evitar
que variadas medidas de indisponibilidade possam, quando somadas,
gerar uma despropositada asseguração do resultado do processo. Não há,
em rigor, tantos danos ao erário quantos sejam os réus do processo,
sendo suficiente, destarte que a indisponibilidade recaia sobre valor
suficiente para os fins a que se destina, independentemente do número
de litisconsortes passivos.
O valor da indisponibilidade a ser considerado, prossegue o § 6º do art. 16,
deve levar em consideração a estimativa de dano feita desde a petição inicial.

Para uma análise do alcance da decisão do STF na ADI 4296, dediquei artigo específico intitulado
9

ADI 4296 e liminar em mandado de segurança: uma proposta de compreensão de seu alcance.


Tutela provisória na “ação de improbidade administrativa” 607

O mesmo dispositivo permite que a medida seja substituída por caução


idônea, por fiança bancária ou por seguro-garantia judicial, a requerimento
do réu, sem prejuízo de sua readequação durante a instrução do processo.
Trata-se de escorreita aplicação da compreensão da fungibilidade inerente
às tutelas de índole assecuratória e que encontra eco no § 1º do art. 300
e no art. 301, ambos do CPC.
De acordo com o § 7º do art. 16, quando a indisponibilidade envolver
bens de terceiro, ela dependerá da demonstração de sua participação
nos atos questionados. Em se tratando de pessoa jurídica, prossegue o
dispositivo, é mister que seja instaurado o incidente de desconsideração da
personalidade jurídica dos arts. 133 a 137 do CPC para autorizar qualquer
ato constritivo em relação a seus sócios.
Sobre a regra importa destacar, de qualquer sorte, que a necessidade
de instauração do incidente de desconsideração da personalidade jurídica
não é, em si mesmo, óbice para que, a depender da situação concreta,
se possa, legitimamente, praticar algum ato constritivo em face do sócio
com base nos referenciais da tutela provisória de urgência (art. 300,
caput, do CPC). O que o § 7º do art. 16 da Lei n. 8.429/1992, na redação
da Lei n. 14.230/2021, quer evitar é que o atingimento de bens do sócio
se dê independentemente de dar a ele possibilidade de exercer sua ampla
defesa, ainda que de modo postergado. Trata-se, nesse sentido, da mesma
diretriz destacada acima com base no § 4º do art. 16.
Os §§ 10 a 14 do art. 16 se ocupam com o objeto da indisponibili-
dade. Ela recairá sobre bens que assegurem exclusivamente o integral
ressarcimento do dano ao erário, sem incidir sobre os valores a serem
eventualmente aplicados a título de multa civil ou sobre acréscimo patri-
monial decorrente de atividade lícita10. A previsão não tem o condão de
impedir que o autor requeira tutela provisória com fundamento no CPC

10
Antes da Lei n. 14.230/2021, a 1ª Seção do STJ chegou a entendimento oposto em sede de recurso
especial repetitivo (REsp 1.862.792/PR, rel. Min. Manoel Erhardt, j.un. 25-8-2021, DJe 3-9-2021,
tema 1055), admitindo que a indisponibilidade recaia também sobre patrimônio capaz de arcar
com a multa civil, ainda que nas hipóteses alcançadas pelo art. 11 da Lei n. 8.429/1992 nas quais,
em rigor, não há dano ao erário. Eis seu enunciado: “É possível a inclusão do valor de eventual mul-
ta civil na medida de indisponibilidade de bens decretada na ação de improbidade administrativa,
inclusive naquelas demandas ajuizadas com esteio na alegada prática de conduta prevista no art. 11
da Lei 8.429/1992, tipificador da ofensa aos princípios nucleares administrativos” . Para a discussão
do assunto em sede de doutrina, v.: Fernando da Fonseca Gajardoni, Periculum in mora presumido
nas cautelares sobre bens na Lei de Improbidade Administrativa: reflexões à luz do CPC/2015 e do
tema 701 da jurisprudência do STJ, p. 538/540.
608 Cassio Scarpinella Bueno

para tal finalidade, justificando a necessidade da medida para assegurar o


resultado útil da aplicação de outras penas de caráter pecuniário previstas
na Lei n. 8.429/1992, inclusive relacionadas aos tipos dos arts. 9º e 11
daquele diploma legislativo11.
O § 11 do art. 16, na contramão do § 1º do art. 835 do CPC, veda que
a indisponibilidade de bens recaia prioritariamente sobre dinheiro,
dispondo que a aquela medida deve “[…] priorizar veículos de via terrestre,
bens imóveis, bens móveis em geral, semoventes, navios e aeronaves,
ações e quotas de sociedades simples e empresárias, pedras e metais
preciosos”. Tanto assim que a parte final do dispositivo indica que apenas
na inexistência daqueles bens, a indisponibilidade deve acarretar “…
o bloqueio de contas bancárias, de forma a garantir a subsistência do
acusado e a manutenção da atividade empresária ao longo do processo”.
A melhor interpretação para a regra é a que admite que a indispo-
nibilidade recaia sobre dinheiro e contas bancárias, respeitadas, eviden-
temente as vedações legais (assim, v.g., o art. 833 do CPC e o § 13 do
próprio art. 16) e desde que se garanta o suficiente para a subsistência
do réu e a atividade empresarial ao longo do processo. Para tanto, pode o
magistrado valer-se, ainda que por analogia, do disposto nos arts. 847, 848,
854 e 866, § 1º, do CPC. Ademais, pode o réu, consoante o caso, pleitear a
substituição de bens tornados indisponíveis a posteriori, com fundamento
no § 6º do art. 16, indicando as razões para tanto.
Preocupado com a atividade empresarial por intermédio do Estado
ou de particular em algum regime de cooperação, o § 12 do art. 16 deter-
mina que na apreciação do pedido de indisponibilidade de bens, o magis-
trado deve observar os efeitos práticos da decisão no sentido de adotar
medidas que possam acarretar prejuízos à prestação de serviços públicos.
O já mencionado § 13 do art. 16 veda a decretação de indisponibilida-
de da quantia de até quarenta salários-mínimos depositados em caderneta
de poupança, em outras aplicações financeiras ou em conta corrente.
A previsão harmoniza-se, embora em formulação textual mais ampla,
com a inciso X do art. 833 do CPC.

