Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
º 4013
Revista de Legislação
e de
Jurisprudência
Antigos Directores Redactores e Comproprietários
(Professores da Faculdade de Direito de Coimbra)
Manuel Chaves e Castro (Fundador)
Guilherme Moreira Francisco Manuel Pereira Coelho Anabela Maria Pinto de Miranda Rodrigues
José Alberto dos Reis António Castanheira Neves Jónatas Eduardo Mendes Machado
Fernando A. Pires de Lima Jorge de Figueiredo Dias Joaquim José Coelho de Sousa Ribeiro
J. J. Teixeira Ribeiro Mário Júlio de Almeida Costa Maria João da Silva Baila Madeira Antunes
João de Matos Antunes Varela José Joaquim Gomes Canotilho
Filipe Cassiano Nunes dos Santos
Manuel Henrique Mesquita Guilherme Freire Falcão de Oliveira
Manuel Henrique Mesquita João Carlos Simões Gonçalves Loureiro
Manuel Carlos Lopes Porto Pedro António Pimenta da Costa Gonçalves
Jorge Ferreira Sinde Monteiro Alexandre Miguel Cardoso de Soveral Martins
Director e Comproprietário António Joaquim de Matos Pinto Monteiro Manuel Couceiro Nogueira Serens
Manuel da Costa Andrade Paulo Cardoso Correia da Mota Pinto
António Joaquim de Matos Pinto Monteiro
Fernando Alves Correia Alexandre Libório Dias Pereira
Rui Manuel Gens de Moura Ramos Filipe Miguel Cruz de Albuquerque Matos
José Carlos Vieira de Andrade
Luís Miguel de Andrade Mesquita
Comissão de Redacção José Francisco de Faria Costa
Vital Martins Moreira Francisco Manuel de Brito Pereira Coelho
António Joaquim de Matos Pinto Monteiro José Casalta Nabais Carolina de Castro Nunes Vicente Cunha
José Carlos Vieira de Andrade João Carlos da Conceição Leal Amado Pedro Canastra Azevedo Maia
José Francisco de Faria Costa Fernando José Couto Pinto Bronze Maria José Oliveira Capelo Pinto de Resende
Secção de Legislação
Das incapacidades ao maior acompanhado — Breve apresentação da Lei n.º 49/2018
António Pinto Monteiro .................................................................................... 72
Secção de Doutrina
A respeito da invalidade do acto tributário
José Casalta Nabais ............................................................................................. 84
Secção de Jurisprudência
T.J. — Acórdão de 24/10/2018 (Pactos atributivos de jurisdição e direito da
concorrência)
Rui Manuel Moura Ramos ................................................................................ 108
72 Revista de Legislação e de Jurisprudência N.º 4013
Secção de Legislação
com o exercício da capacidade jurídica bém entre nós (1) —, várias propostas
em relação aos direitos, vontade e pre- de alteração do regime das incapacida-
ferências da pessoa estão isentas de des foram surgindo. Tenho presente a
conflitos de interesse e influências in- que foi elaborada no âmbito do Centro
devidas, são proporcionais e adaptadas do Direito da Família da Faculdade de
às circunstâncias da pessoa, aplicam- Direito de Coimbra, bem como, no âm-
-se no período de tempo mais curto bito parlamentar, os Projectos de Lei n.ºs
possível e estão sujeitas a um controlo 61/XIII, 755/XIII e 796/XIII (pelo PSD
periódico por uma autoridade ou órgão e pelo CDS-PP), e a Proposta de Lei n.º
judicial competente, independente e im- 110/XIII, apresentada pelo Governo, a
parcial. As garantias são proporcionais qual veio a culminar na Lei n.º 49/2018,
ao grau em que tais medidas afectam os de 14 de Agosto, que iremos analisar.
