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ISSN 1807-3395

Revista Magister de
Direito Penal e Processual Penal
Ano XVII – Nº 97
Ago-Set 2020

Repositório Autorizado de Jurisprudência


Supremo Tribunal Federal – nº 38/2007
Superior Tribunal de Justiça – nº 58/2006

Classificação Qualis/Capes: B1

Editores
Fábio Paixão
Walter Diab

Coordenador
Aury Lopes Júnior

Conselho Científico
Fernando da Costa Tourinho Filho – Luiz Flávio Borges D’Urso
Elias Mattar Assad – Marco Antonio Marques da Silva

Conselho Editorial
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Carlos Ernani Constantino – Celso de Magalhães Pinto – César Barros Leal
Cezar Roberto Bitencourt – Élcio Pinheiro de Castro – Fernando Capez
Fernando de Almeida Pedroso – Haroldo Caetano da Silva
José Carlos Teixeira Giorgis – Marcelo Roberto Ribeiro
Maurício Kuehne – Renato Marcão – René Ariel Dotti – Roberto Victor Pereira Ribeiro
Rômulo de Andrade Moreira – Sergio Demoro Hamilton
Umberto Luiz Borges D’Urso

Colaboradores deste Volume


Bianca Santos Cavalli Almeida – Caroline Previato Souza
Cláudio Jannotti da Rocha – Flávio Augusto Maretti Sgrilli Siqueira
Getúlio Humberto Barbosa de Sá – Gustavo Noronha de Ávila – Haroldo Caetano
Mario Henrique Cardoso Caixeta – Matheus Barbosa Melo
Orlando Faccini Neto – Ricardo Libel Waldman – Tiago Caruso Torres
Victória de Oliveira Nunes
Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal
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Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal


v. 1 (ago./set. 2004)-.– Porto Alegre: LexMagister, 2004-
Bimestral. Coordenação: Aury Lopes Júnior.
v. 97 (ago./set. 2020)
ISSN 1807-3395

1. Direito Penal – Periódico. 2. Direito Processual Penal


– Periódico.

CDU 343(05)

Ficha catalográfica: Leandro Augusto dos S. Lima – CRB 10/1273


Capa: Apollo 13

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Sumário
Doutrina
1. Acordo de Não Persecução Penal do Artigo28-A do CPP: Breve
Introdução, Problemas Iniciais e os Limites da Exigibilidade da Reparação
do Dano ao Erário e ao Particular
Flávio Augusto Maretti Sgrilli Siqueira....................................................................... 5
2. Internação Forçada do Usuário ou Dependente de Drogas: Fundamentos
Jurídicos e Limites à Atuação Jurisdicional
Haroldo Caetano e Mario Henrique Cardoso Caixeta................................................ 25
3. A Presunção de Inocência no Brasil: uma Análise a Partir da Impetração
do Habeas Corpus 84.078 até a PEC nº 199/2019
Caroline Previato Souza e Gustavo Noronha de Ávila............................................... 40
4. O Dilema da Triagem Médica nos Casos de Pacientes Diagnosticados
com Covid-19: Reflexos Penais de uma Escolha de Sofia
Matheus Barbosa Melo e Tiago Caruso Torres........................................................... 57
5. A Pandemia da Covid-19 e o Estado de Coisas Inconstitucional do
Sistema Penitenciário Brasileiro: a Necessidade da Remição Ficta da
Pena como Instrumento de Fraternidade
Victória de Oliveira Nunes e Cláudio Jannotti da Rocha............................................ 80
6. Job Description e Compliance no Direito Penal Empresarial
Orlando Faccini Neto e Getúlio Humberto Barbosa de Sá........................................ 105
7. A Internacionalização do Crime na Sociedade da Informação
Bianca Santos Cavalli Almeida e Ricardo Libel Waldman....................................... 121

Jurisprudência
1. Supremo Tribunal Federal – Tóxicos. Tráfico. Dosimetria da Pena.
Regime Inicial de Cumprimento. A Quantidade Apreendida Justifica a
Fixação da Pena-Base em Patamar Acima do Mínimo Legal
Rel. Min. Roberto Barroso...................................................................................... 147
2. Superior Tribunal de Justiça – Roubo. Emprego de Arma Branca.
Elevação da Pena-Base. Possibilidade. Vítima Grávida. Incidência
da Agravante. Inexistência de Atenuante a Ser Compensada com a
Agravante. Regime Prisional Fechado Mantido
Rel. Min. Ribeiro Dantas....................................................................................... 154
3. Superior Tribunal de Justiça – Liberdade Provisória. Tóxicos. Tráfico.
Prisão em Flagrante Convertida em Prisão Preventiva. Quantidade
de Drogas Não Exacerbada. Periculum Libertatis Não Demonstrado.
Fundamentação Inidônea. Habeas Corpus Concedido
Relª Minª Laurita Vaz........................................................................................... 160
4. Superior Tribunal de Justiça – Detração. Prestação Pecuniária. Esta Corte
Não Admite a Aplicação do Instituto à Pena de Prestação Pecuniária, por
Ausência de Previsão Legal
Rel. Min. Nefi Cordeiro......................................................................................... 166
5. Tribunal de Justiça de São Paulo – Injúria Racial e Desacato. Ofensa à
Dignidade ou Decoro por Meio da Utilização de Elementos Referentes à
Cor de sua Pele. Denúncia Recebida
Rel. Des. Sérgio Ribas............................................................................................ 174
6. Divergência Jurisprudencial............................................................................... 179
7. Ementário............................................................................................................ 180
Sinopse Legislativa. .............................................................................................. 194
Destaques dos Volumes Anteriores.................................................................... 195
Índice Alfabético-Remissivo................................................................................ 196
Doutrina

Acordo de Não Persecução Penal do


Artigo 28-A do CPP: Breve Introdução,
Problemas Iniciais e os Limites da
Exigibilidade da Reparação do Dano ao
Erário e ao Particular

Flávio Augusto Maretti Sgrilli Siqueira


Pós-Doutorado em Democracia e Direitos Humanos –
Universidade de Coimbra; Doutor em Direito Penal e Política
Criminal – Universidade de Granada; Mestre em Direito
Penal e Tutela dos Interesses Supraindividuais – Universidade
Estadual de Maringá; Especialista em Direito e Processo Penal
– Universidade Estadual de Londrina; Professor-Visitante na
Especialização em Direito Penal e Processo Penal da Pontifícia
Universidade Católica de Minas Gerais – Poços de Caldas;
Professor Adjunto de Direito Penal, Processo Penal e Direito
Administrativo – Libertas Faculdades Integradas; Defensor
Público/MG.

RESUMO: O acordo de não persecução penal desvela novo instrumento de


introjeção no sistema de justiça penal de elementos de consensualidade já
seguindo tendências de outras experiências existentes em nosso ordenamento
jurídico. O artigo tenciona trazer seus lineamentos gerais, seus problemas de
(in)compatibilidade com a principiologia processual penal e como ajustar esse
cenário típico do direito privado no sistema penal, reduzindo os pontos de
tensão em virtude dos interesses em tela, com uma ligeira ênfase na questão da
reparação dos danos à vítima.

PALAVRAS-CHAVE: Acordo de Não Persecução. Consensualidade. Reparação


dos Danos.

SUMÁRIO: 1 Noções Introdutórias. 2 Legitimados, Elementos Essenciais,


Requisitos e Ajustamento das Obrigações; 2.1 Requisitos do Acordo; 2.1.1 Re-
paração dos Danos; 2.1.2 Renúncia Voluntária de Bens e Direitos Advindos da
Infração Penal; 2.1.3 Prestação de Serviços à Comunidade ou Entidades Públicas;
2.1.4 Condição Inominada. 3 Impossibilidade de Firmamento do Acordo. 4
Materialização Procedimental e Controle Jurisdicional de Cláusulas do Acordo
de Não Persecução. 5 Repactuação e Consequências do Descumprimento do
Acordo de Não Persecução. 6 Conclusões. 7 Referências.
Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal Nº 97 – Ago-Set/2020 – Doutrina
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1 Noções Introdutórias
O acordo de não persecução penal (ANPP), que consiste “na aceitação
e no cumprimento de medidas por parte do investigado e, ao final, haverá
extinção da punibilidade caso não tenha sido rescindido” (DEZEM; SOU-
ZA, 2020), foi criado no direito brasileiro por força dos arts. 18 e seguintes
da Resolução nº 181/2017, do Conselho Nacional do Ministério Público.
O ato infralegal foi elaborado com violação ao art. 22, I, da CF, posto
que a matéria trata da mitigação do princípio da indisponibilidade da ação
penal e, logo, refere-se ao processo penal, nunca podendo, com vênia, ser
entendida como mera otimização da atuação interna do Ministério Público.
Recorda-se que as hipóteses de discricionariedade regrada estão previstas
em lei, em que recordamos, por exemplo, a Lei nº 9.099/95, os acordos de
colaboração premiada das mais variadas leis (Leis ns. 12.850/2013, 9.613/98,
8.137/90 e 7.492/86, etc.).
Com a finalidade de superar esse estado de inconstitucionalidade, a Lei
nº 13.964/2019, cunhada de pacote “anticrime”1, incorporou a estrutura desse
acordo no Código de Processo Penal2, o qual por inserir nova causa extintiva
de punibilidade é considerada norma híbrida e pode ser aplicada aos processos
em curso (JOSITA; LOPES, 2020, p. 1; MAZLOUM; MAZLOUM, 2020,
p. 1; CABRAL, 2020, p. 213)3, inclusive naqueles em que houve sentença

1 Marcelo Ribeiro de Oliveira pontua que: “(...) a própria locução ‘legislação anticrime’ não parece das mais felizes.
Não se concebe a existência de uma legislação ‘pró-crime’ ou ainda o advento de uma lei para reparar uma lei ‘pró-
crime’ antes existente. Tal menção ganha contornos mais próximos de propaganda para a população em geral do
que, propriamente, uma mudança científica e pensada” (OLIVEIRA, 2020, p. 237-238).
2 Rodrigo da Silva Brandalise (2016, p. 41 e segs.) assinala que a adoção da justiça penal negociada apresenta a redução
do espaço de tempo entre o cometimento da infração penal e o pronunciamento formal do Estado acerca disso, a qual
afeta o objetivo da prevenção dos delitos e, inclusive, cria o estigma de condenado quando não houve julgamento
da questão. Aliado a isso vem a questão da autonomia da vontade do arguido e também da ideia de preservação da
liberdade.
3 Há de se observar que o TRF da 4ª Região recentemente entendeu dessa forma, em que o Tribunal converteu o
julgamento em diligência para que na primeira instância se analise a viabilidade do benefício, sob pena de supressão
de instância e violação ao promotor/juiz natural: “QUESTÃO DE ORDEM. ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO
PENAL. ART. 28-A DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL. PACOTE ANTICRIME. NORMA DE ÍNDOLE
MATERIAL. NOVATIO LEGIS IN MELLIUS. ATENUAÇÃO DAS CONSEQUÊNCIAS DA CONDUTA
DELITIVA. APLICABILIDADE AOS EM PROCESSOS EM ANDAMENTO COM DENÚNCIA RECEBIDA
ANTES DA VIGÊNCIA DA LEI Nº 13.964/2019. QUESTÃO DE ORDEM SOLVIDA. 1. Por não se tratar de
norma penal em sentido estrito, a Resolução nº 181/2017 do Conselho Nacional do Ministério Público não fixa
normas penais, mas, apenas, procedimentos internos, pelo que não se há de falar em nulidade da ação penal em face
da sua não observância previamente à propositura da ação penal. 2. O acordo de não persecução penal consiste em
novatio legis in mellius, vez que a norma penal tem também natureza material ou híbrida mais benéfica, na medida
que ameniza as consequências do delito, sendo aplicável às ações penais em andamento. 3. É possível a retroação
da lei mais benigna, ainda que o processo se encontre em fase recursal (REsp 2004.00.34885-7, Min. Félix Fischer,
STJ, 5ª Turma). 4. Cabe aferir a possibilidade de acordo de não persecução penal aos processos em andamento (em
primeiro ou segundo graus), quando a denúncia tiver sido ofertada antes da vigência do novo art. 28-A do CPP. 5.
Descabe ao Tribunal examinar e homologar diretamente em grau recursal eventual acordo de não persecução penal,
só se admitindo tal hipótese nos inquéritos e ações penais originárias. 6. É permitido ao Tribunal examinar, desde
logo, a existência dos requisitos objetivos para eventual permissivo à formalização de acordo de não persecução
Doutrina – Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal Nº 97 – Ago-Set/2020 7

condenatória passada em julgado por ser uma “norma processual material


benéfica” (DE BEM; MARTINELLI, 2020, p. 1.253)4.
O aspecto que merece destaque inicial é que o legislador processual
penal tratou de prever uma solução na lei geral, portanto, aplicável a todos os
casos indistintamente em vez de apresentar soluções fragmentadas e voltadas
exclusivamente a tratar de certos tipos de crimes, como ocorre atualmente
com a colaboração premiada5 que é tratada em algumas leis penais esparsas.
A alteração fixa, conforme Rogério Sanches Cunha, “(...) um ambiente de
coparticipação racional, mediante vantagens recíprocas que concorrem para uma
aceitabilidade no cumprimento da medida mais efetiva, sentimento que eleva
o senso de autorresponsabilidade e comprometimento com o acordo, atributos
que reforçam a confiança no cumprimento integral” (CUNHA, 2020, p. 128).
O ANPP é entendido por alguns como um negócio jurídico extrajudi-
cial, com natureza negocial pré-processual6 ou pós-processual7, que tem por

penal, determinando, se for o caso, a suspensão da ação penal e da prescrição e a baixa em diligência ao primeiro
grau para verificação da possibilidade do benefício legal. 7. Hipótese em que se afasta eventual invalidade da sentença
pela lei posterior à sua prolação, mas cria-se instrumento pela via hermenêutica de efetividade da lei mais benéfica.
8. Constatada pela Corte Recursal a ausência dos requisitos objetivos para oferecimento da proposta de acordo de
não persecução penal, admite-se o prosseguimento, desde logo, do processo no estado em que se encontrar. 9. For-
malizado o acordo de não persecução penal em primeiro grau, a ação penal permanecerá suspensa, sem fluência da
prescrição, até o encerramento do prazo convencionado, ou rescisão do acordo. 10. Não oferecido ou descumprido
e rescindido o acordo, a ação penal retomará seu curso natural com nova remessa ao Tribunal para julgamento dos
recursos voluntários. 11. Não sendo oferecido o acordo de não persecução penal, cabível recurso do réu ao órgão
superior do Ministério Público, na forma do art. 28-A, § 14, do CPP. 12. O art. 28-A do CPP silencia quanto a eventual
restrição de aplicabilidade do acordo de não persecução penal aos crimes praticados em concurso (seja material ou
formal) e o concurso de crimes apenas se mostra relevante e intransponível para o oferecimento do acordo de não
persecução penal quando o somatório das penas mínimas ou a pena concreta – no caso de sentença condenatória já
proferida – for igual ou superior a quatro anos. 13. Questão de ordem solvida para determinar a suspensão do feito
e da prescrição, para que seja remetido ao juízo de origem para verificação de eventual possibilidade de oferecimento
do acordo de não persecução penal previsto no art. 28-A do CP, introduzido pela Lei nº 13.964/2019” (TRF da 4ª
Região, Apelação Criminal 5005673-56.2018.4.04.7000/PR, Rel. Des. Fed. João Pedro Gebran Neto, DJ 13.05.2020).
4 Caso ele seja aplicado na fase de execução de pena, o juiz da VEP deverá homologá-lo, determinar a suspensão do
curso da execução de pena pelo acordo ser uma questão prejudicial ao cumprimento da pena, em que ele poderá
invocar por analogia o art. 156 da Lei nº 7.210/84. Cumprido o acordo extingue-se a punibilidade, inclusive com
a supressão do registro da condenação da folha de antecedentes, sendo que o sentenciado, inclusive, deixará de ser
reincidente. Todavia, há de se registrar que a jurisprudência do STJ diz que a decisão absolutória ou extintiva da
punibilidade não constará da folha de antecedentes, porém, ficará registrada no banco de dados do instituto de iden-
tificação, vez que: “não podem ser excluídas do banco de dados do Instituto de Identificação, porque tais registros
comprovam fatos e situações jurídicas e, por essa razão, não devem ser apagados ou excluídos, observando-se que
essas informações estão protegidas pelo sigilo” (STJ, AgRg no REsp 1.751.708/SP, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior,
Sexta Turma, j. 05.02.2019, DJe 22.02.2019). Contrariamente: CABRAL, 2020, p. 213.
5 Renee do Ó Souza (2020, p. 123) esclarece que não há confusão entre o ANPP e a colaboração premiada, ao dizer
que “(...) o acordo de colaboração é caracterizado essencialmente pela natureza instrumental probatória de modo
a permitir a ampliação da atuação persecutória, notadamente em casos de criminalidade organizada. Já o acordo
de não persecução é marcado pela celebração de um negócio jurídico extrajudicial cabível em situações de média
gravidade, somente em casos de crimes cometidos sem violência ou grave ameaça e que enseja o encerramento do
caso. O primeiro é um ponto de partida da persecução; o segundo, um ponto de chegada”.
6 SOUZA, 2020, p. 122.
7 O antedito acórdão do TRF da 4ª Região pontua que ele é: “É certo que o ANPP não tem natureza despenalizante,
mas, num neologismo, meramente ‘desprocessualizante’. Trata-se de instrumento de política criminal e carcerária,
com objetivo claro de criar meios de solução de conflitos de forma célere, efetiva e sem sobrecarregar as partes e
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finalidade diminuir o impacto do colapsado sistema de justiça penal brasileiro


nos delitos de média gravidade e, noutro lado, é visto como uma obrigação
assumida como equivalente funcional da pena8.

2 Legitimados, Elementos Essenciais, Requisitos e Ajustamento das


Obrigações
A legitimidade para elaboração do acordo de não persecução pertence,
exclusivamente, ao Ministério Público. A disposição da ação penal somente
pode ser feita por seu titular, não podendo ser objeto de realização pelo De-
legado de Polícia, como já indicamos anteriormente (SIQUEIRA, 2017, p.
468), em relação à colaboração premiada, malgrado o STF tenha entendimento
distinto (STF, ADI 5.508, Rel. Min. Marco Aurélio). Todavia, existem vozes
contrárias que defendem a necessidade e a possibilidade de realização desse
acordo pelo Delegado de Polícia (COSTA; HOFFMANN; HABIB, 2019, p.
1), por uma razão de racionalização do sistema processual penal que já conta
com parcos recursos9.
Posto isso, a nosso sentir, a legitimidade sempre pertencerá ao Minis-
tério Público, que ofertará a proposta de ANPP antes de oferecer a denúncia
quanto à ação penal pública e no que trata da ação penal privada subsidiária
da pública temos que ela não será viável10. Não vislumbramos sua possibili-
dade na ação penal privada pela falta de lei e porque ela resvala em aspectos
da execução de penal cuja titularidade pertence, exclusivamente, ao próprio
MP, independentemente das condições serem oferecidas por este11.
O art. 28-A do CPP veio com a finalidade de encampar o referido acordo
de não persecução e, nele, o legislador indica claramente que é necessária a
presença de um procedimento investigatório formalizado por parte do Estado
(CUNHA, 2020, p. 128) e inferir em seu bojo a presença de justa causa para

o Judiciário com processos penais de potencial lesivo menos grave, cujas sanções, acabarão, quando muito, fixadas
em regime aberto, se não substituídas por restritivas de direito” (TRF da 4ª Região, Apelação Criminal 5005673-
56.2018.4.04.7000/PR, Rel. Des. Fed. João Pedro Gebran Neto, DJ 13.05.2020).
8 Rodrigo Leite Ferreira Cabral (2020, p. 86 e segs.) sustenta que: “(i) com efeito, não há imperatividade nas condi-
ções, de modo que não podem elas ser consideradas como penas ou ‘quase penas’; (ii) as condições têm natureza
negocial e somente podem ser avençadas pelo Ministério Público quando efetivamente se cumprirem as finalidades
preventivas da pena, caso contrário, não poderá ser firmado o acordo”.
9 Temos que isso tem a ver com a exclusão da carreira da polícia judiciária como atividade jurídica, uma vez que não
lhe cabe interpretar o direito, em especial, por não lhe pertencer a ação penal, sendo, pois, regido pelo princípio da
legalidade estrita, e ao titular a análise e a própria disponibilidade nas hipóteses legalmente previstas.
10 Em sentido oposto: ARAS, 2020, p. 232. Apontando que o entabulamento de ANPP com o MP obstaculiza seu
oferecimento temos: CABRAL, 2020, p. 189.
11 Encampando essa possibilidade: DEZEM; SOUZA, 2020, p. 1. Contrariamente para admiti-la, com arrimo nos
princípios da disponibilidade da oportunidade que orientam a ação penal privada e valendo-se de analogia com a
transação penal assentada no STJ (ARAS, 2020, p. 233; LOPES; JOSITA, 2020, p. 1; CABRAL, 2020, p. 186).
Doutrina – Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal Nº 97 – Ago-Set/2020 9

a ação penal12, em que se exige que o investigado formalize uma confissão


detalhada de infração penal13; que não pode ser daquelas com grave ameaça
ou violência14 e que tenha pena mínima inferior a quatro anos15, levando em
consideração causas de aumento e diminuição de pena incidentes16, como o
art. 28-A, § 1º, do CPP assinala17.
Levantará a discussão acerca do cabimento do benefício em se tratan-
do de delitos hediondos, sendo que certamente haverá quem sustente sua
impossibilidade diante da parte final do art. 28-A, caput, do CPP, que aponta
ser o instituto necessário e suficiente para reprovação e prevenção do delito18
(CNPG, 2020, Enunciado nº 22).
Basta verificar que a Lei nº 8.072/90 estabelece diversas restrições para
quem comete delito dessa natureza, o qual, inclusive, recebe tratamento
jurídico-penal distinto por força constitucional. Em sentido oposto, caberá
questionamento que não há restrição expressa para não se aplicar o instituto
(DE BEM; MARTINELLI, 2020, p. 1.254) e que admitir a restrição seria
analogia in malam partem. A rejeição a proposta não pode simplesmente ser

12 Em sendo caso de arquivamento, não será cabível o oferecimento de proposta de acordo de não persecução (CUNHA,
2020, p. 128); portanto, haverá uma modificação na avaliação da dúvida nesse momento. Posto que, caso se depare
com dúvida, não sanável com novas diligências entendemos que será caso de arquivamento não se aplicando o
sofisma in dubio pro societatis.
13 A confissão deve ser materializada por algum mecanismo, sendo que a redação legal não repetiu a Resolução do
CNMP, a qual deve ser adotada (CUNHA, 2020, p. 129). Renee do Ó Souza (2020, p. 129) diz que: “Trata-se, em
verdade, de providência de feição preventiva, que busca assegurar que o acordo é celebrado com a pessoa cujas provas
colhidas na fase pré-processual indicam ter sido a autora da infração penal. Observa-se, contudo, que a exigência
da confissão não serve para a formação da opinio delict, pressuposto anterior à etapa de propositura do acordo de não
persecução”. A confissão aqui não servirá de prova para a condenação e temos quem repele a possibilidade de seu
oferecimento por carecer de justa causa na hipótese de confissão qualificada em que simultaneamente ao relato do
delito praticado é apresentada uma causa de justificação (DE BEM; MARTINELLI, 2020, p. 1.261).
14 Guilherme Madeira Dezem vislumbra que: “No entanto, há especial cautela a ser observada: é possível a proposta
de acordo de não persecução penal em uma hipótese. Trata-se da hipótese de infração de menor potencial ofensivo.
Não haveria lógica no sistema em permitir que haja todos os benefícios da Lei nº 9.099/95 e não permitir o acordo de
não persecução penal. O direito deve ser tratado como um todo lógico e sistêmico. Daí por que há essa necessidade
de harmonização e, por consequência, teremos a possibilidade de acordo de não persecução penal para crimes como
ameaça e lesão corporal leve. Evidentemente, o raciocínio anterior não se aplica às hipóteses envolvendo Lei Maria da
Penha por expressa disposição prevista no art. 28-A, § 2º, IV, e também nos casos em que haja discriminação contra
mulher” (DEZEM; SOUZA, 2020, p. 1). A infração penal deve ser dolosa, em que se afasta o instituto “das infrações
executadas com emprego de violência ou grave ameaça (ainda que não sejam elementares explícitas contra a pessoa)” (DE
BEM; MARTINELLI, 2020, p. 1.254).
15 Crítico quanto à conveniência do instituto, já que compreende a maioria esmagadora dos delitos de colarinho branco
(NUCCI, 2020, p. 60).
16 Toma-se como referência a menor fração para aumento e a maior para diminuição da pena (CUNHA, 2020, p. 129;
LOPES; JOSITA, 2020, p. 1). Aury Lopes Jr. e Higyna Josita sugerem a adoção da Súmula nº 723 do STF.
17 Guilherme Madeira Dezem explica que: “Quanto à pena, é de se observar que a lei fala em pena mínima menor
do que quatro anos. No cálculo dessa pena levam-se em conta causas de diminuição e de aumento de pena. Aqui,
certamente surgirá a mesma discussão que havia em relação à suspensão condicional do processo nos casos envol-
vendo procedência parcial do pedido (art. 383, § 1º, do CPP e Súmula nº 337 do STJ). Entendemos aqui que, da
mesma forma que na suspensão condicional do processo, se na hipótese de desclassificação ou procedência parcial
do pedido houver a possibilidade de aplicação de proposta de acordo de não persecução penal, deverá o juiz abrir
vista para o Ministério Público fazer a proposta do acordo de não persecução penal” (DEZEM; SOUZA, 2020, p. 1).
18 Críticos em relação ao dispositivo: DE BEM; MARTINELLI, 2020, p. 1.256.
Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal Nº 97 – Ago-Set/2020 – Doutrina
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lastreada na natureza do delito (Súmula nº 719 do STF) e exige fundamentação


amparada nas circunstâncias objetivas e pessoais do investigado.
A lei processual penal agiu diferentemente das demais hipóteses de jus-
tiça penal negociada, em que nos benefícios da transação penal exige-se pena
máxima de até dois anos e nos acordos de colaboração premiada é irrelevante
o tempo de lei, bastando que seja um delito no qual a legislação contemple
sua possibilidade ou haja conexão com o delito de organização criminosa.
Assim sendo, é perfeitamente possível ofertar suspensão condicional
do processo no caso de insucesso na elaboração, rejeição (DEZEM; SOUZA,
2020, p. 1), ou descumprimento do acordo de não persecução, muito embora
haja no art. 28-A, § 11º, do CPP a possibilidade de adotar seu não cumprimen-
to como fundamento para deixar de oferecer a proposta de sursis processual.
O MP é o único legitimado para oferecer o acordo, sendo que ele, a
nosso sentir, deverá propô-lo, em que renovará a discussão quanto à presen-
ça dos requisitos gerar ou não direito público subjetivo do acusado para o
oferecimento do ANPP. O CPP exige a submissão do investigado a alguns
requisitos assentados em lei, os quais possuem alguma similitude com os
institutos despenalizantes da Lei nº 9.099/9519.
Temos que o não oferecimento imotivado de proposta de ANPP au-
torizará o reexame da questão perante o órgão revisor de segunda instância
internamente no âmbito do Ministério Público; porém, surgirão vozes que
defenderão o manejo de habeas corpus pelo risco do constrangimento ilegal
em ser processado quando a lei processual penal lhe faculta não correr esse
perigo e até mesmo que o juiz poderá concedê-lo por ser um direito público
subjetivo do autor da infração penal20.

19 O ANPP pode ser aplicado, inclusive, em infrações penais de menor potencial ofensivo em caráter subsidiário
quando não for possível a transação penal (DE BEM; MARTINELLI, 2020, p. 1.256).
20 Aury Lopes Jr. (2020, p. 1) pontua que: “preenchidos os requisitos legais – se trata de direito público subjetivo do
imputado, um direito processual que não lhe pode ser negado. Determina o § 14 que se deve aplicar por analogia
o art. 28 do CPP, com o imputado fazendo um pedido de revisão (prazo de 30 dias) para a instância competente
do próprio MP, que poderá manter ou designar outro membro do MP para oferecer o acordo. Essa é uma leitura
possível do novo art. 28 e sua incidência em caso de inércia do MP. Contudo, é possível cogitar de outra alternativa.
Acolhendo a tese de que se trata de direito público subjetivo do imputado, presentes os requisitos legais, ele tem
direito aos benefícios do acordo. Não se trata, sublinhe-se, de atribuir ao juiz um papel de autor, ou mesmo de juiz-
ator, característica do sistema inquisitório e incompatível com o modelo constitucional-acusatório por nós defendido.
Nada disso. A sistemática é outra. O imputado postula o reconhecimento de um direito (o direito ao acordo de
não persecução penal) que lhe está sendo negado pelo Ministério Público, e o juiz decide, mediante invocação. O
papel do juiz aqui é o de garantidor da máxima eficácia do sistema de direitos do réu, ou seja, sua verdadeira missão
constitucional. Mas já imaginamos que essa posição encontrará resistência e que a tendência poderá ser pela aplicação
do art. 28 do CPP (seja o art. 28 antigo ou pelo novo dispositivo – cuja liminar suspendeu a eficácia – quando entrar
em vigor)”.
Doutrina – Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal Nº 97 – Ago-Set/2020 11

De início, a lei processual penal exige que o investigado21 confesse


detalhadamente o fato delitivo22, o que é objeto de críticas pela violação ao
princípio da presunção de inocência (STF, ADI 6.304/DF, Rel. Min Celso
de Mello) e, para nós, não poderá ser, posteriormente, utilizado como prova
contra o acusado na hipótese de descumprimento da avença penal com amparo
no art. 197 do CPP23.
A alteração do entendimento do princípio da presunção de inocência é
algo que precisa ser objeto de exata compreensão no processo penal, uma vez
que se importam estruturas do direito privado sem preocupação com a devida
acomodação com a principiologia típica do processo penal, em especial, com
o reforço a esse princípio conferido por força da decisão recente do STF, que
restabeleceu seu sentido literal do texto constitucional sem mitigá-la.

2.1 Requisitos do Acordo


O art. 28-A, § 1º, I a IV, do CPP contempla as condições legais e no
inciso V do mesmo dispositivo assinala a chamada condição inominada.

2.1.1 Reparação dos Danos


No que cumpre dos requisitos, temos que a lei processual penal diz que
é dispensável a reparação do dano ou a restituição da coisa à vítima quando
o agente não tiver possibilidade de realizá-lo, sendo que a lei nada diz acerca
do parcelamento de eventual dano causado.
O Ministério Público terá ponderação para avaliar, em conjunto com
o arcabouço probatório que “deverá indicar o valor do prejuízo causado ou

21 Na hipótese de concurso de agentes, assinala Vladimir Aras (2020, p. 233) que: “Se houver mais de um investigado,
o MP e a defesa podem ajustar acordo de não persecução penal para um ou para todos os suspeitos. Os requisitos
subjetivos podem afastar a possibilidade do ANPP para este ou para aquele investigado. No entanto, essas circunstân-
cias pessoais são incomunicáveis, e o MP não estará proibido de formalizar compromisso com aquele que cumpra os
requisitos legais”. Em relação às pessoas jurídicas, a despeito de pessoalmente não concordarmos com ela, temos que
ela é uma realidade na jurisprudência do STF/STJ; logo, nada impede sua aplicação com a adequação dos requisitos
legais à natureza da pessoa jurídica. Na doutrina permitindo-a, com ajustes: ARAS, 2020, p. 232.
22 Guilherme de Madeira Dezem (2020, p. 1) assinala: “Caso ao final do inquérito policial o promotor verifique que
não tenha havido confissão por parte do investigado e também perceba que haja elementos para o oferecimento da
denúncia, nada obsta que o promotor devolva os autos à delegacia para que apresente a possibilidade de confissão
ao investigado e formulação dessa proposta. Merece especial atenção o investigado que não possua defesa técnica
no inquérito. Esse investigado hipossuficiente deve ter especial atenção por parte dos órgãos de Estado”. Caberá
ao Delegado de Polícia, ao verificar a sinalização positiva do MP, quanto ao acordo de não persecução e este último
procederá a intimação do investigado quanto a essa possibilidade e a necessidade de defesa técnica. No caso de falta
de defesa ou acusado hipossuficiente, deverá, ato contínuo, comunicar o fato à Defensoria Pública para que essa
preste orientação ao mesmo e o assista durante o entabulamento do acordo.
23 Anota-se que a confissão, na hipótese de não firmamento ou rescisão, não serve como prova com arrimo no art. 155
do CPP como ponderam Ali e Amin Mazloum (2020, p. 1): “o descumprimento do acordo não valida a confissão
como prova porque não há processo ainda, aplicável à regra do art. 155 do CPP. Ademais, a situação assemelha-se à
delação premiada desfeita, em que as provas autoincriminatórias não podem ser utilizadas em desfavor do colabo-
rador”. Nesse sentido: CUNHA, 2020, p. 129.
Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal Nº 97 – Ago-Set/2020 – Doutrina
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da coisa retirada da esfera de disponibilidade da vítima” (DE BEM; MAR-


TINELLI, 2020, p. 1.258), as condições financeiras para reparar e aceitar as
propostas de parcelamento, sendo deveras salutar conclamar a participação do
ofendido valendo-se, por analogia, do art. 201 do CPP para intimá-lo acerca
da reparação dos danos, inclusive morais, sem contar com a anuência deste,
a despeito do processo civil ser o local mais adequado para essas discussões
(CUNHA, 2020, p. 130).
A reparação do dano aqui não repele eventual ação civil ex delicto. O “pa-
cote anticrime” andou bem quando contemplou expressamente a possibilidade
do acordo de não persecução cível do art. 17-A da Lei nº 8.429/92 projetar seus
efeitos para os atos de improbidade administrativa, o que corrige, em partes,
o desnível na tutela do patrimônio público, visto que o acordo de leniência
contemplava os atos da lei anticorrupção, ainda que sem reflexos penais.
Logo, poderíamos ter um acordo de colaboração premiada apresentando
provas para futura ação de improbidade ou da lei anticorrupção, o que apre-
sentava riscos para o agente que firmasse o aludido acordo de colaboração.
A possibilidade de acordo em ação de improbidade era vedada na Lei
nº 8.429/92, mas admitida em alguns acórdãos e também em atos infralegais
do Conselho Nacional do Ministério Público, mas sem o efeito vinculante.
Assim, a correção advinda da novel legislação corrige esse estado de desigual-
dade e insegurança jurídica na tutela do patrimônio público.
Posto isso, a reparação do dano causado ao patrimônio público não
pode ser imposta como condição para o firmamento do ANPP, mas como
condicionante do acordo de não persecução cível24 (ANPC), na forma do art.
17, § 1º, da Lei nº 8.429/92, ou a depender do cenário de provas, a elaboração
do acordo de leniência da Lei nº 12.846/2013.
Lado outro nos delitos socioeconômicos, quando a lei penal prevê a
possibilidade de o parcelamento suspender o curso da ação penal e da pres-
crição e o pagamento extinguir a punibilidade, o faz de modo a dispensar o
cumprimento de requisitos adicionais, ou seja, adimpliu, extinguiu.
Ao reverso, nos ANPPs, quando não dispensado o pagamento pelo
acusado, no entendimento do MP, possuir condições financeiras ou elas não
beirarem à hipossuficiência econômica, o titular da ação penal tem o poder-
dever de requerer o atendimento de requisitos cumulativos, como aponta o

24 Há quem corretamente defenda a possibilidade do ANPP incluir elementos do ANPC (CABRAL, 2020, p. 148).
Doutrina – Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal Nº 97 – Ago-Set/2020 13

art. 28-A, I a V, do CPP; porém, não condicionar o acordo ao pagamento, por


exemplo, do débito tributário25.
O parcelamento é um dever do Fisco quando existente lei que autorize
tal sorte de beneplácito tributário como medida de política fiscal para fomentar
o cumprimento das obrigações tributárias e alavancar a arrecadação, sendo
certo que isso afeta o Direito Penal por afastá-lo de suas finalidades.
Nos delitos patrimoniais, estamos diante de interesse disponível, em
que a faculdade do parcelamento não é prevista em lei, mas, todavia, não é
vedada. Porém, se mantém nas mãos do Ministério Público a faculdade do
parcelamento e aqui caberá ponderação do órgão acusatório em requerer a
dispensa do pagamento quando verificar a hipossuficiência ou vulnerabilidade
do agente e tolerar o parcelamento quando requerido, podendo e devendo,
como dito antes, ouvir o ofendido, visto que isso acarretaria uma proteção
excessiva do interesse privado em detrimento do interesse público ou fazer o
ofendido ser cientificado e ter oportunidade de se manifestar.
Não se descura que a vítima de um delito patrimonial, não raras vezes,
sente mais densamente os impactos de um delito contra seu patrimônio,
porém, não se pode conferir tratamento mais brando ao patrimônio público
em que paira ares de indisponibilidade do interesse público.
O parcelamento por meio do acordo de não persecução gerará no
ofendido uma maior segurança na recomposição de seu patrimônio26, posto
que há um condicionamento do adimplemento à extinção da punibilidade e
a dispensabilidade da reparação do dano afigura-se medida excepcional, em
que a defesa deve demonstrar a impossibilidade de sua realização.