11
Tratando do tema na perspectiva do art. 11 da Lei n. 8.429/1992, antes da Lei n. 14.230/2021,
v., a título ilustrativo: STJ, 1ª Turma, AgInt no REsp 1.748.560/SC, rel. Min. Benedito Gonçalves,
j.un. 10-3-2020, DJe 13-3-2020; STJ, 2ª Turma, AgInt no AREsp 1.402.103/SP, rel. Min. Assusete
Magalhães, j.un. 9-5-2019, DJe 20-5-2019; STJ, 1ª Turma, AgInt no REsp 1.500.624/MG, rel. Min. Sérgio
Kukina, j.un. 3-5-2018, DJe 5-6-2018 e STJ, 2ª Turma, AgRg no REsp 1.299.936/RJ, rel. Min. Mauro
Campbell Marques, j.un. 18-4-2013, DJe 23-4-2013.
Tutela provisória na “ação de improbidade administrativa” 609

Também é proscrita a indisponibilidade do bem de família do réu,


a não ser que se comprove que o imóvel é fruto de vantagem patrimo-
nial indevida, nos moldes do art. 9º (art. 16, § 14)12. É correto entender,
a despeito da literalidade do dispositivo (e do próprio § 13), que a indis-
ponibilidade deve respeitar quaisquer hipóteses de impenhorabilidade,
por exemplo as do art. 833 do CPC13.
Tais considerações são tanto mais pertinentes diante do art. 13 da
Lei n. 8.429/1992, segundo o qual, com as modificações nele introduzidas
pela Lei n. 14.230/2021, dispõe que:

Art. 13. A posse e o exercício de agente público


ficam condicionados à apresentação de declaração de
imposto de renda e proventos de qualquer natureza,
que tenha sido apresentada à Secretaria Especial da
Receita Federal do Brasil, a fim de ser arquivada no
serviço de pessoal competente.
§ 1º. (revogado)
§ 2º A declaração de bens a que se refere o caput
deste artigo será atualizada anualmente e na data
em que o agente público deixar o exercício do
mandato, do cargo, do emprego ou da função.
§ 3º Será apenado com a pena de demissão,
sem prejuízo de outras sanções cabíveis, o agente
público que se recusar a prestar a declaração dos
bens a que se refere o caput deste artigo dentro do
prazo determinado ou que prestar declaração falsa.
§ 4º (revogado). (BRASIL, 2021)

Por fim, tendo presente o pedido de indisponibilidade de bens disci-


plinado pelo art. 16 da Lei n. 8.429/1992, na feição que lhe deu a Lei
n. 14.230/2021, cabe acentuar que a decisão da primeira instância, que o
deferir ou que o indeferir está sujeita ao recurso de agravo de instrumento

12
A jurisprudência do STJ anterior à Lei n. 14.230/2021 era no sentido de admitir a indisponi-
bilidade do bem de família como fazem prova, por exemplo, os seguintes julgados: 2ª Turma,
REsp 1.837.848/SC, rel. Min. Francisco Falcão, j.un. 5-3-2020, DJe 10-3-2020; 1ª Turma, AgInt no
REsp 1.772.897/ES, rel. Min. Sérgio Kukina, j.m.v. 5-12-2019, DJe 16-12-2019; 2ª Turma, EDcl no
AgRg no REsp 1.351.825/BA, rel. Min. Og Fernandes, j.un. 22-9-2015, DJe 14-10-2015 e 1ª Turma,
AgRg no REsp 1.483.040/SC, rel. Min. Benedito Gonçalves, j.m.v. 1º-9-2015, DJe 21-9-2015.
13
Nesse sentido, v. Mauro Campbell Marques, A indisponibilidade de bens em ação civil de improbidade
administrativa: requisitos e limites na jurisprudência do STJ, p. 249/252 e Mirna Cianci e Rita Quartieri,
Indisponibilidade de bens na improbidade administrativa, p. 332.
610 Cassio Scarpinella Bueno

(art. 16, § 9), que admite sustentação oral naqueles recursos quando dirigi-
dos a decisões que versem acerca da tutela provisória, como é a hipótese
aqui referida (art. 937, VIII, do CPC). A expressa previsão do agravo de
instrumento especifica o genérico inciso I do caput do art. 1.015 do CPC,
e acaba sendo reiterada pelo disposto no § 21 do art. 17, incluído pela Lei
n. 14.230/2021. Diante da clareza do cabimento do recurso na espécie,
mostra-se desnecessária que tal demonstração busque fundamente no tema
988 da jurisprudência repetitiva do STJ que quer flexibilizar o cabimento
do agravo de instrumento em situações que não estão expressamente
previstas nos incisos do caput do art. 1.015 do CPC, mas cujo exame
imediato se justifique sob pena de inocuidade de sua reanálise somente
ao ensejo do julgamento da apelação (art. 1.009, §§ 1º e 2º, do CPC).

3.1 Legitimidade para o pedido de indisponibilidade

No julgamento das ADI 7042 e 7043, ajuizadas, respectivamente,


por Associação Nacional dos Procuradores dos Estados e do Distrito Federal
(ANAPE) e por Associação Nacional dos Advogados Públicos Federais
(ANAFE), o Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF), sob a relatoria
do Ministro Alexandre de Moraes teve a oportunidade de reconhecer a
inconstitucionalidade dos dispositivos da Lei n. 14.230/2021 que acabaram
limitando, ao Ministério Público, a legitimidade para a ação de improbi-
dade administrativa e também para o pedido de tutela provisória a elas
relacionadas, ainda que formulados de modo antecedente.
De acordo com o julgamento, a “lógica constitucional de proteção
ao patrimônio público” é contrária à monopolização da legitimidade ativa
em um só legitimado. Por isso, foi declarada a inconstitucionalidade
parcial sem redução de texto do caput e dos §§ 6º-A e 10-C do art. 17
e do caput e dos §§ 5º e 7º do art. 17-B, da Lei 8.429/1992, na redação
dada pela Lei 14.230/2021, “de modo a restabelecer a existência de
legitimidade ativa concorrente e disjuntiva entre o Ministério Público
e as pessoas jurídicas interessadas para a propositura da ação por ato
de improbidade administrativa e para a celebração de acordos de não
persecução civil”.
Aplicando tal entendimento para o tema deste artigo é irrecusável
a conclusão de que as pessoas de direito público interessadas têm legiti-
midade ativa para pleitear perante o Poder Judiciário tutelas provisórias
relativas aos bens assegurados pela ação de improbidade administrativa,
Tutela provisória na “ação de improbidade administrativa” 611

inclusive em caráter antecedente. Não há razão nenhuma, a não ser o


texto legal — afastado pela Suprema Corte em função de seu aprimora-
mento — para negar àqueles outros entes legitimidade ativa também para
os pedidos de indisponibilidade, máxime porque não há qualquer menção
expressa ao Ministério Público no art. 16 da Lei n. 8.429/1992 na redação
que lhe deu a Lei n. 14.230/2021.