direitos e interesses da pessoa. Acrescente-se, a este respeito, que
5 — Sem prejuízo das disposições essa Proposta de Lei teve na sua raiz
do presente artigo, os Estados Partes um articulado de António Menezes
tomam todas as medidas apropriadas Cordeiro com a colaboração de mim
e efectivas para assegurar a igualdade próprio e de Miguel Teixeira de Sousa,
pedido pela Senhora Ministra da Jus-
de direitos das pessoas com deficiência
tiça, Dra. Francisca Van Dunem, no
em serem proprietárias e herdarem pa-
âmbito das Comemorações do Cinquen-
trimónio, a controlarem os seus pró-
tenário do Código Civil Português —
prios assuntos financeiros e a terem
articulado esse que o texto legal seguiu,
igual acesso a empréstimos bancários,
com algumas modificações —, e to-
hipotecas e outras formas de crédito
financeiro, e asseguram que as pessoas
com deficiência não são, arbitraria-
mente, privadas do seu património”. (1)
Cfr., por exemplo, $ඇඍඬඇංඈ 0ൾඇൾඓൾඌ
&ඈඋൽൾංඋඈTratado de Direito Civil, IV, Pessoas,
Este é o preceito que mais directa- 3.ª ed., Almedina, Coimbra, 2011, pp. 489, ss., e,
mente tinha que ver com as alterações para maiores desenvolvimentos, *ൾඋൺඅൽඈ5ඈർඁൺ
5ංൻൾංඋඈA protecção do incapaz adulto no direito
ao Código Civil, no respeitante aos ins-
português, Coimbra Editora, Coimbra, 2010,
titutos da interdição e da inabilitação. 3ൺඎඅൺ7ගඏඈඋൺ9ටඍඈඋA administração do patri-
É claro que se poderia ter alterado ape- mónio das pessoas com capacidade diminuída,
nas o regime instituído na lei, man- Coimbra Editora, Coimbra, 2008, e 5ඈඌൺ &ඝඇ-
tendo esses institutos; mas o legislador ൽංൽඈ0ൺඋඍංඇඌMenoridade, (in)capacidade e cui-
achou que seria melhor eliminar esses dado parental, Coimbra Editora, Coimbra, 2008;
em fase mais distante, já 5ൺඎඅ*ඎංർඁൺඋൽ$අඏൾඌ
institutos, substituindo-os pela figura Alguns aspectos do instituto da interdição, in “Di-
do “maior acompanhado”, tendo em reito e Justiça”, 9, tomo 2, 1995, pp. 131, ss., e
conta o estigma negativo dos institutos -ඈඋൾ 'ඎൺඋඍൾ 3ංඇඁൾංඋඈ As pessoas com defi-
da interdição e da inabilitação. ciência como sujeitos de direitos e deveres, in “O
Para dar cumprimento às obrigações Direito”, 142, 3, 2010, pp. 465, ss. Eu próprio me
pronunciei nesse sentido: $ඇඍඬඇංඈ 3ංඇඍඈ 0ඈඇ-
assumidas pelo Estado português, e em
ඍൾංඋඈ O Código Civil Português entre o elogio
conformidade com o movimento de al- do passado e um olhar sobre o futuro, LQ³5HYLVWD
terações legislativas entretanto desenvol- GH /HJLVODomR H GH -XULVSUXGrQFLD´ 5/- DQR
vido no direito comparado — e tam- 146.º, n.º 4002, 2017, pp. 148, ss.
N.º 4013 Revista de Legislação e de Jurisprudência 75
taque para a Convenção das Nações soa prevenir uma eventual necessidade
Unidas sobre os Direitos das Pessoas futura, indicando, desde logo, quem a
com Deficiência e para as alterações le- acompanhará ou a representará, caso isso
gislativas em vários sistemas jurídicos, venha a verificar-se, e que poderes lhe
como a Alemanha, França, Itália, Es- atribui. Evidentemente, este mandato
panha e Brasil, entre outros. terá de ser devidamente disciplinado.