25 Há um precedente que diz ser ilegal a exigência de reparação de danos por ocasião do ANPP em delitos contra a ordem
tributária, em que o Juiz Federal Ali Mazloum determinou a remessa dos autos ao PGR argumentando que: “Além
disso, observo que o legislador não estabeleceu como condição inexorável a reparação do dano, ainda que se trate de
crime tributário. A própria lei prevê, expressamente, que a reparação do dano dar-se-á, ‘exceto na impossibilidade de
fazê-lo’. É certo que o erário pode e deve excutir o seu crédito pelas vias próprias, havendo, para tanto, procedimento
legal apropriado estabelecido na Lei de Execução Fiscal. Ali, havendo possibilidade, se dará a reparação do dano. Ade-
mais, ao erigir a reparação de dano para os crimes tributários como condição sine qua non para a oferta do acordo de
não persecução, estaria o MPF atuando como legislador para criar mais uma exceção à regra do art. 28-A. Logo, caso
o denunciado esteja impossibilitado de reparar o dano, a lei autoriza a proposta de outras condições, conforme prevê
expressamente o art. 28-A do CPP. Portanto, o argumento do MPF de que a reparação do dano em crimes tributários
é condição inexorável para o acordo de não persecução penal não se coaduna com alteração legislativa trazida pela
Lei nº 13.964. Desse modo, entendendo o juiz que a recusa ministerial de apresentação de acordo de não persecução
não está devidamente fundamentada, deve ser aplicado o art. 28 do CPP, com redação anterior à Lei nº 13.964/2019”
(TRF da 3ª R, Ação Penal 5004708-06.2019.4.03.6181, Juiz Fed. Ali Mazloum. Disponível em: https://www.conjur.
com.br/dl/decisao-acordo-nao-persecucao.pdf. Acesso em: 25 abr. 2020).
26 A questão não é infensa a problemas jurídicos como verberam Leonardo Schmitt de Bem e João Paulo Orsini Martinelli
(2020, p. 1.258): “(...) poderá ocorrer o descumprimento injustificado após o investigado ter reparado parcialmente
os danos; rescindido o acordo, a denúncia é apresentada e, depois do procedimento legal, imagine a absolvição do
acusado sob o fundamento de que se provou que não concorreu à infração, pois sua confissão na fase inquisitiva
fora realizada para acobertar o verdadeiro infrator. Nestes termos, deverá a vítima restituir o valor recebido do então
investigado? Sim! Tanto em razão do princípio da intranscendência como para evitar enriquecimento ilícito”.
Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal Nº 97 – Ago-Set/2020 – Doutrina
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2.1.2 Renúncia Voluntária de Bens e Direitos Advindos da Infração


Penal
A lei processual penal indica que o agente que tender a firmar o acordo
deverá voluntariamente27 renunciar a bens e direitos indicados pelo Minis-
tério Público como instrumentos, produto ou proveito do crime (art. 28-A,
II, do CPP).
Apuramos aqui que estamos nesse inciso de elementos que represen-
tam frutos e dividendos do objeto que sofreu a conduta ilícita que demanda
minimamente lastro probatório (DE BEM; MARTINELLI, 2020, p. 1.258).
Dessa feita, o que a lei contempla no inciso I do art. 28-A do CPP refere-se ao
objeto ou prejuízo econômico advindo do delito e, em complementariedade,
os benefícios hauridos do crime, o que contempla as transformações dos bens
e os lucros decorrentes.
Note-se que o caput menciona infração penal e o inciso II do art. 28-A
do CPP cuida de crime; logo, deveria o legislador ter se atendado para constar
crime e não infração penal, portanto, por vedação à analogia in malam partem,
não se permite aplicar esse efeito para a contravenção penal.

2.1.3 Prestação de Serviços à Comunidade ou Entidades Públicas


O inciso III do art. 28-A do CPP cuida da faculdade do MP requerer o
cumprimento de prestação de serviços à comunidade ou entidades públicas
pelo período de um a dois terços da pena mínima a ser cominada pelo(s)
delito(s) em local a ser indicado pelo juízo da execução penal.
Temos, inicialmente, que a indicação do local deveria ser o juízo da Vara
Criminal (CUNHA, 2020, p. 132), posto que o acordo de não persecução
não se confunde com execução penal e a fiscalização deveria ficar a cargo da
Vara Criminal que homologou o acordo, tal qual ocorre no Juizado Especial
Criminal com a transação penal. A justificativa residiria também no aspecto
atinente no descumprimento da medida ficar sob responsabilidade do promo-
tor e juiz natural da Vara Criminal e não da execução criminal; logo, evidente
o desacerto do art. 28-A, § 6º, do CPP.
Assim, o legislador assinalou que o tempo de prestação de serviços à
comunidade varia de um a dois terços do tempo de pena mínima das infrações
penais que deram ensejo ao acordo de não persecução. A lei não trouxe um
parâmetro para indicar o referencial de alargamento da prestação de serviços

27 Guilherme de Souza Nucci (2020, p. 61) assinala que se dispensa a espontaneidade e destaca a potencial divergência
quando o Ministério Público insistir em bens de origem lícita.
Doutrina – Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal Nº 97 – Ago-Set/2020 15

de entre um e dois terços; logo, não apontou critérios para tal, como ocorreria
com os arts. 59 ou 71 do CP.
A tendência é que a prestação de serviços seja aplicada, no mínimo, com
a elevação do tempo realizada com arrimo na quantidade de infrações penais
praticadas ou a circunstâncias pessoais do agente, havendo quem validamente
sustente que como “não há parâmetros legais predefinidos e, diante da omissão,
entendemos prudente incidir a maior fração de redução ou, como sugestão
subsidiária, que se considerem apenas as circunstâncias do delito” (DE BEM;
MARTINELLI, 2020, p. 1.259).
O inciso IV do art. 28-A do CPP contempla o pagamento de prestação
pecuniária na forma do art. 45 do CP, para entidade pública ou de interesse
social a ser indicada pelo juízo da execução penal. O legislador penal, com a
finalidade de reforçar o valor do bem jurídico protegido, indica que o juízo
deverá, preferencialmente, aplicar essa prestação em favor de entidades que sal-
vaguardem o mesmo bem jurídico ou que tenha espectro similar de proteção.
A parte final do dispositivo se revela como uma providência interessante
na proporção em que reforça uma das funções do Direito Penal, qual seja, a
de reacender o valor do bem jurídico afetado com a infração penal. Todavia,
infere-se que o juízo da execução penal não tem a obrigação de fixar o paga-
mento da prestação em favor dessa entidade, podendo ser outra análoga, ou,
inclusive, com finalidade distinta da instituição pública ou particular voltada
a salvaguardar esse interesse.

2.1.4 Condição Inominada


O inciso final do art. 28-A do CPP apresenta dispositivo similar à
condição inominada já existente no processo penal brasileiro quando trata da
suspensão condicional do processo. O Ministério Público aqui tem margem
de discricionariedade para incluir na proposta do acordo o cumprimento de
condição diversa daquelas anteriores, em conjunto com todas ou algumas
delas, desde que elas guardem proporcionalidade e compatibilidade com a
infração penal concretamente praticada.
Em um delito de trânsito, instituir o comparecimento voluntário do
infrator a programas de acompanhamento psicossocial, por exemplo, alcoó-
latras anônimos ou narcóticos anônimos.
Todavia, há quem seja radicalmente contra sua existência por ser uma
cláusula abusiva, por ser “integralmente aberta”, sustentando que as condições
eram absurdas ou simplesmente não eram fixadas (NUCCI, 2020, p. 61), o
que pode ser contido pela aplicação dos §§ 4º, 5º e 7º do art. 28-A do CPP.
Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal Nº 97 – Ago-Set/2020 – Doutrina
16

Rogério Sanches Cunha defende que essa cláusula genérica pode dar
vazão à utilização de “condições prestacionais semelhantes àquelas penas
alternativas já previstas na legislação penal, como, por exemplo, limitação de
final de semana, interdição temporária de direitos, proibição de frequentar
determinados lugares, etc.”.
O autor vai além, ao admitir a possibilidade de “abranger obrigações
que produzam efeito prático equivalente aos efeitos extrapenais, tais como:
perda do cargo, inabilitação para exercício do cargo, etc., e, ainda, aqueles de
natureza extrapatrimonial” (2020, p. 134).
Temos que, com vênia, equivoca-se o autor, posto que se adotaria a
condição inominada para impingir severas restrições ao direito de liberdade
do acusado, sob o argumento da autonomia da vontade. Estar-se-ia inserindo
novas restrições de liberdade para além daquelas indicadas no art. 28-A, III e
IV, do CPP, ou seja, agravaria a situação, inclusive, mais do que com a própria
sentença condenatória.
A condição inominada permite pequenos ajustes quanto à reprovação
do fato, o que não autoriza uma majoração sensível com a inclusão de novas
penas e/ou efeitos extrapenais que, a depender do caso concreto, como tempo
de pena, não se visualizaria como aplicável.
Todavia, não seria desarrazoado exigir-se, por exemplo, a reparação de
danos morais difusos em se cuidando de interesse metaindividual cujos valores
seriam remetidos ao sistema de fluid recovery ou do ente federado que sofreu a
conduta; a renúncia de mandato eletivo (art. 47, I, do CP); compromisso de
não se candidatar a cargo público ou exercer função em cargo de confiança28.
Em inexistindo proporcionalidade, por inadequação ou abusividade,
com a infração penal praticada ou compatibilidade com as circunstâncias
pessoais do agente, poderá o juiz realizar o controle da presente cláusula para
rejeitá-la na forma do art. 28-A, § 5º, do CPP.

3 Impossibilidade de Firmamento do Acordo


A Lei Processual Penal põe a salvo as hipóteses em que a justiça penal
negociada não ocorrerá, ou seja, indica as situações em que não será cabível
o ANPP no art. 28-A, § 2º, do CPP.
As restrições legais variam desde os crimes comportarem transação
penal na forma da Lei n° 9.099/95 com o afastamento das infrações penais
de menor potencial ofensivo do rol de infrações que admitem esse acordo.

28 Os últimos exemplos são de: CABRAL, 2020, p. 142-143.


Doutrina – Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal Nº 97 – Ago-Set/2020 17

Em avanço, o CPP obsta a obtenção do benefício ao agente que for


reincidente ou se houverem elementos probatórios que indiquem que o
agente é delinquente habitual, reiterado ou profissional, salvo se insignificantes
as infrações penais anteriores. O dispositivo do art. 28-A, § 2º, II, do CPP
alimentará intensa polêmica29, posto que a lei nada diz acerca de certidão de
antecedentes criminais; logo, qual seria o elemento probatório que conduziria
a certeza acerca da habitualidade, reiteração ou profissionalismo do agente?
Ademais disso, temos que o legislador não trouxe nenhum conceito do que
seria reiteração, habitualidade ou profissionalismo para permitir a restrição
ao acordo, o que colide com a regra da taxatividade no exercício do poder
punitivo e violação ao ne bis in idem (DE BEM; MARTINELLI, 2020, p. 1.255).
Por fim, até mesmo o caráter de insignificância das infrações penais
não é preciso30, posto que basta uma simples pesquisa na jurisprudência para
vermos a pluralidade de entendimentos que regula o tema.
Não há clareza quanto ao que seria insignificante, por exemplo, em
delitos patrimoniais, mas, em outros, já há uma maior certeza, por exemplo,
delitos tributários. A previsão legislativa viola frontalmente o princípio da
legalidade por sua absoluta imprecisão que conduz a um estágio de insegu-
rança jurídica.
Justamente por essa imprecisão já existe quem defenda a incongru-
ência legal, na qual “alguém condenado poderá ser beneficiado com a oferta
do acordo, mas não aquele que nem respondeu pela infração!” (DE BEM;
MARTINELLI, 2020, p. 1.256).
Na continuidade, o legislador trouxe idêntica restrição da Lei nº
9.099/95, por fixar um período de quarentena de cinco anos para que o agente
beneficiado possa obter novo benefício cujo lapso temporal irá contar a partir
da extinção da punibilidade do outro acordo.
Interessante é que o legislador não trouxe a limitação a outro benefício,
posto que qualquer instrumento de justiça penal negociada obsta a obtenção

29 Guilherme Madeira Dezem (2020, p. 1) pontua que: “Essa vedação deve ser interpretada com cautela, sob pena de
resvalar para o arbítrio. Se o investigado é reincidente, então não é cabível a proposta. Devemos então pensar para as
infrações superiores ao prazo de cinco anos ou para aquelas que, embora menores de cinco anos, não sejam aptas a
gerar reincidência. Não é qualquer infração penal que é apta a impedir essa proposta. Deve haver motivação concreta
por parte do Promotor de Justiça. Assim, a recusa poderá ser justificada perante a gravidade concreta do crime ou até
mesmo perante a existência de elementos que indiquem que o suspeito continua a prática criminosa. Também não
poderá ser o agente beneficiado se já fez uso, nos cinco anos anteriores, de transação penal, suspensão condicional
do processo ou outro acordo de não persecução penal. Esse termo inicial deve ser da data do término do prazo em
que extinta a punibilidade”.
30 Entre os penalistas, há quem, com razão, pontue que: “A expressão prevista na parte final do inciso, ao contrário, é
utilizada para adjetivar uma infração e não para afastar o requisito da tipicidade. Sua imprecisão, indeterminação e/
ou vagueza, por violar o princípio da legalidade, propiciará diversas interpretações, afina, quais infrações não teriam
nem valor nem tampouco importância?” (DE BEM; MARTINELLI, 2020, p. 1.255).
Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal Nº 97 – Ago-Set/2020 – Doutrina
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de novo acordo de não persecução, o que não ocorre na Lei nº 9.099/95. As-
sim sendo, se o agente fora beneficiado com transação ou sursis processual,
dentro do lastro temporal de cinco anos, não poderá firmar outro acordo de
não persecução, mas nada impossibilita a elaboração de acordo de colaboração
premiada pela falta de restrição legal e pelos objetivos especiais de enfrenta-
mento ao crime apresentado nesse instituto.
O dispositivo vai ser objeto de questionamento por conta de violação
ao princípio da proporcionalidade, uma vez que a Lei nº 9.099/95 limita a
impossibilidade de obtenção de novo benefício apenas no campo dos insti-
tutos da própria lei; logo, a lei processual representa uma lex gravior quando
contraposta com a sistemática do Juizado Especial Criminal.
A lei impossibilita a aplicação do benefício nos delitos praticados no
âmbito de violência31 doméstica ou familiar e/ou praticados contra mulher em
razão da condição do sexo feminino. Há um reforço aos dispositivos da Lei nº
11.340/06, por reconhecer, em alguns casos, a situação de vulnerabilidade da
vítima e que o acordo poderia eventualmente neutralizar os efeitos do Direito
Penal. A inovação legislativa andou bem por tratar de violência doméstica, o
que admite a aplicação aos homens, aos homossexuais e aos transexuais, re-
conhecendo a necessária atualização do direito às modificações da sociedade.
Assim sendo, seria possível aplicar os benefícios da lei a todos que se
encontrarem dentro do espectro da violência doméstica ou familiar e não so-
mente à mulher, a qual, inclusive, poderá ser beneficiada independentemente
de a violência ser ou não doméstica ou familiar pela lei cuidar da questão do
gênero.

4 Materialização Procedimental e Controle Jurisdicional de


Cláusulas do Acordo de Não Persecução
Quanto ao procedimento do acordo de não persecução penal temos
que ele será elaborado tal qual o acordo de colaboração premiada, ou seja,
por escrito, firmado entre o Ministério Público e o investigado, que deverá
ter defesa técnica por meio de advogado ou Defensor Público (art. 28-A, §
3º, do CPP), podendo ser apresentado por ocasião do fim das investigações,
porém, antes do oferecimento da denúncia.
O acordo será homologado em audiência específica para essa finalida-
de, em que o juiz verificará sua voluntariedade ouvindo o investigado que

31 Rogério Sanches Cunha (2020, p. 135) assinala que “a violência que impede o ajuste é aquela presente na conduta,
e não no resultado”. Logo, admite-se a elaboração de ANPP nos delitos culposos, por exemplo, homicídio, lesão
corporal (SOUZA, 2020, p. 124), e nos delitos preterdolosos.
Doutrina – Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal Nº 97 – Ago-Set/2020 19

estará com representação pela defesa técnica e avaliará sua legalidade (art.
28-A, § 4º, do CPP)32, bem como assegurará que o ajuste não traga cláusulas
desproporcionais ou abusivas.
O juiz, com arrimo no art. 28-A, § 5º, do CPP, deverá realizar o con-
trole de adequação, suficiência e legalidade das cláusulas do acordo de não
persecução, e, caso apure que elas estão em descompasso com a legislação e
a principiologia do processo penal, devolverá o acordo ao Ministério Público
para a sua reformulação, o qual deverá novamente buscar o investigado e a
defesa técnica para reajustar a cláusula inquinada como inválida pela inade-
quação ou desproporcional.
O dispositivo é extremamente feliz ao admitir o que já vinha sendo
reconhecido pela jurisprudência do STF, permitir o controle de legalidade
dos acordos de colaboração premiada. A finalidade é de ajustar o acordo aos
ditames da lei e evitar erros ou abusos. Antigamente, o magistrado via-se sem
meios expressos de recusar a homologação do acordo por abusividade das
cláusulas, o que fora corrigido com a inovação legal.
O juiz ao recusar a homologação da proposta deverá devolver os autos
ao Ministério Público para avaliar a necessidade de complementação das in-
vestigações ou o oferecimento de denúncia (art. 28-A, § 8º, do CPP)33; porém,
não aponta qual a consequência em razão da recusa judicial, a qual poderá ser
a devolução da proposta para correção do ANPP.
O Ministério Público poderá insistir em sua homologação via recurso
em sentido estrito na forma do art. 581, XXV, do CPP, já que a decisão sobre
a manutenção ou não de seus termos não fica mais adstrita ao âmbito interno,
em decisão do Procurador-Geral.
Alternativamente, o oferecimento de denúncia será possível quando
reputar a recusa inadequada ou não desejar ajustar o acordo (NUCCI, 2020,
p. 64). A legislação penal tratou de incluir a vítima no processo penal em um
movimento de aproximação dela como pessoa diretamente interessada no

32 Na divergência entre autodefesa e defesa técnica, haverá quem sustente a prevalência da primeira e outros que
pugnarão pela preponderância da autodefesa. Há quem sustente a adoção da autodefesa como superior (DEZEM;
SOUZA, 2020, p. 1). Todavia, a questão não é tão clara e dependerá do que se questiona se é a vontade em firmar o
acordo, no qual prepondera a autodefesa, mas quando nos depararmos com cláusulas que sejam desproporcionais
deverá sobressair a defesa técnica.
33 Convém mencionarmos que na hipótese de desclassificação da infração penal por ocasião da sentença deverá o juiz
intimar o MP para analisar a viabilidade de propositura do ANPP (ARAS, 2020, p. 237) e, caso ela se opere em
grau de recurso com o trânsito em julgado da desclassificação, deverá o tribunal determinar a devolução dos autos
à primeira instância para que o Parquet diga sobre a possibilidade de ofertar o ANPP e, caso essa resulte negativa, o
juiz deverá remeter os autos ao Procurador-Geral. Ao fim, com a manutenção do não oferecimento, deverá o juiz
dosar a pena em obediência à desclassificação operada em grau de recurso.
Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal Nº 97 – Ago-Set/2020 – Doutrina
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processo, abandonando sua visão como mera estatística criminal ou simples


meio de prova, tal qual já ocorrera no art. 201 do CPP, modificado em 2008.
Doravante, a vítima terá que ser intimada do acordo de não persecução
firmado pelo MP (art. 28-A, § 9º, do CPP) e pelo agente, até mesmo pela
questão da reparação do dano, sendo, de todo irrelevante, sua manifestação
de vontade para fins de homologação ou não do acordo. Até mesmo porque,
caso a lei condicionasse a homologação à vontade do ofendido, dificilmente
ocorreria a homologação dos respectivos acordos.
Aliás, a recusa do MP em oferecer o acordo de não persecução gerará
ao juízo o dever de remeter os autos ao Procurador-Geral para decisão, nos
moldes do art. 28, caput, do CPP (art. 28-A, § 14, do CPP).

5 Repactuação e Consequências do Descumprimento do Acordo de


Não Persecução
Temos aqui que o conteúdo das condições que permeiam o ANPP
“pode se tornar ou revelar-se demasiadamente oneroso ao longo de sua exe-
cução”; logo, como a Lei nº 13.964/2019 silencia a respeito da possibilidade
de repactuação, há quem defenda corretamente a sua possibilidade com o
emprego de analogia ao art. 128 da Lei nº 8.069/90 (ARAS, 2020, p. 229), ou,
inclusive, o art. 148 da Lei nº 7.210/84.
O descumprimento de qualquer cláusula do acordo de não persecução
acarreta sua revogação, em que o Ministério Público deverá cientificar o juízo
e, posteriormente, oferecer denúncia. Calha dizer aqui que terá aplicabilidade,
por analogia legis, os dispositivos da Lei nº 9.099/95 que tratam da revogação
facultativa ou obrigatória, bem como da Lei nº 7.210/84 referentes à audiência
admonitória.
De início, o Ministério Público pode solicitar essa audiência para
ouvir as razões do descumprimento e verificar se há a apresentação de uma
justificativa que autorize a prorrogação do tempo para implementação das
condições. O desatendimento pode ser motivado por razões pessoais, fami-
liares e econômicas que inviabilizem o atendimento daquela cláusula naquele
momento, mas que não afetam o comprometimento do agente em ajustar-se
a um novo caminho sem novas infrações penais.
Todavia, se apurado que o acordo fora descumprido por desídia do autor
da infração penal, deverá o MP, atuante na Vara de Execuções Penais (VEP),
requerer ao juízo da VEP providências para a apuração da necessidade de pre-
servação ou não do ANPP, inclusive colhendo a justificativa do beneficiário.
Doutrina – Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal Nº 97 – Ago-Set/2020 21

Amealhada a prova acerca da justificativa, deverá o juiz da VEP proceder


a cientificação do fato ao juiz de garantias (art. 3º-B, XVII, do CPP), ou ao
juízo da Vara Criminal, que se tornou prevento para apreciar o fato para que
ele decida a questão.
Ao chegar à comunicação referente ao descumprimento do ANPP ele
dará vista dos autos ao Ministério Público, para que o promotor natural possa
se manifestar quanto à possibilidade de novação (CUNHA, 2020, p. 139) ou
oferecer denúncia.
Ajustada a novação, os autos do termo serão remetidos à VEP para
averiguação de seu cumprimento e, repisamos aqui, que o melhor seria sua
tramitação integral perante o juízo de garantias ou aquele que seria responsável
por eventual ação penal.
A declaração da revogação do acordo deverá ser realizada pelo juízo
criminal e não aquele da Vara de Execuções Penais. A nosso sentir, essa será
a interpretação correta do juízo competente previsto no art. 28-A, § 10, do
CPP, com a comunicação devendo ser realizada pelo juízo da VEP, posto que
cabe a ele fiscalizar o cumprimento do acordo, mas não decidir sobre sua
manutenção ou não por violação do juiz natural.
Todavia, há quem sustente que a questão haveria de ser dirimida in-
tegralmente dentro da Vara de Execuções Penais (CUNHA, 2020, p. 138;
CABRAL, 2020, p. 181-182 e 190) com o MP atuante na VEP requerendo sua
rescisão, ofertando-se a possibilidade de justificativa contraditória e ulterior
decisão do juízo dessa vara com remessa do feito ao juiz de garantias ou ao
juízo do processo de conhecimento.
Na hipótese de descumprimento do acordo, o tempo de cumprimento
voluntário das penas restritivas de direito poderá ser objeto de detração, posto
que, malgrado haja a consensualidade, ela é a mesma pena que seria imposta
pelo juízo em sentença condenatória34.
O descumprimento do acordo poderá ser utilizado pelo Ministério
Público para fins de deixar de propor motivadamente suspensão condicional
do processo (art. 28-A, § 11, do CPP). A lei diz poderá, logo, cuida-se de uma
faculdade conferida com margem de discricionariedade regrada ao titular da
ação penal que deverá utilizar disso quando verificado que o motivo para o
descumprimento fora desidioso por parte do beneficiado.

34 Contrariamente há quem defenda que ela não tem natureza de sanção penal e que o perdimento do tempo é con-
sequência de seu relapso cumprimento. Nesse sentido: CUNHA, 2020, p. 139.
Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal Nº 97 – Ago-Set/2020 – Doutrina
22

Não é todo descumprimento que dará margem à ocorrência da restrição


à obtenção da suspensão condicional do processo por força da possibilidade
de justificativa apresentada. Outro problema surgiria na situação em que
alguém assumisse responsabilidade, confessasse o fato para proteger os reais
autores do delito.
O ato de livramento seria considerado delito autônomo dos arts. 341
e 349 do Código Penal e causa de rescisão do ANPP. Por fim, a alteração
legislativa avança para dizer que a celebração do acordo de não persecução
não constará da certidão de antecedentes criminais, ressalvado para fins de
quarentena para obtenção de novo benefício (art. 28-A, § 12, do CPP), e que
cumprido o acordo, a lei processual determina a extinção da punibilidade (art.
28-A, § 13, do CPP).

6 Conclusões
O ANPP reafirma mais um reflexo da tendência mundial de se buscar
o acertamento dos conflitos sociais por vias consensuais, as quais não são
estranhas ao direito penal, visto que existiam nas infrações penais de menor
potencial ofensivo com a transação penal e em delitos de maior gravidade, em
outras leis penais esparsas, quando falamos de colaboração premiada.
Emerge o ANPP como instrumento de justiça penal consensual des-
tinado às infrações penais de médio potencial ofensivo.
Verifica-se que houve a tentativa de harmonização interna no CPP, posto
que se estabeleceu como ponto de partida para seu entabulamento o limiar
mínimo de pena de quatro anos em compasso com o exigido na mesma legis-
lação para fins de decretação da prisão preventiva como previsto no art. 313.
A nosso sentir, o legislador andou bem ao delimitar exclusivamente
a titularidade do ANPP nas mãos do Ministério Público sem permiti-la à
polícia judiciária, visto que, por força da CRFB, ele é o titular da ação penal;
logo, cabe a ele avaliar, dentro da discricionariedade regrada, a possibilidade
de excepcionalmente dela dispor.
Dessa feita, o instituto não é cabível na ação penal privada ou na ação
penal privada subsidiária da pública exatamente pelo silêncio da lei e pela
possibilidade de surgir abusos no oferecimento disso pelo ofendido.
Lado outro, tem-se que o ANPP deveria permitir em seus requisitos,
quando for possível, ouvindo-se o ofendido35, a concessão de parcelamento

35 MALLMANN, José Henrique. Projeto Luz para a liberdade. Disponível em: https://www.premioinnovare.com.br/
proposta/projeto-luz-para-a-liberdade/print. Acesso em: 7 maio 2020.
Doutrina – Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal Nº 97 – Ago-Set/2020 23

da reparação de danos e, novamente, em havendo a reparação integral constar,


inclusive, a impossibilidade de manejo de ação civil ex delicto. Logicamente que
nessa hipótese deveríamos ter a participação dele firmando o termo.
Erra o legislador ao assentar que a competência de fiscalização ficaria a
cargo do juízo da Vara de Execuções Penais, visto que a experiência do con-
senso penal levado a efeito no Juizado Especial Criminal dá conta do controle
ser realizado dentro de sua própria microestrutura. Assim sendo, o correto
seria que a fiscalização ficasse a cargo do próprio juízo da Vara Criminal que
homologou o acordo.
Por força do asseverado no parágrafo anterior, entendemos que a de-
cisão acerca da rescisão ou não do ANPP ficaria a cargo do juízo de garantias
ou aquele do processo de conhecimento, mas não da VEP que se limitaria a
fiscalizar, apurar paulatinamente seu cumprimento; porém, não sua rescisão
por não se tratar de matéria do art. 66 da LEP.
Em função da demonstração do autor da infração penal revelar seu
interesse em reajustar seu caminho pela legalidade, o que revela arrependi-
mento, tem-se que se deve ao máximo buscar a preservação do acordo antes
de buscar sua rescisão.
Tem-se, inclusive, a necessidade de se abrir oportunidade para manifes-
tação do beneficiário do acordo, até mesmo antes de se promover sua rescisão,
porquanto fatores alheios a sua vontade poderão gerar o descumprimento de
seus termos, por exemplo, perda de emprego, questões de saúde, problemas
familiares, etc.
Mecanismos como a repactuação, a renegociação e o reajustamento
do conteúdo das condições devem ser realizados para se buscar a suficiência
para prevenção e reprovação do crime e, ao fim, o próprio autor da infração
penal consiga ficar livre dos efeitos estigmatizantes do sistema penal, além de
propiciar a restauração, ainda que mínima, do sentimento de justiça na vítima.
Adere-se a isso o fato de que o ANPP, com a reparação de todos os
danos, conseguiria atender a resolução do problema para todos os envolvidos
no cometimento do delito e que merecem a atenção do sistema criminal: o
autor da infração penal e o ofendido.

TITLE: Non-criminal pursue agreement of article 28-A of the Code of Criminal Procedure: brief intro-
duction, initial problems and the limits of the requirement of compensation for damage to the treasury
and the individual.

ABSTRACT: The non-criminal pursue agreement reveals a new instrument of introjection in the criminal
justice system of elements of consensual, already following trends of other existing experiences in our
legal system. This paper presents its general guidelines, its problems of (in)compatibility with criminal
Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal Nº 97 – Ago-Set/2020 – Doutrina
24

procedural principles and how to adjust this typical scenario of private law in the penal system by reduc-
ing points of tension due to the interests at stake, slightly emphasizing the issue of compensation for
damage to the victim.

KEYWORDS: Non-Pursue Agreement. Consensual. Compensation for Damage.

7 Referências
ARAS, Vladimir. Lei anticrime comentada. Leme: JH Mizuno, 2020.
BRANDALISE, Rodrigo da Silva. Justiça penal negociada. Curitiba: Juruá, 2016.
BRASIL. TRF da 4ª Região, Apelação Criminal 5005673-56.2018.4.04.7000/PR. Rel. Des. Fed. João Pedro
Gebran Neto. DJ 13.05.2020.
CABRAL, Rodrigo Leite Ferreira. Manual do acordo de não persecução penal. Salvador: Juspodivm, 2020.
CNPG – Conselho Nacional dos Procuradores-Gerais. Enunciados interpretativos da Lei n° 13.964/2019: Lei
Anticrime. 2019. Disponível em: https://www.cnpg.org.br/images/arquivos/gndh/documentos/enunciados/
GNCCRIM_Enunciados.pdf. Acesso em: 7 maio 2020.
COSTA, Adriano Sousa; HOFFMANN, Henrique; HABIB, Gabriel. Acordo de não persecução penal
também precisa ser feito pelo delegado. Revista Consultor Jurídico. Disponível em: https://www.conjur.
com.br/2019-dez-17/academia-policia-acordo-nao-persecucao-penal-tambem-feito-delegado. Acesso
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CUNHA, Rogério Sanches. Pacote anticrime. Salvador: Juspodivm, 2020.
DE BEM, Leonardo Schmidt; MARTINELLI, João Paulo. Lições fundamentais de direito penal: parte geral.
5. ed. Belo Horizonte: D’Plácido, 2020.
LOPES Jr., Aury; JOSITA, Higyna. Questões polêmicas do acordo de não persecução penal. Revista Consultor
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MALLMANN, José Henrique. Projeto Luz para a liberdade. Disponível em: https://www.premioinnovare.
com.br/proposta/projeto-luz-para-a-liberdade/print. Acesso em: 7 maio 2020.
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NUCCI, Guilherme de Souza. Pacote anticrime. São Paulo: Método, 2020.
OLIVEIRA, Marcelo Ribeiro de. As mudanças na Lei 12.850/2013: alguns avanços, mas muitas perple-
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SOUZA, Renee do Ó. Acordo de não persecução penal previsto no novo art. 28-A do Código de Processo
Penal inserido pela Lei 13.964/2019. In: SOUZA, Renee do Ó (Org.). Lei Anticrime: comentários à Lei
13.964/2019. Belo Horizonte: D’Plácido, 2020.

Recebido em: 15.05.2020


Aprovado em: 23.07.2020
Doutrina

Internação Forçada do Usuário ou


Dependente de Drogas: Fundamentos
Jurídicos e Limites à Atuação Jurisdicional

Haroldo Caetano
Graduado em Direito (PUC Goiás); Mestre em Ciências
Penais (UFG); Doutor em Psicologia (UFF); Promotor de
Justiça do Ministério Público do Estado de Goiás.

Mário Henrique Cardoso Caixeta


Graduado em Direito (UFU); Especialista em Criminologia,
Segurança Pública e Política Criminal (Uniderp); Mestre em
História (PUC Goiás); Promotor de Justiça do Ministério
Público do Estado de Goiás.

RESUMO: Com as alterações trazidas pela Lei nº 13.840/2019, a internação


do usuário ou dependente de substâncias psicoativas passou a ter regramento
próprio na Lei de Drogas. Prevista, exclusivamente, nas modalidades voluntária e
involuntária, não se admite a internação compulsória. Em face dessas mudanças
legislativas, bem como das normas que regulam a atenção em saúde mental no
Brasil, notadamente aquelas definidas na Lei Antimanicomial, este artigo se
propõe a discutir os atuais limites legais definidos para a internação forçada do
usuário ou dependente de drogas.

PALAVRAS-CHAVE: Internação Forçada. Internação Compulsória. Lei de


Drogas. Saúde Mental.

SUMÁRIO: Introdução. 1 A Atenção em Saúde Mental no Brasil. 2 Limites à


Internação Psiquiátrica: Terapêutica É a Liberdade. 3 A Internação do Usuário
de Drogas. 4 Judicialização do Tratamento e a Rede de Atenção Psicossocial.
Conclusões. Referências.

Introdução
Tem-se observado, com indigesta habitualidade, determinações judiciais
impondo a internação psiquiátrica compulsória de pessoas que fazem uso abu-
sivo ou que sejam adictas de substâncias psicoativas, lícitas ou não, casos em que
Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal Nº 97 – Ago-Set/2020 – Doutrina
26

não raro se rebaixa o usuário de drogas à condição de mero dependente, doente.


No afã de eliminar o problema do uso abusivo de drogas, afasta-se o adicto do
convívio social e familiar mediante a internação, embora seja tal medida prevista
como última opção terapêutica, reservada somente para situações excepcionais
em que os recursos extra-hospitalares se mostrarem insuficientes.
Não se descartam, por óbvio, os efeitos deletérios decorrentes do
uso abusivo dessas substâncias, assim como a importância social do tema,
que merece a atenção institucional de todos os órgãos do sistema de justiça.
Contudo, e este é o objetivo deste artigo, importa questionar os instrumentos
escolhidos no plano jurídico para enfrentá-los, ou que, de alguma forma, são
utilizados para responder às demandas levadas à apreciação do Poder Judi-
ciário, principalmente, a partir de ações promovidas pelo Ministério Público
e pela Defensoria Pública.
É inevitável rememorar, nesta discussão, o referencial histórico do
evento da Grande Internação, no distante século XVII. Michel Foucault de-
marca a fundação do Hospital Geral de Paris, em 1656, como início da prática
que colocava sob o mesmo destino os pobres da capital francesa, “de todos
os sexos, lugares e idades, de qualquer qualidade de nascimento, e seja qual
for sua condição, válidos ou inválidos, doentes ou convalescentes, curáveis
ou incuráveis” (FOUCAULT, 2014, p. 49). O hospital geral tinha por esco-
po recolher, alojar e alimentar aqueles que se apresentassem de espontânea
vontade, ou aqueles que para lá fossem encaminhados pela autoridade real
ou judiciária, de maneira que poucos anos após a fundação já abrigava o im-
pressionante quantitativo de seis mil pessoas, cerca de 1% da população de
Paris à época (cf. FOUCAULT, 2014, p. 55).
Assim como há quase quatrocentos anos, hoje também é perceptível,
na prática rotineira da internação psiquiátrica em situações das mais variadas
(e não somente em face do uso abusivo de drogas), a preocupação das classes
sociais mais abastadas em colocar em ordem o mundo da miséria, o desejo
dos religiosos de praticar a caridade e a sempre presente necessidade de re-
primir populações tidas como indesejáveis. E, tal qual aconteceu no passado
longínquo referido por Michel Foucault, o emprego da internação de maneira
indiscriminada resulta também, hoje, desses fatores que expressam basica-
mente a dificuldade histórica em lidar com problemas sociais profundos e
que agora, no século XXI, podem ser muito bem identificados na extrema
desigualdade social brasileira.
A vulgarização dos pedidos de internação psiquiátrica compulsória,
para além de refletir o estado de violência ainda tão presente em algumas
rotinas psiquiátricas, é a clara evidência de que o sistema de justiça ainda não
Doutrina – Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal Nº 97 – Ago-Set/2020 27

se desvencilhou de práticas autoritárias historicamente arraigadas ao tratar de


forma simplificadora um tema deveras complexo. Sabemos, porém, que não
há soluções simples para problemas relacionados à atenção em saúde mental,
notadamente quando envoltos pela questão da drogadição, como também
sabemos que, por mais grave que seja o tema levado à apreciação do Poder Ju-
diciário, a solução deve se dar sem voluntarismos e dentro da estrita legalidade.
A atuação dos juízes, assim como dos defensores públicos e dos promo-
tores de justiça, se dá no plano jurídico, sendo descabida a eventual pretensão
desses agentes (jurídicos) em imiscuírem-se nas rotinas terapêuticas da saúde
mental e da atenção psicossocial, cujos saberes, seja na medicina, na psicolo-
gia, na assistência social, na enfermagem, etc., devem ser compreendidos na
dimensão e na relevância desses valiosíssimos campos do conhecimento e, da
mesma forma, devem ser respeitados os vários profissionais envolvidos nas
suas respectivas especialidades. Não é sem-razão que o Conselho Nacional
de Justiça (CNJ) chegou a editar o Provimento nº 4/2010, no qual definiu
medidas visando “à eficácia e ao bom desempenho da atividade judiciária na
implantação das atividades de atenção e de reinserção social de usuários ou
dependentes de drogas, nos termos do art. 28, § 7º, da Lei nº 11.343/2006”
(BRASIL, 2010). Destaca-se daquele Provimento:

“Art. 3º (...)