4. Afastamento do agente público

Há outra previsão de tutela provisória específica na Lei n. 8.429/1992.


A referência é feita ao §  1º do art.  20, na redação que lhe deu a
Lei n. 14.230/2021.
De acordo com o dispositivo,

A autoridade judicial competente poderá determinar


o afastamento do agente público do exercício do
cargo, do emprego ou da função, sem prejuízo da
remuneração, quando a medida for necessária à
instrução processual ou para evitar a iminente
prática de novos ilícitos.

Trata-se de medida voltada a garantir a adequada colheita da prova


na suposição de que o réu da ação de improbidade administrativa,
em função do cargo, emprego ou função que exerce, tem condições de
criar alguma espécie de embaraço ou dificuldade na colheita das provas
destinadas à formação da cognição judicial. Também como forma de
evitar que o réu possa praticar novos ilícitos por causa da função que
continua a ocupar. O afastamento em tais casos, é o mesmo dispositivo
legal que destaca, dá-se sem prejuízo da remuneração.
A função nitidamente cautelar da técnica é inegável, não se
confundindo com a antecipação dos efeitos da tutela jurisdicional que,
porventura, pode ter sido requerida consistente na perda da função
pública ou na perda do cargo. Para elas, consoante o caput do art. 20
da Lei n. 8.429/1992, o trânsito em julgado é a regra14.

14
Nesse sentido, dando especial destaque à excepcionalidade da hipótese, v.: STJ, 2ª Turma, REsp
1.779.976/GO, rel. Min. Herman Benjamin, j.m.v 23-2-2021, DJe 3-5-2021; STJ, CE, AgInt na
SLS 2.627/MG, rel. Min. João Otávio de Noronha, j.un, 25-8-2020, DJe 27-8-2020 e STJ, 2ª Turma,
REsp 1.523.385/PE, rel. Min. Herman Benjamin, j.un. 13-9-2016, DJe 7-10-2016.
612 Cassio Scarpinella Bueno

Seja pela distinção das regras veiculadas no caput e no § 1º do art. 20,


seja porque não há razão para negar a amplitude subjetiva da ação de
improbidade administrativa, é irrecusável compreender que a suspensão
de direitos políticos pode afetar também agente político15.
O § 2º do art. 20 da Lei n. 8.429/1992, novidade da Lei n. 14.230/2021,
estabelece que o afastamento autorizado pelo § 1º do dispositivo será
de até 90 dias, sendo possível sua prorrogação por uma única vez por
igual prazo, mediante decisão motivada.
É correto entender que o prazo seja computado em dias úteis por
estar vinculado ao próprio processo, que aceita a distinção decorrente
do parágrafo único do art. 219 do CPC. Não faria sentido que o tempo
da suspensão fluísse de maneira a não levar em conta a sistemática dos
prazos do próprio processo, dada a sua própria razão de ser.
De outro lado, a prorrogação por igual prazo deve ser entendida no
sentido de ser admissível prorrogação por até outros 90 dias ainda que,
o primeiro período fixado tenha sido inferior ao máximo legal.

Conclusão

Quanto às regras incorporadas à Lei n. 8.429/1992 pela Lei


n. 14.230/2021 que destoam da anterior jurisprudência repetitiva do
STJ sobre o tema — a referência é feita aos temas 701 e 1055, que se
relacionam com a indisponibilidade de bens — é de se dizer que não
há espaço para duvidar de que a diretriz legal deve prevalecer sobre o
entendimento jurisprudencial pretérito.
Por mais que o CPC de 2015 enalteça a força e a eficácia de determinadas
decisões jurisdicionais, dentre elas, as teses fixadas a partir do julgamento
de recurso especiais repetitivos, não há como sustentar que a modificação
inequívoca da lei não seja, por si só, fator suficiente para que o entendi-
mento anterior perca seu fundamento de validade, independentemente
de um cancelamento formal da manifestação jurisprudencial preexistente.
É correto acentuar, de qualquer sorte, que o ideal, dentre do sistema
do direito jurisprudencial é que a superação daquele entendimento pela

15
Visão crítica do tema é a de Antonio Araldo Ferraz Dal Pozzo e Augusto Neves Dal Pozzo, Afastamento de
prefeito municipal no curso de processo instaurado por prática de ato de improbidade administrativa,
p. 79;88, e a de José Augusto Delgado, Improbidade administrativa: algumas controvérsias doutrinárias
e jurisprudenciais sobre a lei de improbidade administrativa, p. 274; 276.
Tutela provisória na “ação de improbidade administrativa” 613

superveniência da lei em sentido contrário, seja devidamente formalizado


pelo próprio STJ16. Não obstante, dada o inequívoco antagonismo da
nova regra com aquele entendimento, é certo admitir que a observância
dos temas 701 e 1055, tão enfatizada pelo CPC, a partir do disposto no
art. 927, III, do CPC, seja descartada.

Bibliografia

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de improbidade administrativa. In: SCARPINELLA BUENO, Cassio; PORTO
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aplicáveis em virtude da prática de atos de improbidade administrativa,
de que trata o § 4º do art. 37 da Constituição Federal; e dá outras
providências. Brasília, DF: Congresso Nacional, 1992.
BRASIL. Lei nº 14.230, de 25 de outubro de 2021. Altera a Lei nº 8.429,
de 2 de junho de 1992, que dispõe sobre improbidade administrativa.
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Inconstitucionalidade 7042/7043. Os entes públicos que sofreram prejuízos
em razão de atos de improbidade também estão autorizados, de forma
concorrente com o Ministério Público, a propor ação e a celebrar acordos
de não persecução civil em relação a esses atos. Rel.: Min. Alexandre de
Moraes, Brasília, DF: Superior Tribunal de Justiça, 2022.
CIANCI, Mirna; QUARTIERI, Rita. Indisponibilidade de bens na improbidade
administrativa. In: LUCON, Paulo Henrique dos Santos; COSTA, Eduardo
José da Fonseca; COSTA, Guilherme Recene (coord.). Improbidade
administrativa. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2012.