Achei também de muito interesse a
5. A nossa posição consagração de uma medida semelhante
àquela que o Brasil adoptou, relativa à
I. Eu mesmo intervim nesse sentido, “tomada de decisão apoiada”, permi-
tendo apresentado publicamente a mi- tindo à pessoa com deficiência, física
nha posição em termos que vale a pena ou mental, escolher alguém que pudesse
hoje recordar (5), pois os princípios e apoiá-la nas decisões a tomar, forne-
ideias que então defendi vejo-os hoje cendo-lhe os elementos e informações
acolhidos na reforma operada pela Lei necessários para esse efeito. É claro
n.º 49/2018. Recordar o que então disse que também esta medida dependerá da
serve de apresentação das grandes li- aprovação do juiz competente.
nhas de orientação do regime jurídico
do maior acompanhado. II. Como se vê, todas estas medi-
Na verdade, transcrevendo expres- das que advoguei pressupõem a manu-
samente o que então defendi, disse ser tenção da capacidade de exercício de
favorável a um sistema de maior flexi- direitos por parte da pessoa que a elas
bilidade, que promovesse, na medida recorre. Trata-se de medidas de apoio
do possível, a vontade das pessoas com a pessoa com deficiência assentes na
deficiência e a sua autodeterminação, sua autodeterminação.
que respeitasse, sempre, a sua digni- “Proteger sem incapacitar” consti-
dade e facilitasse a revisão periódica tui, hoje, a palavra de ordem, de acordo
das medidas restritivas decretadas por com os princípios perfilhados pela re-
sentença judicial. ferida Convenção da ONU (6) e em con-
Concretizando, disse concordar, em formidade com a transição do modelo
primeiro lugar, que, sempre que possí- de substituição para o modelo de
vel, devesse ser tomada em conta a von- acompanhamento ou de apoio na to-
tade de quem vai ser sujeito a qualquer mada de decisão (7). Há, assim, escrevi-
medida restritiva ou de apoio. Por
maioria de razão, acrescentei concordar (6)
Antonio Legerén Molina, La tutela
com o mandato em previsão do acom-
y la curatela como mecanismos de protección
panhamento ou da incapacidade, isto de la discapacidad, in María E. Rovira
é, com a possibilidade de qualquer pes- Sueiro/Antonio Legerén Molina, “Instru-
mentos de protección de la discapacidad a la
luz de la Convencion de Naciones Unidas”, Uni-
(5)
Fi-lo no Congresso Comemorativo do Cin- versidade da Corunha, Aranzadi, 2016 (pp. 63,
quentenário do Código Civil, que decorreu no Au- ss.), p. 213.
ditório da Faculdade de Direito de Coimbra, em (7)
Cfr. Christian Baldus, in “Nomos
24 e 25 de Novembro de 2016. O texto foi pu- Kommentar BGB”, 3.ª ed., 2016, Geschäfts-
blicado na RLJ, ano 146.º, n.º 4002, citado su- fähigkeit und Betreuungsrecht, p. 11 da res-
pra, na nota 1 do presente trabalho. pectiva separata, e cfr. também Daniel de
78 Revista de Legislação e de Jurisprudência N.º 4013
-o há já dois anos, uma mudança de governar a sua pessoa e bens, sem que
paradigma, deixando a pessoa defi- esta situação haja sido prevenida em
ciente de ser vista como mero alvo de momento anterior (se isso tivesse sido
políticas assistencialistas e paternalistas, possível) através do mandato em previ-
para se reforçar a sua qualidade de su- são da incapacidade?
jeito de direitos. Em vez da pergunta: Em situações destas, ainda que a tí-
“aquela pessoa possui capacidade tulo excepcional, deve continuar a re-
mental para exercer a sua capacidade correr-se ao instituto da representação,
jurídica?”, deve perguntar-se: “quais substituindo-se o incapaz, no interesse
os tipos de apoio necessários àquela deste, pela actuação do tutor. Mas isso
pessoa para que exerça a sua capaci- implica abandonar o regime da inter-
dade jurídica?” (8). dição, medida radical e rígida, substi-
tuindo-o por um regime flexível, que
III. Em face do exposto, impunha- permita ao juiz, qual alfaiate, fazer um
-se uma reforma do Código Civil no “fato à medida” do necessitado, ade-
campo das incapacidades de exercício de quando as medidas à situação concreta
direitos, pois os institutos da interdição de cada pessoa… (9).