§ 2º A atuação do Poder Judiciário limitar-se-á ao encaminhamento do


usuário de drogas à rede de tratamento, não lhe cabendo determinar o tipo
de tratamento, sua duração, nem condicionar o fim do processo criminal
à constatação de cura ou recuperação.”

Conforme a oportuna observação da Professora Luciana Musse, “o CNJ


reassegura, assim, a ênfase na saúde do usuário ou dependente de drogas, ou
seja, prioriza o paradigma biomédico adotado pela Lei de Drogas, em relação
ao jurídico-punitivo” (MUSSE, 2018, p. 200). Reafirmando essa posição as-
sumida em 2010, a I Jornada de Direito da Saúde do CNJ, realizada no ano
de 2014, em São Paulo, aprovou o seguinte enunciado:

“Enunciado nº 1 – Nas demandas em tutela individual para internação de


pacientes psiquiátricos e/ou com problemas de álcool, crack e outras drogas,
quando deferida a obrigação de fazer contra o poder público para garantia
de cuidado integral em saúde mental (de acordo com o laudo médico e/ou
projeto terapêutico elaborado por profissionais de saúde mental do SUS),
não é recomendável a determinação a priori de internação psiquiátrica,
tendo em vista inclusive o risco de institucionalização de pacientes por
longos períodos.”
Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal Nº 97 – Ago-Set/2020 – Doutrina
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Embora seja complexa a matéria, para ela estão muito bem definidos,
como se percebe, os limites de atuação do juiz. Importa, pois, pensar a atuação
jurisdicional e dos demais órgãos envolvidos à luz das normas jurídicas que a re-
gulam e que devem ser necessariamente observadas. Nesse sentido, destacaremos
aqui alguns dispositivos da Lei nº 10.216/01 e da Lei nº 11.343/06. Vamos a eles.

1 A Atenção em Saúde Mental no Brasil


A reforma psiquiátrica pode ser considerada como “um processo his-
tórico de formulação crítica e prática, que tem como objetivos e estratégias
o questionamento e elaboração de propostas de transformação do modelo
clássico e do paradigma da psiquiatria” (AMARANTE, 1995, p. 87). Na Itália,
a Lei nº 180, de 13 de maio de 1978, que ficou conhecida como Lei Basaglia,
proibiu a construção de novos hospitais psiquiátricos e passou a regular a
internação psiquiátrica, assim como estabeleceu serviços de acolhimento para
o atendimento das pessoas com transtornos mentais em meio aberto, o que
produziu uma transformação no cenário da assistência à saúde mental, antes
baseada no atendimento em estruturas asilares.
Pressionado pelo Movimento da Luta Antimanicomial, e inspirado na
experiência italiana, o Brasil editou a Lei nº 10.216, de 6 de abril de 2001, mais
conhecida como Lei Antimanicomial ou Lei da Reforma Psiquiátrica, que
passou a contemplar no plano normativo o modelo historicamente defendido
pelos militantes da Luta Antimanicomial, tendo como diretriz a reformulação
das políticas de atenção à saúde mental mediante a transferência do foco do
tratamento, que antes se concentrava na instituição hospitalar, para uma rede
de atenção psicossocial estruturada em unidades de serviços comunitários e
abertos. Desde 2001, todo e qualquer atendimento em saúde mental deve
necessariamente obedecer à Lei Antimanicomial, estatuto que traz profunda
mudança paradigmática e que resgata a pessoa com transtorno mental como
sujeito de direitos. Nesse sentido:

“Fundada na dignidade humana e na liberdade como princípios, a assistência


em saúde mental passou a ter como objetivo maior a reinserção social do
paciente e deve se dar preferencialmente em meio aberto. De meramente
psiquiátrica, a atenção em saúde mental foi ampliada para contemplar o
amparo psicossocial do indivíduo, e este, antes manejado feito objeto ao
talante de interesses diversos, é agora reconhecido como sujeito, com di-
reitos muito bem definidos; e a internação psiquiátrica, outrora utilizada
com objetivos pouco nobres, tornou-se dispositivo dos serviços de saúde,
de caráter excepcional e utilizado exclusivamente em benefício daquele
mesmo sujeito.” (CAETANO, 2019, p. 125-126)
Doutrina – Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal Nº 97 – Ago-Set/2020 29

Destacam-se alguns dispositivos da Lei Antimanicomial como pontos


de maior interesse para este trabalho, a começar pelos direitos da pessoa com
transtorno mental, previstos expressamente no seu art. 2º, parágrafo único:

“Art. 2º Nos atendimentos em saúde mental, de qualquer natureza, a pes-


soa e seus familiares ou responsáveis serão formalmente cientificados dos
direitos enumerados no parágrafo único deste artigo.

Parágrafo único. São direitos da pessoa portadora de transtorno mental:

I – ter acesso ao melhor tratamento do sistema de saúde, consentâneo às


suas necessidades;

II – ser tratada com humanidade e respeito e no interesse exclusivo de


beneficiar sua saúde, visando alcançar sua recuperação pela inserção na
família, no trabalho e na comunidade;

III – ser protegida contra qualquer forma de abuso e exploração;

IV – ter garantia de sigilo nas informações prestadas;

V – ter direito à presença médica, em qualquer tempo, para esclarecer a


necessidade ou não de sua hospitalização involuntária;

VI – ter livre acesso aos meios de comunicação disponíveis;

VII – receber o maior número de informações a respeito de sua doença e


de seu tratamento;

VIII – ser tratada em ambiente terapêutico pelos meios menos invasivos


possíveis;

IX – ser tratada, preferencialmente, em serviços comunitários de saúde


mental.”

A centralidade das ações no próprio sujeito, que deve ser tratado com
humanidade e no interesse exclusivo de beneficiar sua saúde (inciso II), e a
preferência pela utilização de recursos terapêuticos em meio aberto (inciso
IX) são corolários do objetivo de reinserção social, que se constitui como
finalidade permanente do tratamento, conforme definido no art. 4º:

“Art. 4º A internação, em qualquer de suas modalidades, só será indicada


quando os recursos extra-hospitalares se mostrarem insuficientes.

§ 1º O tratamento visará, como finalidade permanente, a reinserção social


do paciente em seu meio.
Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal Nº 97 – Ago-Set/2020 – Doutrina
30

§ 2º O tratamento em regime de internação será estruturado de forma a


oferecer assistência integral à pessoa portadora de transtornos mentais, in-
cluindo serviços médicos, de assistência social, psicológicos, ocupacionais,
de lazer, e outros.

§ 3º É vedada a internação de pacientes portadores de transtornos mentais


em instituições com características asilares, ou seja, aquelas desprovidas
dos recursos mencionados no § 2º e que não assegurem aos pacientes os
direitos enumerados no parágrafo único do art. 2º.”

Das disposições aqui destacadas, sem prejuízo dos demais artigos da


própria Lei nº 10.216, resulta que a segregação manicomial historicamente
empregada contra as pessoas com transtorno mental, e amplamente denun-
ciada pelo Movimento da Luta Antimanicomial, dá lugar agora à atenção em
liberdade, à vida em sociedade e no território da cidade. Para tanto, devem
atuar os equipamentos da denominada Rede de Atenção Psicossocial (RAPS),
objeto de política pública desenhada no âmbito do Ministério da Saúde.
Torna-se evidente aqui a importância de estruturação da RAPS, no sentido
de contemplar uma série de serviços de atenção à saúde mental, em especial
para a instituição dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS).

2 Limites à Internação Psiquiátrica: Terapêutica É a Liberdade


A Lei nº 10.216 fez do lema do Movimento Antimanicomial um prin-
cípio normativo orientador de toda a política de atenção à saúde mental no
Brasil. Todavia, a internação é também um dispositivo previsto nessa mesma
lei, o que faz da internação psiquiátrica um recurso terapêutico lícito, embora,
repita-se, seja de caráter excepcional. Nessa questão delicada, não resta dúvida
de que a internação deva acontecer preferencialmente de forma voluntária,
de sorte que, sempre que possível, seja precedida da expressa aquiescência do
sujeito que a ela irá se submeter. Afinal, é sempre questionável a aplicabilidade
de tratamentos obrigatórios ao dependente químico, “por conta do paradoxo
que apresentam, por um ângulo intentam proteger a vida, mas, por outro,
constituem violação da liberdade e punição” (RUIZ; MARQUES, 2015).
Está na Lei: a liberdade é terapêutica!
Entretanto, a internação também está expressamente prevista na Lei nº
10.216, sendo um recurso terapêutico possível e eventualmente necessário
na atenção em saúde mental, embora seja excepcional e somente aplicável
quando outros recursos extra-hospitalares não se mostrarem suficientes para
o tratamento. Assim dispõe a Lei:
Doutrina – Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal Nº 97 – Ago-Set/2020 31

“Art. 6º A internação psiquiátrica somente será realizada mediante laudo


médico circunstanciado que caracterize os seus motivos.

Parágrafo único. São considerados os seguintes tipos de internação psi-


quiátrica:

I – internação voluntária: aquela que se dá com o consentimento do usuário;

II – internação involuntária: aquela que se dá sem o consentimento do


usuário e a pedido de terceiro; e

III – internação compulsória: aquela determinada pela Justiça.”

Nos termos da Lei Antimanicomial, a internação poderá ser voluntária,


involuntária e compulsória, esta última definida como sendo a que decorre
de uma ordem judicial. Convém ressaltar que uma limitação importante – e
quase sempre desprezada – em relação à internação na modalidade compulsória
é a necessidade de lei expressa que a admita. É o que se pode deduzir do que
estabelece o art. 9º da Lei Antimanicomial:

“Art. 9º A internação compulsória é determinada, de acordo com a legis-


lação vigente, pelo juiz competente, que levará em conta as condições de
segurança do estabelecimento, quanto à salvaguarda do paciente, dos demais
internados e funcionários.”

Ao prever que a internação compulsória seja determinada “de acordo


com a legislação vigente”, o dispositivo em questão remete à necessidade de
previsão legal expressa para que seja juridicamente possível essa modalidade
de internação. Como se está diante de norma que pode levar à restrição da
liberdade por uma ordem judicial, foi prudente o legislador ao estabelecer tal
exigência, de maneira que a internação compulsória só poderá ser determi-
nada, observado o estrito respeito ao devido processo legal, quando houver
expressa previsão legal. Cabe aqui lembrar que no direito brasileiro há so-
mente duas hipóteses legais em que se admite a internação psiquiátrica por
ordem judicial, ambas em matéria criminal: a internação por força de medida
de segurança (prevista no art. 96, I, do Código Penal) e a internação provisória,
prevista como medida cautelar alternativa à prisão no processo penal (art.
319, VII, do Código de Processo Penal). Ainda assim, todavia, mesmo nessas
hipóteses legalmente admitidas, a internação compulsória deverá observar a
integralidade das normas que regulam a atenção em saúde mental no Brasil,
em particular a vedação da internação asilar, manicomial (cf. CAETANO,
2019, p. 130-131).
Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal Nº 97 – Ago-Set/2020 – Doutrina
32

É que está proibida em qualquer hipótese a internação em instituições


com características asilares (art. 4º, § 3º, da Lei nº 10.216), o que expõe desde
uma primeira leitura a ilegalidade da segregação manicomial, de longo prazo
e, muitas vezes, perpétua, e por isso incompatível com a atenção em saúde
mental e sem nenhuma sintonia com o objetivo permanente agora indisso-
ciável do tratamento, que é a reinserção social do paciente.

“A lógica manicomial dá lugar à lógica da inclusão social em toda a sua


plenitude, sem espaço para qualquer exceção no atendimento em saúde
mental, de forma que a internação psiquiátrica, seja ela voluntária, invo-
luntária ou compulsória, regular-se-á sempre pelos dispositivos da Lei
Antimanicomial. Se os laços familiares e sociais são frágeis quando pre-
sente um transtorno mental severo, a ruptura causada por uma internação,
particularmente quando de longa duração, pode simplesmente inviabilizar
aquele objetivo maior da reinserção social do indivíduo, o que explica a
opção do legislador pelos recursos extra-hospitalares e pela estruturação
de uma rede psicossocial de atendimento que se volte para a assistência do
sujeito no território, de maneira a envolver e fortalecer os seus vínculos
familiares e sociais.” (CAETANO, 2019, p. 127)

Contudo, para o tratamento da dependência química ou do uso abusivo


de drogas, lícitas ou ilícitas, a utilização do recurso terapêutico da internação
sofre maiores restrições ainda. Com a recente mudança promovida na Lei
de Drogas em 2019, o que se deveu à edição da Lei nº 13.840, de 5 de junho
daquele ano, o uso terapêutico da internação em relação ao usuário de drogas
passou a ter regulamento específico, como discutiremos a seguir.

3 A Internação do Usuário de Drogas


Seguindo os mesmos princípios orientadores da Lei Antimanicomial,
também a Lei de Drogas passou a priorizar o tratamento em liberdade para o
usuário ou dependente de substâncias psicoativas, reservando a internação para
situações excepcionais. De maior relevância para este artigo, destacamos alguns
dos novos dispositivos contemplados com as recentes mudanças naquela Lei:

“Art. 23-A. O tratamento do usuário ou dependente de drogas deverá ser


ordenado em uma rede de atenção à saúde, com prioridade para as modali-
dades de tratamento ambulatorial, incluindo excepcionalmente formas de
internação em unidades de saúde e hospitais gerais nos termos de normas
dispostas pela União e articuladas com os serviços de assistência social e
em etapas que permitam:

I – articular a atenção com ações preventivas que atinjam toda a população;


Doutrina – Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal Nº 97 – Ago-Set/2020 33

II – orientar-se por protocolos técnicos predefinidos, baseados em evi-


dências científicas, oferecendo atendimento individualizado ao usuário ou
dependente de drogas com abordagem preventiva e, sempre que indicado,
ambulatorial;

III – preparar para a reinserção social e econômica, respeitando as ha-


bilidades e projetos individuais por meio de programas que articulem
educação, capacitação para o trabalho, esporte, cultura e acompanhamento
individualizado;

(...)

§ 2º A internação de dependentes de drogas somente será realizada em


unidades de saúde ou hospitais gerais, dotados de equipes multidiscipli-
nares e deverá ser obrigatoriamente autorizada por médico devidamente
registrado no Conselho Regional de Medicina – CRM do Estado onde se
localize o estabelecimento no qual se dará a internação.

§ 3º São considerados 2 (dois) tipos de internação:

I – internação voluntária: aquela que se dá com o consentimento do de-


pendente de drogas;

II – internação involuntária: aquela que se dá sem o consentimento do


dependente, a pedido de familiar ou do responsável legal ou, na absoluta
falta deste, de servidor público da área de saúde, da assistência social ou
dos órgãos públicos integrantes do Sisnad, com exceção de servidores da
área de segurança pública, que constate a existência de motivos que justi-
fiquem a medida.

(...)

§ 5º A internação involuntária:

I – deve ser realizada após a formalização da decisão por médico responsável;

II – será indicada depois da avaliação sobre o tipo de droga utilizada, o


padrão de uso e na hipótese comprovada da impossibilidade de utilização
de outras alternativas terapêuticas previstas na rede de atenção à saúde;

III – perdurará apenas pelo tempo necessário à desintoxicação, no prazo


máximo de 90 (noventa) dias, tendo seu término determinado pelo médico
responsável;

IV – a família ou o representante legal poderá, a qualquer tempo, requerer


ao médico a interrupção do tratamento.

§ 6º A internação, em qualquer de suas modalidades, só será indicada


quando os recursos extra-hospitalares se mostrarem insuficientes.
Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal Nº 97 – Ago-Set/2020 – Doutrina
34

(...)

§ 9º É vedada a realização de qualquer modalidade de internação nas co-


munidades terapêuticas acolhedoras.

§ 10. O planejamento e a execução do projeto terapêutico individual deve-


rão observar, no que couber, o previsto na Lei nº 10.216, de 6 de abril de
2001, que dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de
transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental.”

Convém ressaltar, de início, a vedação absoluta da internação do usuário


de drogas nas conhecidas comunidades terapêuticas, agora redenominadas
pela Lei de Drogas como comunidades terapêuticas acolhedoras. Essa regra do art.
23-A, § 9º, é de suma importância, principalmente, quando se tem em conta
a precariedade que tem caracterizado o funcionamento dessas instituições por
todo o país, conforme denunciado no Relatório da Inspeção Nacional em Co-
munidades Terapêuticas, trabalho de fôlego realizado pelo Conselho Federal
de Psicologia (CFP) em parceria com o Mecanismo Nacional de Prevenção
e Combate à Tortura (MNPCT) e a Procuradoria Federal dos Direitos do
Cidadão (PFDC/MPF). Uma restrição muito bem-vinda, portanto, a vedação
legal da internação nesses estabelecimentos.
O papel das comunidades terapêuticas, agora expressamente proibidas
de funcionar como espaços de internação, foi redefinido pela alteração na Lei
de Drogas em 2019 e, não obstante os muitos questionamentos que enfrentam
por parte de entidades de defesa dos direitos humanos, a elas foi reservado o
trabalho de acolhimento do sujeito que, de forma voluntária, pretende alcançar
a abstinência (art. 26-A da Lei de Drogas). Embora não seja o trabalho das
comunidades terapêuticas o objeto deste artigo, vale aqui ressaltar que tais
estabelecimentos não se caracterizam como unidades de saúde e que, mais
uma vez realçamos, não se destinam à internação, muito menos à internação
forçada de quem faz uso abusivo de substâncias psicoativas.
Quando necessária, dispõe agora a Lei de Drogas em seu art. 23-A,
§ 2º, a internação “somente será realizada em unidades de saúde ou hospitais
gerais, dotados de equipes multidisciplinares”. De tal sorte, caberá à RAPS
a tarefa de oferecer recursos e equipamentos apropriados à internação do
dependente químico, a qual só será admitida em unidades de saúde ou leitos
de hospitais gerais. Tal dispositivo reforça a já referida natureza sanitária da
internação psiquiátrica como recurso terapêutico, e, logo, só poderá ser uti-
lizada no interesse exclusivo de beneficiar a saúde do próprio usuário (como
antes já previa o art. 2º, parágrafo único, inciso II, da Lei Antimanicomial).
Doutrina – Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal Nº 97 – Ago-Set/2020 35

Outra regra trazida pela recente mudança na Lei de Drogas, de extrema


relevância nesta discussão, é a não previsão da internação compulsória para o
usuário de drogas. Para casos de dependência química ou uso abusivo de subs-
tâncias psicoativas só se admitem agora dois tipos de internação: a voluntária
e a involuntária. A internação compulsória, prevista na Lei Antimanicomial
de forma genérica para pessoas com transtornos mentais, foi deliberadamente
retirada do leque de opções definidas na Lei de Drogas para o tratamento do
usuário ou dependente químico, de maneira que a internação por ordem judicial
não é alternativa lícita em face desse sujeito. Entretanto, e aqui está uma regra
de ouro, uma vez indicada a necessidade clínica da internação por relatório
médico circunstanciado sem que haja o consentimento do indivíduo e não
havendo quem por este se manifeste, como exige o art. 23-A, § 3º, inciso II,
da Lei de Drogas, poderá o juiz ser chamado a atuar não para impor uma
internação, pois não se trata de internação compulsória, que não é sequer ad-
mitida legalmente, mas para garantir o pleno acesso à saúde e, caso necessário,
para obrigar o poder público ao oferecimento do serviço que, muitas vezes, é
negado por deficiências da própria RAPS. A natureza da internação continua
sendo involuntária, o que não muda mesmo quando o juiz é acionado para
garantir os direitos e o tratamento adequado da pessoa com transtorno mental.
Convém também enfatizar, ainda a respeito dos limites específicos
definidos pela Lei de Drogas para a internação involuntária, a nova regra
definida pelo seu art. 23-A, § 5º, inciso III, que estabelece o prazo máximo
de 90 (noventa) dias para essa modalidade de internação. Fixado tal limite de
forma objetiva, o prazo máximo é fatal, não sendo admitida a sua prorrogação,
de maneira que a internação involuntária cessa inexoravelmente ao término
do período máximo legalmente definido.

4 Judicialização do Tratamento e a Rede de Atenção Psicossocial


A judicialização de ações voltadas à internação psiquiátrica de usuários
de drogas, em especial quando promovida pelo Ministério Público ou pela
Defensoria Pública, sob uma perspectiva metaindividual, reflete, de certa
forma, a desarticulação, desorganização e deficiências da Rede de Atenção
Psicossocial (RAPS). Tais ações também revelam a dificuldade das instituições
do sistema de justiça que são chamadas a atuar no campo da atenção em saúde
mental, particularmente quando se discute o uso abusivo de drogas. Essa atu-
ação, muitas vezes fundada em interpretação distorcida de dispositivos da Lei
Antimanicomial que, de garantidora de direitos, acaba sendo convertida em
instrumento contra o próprio sujeito desses mesmos direitos, não raro resulta
em medidas ilegais e sem eficácia, a exemplo da equivocada internação compul-
Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal Nº 97 – Ago-Set/2020 – Doutrina
36

sória (agora felizmente proibida na Lei de Drogas), utilizada, principalmente,


em grandes centros urbanos, especialmente para fazer face às aglomerações de
populações em situação de rua, que ficaram mais conhecidas como cracolândias,
espaços que, longe de políticas legalmente orientadas, tornaram-se palco, tal
qual acontecia na Paris do longínquo século XVII, de práticas de higienização
populistas, vexatórias e violadoras de direitos humanos.
Nessa conjuntura de difícil enfrentamento, muitos juízes, promotores e
defensores públicos, ao promoverem a internação compulsória como principal
meio de enfrentamento à drogadição, acabam por se tornar responsáveis pela
perpetuação de um círculo vicioso: famílias desesperadas, geralmente pobres,
buscam tratamento para o ente drogadicto, que lhes causa graves transtor-
nos; o promotor de justiça ou o defensor público, com base em um simples
relatório médico, requer a internação compulsória; o juiz a defere e, então, o
poder público providencia uma clínica privada, nem sempre habilitada para o
tratamento adequado da dependência química, para que essa internação ocorra;
ao final do período de internação, o usuário retorna à realidade anterior e,
sem uma RAPS que lhe dê suporte no seu território, o círculo vicioso tende
a se repetir indefinidamente. Tudo isso acontece ao arrepio do Sistema Único
de Saúde (SUS), das normas que regem a atenção em saúde mental e, agora
também, em desrespeito aos dispositivos legais que regulam o tratamento do
usuário de drogas. Essa prática equivocada custa muito caro e consome boa
parte do orçamento dos municípios que, com isso, se veem desobrigados de
investir nas políticas estruturantes da RAPS.
Mudar essa prática é o desafio para o qual se faz fundamental a estrutu-
ração da Rede de Atenção Psicossocial nos municípios. Importa, nesse sentido,
canalizar os recursos públicos (que, pela utilização do instituto da internação
compulsória, acabam sendo indevidamente aplicados em internações que não
oferecem resultados benéficos a ninguém) para o financiamento dos muitos
equipamentos que devem compor a RAPS. Esse desafio se apresenta tam-
bém para o Poder Judiciário, para a Defensoria Pública e para o Ministério
Público, instituições que, não se deixando seduzir pelo caminho simplório
de providências coercitivas contra o próprio usuário de drogas, medidas es-
sas ineficazes do ponto de vista terapêutico e que se mostram extremamente
dispendiosas para o Poder Público, devem passar a atuar no sentido de com-
pelir os municípios para que estruturem suas respectivas redes de atenção
psicossocial. Afinal, é a RAPS a política pública de saúde mental instituída
pelo SUS e, seguindo essa linha de ideias, tem-se que qualquer intervenção
nos serviços de atenção às pessoas com necessidades decorrentes do consu-
mo abusivo de drogas, lícitas ou ilícitas, deve passar, necessariamente, pelo
diagnóstico e compreensão da RAPS, identificando eventuais deficiências de
Doutrina – Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal Nº 97 – Ago-Set/2020 37

equipamentos, de serviços, da articulação entre os diversos setores envolvidos


e suas respectivas potencialidades.
Conforme dispõe a Portaria de Consolidação nº 3 do Ministério da
Saúde, de 28 de setembro de 2017, a Rede de Atenção Psicossocial tem por
finalidade, no âmbito do SUS, a criação, ampliação e articulação de pontos
de atenção em saúde para pessoas com sofrimento ou transtorno mental,
incluídas aquelas com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e ou-
tras drogas. A RAPS é constituída pelos seguintes componentes: I – Atenção
básica em saúde: unidade básica de saúde (UBS), equipes de atenção básica,
equipes de atenção básica para populações específicas, equipe de consultório
na rua, núcleo de apoio à saúde da família (NASF) e centros de convivência
e cultura; II – Atenção psicossocial: Centros de Atenção Psicossocial (CAPS),
equipe multiprofissional de atenção especializada em saúde, unidades ambu-
latoriais especializadas; III – Atenção de urgência e emergência: Serviço de
Atendimento Móvel de Urgência (SAMU), sala de estabilização, unidade de
pronto atendimento (UPA), pronto-socorro em hospital geral; IV – Atenção
residencial de caráter transitório: unidade de acolhimento e serviços de atenção
em regime residencial; V – Atenção hospitalar: unidade de referência espe-
cializada em hospital geral, hospital psiquiátrico especializado, hospital dia;
VI – Estratégia de desinstitucionalização: serviços residenciais terapêuticos;
VII – Estratégias de reabilitação social: iniciativas de trabalho e geração de
renda, empreendimentos solidários e cooperativas sociais.
Quanto às comunidades terapêuticas acolhedoras, segundo a nova defi-
nição trazida pelas recentes mudanças na Lei de Drogas, convém destacar que,
mesmo não tendo a natureza de unidades de saúde, são estabelecimentos que
integram a RAPS na condição de serviço de atenção em regime residencial.
Também os serviços do Sistema Único de Assistência Social (SUAS)
integram a política de atenção ao usuário de drogas, devendo atuar, nos dizeres
do art. 3º, § 2º, da Lei de Drogas, em articulação com o SUS. O art. 23-A
determina que o tratamento do usuário ou dependente de drogas deverá ser
ordenado em uma “rede de atenção à saúde, com prioridade para as moda-
lidades de tratamento ambulatorial, incluindo excepcionalmente formas de
internação em unidades de saúde e hospitais gerais nos termos de normas
dispostas pela União e articuladas com os serviços de assistência social”.
O que se tem, portanto, é que a atual Lei de Drogas prevê, explicita-
mente, o tratamento ordenado em rede de atenção à saúde (e de assistência
social), o que fatalmente nos remete à RAPS, entendimento que se reforça
pelo disposto no § 2º daquele mesmo art. 23-A, ao estabelecer que a internação
dos dependentes de drogas somente será realizada “em unidades de saúde ou
Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal Nº 97 – Ago-Set/2020 – Doutrina
38

hospitais gerais, dotados de equipes multidisciplinares”. Prevê também a mes-


ma Lei que a atenção ao usuário ou dependente de drogas na rede de atenção
à saúde dependerá de avaliação prévia por equipe técnica multidisciplinar e
multissetorial e da elaboração de um Plano Individual de Atendimento – PIA
(art. 23-B), o que realça a importância dos CAPS nesse atendimento.

Conclusões
De todo o exposto, embora sem qualquer pretensão de exaurimento
do assunto, podemos extrair algumas conclusões importantes e que merecem
ser destacadas:
1) A atenção à saúde do usuário ou dependente de drogas deve ser
realizada de forma a respeitá-lo como sujeito de direitos e guardar sintonia
com os direitos fundamentais da pessoa humana, não comportando soluções
autoritárias ou que não estejam lastreadas na estrita legalidade;
2) A liberdade, a autonomia do sujeito e o respeito aos direitos fun-
damentais da pessoa humana são princípios orientadores das políticas sobre
drogas, o que faz do tratamento ambulatorial a modalidade prioritária na
assistência à saúde do usuário ou dependente de drogas;
3) A internação somente poderá ser utilizada em caráter excepcional
e, preferencialmente, de forma voluntária, mediante a expressa aquiescência
do sujeito. Porém, quando necessária e indicada por relatório médico que
justifique os seus motivos, deverá ser realizada em unidades de saúde, sendo
absolutamente vedada a internação em comunidades terapêuticas;
4) Deliberadamente afastada a possibilidade jurídica da internação com-
pulsória, a internação do usuário de drogas só será admitida nas modalidades
voluntária e involuntária;
5) A internação involuntária perdurará exclusivamente pelo tempo
necessário à desintoxicação e terá o prazo máximo e improrrogável de 90
(noventa) dias;
6) A judicialização da atenção em saúde mental, no plano individual,
deve sempre e necessariamente ter em vista que o usuário de drogas ou de-
pendente químico é sujeito de direitos, devendo o tratamento orientar-se no
interesse exclusivo de beneficiar sua saúde. Normas legais garantidoras de
direitos, especialmente aquelas que estão previstas na Lei de Drogas e na Lei
Antimanicomial, não podem ser utilizadas contra o titular desses mesmos
direitos;
Doutrina – Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal Nº 97 – Ago-Set/2020 39

7) O juiz não está autorizado por lei a impor a internação compulsória


de quem faz uso abusivo de drogas. Contudo, poderá ser acionado para garantir
o seu pleno acesso à saúde e, se necessário, para obrigar o poder público ao
oferecimento dos serviços de atenção em saúde mental que, muitas vezes, são
negados por deficiências da RAPS;
8) No âmbito da atuação em saúde mental, as ações do Ministério Pú-
blico e da Defensoria Pública, assim como as decisões proferidas pelo Poder
Judiciário, devem priorizar medidas de estruturação da Rede de Atenção
Psicossocial.

TITLE: Forced hospitalization of user or drug addict: legal basis and limits to jurisdiction.

ABSTRACT: With the changes brought by Law n0. 13,840/2019, the hospitalization of the user or ad-
dict on psychoactive substances started to have its own rules in the Drug Law. Provided exclusively in
voluntary and involuntary modalities, compulsory hospitalization is not allowed. In view of these legisla-
tive changes, as well as the norms that regulate mental health care in Brazil, notably those defined in the
Anti-Asylum Law, this paper aims to discuss the current legal limits defined for the forced hospitalization
of drug users or addicts.

KEYWORDS: Forced Hospitalization. Compulsory Hospitalization. Drug Law. Mental Health.

Referências
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nico). 2. ed. Rio de Janeiro: Fiocruz, 1998.
BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Provimento nº 4, de 26 de abril de 2010. Brasília: CCNJ, 17 jun. 2010.
______. Lei nº 10.216, de 6 de abril de 2001. Diário Oficial da União. Brasília, p. 2, 9 abr. 2001.
______. Lei nº 11.343, de 23 de agosto de 2006. Diário Oficial da União. Brasília, p. 2, 24 ago. 2006.
______. Portaria de Consolidação nº 3, de 28 de setembro de 2017. Diário Oficial da União. Brasília, 2017.
CAETANO, Haroldo. Loucos por liberdade: direito penal e loucura. Goiânia: Escolar, 2019.
CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA. Relatório da inspeção nacional em comunidades terapêuticas.
Brasília: CFP, 2018.
FOUCAULT, Michel. História da loucura. 10. ed. São Paulo: Perspectiva, 2014.
MUSSE, Luciana Barbosa. Internações forçadas de usuários e dependentes de drogas: controvérsias jurí-
dicas e institucionais. In: SANTOS, Maria Paula Gomes dos (Org.). Comunidades terapêuticas: temas para
reflexão. Rio de Janeiro: IPEA, 2018.
RUIZ, Viviana Rosa Reguera; MARQUES, Heitor Romero. A internação compulsória e suas variáveis:
reflexões éticas e socioculturais no tratamento e reinserção do paciente na sociedade. Revista Psicologia e
Saúde, Campo Grande, v. 7, n. 1, jun. 2015.

Recebido em: 14.07.2020


Aprovado em: 27.08.2020
Doutrina

A Presunção de Inocência no Brasil: uma


Análise a Partir da Impetração do Habeas
Corpus 84.078 até a PEC nº 199/2019

Caroline Previato Souza


Mestranda em Ciências Jurídicas pelo Centro Universitário
de Maringá (UNICESUMAR), na condição de Bolsista da
Capes/PROSUP; Advogada.

Gustavo Noronha de Ávila


Doutor em Ciências Criminais pela Pontifícia Universidade
Católica do Rio Grande do Sul; Professor Permanente do
Programa de Pós-Graduação, Mestrado e Doutorado em
Ciência Jurídica do Centro Universitário de Maringá.

RESUMO: Baseado no princípio da presunção de inocência, pretendemos,


por meio de abordagem indutiva e da técnica de revisão bibliográfica, avaliar as
consequências de sua inaplicabilidade e como seus reflexos contribuem para o
número crescente de presos provisórios e, consequentemente, o aumento do
encarceramento em massa no Brasil. Para isso, se realizará um estudo cronoló-
gico da democracia, transitando entre a promulgação da Constituição Federal
de 1988, a impetração dos Habeas Corpus 84.078 e 126.292, a ADC 43, a PEC
nº 199/2019 e, por fim, a Lei nº 13.964/2019, a fim de demonstrar as mutilações
que a expressão res judicata sofreu ao longo dos anos.

PALAVRAS-CHAVE: Inocência. Recursos. Encarceramento. Superlotação.

SUMÁRIO: Introdução. 1 A Presunção de Inocência: Premissa Basilar do Estado


Democrático de Direito. 2 A Segurança Jurídica no Brasil e sua (In)Constância;
2.1 A Reação do Autoritarismo: Proposta de Emenda à Constituição nº 199/2019;
2.2 A Lei nº 13.964/2019 e suas Violações às Normas Constitucionais. 3 Dos
Reflexos da Execução Provisória e/ou Imediata da Pena no Encarceramento em
Massa. Considerações Finais. Referências Bibliográficas.

Introdução
A presunção de inocência, cláusula pétrea, é responsável por tutelar a
liberdade dos indivíduos. Está prevista no art. 5º, LVII, da Constituição Federal
Doutrina – Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal Nº 97 – Ago-Set/2020 41

e garante que ninguém será considerado culpado até trânsito em julgado de


sentença penal condenatória. Contudo, apesar de óbvio, tal definição vem
sofrendo “alterações” ao longo dos anos, baseadas em conjunturas políticas,
sociais e ideológicas que ignoram por completo sua real definição.
A preocupação com o jus puniendi se sobrepõe às formalidades consti-
tucionais preconizadas pelo diploma maior, desde sua promulgação em 1988,
e levanta problemas graves em relação ao número crescente de presos, em
especial aqueles que estão cumprindo sua pena de forma antecipada. A (des)
preocupação com a limitação física se mostra o principal problema a ser com-
batido frente às reformas pela quais o Brasil vem passando gradativamente.
Para tanto, no presente estudo, métodos de caráter explanatório serão
utilizados, bem como revisões conceituais consideradas pertinentes ao en-
tendimento dos assuntos abordados e, mediante um viés crítico, pretende-se
avaliar os principais problemas em relação a não aplicabilidade da presunção
de inocência em desfavor de um país ainda despreparado para efetivar políticas
criminais que visem uma redução dos números de encarcerados no sistema
prisional.
Assim, por meio de uma análise cronológica desde a promulgação da
Constituição Federal de 1988, passando pela impetração dos Habeas Cor-
pus 84.078 e 126.292, o julgamento das ADC 43, pela Proposta de Emenda
Constitucional nº 199/2019, e a Lei nº 13.964/2019, do pacote anticrime,
buscaremos apresentar as principais lacunas e problemas existentes tanto no
poder judiciário quanto no poder legislativo, quando a presunção de inocên-
cia é suscitada, seja em ações ou em alteração legislativa, visando alcançar o
objetivo prático maior, qual seja, estampar um caráter punitivista que busca
o encarceramento a todo custo.