16
Foi o que a 1ª Seção do STJ fez, por exemplo, com sua Súmula 212 diante da decisão tomada pelo STF
na ADI 4296 que, no que importa para cá, declarou a inconstitucionalidade das vedações à concessão
de liminar em mandado de segurança nos casos do art. 7º, § 2º, da Lei n. 12.016/2009.
614 Cassio Scarpinella Bueno

DELGADO, José Augusto. Improbidade administrativa: algumas controvérsias


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que trata a Lei 8.429, de 1992: enfoque da questão sob a ótica da execução
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PORTO FILHO, Pedro Paulo de Rezende (coord.). Improbidade administrativa:
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improbidade administrativa: requisitos e limites na jurisprudência do STJ.
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questões polêmicas e atuais. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2003.
Tutela provisória na “ação de improbidade administrativa” 615

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uma proposta de compreensão de seu alcance. Suprema: Revista de Estudos
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de Rezende (coord.). Improbidade administrativa: questões polêmicas e
atuais. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2003.
716

Produção antecipada de prova na


improbidade administrativa

Rogerio Bellentani Zavarize1


Juiz de Direito no estado de São Paulo

Sumário: Introdução. 1. Atividade probatória nas ações por impro-


bidade administrativa. 2. Produção antecipada de prova e a improbidade
administrativa. 3. Antecipação da produção de prova com natureza cautelar.
4. Direito autônomo à obtenção da prova na improbidade administrativa.
5. Provas que podem ser produzidas antecipadamente. 6. Depoimento
pessoal. 7. Interrogatório (art. 17, §18 da Lei nº 8.429/1992). 8. Prova
testemunhal. 9. Prova pericial. 10. Inspeção judicial. 11 Exibição de
documento ou coisa. 12. Quebra de sigilo bancário. Considerações finais.
Referências bibliográficas.

Introdução

As mudanças na lei da improbidade administrativa (introduzidas pela


Lei nº 14.230/2021, que modificou substancialmente a Lei nº 8429/1992)
causaram vários impactos na comunidade jurídica e vem sendo objeto
de interessantes e proveitosos debates2, inclusive no campo probatório.
O objetivo do presente trabalho é demonstrar a admissibilidade da
produção antecipada da prova na improbidade administrativa, à luz da
nova roupagem legal e, à evidência, do Código de Processo Civil.
Serão analisadas as peculiaridades da produção antecipada de prova
aplicadas às diversas situações que envolvem a improbidade adminis-
trativa, com alguns pontos que despertam polêmicas ou divergências.
Cada modalidade probatória típica e seu cabimento na esfera da improbi-
dade administrativa merece referência, ainda que sem uma análise muito

Doutorando em Direito na Universidade Nove de Julho (Uninove-SP). Mestre em Direito. Professor Universitário.
1

Destaca-se o 1º Núcleo de Estudos da Escola Paulista da Magistratura sobre a Nova Lei de Improbidade
2

Administrativa, coordenado pelo Desembargador Antonio Carlos Villen e pelo Juiz Alexandre de Mello
Guerra, em cujos encontros foi gestada a ideia desta obra coletiva.
618 Rogerio Bellentani Zavarize

verticalizada, pois um trabalho de tal envergadura demandaria monografia


específica. Detalhes procedimentais também não estão incluídos no recorte
metodológico proposto para este trabalho, que está vinculado apenas às
hipóteses de cabimento.

1. Atividade probatória nas ações por improbidade administrativa

Para a regência da ação por improbidade administrativa é de rigor a


aplicação do Código de Processo Civil, como a própria Lei nº 8.429/1992,
com as modificações da Lei nº 14.230/2021, expressamente se reportou,
em autêntico diálogo das fontes normativas3.
O ponto fundamental é o art. 17, caput da Lei nº 8.429/1992, ao definir
que a ação seguirá o procedimento comum do Código de Processo Civil,
com as peculiaridades da lei especial. Outras disposições referem-se ao
Código; por exemplo, ao regular a instrução da petição inicial e a possi-
bilidade de seu indeferimento e o reconhecimento da litigância de má-fé
(art. 17, §6º, II e § 6º-B) ou a vedação à modulação do ônus probatório
atribuindo-o ao réu (art. 17, §19, II).
Indiscutível a relevância da atividade probatória, já que, como ensina
Taruffo, “o direito de apresentar todas as provas relevantes ao seu alcance
é um aspecto essencial do direito ao devido processo e deve ser reconhe-
cido como pertencente às garantias fundamentais das partes”4.
O Código de Processo Civil dispõe que é direito das partes empregar
as provas necessárias para provar a verdade dos fatos, de modo a influir
na convicção do juiz (art. 369).
Com pequenas diferenças de tratamento pela doutrina que não devem
ser aqui registradas, concordamos que são quatro os momentos da ativi-
dade probatória: a proposição, o deferimento, a produção e a valoração5.
A prova documental, em regra, é proposta e produzida simulta-
neamente, pois acompanha a petição inicial e a contestação (art. 434
do Código de Processo Civil e art. 17, §6º, II da lei especial). A petição

3
ARAÚJO, José Henrique Mouta. Alterações na Lei de Improbidade e o CPC/15: necessário diálogo
entre as fontes. Consultor Jurídico, 9 nov. 2021. Disponível em: www.conjur.com.br/2021-nov-09/
mouta-alteracoes-lia-cpc15-dialogo-entre-fontes. Acesso em: 18 maio 2022.
4
TARUFFO, Michele. A prova. Tradução: João Gabriel Couto. São Paulo: Marcial Pons, 2014. p. 54.
5
ALVIM, Arruda. Manual de direito processual civil: teoria geral do Processo, Processo de Conhecimento,
Recursos, Precedentes. 18. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019. p. 897.
Produção antecipada de prova na improbidade administrativa 619

inicial da ação por improbidade administrativa deve ser instruída com


documentos ou justificação, com indícios suficientes da veracidade dos
fatos e do dolo imputado ou com razões fundamentadas da impossibilidade
de apresentação de tais provas, e, na hipótese de não estar instruída com
a documentação exigida, será caso de seu indeferimento (art. 17, §6º-B,
segunda figura). Com efeito, a legislação especial traz novo e específico
marco teórico sobre os documentos essenciais à propositura da ação.
Outros elementos de prova serão colhidos em outros momentos, e a lei
especial garante especificação de provas pelas partes (art. 17, § 10-E),
e consequentemente a respectiva dilação probatória para a produção,
ao longo da tramitação da ação. Mas em determinados casos, pode e deve
ser antecipada sua produção.