e da inabilitação não davam resposta sa- No quadro entretanto eliminado, o
tisfatória nem adequada a estas novas instituto mais indicado, à partida, para
exigências e a este novo paradigma. responder a situações de incapacidade
Havia que acolher aquelas novas fi- seria o da inabilitação, ainda que com
guras — continuo a seguir o meu texto modificações, pela flexibilidade que re-
de 2016 — que permitem apoiar pes- velava e por funcionar aqui o regime
soas com deficiência, mantendo elas a da assistência para os actos de dispo-
sua capacidade de exercício de direitos. sição de bens entre vivos, sendo certo
Quid iuris, todavia, naquelas situa- que o tribunal goza aqui de uma am-
ções em que falte, de todo, a vontade pla liberdade para especificar os actos
ou a capacidade para entender e que- que o inabilitado pode ou não praticar
rer, ou ela está profundamente afec- (arts. 153.º e 154.º).
tada, em termos tais que a deficiência
de que a pessoa sofre a impossibilita de IV. Dito isto, fica claro que não fu-
gimos das palavras nem nos refugiamos
numa atitude “politicamente correcta”,
Pádua Andrade, Capacidade, apoio e auto-
nomia da pessoa com deficiência, in “A Teo-
evitando utilizar o termo “incapacidade
ria das Incapacidades e o Estatuto da Pessoa de exercício” para as pessoas nestas si-
com Deficiência”, 2.ª ed., orgs. Fabio Quei-
roz Pereira, Luísa Cristina de Carvalho
Morais e Mariana Alves Lara, D’Plácido
Editora, Belo Horizonte, 2016 (pp. 135, ss.),
pp. 140, ss. (9)
Assim, também M aria E . Rovir a
(8)
Daniel de Pádua Andrade, cit., p. Sueiro, La Convención de las Naciones Uni-
140, ss., bem como Gustavo Pereira Leite das sobre los Derechos de las Personas com
Ribeiro, O Itinerário Legislativo do Estatuto Discapacidad: su impacto em el ordenamento
da Pessoa com Deficiência, na mesma obra, jurídico español, in M a r i a E . Rov ir a
pp. 59, ss., e Antonio Legerén Molina, op. Sueiro/Antonio Legerén Molina, op. cit.,
cit., pp. 64, ss. pp. 61-62.
N.º 4013 Revista de Legislação e de Jurisprudência 79
tuações (10). Dissemo-lo há já dois anos acordo com a velha máxima aristotélica,
e voltamos hoje a repeti-lo, em função recordemos, o igual deve ser tratado
do regime agora aprovado. igualmente e o desigual deve ser tratado
É claro que não ignoramos as desigualmente (14). É esse o sentido ma-
posições de quem rejeita a utilização terial do princípio da igualdade (15).
deste regime pelas conotações pejorati-
vas e pelo estigma que ele terá adqui- V. Em suma e para concluir este
rido. Pelo nosso lado, contudo, sempre ponto, de um modelo, do passado, rí-
aprendemos e sempre ensinámos que, gido e dualista, de tudo ou nada, em
de acordo com a lei, as incapacidades que prepondera a substituição, deve
visam proteger o interesse do incapaz. partir-se para um modelo flexível e hu-
Por isso mesmo não há “incapacidades manista, baseado em medidas adopta-
conjugais” (!), nem os poderes integra- das casuisticamente e periodicamente
dos no poder paternal ou na tutela são revistas, prioritariamente destinadas a
direitos subjectivos, antes poderes-deve- apoiar quem delas necessite, mas sem
res ou poderes funcionais, porque devem prejuízo de elas poderem vir a suprir a
ser exercidos no interesse do incapaz (11). incapacidade em situações excepcio-
E acreditamos que os tribunais só deter- nais, sempre com respeito pelos princí-
minarão a incapacidade de alguém pios da adequação, da proporcionali-
quando essa for a melhor solução para dade e da dignidade da pessoa humana.