1 A Presunção de Inocência: Premissa Basilar do Estado


Democrático de Direito
No Estado Democrático de Direito brasileiro, a norma constitucional
prevista no art. 5º, inciso LVII, da Constituição Federal de 1988 assevera que
ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença
penal condenatória.
Tal panorama aponta para a legal aplicação da presunção de inocência,
pela qual se assegura a não imposição de uma pena como medida automática,
carecendo – fundamentalmente – do respeito ao devido processo penal com
a formulação de hipóteses e sua suficiência probatória, para que então haja a
formação de um juízo regular que alcance a verdade real dos fatos. A proble-
Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal Nº 97 – Ago-Set/2020 – Doutrina
42

mática traz consigo um ideal garantista defendido por Ferrajoli, desde muito
tempo, e expressado pelo axioma: “nulla culpa sine judicio e nulla accusatio
sine probatione”1. Nesse sentido, expressa:

“A correlação biunívoca entre garantias penais e processuais é o reflexo


do nexo específico entre lei e juízo em matéria penal. No plano lógico,
antes de tudo, estrita submissão à jurisdição e estrita legalidade se pres-
supõem alternadamente, e valem conjuntamente para garantir – e não só
para definir – o caráter cognitivo de um sistema penal: a jurisdição penal,
de fato, se configura, bem mais que a administração ou outras formas de
jurisdição, como ‘aplicação’ ou ‘afirmação’ da lei. No plano teórico, além
disso, a submissão à jurisdição em sentido estrito supõe, necessariamente,
como condições da prova, as garantias da materialidade, da ofensividade
e da culpabilidade, enquanto a submissão à jurisdição em sentido lato é
por elas pressuposta. Por fim, no plano teleológico, legalidade e submis-
são à jurisdição são complementares no que respeita à função utilitária da
prevenção geral que é própria do direito penal. Precisamente, enquanto
o princípio de legalidade assegura a prevenção das ofensas previstas como
delitos, o princípio de submissão à jurisdição assegura a prevenção das
vinganças e das penas privadas: a passagem da justiça privada, da vingança
de sangue (faida) aquela pública do direito penal se verifica de fato exata-
mente quando a aplicação das penas e a investigação dos seus pressupostos
são subtraídas à parte ofendida e aos sujeitos a ela solidários e são confiadas
com exclusividade a um órgão ‘judiciário’, ou seja, estranho às partes inte-
ressadas e investido da autoridade para decidir sobre as razões em oposição.”
(FERRAJOLI, 2014, p. 432)

Porquanto, a jurisdição seria a atividade necessária para constatar através


dos standards probatórios sobre o cometimento de um crime por determinado
sujeito que, por sua vez, deveria representar o resultado dessa opção garantis-
ta, atuando em favor da tutela de imunidade do inocente em contraposição
à imputação da pena, somente se aquele fosse, indiscutivelmente, culpado.
Thomas Hobbes há muito tempo já trazia essa ideia norteadora, afir-
mando que “é contrário à lei da natureza castigar os inocentes, e inocente é
aquele que é absolvido judicialmente, e reconhecido como inocente pelo juiz”
(HOBBES, 1913, p. 180.). A contrario sensu, com uma análise hermenêutica dos
ensinamentos desse filósofo, a única maneira de uma pessoa ser considerada
culpada, deixando de ocupar seu status de inocente, seria com a prolação de
uma sentença condenatória em definitivo, em que o lapso temporal entre o
fato criminoso e a materialização da decisão do magistrado garantiria impe-

1 Não há culpa sem processo, não há acusação sem prova.


Doutrina – Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal Nº 97 – Ago-Set/2020 43

riosamente que a segurança e a defesa social do cidadão estivessem acima do


arbítrio punitivo do Estado (FERRAJOLI, 2014).
Doutro giro, Beccaria também já sinalizava sobre a questão, ao afirmar
que um homem não seria considerado culpado antes da prolação da sentença
de um juiz e que, tampouco, caberia à sociedade distanciá-lo da proteção
pública. Indistintamente, a decisão sobre a violação dos pactos outorgados
teria o intuito de afastá-lo da força e reaproximá-lo do direito, para que não
houvesse a possibilidade de o juiz aplicar uma pena quando ainda existem
dúvidas acerca da sua culpabilidade. Sendo um caso incerto, se afastaria qual-
quer tormenta ao inocente que, já segundo a lei da época, seria aquele pelo
qual o delito não pode ser provado. Inovando preceitos que romperam com
a tradição clássica e aplicando a legislação da época, já no ano de 1764, ele traz
a razão como forma basilar para compreensão do direito e, em contrapartida,
firma, já nos primórdios, formalismos que deveriam ser aplicados para garantia
da presunção de inocência nos dias atuais (2006, p. 50).
A racionalidade que se pretende alcançar então, se choca de imediato
com os precedentes abertos por nossos Tribunais Superiores nos últimos anos.
Flutuando entre a garantia exata da prescrição do art. 5º, LVII, da Constituição
Federal e a total inconstitucionalidade das decisões sobre a temática, temos
o ano de 2016 como o divisor de matérias a esse respeito. A reviravolta juris-
prudencial ocorreu a partir do julgamento do Habeas Corpus 126.292/SP2
de relatoria do, até então, Ministro Teori Albino Zavascki, pelo qual se abriu
precedente em favor da execução provisória da pena, sendo traduzida como
a confirmação de uma sentença condenatória em sede de apelação apenas.
Assim, de acordo com o teor decisório, ainda que houvesse a possibi-
lidade de interposição de recurso especial ou extraordinário ao STJ e STF,
respectivamente, isso em nada prejudicaria o início do cumprimento antecipa-
do da pena, motivado pela natureza dos efeitos conferidos a eles, devolutivos
e não suspensivos, somado ao fato da não possibilidade de julgar-se matéria
fática e, por isso, diminuindo-se as chances de reforma ou anulação.
O precedente aberto, a partir de então, ignorou expressamente a res
judicata3, premissa basilar do Estado de Direito que sustenta a democracia bra-
sileira e coíbe abusos que possam vir a ser praticados pelo judiciário. Somado

2 “CONSTITUCIONAL. HABEAS CORPUS. PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA PRESUNÇÃO DE INO-


CÊNCIA (CF, ART. 5º, LVII). SENTENÇA PENAL CONDENATÓRIA CONFIRMADA POR TRIBUNAL
DE SEGUNDO GRAU DE JURISDIÇÃO. EXECUÇÃO PROVISÓRIA. POSSIBILIDADE. 1. A execução
provisória de acordão penal condenatório proferido em grau de apelação, ainda que sujeito a recurso especial ou
extraordinário, não compromete o princípio constitucional da presunção de inocência afirmado pelo art. 5º, inciso
LVII, da Constituição Federal. 2. Habeas corpus denegado.” (BRASIL, 2016)
3 Coisa julgada.
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a isso, colidiu, rigorosamente, com a norma constitucional, com o Código de


Processo Penal, que assevera em seu art. 283, a imposição da prisão ao cidadão
somente no caso de flagrante delito, em decorrência de uma sentença conde-
natória transitada em julgado ou como forma de garantir o curso adequado do
processo, de modo temporário ou preventivo, devidamente fundamentada,
bem como com a Lei de Execuções Penais, especificamente no que dispõe
seus arts. 1054 e 1475.
Não há, portanto, qualquer possibilidade de regulamentação da matéria
processual penal ultra, sendo imperioso que siga os ditames da lei, sob pena
de ferir-se o Princípio da Legalidade expresso tanto na Constituição Federal
quanto no Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos6 e no Pacto de
San José da Costa Rica7, que compõe o ordenamento jurídico brasileiro, com
suas respectivas promulgações internas por meio dos Decretos ns. 592, de 6
de julho de 1992, e 678, de 6 de novembro de 1992.
Ao recepcionar a presunção de inocência, se impôs ao julgador uma
preocupação primordial com o réu, qual seja, a de tratá-lo como inocente até
o trânsito em julgado de uma ação penal. Inadmissível que se coloque em
seu desfavor um efeito automático da imputação ou mesmo das sentenças,
vez que uma prisão obrigatória retrataria a antecipação de um juízo de culpa
que ainda não é certa (LOPES Jr., BADARÓ, 2016).
É possível afirmar, assim, que as únicas possibilidades de se efetuar
uma prisão estão elencadas em lei, e, portanto, o enunciado previsto no inciso
LVII deve ser interpretado como negativo universal, pelo qual a jus libertatis
do cidadão prevaleceria em oposição ao jus puniendi do Estado (SILVA, 2006),
superando a sua equivalência pura com a presunção da não culpabilidade.
Tão logo, o contorno semântico no plano normativo das regras do
“dever-ser”, em tese, independe da situação dos fatos. Com base no positivismo
jurídico, seriam elas que direcionariam a tomada de decisões dos operadores
do direito, criando limites aos três poderes, por meio de definições claras da
própria legislação.

4 “Art. 105. Transitando em julgado a sentença que aplicar pena privativa de liberdade, se o réu estiver ou vier a ser
preso, o Juiz ordenará a expedição de guia de recolhimento para a execução.”
5 “Art. 147. Transitada em julgado a sentença que aplicou a pena restritiva de direitos, o Juiz da execução, de ofício ou
a requerimento do Ministério Público, promoverá a execução, podendo, para tanto, requisitar, quando necessário,
a colaboração de entidades públicas ou solicitá-la a particulares.”
6 “Art. 14.2 Qualquer pessoa acusada de infração penal é de direito presumida inocente até que a sua culpabilidade
tenha sido legalmente estabelecida.”
7 “Art. 8.1 Toda pessoa acusada de um delito tem direito a que se presuma sua inocência, enquanto não for legalmente
comprovada sua culpa.”
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Assim, criou-se um embate sobre a discricionariedade dos juizões so-


bre a (não) efetividade da lei e sua consequente necessidade de interpretação
conforme um contexto social criado, desprezando um mundo cada vez mais
problemático, que é o das prisões. Todavia, tudo parecia ter retornado ao status
a quo de um Estado Democrático por excelência, mas o ímpeto populista falou
mais alto, como veremos a seguir.

2 A Segurança Jurídica no Brasil e sua (In)Constância


Na atual realidade, tem-se a constante necessidade de interpretar, na
literalidade, a premissa “mais crime, mais pena”, sem maiores problemas em
estudar o processo por meio de concessões de prisões a qualquer custo, ainda
que haja supressão de garantias para tanto.
Indiscutivelmente que, a onda reformista pela qual o Brasil vem passan-
do nos últimos anos demonstra apenas posições cada vez mais estreitas entre
o juízo técnico e o crivo popular, causadores de pré-julgamentos motivados
por indagações evidentemente pautadas em shows midiáticos e com atores pré-
escolhidos, já que, mesmo sendo produto do legislativo democraticamente
instituído, as normas constitucionais e o art. 283 do Código de Processo Penal
foram, no ano de 2019, postos em xeque – novamente – no julgamento da
Ação de Declaração de Constitucionalidade 43.
A questão posta em debate transgrediu os ditames de uma racionalida-
de jurídica que padronizava o referencial dos julgamentos (ou assim deveria
fazer) penais pelo Poder Judiciário, alcançando controvérsias cada vez mais
inflamadas sobre a opinião pública e manifestações populares com crivo de
uma discussão que girava em torno de todo contexto de corrupção formado,
desde então, buscando a todo custo incriminar a indignidade do exercício de
funções públicas e/ou atividades governamentais.
O autoritarismo passou a ser a bússola para aplicação e interpretação
de todo suporte normativo existente, ignorando-se premissas medulares do
Estado, muito bem resgatadas pelo Ministro Celso de Mello, em seu voto na
ação em debate:

“O Supremo Tribunal Federal, como órgão de cúpula do Poder Judiciário


nacional e máximo guardião e intérprete da Constituição da República,
garantirá, de modo pleno, às partes de tais processos, na linha de sua longa
e histórica tradição republicana, o direito a um julgamento justo, imparcial
e independente, em contexto que, legitimado pelos princípios estrutu-
rantes do Estado Democrático de Direito, repele a tentação autoritária
de presumir-se provada qualquer acusação criminal e de tratar como se
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culpado fosse aquele em favor de quem milita a presunção constitucional


de inocência.” (BRASIL, ADC 43, 2016)

Nesse sentido, completa o magistrado Paulo Neto em seu estudo so-


bre Judiciário e Opinião Pública, diferenciando os termos independência e
autonomia:

“Não se deve confundir independência com autonomia: a atividade judicial


não é ‘autônoma’, porque o juiz deve ser independente mesmo de seus pró-
prios credos e preconceitos autonomamente aceitos. Está correto, contudo,
reconhecer a conexão dos deveres de independência e imparcialidade. Se
a independência trata de controlar os móveis do juiz frente a influências
estranhas ao direito, proveniente do sistema social, a imparcialidade pode
ser definida como a independência frente às partes e ao objeto do processo.
Quando as influências externas forem tamanhas a ponto de afetar o modo
como o juiz conhece o objeto do processo, a vulneração da independên-
cia acarretará também a vulneração da imparcialidade judicial.” (TROIS
NETO, 2012, p. 13)

Contextualmente, a contaminação com fatores externos, qualquer


que sejam eles, condicionam e tornam parciais as decisões que deveriam se
pautar, única e exclusivamente, na supremacia da garantia efetiva dos direi-
tos e liberdades do Estado Democrático de Direito brasileiro. Aceitar uma
interpretação diversa sobre a presunção de inocência seria como admitir
“compulsoriamente” a instalação de um Estado de Exceção, como defendeu
Agamben (2004, p. 63):

“O estado de exceção é, nesse sentido, a abertura de um espaço em que


aplicação e norma mostram sua separação e em que uma pura força de lei
realiza (isto é, aplica desaplicando) uma norma cuja aplicação foi suspensa.
Desse modo, a união impossível entre norma e realidade, e a consequente
constituição do âmbito da norma, é operada sob a forma da exceção, isto
é, pelo pressuposto de sua relação. Isso significa que, para aplicar uma
norma, é necessário, em última análise, suspender sua aplicação, produzir
uma exceção. Em todos os casos, o estado de exceção marca um patamar
onde lógica e praxis se indeterminam e onde uma pura violência sem logos
pretende realizar um enunciado sem nenhuma referência real.”

Somados a todo viés político, intrínseco ao nosso Estado, a (in)segurança


jurídica causada pelas mudanças de entendimentos, em relação à execução da
pena privativa de liberdade, segue uma cronologia confusa que se baseia em
anseios populares, construções democráticas, ideais antidemocráticos e res-
gaste das garantias, respectivamente. Transitamos entre a Carta Constitucional
promulgada em 1988, o Habeas Corpus 84.078, de relatoria do Ministro Eros
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Grau, julgado em 5 de fevereiro de 2009, o Habeas Corpus 126.292, que,


em 2016, implicou mudança da jurisprudência sedimentada, como exposto
anteriormente, até então sedimentada e, por fim, o julgamento da ADC 43.
Como se não fosse suficiente, a surpresa foi maior quando o Supe-
rior Tribunal de Justiça, no ano de 2017, decidiu em sede de Embargos de
Divergência no Recurso Especial 1.619.087/SC sobre a impossibilidade de
execução da pena restritiva de direito antes do trânsito em julgado da conde-
nação, diferindo-se do que até então havia sido decidido em relação às penas
privativas de liberdade. Ignorou-se o processo lógico de enunciação de regras
implícitas a partir de regras explícitas, em que a sanção mais grave poderia
ser executada com a sentença prolatada em segunda instância, enquanto as de
menor gravidade deveriam aguardar o trânsito em julgado (ÁVILA; SOARES;
BORRI, 2019).
Parece-nos perene a ideia de que em 32 anos o Estado que se constitui
Democrático de Direito e tem como fundamento a soberania, a cidadania
e a dignidade da pessoa humana foi tão vulnerável a contemporizações de
desarmonia social. Da mesma maneira, seria utópico crer que a discussão
a respeito da presunção de inocência se findaria com aclamação popular e
contentamento da sociedade que prega que a “culpa é pressuposto da sanção,
e a constatação ocorre apenas com a preclusão maior” (AURÉLIO, ADC 43,
2016). A preocupação com os efeitos desse descontentamento em momento
algum é indagada, não havendo, evidentemente, nenhuma preocupação com
o problema da crescente população carcerária brasileira.

2.1 A Reação do Autoritarismo: Proposta de Emenda à Constituição


nº 199/2019
O descontentamento com o judiciário brasileiro, em especial com o
Supremo Tribunal Federal, ignorou a decisão acerca da necessidade de pre-
servação da presunção de inocência como direito fundamental do cidadão.
Buscou-se, então, outro caminho que possibilitasse a execução provisória da
pena, chamada assim, até então, de maneira “legal”, recorrendo-se ao Poder
Legislativo como aquele que seria finalmente o “salvador da pátria”.
O ímpeto de mudança se fez tão forte, que já no mês de novembro
de 2019 foi apresentada pelo Deputado Federal Alex Manente – Cidadania/
SP Proposta de Emenda à Constituição nº 199/2019, pela qual se alteram
os arts. 102 e 105, transformando os recursos extraordinário e especial em
ações revisionais de competência originária do Supremo Tribunal Federal e
do Superior Tribunal de Justiça, sob justificativas variadas.
Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal Nº 97 – Ago-Set/2020 – Doutrina
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Segundo ele, haveria necessidade de reconfiguração dos Tribunais Su-


periores, destinatários da proteção e afirmação da Carta da República, além
de uma uniformização da interpretação do direito nacional. Contudo, o ar-
gumento mais latente ao presente estudo direciona-se ao apelo pelo fim dos
recursos extraordinário e especial, vinculando, assim, o trânsito em julgado
das decisões à apreciação prolatada pelas Cortes ordinárias e possibilitando a
efetiva execução imediata das penas como satisfação dos interesses jurídicos
tutelados nas demandas (MANENTE, PEC nº 199, 2019).
Todavia, a manobra legislativa se apresenta como uma transposição do
conceito de trânsito em julgado, afastando do réu, ainda mais, o seu direito
à presunção de inocência e dos Tribunais superiores a responsabilidade por
revisar e uniformizar decisões de todas as Cortes do Brasil, conforme explica
Nucci (2012, p. 912 e 914):

“O recurso extraordinário é excepcional e dirigido ao STF, voltado a garantir


a harmonia da aplicação da legislação infraconstitucional em face da Cons-
tituição Federal, evitando-se que normas constitucionais sejam desautori-
zadas por decisões proferidas nos casos concretos pelos tribunais do país.

(...)

O recurso extraordinário é excepcional e dirigido ao STJ voltado a garantir


a aplicação da legislação infraconstitucional, tendo por foco comparativo o
disposto em leis federais, evitando-se que estas sejam desautorizadas por
decisões proferidas nos casos concretos pelos tribunais do país, além de se
buscar evitar que interpretações divergentes, acerca de legislação federal,
coloquem em risco a unidade e a credibilidade do sistema federativo.”

Com a aprovação da PEC, se afastaria a natureza recursal das ações


dirigidas aos Tribunais Superiores. Em seu lugar, elas passariam a vigorar em
caráter revisional, possibilitando que a pessoa condenada em segunda instância
iniciasse o cumprimento da pena logo após a decisão. Incorreríamos, assim, no
agravamento de adversidades que deveríamos buscar resolver, como as ofensas
diretas às garantias previstas no art. 5º da Constituição Federal, consideradas
cláusulas pétreas. Despreza-se aqui a limitações de ordem material ao Poder
Constituinte Reformador8.

8 Trata-se de garantias ao próprio Estado Democrático de Direito, vez que pretendem assegurar a identidade ideológica
da Constituição, evitando a violação à sua integridade e a desnaturação de seus preceitos fundamentais. Protegem,
em verdade, seu núcleo intangível. Têm efeito positivo, pois não podem ser alteradas através do processo de revisão
ou emenda, sendo intangíveis, logrando incidência imediata. Possuem, noutro prisma, efeito negativo pela sua força
paralisante, absoluta e imediata, vedando qualquer lei que pretenda contrariá-las (NOGUEIRA, 2005, p. 83).
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Ao contrário do que se almeja, o projeto não traz consigo a sonhada


segurança jurídica às ações penais, muito pelo contrário. Primeiramente,
esbarra-se no caso de o réu ser absolvido pelo juízo de primeira instância e
condenado em sede de apelação, por meio de uma sentença reformadora.
Obrigatoriamente, ele começaria a cumprir – imediatamente – sua pena e
restaria prejudicado seu exercício da ampla defesa e do contraditório (art. 5º,
LV, da Constituição Federal). Por outro lado, a incongruência seria ainda mais
evidente nos casos de réus que são, originalmente, julgados pelos tribunais de
segunda instância em razão do foro privilegiado, passando também a cumprir
a pena – de imediato – caso condenados, em flagrante violação à presunção
de inocência.
Portanto, em nosso Estado Democrático esse princípio está estritamente
ligado ao modelo de recursos judiciais, não sendo plausível analisá-los em
separado, sob pena de esbarrarmos em prejuízos irreversíveis, tanto práticos
como legais. A suposta celeridade processual que se almeja não pode ter o
condão de substituir o necessário trâmite das demandas, antecipando uma
condenação completamente passível de reforma.

2.2 A Lei nº 13.964/2019 e suas Violações às Normas Constitucionais


Os debates sobre violência, segurança pública e sistema de justiça crimi-
nal no Brasil carecem, desde muito tempo, de uma análise que se distancia do
populismo penal e suas apostas em estratégias punitivistas, enviesada àqueles
que vivem à margem da sociedade.
Entretanto, no mês de dezembro de 2019 foi sancionada a lei denomi-
nada de “pacote anticrime”, que acabou por apresentar algumas soluções fakes
para problemas que são reais e graves, já que para sua elaboração ignorou-se
a necessidade de realização de um estudo de impacto social e econômico,
bem como a indicação da fonte orçamentária que suportaria os futuros gastos
resultantes de sua formulação (ABRACRIM, et al., 2019)
Como resultados, as alterações legislativas confluíram para a prática de
uma política criminal e penitenciária punitiva e repressiva, quando o que se
esperava eram políticas públicas inclusivas. Nesse sentido, pontua o Instituto
Brasileiro de Ciências Criminais (2019):

“Em uma sociedade carente de mínimos direitos humanos, não é possível


que o Estado brasileiro atue dessa maneira. Trata-se de uma forma de punir
ainda mais a população, atuando mediante uma ‘cegueira estatal deliberada’,
na qual os fins dos seus propósitos escusos de encarceramento em massa
justificam plena e totalmente os meios para tal realização.”
Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal Nº 97 – Ago-Set/2020 – Doutrina
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Com isso, a presunção de inocência, objeto do presente estudo, foi


atingida diretamente pelas alterações promovidas no Código de Processo
Penal, especificamente com a alteração do art. 492, I, e, que passou a vigorar
com a seguinte redação:

“Art. 492. (...)

e) mandará o acusado recolher-se ou recomendá-lo-á à prisão em que se


encontra, se presentes os requisitos da prisão preventiva, ou, no caso de
condenação a uma pena igual ou superior a 15 (quinze) anos de reclusão,
determinará a execução provisória das penas, com expedição do mandado
de prisão, se for o caso, sem prejuízo do conhecimento de recursos que
vierem a ser interpostos;” (BRASIL, 2019)

A inclusão da possibilidade de execução provisória da sentença no


caso das condenações a uma pena igual ou superior a 15 (quinze) anos de
reclusão traz à tona, novamente, a flagrante inconstitucionalidade ao tratar o
réu como culpado, executando antecipadamente a sua pena, sem respeito ao
marco do trânsito em julgado, vez que os procedimentos do Tribunal do Júri
são passíveis de apelação, que podem tratar tanto de questões formais quanto
de mérito e ensejando a possibilidade de um novo júri para um necessário
reexame probatório ou procedimental (ANADEP, 2019).
A flagrante inconstitucionalidade é clara. Reduziu-se o duplo grau de
jurisdição, transpondo inúmeras regras do sistema recursal do tribunal do júri,
sobrepondo o princípio da soberania dos veredictos em relação a normativas
constitucionais.
No caso, aplicando-se a mesma lógica, através de uma análise hipotético-
dedutiva, é possível compreender que se para todos os crimes existe a garantia
do duplo grau de jurisdição; logo, a impossibilidade de execução antecipada
da pena, o problema se torna ainda maior quando isso ocorre logo após a
decisão em primeiro grau, por meio de uma decisão exarada por um corpo
de jurados e de forma imotivada.

3 Dos Reflexos da Execução Provisória e/ou Imediata da Pena no


Encarceramento em Massa
Por óbvio que a ala punitivista do Congresso Nacional, apoiada em
uma parcela da sociedade civil que possui o ímpeto de talião intrínseco,
transformou a execução imediata da pena – com a consequente alteração da
natureza recursal a todo custo – em uma resposta ao subliminar estado de
impunidade que supostamente passou a reinar no país após a declaração de
constitucionalidade do art. 283 do Código de Processo Penal.
Doutrina – Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal Nº 97 – Ago-Set/2020 51

Contudo, aquém das discussões de cunho processual, esbarramos


também uma problemática que traduz com exatidão os reflexos práticos da
aprovação dessa PEC, qual seja: “Em um sistema (prisional) que o Supremo
reconheceu e declarou ser incapaz de observar os direitos humanos mínimos
dos presos, por que nós temos que antecipar a punição?” (CÂMARA DOS
DEPUTADOS, 2019). O sistema carcerário brasileiro ocupa a terceira co-
locação como maior população carcerária do mundo, mergulhado em uma
crise eminente de deficit de vagas.
Sobre o tema, o Professor Ivar A. Hartmann, juntamente com outros
pesquisadores, realizou no ano de 2016 um estudo sobre O Impacto no Sistema
Prisional Brasileiro da Mudança de Entendimento do Supremo Tribunal Federal sobre
Execução da Pena antes do Trânsito em Julgado no HC 126.292/SP, que, desde
logo, demonstrava a sua preocupação a mudança

“Além dos debates teóricos, a decisão de que se trata produz efeitos práticos
cuja mensuração é relevante para a apuração de seus resultados concretos.
Isso, porque ela impacta, principalmente, um número de réus em processos
penais correntes que se encontram em sede de apelação, e que passam, ime-
diata e concomitantemente, a serem passíveis de encarceramento. Ainda,
sendo imediata a possibilidade de execução da pena de prisão destes indi-
víduos (antes adstrita à materialização da coisa julgada), verifica-se também
um potencial impacto desta decisão nas capacidades físicas e institucionais
do sistema carcerário brasileiro.” (HARTMANN et al., 2016)

Nesse mesmo sentido, tornando “efetivo” o cumprimento da pena por


meio de alterações dos arts. 102 e 105, esbarraríamos nos mesmos resultados
práticos, ou seja, o aumento exponencial dos encarcerados, sob pena de co-
lapsar todo sistema prisional.
De acordo com os dados mais recentes coletados pelo BNMP 2.0
(Banco Nacional de Monitoramento de Presos), ferramenta desenvolvida pelo
Conselho Nacional de Justiça com o intuito de mapear a população carcerária
brasileira criando um Cadastro Nacional de Presos, até o mês de março de
2020 o total de pessoas privadas de liberdade no país era de, aproximadamente,
860 mil, dos quais 40,02% (CNJ, 2020) eram presos provisórios. Em con-
traponto, a taxa de ocupação dos presídios brasileiros na mesma época era de
165,72%, considerando a existência de 1.408 estabelecimentos prisionais no
Brasil (CNPM, 2020).
O quadro do encarceramento em massa é alimentado por contradictio in
adjectio, em que a execução provisória e/ou antecipada da pena (se aprovada
a PEC nº 199/2019) terá subjetivamente seu caráter definitivo, uma vez que
tendo sua liberdade suprimida, ela jamais será restituída em caso de absolvição
Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal Nº 97 – Ago-Set/2020 – Doutrina
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ou revisão. Outrossim, ignora-se o risco de vida que aumenta cinco vezes, o


de contrair tuberculose, que é vinte e oito vezes maior e a possibilidade de
contaminação pelo HIV, que chega a ser de sessenta vezes mais (MIRANDA;
RANGEL; MOURA, 2016).
Torna-se um disparate jurídico desconsiderar todos esses riscos sob a
égide do argumento de uma possível indenização estatal (SANTOS, 2019),
ainda muito utópica para aqueles que já foram condenados inocentemente.
A racionalização do sistema penal deveria preocupar-se com a formu-
lação de propostas legislativas que visem amenizar os impactos do crescente
número de presos em relação à quantidade e qualidade dos estabelecimentos
prisionais, não o contrário. É corolário da lógica e da razoabilidade a necessi-
dade de um aumento no número de pessoas colocadas em liberdade, seguindo
o devido processo legal, que necessita de reformas urgentes. O caminho a ser
percorrido não pode admitir voltarmos a um status a quo escorados em uma
superpopulação carcerária, ou, então, viveremos em eterno estado de coisa
inconstitucional9.
Por essas razões, há também a necessidade de delimitações de políticas
criminais a serem aplicadas como políticas públicas. De imediato, importante
entendermos o conceito desta última, de acordo com Maria Paula Dallari
Bucci (2006. p. 39):

“Política pública é o programa de ação governamental que resulta de um


processo ou conjunto de processos juridicamente regulados – processo
eleitoral, processo de planejamento, processo de governo, processo orça-
mentário, processo legislativo, processo administrativo, processo judicial
– visando coordenar os meios à disposição do Estado e as atividades priva-
das, para a realização de objetivos socialmente relevantes e politicamente
determinados. Como tipo ideal, a política pública deve visar a realização
de objetivos definidos, expressando a seleção de prioridades, a reserva de
meios necessários à sua consecução e o intervalo de tempo em que se espera
o atingimento de seus resultados.”

Com as devidas pormenorizações acerca do tema, relevante conside-


rarmos, para o presente estudo, que, no Brasil, uma política criminal é de fato

9 Há, efetivamente, no Brasil, um claro e indisfarçável “estado de coisas inconstitucional” resultante – tal como
denunciado pelo PSOL – da omissão do Poder Público em implementar medidas eficazes de ordem estrutural que
neutralizem a situação de absurda patologia constitucional gerada, incompreensivelmente, pela inércia do Estado
que descumpre a Constituição Federal, que ofende a Lei de Execução Penal e que fere o sentimento de decência
dos cidadãos desta República. O quadro de distorções revelado pelo clamoroso estado de anomalia de nosso siste-
ma penitenciário desfigura, compromete e subverte, de modo grave, a própria função de que se acha impregnada
a execução da pena, que se destina – segundo determinação da Lei de Execução Penal – “a proporcionar condições
para a harmônica integração social do condenado e do internado” (art. 1º) (BRASIL, 2015).
Doutrina – Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal Nº 97 – Ago-Set/2020 53

considerada uma política pública, em que seus projetos devem ser efetivados
como tal, desenhados com o suporte da Constituição Federal, ainda que não
aponte um modelo exato a ser adotado, propiciando a construção por meio
de uma legislação penal ordinária que vise o controle da expansão do jus
puniendi, por meio de movimentos políticos criminais (FERREIRA, 2016)
preocupados em solucionar os maiores problemas enfrentados, no caso, o
encarceramento em massa.
Evidentemente que, a celeridade das alterações almejadas e as políticas
criminais em discussão coadunam com o que se espera de um Processo Penal
que preze pelos direitos humanos e garantia dos direitos fundamentais. O au-
mento no número de vagas seria a solução mais adequada, vez que os números
relacionados à taxa de ocupação nos presídios são assustadores; entretanto,
sendo esta uma visão ainda muito utópica, se faz necessário – com urgência –
que as normas constitucionais sejam respeitadas, principalmente em relação
à presunção de inocência, devendo servir de suporte para a criação de novas
leis, como deveria ter sido feito com a Lei nº 13.964/2019, especificamente
em seu art. 492, I, e, do Código Processual Penal.

Considerações Finais
A ignorância acerca da norma constitucional da presunção de inocên-
cia com a execução provisória e/ou antecipada da pena após condenação em
segunda instância traz à tona a problemática do encarceramento em massa,
que, por sua vez, merece uma atenção especial dos operadores do direito.
As diversas considerações suscitadas sobre o precedente levantado pelo
habeas corpus demonstraram que não há qualquer racionalidade, tampouco
preocupação constitucional, com a ideia basilar da presunção de inocência.
Seria como se a semântica dada ao inciso LVII do art. 5º durante 32 anos tivesse
sido alterada por uma interpretação que ignorasse totalmente a condução do
processo penal na sua fase de execução, causando preocupação aos atores do
direito penal e processual penal, visto que esta deveria ser aplicada em nosso
ordenamento como a ultima ratio.
Nesse mesmo raciocínio, a inovação legislativa trazida pelo Projeto de
Lei nº 199/2019 tenta, por óbvio, afastar a natureza recursal que possibilita o
exercício da ampla defesa e do contraditório em sede dos tribunais superiores,
substituindo-a por um caráter revisional que demonstra latentes lacunas a essa
alteração, no plano normativo, além de ser absolutamente equivocada, vez
que emenda constitucional não tem o condão de modificar cláusula pétrea,
tornando impossível a alteração do conceito de presunção de inocência. Para
Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal Nº 97 – Ago-Set/2020 – Doutrina
54

isso, seria necessária uma nova Constituinte, fato que se demonstra utópico
na atual conjuntura.
No mesmo sentido, a Lei nº 13.964/2019 também trouxe inovações que
se chocam diretamente com o objeto do presente estudo, vez que a possibilida-
de de execução provisória da pena no caso das condenações a uma pena igual
ou superior a 15 (quinze) anos em Tribunal do Júri ignora o marco final do
trânsito em julgado, além do duplo grau de jurisdição, possibilitando a prisão
logo após a decisão de um corpo de jurado, que é feita de forma imotivada.
Noutras palavras, a possibilidade de cumprimento antecipado da pena
sem o trânsito em julgado ignora o marco temporal expresso de forma clara
no art. 5º, sob justificativas que não se atentam à mutilação arbitrária que
estão causando ao “redefinirem” esse conceito. Nessa mesma linha, segue a
alteração proposta, já que estaríamos diante de uma mutação do conceito de
trânsito em julgado, sendo agora trazido para as segundas instâncias.
Somados a isso, os efeitos práticos dessas inovações revelam-se como os
verdadeiros problemas a serem enfrentados pelas políticas criminais, uma vez
que já somos a terceira maior população carcerária do mundo, carecendo de
urgentes mudanças de paradigmas sob pena de entrarmos em um colapso total.
Ao ignorar o valor da pessoa humana inserida no cárcere, legitimaríamos
um discurso motivado pelo poder punitivo, propiciando todas as condições
para a elaboração de políticas criminais baseadas na exclusão e destituição da
condição de cidadão, passando a considerá-los “inimigos” frente a uma guerra
eterna que permitiria a execução da pena (de morte) sem o devido processo
(CARVALHO, 2009).
Com efeito, as alterações legislativas propostas pelos movimentos
políticos criminais apesar de ignoradas pela Lei nº 13.964/2019 são exemplos
práticos que trazem na sua essência uma presteza quanto à procedimentali-
zação nos casos de progressão de regime. Além disso, com a impossibilidade
de regressão de regime ao menos gravoso que o seu inicial e a viabilidade
de substituição da pena por prisão albergue domiciliar sempre que a pessoa
presa estiver em regime prisional mais gravoso que o imposto judicialmente
por alegada ausência de vagas no regime prisional demonstra-se a preocu-
pação com a diminuição dos números alarmantes relacionados ao sistema
carcerário.
Portanto, a presunção de inocência constitui dispositivo indispensável
à concretização do devido processo penal, devendo servir de bússola ao des-
preparo causado pelos anseios do poder punitivista, seja no poder Judiciário
ou no poder Legislativo.
Doutrina – Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal Nº 97 – Ago-Set/2020 55

TITLE: The presumption of innocence in Brazil: an analysis from Habeas Corpus 84,078 to a proposal
by PEC no. 199/2019.

ABSTRACT: Based on the presumption of innocence principle, we aspire, through an inductive approach
and a bibliographic revision technique, to analyze the consequences of its inapplicability and how its
reflexes contribute to the increasing numbers of provisional arrests in Brazil, while also presenting pos-
sible solutions that could reduce the mass incarceration in the country. For this, we will carry out a study
following the democratic chronology that passes between the promulgation of the Federal Constitution
of 1988, the petition of Habeas Corpus 84,078 and 126,292, the judgment of the ADC 43, the Proposal
for Constitutional Amendment no. 199/2019 and, finally, Law no. 13,964/2019, in order to demonstrate
the mutilations that the expression res judicata has suffered over the years and how this would influence
in the presumption of Innocence.

KEYWORDS: Innocence. Judicial Appeal. Incarceration. Overcrowding.

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Recebido em: 29.05.2020


Aprovado em: 12.08.2020
Doutrina

O Dilema da Triagem Médica nos Casos de


Pacientes Diagnosticados com Covid-19:
Reflexos Penais de uma Escolha de Sofia
Matheus Barbosa Melo
Mestre em Direito Penal pela Pontifícia Universidade Católica
de São Paulo (PUC-SP); Pós-Graduado em Direito
Empresarial pela Fundação Getulio Vargas de São Paulo (GV-
Law); Pós-Graduado em Direito Penal e Processo Penal pela
PUC-SP e em Direito Penal Econômico pela Universidade
de Coimbra em parceria com o Instituto Brasileiro de Ciências
Criminais; Graduado em Direito pelo Centro de Ensino
Superior de Maceió; Chefe de Gabinete na Procuradoria
Regional da República da 3ª Região.

Tiago Caruso Torres


Doutorando em Direito pela Pontifícia Universidade Católica
de São Paulo (PUC-SP); Mestre em Direito pela PUC-SP;
Pós-Graduado em Compliance pela Fundação Getulio Vargas
(GV-Law); Graduado em Direito pela PUC-SP. Foi agraciado
com período de pesquisa na Ludwig-Maximilians Universität, em
Munique, Alemanha (LMU), durante a realização do Mestrado;
Participou da Escola de Ciências Criminais (CEDPAL) na
Georg-August-Universität, em Göttingen, Alemanha (GAU);
Professor Universitário em Cursos de Pós-Graduação; Parecerista
do Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais
(IBCCRIM); Advogado atuante principalmente nas subáreas de
Direito Penal Econômico e Empresarial.

RESUMO: A velocidade de contaminação pelo novo coronavírus é incompatível


com a disponibilidade de leitos nas Unidades de Tratamento Intensivo (UTIs)
nos hospitais, sejam públicos ou privados. Médicos e profissionais da saúde
precisarão escolher qual paciente terá tratamento melhor do que o outro, que
não foi internado na UTI. Quem não for internado na UTI pode morrer por
não ter recebido auxílio de aparelhos respiradores a tempo. Sem critérios claros
de priorização de leitos, as decisões médicas poderão ter reflexos penais. Esse
problema será enfrentado a partir da solução dada pela teoria do delito a um caso
hipotético concreto, desde os pressupostos da tipicidade. Encerraremos o artigo
com a solução mais adequada dogmaticamente, ressalvando as dificuldades de
ponderação quando há conflito de deveres.

PALAVRAS-CHAVE: Decisão Médica. Coronavírus. Conflito de Deveres.


Estado de Necessidade.