2. Produção antecipada de prova e a improbidade administrativa

Como visto, a produção probatória possui determinados momentos no


curso do processo. É até intuitivo que o desenvolver da marcha processual
pode prejudicar ou até inviabilizar a coleta de provas. Por isso, surgiu
a ideia da produção antecipada de prova, inicialmente concebida com
caráter eminentemente cautelar. São clássicos os exemplos da oitiva
antecipada de testemunha com precário estado de saúde e da vistoria
ad perpetuam rei memoriam, para registrar por prova pericial o estado
de um bem imóvel.
O aperfeiçoamento do processo trouxe nova visão sobre o instituto,
incorporada pelo Código de Processo Civil de 2015, para permitir a produção
antecipada de prova não apenas em situações consideradas de urgência,
mas também como decorrência do chamado direito autônomo à prova,
com modernas hipóteses de cabimento para possibilidade de melhor definir
as chances de êxito das partes e também de facilitar práticas voltadas à
autocomposição. A inovação legislativa é digna de elogios da doutrina6 e
sua plena aplicabilidade aos casos de improbidade administrativa é natural.
Considera-se, hodiernamente, que a prova é direito fundamental das
partes. No processo moderno não mais prevalece a concepção de que o

6
NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de direito processual civil. 12. ed. Salvador: Juspodivm,
2020. p. 739.
620 Rogerio Bellentani Zavarize

único destinatário das provas é o juiz, já que elas são produzidas para
muito além da sua exclusiva convicção7.
Há um debate interessante sobre a natureza jurídica da produção
antecipada. Para alguns, trata-se de procedimento de jurisdição voluntária,
por não exigir afirmação de conflito em torno da produção da prova8,
e outros defendem que é contenciosa, pois insere-se no contexto de um
conflito9; e que pode ser uma ou outra, conforme o caso10.
As hipóteses previstas nos incisos I a III art. 381 do Código de Processo
Civil nos casos de improbidade administrativa devem ser tratadas separa-
damente, como proposto a seguir.

3. Antecipação da produção de prova com natureza cautelar

O art. 381, I do Código de Processo Civil tem previsão de natureza


eminentemente cautelar, pois cabível quando “haja fundado receio de
que venha a tornar-se impossível ou muito difícil a verificação de certos
fatos na pendência da ação”.
Mas há divergências sobre a configuração da tutela cautelar.
Há quem mencione que a disciplina da produção antecipada de prova
tem objeto diverso11.
Ocorre que a redação do inciso I pressupõe efetivo risco de a prova não
ser viabilizada caso sua produção ficar para mais adiante. Por isso, a prova

7
LANES, Júlio Cesar Goulart; POZATTI, Fabrício Costa. O juiz como o único destinatário da prova (?).
In: DIDIER JR., Fredie (coord.). Grandes temas do Novo CPC, v. 5: direito probatório. Salvador: Juspodivm,
2015, p. 101.
8
DIDIER JR., Fredie. Curso de direito processual civil: teoria da prova, direito probatório, decisão,
precedente, coisa julgada e tutela provisória / Fredie Didier Jr., Paula Sarno Braga e Rafael Alexandria
de Oliveira - 14 ed. - Salvador: Juspodivm, 2019. v. 2, p. 165.
9
WAMBIER, Luiz Rodrigues; TALAMINI, Eduardo. Curso avançado de processo civil, volume 2: cognição
jurisdicional (processo comum de conhecimento e tutela provisória). 18. ed. rev. atual. e ampl.
São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019. p. 379.
10
NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de Processo Civil comentado. 19. ed.
rev. atual. e ampl. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020. p. 1053. No mesmo sentido: MARINONI,
Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Curso de processo civil: tutela dos direitos
mediante procedimento comum. 6 ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020.
vol. 2., p. 318.
11
MIRANDA NETTO, Fernando Gama de. Produção antecipada da prova: natureza, cabimento e garantias
constitucionais do processo. In: CÂMARA, Alexandre Freitas; SILVA, Larissa Clare Pochmann da; ALMEIDA,
Marcelo Pereira de (org.). Temas contemporâneos de direito processual: reflexões sobre a vigência do
Código de Processo Civil de 2015. Londrina: Thoth, 2022. p. 307.
Produção antecipada de prova na improbidade administrativa 621

antecipada com referido fundamento tem natureza “assecuratória”,


com “caráter conservativo” para impedir perecimento12 e justifica-se
ante o risco de a produção não ser mais possível em razão de demora até
o momento em que normalmente seria produzida13.
Sem dúvida, em muitos casos de improbidade administrativa estará
presente o interesse cautelar em assegurar a prova. Certamente, será a
hipótese mais frequente. E mais: a iniciativa poderá ser daquele futuro
autor, que proporá a ação, ou de quem poderá vir a ocupar o polo passivo,
pois cada qual poderá ter específico interesse.

4. Direito autônomo à obtenção da prova na improbidade administrativa

A produção antecipada de prova é admissível se ela for suscetível


de viabilizar a autocomposição ou outro meio adequado de solução do
conflito (art. 381, II), e nos casos em que o prévio conhecimento dos
fatos possa justificar ou evitar o ajuizamento de ação (art. 381, III).
São hipóteses de produção de prova sem urgência14, diversamente da
situação prevista no inciso I. Permite-se a produção da prova no interesse
exclusivo do requerente, como direito autônomo à prova, sem vinculação
ao direito material15.
As hipóteses de direito autônomo à prova indicam que o material
probatório coletado pode ser decisivo para que a demanda ocorra ou não,
de modo que a disputa litigiosa “não é apenas futura, mas eventual”16.
São inspiradas no direito comparado, especialmente na discovery
norte-americana, que é um procedimento prévio com objetivo de coleta de
provas e de seu respectivo compartilhamento entre as partes, para adequado

12
ALVIM, Arruda. Manual de direito processual civil: teoria geral do processo, processo de conhecimento,
recursos, precedentes. 18. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019. p. 927.
13
CÂMARA, Alexandre Freitas. Manual de direito processual civil. Barueri: Atlas, 2022. p. 403. E-book.
14
Duas obras de referência e vanguarda sobre o tema: NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Ações probatórias
autônomas. São Paulo: Saraiva, 2008; e YARSHELL, Flávio Luiz. Antecipação da prova sem o requisito
da urgência e direito autônomo à prova. São Paulo: Malheiros, 2009.
15
ALVIM, Arruda. Manual de direito processual civil: Teoria geral do processo, processo de conhecimento,
recursos, precedentes. 18. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019. p. 928.
16
WAMBIER, Luiz Rodrigues; TALAMINI, Eduardo. Curso avançado de processo civil, volume 2: cognição
jurisdicional (processo comum de conhecimento e tutela provisória). 18. ed. rev. atual. e ampl.
São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019. p. 378.
622 Rogerio Bellentani Zavarize