proteger o interesse do incapaz. Foi com este espírito e exactamente
Tão prejudicial seria eliminar por nestes termos, que agora reproduzimos,
sistema a capacidade de tomar decisões que apontámos para a necessidade da
de uma pessoa com deficiência como reforma do regime das incapacidades.
atribuir plena capacidade de exercício E aqui manifestamos publicamente,
a quem de facto carece dela (12). Como hoje, o nosso júbilo pela orientação e
alguém disse, “deve-se respeitar a au- sobriedade da reforma operada pela Lei
tonomia da pessoa com deficiência no n.º 49/2018, pelo rigor técnico obser-
alcance de suas possibilidades, mas vado e pelo acolhimento destes princí-
também deve-se protegê-la na medida pios e valores, em prol das pessoas com
de suas vulnerabilidades” (13). De deficiência, em termos realistas, sensa-
tos e equilibrados.
(10)
Em Espanha chama-se-lhes, recorde-se,
“pessoa com capacidade judicialmente modifi-
cada” (!) — Maria E. Rovira, cit., p. 20.
(11) Por todos, cfr. Carlos Mota Pinto,
Teoria Geral do Direito Civil, 4.ª ed., por An- (14)
Assim também, por exemplo, Ma-
tónio Pinto Monteiro e Paulo Mota riana Alves Lara/Fabio Queiroz Pereira,
Pinto, Coimbra Editora, 2005, pp. 178-179 e Estatuto da Pessoa com Deficiência: Proteção
227-228. ou Desproteção?, in “A Teoria das Incapaci-
(12)
Assim, por exemplo, Maria E. Ro- dades”, cit., (pp. 95, ss.), p. 122.
vira, op. cit., p. 44, bem como Antonio Le- (15)
Por todos, A. Castanheira Neves, O
géren Molina, op. cit., p. 65. instituto dos assentos e a função jurídica dos
(13)
Gustavo Pereira Leite Ribeiro, O Supremos Tribunais, separata da “Revista de
itinerário legislativo do Estatuto da Pessoa Legislação e de Jurisprudência” (RLJ), Coim-
com Deficiência, cit., p. 83. bra Editora, 1983, pp. 118-144.
80 Revista de Legislação e de Jurisprudência N.º 4013
art. 145.º, norma que evidencia bem as os actos de disposição de bens imóveis
vantagens deste novo regime (18), em (n.º 3 do citado artigo 145.º).
confronto com o regime anterior: o re- Decorre, pois, do exposto, em confor-
gime do acompanhamento goza de midade com o art. 145.º, que o acompa-
maior flexibilidade — rejeita o tudo ou nhamento pode envolver uma represen-
nada da interdição —, respeita, sempre tação legal, como havíamos dito, assim
que possível, a vontade do beneficiário como pode implicar o recurso à assistên-
e a sua autodeterminação, limita-se ao cia, mediante a autorização do acompa-
necessário e permite ao tribunal esco- nhante para a prática de certos actos, ou
lher e adequar, em cada situação con- consistir num mero apoio deste à actua-
creta, as medidas que melhor possam ção do acompanhado, como sucede nas
contribuir para alcançar o seu objec- situações contempladas na alínea e) do
tivo, que é, repete-se, o de assegurar o n.º 2 deste art. 145.º.
bem-estar, a recuperação e o pleno
exercício da sua capacidade de agir. V. A respeito dos actos do maior
Mas tudo isto sem cair na posição acompanhado, vale a pena determo-nos
irrealista de ignorar os hard cases, ou aqui um pouco, pela relevância prática
seja, aquelas situações de absoluta in- do tema.