SUMÁRIO: 1 Introdução; 1.1 Breve Panorama da Pandemia da Covid-19; 1.2 O


Problema: o Dilema Decorrente da Triagem Médica. 2 A Conduta do Médico.
Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal Nº 97 – Ago-Set/2020 – Doutrina
58

3 A Imputação de Responsabilidade Penal ao Médico por Omissão Imprópria;


3.1 A Tipicidade Objetiva; 3.1.1 A Posição de Garantidor do Médico; 3.1.2 O
Dever de Agir; 3.1.3 O Poder de Agir; 3.1.4 A Relação de Causalidade na Omissão
do Médico e a Imputação Objetiva do Resultado Morte do Paciente B; 3.2 A
Tipicidade Subjetiva: o Dolo na Omissão do Médico em Relação ao Paciente
B; 3.3 A Antijuridicidade; 3.3.1 O Estado de Necessidade; 3.3.2 O Estado de
Necessidade do Médico em Relação aos Pacientes A e B. 4 Possível Solução do
Problema e a Questão da Culpabilidade. 5 Algumas Conclusões Possíveis. 6
Referências Bibliográficas.

1 Introdução

1.1 Breve Panorama da Pandemia da Covid-191


O grau de avanço dos casos de contaminação pelo novo coronavírus
(SARS-CoV-2), inicialmente no território chinês, motivou a declaração de
Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional – ESPII pela Organização
Mundial de Saúde – OMS, em 30 de janeiro de 20202.
Diante da constatação de mais de cem mil casos e da extensão da doença
por mais de cem países, a OMS anunciou, em 11 de março de 2020, que a
Covid-19 é caracterizada como uma pandemia3.
No Brasil, o Ministério da Saúde (MS), pela edição da Portaria MS nº
188, de 3 de fevereiro de 20204, (i) declarou Estado de Emergência de Saúde Pública
de Importância Nacional – ESPIN, nos termos do Decreto nº 7.616, de 17 de
novembro de 2011; (ii) definiu o Centro de Operações de Emergências em
Saúde Pública (COE-nCoV) como mecanismo nacional de gestão coordenada
de respostas à emergência na esfera nacional, sob o comando da Secretaria
de Vigilância em Saúde – SVS/MS; e, posteriormente, (iii) divulgou o Plano
de Contingência Nacional para Infecção Humana pelo novo coronavírus,
documento essencial para a definição das estratégias de atuação5.

1 A pandemia decorrente do Covid-19 ainda não acabou. Portanto, as informações ora tratadas se referem ao cenário
estabelecido até maio/2020, data da elaboração do presente artigo. O panorama pode mudar no decorrer do tempo.
2 Disponível em: https://www.paho.org/bra/index.php?option=com_content&view=article&id=6100:oms-declara-
emergencia-de-saude-publica-de-importancia-internacional-em-relacao-a-novo-coronavirus&Itemid=812. Acesso
em: 8 maio 2020.
3 Disponível em: https://www.paho.org/bra/index.php?option=com_content&view=article&id=6120:oms-afirma-
que-covid-19-e-agora-caracterizada-como-pandemia&Itemid=812. Acesso em: 8 maio 2020.
4 Disponível em: http://www.in.gov.br/web/dou/-/portaria-n-188-de-3-de-fevereiro-de-2020-241408388. Acesso em:
8 maio 2020.
5 Disponível em: http://www.in.gov.br/web/dou/-/portaria-n-188-de-3-de-fevereiro-de-2020-241408388. Acesso em:
8 maio 2020.
Doutrina – Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal Nº 97 – Ago-Set/2020 59

Além disso, foi promulgada a Lei nº 13.979, em 6 de fevereiro de 20206,


regulamentada pelos Decretos Federais ns. 10.282/20207 e 10.288/20208, com
vigência restrita ao período de decretação de estado de emergência de saúde
pública de importância internacional pela OMS, prevendo uma série de
mecanismos de atuação para as autoridades de vigilância da saúde, tais como
medidas de isolamento, quarentena, requisição de bens e serviços, hipóteses
de dispensa de licitação, entre outros.
A Lei nº 13.979/2020 é, ainda, regulamentada pela Portaria MS nº 356,
de 11 de março de 20209, e pela Portaria Interministerial nº 5, de 17 de março
de 202010, que também dependem de novas complementações de decretos e re-
gulamentos específicos sobre medidas de isolamento e quarentena, bem como
de prescrição médica ou de recomendação de agente de vigilância sanitária.
Como a tomada de providências para o resguardo da saúde pública é
de competência comum de todos os entes federativos11, além das normas de
abrangência nacional, vários Estados e Municípios já elaboraram decretos para
tratar da matéria12. No Estado de São Paulo, por exemplo, o Decreto Estadual
nº 64.881, de 22 de março de 202013, seguindo a mesma linha dos demais,
também instituiu medidas de combate ao coronavírus em todo o Estado, em
especial, de restrição de atividades econômicas.
Na esfera do Direito Penal, essa “cascata de normas” traz sérios proble-
mas para a imputação da prática de crimes, desde aqueles que descumprem
medida sanitária preventiva até aqueles que expõem a vida de terceiros a risco
de contaminação14, porque fica difícil ao sujeito compreender o conteúdo da

6 Disponível em: http://www.in.gov.br/web/dou/-/lei-n-13.979-de-6-de-fevereiro-de-2020-242078735. Acesso em: 8


maio 2020.
7 Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2020/Decreto/D10282.htm. Acesso em: 8 maio 2020.
8 Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/Decreto/D10288.htm. Acesso em: 8 maio
2020.
9 Disponível em: http://www.in.gov.br/en/web/dou/-/portaria-n-356-de-11-de-marco-de-2020-247538346. Acesso
em: 11 maio 2020.
10 Disponível em: http://www.in.gov.br/en/web/dou/-/portaria-interministerial-n-5-de-17-de-marco-
de-2020-248410549. Acesso em: 11 maio 2020.
11 V. decisão liminar do STF na ADI 6.341, Rel. Min. Marco Aurélio, TP, j. 15.04.2020.
12 A propósito, fazendo um recorte para o Estado de São Paulo, o escalonamento de normas relacionadas ao Covid-19
pode ser encontrado no Governo Federal, no site: http://www.planalto.gov.br/CCIVIL_03/Portaria/quadro_portaria.
htm; no Estado de São Paulo, no site: https://www.saopaulo.sp.gov.br/spnoticias/decretos-do-governo-de-sp-com-
medidas-de-prevencao-e-combate-ao-novo-coronavirus/; no Município de São Paulo, no site: http://legislacao.
prefeitura.sp.gov.br/temas?busca=CORONAV%C3%8DRUS/COVID%2019%20(GERAL); no CNJ, no site: https://
www.cnj.jus.br/coronavirus/atos-normativos/; no TJSP, no site: http://www.tjsp.jus.br/Coronavirus/Coronavirus/
Comunicados; no TRF-3, no site: https://www.trf3.jus.br/atos-normativos/Home/ListaResumida/1?np=0; e no
ENFAM, no site: https://www.enfam.jus.br/banco-de-legislacoes/. Todos acessados em 8 maio 2020.
13 Disponível em: https://www.saopaulo.sp.gov.br/wp-content/uploads/2020/03/decreto-quarentena.pdf. Acesso em:
8 maio 2020.
14 Essas duas condutas são crimes e estão previstas nos arts. 268 e 132, ambos do Código Penal.
Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal Nº 97 – Ago-Set/2020 – Doutrina
60

proibição penal, que depende do conhecimento de várias portarias, regula-


mentos e decretos que complementam a lei em si15.
Contudo, não é só o cidadão comum que pode ser surpreendido com a
acusação da prática de crime nesse contexto. Médicos, e aqui estão abrangidos
todos os profissionais de saúde que decidem sobre as internações ou recebem
pacientes diagnosticados com Covid-19, também se situam em um campo
minado, sem saber como a tomada dessa decisão pode vir a deflagrar eventual
imputação de responsabilidade penal.

1.2 O Problema: o Dilema Decorrente da Triagem Médica


Não obstante a intensa produção legislativa acerca do tema, não há
regulamentação para salvaguardar a conduta do médico no tratamento de
doentes graves, quando, havendo insuficiência de leitos, o profissional tem
de escolher quem, dentre os infectados, deve ser tratado de forma intensi-
va16. Não há regramento suficiente para disciplinar essa verdadeira “escolha
de Sofia”17. Na Itália, na Espanha e no Rio de Janeiro essa situação já é uma
realidade relatada pela mídia18.
Nesse pequeno estudo, partiremos do seguinte caso hipotético: A e B
são dois pacientes de mesma faixa etária que não apresentam doenças crô-
nicas. Ambos estão diagnosticados com coronavírus em situação grave. Para
sobreviverem, precisam ser internados na Unidade de Tratamento Intensivo
(UTI) de determinado hospital, a fim de receberem auxílio dos equipamentos
respiradores. Essa é a única opção para (tentar) salvá-los da morte. Todavia,
nesse hospital há apenas um único leito de UTI disponível. Aquele que não for
urgentemente internado nessa unidade intensiva morrerá. O médico M, que
trata de ambos os pacientes, escolhe que A deve ser internado. Com o passar dos
dias, o paciente A apresenta melhora no seu quadro de saúde e não corre mais

15 Há um bom diagnóstico desses problemas em: MONTENEGRO, Lucas; VIANA, Eduardo. Coronavírus: um diag-
nóstico jurídico-penal. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/penal-em-foco/coronavirus-
um-diagnostico-juridico-penal-23032020. Acesso em: 11 maio 2020.
16 Ainda não há norma que determine quais são os critérios que o médico deve adotar na triagem de pacientes diag-
nosticados com coronavírus. Há apenas algumas diretrizes, como a Recomendação CREMEPE nº 05/2020. De todo
modo, adiante-se que existe dever jurídico do médico tratar os pacientes que estão efetiva e diretamente sob os seus
cuidados, conforme se verá a seguir. Nesse sentido, v. BOBBIO, Norberto. Teoria da norma jurídica. Bauru: Edipro,
2001. p. 95-102.
17 “A escolha de Sofia” é uma expressão originada do romance de William Styron, publicado em 1979. Narra a história
de uma polonesa que, levada ao campo de concentração de Auschwitz juntamente com seus dois filhos, tem a opção
de salvar apenas um deles da execução, sob pena de, na ausência dessa escolha, ambos serem mortos.
18 Por exemplo: https://exame.abril.com.br/brasil/dois-doentes-uma-vaga-e-nenhum-protocolo-o-dilema-medico-
na-covid-19/; https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/bbc/2020/03/13/coronavirus-medicos-podem-ter-
de-fazer-escolha-de-sofia-por-quem-vai-viver-italia.htm; https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2020/04/22/
medico-do-rio-diz-ter-so-um-respirador-para-30-pacientes-a-gente-acaba-tendo-que-escolher.ghtml; e https://
www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2020/04/rio-ja-tem-espera-de-dias-por-uti-e-medicos-escolhem-quem-usa-
respirador. Acessados em: 25 maio 2020.
Doutrina – Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal Nº 97 – Ago-Set/2020 61

risco de morte. O paciente B, que não foi internado na UTI e não recebeu o
auxílio dos respiradores, morreu por Covid-19 dois dias após a decisão médica.
O médico M, nesse caso narrado, cometeu um crime e pode ser pe-
nalmente punido pela morte do paciente B?

2 A Conduta do Médico
Há duas formas elementares de condutas que ensejam o fato punível: a
comissiva e a omissiva. A comissão consiste na conduta que infringe o coman-
do proibitivo (o sujeito desfere uma facada na vítima), enquanto a omissão é o
descumprimento do mandamento contido no tipo (o pai da criança, ao vê-la
nadar para o fundo do mar, nada faz para salvá-la do afogamento)19.
Quando há resultado morte, o principal candidato à figura típica é o
crime de homicídio simples, previsto no art. 121, caput, do Código Penal20 e é
com ele que trabalharemos para tentar resolver o problema exposto no item 1.2.
Nesse caso hipotético, o médico M toma a decisão de internar e (tentar)
salvar o paciente A e de não internar o paciente B, porque só há um leito de
UTI disponível naquele momento. Logo, ainda que a circunstância não te-
nha permitido a internação simultânea de ambos, certo é que M tomou uma
decisão que, em relação ao paciente B, corresponde a uma conduta omissiva
e essa constatação é prévia à incidência da própria lei penal21.
Como essa omissão do médico gerou um resultado lesivo (a morte do
paciente B), essa conduta pode ser penalmente relevante. Trata-se de hipótese
de responsabilidade penal por omissão imprópria. Essa é uma forma especial
de realização da conduta típica22, que encontra seus pressupostos no art. 13,
§ 2º, do Código Penal23.

3 A Imputação de Responsabilidade Penal ao Médico por Omissão


Imprópria
Cada tipo de delito possui pressupostos próprios de punibilidade. A
forma de se imputar a responsabilidade penal em um crime comissivo doloso
é diferente do culposo. Assim também ocorre na omissão imprópria.

19 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral. São Paulo: Saraiva. 2012. p. 277-278.
20 “Art. 121. Matar alguém: pena – reclusão, de seis a vinte anos.”
21 ROXIN, Claus. Derecho penal: parte general. Madrid: Civitas, 2014. tomo II. p. 754.
22 Sobre a especialidade dessa forma de imputação, que se dirige somente a determinadas pessoas, os garantidores, v.
TAVARES, Juarez. Teoria dos crimes omissivos. São Paulo: Marcial Pons, 2018. p. 307-311.
23 “§ 2º A omissão é penalmente relevante quando o omitente devia e podia agir para evitar o resultado. O dever de
agir incumbe a quem: a) tenha por lei obrigação de cuidado, proteção ou vigilância; b) de outra forma, assumiu a
responsabilidade de impedir o resultado; c) com seu comportamento anterior, criou o risco da ocorrência do resul-
tado.”
Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal Nº 97 – Ago-Set/2020 – Doutrina
62

Essa forma especial de realizar a conduta típica, a omissão imprópria,


tem como pressupostos: a) no tipo objetivo, (i) a existência de uma situação
típica e a ocorrência do resultado, (ii) a ocupação da posição de garantidor
pelo sujeito, (iii) a omissão da ação mandada (dever de agir), mesmo havendo
capacidade de agir (poder de agir), (iv) o nexo de causalidade entre a omissão
da ação esperada e o resultado ocorrido, e (v) a imputação objetiva desse re-
sultado; b) no tipo subjetivo, (i) a presença do dolo no momento da omissão
da conduta, ou (ii) o desatendimento de deveres objetivos de cuidado por
negligência, imprudência ou imperícia; c) na antijuridicidade, a ausência de
causas de justificação da conduta; e, d) na culpabilidade, a imputabilidade, o
conhecimento do injusto e a exigibilidade de comportamento diverso24.
Como a teoria do delito fixa os pressupostos da punibilidade em uma
via de mão única, só se pode avançar se estiver sido preenchido o pressupos-
to anterior. Ausente qualquer um desses pressupostos, ninguém pode ser
penalmente punido.
Para resolver o caso exposto no item 1.2, deve-se começar pela análise
dos pressupostos da tipicidade objetiva. Se preenchidos, segue-se, então, no
caminho dado pela teoria do delito para a tipicidade subjetiva, antijuridicidade
e culpabilidade.

3.1 A Tipicidade Objetiva


No caso hipotético exposto, estão claras a existência de uma situação tí-
pica e a ocorrência de um resultado lesivo. O bem jurídico vida está em perigo,
porque A e B estão em estado grave decorrente do coronavírus e dependem de
internação na UTI para receberem auxílio dos aparelhos respiradores, como
forma de tentar escapar da morte. Há também um resultado lesivo evidente,
a morte do paciente B por Covid-19.

3.1.1 A Posição de Garantidor do Médico


Como forma de proteger determinados bens jurídicos, o ordenamento
jurídico onera alguns indivíduos com o dever de ocupar posição de guardiões
desses bens.
Essas pessoas assumem função especial de garantir que determinados
bens jurídicos, em certas situações, não sejam lesionados nem ameaçados de
lesão. Se falham nessa missão, quando podiam ter assim agido, a ordem jurí-
dica equipara a omissão à ação que produz o resultado lesivo25. Assim ocorre

24 HILGENDORF, Eric; VALERIUS, Brian. Direito penal: parte geral. São Paulo: Marcial Pons, 2019. p. 328 e ss.
25 SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito penal: parte geral. 7. ed. Florianópolis: Empório do Direito, 2017. p. 205-206.
Doutrina – Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal Nº 97 – Ago-Set/2020 63

com a mãe que deixa de alimentar seu filho recém-nascido, que está sob seus
cuidados, até que ele venha a óbito. A mãe tem um dever especial de agir
para proteger a vida do seu filho recém-nascido que está sob seus cuidados,
livrando-o do perigo e do risco de morte por inanição26.
Médicos também são garantidores de bens jurídicos dos seus pacientes,
como a vida e a integridade física destes27. O médico plantonista que, podendo,
deixa de atender um paciente necessitado e não lhe impede a morte, responderá
por homicídio e não apenas por omissão de socorro28.
A posição de garantia dos médicos não decorre da lei ou do contrato,
sob pena de se alargar demais o alcance do dever de agir desses profissio-
nais – pense-se, por exemplo, na hipótese do médico que, embora tenha se
comprometido a operar o paciente, não pode comparecer no dia da cirurgia e
outro médico é quem realiza os procedimentos; caso o paciente sofra alguma
lesão ou morra durante a cirurgia por erro do segundo médico, o primeiro
médico não pode ser penalmente responsabilizado por omissão imprópria.
O fundamento material da posição de garantidor dos médicos reside na
assunção fática desse dever de proteção na situação concreta29. Isso se inicia com
a promessa de atendimento, segue durante a realização da cirurgia, de um exa-
me para diagnóstico de doença, ou do tratamento que realiza no paciente com
determinado medicamento, etc., e cessa apenas quando o tratamento tiver sido
concluído ou quando a relação médico-paciente, contratual ou não, tenha sido
desfeita30.
Tal critério, que carrega fundamento material da posição de garanti-
dor , inclui o médico plantonista ou o socorrista que faticamente assumiu a
31

obrigação de atender os pacientes necessitados que, naquela situação, estão


efetivamente sob os seus cuidados.
A posição de garantidor visa suprir a ausência de um tipo específico para
a proteção de bens jurídicos já tutelados pelo ordenamento jurídico-penal32.

26 MIR PUIG, Santiago. Direito penal: fundamentos e teoria do delito. São Paulo: RT, 2007. p. 275-278.
27 CONDE, Francisco Muñoz. Teoría general del delito. Bogotá: Temis, 2001. p. 24.
28 TAVARES, Juarez. Teoria dos crimes omissivos. São Paulo: Marcial Pons, 2012. p. 330.
29 Não se desconhece haver previsão legal de deveres médicos, como aqueles previstos no Código de Ética Médica,
que serão abordados no próximo tópico. Todavia, essa previsão legal não forma sozinha o dever jurídico de agir do
médico como garantidor, para fins penais, sob pena de violação do princípio da legalidade penal.
30 TAVARES, Juarez. Teoria dos crimes omissivos. São Paulo: Marcial Pons, 2012. p. 326, 329-330.
31 Sobre as fontes formais e materiais da posição de garantidor e a viabilidade do acolhimento das fontes materiais em
nosso ordenamento jurídico penal, ver, por todos: ESTELLITA, Heloisa. Responsabilidade penal de dirigentes de empresas
por omissão: estudo sobre a responsabilidade omissiva imprópria de dirigentes de sociedades anônimas, limitadas e
encarregados de cumprimento por membros de empresa. São Paulo: Marcial Pons, 2017. p. 81-88.
32 PASCHOAL, Janaina. Ingerência indevida: crimes comissivos por omissão e o controle pela punição do não fazer.
Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2011. p. 47.
Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal Nº 97 – Ago-Set/2020 – Doutrina
64

No ordenamento jurídico brasileiro, a posição de garantidor do médico está


prevista no art. 13, § 2º, alínea b, do Código Penal33.
Dessa forma, o fundamento para a punição da omissão do médico
advém do descumprimento da conduta que era juridicamente devida e espe-
rada desses profissionais, dada a relevância desse ofício e da confiança que os
pacientes nele depositam34.

3.1.2 O Dever de Agir


a) O dever jurídico de agir do médico
Forma parte dos pressupostos da responsabilidade penal por omissão im-
própria o dever de agir e o poder de agir para evitar o resultado lesivo. Esse dever,
como visto, é especial e os médicos, em determinadas situações, dada a expectativa
e a confiança decorrente da sua atividade profissional, assumem faticamente a
posição de proteger a vida dos pacientes que efetivamente estão sob seus cuidados.
O que faz esses elementos existirem quando o médico está a tratar do
seu paciente advém também de outras fontes indiciárias desse dever jurídico,
como o Código de Ética Médica. O Código de Ética Médica foi instituído pela
Resolução CFM nº 2.217/2018 e modificado pelas Resoluções ns. 2.222/2018
e 2.226/2019, também do Conselho Federal de Medicina35.
Essa normativa estabelece uma série de preceitos a serem cumpridos pela
atividade da medicina. Por exemplo, no Capítulo I, é esclarecido que “o alvo
de toda a atenção do médico é a saúde do ser humano, em benefício da qual
deverá agir com o máximo de zelo e o melhor de sua capacidade profissional
e que o médico guardará absoluto respeito pelo ser humano e atuará sempre
em seu benefício, mesmo depois da morte”.
A atividade médica, todavia, não está isenta de responsabilidade, como
prevê o Capítulo III do próprio Código de Ética Médica. Já no primeiro ar-
tigo, o referido código veda ao médico “causar dano ao paciente, por ação ou
omissão, caracterizável como imperícia, imprudência ou negligência. Além
disso, veda ao profissional deixar de atender em setores de urgência e emer-
gência, quando for de sua obrigação fazê-lo, mesmo respaldado por decisão
majoritária da categoria” (art. 7º), “deixar de atender paciente que procure
seus cuidados profissionais em casos de urgência ou emergência quando não
houver outro médico ou serviço médico em condições de fazê-lo” (art. 33),
e “abandonar paciente sob seus cuidados” (art. 36), excluindo, entretanto,
situações excepcionais, porque de ninguém se espera um agir sobre-humano.

33 “O dever de agir incumbe a quem: (...) b) de outra forma, assumiu a responsabilidade de impedir o resultado.”
34 SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito penal: parte geral. 7. ed. Florianópolis: Empório do Direito, 2017. p. 208.
35 Disponível em: https://sistemas.cfm.org.br/normas/visualizar/resolucoes/BR/2018/2217. Acesso em: 8 maio 2020.
Doutrina – Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal Nº 97 – Ago-Set/2020 65

Dentre esses vários deveres médicos, destaca-se, de maneira geral, o


dever de assistência, que engloba desde o dever prévio de preparação do próprio
médico, abrange o dever de tratamento, de elaboração de diagnóstico, de
vigilância e de acompanhamento do paciente, e alcança até o pós-tratamento
com a transferência do corpo, em caso de morte. O dever médico de assis-
tência começa com o contato inicial com o paciente ou com a entrada dele
no nosocômio e só termina após findo o seu tratamento, seja pela cura, seja
pelo reconhecimento da irreversibilidade do seu estado, por sua morte, ou,
ainda, porque finda a relação médico-paciente por outras circunstâncias, como
as contratuais36. Trata-se de um verdadeiro múnus público com o objetivo de
proteção da saúde dos pacientes37.
A promoção da saúde é, portanto, o centro da orientação médica tradi-
cional, conforme se colhe da Declaração de Genebra da Associação Médica
Mundial, de 194838, que consagra o médico como profissional essencial para
cuidar das pessoas. Ele é o único profissional capaz de decidir quais as técnicas
serão utilizadas para o tratamento do ser humano, de modo a promover o
bem deste (bonum facere, princípio da beneficência)39.
Portanto, essas disposições normativas indicam deveres genéricos do
médico que somente assumirá a posição de garantidor no caso concreto quando
tiver, sob seus cuidados, um paciente em tratamento ou, mais especificamente
para o problema tratado nesse artigo, quando assumir a responsabilidade de agir
para tentar salvar a vida de determinado paciente que está sob os seus cuidados.
b) A ação mandada e esperada do médico para (tentar) salvar a vida dos pacientes
AeB
Como se observa, a expectativa e a confiança depositada no médico pelos
seus pacientes são advindas também dos princípios e deveres impostos para
essa classe de profissionais. Logo, seus erros também podem estar sujeitos à
responsabilização, inclusive, criminal.
É esperado que o médico atue para (tentar) salvar a vida dos seus pa-
cientes, sem piorar a situação clínica destes, escolhendo os melhores dentre
os tratamentos possíveis para evitar ou a ameaça de lesão ou o agravamento
do risco à vida e à integridade física dessas pessoas.

36 RODRIGUES, Álvaro da Cunha Gomes. Responsabilidade médica em direito penal. Coimbra: Almedina, 2007. p. 51-52.
37 MIRANDA-SÁ Jr., Luiz Salvador de. Uma introdução à medicina. Brasília: CFM, 2013. p. 128-136.
38 Disponível em: https://amb.org.br/wp-content/uploads/2019/10/Declarac%CC%A7a%CC%83o-de-Genebra-2017-
Tradu%C3%A7%C3%A3o-Dr-Miguel.pdf. Acesso em: 10 maio 2020.
39 GRECO, Luís; SIQUEIRA, Flávia. Promoção da saúde ou respeito à autonomia? Intervenções cirúrgicas, exercício
de direito e consentimento no direito penal médico. In: Estudos em homenagem ao Prof. Doutor Manuel da Costa Andrade.
Coimbra: Instituto Jurídico FDUC, 2017. v. 1. p. 644-645.
Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal Nº 97 – Ago-Set/2020 – Doutrina
66

No caso hipotético já mencionado, os pacientes A e B confiam e esperam


do médico M ação emergencial para tentar salvá-los da morte, internando-os
na UTI, onde poderão receber auxílio dos equipamentos respiradores.
A ordem jurídica, a partir das normas que regulam a atividade profis-
sional da classe médica e com base na assunção fática desse profissional no
tratamento da doença dos pacientes A e B, espera desse médico o cumprimento
do seu dever de agir para proteger a vida desses dois pacientes que estão sob
seus cuidados, conforme decorre do art. 13, § 2º, alínea b, do Código Penal.
Concretamente, a ação mandada e esperada pela ordem jurídica, nesse
caso concreto, é a internação dos pacientes A e B na UTI para receberem o
auxílio dos equipamentos respiradores, viabilizando uma chance de salva-
mento da vida dessas duas pessoas. Especificamente em relação ao paciente
B, o médico M se omitiu no cumprimento dessa ação mandada e esperada
pela ordem jurídica.

3.1.3 O Poder de Agir


a) A possibilidade jurídica de agir do médico
Embora o médico tenha o dever jurídico de agir, tal pressuposto não
basta para afirmar a sua punição por omissão imprópria. É preciso que o mé-
dico, no caso concreto, tenha poder de agir para evitar o resultado, conforme
requer a segunda parte do art. 13, § 2º, do Código Penal.
O poder de agir corresponde à capacidade físico-real do sujeito agir para
evitar o resultado nas circunstâncias do caso concreto40, sem que a realização
dessa ação implique em risco pessoal para o sujeito ou para terceiro41, porque
não se espera dele heroísmo42.
A ação exigida é determinada pelas circunstâncias objetivas da situação
de perigo (a situação típica, já tratada anteriormente): vendo alguém ferido em
via pública, o sujeito tem a possibilidade de, sem risco algum, acionar o servi-
ço de emergência médica. A execução da ação exigida deve ser pessoalmente
possível para o sujeito, excluindo-se as situações de impossibilidade objetiva
(se um médico está em São Paulo é impossível que ele execute uma cirurgia
para salvaguardar a vida de um paciente que está internado em Maceió – há
uma limitação espacial-objetiva) e de incapacidade subjetiva, relacionada com

40 ESTELLITA, Heloisa. Responsabilidade penal de dirigentes de empresas por omissão: estudo sobre a responsabilidade
omissiva imprópria de dirigentes de sociedades anônimas, limitadas e encarregados de cumprimento por membros
de empresa. São Paulo: Marcial Pons, 2017. p. 81.
41 MARTINELLI, João Paulo Orsini; BEM, Leonardo Schimitt de. Lições fundamentais de direito penal. São Paulo: Saraiva,
2019. p. 578.
42 GRECO, Rogério. Curso de direito penal. Rio de Janeiro: Impetus, 2010. p. 224-225.
Doutrina – Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal Nº 97 – Ago-Set/2020 67

a individualidade do sujeito, inclusive, com os seus conhecimentos especiais


(um cidadão comum ao ver uma pessoa gravemente acidentada em via pública
não tem conhecimento técnico suficiente para realizar manobras de primeiros
socorros, embora consiga acionar o serviço de emergência médica)43.
b) A capacidade físico-real de agir do médico para (tentar) salvar a vida dos
pacientes A e B
Sendo a possibilidade de agir um critério físico, concreto e real, ele
jamais pode ser presumido e somente pode ser afirmado se observadas as
circunstâncias efetivamente existentes na situação típica concreta.
No caso hipotético em comento, os pacientes A e B estão sob os cui-
dados do médico M e em estado clínico grave decorrente da Covid-19. Os
dois pacientes dependem de internação na UTI para terem uma chance de
se salvarem do risco de morte. Há, todavia, um só leito. É possível falar em
capacidade físico-real de agir do médico M nesse caso?
Objetivamente, a resposta parece positiva44. Visualizadas as situações
separadamente: o médico M pode agir para internar o paciente A na UTI –
o que, inclusive, foi feito por ele, cumprindo com o seu dever concreto de
agir. Também realmente existe para M a possibilidade de agir para internar o
paciente B na UTI.
Como a pergunta a ser respondida neste artigo é sobre a punibilidade
do médico pela morte do paciente B, pode-se afirmar que o médico M era
capaz de internar o paciente B na UTI – cumprindo, assim, a ação mandada
pela ordem jurídica de (tentar) salvar a vida desse paciente.
Apesar de existir, objetivamente, capacidade físico-real do médico M agir
para internar o paciente B na UTI, a sua escolha sempre vai implicar, necessaria-
mente, no aumento do risco de morte do paciente A. O contrário é verdadeiro
como, de fato, ocorreu: optando pela internação de A na UTI, B morreu.
Como se percebe, a afirmação da existência do poder de agir do médico
M incomoda45. Em uma primeira aproximação, se analisarmos o poder de agir
em relação ao paciente B, de forma separada da situação envolvendo o paciente
A, M poderia ter agido para tentar salvar a vida de B. Contudo, analisada a
situação concreta como um todo, é difícil afirmar que M conseguiria agir sem
causar risco de lesão para A ou para B.

43 SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito penal: parte geral. 7. ed. Florianópolis: Empório do Direito, 2017. p. 216-217.
44 Como se verá adiante, a falta de critérios para priorização dos leitos de UTI é a razão da insegurança no oferecimento
de uma resposta positiva para essa pergunta.
45 Claus Roxin afirma expressamente que questões de justificação da conduta não excluem a omissão. A omissão do
sujeito é típica ainda quando tal comportamento possa estar justificado por uma colisão de deveres. (Derecho penal:
parte general. Madrid: Civitas, 2014. tomo II. p. 757)
Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal Nº 97 – Ago-Set/2020 – Doutrina
68

É discutível, portanto, se o médico M tinha mesmo a possibilidade de


realizar a ação mandada, sem causar prejuízo para terceiro46, até porque não há
consenso se a inexigibilidade da ação mandada na omissão de ação imprópria
exclui a tipicidade, a antijuridicidade ou a culpabilidade47.
Na verdade, o que existe, nesse caso, é uma colisão de deveres e a ordem
jurídica oferece um tratamento mais adequado dessa situação em outro pressu-
posto da punibilidade, a antijuridicidade, que será vista adiante (item 3.3, infra).

3.1.4 A Relação de Causalidade na Omissão do Médico e a


Imputação Objetiva do Resultado Morte do Paciente B
A relação de causalidade na omissão é tema controverso, cujos con-
tornos não cabem nessa sede48. Fato é que o art. 13, caput, do Código Penal
prevê a omissão como forma de causar o resultado típico e, portanto, há de
ser firmada a causalidade como pressuposto da punibilidade de uma conduta,
inclusive, a omissiva imprópria.
Por não haver um ponto de apoio naturalístico (uma inação nada po-
deria criar ou causar no mundo natural), o nexo de causalidade na omissão se
escora na ocorrência do resultado, fazendo com que o processo de imputação
desse resultado ao omitente seja hipotético49.
Uma das formas de realizar essa imputação é pelo critério da diminuição do
risco50, que estabelece o nexo de causalidade quando se possa afirmar que a execução
da ação mandada teria criado uma chance de salvamento para o bem jurídico51.
Essa hipótese precisa estar demonstrada: a ação omitida, mas esperada
do sujeito, deve ter sido capaz de aumentar as chances de salvar o bem jurídico
de lesão no caso concreto52.
No caso hipotético ora tratado, é possível afirmar que a internação
do paciente B na UTI teria aumentado as suas chances de vida. Três fatores

46 PASCHOAL, Janaina. Ingerência indevida: crimes comissivos por omissão e o controle pela punição do não fazer.
Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2011. p. 43; MARTINELLI, João Paulo Orsini; BEM, Leonardo Schimitt de.
Lições fundamentais de direito penal. São Paulo: Saraiva, 2019. p. 578.
47 Nesse sentido: SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito penal: parte geral. 7. ed. Florianópolis: Empório do Direito,
2017. p. 215-216.
48 Sobre o tema, v. TAVARES, Juarez. Teoria dos crimes omissivos. São Paulo: Marcial Pons, 2012. p. 359 e ss.
49 MIR PUIG, Santiago. Direito penal: fundamentos e teoria do delito. São Paulo: RT, 2007. p. 291-292.
50 Adota-se, aqui, a diminuição do risco como critério para a imputação objetiva. Há quem entenda que o critério
para essa imputação é o da probabilidade próxima da certeza, tal como: HILGENDORF, Eric; VALERIUS, Brian.
Direito penal: parte geral. São Paulo: Marcial Pons, 2019. p. 335-336, o que não parece adequado porque não resolve
de forma satisfatória boa parte dos problemas.
51 Nesse sentido: GRECO, Luís. Problemas de causalidade e imputação objetiva nos crimes omissivos impróprios. São Paulo:
Marcial Pons, 2018. p. 23 e ss.
52 ROCHA, Ronan. A relação de causalidade no direito penal. Belo Horizonte: D’Plácido, 2016. p. 192-193.
Doutrina – Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal Nº 97 – Ago-Set/2020 69

permitem essa afirmação: o conhecimento de que o tratamento intensivo


tem se mostrado como o mais adequado para pacientes em estado grave; a
informação dada pelo próprio caso de que o auxílio desses equipamentos na
UTI era uma forma de tentar salvar a vida dos pacientes; e o que ocorreu com
paciente A, que apresentou melhora no seu quadro clínico depois de receber
o auxílio dos aparelhos respiradores.

3.2 A Tipicidade Subjetiva: o Dolo na Omissão do Médico em


Relação ao Paciente B
Caso se afirme que o médico M tinha o dever e o poder de agir para
tentar salvar a vida do paciente B (ainda que isso implique na provável morte
de A), e a morte de B possa ser objetivamente imputada à omissão de M, a
escolha dele de internar A na UTI e não internar B nessa unidade de tra-
tamento poderia, ainda, ser desvalorada pela ordem jurídica, no âmbito da
tipicidade subjetiva.
Sendo o médico M conhecedor do estado clínico grave dos pacientes A e
B em decorrência do avanço da Covid-19, ele sabe que a não internação desses
pacientes na UTI e a falta de auxílio dos equipamentos respiradores são con-
dições que agravam o estado de saúde desses pacientes e pode levá-los à morte.
Logo, a omissão do médico M na internação do paciente B na UTI
poderia, inclusive, ser taxada pela ordem jurídica como dolosa, nos termos
do art. 18, I, do CP53. Isso, porque a ordem jurídica não exige um dolus malus,
mas, pelo menos, que o agente conheça o perigo da produção do resultado
decorrente da sua conduta54, in casu, da sua omissão em relação ao paciente B.
No caso hipotético em análise, o conhecimento do médico sobre o risco
concreto e direto da sua decisão em relação às chances de vida do paciente
B poderiam ensejar, no mínimo, discussão quanto ao dolo da sua conduta.
Entretanto, mais uma vez, o avanço nos pressupostos da punibilidade por
omissão imprópria na conduta do médico M incomoda, porque não parece
possível ele agir sem, ao menos, aumentar as chances de lesão à vida de um
dos pacientes que estão sob os seus cuidados.
Falta saber, então, se havia uma situação que justificasse a decisão do
médico M no caso concreto.

53 Está-se a olhar a situação apenas em relação a B. Vista em conjunto, salta aos olhos nítido conflito de interesses,
havendo duas vidas em jogo. Por isso, Claus Roxin chega a afirmar que a escolha de tentar salvar uma vida em
detrimento de outra revelaria não uma conduta guiada por uma tendência hostil ao bem jurídico, mas conservadora
do bem jurídico. (ROXIN, Claus. Derecho penal: parte general. Madrid: Civitas, 2008. tomo I. p. 962)
54 Sobre o conhecimento ser o elemento mínimo do dolo, v. VIANA, Eduardo. Dolo como compromisso cognitivo. São
Paulo: Marcial Pons, 2017. p. 285-286.
Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal Nº 97 – Ago-Set/2020 – Doutrina
70

3.3 A Antijuridicidade
Verificada a tipicidade do fato, é preciso analisar se ele também é antiju-
rídico, ou seja, se aquele comportamento é contrário ao ordenamento jurídico.
Há situações específicas em que a ordem jurídica permite a prática de
comportamentos típicos, por necessidade, solidariedade, proteção individual,
confirmação do direito ou direito preponderante55.
O nosso Código Penal estabeleceu quatro causas de justificação que,
excepcionalmente, tornam o comportamento típico conforme o direito: o
estado de necessidade, a legítima defesa, o estrito cumprimento de um dever
legal e o exercício regular de um direito56.
Todas essas causas de justificação pressupõem a existência de um conflito
de interesses em que somente um deles prevalecerá, em geral o mais valioso57.
A regulação dessas situações visa apresentar a forma correta de solucionar tal
conflito58. Interessa, para o presente estudo, o estado de necessidade.