exame preparatório de suas pretensões e defesas para uma possível ação


judicial (Federal Rule of Civil Procedure 26(a)17.
O inciso II do art. 381 coloca em relevo a importância que o sistema
processual confere à autocomposição18 e deve ser compreendido no contex-
to de um código que estabelece a conciliação entre as normas fundamentais
do processo (art. 3º, §3º). Na redação original da Lei nº 8.429/1992, seria
impensável o emprego de produção antecipada de prova para viabilizar a
conciliação, que era vedada (antigo §1º do art. 17). Atualmente a conci-
liação é permitida nas ações por improbidade administrativa (art. 17-B,
inserido pela Lei nº 14.230/2021). O acordo só é permitido com a reparação
integral do dano, e pode ocorrer antes ou durante o curso da ação por
improbidade administrativa (§4º do art. 17-B).
Vê-se peculiar serventia para a produção antecipada da prova para
oportuna viabilização da autocomposição, a fim de estabelecer preci-
samente se há dano e qual o valor a ser ressarcido, quando ainda não
definido e dependa de diligências probatórias.
A produção antecipada de prova para determinar a extensão do dano,
e evitar pedido genérico, é um uso “interessante”19 que se destaca nas
ações por improbidade administrativa. No mesmo sentido, há viabilidade
da ação para antecipação de prova pericial a fim de possibilitar formu-
lação de um pedido líquido na demanda principal20, o que também vem
ao encontro da facilitação na obtenção da autocomposição nas ações por
improbidade administrativa.
O inciso III do art. 381 traz evidente amplitude do cabimento da
antecipação de prova, mediante justificada alegação do interesse em
esclarecer os fatos, e também permite a produção da prova como meio
de elaborar petição inicial de modo responsável21.

17
FUX, Luiz; BODART, Bruno. Processo civil e análise econômica. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2021.
p. 61. E-book.
18
FAGUNDES, Cristiane Druve Tavares. Breves reflexões sobre a produção antecipada da prova no NCPC.
In: DIDIER JR., Fredie (coord.). Novo CPC: doutrina selecionada, v. 3: provas. Salvador: Juspodivm,
2016. p. 632.
19
MIRANDA NETTO, Fernando Gama de. Produção antecipada da prova: natureza, cabimento e garantias
constitucionais do processo. In: CÂMARA, Alexandre Freitas; SILVA, Larissa Clare Pochmann da; ALMEIDA,
Marcelo Pereira de (org.). Temas contemporâneos de direito processual: Reflexões sobre a vigência do
Código de Processo Civil de 2015. Londrina: Thoth, 2022. p. 310.
20
DIDIER JR., Fredie; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Curso de direito processual
civil: teoria da prova, direito probatório, decisão, precedente, coisa julgada e tutela provisória. 14 ed.
Salvador: Juspodivm, 2019. v. 2, p. 167.
21
NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de direito processual civil. 12. ed. Salvador: Juspodivm,
2020. p. 740.
Produção antecipada de prova na improbidade administrativa 623

Na condição de procedimento autônomo para obtenção da prova,


pode ser instaurado por iniciativa daquele que será autor da ação por
improbidade administrativa, ou daquele que está sendo investigado e
que virtualmente ocupará a condição de réu. Em caso de futura ação,
qualquer das partes poderá valer-se das provas produzidas antecipada-
mente, de acordo com os próprios interesses e o resultado da coleta do
material probatório.

5. Provas que podem ser produzidas antecipadamente

O Código de Processo Civil relaciona meios legais de prova, sem excluir


outros meios legítimos, que são as conhecidas provas atípicas (art. 369).
E outras espécies probatórias podem ser previstas em legislação especial.
Alguns dos meios de prova serão tratados separadamente para melhor
compreensão. A exibição de documento ou coisa também, conquanto não
se trate de meio de prova e sim procedimento para obtenção de prova.
Adianta-se que há divergência na forma a ser adotada.
Diversamente do anterior, o atual Código de Processo Civil não limitou
a produção antecipada para uma ou outra espécie de prova, de modo que
qualquer modalidade probatória é admissível (art. 382, §3º).
A partir desta breve introdução metodológica, passa-se ao exame
dos referidos meios.

6. Depoimento pessoal

O depoimento pessoal pode ser objeto de antecipação. Apesar de


provavelmente não saber ainda com precisão quais serão os fatos contro-
vertidos a ensejar confissão, será possível conhecer os fatos relevantes e
esclarecê-los22, reservando, porém, eventual caracterização de confissão
para o futuro processo23.
Nas ações probatórias relacionadas às ações por improbidade adminis-
trativa é adequado admitir que o futuro autor postule a antecipação do
depoimento pessoal daqueles que possam ser réus. A obtenção de esclareci-
mentos é uma das justificativas para o ato, inclusive para eventual aferição

22
GONÇALVES, Marcus Vinícius Rios. Processo de conhecimento e procedimentos especiais. In: GONÇALVES,
Marcus Vinícius Rios. Curso de direito processual civil. 16. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2020. v. 2, p. 105.
23
WAMBIER, Luiz Rodrigues; TALAMINI, Eduardo. Curso avançado de processo civil, volume 2: cognição
jurisdicional (processo comum de conhecimento e tutela provisória). 18. ed. rev. atual. e ampl.
São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019. p. 381.
624 Rogerio Bellentani Zavarize

pelo autor da ação da presença do dolo exigido para a configuração dos atos
ímprobos (art. 1º, §§1º e 2º da Lei nº 8.249/1992, com a redação atual).
Mas sempre com limitação bem clara: só servirá para esclarecer
fatos, sem deles extrair previa e antecipadamente a pena de confissão,
que ademais, demanda valoração da prova, o que é vedado no procedi-
mento da antecipação (art. 382, §2º do Código).

7. Interrogatório (art. 17, §18 da Lei nº 8.429/1992)

O interrogatório nas ações por improbidade foi inserido com a recente


reforma. Assegura-se ao réu o direito de ser interrogado sobre os fatos
da ação, e sua recusa ou seu silêncio não implicarão confissão (art. 17,
§18 da lei especial). Não deve ser confundido com o interrogatório do
processo penal, por se tratar de instituto do processo civil.
Não é a mesma figura do depoimento pessoal. Basta lembrar que no
depoimento pessoal, a parte não pode requerer o seu próprio depoimento
(art. 385, caput do Código de Processo Civil), e, se intimada a prestá-lo,
será considerada confessa se não o fizer (art. 385, §1º). O tratamento,
como se vê, é bem distinto.
Ele ocorrerá em audiência de instrução e surgirão dúvidas sobre o
exato momento: (a) na fase do depoimento pessoal, antes das oitivas das
testemunhas (art. 361, II do Código de Processo Civil) ou (b) depois das
oitivas, como se faz no interrogatório penal. A premissa para a resposta já
fora fixada: trata-se de ato probatório civil, e será observada a ordem de
produção das provas em audiência conforme a lei civil, ou seja, no início da
audiência, antes dos depoimentos testemunhais. Mas note-se que algumas
situações concretas podem precisar de ajuste, uma vez que a previsão do
interrogatório consta de norma processual com aplicação imediata aos
processos em tramitação, de modo que, se a instrução processual ainda
estiver em curso, deve ser deferido o respectivo pedido24, vale dizer, ainda
que em casos específicos possa se realizar em momento diverso do ideal.
Não pode ser negada a antecipação do interrogatório nas questões
envolvendo improbidade administrativa, mas soa estranho admitir o
requerimento pelo autor da futura ação, já que o interrogatório é previsto