capacidade do necessitado, pelo que, Começamos pelos actos que o acom-
sem deixar o acompanhamento de ser panhado pode, em princípio, praticar
hoje um modelo de apoio e de assistên- livremente, que são os negócios da vida
cia, não pode deixar de transigir — em corrente e o exercício dos direitos pes-
casos-limite e excepcionalmente — com soais, designadamente os direitos de ca-
medidas de substituição: daí o recurso, sar, de procriar, de perfilhar, de adop-
entre as medidas que o tribunal pode tar, de cuidar e de educar os filhos, etc.
escolher para melhor talhar o “fato à (art. 147.º).
medida”, ao instituto da representação Quanto ao internamento do maior
legal (art. 145.º). acompanhado, prevê a lei que o mesmo
Sempre “em função de cada caso”, depende de “autorização expressa do tri-
pode o tribunal sujeitar o acompa- bunal”, podendo embora, em caso de ur-
nhante a algum ou alguns dos regimes gência, ser imediatamente solicitado pelo
seguintes: exercício das responsabilida- acompanhante, sujeitando-se, neste caso,
des parentais ou dos meios de as su- à ratificação do juiz (art. 148.º). Embora
prir; representação geral ou representa- a letra da lei não o diga, parece-nos que
ção especial; administração total ou deve entender-se que a norma abrange
parcial de bens; autorização prévia para tanto o internamento por razões de
a prática de determinados actos ou ca- saúde, num hospital ou clínica particu-
tegorias de actos; intervenções de outro lar, como o internamento num lar.
tipo, devidamente explicitadas. Re- E, pergunta-se, quanto aos demais
giste-se a imperatividade da disposição actos do maior acompanhado? Quid iu-
que determina a necessidade de autori- ris se ele celebrar um qualquer negócio
zação judicial prévia e específica para sem respeito pelas medidas de acom-
panhamento decretadas ou a decretar?
Tal como anteriormente, há aqui que
(18)
Cfr., supra, n.º 5 deste texto. distinguir três situações. Tais actos são
N.º 4013 Revista de Legislação e de Jurisprudência 83
anuláveis, sem mais, se forem pratica- noridade (art. 125.º). A lei manda aten-
dos após o registo do acompanhamento der ao prazo a partir do qual se deve
(art. 154.º, n.º 1, al. a)); são também intentar a acção de anulação, que só
anuláveis os que forem praticados de- começa a contar-se a partir do registo
pois de anunciado o início do processo, da sentença (n.º 2 do art. 154.º).
mas só se o acompanhamento vier a
ser instaurado e se tais actos forem pre- VI. Por último, prevê a lei que o
judiciais ao acompanhado — a este res- acompanhamento cesse ou se modifi-
peito, pelas mesmas razões que já an- que mediante decisão judicial que reco-
teriormente subscrevíamos, o requisito nheça a cessação ou a modificação das
do prejuízo deve reportar-se ao mo- causas que o justificaram (art. 149.º, n.º
mento da prática do acto e não ao mo- 1), sendo certo que, enquanto estiver
mento da decisão (19) (alínea b) do n.º 1 instaurado, o tribunal deve rever as me-
do mesmo artigo); finalmente, quanto didas decretadas,periodicamente, em
aos actos anteriores ao anúncio do início conformidade com o que constar da
do processo, aplica-se o regime da inca- sentença, mas, no mínimo, de cinco em
pacidade acidental (art. 154.º, n.º 3) . cinco anos (art. 155.º).
Importa ter em consideração, para
este efeito, que as decisões judiciais de 7. Conclusão
acompanhamento devem ser oficiosa-
mente comunicadas à repartição do re- Vou concluir. Sempre em termos
gisto civil competente a fim de serem breves, apresentei as razões por que era
registadas (art. 1920.º-B), não podendo necessário alterar o Código Civil no to-
tais decisões ser invocadas contra ter- cante aos institutos da interdição e da
ceiros de boa fé enquanto não estive- inabilitação e dei conta do movimento
rem registadas (art. 1920.º-C), por força internacional a tal respeito, com desta-
da remissão operada pelo art. 153.º, n.º que para a Convenção de Nova Iorque.