3.3.1 O Estado de Necessidade


O estado de necessidade está expressamente previsto, como excluden-
te da ilicitude, no art. 24 do CP59. Há, ainda, outras situações semelhantes
previstas em lei, como o aborto necessário para salvar a vida da gestante (art.
128, I, do CP) e a intervenção médico-cirúrgica, sem o consentimento do
paciente, quando a vida dele estiver em perigo (art. 146, § 3º, do CP). Essas
duas são formas especiais de estado de necessidade.
Da leitura do referido art. 24 do CP, o sujeito pratica o fato em estado
de necessidade quando há uma situação de necessidade e uma ação necessária.
A situação de necessidade é aquela em que há um perigo atual a bem
jurídico do agente ou de terceiro, não provocado pela vontade dele. Há situ-
ação de necessidade quando o sujeito observa que uma placa de sinalização
de trânsito está se desprendendo do poste e em via de cair sobre um pedestre
parado na calçada60.

55 TAVARES, Juarez. Fundamentos de teoria do delito. Florianópolis: Tirant lo Blanch, 2018. p. 318-319.
56 São excludentes da ilicitude e estão previstas nos arts. 23 a 25 do Código Penal.
57 ROXIN, Claus. Derecho penal: parte general. Madrid: Civitas, 2008. tomo I. p. 672.
58 MARTINELLI, João Paulo Orsini; BEM, Leonardo Schimitt de. Lições fundamentais de direito penal. São Paulo: Saraiva,
2019. p. 607.
59 “Art. 24. Considera-se em estado de necessidade quem pratica o fato para salvar de perigo atual, que não provocou
por sua vontade, nem podia de outro modo evitar, direito próprio ou alheio, cujo sacrifício, nas circunstâncias, não
era razoável exigir-se.”
60 TAVARES, Juarez. Fundamentos de teoria do delito. Florianópolis: Tirant lo Blanch, 2018. p. 323-326.
Doutrina – Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal Nº 97 – Ago-Set/2020 71

A ação necessária é aquela conduta imediata do sujeito, que lesa bem


jurídico alheio, quando não há outro meio de evitar o perigo; ou seja, diante
da situação de necessidade, o sujeito age para salvar o direito que está em pe-
rigo, sacrificando direito de terceiro. A ordem jurídica só permite essa lesão a
bem jurídico de terceiro quando não há modo alternativo de afastar o perigo
(enfrentar com meios próprios, deslocar-se do local, buscar meios menos
gravosos, etc.). Além disso, a ação do sujeito deve ser imediata e proporcional
para afastar o perigo (se a ação poderia ser retardada, o perigo não era atual ou
o sacrifício do direito de terceiro não era necessário)61.
Verificada a situação de necessidade e a ação necessária, a conduta do
sujeito, embora tenha lesado bem jurídico de terceiro, não será considerada
antijurídica nessas condições.

3.3.2 O Estado de Necessidade do Médico em Relação aos Pacientes


AeB
No caso hipotético em análise, o médico M está em um verdadeiro
dilema: não é possível internar os pacientes A e B simultaneamente na UTI,
porque há apenas um leito disponível. Os dois pacientes estão em estado
grave, não são portadores de doenças crônicas e estão na mesma faixa etária.
Se M nada fizer, ambos têm mais chances de morrer. Se internar um deles,
haverá uma chance de salvamento para o paciente que for internado. Esse é
único meio possível de tentar salvar um dos pacientes da morte.
Como se percebe, o médico M precisa fazer uma escolha de Sofia62, que
será escrutinada pelo Direito Penal – o que justifica o título do presente artigo.
O caso informa que o paciente A foi internado e apresentou melhora no
seu estado de saúde e que o paciente B, que não foi internado e não recebeu
ajuda dos aparelhos respiradores, morreu dois dias após a decisão do médico M.
Foi visto que essa decisão médica, em relação ao paciente B, corres-
ponde, no âmbito da tipicidade, à prática do crime de homicídio (doloso),
imputado ao médico M pela via da omissão imprópria (v. itens 3.1 e 3.2 supra).
Entretanto, segundo uma leitura mais restrita do Código Penal, a con-
duta praticada pelo médico M não é contrária ao direito. Há uma situação de
necessidade: as vidas dos pacientes A e B estão, atualmente, em perigo, dado o
estado clínico grave em que se encontram; as vidas de ambos estão ameaçadas
pelo avanço da Covid-19, não tendo sido intencionalmente causadas pelo mé-

61 TAVARES, Juarez. Fundamentos de teoria do delito. Florianópolis: Tirant lo Blanch, 2018. p. 326.
62 Sobre essa expressão, v. nota de rodapé nº 17.
Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal Nº 97 – Ago-Set/2020 – Doutrina
72

dico M; e o único modo de evitar o perigo (tentar salvar a vida do paciente A


ou do paciente B) é internar apenas um deles na UTI, viabilizando o auxílio
com aparelhos respiradores, o que representa um sacrifício do direito à vida
do outro paciente não internado.
Há uma ação necessária: o médico M percebe que está diante de uma
situação de necessidade e que precisa agir imediatamente para tentar evitar
a morte do paciente A ou do paciente B, internando um deles na UTI para
receberem ajuda dos equipamentos respiradores, o que se apresenta como
uma chance de salvamento para o paciente que for internado.
Duas vidas estão em conflito e ambas estão sob a custódia do médico
M. Nesse conflito, não há fórmula comum, porque não existem diferenças
de valor ou de quantidade quando há vida contra vida63-64.
Não existe diferença de valor entre vidas diferentes que permita des-
ligar o aparelho de respiração artificial de um paciente para ligá-lo em outro
que parece apresentar mais chances de sobrevivência. Não existe diferença
de quantidade que permita desviar um trem desgovernado da linha principal,
evitando a morte de várias pessoas, para uma linha secundária, causando a
morte de poucas pessoas. Não há fórmula comum que autorize o barqueiro
a jogar algumas crianças no rio para salvar a vida das demais, por excesso de
peso no barco65.
Contudo, é preciso considerar justificada a ação de reduzir um mal ine-
vitável. A ordem jurídica não pode proibir tentar salvar uma vida humana, se
impossível salvar as duas66. Inclusive, no caso dos médicos, há dever jurídico
de enfrentar o perigo, nos termos do art. 24, § 1º, do CP, tanto porque seu
ofício é múnus público e sua tarefa primordial é salvar a vida dos seus pacien-
tes, como também porque, em relação aos pacientes que estão sob os seus
cuidados diretos, o médico ocupa posição de garantidor (v. item 3.1.1 supra).
A escolha de Sofia é uma escolha que transita entre as ideias de (in)
justiça e (a)moral, tal como é também a escolha que o médico M deve fazer
em relação aos pacientes A e B, o que torna esse comportamento certo e errado
ao mesmo tempo.

63 TAVARES, Juarez. Fundamentos de teoria do delito. Florianópolis: Tirant lo Blanch, 2018. p. 327.
64 Contra uma perspectiva utilitarista, Kant esclarece que as coisas possuem preço, enquanto o homem tem dignidade.
Desse modo, embora não seja objeto específico desse artigo, é oportuno observar que é altamente discutível se
haveria critérios legítimos para uma escolha como essa. Sobre o tema, v. KANT, Immanuel. A metafísica dos costumes.
São Paulo: Folha de São Paulo, 2010. p. 206-207.
65 ROXIN, Claus. Derecho penal: parte general. Madrid: Civitas, 2008. tomo I. p. 686-688.
66 Nesse sentido: WEBER apud ROXIN, Claus. Derecho penal: parte general. Madrid: Civitas, 2008. tomo I. p. 688.
Doutrina – Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal Nº 97 – Ago-Set/2020 73

Certo, porque não internar nem A, nem B, usurpa uma chance de


salvamento possível de uma dessas vidas67 e significa o descumprimento do
dever jurídico de enfrentar o perigo (art. 24, § 1º, do CP). Errado, porque
decidir quem terá mais chances de viver e quem terá mais chances de morrer
não é uma escolha legitimada para um médico, ou para qualquer pessoa dentro
de uma concepção liberal e democrática de Estado de Direito. Como não há
disciplina jurídica sobre o tema – não há critérios seguros sobre a priorização
de leitos de UTI nessas hipóteses –, uma ação praticada nessa zona livre do
direito não pode ser considera injusta68. A decisão do médico M que internou o
paciente A, salvando-o do risco de morte, e não internou o paciente B na UTI,
que morreu, não é uma conduta antijurídica, estando, nos termos do art. 24
do Código Penal, justificada por ter sido praticada em estado de necessidade.

4 Possível Solução do Problema e a Questão da Culpabilidade


Como visto, a teoria do delito é via de mão única e só é possível seguir
com os demais pressupostos da punibilidade se o anterior tiver sido firmado.
No caso hipotético exposto no item 1.2 supra, a conduta do médico M,
em relação ao paciente B, encontra correspondência típica no delito de homi-
cídio, previsto no art. 121, caput, do CP. A decisão conscientemente tomada
pelo médico M, consistente em não internar o paciente B no leito de UTI e,
assim, inviabilizar que ele recebesse auxílio dos equipamentos respiradores,
como uma chance de salvá-lo do risco de morte em decorrência do estado
clínico grave decorrente do coronavírus, pode ser imputado, objetiva e sub-
jetivamente, ao médico pela via da omissão imprópria, nos termos do art. 13,
§ 2º, alínea b c/c o art. 18, I, ambos do CP.
Referida decisão do médico M está, entretanto, justificada pelo estado de
necessidade em que ele se encontrava na situação concreta, o que não permite
afirmar a antijuridicidade do seu comportamento. Logo, no caso hipotético,
o médico M não cometeu um crime e não pode ser penalmente punido pela
morte do paciente B, porque não há crime quando o fato é praticado em estado
de necessidade, com fundamento nos arts. 23, I, e 24, caput, ambos do CP.
Não se olvida que é difícil reconhecer a possibilidade jurídica de agir do
médico M nesse caso. Como sua ação, necessariamente, implicará em ameaça
de lesão a terceiro (o paciente que não for internado terá menos chances de
sobreviver), pode sequer haver uma capacidade concreta e físico-real de agir
do médico M, o que tornaria sua conduta atípica, de plano.

67 Nesse sentido: OTTO apud ROXIN, Claus. Derecho penal: parte general. Madrid: Civitas, 2008. tomo I. p. 688.
68 SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito penal: parte geral. 7. ed. Florianópolis: Empório do Direito, 2017. p. 247.
Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal Nº 97 – Ago-Set/2020 – Doutrina
74

Contudo, o tratamento da questão no estado de necessidade não só


encontra melhor enquadramento jurídico, como também resolve de maneira
adequada os casos em que não for tão claro se o médico poderia ter tomado
alguma outra medida enquanto um dos pacientes aguardava uma vaga no
leito de UTI, criando uma chance de salvamento para ambos os pacientes
diagnosticados com coronavírus, que estão em estado grave. Ainda assim, a
dúvida quanto à real e concreta possibilidade de agir do médico (no âmbito
objetivo da tipicidade) e o reconhecimento do estado de necessidade quando
há conflito de vida contra vida de terceiros, decorre da consequência jurídica
da ação consistente na escolha entre vidas69.
Resta, então, oferecer uma resposta mais adequada para uma última
pergunta: o médico que atua em estado de necessidade quando há conflito de
vida contra vida de terceiros não será punido por que sua conduta está justifi-
cada e conforme o direito, ou por que era inexigível dele uma conduta diversa?
Essa dúvida decorre da redação confusa do estado de necessidade no
nosso CP. Pela leitura do art. 23, I, do CP, o estado de necessidade exclui
sempre a ilicitude da conduta, como cláusula geral de justificação que retira
a antijuridicidade do comportamento do sujeito.
Entretanto, a parte final do art. 24 do CP contém a expressão cujo
sacrifício, nas circunstâncias, não era razoável exigir-se. Por esse motivo, há quem
entenda, e parece com razão, que o estado de necessidade justifica a conduta
e exclui a antijuridicidade quando o bem sacrificado for de menor valor do
que o bem preservado. Se os bens forem de igual valor, seria caso de excul-
pação do sujeito70.
O valor do bem jurídico seria qualificado a partir da sua importância
para a ordem jurídica. Assim, a vida tem maior valor do que o patrimônio,
por exemplo. De fato, embora boa parte da doutrina reconheça que o orde-
namento jurídico adotou a fórmula unitária para o estado de necessidade71,
a parte final da sua definição legal serve como ponto de apoio para uma teo-

69 JAKOBS, Günther. Tratado de direito penal: teoria do injusto penal e culpabilidade. Belo Horizonte: Del Rey, 2008.
p. 633.
70 FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de direito penal. Rio de Janeiro: Forense, 2006. p. 232; MARTINELLI, João
Paulo Orsini; BEM, Leonardo Schimitt de. Lições fundamentais de direito penal. São Paulo: Saraiva, 2019. p. 619;
BITENCOURT, Cezar Roberto. Teoria geral do delito. São Paulo: RT, 1997. p. 133. Reconhece a viabilidade de uma
teoria diferenciadora, mas diverge quanto à consequência jurídica de justificação da conduta quando há conflito
entre bens de mesmo valor: TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios básicos de direito penal. São Paulo: Saraiva, 1991.
p. 131; e TAVARES, Juarez. Fundamentos de teoria do delito. Florianópolis: Tirant lo Blanch, 2018. p. 329. Reconhece
que essa diferença ajuda a explicar os casos em que bem sacrificado é de igual ou maior valor, mas não admite essa
diferença em nosso direito positivo: BRUNO, Aníbal. Direito penal. Rio de Janeiro: Forense, 1984. tomo I. p. 393.
71 HUNGRIA, Nélson. Comentários ao Código Penal. Rio de Janeiro: Forense, 1978. tomo II. v. I. p. 272-273; BRUNO,
Aníbal. Direito penal. Rio de Janeiro: Forense, 1984. tomo I. p. 393; NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de direito
penal. São Paulo: RT, 2011. p. 260.
Doutrina – Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal Nº 97 – Ago-Set/2020 75

ria diferenciadora, de modo que a prática do fato em estado de necessidade


poderia excluir a antijuridicidade ou a culpabilidade do sujeito, a depender
do grau de valor dos bens jurídicos em conflito, tal como ocorre no CPM72.
Havendo um conflito entre duas vidas humanas, bens jurídicos equiva-
lentes e sem a autorização para adoção de um critério quantitativo (sacrifício
de uma vida para salvar diversas outras) ou para se fazer qualquer ponderação
entre elas, deve ser reconhecido que o estado de necessidade, nessa hipótese,
exclui a culpabilidade do sujeito73, porque não lhe era juridicamente exigível
que adotasse uma conduta diversa74.
Priorizar quem tem melhores chances de vida em detrimento de outra
pessoa é uma escolha difícil de ser qualificada dentro de uma visão maniqueísta
do mundo. Nada fazer é aumentar as chances de morte de ambos os pacientes.
No caso dos médicos, nada fazer é, inclusive, quebra do seu dever jurídico
de enfrentar o perigo (por ser médico e por ser, no caso concreto, garantidor
da vida dos pacientes que estão sob os seus cuidados). Escolher qual paciente
receberá o necessário tratamento intensivo é, no limite, uma escolha do mal
menor75, que mais do que não poder ser proibida pelo direito, há, nela, evi-
dência de um princípio anterior ao próprio direito e que lida com conflitos
de humanidade, o princípio da beneficência, que tem sido expressado pelas
pessoas que se veem diante de um tal conflito76, o que tornaria essa ação des-
culpada pela ordem jurídica77.
Definir se o estado de necessidade é justificante ou exculpante é uma
discussão teórica com reflexos práticos diretos, principalmente no atual con-
texto da pandemia causada pela Covid-19 ao redor do mundo.

72 Arts. 39 e 41, ambos do Código Penal Militar.


73 Diverge e reconhece a ausência de antijuridicidade, mesmo diante da previsão legal de estado de necessidade excul-
pante: JAKOBS, Günther. Tratado de direito penal: teoria do injusto penal e culpabilidade. Belo Horizonte: Del Rey,
2008. p. 634, 822-823.
74 A inexigibilidade de conduta diversa é causa supralegal de exculpação decorrente do princípio da culpabilidade. Nesse
sentido: SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito penal: parte geral. 7. ed. Florianópolis: Empório do Direito, 2017. p.
322 e ss; AZUMA, Felipe Cazuo. Inexigibilidade de conduta conforme a norma. Curitiba: Juruá, 2007. p. 118.
75 Sobre o critério de escolha do mal menor: WELZEL, Hans. O novo sistema jurídico penal: uma introdução à doutrina
da ação finalista. São Paulo: RT, 2015. p. 181-182.
76 Os resultados do conhecido experimento do “trem desgovernado” provam essa afirmação. A maioria das pessoas
tende a mudar o curso do trem para que ele atinja um menor número de vítimas. Contra essa ideia é feita a objeção
de se ponderar vidas desde uma perspectiva utilitarista. Sobre o experimento, ver: GREENE, Joshua D. Solving the
trolley problem. In: SYTSMA, Justin; BUCKWALTER, Wesley. A companion to experimental philosophy. John Wiley
& Sons, 2016. p. 175 e ss.
77 Diversamente, rechaçando a ideia de mal menor e afirmando a antijuridicidade e a culpabilidade nesses casos, mas
a não punibilidade por ausência de necessidade preventiva da pena: ROXIN, Claus. Derecho penal: parte general.
Madrid: Civitas, 2008. tomo I. p. 962. Discorda-se dessa posição porque, nos seus fundamentos, considera ser essa
situação extrema, singular e única, sem perigo de reincidência, o que não se verifica(rá) nas diversas situações em que
os leitos de UTI ficarem escassos ao longo do tempo, quando várias escolhas como essa deverão ser reiteradamente
feitas pelos médicos.
Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal Nº 97 – Ago-Set/2020 – Doutrina
76

É preciso, contudo, ser dito o que ninguém quer dizer: resultando da


união entre o Direito e a Medicina, deve ser elaborada uma norma conten-
do, de maneira clara e suficiente, os difíceis critérios técnicos de priorização
dos leitos de UTI, quando estes ficarem escassos nos hospitais78. É preciso
explicitar quem terá preferência no tratamento intensivo e no uso dos res-
piradores artificiais, que são as medidas que mais têm se apresentado como
capazes de melhorar o estado de saúde dos portadores do coronavírus até o
presente momento79. O estabelecimento desses critérios técnicos alterará, por
completo, a avalição dos reflexos penais dessa decisão médica, deslocando
o centro de gravidade para a (a)tipicidade, uma vez que o cumprimento da
norma é o oposto da violação do dever de cuidado, que está na base de todas
as formas típicas de conduta80.
Essa, definitivamente, será uma das tarefas mais difíceis a serem cum-
pridas por essas duas grandes áreas do conhecimento. É preciso um esforço
conjunto. O Direito precisará se curvar aos critérios científicos da Medicina e
a Medicina precisará se curvar às consequências legais e jurídicas da aplicação
desses critérios pelo Direito nos casos concretos.
Apenas assim os médicos terão verdadeira segurança para saber como
devem agir diante desses tormentosos dilemas que, lamentavelmente, enfren-
tarão. É essa medida de lege ferenda que precisa urgentemente se converter em
lege lata, quer e tirará um pouco do peso que já sobrecarrega esses profissionais
da área da saúde no combate a esse famigerado vírus, libertando-os do pesadelo
de enfrentar uma acusação por crime de homicídio, como se já não bastasse
terem que lidar com o fato de terem falhado ao não conseguir salvar uma vida81.

5 Algumas Conclusões Possíveis


Os objetivos do presente artigo foram, primeiro, expor a escolha de
Sofia que os médicos, socorristas e diversos profissionais de saúde terão que
enfrentar quando os leitos de UTI estiverem escassos nos hospitais e, segun-
do, oferecer uma proposta de tratamento jurídico desse problema. Feito isso,
conseguimos chegar às seguintes conclusões:

78 Há pistas desses critérios na Resolução CFM nº 2.156/2016, mas ainda são insuficientes.
79 Essa norma poderia vir do Congresso Nacional ou até mesmo do Conselho Federal de Medicina, como diretivas
de recomendações aos médicos e profissionais da saúde para casos como esses.
80 HERZBERG, Rolf Dietrich. El delito comisivo doloso consumado como un delito cualificador especto del delito
omisivo, imprudente y en tentativa. Revista Brasileira de Ciências Criminais, v. 13, n. 52, jan./fev. 2005, p. 177 e ss.
81 Nas palavras de Eric Hingendorf: No tiene sentido cargar a los médicos en situaciones tan extremas con problemas jurídicos. Es
tarea de la ciencia jurídica resolverlos. (Recomendaciones de triage en la crisis del coronavirus: no molestar a los médicos
con cuestiones jurídicas. En Letra: Derecho Penal, 6 de mayo de 2020. Disponível em: https://www.enletrapenal.com/
eldp-10. Acesso em: 18 maio 2020)
Doutrina – Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal Nº 97 – Ago-Set/2020 77

1. Havendo apenas um leito de UTI e dois pacientes precisando si-


multaneamente de internação, a escolha de qual paciente será internado pode
significar o sacrifício da vida daquele que ficou sem o tratamento intensivo.
2. Essa decisão médica será, inevitavelmente, escrutinada pelo Direito
Penal. Ocorrendo a morte de um paciente por coronavírus, porque ele não foi
internado na UTI e não recebeu auxílio de respiradores artificiais, o principal
candidato à figura típica é o crime de homicídio, previsto no art. 121, caput,
do Código Penal.
3. A decisão consciente de não internar determinado paciente na UTI,
porque só havia um leito e outro foi o escolhido, inviabilizando o tratamento
intensivo necessário como chance de tentar salvar a vida desse paciente, pode
ser imputada ao médico, pela via da omissão imprópria, nos termos do art.
13, § 2º, alínea b c/c o art. 18, inciso I, ambos do Código Penal.
4. Sem qualquer clareza quanto à priorização das internações, morrendo
o paciente não internado, o médico terá, em princípio, praticado, objetiva e
subjetivamente, o crime de homicídio.
5. Embora existam dúvidas sobrea real e concreta possibilidade física
de agir do médico – porquanto sua decisão necessariamente implica em não
aumentar as chances de salvamento da vida do paciente que não for interna-
do –, o que excluiria a tipicidade da sua conduta, há verdadeiro conflito de
interesses entre as vidas humanas dos dois pacientes.
6. Havendo uma situação de necessidade e uma ação necessária, esse
conflito de interesses se resolve pelo estado de necessidade. A conduta do
médico não seria, então, punida, nos termos dos arts. 23, I, e 24, caput, ambos
do CP.
7. Uma leitura mais atenta do art. 24, caput, do Código Penal permite
adotar a teoria diferenciadora do estado de necessidade, reconhecendo que
a conduta do médico não é culpável por inexigibilidade de conduta diversa.
8. A solução mais adequada do problema é, contudo, de lege ferenda com
a elaboração de norma contendo critérios técnicos claros e suficientes de prio-
rização dos leitos de UTI para as situações em que esses estiverem escassos
nos hospitais, conferindo maior segurança e clareza nas decisões médicas.
9. Diante do conflito entre duas vidas, o médico não comete crime
quando ficar demonstrado que ele somente poderia ter cumprido um dos
deveres no caso concreto, em relação a apenas um dos pacientes. A impos-
sibilidade de cumprir os dois deveres ao mesmo tempo indica um estado de
necessidade exculpante, por inexigibilidade de conduta diversa.
Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal Nº 97 – Ago-Set/2020 – Doutrina
78

10. Finalmente, respondendo à pergunta feita na introdução – qual seja,


o médico M, nesse caso narrado, cometeu um crime e pode ser penalmente
punido pela morte do paciente B? Não, o médico M, no caso hipotético
tratado, não cometeu crime, porque sua conduta foi praticada em estado de
necessidade e, por esse motivo, não pode ser penalmente punido pela morte
do paciente B.

TITLE: The dilemma of medical decisions in cases with patients diagnosed with COVID-19: criminal
reflections of a Sophie’s choice.

ABSTRACT: The fast pace of coronavirus contamination is incompatible with the availability of beds
in Intensive Care Units (ICUs) in hospitals, whether in the public or private ones. Medical doctors and
health professionals will need to choose which patient will have better treatment than the other, who was
not submitted to an intensive care. This patient can die due to not receiving help from artificial breathing
equipment in time. Without clear criteria to prioritize the ICUs beds, this kind of medical decisions may
have criminal consequences. This matter will be faced based on the solution given by the criminal law
theory for a specific hypothetical case, since the elements of the actus reus. At the end, a technical solution
will be presented as appropriate, noting the difficulties of the standards to solve conflict of duties.

KEYWORDS: Medical Decision. Coronavirus. Conflict of Duties. State of Necessity.

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30-pacientes-a-gente-acaba-tendo-que-escolher.ghtml

Recebido em: 09.07.2020


Aprovado em: 14.08.2020
Doutrina

A Pandemia da Covid-19 e o Estado


de Coisas Inconstitucional do Sistema
Penitenciário Brasileiro: a Necessidade da
Remição Ficta da Pena como Instrumento
de Fraternidade1

Victória de Oliveira Nunes


Graduanda em Direito pela Universidade Federal do Espírito
Santo (UFES); Membro do Grupo de Pesquisa “Trabalho,
Seguridade Social e Processo” (UFES-CNPq).

Cláudio Jannotti da Rocha


Pós-Doutorando em Direito na Universidade Federal da
Bahia (UFBA); Doutor e Mestre em Direito pela Pontifícia
Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas); Professor
Adjunto do Departamento de Direito da Universidade Federal do
Espírito Santo (UFES), no curso de Graduação e no Programa
de Pós-Graduação em Direito Processual (Mestrado); Líder do
Grupo de Pesquisa “Trabalho, Seguridade Social e Processo”
(UFES-CNPq); Membro do Grupo de Pesquisa Relações de
Trabalho na Contemporaneidade (UFBA-CNPq); Membro da
Rede de Grupo de Pesquisas em Direito e Processo do Trabalho
(RETRABALHO); Autor de livros e artigos publicados no Brasil
e no Exterior; Advogado; Pesquisador.

RESUMO: O presente artigo tem como objetivo precípuo analisar os efeitos da


Covid-19 no sistema penitenciário brasileiro, além de verificar como a resso-
cialização prisional pode, através do princípio da fraternidade, ser concretizada
em tempos de coronavírus, perpassando pela necessidade da remição ficta da
pena aos apenados que, antes da pandemia, trabalhavam ou estudavam dentro
e fora do sistema penitenciário, independentemente do regime prisional. Para
tanto, será analisada a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental
347, na qual o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu o Estado de Coisas
Inconstitucional do sistema penitenciário brasileiro, para comprovar a neces-
sidade da hipótese ora demonstrada: a remição ficta da pena como instrumento
de fraternidade durante a pandemia do coronavírus, a fim de que o trabalho
e o estudo realizados pelo apenado, dentro e fora dos presídios, acelerem o
cumprimento da pena, com a consequente progressão do regime, de modo a
efetivar a ressocialização do ser humano submetido ao cárcere.

1 Dedicamos este artigo ao querido Thiago Fabres de Carvalho, exemplo de ser humano, Professor, Jurista e Advogado.
Doutrina – Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal Nº 97 – Ago-Set/2020 81

PALAVRAS-CHAVE: Sistema Penitenciário. Estado de Coisas Inconstitucional.


Ressocialização. Trabalho. Covid-19.

SUMÁRIO: 1 Introdução. 2 O Estado de Coisas Inconstitucional do Sistema


Penitenciário Brasileiro. 3 O Estado de Coisas Inconstitucional como Conse-
quência da Subversão ao Princípio Constitucional da Fraternidade. 4 A Pandemia
do Novo Coronavírus e a Insustentabilidade do Sistema Penitenciário Brasileiro.
5 A Remição Ficta da Pena como Instrumento de Fraternidade Frente à Pandemia
do Novo Coronavírus. 6 Considerações Finais. 7 Referências Bibliográficas.

1 Introdução
Inicialmente, cumpre trazer à baila que o presente artigo tem por escopo
temático os efeitos da Covid-19 no sistema penitenciário brasileiro. Impor-
tante destacar que a temática aqui levantada não se restringe ao momento
que estamos vivendo, mas engloba todo o espectro temporal compreendido
entre o início da crise e o momento em que surgir a vacina do coronavírus,
com todos os apenados recebendo a respectiva e devida imunização. Assim,
este estudo é presente e, concomitantemente, prospectivo, elastecendo-se
até o tempo em que todos os apenados estejam com sua saúde e segurança
resguardadas, podendo, por conseguinte, ter as suas atividades normalizadas
dentro e fora dos presídios.
Assim, apresenta-se neste artigo a seguinte problemática: como o prin-
cípio da fraternidade pode ser utilizado no sistema penitenciário brasileiro
durante a pandemia do coronavírus, a fim de que o ideal da ressocialização
seja efetivado?
A metodologia utilizada neste artigo será a dedutiva, sendo que toda a
sua matriz epicentral será a Constituição Federal, a qual tem seu centro con-
vergente na dignidade da pessoa humana, núcleo duro da hipótese defendida
neste estudo. Destaca-se, ainda, que, no presente artigo, a Constituição Federal
de 1988 dialogará com a Lei de Execução Penal e com a Consolidação das Leis
do Trabalho (mormente o Capítulo V do Título II, que aglutina 70 artigos – do
154 ao 223 –, que objetivam a proteção da saúde e da integridade psicológica
e física dos trabalhadores), uma vez que essa dialética se torna imprescindível
ao deslinde da epistemologia ora apresentada e defendida, considerando-se
que o primeiro comando normativo regulamenta como a pena será cumpri-
da; e o segundo, como devem ser as condições de trabalho a que todos estão
submetidos, mormente o viés da saúde e de segurança no caso em tela.
Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal Nº 97 – Ago-Set/2020 – Doutrina
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O art. 126 da Lei de Execução Penal determina que o apenado que


cumpre pena em regime fechado ou semiaberto poderá remir, por trabalho ou
por estudo, parte do tempo de execução da pena, sendo a contagem realizada
à razão de um dia de pena a cada três dias de trabalho, ou um dia de pena
a cada 12 horas de estudo. Trata-se de um direito-dever destinado ao preso
condenado ou provisório.
Lado outro, a Constituição Federal de 1988 assegura a todos um meio
ambiente de trabalho saudável e seguro, determinando em seu art. 7º, XXIII, a
redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene
e segurança. Trata-se de um direito fundamental, estabelecido no Título II
da Carta Magna. Destaca-se, ainda, o art. 225, também da Lei Maior, o qual
garante a todos o meio ambiente ecologicamente saudável e equilibrado, im-
pondo ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo
para as presentes e futuras gerações.
É justamente nessa dialética constitucional e infraconstitucional que
este artigo é consubstanciado, de modo que sua epistemologia será percor-
rida para que a problemática levantada seja respondida através da hipótese a
ser defendida e comprovada: a remição ficta da pena como instrumento de
fraternidade durante a pandemia do coronavírus, a fim de que o trabalho e
o estudo realizados pelo apenado, dentro e fora dos presídios, acelerem o
cumprimento da pena, com a consequente progressão do regime, efetivando
a ressocialização do ser humano submetido ao cárcere.
O marco teórico que se utilizou para a elaboração deste artigo foi a
sentença proferida pelo Juízo da 2ª Vara Criminal da Comarca de Linhares/
ES (privativa das Execuções Penais), nos autos do Procedimento Diverso
0003519-93.2020.8.08.0030, na qual fora aplicado, analogicamente, o § 4º do
art. 126 da Lei nº 7.210/84, para o reconhecimento da remição ficta da pena
aos apenados que desempenhavam atividades laborais e/ou educacionais antes
da crise gerada pela pandemia da Covid-19.
O quadro de excessiva deterioração e falência do sistema penitenciário
brasileiro restou evidenciado quando o Supremo Tribunal Federal, por meio
da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 347, declarou o
“estado de coisas inconstitucional” do sistema prisional pátrio.
O reconhecimento dessa conjuntura, ainda que tardio e em sede li-
minar, revelou o descompasso entre os compromissos assumidos pelo Poder
Constituinte e o legislador ordinário, através da Lei de Execução Penal, no
tocante ao enfrentamento da questão criminal e da reabilitação do condenado.
Doutrina – Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal Nº 97 – Ago-Set/2020 83

Desse modo, revela-se contraditória a natureza da ideologia penal da


reinserção2, considerando-se as péssimas condições de trabalho e vida no
sistema prisional, especialmente no contexto socioeconômico brasileiro,
marcado pela perpetuação do seguinte ciclo: sociedade excludente cria as
condições para o desenvolvimento da criminalidade; o condenado é, então,
inserido na realidade caótica do sistema prisional; as ignominiosas condições
de vida provocam a desnaturação da condição humana; o indivíduo passa a
carregar, após a sua passagem pelo sistema, o enorme peso dos estigmas sociais,
retroalimentando todo o processo.
Observa-se, assim, verdadeira subversão do princípio constitucional da
fraternidade, mediante o quadro de violação massiva de direitos fundamentais
e falhas estruturais, com o desenvolvimento da superpopulação carcerária
brasileira e a falência de políticas públicas, conjunção a qual contribui, por
conseguinte, para a institucionalização do processo de degradação e desnatu-
ração da pessoa humana submetida ao cárcere.
Ao referido quadro de notória falência e sucateamento do sistema
prisional brasileiro assoma-se uma nova ameaça: a pandemia da Covid-19,
doença causada pelo vírus SARS-CoV-2 e que já alcançou todos os continentes,
deixando para trás um triste encalço de mortes e crises nos sistemas sanitário,
econômico, social, logístico e funerário. Somente no Brasil, já foram, até o
presente momento, mais de 85.000 óbitos confirmados e mais de 2.300.000
infectados, segundo dados do consórcio de veículos de imprensa, cumprindo
ressaltar ainda a real subnotificação de casos existente no país.
Se o perigo da contaminação apavora quem está isolado em casa, ima-
gine quem está confinado numa cela com o triplo da capacidade, onde não há
espaço nem para dormir, muito menos para manter o distanciamento social?
Isso sem levar em consideração o enorme abismo educacional existente entre
a população carcerária e o restante do corpo social, fazendo do combate à
pandemia, no sistema prisional, um desafio ainda maior. Se, durante o cár-
cere, a vida do apenado está nas mãos do Estado, agora, durante a pandemia
do coronavírus, a alma e os medos também estão.
Sob essa lógica, o presente artigo busca analisar, por meio de uma
abordagem crítica e interdisciplinar, que utiliza o método jurídico-dedutivo
e a pesquisa bibliográfica e documental, como o advento do novo coronavírus
subverte, ainda mais, a lógica da ressocialização prisional, à luz da teoria dos
direitos fundamentais e do princípio da fraternidade. Pretende-se, portanto,

2 BARATTA, 2002, p. 186.


Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal Nº 97 – Ago-Set/2020 – Doutrina
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propor soluções adequadas ao enfrentamento dessa crise, a fim de reduzir ao


máximo os prejuízos à ressocialização da população carcerária.

2 O Estado de Coisas Inconstitucional do Sistema Penitenciário


Brasileiro
O tema atinente às infaustas condições do sistema penitenciário brasilei-
ro e à massiva violação dos direitos fundamentais dos encarcerados adentrou a
pauta do Supremo Tribunal Federal por meio do processamento dos Recursos
Extraordinários 580.252/MS, 641.320/RS e 592.581/RS, trazendo notoriedade
para a questão da inconstitucionalidade dos presídios brasileiros.
Não obstante, foi somente mediante a proposição, pelo Partido So-
cialismo e Liberdade – PSOL, da Arguição de Descumprimento de Preceito
Fundamental 347, que o cenário fático vislumbrado, incompatível com a Cons-
tituição Federal, foi reconhecido como “Estado de Coisas Inconstitucional”.
Nesse diapasão, imperioso o resgate histórico da referida criação juris-
prudencial, declarada pela primeira vez pela Corte Constitucional da Colômbia
na Sentencia de Unificación (SU) – 559, em 6 de novembro de 1997, bem como
dos pressupostos para a sua configuração e os efeitos dela decorrentes, objeti-
vando a melhor compreensão do problema carcerário brasileiro e sua extensão,
além da intenção do Supremo Tribunal Federal em acolher o instituto.
Em primeiro plano, cumpre salientar que, enquanto a Corte Consti-
tucional da Colômbia reconheceu, em diversas ocasiões3, a existência de um
Estado de Coisas Inconstitucional, no Brasil, o STF aplicou essa tese uma única
vez, justamente no enfrentamento da questão penitenciária, após sucessivas
alegações de violação aos direitos fundamentais dos encarcerados.
A criação desse instituto, por parte da Corte Constitucional colombiana,
teve por objetivo o reconhecimento, na SU-559 de 1997, da existência de
acentuadas falhas estatais na garantia dos direitos previdenciários de inúmeros
docentes. Contudo, duas das mais importantes decisões foram, sem dúvidas,
as que trataram das condições do sistema prisional colombiano e da questão
atinente ao “deslocamento” (desplazamiento) de pessoas em razão da violência
interna. Nesse sentido4:

“(...) el ECI indicaba que en materia de desplazamiento forzado eran escasos


los instrumentos legislativos, administrativos y presupuestales para evitar la vulneración

3 GARAVITO; FRANCO, 2010, p. 82.


4 GARAVITO; FRANCO, 2010, p. 84.
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de los derechos. Por ello, la Corte determinó que se requería una solución general
que cubriera a todas las personas que estuvieran inmersas en la misma problemática,
no solamente a los desplazados que instauraron la acción.” (grifos nossos)

Sob essa lógica, uma das finalidades precípuas desse instituto é, como
precisamente expõe Carlos Alexandre de Azevedo Campos5, a busca de so-
luções globais para situações de violação massiva e generalizada de direitos
fundamentais, consequência de falhas estruturais no funcionamento do
Estado e no cumprimento de suas obrigações, em que é possível apontar o
papel dos diversos poderes, órgãos e entidades na constituição do quadro de
inconstitucionalidade.
Por conseguinte, a superação dessa conjuntura exige uma articulação
entre as mais diversas autoridades públicas, cabendo à Suprema Corte o dever
de atuar mais assertivamente no enfrentamento de realidades notadamente
inconstitucionais, como é o caso do sistema penitenciário brasileiro, buscando
tão somente dar fim à inércia estatal, atuando como mola propulsora do agir
público, de modo que ainda reste preservado o princípio constitucional da
separação dos poderes. Conforme o voto do Ministro-Relator Marco Aurélio
Mello, na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 3476:

“o reconhecimento de estarem atendidos os pressupostos do estado de


coisas inconstitucional resulta na possibilidade de o Tribunal tomar parte,
na adequada medida, em decisões primariamente políticas sem que se possa
cogitar de afronta ao princípio democrático e da separação de poderes.”