SÃO PAULO. Tribunal de Justiça (1ª Câmara de Direito Público). Agravo de Instrumento
24

2048366-70.2022.8.26.0000; Relator: Des. Vicente de Abreu Amadei, 19 abr. 2022. Disponível em:
https://esaj.tjsp.jus.br/cjsg/consultaCompleta.do?f=1. Acesso em: 30 set. 2022.
Produção antecipada de prova na improbidade administrativa 625

como direito do réu. Quando for dele a iniciativa, deve ser autorizada a
antecipação, pois tem assegurado o direito de ser interrogado sobre os
fatos e isso se trata de “explícita garantia”, podendo dele abrir mão se
quiser25. O contrário, não.
Imagine-se a hipótese de o investigado, provável futuro réu, ser porta-
dor de problema de saúde que, em tese, possa dificultar seu interrogatório
mais adiante, no curso da ação principal por improbidade administrativa.
Se lhe é assegurado o direito de ser interrogado na demanda, também
deve ser assegurada a correlata antecipação.

8. Prova testemunhal

A produção antecipada da prova testemunhal pode ter nature-


za cautelar, quando uma testemunha estiver em estado de saúde que
possa trazer risco de não ser ouvida quando da audiência de instrução,
debates e julgamento.
Antecipar o depoimento em tais circunstâncias será de grande
interesse tanto do futuro autor da ação por improbidade administrativa,
como de quem está na iminência de se tornar réu. Deve ser admitida a
antecipação da prova testemunhal, a pedido do interessado, indepen-
dentemente de qual posição processual poderá assumir no futuro.
A antecipação não se fará apenas em caso de urgência na conserva-
ção da prova. Permite-se a prova testemunhal nas hipóteses decorrentes
do direito autônomo à produção da prova, caso possa fornecer melhores
subsídios para a autocomposição ou justificar ou evitar o próprio ajuiza-
mento da ação (art. 381, II e III do Código de Processo Civil). Por isso,
qualquer dos interessados – futuras e eventuais partes – detém legiti-
midade para a requerer.

9. Prova pericial

A prova pericial antecipada com o requisito da urgência assegura o


registro da situação de um determinado bem e evita que o decurso do
tempo não torne difícil ou impossível o mesmo resultado. É conhecida a

JUSTEN FILHO, Marçal. Reforma da lei de improbidade administrativa comentada e comparada:


25

Lei 14.230, de 25 de outubro de 2021. Rio de Janeiro: Forense, 2022. p. 197. E-book.


626 Rogerio Bellentani Zavarize

expressão vistoria ad perpetuam rei memoriam, e a função é plenamente


aplicável em questões afetas à improbidade administrativa.
A apuração pericial da fase e das condições de uma obra pública em
andamento para eventuais responsabilidades por supostos ilícitos pode ser
realizada mediante a produção antecipada de prova, de modo a evitar a
paralisação da obra até uma fase mais adiantada da demanda, como lamen-
tavelmente tanto se vê, apenas aumentando os prejuízos à coletividade.
Com a ação probatória autônoma, sem urgência, também é possí-
vel admitir a prova pericial para esclarecimento de questões a envolver
análise técnica, para que se busque oportunamente o melhor caminho:
celebração de autocomposição ou até a proposição – ou não – de ação por
improbidade administrativa (art. 381, II e III do Código de Processo Civil).
Conquanto incomum na prática da improbidade administrativa,
é possível que as partes interessadas ajuízem a medida conjuntamente,
já que a prova pericial pode ser proposta por ambas as partes e é até admis-
sível a escolha de perito consensual (art. 471 do Código de Processo Civil),
sendo compatível com o procedimento26, com evidentes vantagens como
a ausência de questionamentos sobre a imparcialidade do perito comum
e a facilidade de calendarização (art. 191 do Código de Processo Civil).

10. Inspeção judicial

A inspeção judicial visa contato direito e pessoal do juiz com pessoas


ou coisas (art. 481 do Código de Processo Civil). Não pode ser exigida pelas
partes, mas elas podem requerer sua realização antecipada, de modo que,
prima facie, não pode ser excluída, principalmente se o interesse em
disputa envolver situação de urgência (art. 381, I do Código).
A inspeção judicial pode ser antecipada, mas se o processo futuro
for examinado por outro juiz, não haverá o mesmo valor originário27.

26
DIDIER JR., Fredie; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Curso de direito processual
civil: teoria da prova, direito probatório, decisão, precedente, coisa julgada e tutela provisória. 14. ed.
Salvador: Juspodivm, 2019. v. 2, p. 174.
27
WAMBIER, Luiz Rodrigues; TALAMINI, Eduardo. Curso avançado de processo civil, volume 2: cognição
jurisdicional (processo comum de conhecimento e tutela provisória). 18. ed. rev. atual. e ampl.
São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019. p. 381.
Produção antecipada de prova na improbidade administrativa 627

Por outro lado, pode oferecer risco de induzir uma prévia valoração da


prova, se o juiz for o mesmo da principal28.
A inadmissibilidade de se exigir do juiz a realização da inspeção
judicial na fase probatória normal do procedimento comum esvazia um
pouco o debate sobre sua adoção na produção antecipada ligada à impro-
bidade administrativa. Uma visão sistêmica e que considera a realidade
do cotidiano forense indica que a adoção será pouco provável.