2, pese embora as cautelas com que o Percorri, de seguida, a Lei n.º 49/2018,
n.º 1 desta norma rodeia a publicidade que veio eliminar aqueles institutos e con-
a dar ao início, ao decurso e à decisão sagrar o regime jurídico do maior acom-
final do processo, limitando-as ao “es- panhado, analisando os principais aspec-
tritamente necessário para defender os tos deste novo regime.
interesse do beneficiário ou de terceiros”. Trata-se, evidentemente, de uma pri-
Finalmente, sendo aqueles actos meira leitura, que carece, ainda, de
anuláveis, nos termos referidos, põe-se aprofundamento e reflexão. Mas o ba-
o problema de saber se se aplica o re- lanço da Lei é francamente positivo.
gime geral (art. 287.º), ou, ao contrá- Claro que pode apontar-se-lhe alguma
rio, como sucedia com as interdições e indeterminação em vários aspectos e
as inabilitações, a que se aplicava, em até alguma insuficiência no tocante,
certos casos, o regime especial da me- por exemplo, ao regime da anulabili-
dade dos actos do acompanhado que
não observem as medidas de acompa-
(19)
Cfr. &ൺඋඅඈඌ 0ඈඍൺ 3ංඇඍඈ Teoria Geral nhamento decretadas ou a decretar,
do Direito Civil, 4.ª ed., por $ඇඍඬඇංඈ 3ංඇඍඈ “maxime” quanto à legitimidade para
0ඈඇඍൾංඋඈe 3ൺඎඅඈ0ඈඍൺ3ංඇඍඈcit., p. 238. pedir a anulação e quanto ao prazo
84 Revista de Legislação e de Jurisprudência N.º 4013
para esse efeito. A questão estava faci- modelo. Mas fê-lo com realismo, per-
litada, no regime anterior, pela remis- mitindo o recurso à representação le-
são operada para o art. 125.º, sobre os gal quando, excepcionalmente, não
actos do menor. Hoje, porém, no silên- houver alternativa credível, no interesse
cio da lei nova, pode suscitar-se a dú- do necessitado e por decisão judicial.
vida de saber se é de aplicar aos actos Temos hoje, pois, em vez do modelo
do acompanhado que sejam anuláveis o do passado, rígido e dualista, de tudo
regime geral do art. 287.º ou, por ana- ou nada, de substituição, temos hoje,
logia, ainda que com adaptações, o re- dizia, um regime que segue um modelo
gime especial do art. 125.º. É um bom flexível e monista, de acompanhamento
desafio para o intérprete e a ele voltare- ou apoio, casuístico e reversível, que
mos mais tarde, com maior vagar! respeita na medida do possível a von-
Seja como for, a Lei n.º 49/2018 tade das pessoas e o seu poder de au-
veio dar resposta positiva às preocupa- todeterminação.
ções que se faziam sentir no campo das É claro que o sucesso, na prática,
incapacidades das pessoas com deficiên- deste novo modelo vai depender, em
cia, com a consagração deste novo re- grande medida, dos tribunais, pela res-
gime jurídico do maior acompanhado. ponsabilidade acrescida que o novo re-
A Lei acolheu a mudança de paradigma gime lhes atribui, na definição — e re-
já há muito anunciada, afastando-se do visão — das medidas adequadas a
modelo de tomada de decisões por cada deficiente, a cada situação!
substituição e abraçando o modelo do É esta mais uma tarefa que a lei
acompanhamento, pela tomada de de- confia aos tribunais, no desempenho
cisões com recurso à assistência e da nobre missão de servir a vida!
apoio. “Proteger sem incapacitar”, re-
corde-se, é a palavra de ordem do novo António Pinto Monteiro
Secção de Doutrina