Desse modo, como típico instrumento do modelo concentrado de


constitucionalidade, a ADPF permite o questionamento de lei considerando-
se a sua aplicação em uma dada situação concreta (caráter incidental)7. Assim,
muito embora tenha reconhecido a avançada figura da legislação brasileira
em matéria de execução penal (Lei nº 7.210/84), o Supremo Tribunal Federal
decidiu, importando a tese da Corte Constitucional colombiana, que a afronta
sistemática e estrutural aos direitos fundamentais dos apenados no sistema
prisional brasileiro caracterizaria um estado de coisas inconstitucional.
Destarte, o acolhimento desse instituto implica também o reconheci-
mento de que a superação do estado de coisas inconstitucional dependeria de
um esforço conjunto por parte dos diferentes poderes, órgãos e instituições,
englobando medidas de ordem normativa, judicial, administrativa e orçamen-

5 CAMPOS, 2015.
6 BRASIL, 2015, p. 31.
7 MENDES; BRANCO, 2019. p. 1.435.
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tária, exatamente porque há uma relação de causa e efeito entre os atos comis-
sivos e omissivos dos diferentes atores públicos e as transgressões relatadas8.
Depreende-se, portanto, que a responsabilidade pelo quadro constituído
não recai exclusivamente sobre um único Poder, mas sobre todos eles, haja
vista a ausência de coordenação institucional que caracteriza o ECI.
No âmbito do Poder Legislativo, verifica-se, além da proteção insuficien-
te, a falta de iniciativas para a promoção da mudança necessária, fazendo deste
um tema extremamente impopular entre os parlamentares, razão pela qual se
torna necessário o recurso à via judicial. Por sua vez, o Poder Executivo responde
pelo fracasso de diversas políticas públicas, em sua maioria inadequadas ou in-
suficientes, além de, à época da proposição da presente ação, ter promovido, em
nível federal, um enorme contingenciamento das verbas do Fundo Penitenciário
Nacional (FUNPEN), para o alcance de metas fiscais, agravando ainda mais
o quadro narrado. Por fim, ao Judiciário pode ser atribuída a responsabilidade
pelo número excessivo de prisões provisórias, bem como pela subutilização das
penas restritivas de direitos, num claro “excesso de execução”.
Nesse diapasão, há uma clara relação entre a falência das políticas
públicas prisionais, a violação aos direitos humanos dos encarcerados e o
aumento da criminalidade, consequência do fracasso da falaciosa ideologia
da ressocialização, especialmente nos moldes do sistema prisional brasileiro.
Isso, porque, nas sociedades capitalistas, desenvolveu-se um sistema de pu-
nição cuja marca reside na produção de efeitos contrários à reeducação e à
reinserção do condenado, facilitando a introdução e a manutenção das classes
marginalizadas no substrato da população criminosa9.
Em Cárcere e Fábrica10, Dario Melossi e Massimo Pavarini demonstram
como o surgimento da prisão e da pena privativa de liberdade na Inglaterra, a
partir da segunda metade do século XVI, teve por escopo o recolhimento de ocio-
sos, vagabundos, ladrões e pequenos delinquentes, submetendo-os ao trabalho
forçado e a uma rígida disciplina de orientação burguesa, fazendo das workhouses
verdadeiras máquinas antropológicas de conversão do criminoso em proletário11.
A lógica perversa era: ou trabalha ou é preso! Não era permitido ao ser
humano qualquer outra opção. A ele não cabia deliberar sobre o destino de sua
vida, porquanto quem não se encaixava nas articulações da grande máquina
burguesa era considerado vadio e, por isso, encarcerado. Ao ser humano era

8 BRASIL, 2015, p. 3.
9 BARATTA, 2002, p. 183.
10 MELOSSI; PAVARINI, 2006, p. 13.
11 FOUCAULT, 2013, p. 229.
Doutrina – Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal Nº 97 – Ago-Set/2020 87

destinado a seguinte “opção”: ficar na fábrica ou no cárcere. A liberdade nesse


momento histórico inexistia. Com isso, as pequenas fábricas tornaram-se in-
dústrias; afinal, o contingente de trabalhadores (inclusive mulheres e crianças,
e não somente homens adultos) era imenso, estando submetido a perversas
e precárias condições de trabalho, de modo a ensejar o bojo perfeito para a
Revolução Industrial. Assim, aumentou-se ainda mais a exploração sofrida
pela classe trabalhadora, a qual se assemelhava muito à exploração sofrida pela
população carcerária, tornando-as faces da mesma moeda.
O medo dominava o ser humano, que trabalhava sob condições de-
gradantes, seja na fábrica ou no cárcere, expondo sua vida aos mais variados
perigos iminentes. Inclusive, as maiores vítimas dessa exploração sub-humana
foram as mulheres e crianças, as quais experimentaram os mais diversos abu-
sos nas fábricas. Assim, o contexto que permitiu o surgimento das indústrias,
quando da invenção da máquina a vapor, foi a exploração do ser humano por
meio do trabalho, sob a constante ameaça de ser preso. Através do medo, o
ser humano é dominado e enjaulado, tornando-se refém de todo um sistema
e de uma lógica que são, ao mesmo tempo, incompreensíveis e perversos: ou
se prende trabalhando ou se prende encarcerando. A liberdade era furtada
pela necessidade a que todos estavam submetidos.
Assim, nessa abrupta sistemática imposta no referido momento histó-
rico, açoitava-se a alma, aleijava-se os pensamentos, roubava-se a liberdade
e esfacelavam-se os sonhos do ser humano. Matava-se o homem não direta-
mente, mas paulatinamente, com exploração, tortura e sofrimento.
E, diante dessa conjuntura, emergem e explodem concomitantemente
os sistemas de produção capitalista e o carcerário, que juntos almejam ao mes-
mo fim: o controle e a dominação do ser humano e a manipulação das massas.
Nessa senda, Georg Rusche e Otto Kirchheimer12 explicam como o
advento do sistema carcerário teve no mercantilismo o seu fundamento e,
no iluminismo, a sua promoção e elaboração. A criação da pena privativa de
liberdade harmonizava perfeitamente com os anseios liberais e humanistas
dos séculos XVII e XVIII, que denunciavam os horrores da lei penal calcada
na pena de morte e nos castigos cruéis, tendo em Howard o principal repre-
sentante do movimento pela humanização e racionalização das penas13.
Por sua vez, Loïc Wacquant, analisando aquilo que denominou “onda
punitiva”, já no século XX, apontou como a ascensão do Estado penal e policial
nos Estados Unidos substituiu progressivamente a figura de um (semi) Estado

12 RUSCHE; KIRCHHEIMER, 2004, p. 109.


13 MARTINELLI; BEM, 2019, p. 75-76.
Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal Nº 97 – Ago-Set/2020 – Doutrina
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providencial, fazendo da criminalização da marginalidade, isto é, do excedente


de mão de obra, a nova forma de gestão da miséria nos Estados Unidos14.
Vera Malaguti Batista demonstra, então, em Introdução Crítica à Cri-
minologia Brasileira, como esse modelo de supermax estadunidense e todo o
movimento de expansão carcerária ali originado vêm orientando as políti-
cas criminais e penitenciárias no Brasil, com destaque para os conceitos de
“governamentalização da segurança pública” e “policização da vida”, muito
bem ilustrados pela atuação das polícias no Rio de Janeiro, especialmente nas
infames operações de “pacificação” das favelas cariocas15.
Depreende-se, portanto, que a configuração do estado de coisas in-
constitucional no sistema penitenciário brasileiro é resultado também de
um desejo elitista de criminalização da miséria, considerando-se que, no
capitalismo neoliberal, mais do que nunca, o triunfo de poucos depende do
fracasso e da exploração de muitos.
Observa-se, assim, que, muito embora tenham cárcere e trabalho anda-
do juntos desde a gênese do sistema penitenciário, o ideal da ressocialização
pautado no trabalho prisional e na educação resta prejudicado na atualidade,
tratando-se de simples falácia, de mero “constitucionalismo simbólico”, fato
que contribui para a configuração da realidade constatada pelo Supremo
Tribunal Federal na ADPF 347.
A verdade, que todos nós sabemos e que ficou reconhecida através desse
notável julgamento, é: que o sistema carcerário brasileiro é ineficaz tanto na
custódia como na ressocialização do apenado.
Nesse contexto, dada a relevância e a intrínseca relação entre cárcere e
trabalho, no tocante à ideologia da prevenção especial positiva e da reinserção,
o presente estudo terá como matriz epicentral a realidade dos presídios bra-
sileiros, porém outros dois vetores serão analisados paralelamente, que são o
trabalho e a saúde, considerando-se o atual contexto global de pandemia do
novo coronavírus, tendo como plano de fundo, ainda, a Constituição Federal,
seus princípios e garantias.

3 O Estado de Coisas Inconstitucional como Consequência da


Subversão ao Princípio Constitucional da Fraternidade
Vivemos um momento disruptivo, em que as antigas bases estão sendo
reestruturas. As pressões do mundo globalizado e dos grandes conglomerados

14 WACQUANT, 2007, p. 86.


15 BATISTA, 2011, p. 99-104.
Doutrina – Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal Nº 97 – Ago-Set/2020 89

econômicos e financeiros fazem emergir oligopólios, a gig economy, a sharing


economy, a 4ª Revolução Industrial e a sociedade em rede. Assim, as empresas
abrem e internacionalizam seu capital, otimizando a sua produtividade e a
competitividade. Os mercados e as fronteiras nacionais são expandidos, fa-
zendo com que as distâncias geográficas desapareçam através de um simples
toque no computador e até mesmo no celular. O capital torna-se especulativo,
o financiamento a regra para o consumo, o trabalho perde a importância e o
endividamento aflora como sustentáculo de todo o sistema crediário. Assim,
o ser humano torna-se cada vez mais alienado, isolado e dominado. Viola-se
a própria condição humana, nos exatos termos demonstrados por Hannah
Arendt16.
Nesse bojo, ao estilo de uma ampulheta, diminui-se a importância do
Estado cedendo o protagonismo para as instituições financeiras e bancárias.
O modelo do welfare state vai desaparecendo e emerge o neoliberalismo. Nessa
transmutação endógena sistêmica, a fraternidade perde espaço para os interes-
ses econômicos e o câmbio passa a ser o termômetro de todas as operações.
Pode-se dizer que, no atual cenário, as situações sociais, políticas e econômicas
contribuem para tornar os homens supérfluos e sem lugar na sociedade. Em
detrimento da grande maioria da população, uma ínfima minoria é favorecida.
O verbo direcionador que antes era ter, passou para possuir e, agora, é usar.
Muito embora estejamos vivenciando esse movimento pendular, cum-
pre destacar que o reconhecimento do princípio da fraternidade enquanto
categoria jurídica revela-se fundamental na atual conjuntura, com vistas à
promoção da dignidade humana, à efetivação dos direitos fundamentais e à
própria manutenção do Estado Democrático de Direito, mormente diante
da conjunção econômica vigente, a qual sobrepõe os interesses do capital até
mesmo à garantia do mínimo existencial da pessoa humana.
O fundamento para a revitalização desse princípio encontra-se con-
substanciado em diversos dispositivos constitucionais17, além de inúmeros
diplomas internacionais, como é o caso da Declaração Universal dos Direi-
tos Humanos (1948) e da Declaração Americana dos Direitos e Deveres do
Homem (1948).
A primeira compõe, juntamente com outras normativas de cunho
transnacional, a chamada Carta Internacional dos Direitos Humanos. Nesse
contexto, já em seu art. 1º, estabelece: “Todos os seres humanos nascem livres
e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem

16 ARENDT, 2017.
17 LAZZARIN, 2015, p. 92.
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agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade”18. A Declaração


Americana dos Direitos e Deveres do Homem traz postulados bastante se-
melhantes em seu preâmbulo19.
Utilizando-se da mesma técnica, a Constituição da República Federativa
do Brasil estabelece, também no prelúdio de seu texto:

“Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional


Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar
o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o
bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos
de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia
social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução
pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL.”20
(grifos nossos)

Sob essa lógica, é de crucial importância delimitar o conteúdo jurídico


da fraternidade, insculpido no texto constitucional como instrumento de
concretização da dignidade humana, além de atuar como vetor interpretativo
para o alcance do conteúdo das normas jurídicas, o qual deve sempre har-
monizar, na maior medida possível, com os direitos fundamentais abarcados
pela Lei Maior.
Em primeiro plano, verifica-se que a fraternidade corresponde a um
princípio cuja origem está na base de um comportamento relacional21, isto
é, aponta para uma relação de reciprocidade, de responsabilidade recíproca,
que vincula os seres humanos entre si. É possível, inclusive, traçar um para-
lelo entre esse princípio e a teoria do reconhecimento de Axel Honneth, na
medida em que a fraternidade só é possível quando se enxerga no próximo
um “outro eu”22.
O filósofo e sociólogo alemão, conjugando os meios construtivos da
psicologia social de Mead com a teoria hegeliana da “luta por reconhecimento”,
produziu uma teoria que pretende esclarecer os processos de mudança social.
Assim, para Honneth, a reprodução da vida social exige um reconheci-
mento recíproco entre os sujeitos, que só assim visualizarão, numa perspectiva

18 ONU, 1948.
19 CIDH, 1948.
20 BRASIL, 1988.
21 LAZZARIN, 2015, p. 93.
22 FONSECA, 2019, p. 129.
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normativa, seus parceiros de interação como seus destinatários sociais23. Nesse


sentido, descreve os três padrões de reconhecimento recíproco nos variados
processos de interação prática entre os seres humanos: o amor, o direito e a
solidariedade. Demonstra, ainda, que os conflitos sociais emergem exatamen-
te da não identificação de um indivíduo ou grupo perante outro, de modo
que a dinâmica do desenvolvimento histórico e moral da sociedade deve ser
entendida como uma luta por reconhecimento24.
Por sua vez, para a elucidação e compreensão dos chamados “direitos
de fraternidade”, torna-se necessário o recurso à obra A Eficácia dos Direitos
Fundamentais, de Ingo Wolfgang Sarlet, na qual o autor descreve as diferentes
dimensões dos direitos fundamentais, bem como as diversas etapas de posi-
tivação dessas normas. Verifica-se, portanto, que a incorporação dos direitos
fundamentais, tanto na Lei Maior quanto nas declarações internacionais, se
deu através de um processo disforme, com inúmeras transformações relativas
ao conteúdo, à titularidade, à eficácia e à efetivação dessas normas.
Nesse sentido, a primeira dimensão é corolário direto do pensamento
liberal-burguês do século XVIII e compõe-se de direitos de cunho “negativo”,
que exigem do Estado uma abstenção, demarcando uma zona de não inter-
venção e uma esfera de autonomia individual em face de seu poder. Por sua
vez, os direitos fundamentais de segunda dimensão (igualdade) possuem uma
índole positiva, exigindo do Estado um comportamento ativo na realização da
justiça social, tendo em vista os graves problemas econômicos e sociais que
emergem da Revolução Industrial. Já a terceira dimensão encerraria os cha-
mados direitos de fraternidade (ou de solidariedade), englobando os direitos
de titularidade coletiva ou difusa, destinando-se à proteção dos grupamentos
humanos, ou até mesmo do gênero humano em sua totalidade, ultrapassando
a esfera do homem individualmente considerado25.
Os direitos de fraternidade comumente invocados pela doutrina com-
preendem os direitos à paz, à autodeterminação dos povos, ao meio ambiente,
à qualidade de vida, ao progresso, dentre outros. Cumpre destacar, ainda, a
estreita relação entre fraternidade e solidariedade, na medida em que ambas
expressam um vínculo que reúne diferentes grupamentos humanos sob uma
mesma base ética, moral ou de interesses. A fraternidade é um catalisador da
dor do outro para si, é olhar-se no espelho no próximo.

23 HONNETH, 2003, p. 155.


24 HONNETH, 2003, p. 125.
25 SARLET, 2007, p. 54-57.
Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal Nº 97 – Ago-Set/2020 – Doutrina
92

Desse modo, a partir do princípio constitucional da solidariedade,


insculpido no art. 3º, inciso I, da Lei Maior, é possível extrair a noção de
fraternidade, o que implica a vinculação do Estado e dos particulares na pro-
moção da dignidade humana de todos os integrantes da comunidade política26.
Assim, a fraternidade, enquanto princípio de índole relacional, pretende servir
como ponto de equilíbrio entre a liberdade e a igualdade, suplantando o an-
tagonismo entre a primeira e a segunda dimensão dos direitos fundamentais,
uma espécie de reconstrução dos direitos humanos defendidos por Hannah
Arendt27, trazendo transversionalidade ao mínimo existencial e uma garantia
ao núcleo essencial.
Depreende-se, por conseguinte, que o horizonte da fraternidade é o
que mais se ajusta à tutela efetiva dos direitos fundamentais28, de modo que
a configuração do estado de coisas inconstitucional do sistema penitenciário
brasileiro é decorrência direta da subversão ao princípio constitucional da
fraternidade, na medida em que a sociedade exclui do eixo de reconhecimento
recíproco o apenado, retirando-lhe a dignidade e institucionalizando o pro-
cesso de degradação e desnaturação da pessoa humana submetida ao cárcere.
Por sua vez, o art. 170 da Constituição Federal dispõe que a ordem
econômica encontra seu fundamento na valorização do trabalho humano e
na livre-iniciativa, cujo fim é a garantia de existência digna a todos, conforme
os ditames da justiça social. O art. 225 da Lei Fundamental estabelece gene-
ricamente o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, o qual
compreende também o direito ao meio ambiente do trabalho digno.
Nesse diapasão, escancara-se a falência das políticas públicas destinadas
à gerência do sistema penitenciário brasileiro, suscitando questionamentos,
inclusive, quanto à viabilidade da célebre ideologia da prevenção especial posi-
tiva, calcada no ideal da ressocialização, tendo em vista a notória precariedade
dos meios instituídos para alcançá-la, quais sejam, o trabalho e a educação
desenvolvidos no cárcere.
As ignominiosas condições de habitação e higiene, a ausência de ins-
trução laboral e de segurança do trabalho, a escassez de vagas para a inclusão
em frentes de trabalho e/ou estudo, a ausência de direitos trabalhistas e de um
arcabouço normativo que regule o trabalho desempenhado pelo apenado, a
participação cada vez maior de empresas privadas na exploração da mão de
obra cativa e a formação deficiente de inspetores e agentes penitenciários,

26 SARLET; FENSTERSEIFER, 2014, p. 124.


27 ARENDT, 2017.
28 FONSECA, 2019, p. 130.
Doutrina – Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal Nº 97 – Ago-Set/2020 93

representam, apenas a título de exemplificação, as diferentes facetas de um


mesmo problema, qual seja, o enfraquecimento dos laços de fraternidade e de
solidariedade na era do capitalismo neoliberal, culminando na desnaturação e
na despersonalização de grupamentos humanos marginalizados.
Vislumbra-se, portanto, a necessidade de reforma da política peniten-
ciária brasileira, especificamente no que tange à persecução da ressocialização
através da educação e do trabalho prisional, a fim de que sejam lançadas as
bases para a constituição do meio ambiente ecologicamente equilibrado no
cárcere, alinhado aos ditames da justiça social e concretizador dos princípios
da fraternidade e da dignidade humana, em harmonia ao disposto ao longo de
todo o texto constitucional. Já passou de hora de trazer um novo olhar para o
sistema penitenciário brasileiro, para que assim a própria ordem democrática
seja observada e efetivada.

4 A Pandemia do Novo Coronavírus e a Insustentabilidade do


Sistema Penitenciário Brasileiro
Temor, ansiedade, angústia, aflição, (super)isolamento e depressão.
São esses alguns dos sentimentos de impotência, desalento e desilusão que
invadem o psicológico humano durante a eclosão da pior pandemia do século,
causada pelo surto do recém-descoberto vírus SARS-CoV-2. Supostamente
originado na cidade de Wuhan, na província chinesa de Hubei, essa nova cepa
de coronavírus ainda não havia sido identificada em seres humanos. Ainda
em dezembro de 2019, a Organização Mundial da Saúde (OMS) foi alertada
acerca de um possível surto de pneumonia na região.
O que muitos sequer desconfiavam era da enorme capacidade e po-
tencialidade de transmissão do vírus, inclusive de sua letalidade, sendo que
alguns governantes, por mais absurdo que pareça, chegaram a chamá-lo de
“gripezinha”. Atualmente, o coronavírus já alcançou todos os continentes,
deixando para trás um triste encalço de mortes e crises nos sistemas sanitário,
econômico, social, logístico e funerário, conduzindo diversos países ao colap-
so. O mundo encontra-se em recessão, ou talvez na iminência de uma, já se
falando em novas versões do Plano Marshall e do New Deal. É certamente
surreal voltar no tempo e perceber como não estávamos preparados para a
dantesca proporção que tal andaço iria alcançar.
Fato é que, no Brasil, o coronavírus escancarou que nem o mínimo
existencial é ofertado aos seus cidadãos. Aqui vivemos e presenciamos um
sucateamento holístico e um caos generalizado. O que se percebe é que,
há décadas, o Brasil pratica atos de violência em direção aos direitos funda-
Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal Nº 97 – Ago-Set/2020 – Doutrina
94

mentais, como se percebe na saúde, na educação, na segurança pública, no


sistema penitenciário, no trabalho, no transporte, na habitação, na proteção à
maternidade e à velhice, no lazer e na previdência. O brasileiro vive em um
barco à deriva, situação que é muito bem caracterizada pelo Professor Titular
da Universidade Federal de Minas Gerais, Joaquim Carlos Salgado, como
Estado Poiético29.
O cenário é de guerra, todavia, se antes países e/ou blocos guerreavam
entre si fazendo uso de soldados, aviões, navios, canhões, tanques e estraté-
gias contrainformativas, no presente momento o inimigo é único, invisível e
universal, fazendo com que todos os países estejam do mesmo lado, lançando
mão de respiradores, hospitais, médicos, enfermeiros, insumos e ambulâncias
para vencer o desavindo, tendo como estratégia a informação compartilhada.
A gravidade da situação é tamanha que já superou a convulsão vivida
pelo Brasil na Guerra do Paraguai, entre os anos de 1864 e 1870, na qual o
país integrou a Tríplice Aliança ao lado da Argentina e do Uruguai, havendo,
ao final do conflito, um saldo de aproximadamente 50.000 (cinquenta mil)
mortes de soldados brasileiros. Em 20 semanas (de março a final de julho), no
Brasil, já morreram mais de 85.000 (oitenta e cinco mil) pessoas. Os números
são assustadores e macabros, dignos de tirar o sono e a paz de qualquer um.
A Covid-19 é a maior tragédia do século XXI.
Hoje, o distanciamento é a regra, um abraço e um aperto de mão devem
ser a exceção. Ficar em casa é um gesto de amor que se pode ter em relação ao
próximo. O individualismo cedeu lugar à solidariedade, afinal, é preciso que
cada um faça a sua parte: ficar em sua residência o máximo que puder. Ruas
vazias, escolas fechadas, restaurantes sem mesas e hospitais lotados, esse é o
cenário atual global. Pessoas isoladas, famílias enclausuradas e sentimentos
retidos; afinal, isolar é o verbo primordial no momento, para que assim sejam
preservadas as vidas e as pessoas, o ser humano em primeiro lugar sempre.
Em momentos de disrupção, reforça-se a necessidade de manutenção
e fortalecimento dos vínculos e dos diálogos sociais. No presente contexto
de pandemia, é indispensável ater-se aos já referidos ideais de fraternidade
e solidariedade, na medida em que a superação desse mal depende da cola-
boração de toda a comunidade, evitando-se a propagação do vírus mediante
o isolamento. Quem desrespeita a quarentena age egoisticamente, expondo
todo o corpo social.
Sob essa lógica, reputa-se válido revisitar as investigações de Durkheim
acerca da sociedade ocidental moderna. O sociólogo, debruçando-se sobre os

29 SALGADO, 1998.
Doutrina – Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal Nº 97 – Ago-Set/2020 95

flagelos da palpitante sociedade industrial, ainda no século XIX, ocupou-se


dos estudos acerca das patologias sociais dessa nova sociedade, marcadamente
racionalista e individualista, elaborando o célebre conceito de anomia social.
Nesse contexto,

“Durkheim identifica a la anomia básicamente con la situación que se


produce por la falta de normas que reglamenten las relaciones entre los
partícipes en la vida industrial y comercial. Es un fenómeno producido
por los cambios excesivamente rápidos ocasionados por el industrialismo,
y es una situación anómala transitoria, que se ve agravada por el progresivo
debilitamiento de la consciencia colectiva.”30

Desse modo, a superficialidade e a liquidez dos vínculos sociais na era


do capitalismo industrial incipiente foram revitalizadas, adquirindo maior
opulência na atual fase do capitalismo neoliberal, em que se luta para garantir
o básico, o mínimo existencial da pessoa humana, de modo que é possível
classificar a presente sociedade como anômica, especialmente diante do atual
quadro de pandemia do novo coronavírus, em que parcelas do corpo social
simplesmente se recusam a adotar medidas de prevenção e proteção, refor-
çando a fragilidade dos laços sociais na contemporaneidade.
Observa-se, ainda, o aumento no número de suicídios, dos casos
de violência doméstica e das doenças psicossociais durante a pandemia,
escancarando-se também a precariedade das relações trabalhistas, porquanto
o presente momento de exasperação e angústia facilita a adoção de práticas
abusivas e exploratórias em face do trabalhador, o qual se sujeita a essa explo-
ração para não incorrer num mal maior, que para ele é o desemprego. Dessa
forma, escolhe-se entre morrer de fome ou morrer em decorrência do novo
patógeno.
Nessa conjuntura, se o perigo da contaminação apavora quem está
isolado em casa, imagine quem está confinado numa cela com o triplo da
capacidade, onde não há espaço nem para dormir, muito menos para man-
ter o distanciamento social? Trata-se, obviamente, da peculiaridade de uma
pandemia dentro do sistema prisional, notadamente o brasileiro, em que os
desafios para o enfrentamento do vírus SARS-CoV-2 são ainda maiores.
Agrega-se às tétricas condições do sistema penitenciário brasileiro o
preocupante quadro de analfabetismo de grande parte da população carcerá-
ria, o que reduz a eficiência na adoção de medidas profiláticas, porquanto a
ausência de instrução impede o pleno combate ao vírus.

30 GIROLA, 2005, p. 29.


Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal Nº 97 – Ago-Set/2020 – Doutrina
96

Assim, ao referido quadro de notória falência e sucateamento do sistema


prisional brasileiro assoma-se uma nova ameaça: a pandemia do Covid-19.
Nesse contexto, a emergência do novo patógeno representa, para muitos ape-
nados, uma verdadeira sentença iminente de morte. As precárias, degradantes
e sub-humanas condições de vida nas unidades prisionais, sucateadas e su-
perlotadas, são grandes facilitadoras da propagação do vírus, transformando-o
numa ameaça sem precedentes.
Nesse diapasão, um dos vetores analisados no presente estudo, isto é, o
trabalho prisional e a sua instrumentalidade para a reabilitação do condenado,
resta evidentemente prejudicado. A suspensão das atividades laborativas e
educacionais provoca o recrudescimento do regime prisional, pois restringe
a principal “válvula de escape” do sentenciado. A título de exemplificação, é
como se um apenado do semiaberto fosse “regredido” indefinidamente para o
fechado, ou seja, o tratamento é o mesmo de quando se comete uma falta grave.
Não se pode olvidar, ainda, do dever estatal de salvaguarda e proteção
ao custodiado. Desse modo, a partir do momento histórico caracterizado pelo
confisco do conflito, quando o Estado tomou para si o compromisso de tutelar
determinadas relações ou situações jurídicas, vedando, portando, a autotutela
e a vingança privada, assumiu também o compromisso de zelar pela dignidade
e pela incolumidade física e psíquica daqueles submetidos à sua guarda.
Assim, todos os casos de contaminação de apenados no sistema prisional
brasileiro devem ser vislumbrados como falhas no compromisso estatal de
proteção ao sentenciado, porquanto o poder de restringir a liberdade de ir e
vir dos indivíduos acarreta obrigações correlatas ao ente público.
Sob essa lógica, foram adotadas medidas de profilaxia e combate ao
coronavírus em todo o sistema prisional brasileiro, seja no âmbito dos Es-
tados ou da Federação. Algumas delas incluem a suspensão de atividades
laborativas e educacionais, transferências, saídas temporárias, visitas sociais,
atendimentos de advogados e escoltas (com exceção de requisições judiciais,
inclusões emergenciais e daquelas que por sua natureza não possam ser
adiadas)31. Outrossim, foi promulgada ainda a Portaria Interministerial nº 7,
de 18 de março de 2020, a qual dispõe sobre as medidas de enfrentamento da
emergência de saúde pública previstas na Lei nº 13.979, de 6 de fevereiro de
2020, no âmbito do sistema prisional32.
Apesar do presumido esforço para a instrumentalização e o aparelha-
mento do sistema penitenciário, com vistas ao combate da presente pandemia,

31 BRASIL, 2020a.
32 BRASIL, 2020b.
Doutrina – Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal Nº 97 – Ago-Set/2020 97

resta evidente a incapacidade desse sistema para a garantia da devida proteção


de seus custodiados, os quais carecem, há muito, de condições mínimas de
vida, saúde, higiene e trabalho, situação esta que não seria passível de mudança
repentina, ainda mais na atual conjuntura pandêmica.
A mais urgente questão do sistema prisional brasileiro continua sendo a
superlotação carcerária, a qual desponta como o maior adversário para a con-
tenção do vírus. As inóspitas condições do ambiente de forma geral, como a
ausência de ventilação adequada, limpeza, água tratada, e, ainda, a proliferação
de mofo e o esgoto aberto, já são responsáveis pelo alastramento de inúmeras
doenças, a exemplo da tuberculose. Assim, cumpre destacar a precariedade do
estado de saúde dos presos, os quais são, em boa parte, portadores de diversas
enfermidades, incluindo doenças psicossomáticas, ferimentos não curados
e doenças de pele, com atenção ainda para fatores como o uso de drogas, o
sedentarismo e a baixa qualidade nutricional da alimentação oferecida.
Muito embora tenham sido elaboradas diretivas, recomendações e
portarias versando sobre a aplicação de medidas de contenção ao novo coro-
navírus, a realidade dos presídios brasileiros ainda é a mesma, não havendo
materiais de proteção, álcool em gel, profissionais de saúde e instrução sufi-
cientes, o que acaba por deixar à deriva os mais de 755 mil presos do país33.
Caso paradigmático (e calamitoso) é o do Complexo Penitenciário do Vale
do Itajaí, em Santa Catarina, em que metade dos 480 detentos submetidos a
testes de Covid testaram positivo para o novo vírus34.
A situação é tão dramática no interior das unidades prisionais que alguns
apenados vêm escrevendo cartas de amor e despedida a seus entes queridos, dada
a magnitude do temor experimentado, bem como diante da ausência de meios
de comunicação e contato, por consequência da suspensão de visitas sociais.
Sentimentos como pavor, tensão, desalento e desespero invadem o
íntimo dos encarcerados, muitas vezes em escala demasiadamente superior
àqueles experimentados por nós, que ainda temos a possibilidade de manter
o isolamento correto e de preservar os laços afetivos com nossos amigos e
familiares, ainda que mediante o contato virtual.
Depreende-se, portanto, que, para além das situações de violação
massiva e generalizada de direitos fundamentais no sistema penitenciário
pátrio, consequência de falhas estruturais no funcionamento do Estado e
no cumprimento de suas obrigações, desponta uma nova ameaça, capaz de
explodir definitivamente o barril de pólvora que é tal sistema. A pandemia

33 BRASIL, 2020c.
34 AMADO, 2020.
Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal Nº 97 – Ago-Set/2020 – Doutrina
98

do novo coronavírus apresenta-se como mais um dos fatores a escancarar a


insustentabilidade das prisões brasileiras, exigindo das autoridades públicas
atenção prioritária, haja vista as peculiaridades que fazem do cárcere um dos
piores locais para se viver durante uma pandemia.

5 A Remição Ficta da Pena como Instrumento de Fraternidade


Frente à Pandemia do Novo Coronavírus
Considerando-se o disposto no art. 1º da Lei nº 7.210/84 (Lei de Execu-
ção Penal), observa-se a adoção, pelo ordenamento jurídico-penal brasileiro,
da ideologia da prevenção especial positiva, consubstanciada no propósito da
“harmônica integração social do condenado e do internado”.
Desse modo, a partir do momento em que a pessoa encontra-se sob a
custódia do Estado, este passa a ser o responsável exclusivo e direto pela saúde
(física e mental), segurança e ressocialização daquele, devendo fornecer-lhe
instrumentos hábeis e eficientes para seu retorno à sociedade em condições
dignas.
Isso significa que, no Brasil, para além das funções de retribuição ou
de punição, a pena tem por objetivo evitar a repetição do ilícito mediante o
oferecimento das condições necessárias à reinserção e à reabilitação do indi-
víduo infrator, ao menos no plano teórico da Lei nº 7.210/84, a qual resgata o
pensamento social consolidado a partir do século XX (inicialmente no México
em 1917 e na Alemanha em 1919), momento histórico em que as assimetrias
econômico-sociais do modo de produção capitalista fizeram aflorar o movi-
mento operário na Europa e, com ele, uma onda de reinvindicações sociais.
Eis que nesse bojo emerge um novo modelo de Estado, pautado no interven-
cionismo e na necessidade de garantir os direitos básicos de seus cidadãos,
conhecido como welfare state, com a subsequente constitucionalização dos
direitos sociais, como trabalho, educação, moradia, segurança e previdência
social. A postura estatal deixa de ser absenteísta para ser promotora de polí-
ticas públicas, participando ativamente da vida das pessoas. Nesse sentido35:

“Se o capitalismo mercantil e a luta pela emancipação da ‘sociedade bur-


guesa’ são inseparáveis da conscientização dos direitos do homem, de
feição individualista, a luta das classes trabalhadoras e as teorias socialistas
(sobretudo Marx, em a questão judaica) põem em relevo a unidimensiona-
lização dos direitos do homem ‘egoísta’ e a necessidade de complementar
(ou substituir) os tradicionais direitos do cidadão burguês pelos direitos
do ‘homem total’, o que só seria possível numa nova sociedade. Indepen-

35 CANOTILHO, 2003, p. 385.


Doutrina – Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal Nº 97 – Ago-Set/2020 99

dentemente da adesão aos postulados marxistas, a radicação da ideia de


necessidade de garantir o homem no plano econômico, social e cultural,
de forma a alcançar um fundamento existencial-material, humanamente
digno, passou a fazer parte do patrimônio da humanidade.”