11. Exibição de documento ou coisa

A exibição de documento ou coisa (arts. 396 a 404 do Código de


Processo Civil) é um meio para obtenção de prova que pode ser manejado
em face de parte ou mesmo de terceiro, caso o documento ou a coisa não
vier aos autos voluntariamente.
Como a petição inicial da ação por improbidade administrativa
deve estar acompanhada de documentos ou justificação com indícios da
veracidade dos fatos e do dolo imputado, ou com razões fundamentadas
da impossibilidade de apresentação de qualquer dessas provas (art. 17,
§6º, II), vê-se possível a necessidade do mecanismo processual para obten-
ção dos documentos em questão em determinados casos. Nem sempre
isso será possível nos autos do inquérito civil ou de procedimento prepa-
ratório, sendo necessária a intervenção judicial. Vale dizer, o cabimento
da medida é indiscutível.
Há controvérsia sobre o exato procedimento a ser empregado para
exigir a exibição de documento ou coisa. Uma linha defende o procedi-
mento da produção antecipada da prova para obter a prova documental29,
com alguns casos na jurisprudência paulista30, e outra inclina-se no sentido
de que a exibição deve ser pleiteada através do procedimento comum, e não

28
DAVID, Tiago Bitencourt de. Dúvidas e críticas sobre os (ab)usos da ação de produção antecipada de
provas. Consultor Jurídico, 23 dez. 2021. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-dez-23/
opiniao-abusos-acao-producao-antecipada-provas. Acesso em: 21 jun. 2022.
29
WAMBIER, Luiz Rodrigues; TALAMINI, Eduardo. Curso avançado de processo civil, volume 2: cognição
jurisdicional (processo comum de conhecimento e tutela provisória). São Paulo: Thomson Reuters
Brasil, 2019. p. 386; DIDIER JR., Fredie; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Curso
de direito processual civil: teoria da prova, direito probatório, decisão, precedente, coisa julgada e
tutela provisória. 14 ed. Salvador: Juspodivm, 2019. v. 2, p. 164.
30
SÃO PAULO. Tribunal de Justiça (13ª Câmara de Direito Público). Apelação Cível 1003744-12.2017.8.26.0318.
Relatora: Des. Isabel Cogan, 23 jun. 2020.
628 Rogerio Bellentani Zavarize

com aquele procedimento especial31. Também há quem diga que qualquer


um dos procedimentos referidos pode ser empregado indistintamente32.
O revogado Código de Processo Civil de 1973 previa uma ação de exibi-
ção de documentos preparatória, com correlato procedimento especial,
e o atual não trata da mesma forma. É a razão da celeuma.
Pensamos que não deve ser adotado o rito da produção antecipada
de provas. Primeiro, porque se trata de exibir o documento (ou a coisa) e
não de o produzir (só se exibe algo já existente, vale dizer, já “produzido”,
e isso não é pura semântica). Segundo, porque se não ocorrer a exibição,
não será possível proferir uma sentença homologatória típica da produção
antecipada de prova (art. 382, §2º do Código), podendo haver necessi-
dade de valoração de recusa e de seus efeitos (art. 399 e art. 400, I e II)
e até de adotar medidas de apoio (art. 400, parágrafo único e art. 403,
parágrafo único).
A medida mais adequada e eficaz é a ação visando a exibição pelo
procedimento comum, ilustrado pelas regras especiais sobre a exibição
e seus efeitos33.

12. Quebra de sigilo bancário

A Lei Complementar Federal nº 105/01 garante a preservação do


sigilo das operações das instituições financeiras (art. 1º, caput) e define
que a respectiva quebra pode ser decretada caso necessária para apura-
ção de ocorrência de qualquer ilícito, em qualquer fase do inquérito ou
do processo judicial (§4º).
Trata-se de espécie probatória típica prevista em legislação especial
que pode ser antecipada para verificação da movimentação financeira de

31
GONÇALVES, Marcus Vinícius Rios. Processo de conhecimento e procedimentos especiais. In: GONÇALVES,
Marcus Vinícius Rios. Curso de direito processual civil. 16. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2020.
v. 2, p. 105; FAGUNDES, Cristiane Druve Tavares. Breves reflexões sobre a produção antecipada da
prova no NCPC. In: DIDIER JR., Fredie (coord.). Novo CPC: doutrina selecionada, v. 3: provas. Salvador:
Juspodivm, 2016. p. 635.
32
MIRANDA NETTO, Fernando Gama de. Produção antecipada da prova: natureza, cabimento e garantias
constitucionais do processo. In: CÂMARA, Alexandre Freitas; SILVA, Larissa Clare Pochmann da; ALMEIDA,
Marcelo Pereira de (org.). Temas contemporâneos de direito processual: reflexões sobre a vigência do
Código de Processo Civil de 2015. Londrina: Thoth, 2022. p. 317.
33
OLIVEIRA, Marco Aurélio Bellizze. Ação autônoma de exibição de documentos: comentários ao julga-
mento do Recurso Especial nº 1.803.251/SC. In: OLIVEIRA, Marco Aurélio Bellizze; RODRIGUES, Marco
Antonio; CABRAL, Thiago Dias Delfino. Processo civil empresarial. São Paulo: Juspodivm, 2022. p. 365.
Produção antecipada de prova na improbidade administrativa 629

investigados, para melhor definição sobre a ocorrência de atos ilícitos a


justificar ou não a propositura de ação por improbidade administrativa
(art. 381, III do Código de Processo Civil).
A jurisprudência paulista é repleta de casos de pedidos de quebra
de sigilo bancário antecedentes à ação por improbidade administrativa,
acolhidos ou não. Por exemplo, indeferiu-se tutela provisória de urgência
por entender não estar caracterizada a situação, sendo o caso de aguar-
dar citação e manifestação da outra parte34. Em outro caso, foi deferida
liminarmente, diante de sinais aparentes de riqueza incompatíveis com
os vencimentos do cargo ocupado pelo agente público, entendendo
que era imprescindível para a garantia da efetividade do processo e do
esclarecimento dos fatos35. Também houve quebra de sigilos bancário
e fiscal para identificar movimentações financeiras e aquisição de bens
incompatíveis com vencimentos36.
Equilíbrio e ponderação dos valores devem nortear o exame de
pedidos desta medida, para resguardar o direito ao sigilo, sem descuidar
do interesse público.

Considerações finais

O propósito do trabalho foi oferecer uma contribuição ao estudo


do tema, demonstrando situações e hipóteses de cabimento da produção
antecipada de prova em casos de improbidade administrativa, com algumas
perspectivas inovadoras.
Impossível negar a pertinência da adoção das ações probatórias
autônomas como medidas preparatórias para as ações por improbida-
de administrativa, em quaisquer das hipóteses delineadas no art. 381,
I a III do Código de Processo Civil. Seu adequado manejo vai ao encontro
da concreção da garantia fundamental à prova no processo civil brasileiro.

34
SÃO PAULO. Tribunal de Justiça (3ª Câmara de Direito Público). Agravo de Instrumento 2021197-11.2022.8.26.0000.
Relator: Des. Camargo Pereira, 6 set. 2022.
35
SÃO PAULO. Tribunal de Justiça (9ª Câmara de Direito Público). Agravo de Instrumento 2212131-91.2020.8.26.0000.
Relator: Des. Décio Notarangeli, 25 set. 2020.
36
SÃO PAULO. Tribunal de Justiça (6ª Câmara de Direito Público). Apelação Cível 1048677-26.2016.8.26.0053.
Relatora: Des. Maria Olívia Alves, 4 maio 2021.
630 Rogerio Bellentani Zavarize

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