Desse modo, é patente a relação entre a doutrina da prevenção especial


positiva e a fundação do Estado de bem-estar social, cuja estrutura vem sendo
sucessivamente desmantelada pelo avanço de iniciativas neoliberais cada vez
mais agressivas, bem como pelo advento de lideranças políticas pouco sen-
síveis às mazelas existentes no país, na contramão do que dispõe o princípio
da fraternidade, o qual tem por fundamento o reconhecimento e a responsa-
bilidade recíproca entre os indivíduos de uma mesma comunidade jurídica.
Nesse contexto, ganha particular relevância o papel reservado ao trabalho
e ao estudo desempenhados no cárcere, justamente por constituírem os únicos
instrumentos aptos a evitar a repetição do comportamento criminoso, haja vista
que, quando oferecidos da maneira correta, permitem a aquisição de novos co-
nhecimentos, ofícios e habilidades, fazendo do crime uma via progressivamente
menos atrativa; ou seja, a partir da educação e do trabalho transfere-se um co-
nhecimento e um labor ao ser humano, qualificando-o para uma vida melhor
fora do cárcere, possibilitando um retorno social mais inclusivo e fraterno.
A problemática em questão reside justamente no fato de que o sistema
penitenciário brasileiro não permite o correto desempenho dessas atividades,
situação que se reflete no escasso número de vagas ofertadas, na falta de uma
estrutura básica e digna, na baixa capacitação dos profissionais encarregados e
no caráter pouco ressocializador dos ofícios oferecidos, na maioria das vezes
exaustivamente mecânicos e repetitivos, em clara afronta a diversos dispositi-
vos da Lei de Execução Penal (e.g., arts. 10, 11, 17, 19, 22, 31 e ss., etc.), bem
como da própria Constituição Federal, consoante evidenciado pela ADPF 347.
Nessa perspectiva, conforme avança pelo país a pior crise dos últimos
tempos, suscitada pelo advento e pela disseminação do novo Covid-19, respon-
sável pelo (potencial) colapso dos sistemas de saúde, funerário, econômico e
logístico, reputa-se crucial o desenvolvimento de ações e de iniciativas voltadas
à preservação da condição humana no cárcere, porquanto o presente momento
revela, como nunca antes, a necessidade de solidariedade e de fraternidade
para a sustentabilidade da vida humana.
Se o sistema penitenciário já era calamitoso, durante o coronavírus ficou
também caótico, transformando-se em um verdadeiro aparelho de exposição
iminente de vidas. As superlotações, as péssimas condições sanitárias, a falta
de segurança, a omissão na requalificação (através do ensino e do trabalho),
as indigestas e insuficientes refeições e os atos de violência (de todas as espé-
Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal Nº 97 – Ago-Set/2020 – Doutrina
100

cies) sofridos pelos presos caracterizam os presídios brasileiros como locais


degradantes e violadores dos direitos fundamentais e humanos.
À vista disso, diversas entidades se uniram para ingressar com pedido
de medida cautelar no Supremo Tribunal Federal (STF), no âmbito da ADPF
347 (Petições/STF ns. 14.137/2020 e 14.245/2020), requerendo a concessão
de prisão domiciliar aos apenados que se enquadram nos grupos de risco do
coronavírus: idosos, gestantes, pessoas com deficiência, doenças preexistentes,
com câncer, HIV, diabetes, doenças crônicas, cardíacas e imunodepressoras,
postulando também a concessão de regime domiciliar a presos por crimes
cometidos sem violência ou grave ameaça, dentre outras medidas.
Por razões de cunho meramente processual, o pedido de tutela provisória
fora indeferido pelo Ministro Marco Aurélio Mello, tendo o Relator remetido
os autos ao plenário para discussão, juntamente com diversas recomendações
visando ao combate do vírus no sistema prisional. Estas, contudo, não foram re-
ferendadas pelo plenário do Supremo Tribunal Federal (STF), sob o argumento
de que o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) já havia emitido recomendação
contendo medidas para garantir a segurança e a saúde nos presídios.
Todavia, para além de medidas como a restrição da locomoção, mediante
a suspensão de trabalho externo e interno, saídas temporárias, transferências
e visitas sociais, é forçoso o reconhecimento da remição ficta da pena como
instrumento de fraternidade, com vistas a atenuar os efeitos recrudescentes
da pandemia no sistema penitenciário brasileiro.
Isso, porque a suspensão das autorizações de saída que viabilizavam a
realização de trabalhos internos e externos, atividades de ensino ou programas
de leitura ensejam, por si só, o agravamento do regime prisional, bem como o
aumento da tensão entre os encarcerados. Sem qualquer “válvula de escape”
com a qual contar, além da impossibilidade de manter contato com entes
queridos, dadas as restrições impostas, o cárcere se torna, paradoxalmente,
cada vez mais isolante e sufocante.
Ademais, conforme esclarece a exposição de motivos constante na Re-
comendação nº 62 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ)36, “a manutenção
da saúde das pessoas privadas de liberdade é essencial à garantia da saúde
coletiva”, de modo que uma possível contaminação em massa no interior do
sistema prisional produziria efeitos nefastos à ressocialização do condenado
e à manutenção da segurança e da saúde pública de toda a população.
Ressalte-se, ainda, que o Estado brasileiro, embora se omita diutur-
namente, assumira o compromisso de manter não só a guarda, mas também

36 BRASIL, 2020d.
Doutrina – Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal Nº 97 – Ago-Set/2020 101

a incolumidade física e psíquica daqueles que tiveram sua liberdade de lo-


comoção restringida por força de decisões prolatadas por quaisquer de seus
órgãos jurisdicionais, de modo que todos os casos de contaminação pelo novo
patógeno deverão ser compreendidos como falhas na prestação desse dever
estatal, razão pela qual caracteriza excesso de execução a imposição de restrições
(ainda que legítimas) desacompanhadas de qualquer medida compensatória.
Isso posto, cumpre trazer à baila decisão proferida pelo Juízo da 2ª Vara
Criminal da Comarca de Linhares/ES (privativa das Execuções Penais), nos
autos do Procedimento Diverso 0003519-93.2020.8.08.0030, na qual fora
aplicado, analogicamente, o § 4º do art. 126 da Lei nº 7.210/84, de modo que:

“o reeducando que exercia trabalho e estudo suspensos em razão da pande-


mia continuará a se beneficiar com a remição, utilizando-se como parâmetro
o mês trabalho e/ou estudado imediatamente anterior à suspensão dessas
atividades em razão da pandemia da Covid-19.”

Iniciativas similares podem ser verificadas em Juízos de todo o país,


tendo sido a remição ficta da pena sugerida, inclusive, na Nota Técnica nº
2/2020 do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP)37. Todavia,
muitos outros Juízos e diversos representantes do ilustre Parquet ainda se
mostram bastante relutantes em aplicá-la, razão pela qual seria interessante
a emissão de nova recomendação pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ),
com vistas a incentivar a adoção da remição ficta da pena como instrumento
de fraternidade e como medida compensatória, visando a atenuar os efeitos
das restrições impostas aos apenados do sistema prisional brasileiro por força
da pandemia do novo coronavírus.
Depreende-se, portanto, que a via adequada para a concretização do
princípio da fraternidade, postulado que exige imediata revitalização, mor-
mente diante da sistemática sobreposição dos interesses do capital até mesmo
à garantia do mínimo existencial da pessoa humana, no contexto do sistema
prisional e de sua fragilidade perante o advento de tão grave pandemia, não
poderia ser outro que não o reconhecimento da remição ficta da pena aos ape-
nados que tiveram suas atividades paralisadas por força do novo coronavírus.

6 Considerações Finais
Escrutinando-se as tétricas condições do sistema penitenciário bra-
sileiro, consoante reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal (STF), na
Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 347, conclui-se pela

37 BRASIL, 2020e.
Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal Nº 97 – Ago-Set/2020 – Doutrina
102

completa inaptidão de suas instituições para o combate adequado e suficien-


te da Covid-19, bem como para a proteção e a salvaguarda de seus mais de
755.000 custodiados38.
O presente momento exige, mais do que nunca, a restauração e o for-
talecimento dos laços sociais e humanísticos, conforme demanda o princípio
da fraternidade, insculpido no prelúdio do Texto Constitucional. As medidas
de isolamento e a quarentena somente surtirão efeitos se todo o corpo social
se comprometer a cumpri-las, unindo-se em torno de um mesmo objetivo:
conter a propagação do novo patógeno.
Sob essa lógica, o horizonte da fraternidade deverá ser estendido a todos
os indivíduos da comunidade jurídica, inclusive àqueles que se encontram
sob a vigilância do sistema penal; afinal, são premissas básicas desse princípio
o reconhecimento e a responsabilidade recíproca entre os indivíduos.
Por isso mesmo, emerge como prioritária a situação dos apenados do
sistema prisional brasileiro, afinal, fatores como o superencarceramento, a
ausência de ventilação adequada e de saneamento básico e a alimentação in-
suficiente fazem das unidades prisionais verdadeiras incubadoras de doenças.
Ademais, engana-se quem acredita que uma contaminação em massa no
sistema penitenciário ficaria restrita ao ambiente prisional. A manutenção da
saúde das pessoas privadas de liberdade é essencial à garantia da saúde de todo
o corpo social, de modo que um surto nesse calejado ecossistema produziria
impactos significativos na segurança e na saúde pública de toda a população.
Afinal, pode-se dizer que a sociedade é fruto da interdependência de todos.
Outrossim, para além das preocupações com a saúde e o bem-estar,
dentro e fora dos presídios, é preciso considerar os impactos da pandemia
na reabilitação do condenado, um dos objetivos centrais da execução penal
no Brasil. Com a suspensão de atividades laborativas e educacionais, houve
a interrupção desse já insuficiente processo, provocando o recrudescimento
do regime prisional, desacompanhado de quaisquer medidas compensatórias.
Depreende-se, portanto, que a via adequada para a concretização dos
princípios da dignidade da pessoa humana e da fraternidade, bem como para
a manutenção do processo de ressocialização, não poderia ser outro que não o
reconhecimento da remição ficta da pena aos apenados que tiveram suas ativi-
dades paralisadas por força do novo coronavírus, aplicando-se, analogicamente,
o § 4º do art. 126 da Lei nº 7.210/84, notadamente como fez o Juízo da 2ª Vara

38 BRASIL, 2020c.
Doutrina – Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal Nº 97 – Ago-Set/2020 103

Criminal da Comarca de Linhares/ES (privativa das Execuções Penais), nos


autos do Procedimento Diverso 0003519-93.2020.8.08.0030.

TITLE: The COVID-19 pandemic and the unconstitutional state of things of the Brazilian penitentiary
system: the need for the “fictional” remission of the penalty as an instrument of fraternity.

ABSTRACT: The main objective of this article is to analyze the effects of COVID-19 on the Brazilian
penitentiary system, in addition to verifying how prison resocialization can, through the fraternity principle,
be achieved in times of coronavirus, passing through the need for a “fictitious” remission of the penalty
to inmates who, before the pandemic, worked or studied within and outside the prison system, regardless
of the prison regime. Therefore, the constitutional review instrument “Arguição de Descumprimento de
Preceito Fundamental” 347, in which the Federal Supreme Court (STF) recognized the Unconstitutional
State of Things of its prison system, will be analyzed, in order to prove the need for the hypothesis just
demonstrated: the “fictional” remission of the sentence as an instrument of fraternity during the corona-
virus pandemic, so that the work and study carried out by the convict, inside and outside the prisons, are
able to accelerate the execution of the sentence, with the consequent progression of the regime, allowing
the resocialization of the human being subjected to prison.

KEYWORDS: Penitentiary System. Unconstitutional State of Things. Resocialization. Labor. COVID-19.

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Recebido em: 10.08.2020


Aprovado em: 24.08.2020
Doutrina

Job Description e Compliance no Direito


Penal Empresarial

Orlando Faccini Neto


Doutor em Ciências Jurídico-Criminais pela Universidade de
Lisboa-Portugal; Mestre em Direito Público pela Unisinos –
Universidade do Vale do Rio dos Sinos/RS; Professor de Direito
Penal na Escola Superior da Magistratura/RS; Professor do
Curso de Mestrado do IDP – Brasília; Professor Convidado do
Curso de Especialização em Direito Penal e Política Criminal,
da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS;
Juiz de Direito no Estado do Rio Grande do Sul.

Getúlio Humberto Barbosa de Sá


Advogado Criminalista; Presidente da Comissão de Reforma
Criminal da OAB/DF; Aluno do Curso de Pós-Graduação
em Direito Penal Econômico do IDP – Brasília.

RESUMO: O presente artigo busca analisar o papel de garantidor assumido


pelo compliance officer e a importância de se estabelecer, nos programas de inte-
gridade das empresas ou até mesmo no contrato de trabalho dos encarregados
de vigilância, o job description para o exercício do cargo. Essa definição tem o
condão de proteger não apenas esses garantidores específicos, mas também os
administradores das empresas e demais empregados, tendo em vista que, ao
descrever o campo de ação do compliance officer, informam esses encarregados
do adequado desempenho de seus deveres de vigilância e delimitam a esfera de
responsabilidade no âmbito da empresa.

PALAVRAS-CHAVE: Responsabilidade Penal no Âmbito de Empresas. Com-


pliance e Deveres de Vigilância. Job Description.

SUMÁRIO: 1 Introdução. 2 A Ingerência e o Dever de Garante. 3 As Limitações


à Imputação Individual no Contexto das Empresas. 4 A Administração Empre-
sarial e os Limites da Responsabilidade Penal dos seus Gestores. 5 O Compliance
Officer e o Job Description. 6 Conclusão. 7 Referências.

1 Introdução
Todo programa de compliance tende a, entre os seus objetivos, estabelecer
uma autorregulação das atividades da empresa, independentemente da exten-
Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal Nº 97 – Ago-Set/2020 – Doutrina
106

são de suas atividades, conformando seus procedimentos e políticas internas


às regras que balizam o seu ramo de atuação econômica. Surge, assim, uma
importante ferramenta de gestão para desenvolver a governança institucional.
O programa de integridade empresarial deve ser implantado de forma
didática e detalhada, com o escopo de auxiliar os membros atuantes no âmbito
da pessoa jurídica, na adequação do desempenho de suas atividades às regras
e a procedimentos legais impostos pela legislação vigente.
No bojo do programa de compliance há uma parte específica que tem
como propósito prevenir crimes no seio da empresa, utilizando-se de meca-
nismos de controle de seus órgãos e funcionários, como, por exemplo, a ava-
liação dos riscos aos quais esses funcionários e a pessoa jurídica estão expostos
e a correta observância desses colaboradores aos padrões de comportamento
ditados pelos códigos de conduta, que é denominada de criminal compliance.
O criminal compliance tem, a cada dia, ganhado mais importância na
prevenção de delitos na seara econômica internacional. As Convenções In-
ternacionais, como a Convenção da ONU – Convenção das Nações Unidas
contra a Corrupção, de 2003, teve por objetivo atacar a corrupção enquanto
crime financiador das organizações criminosas, com destaque para a infiltração
dessas organizações nas estruturas estatais, dedicando inúmeros dispositivos
para tratar da lavagem de dinheiro. A Convenção da OEA – Convenção Inte-
ramericana Contra a Corrupção e a Convenção da OCDE – Convenção sobre
o Combate à Corrupção de Funcionários Públicos Estrangeiros em Transa-
ções Comerciais Internacionais, somadas a outros documentos de natureza
jurídica diversa, impulsionaram a aceitação dos programas de compliance no
universo corporativo1.
A aderência por parte das empresas aos programas de integridade se
deve, em certa medida, ao surgimento de uma nova geração de leis fomenta-
das pelos países que ratificaram as convenções internacionais de combate às
fraudes e à corrupção. Essas novas leis forçaram as sociedades empresariais a
mudarem os seus perfis de atuação no mercado, buscando primar pela ética
e transparência no desenvolvimento de suas operações.
Nesse contexto, a promulgação da FCPA – Foreign Corrupt Practices
Act, nos Estados Unidos, e do UKBA – United Kingdom Bribery Act, no Reino
Unido, influenciaram várias legislações de outros países, inclusive a brasileira,

1 Amplamente, sobre a participação de empresas no designado “injusto penal internacional”, cf. AMBOS, Kai. Direito
penal internacional econômico: Fundamentos da responsabilidade penal internacional das empresas. Porto Alegre: Livraria
do Advogado, 2019. p. 25-53.
Doutrina – Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal Nº 97 – Ago-Set/2020 107

na qual, a partir do final da década de 1980, surgiram as primeiras iniciativas


de adequação aos novos pilares de combate aos crimes econômicos.
O Brasil, como signatário de todas as convenções internacionais men-
cionadas, também desenvolveu seu arcabouço legal de combate aos crimes
praticados por meio de organizações estratificadas de poder, tanto através de
leis de conteúdo penal como por legislações de cunho administrativo2.
O pano de fundo para o surgimento dessas novas leis, tendentes a evitar
os crimes cometidos na esfera de atuação das empresas, pode ser atribuído,
em parte, à crescente utilização dos tipos penais omissivos impróprios como
forma de imputação, principalmente através da figura do garantidor, comu-
mente conhecido por sua posição de garante3.
Sob esse prisma, será analisado, neste texto, mediante a observação da lei
penal brasileira e da doutrina, o papel de garantidor assumido pelo compliance
officer4, bem como qual é a importância de se estabelecer, nos programas de
integridade das empresas ou até mesmo no contrato de trabalho do encarregado
de vigilância, o job description5 para o exercício do cargo, ou seja, a descrição
das funções, raio de atuação, seus deveres e obrigações.
Primeiramente, caberá esclarecer o que é a responsabilidade omissiva
imprópria, que tem sua capitulação no art. 13, § 2º, do Código Penal Brasi-
leiro, e configura uma das alternativas para a responsabilização criminal dos
membros de um aparato de poder organizado; no caso, para a imputação dos
dirigentes e empregados das empresas, que deixaram de fazer o que era possível
e exigível para evitar um determinado ato delitivo. Após, serão analisados os

2 Na esfera penal, a primeira iniciativa legal no país deu-se com a Lei nº 7.492/86 (Lei dos Crimes Financeiros). Mais
tarde, assume relevo a Lei nº 9.613/98, posteriormente modificada pela Lei nº 12.683/2012, que teve como objetivo
a prevenção do crime de lavagem de dinheiro. Ainda, outro exemplar mais atual de combate e prevenção aos crimes
praticados no âmbito das empresas é a Lei nº 12.846/2013, regulamentada pelo Decreto nº 8.420/2015, e que trata,
no campo do direito administrativo sancionador, dos ilícitos de corrupção cometidos através de pessoas jurídicas,
a chamada Lei Anticorrupção. No tocante aos regramentos puramente administrativos, que têm o propósito de
controlar as boas práticas do exercício empresarial, podemos citar, a título exemplificativo, a Resolução nº 24/2013
do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (COAF) – que estabelece, em seus arts. 2º e 3º, os deveres de
Compliance para evitar o Crime de Lavagem de Dinheiro –, a Resolução Bacen nº 4.595/2017 – que atribui maior
responsabilidade ao Conselho de Administração das empresas Sociedades Anônimas em caso de falhas na confor-
midade (art. 9º, inciso II) –, dentre várias outras regras que visam a conformidade das empresas aos ditames legais
para desenvolverem as suas atividades.
3 Como exemplo, citam-se os arts. 10, inciso III, e 11 da Lei de Lavagem de Dinheiro (Lei nº 9.613/98), que impõem
o dever de compliance e estabelecem, assim, um dever de garante. Também podemos citar a Resolução do Bacen nº
4.595/2017, que, embora não crie o dever de garantia como na lei penal, serve para embasar a aferição desses deveres
na apuração dos crimes omissivos, sendo, em determinadas situações, utilizada como norma penal em branco.
4 Compliance officer ou chief compliance é o termo designado aos profissionais ou grupos (setores) responsáveis por ad-
ministrar um programa de compliance. Cabe a eles desenvolver e coordenar todas as políticas e decisões que precisam
ser tomadas no âmbito do programa. Normalmente, os compliance officers atuam no ambiente interno da empresa,
devido à necessidade constante de acompanhar seus atos.
5 Job description significa descrição das funções e responsabilidades de um cargo. Deve ser formalizado em documento
próprio, no caso, em um contrato de trabalho ou pode constar nos manuais internos de uma empresa.
Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal Nº 97 – Ago-Set/2020 – Doutrina
108

deveres originários de vigilância, que residem no rol de incumbências dos


administradores e demais dirigentes da empresa. Assim, depois de discorrer
sobre as formas de responsabilidade dos membros da empresa, seus dirigentes
e encarregados com deveres de vigilância, verificaremos como ocorrem as hi-
póteses de incidência dos delitos por omissão conforme o tipo de administração
exercida na empresa. Na sequência, verificaremos as situações relacionadas
às delegações dos deveres de agir e vigiar e, por fim, à concentração desses
deveres no cargo do compliance officer, assinalando a importância do job description
como fator de limitação dos deveres e da responsabilidade penal inerentes ao
exercício desse cargo.

2 A Ingerência e o Dever de Garante


O nosso Código Penal, em seu art. 13, fornece o conceito de causa,
e, ademais, descreve como se dá o crime praticado por omissão. No § 2º do
mesmo artigo, é descrita a relevância penal da omissão, denominada pela
doutrina como omissão imprópria, sendo aquela em que o omitente deixou
de cumprir com o seu dever de evitar o resultado de uma ação delituosa6. Nas
alíneas desse mesmo dispositivo penal, inserem-se as três fontes dos deveres
de garantia: a lei, a assunção e a ingerência.
Para o presente estudo, dá-se especial atenção à última fonte do dever
de garantia, qual seja a ingerência, que está na gênese dos crimes de omissão
imprópria, prevista na alínea c do § 2º do art. 13 do Código Penal, e que diz
respeito ao dever de impedir um resultado delituoso imposto a quem criou,
com um comportamento anterior, um risco da ocorrência desse mesmo
resultado.
Essa especial referência aos crimes omissivos por ingerência, ao se
tratar da responsabilidade penal por omissão no contexto empresarial, dá-se
pela própria base de justificação legal para a exigência de um programa de
compliance. A complexa forma de organização, estruturação e desenvolvimento
das atividades da empresa criam o risco da ocorrência de crimes, de manei-
ra a ser considerada, a atividade empresarial, como uma “fonte de perigo
permitida”7. Donde deriva a necessidade e o dever dessa mesma empresa de

6 “Título II – Do Crime – Art. 13. O resultado, de que depende a existência do crime, somente é imputável a quem
lhe deu causa. Considera-se causa a ação ou omissão sem a qual o resultado não teria ocorrido. (...) § 2º A omissão
é penalmente relevante quando o omitente devia e podia agir para evitar o resultado. O dever de agir incumbe a
quem: a) tenha por lei obrigação de cuidado, proteção ou vigilância; b) de outra forma, assumiu a responsabilidade
de impedir o resultado; c) com seu comportamento anterior, criou o risco da ocorrência do resultado.”
7 ESTELLITA, Heloisa. Responsabilidade penal de dirigentes de empresas por omissão: estudo sobre a responsabilidade
omissiva imprópria de dirigentes de Sociedades Anônimas, Limitadas e encarregados de cumprimento por crimes
praticados por membros da empresa. 1. ed. São Paulo: Marcial Pons, 2017. p. 128-129.
Doutrina – Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal Nº 97 – Ago-Set/2020 109

evitar o resultado, mediante o desenvolvimento de um cuidadoso e efetivo


programa de compliance.
A definição dos crimes omissivos impróprios na parte geral do Código
Penal, os quais se concretizam pelas três fontes de deveres de garantia posi-
tivadas em nosso códex criminal, se deve ao fato de não existirem, em nosso
ordenamento jurídico, tipos penais que abarquem a punibilidade da conduta
omissiva daquele que, primariamente, possuir o dever de agir para evitá-la. Daí
a construção dogmática, por intermédio da qual, a rigor, mesmo nos crimes
notadamente comissivos, pode-se realizar a imputação em virtude do fato de
o sujeito ter olvidado um dever de agir.
A inexistência de um tipo penal próprio, entretanto, cria uma série de
dificuldades na aplicação dessas fontes dos deveres de garantia aos casos que
chegam aos tribunais, sendo a ingerência a mais problemática de se aplicar aos
casos concretos. Como explica Martins-Costa, no que diz respeito à figura da
omissão por ingerência, sua configuração ocorreu com base na Teoria Formal
do Dever Jurídico desenvolvida por Feuerbach, sendo esses deveres de ga-
rantias controvertidos quando da sua aplicação. Em suas palavras, com efeito,
desde a sua origem, a ingerência foi uma fonte de deveres de garantia que
apresentou inúmeros problemas, porque representa uma contradição interna
da teoria, pois leva a um abandono de seu ponto de partida formal e de sua
fundamentação originária, uma vez que os deveres de garantia que nascem da
ingerência não têm fundamento jurídico – de fato, ao contrário das fontes da
“lei” e do “contrato”, que se baseiam na forma como Feuerbach entendia que
o Estado poderia justificadamente impor obrigações positivas aos cidadãos –,
a ingerência tem origem num pensamento causal-naturalista: o que justifica
a imputação do resultado não é um especial fundamento jurídico, mas o fato
de que ele se origina num curso causal que foi desencadeado previamente
por uma ação do omitente. Ademais, como seu fundamento tem essa origem
naturalista, e como de um ser não pode ser extraído um dever-ser, é difícil a
definição do real conteúdo e dos limites da ingerência8.
Assim, a ingerência, por muito tempo, serviu como uma “válvula de
escape” em que se enquadravam todos os casos que não poderiam ser fun-
damentados a partir de deveres legais ou contratuais, mas cuja impunidade
repugnava o sentimento ético-jurídico vigente, mesmo que com pouca ou
nenhuma relação tivessem com a verdadeira ingerência.

8 MARTINS-COSTA, Antônio. Considerações sobre a omissão imprópria e a responsabilidade penal por ingerência.
In: CAVALCANTI, Fabiane da Rosa; FELDENS, Luciano; RUTTKE, Alberto (Org.). Garantias penais: estudo alusivo
aos 20 anos de docência do Professor Alexandre Wunderlich. Porto Alegre: Boutique Jurídica, 2019. p. 47-48.
Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal Nº 97 – Ago-Set/2020 – Doutrina
110

3 As Limitações à Imputação Individual no Contexto das Empresas


Nos dias atuais, observamos muitos obstáculos na aplicação do direito
penal tradicional às novas formas de incriminação da pessoa física que age
em nome de uma corporação, ou que detém poderes para definir seus ca-
minhos, o que tem exigido da dogmática penal especial atenção para dirimir
os problemas relativos à autoria em crimes cometidos na forma de omissão.
É que a dogmática que subsidia o direito penal tradicional está pautada
na ação individual. Para essa dogmática, a responsabilidade penal tem como
referência um indivíduo que pratica um comportamento proibido pela norma
penal e que, tendo consciência, ao menos potencial do injusto, poderia, de
qualquer forma, tê-lo evitado.
Surgem daí vários obstáculos à aplicação da dogmática penal clássica, que
lastreia grande parte da legislação penal vigente em nosso país, por exemplo,
a parte geral do Código Penal (Decreto nº 2.848/1940).
Diante das dificuldades em determinar a autoria nas complexas relações
existentes na organização empresarial, no concernente às novas modalidades
de criminalidade econômica, e pela impossibilidade de se aplicar as regras do
ordenamento penal tradicional, várias teorias penais têm sido utilizadas para
suprir essas lacunas.
Em 1963, Roxin9 apresentou sua teoria sobre a autoria mediata por
meio do domínio da organização em uma palestra realizada na Universidade
de Hamburgo, quando da sua posse como professor, intitulada Crimes no
Âmbito de Aparatos Organizados de Poder. À época, a nova teoria tinha por base
a denominada Teoria do Domínio do Fato e objetivava determinar com pre-
cisão a autoria de delitos cometidos na esfera de atuação de entes organizados,
por exemplo, os praticados durante guerras e em países que vivem em estado
de exceção. Baseava-se em três formas típicas que determinavam o domínio
de um acontecimento, sem que o autor estivesse presente no momento da
execução. Essas três formas típicas de execução de um ilícito cometido na
alçada de atuação de uma organização estruturada, seguindo uma ordem de
comando, se davam das seguintes maneiras: (i) por coação imposta ao executor
da ordem; (ii) por meio de uma trama arquitetada para enganar o executor
da ordem; e (iii) por ordem expressa, sem coação e sem enganar o executor,
utilizando o aparato de poder que garanta a execução da ordem.

9 ROXIN, Claus. Autoria mediata por meio do domínio da organização. In: GRECO, Luiz; LOBATO, Danilo (Co-
ord.). Temas de direito penal: parte geral. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. p. 323.
Doutrina – Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal Nº 97 – Ago-Set/2020 111

As formas mencionadas são assim exemplificadas por Roxin10:

“(...) a fungibilidade (substitutibilidade ilimitada do autor imediato) que


garante ao homem de trás da execução do fato e lhe permite dominar os
acontecimentos. O atuante imediato é apenas uma roldana substituível
dentro das engrenagens do aparato de poder. Isto nada muda quanto à
punibilidade do autor imediato que, ao fim, realiza um homicídio com as
próprias mãos. No entanto, os ‘comandantes’ da alavanca de controle do
aparato de poder são os autores mediatos, uma vez que a execução do fato,
diferentemente da instigação, não depende da decisão do autor imediato.”

Com isso, as funções do autor imediato e as do autor mediato, lógica


e teleologicamente, podem coexistir lado a lado, e essa conclusão, à época de
sua apresentação, contrariava toda a dogmática estabelecida e difundida na
Europa continental. O Direito Penal vigente trilhava as orientações da dog-
mática penal tradicional que, como dito anteriormente, tinha foco na ação
individual do autor imediato.
A teoria se mostrava inovadora à medida que ampliava a forma de autoria
mediata, tendo o domínio do fato como principal critério para a imputação.
A inovação trazida pela teoria mencionada jogou luz ao instituto da autoria
delitiva; porém, somente foi utilizada para equacionar problemas relativos à
autoria em crimes praticados pelas empresas nos anos 2000.
Da data de apresentação desenvolvida por Roxin até os dias atuais, a
teoria experimentou as mais diversas interpretações por parte do Poder Ju-
diciário de várias nações. Algumas dessas interpretações alargaram o alcance
do seu escopo, sem a devida observância de seus parâmetros11. O motivo da
ampliação do objeto da teoria é possibilitar, no que tange aos crimes praticados
em aparatos organizados de poder, o alcance de toda a cadeia de comando, ou
seja, todos que de alguma forma contribuíram, conscientemente ou não, para
causar uma lesão a um bem jurídico ou colocá-lo em perigo.
A utilização indiscriminada dessas teorias, como panaceia para solução
de todos os problemas para identificação individualizada da autoria delitiva,
no âmbito dos crimes praticados por meio de empresas, se deve em parte
pela limitação da aplicação dos institutos tradicionais do direito penal que
dispõem sobre a matéria.
O próprio conceito de empresa, como união organizada de pessoas
para o exercício de atividade econômica, já indica suas características como a

10 Idem, p. 324.
11 Criticamente, sobre isso, cf. DAVID, Décio Franco. Manual de direito penal econômico. São Paulo: D’Plácido, 2020. p.
309-310.
Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal Nº 97 – Ago-Set/2020 – Doutrina
112

pluralidade de agentes – não há apenas um indivíduo praticando um delito,


mas uma gama de agentes que praticam a ação delituosa – e a organização
destes de forma hierarquizada determinando a atuação destes mesmos agentes
conforme a cadeia de comando.
Os pressupostos de imputação individual (autoria imediata, mediata,
coautoria e participação), quando relacionados a aparatos de poder, são de
difícil percepção, limitando as soluções encontradas no campo de ação do
direito penal tradicional.
A falta de capacidade de rendimento dos institutos tradicionais para
identificação da autoria no contexto das empresas – em especial nos crimes
de omissão – abriu lacunas na dogmática penal tradicional, que estão sendo
preenchidas pelos entendimentos jurisprudenciais ou doutrinários firmados a
partir de interpretações de elevado grau de subjetividade, descortinando peri-
gosas distorções das teorias do domínio do fato e do domínio da organização.
A respeito do tema, cabe destacar a observação de Silveira e Saad-Diniz,
que revelam os perigos das formas atuais de interpretação jurisprudencial
sobre os problemas relativos à teoria do delito, aduzindo que, normalmente,
a jurisprudência – notadamente a brasileira – tem por hábito simplificá-la
de maneira dramática e perigosa. Tal perigo é bastante acentuado quando se
lida com situações-limite, como a de novas fronteiras penais, como no caso é
de saber quem é o responsável pelo cumprimento dos deveres impostos ou,
aqui melhor pontuando, de atribuição de responsabilidades penais individuais
pelo não cumprimento de deveres inerentes às empresas, visto nos compliance
programs12.
Os riscos de casuísmo, em hipóteses de imputação da autoria de crimes
praticados no âmbito das empresas, não escaparam da crítica de Roxin, o qual,
sobre um julgamento realizado pelo BGH (Bundesgerichtshof) alemão, ainda
em 1998, tece reproche ao uso inadequado da teoria por ele desenvolvida:

“(...) dirigentes de uma sociedade limitada foram apenados como autores


mediatos nos estelionatos cometidos pelos empregados desta, apesar de
não se ter podido ‘comprovar nenhuma atuação concreta ou também um
conhecimento atual dos réus com relação às respectivas encomendas das
mercadorias’. Pois, como ‘autor por domínio do fato’ entraria ‘igualmente
em consideração aquele que aproveita as condições, que desatam cursos
criminosos regulares, dadas pelas estruturas da organização’. Isto o Superior
Tribunal Federal alemão ‘afirmou também para as atividades empresariais’.

12 SILVEIRA, Renato de Mello Jorge; SAAD-DINIZ, Eduardo. Compliance, direito penal e lei anticorrupção. São Paulo:
Saraiva, 2015. p. 128.
Doutrina – Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal Nº 97 – Ago-Set/2020 113

Não se fundamentou, em detalhes, a decisão sobre como, porém, deve


existir um domínio do fato em um acontecimento, no qual os acusados, em
concreto, nem pelo menos influíram. O domínio do fato é aqui utilizado
com o fim de se imputar a autoria em qualquer forma de responsabilidade,
não somente na mediata, a todo aquele que está no nível de direção de uma
empresa. No entanto, para isto, este conceito não é adequado.”13

Dessa forma, verifica-se que as teorias do domínio do fato e do domínio


da organização partem de um sistema diferenciador, lastreado em pressupostos
específicos, ou seja, é de se indagar o proveito de aludirmos a essa concepção
num sistema em que, como sucede no Brasil, o concurso de agentes atende
aos parâmetros da teoria monista ou unitária, isto é, todos aqueles que concor-
rem para o crime, respondem pelo mesmo tipo de delito. O alargamento do
conceito central da teoria, com o propósito de alcançar todos em uma cadeia
de comando, sem a observação dos pressupostos fixados (poder de mando,
estrutura do aparato de poder e fungibilidade do executor direto), acaba por
subverter argumentos que, no limite, justificariam a sua utilização.

4 A Administração Empresarial e os Limites da Responsabilidade


Penal dos seus Gestores
As dificuldades para a imputação individual no âmbito das organi-
zações empresariais, conforme já referido, são imensas14. Nas palavras de
Estellita, a divisão de funções é “um dos aspectos da organização da atividade
econômica em empresa que acarreta maiores dificuldades para um direito
penal cujo paradigma é o da autoria direta dolosa individual”. Soma-se a isso
a descentralização da estrutura hierárquica empresarial e a dificuldade na
filtragem de informações dentro da organização da empresa, características
que, segundo a autora, conduzem a uma multiplicação de responsáveis ou,
até mesmo, “a um bloqueio da imputação penal pela falta de pressupostos
objetivos ou subjetivos”15. Essa irresponsabilidade organizada, como visto, levou a
jurisprudência a desenvolver novas formas de atribuição da imputação penal,
controvertidas diante do modelo de direito penal concebido no país e ainda
sem comprovação de sua eficácia.

13 ROXIN, 2008, p. 338-339.


14 A frequência enorme dessas situações de irresponsabilidade organizada individual é uma das razões pelas quais, inequivo-
camente, tem-se propugnado, na atualidade, pela inserção das próprias pessoas jurídicas na discursividade jurídico-
punitiva, conferindo-lhes, pois, aptidão para se apresentarem como centros de imputação penal autônomos. A esse
respeito, cf. TORRÃO, Fernando. Societas delinquere potest?: da responsabilidade individual e colectiva nos “crimes
de empresa”. Coimbra: Almedina, 2010. p. 475-496.
15 ESTELLITA, 2017, p. 72-73.
Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal Nº 97 – Ago-Set/2020 – Doutrina
114

Justamente por essa tendência de responsabilização generalizada de


todos os administradores e encarregados de vigilância é que se faz necessá-
rio delimitar as funções e deveres de agir. Se a lei não o faz, cumpre que a
própria empresa o faça, mediante o estabelecimento de regras e parâmetros
internos de atuação, o que, para alguns, não deixa de consistir numa espécie
de “terceirização de competências”, no sentido de que o Estado transfere
ao próprio setor econômico tarefas de regulação e fiscalização que, a rigor,
pertencer-lhe-iam com exclusividade16.
Nesse contexto, vale trazer um panorama de como é tradicionalmente
desenvolvido o dever de vigilância dentro das empresas, a fim de entender
como se dá a imputação de responsabilidade ao garante.
Basicamente, existem dois modelos mais comuns de se administrar as
empresas, notadamente a Sociedade Limitada e a Sociedade Anônima, com
variações concernentes à forma de administração, realizada diretamente pelos
sócios ou a administração executiva, exercida por administradores não sócios.
A relevância de se falar sobre essas duas formas de administração se dá com o
fim de diferenciar os graus de responsabilidade penal de cada tipo de gestão.
Reportando novamente ao estudo realizado por Estellita, podemos dizer, no
que se refere à administração exercida pelos sócios de uma sociedade limitada,
que a responsabilidade penal a eles atribuída se dá de forma horizontal, visto
que essa responsabilidade, para efeitos de aferição na seara penal, é distribuída
conforme o número de sócios e também suas funções17. Assim, todos são
responsáveis pelas práticas empresariais na medida de suas contribuições.
Essa modalidade de responsabilidade penal ocorre em virtude de os sócios
“deterem todos os poderes de decisão, gestão da sociedade e da execução das
atividades econômicas de seu objeto social”18.
Nesse caso, não haverá separação entre a propriedade da empresa e sua
gestão. A acumulação dos deveres inerentes ao desempenho das funções de
sócio e gestor ao mesmo tempo deixa mais evidentes e demarcados os seus
deveres de vigilância. Assim sendo, falamos em deveres originários, por serem
oriundos dos detentores dos poderes de decisão da empresa.
O mesmo não ocorre quando a administração da sociedade for exer-
cida por pessoa não participante do contrato social ou do ato constitutivo da
sociedade, ou seja, por terceiro contratado para exercer os poderes delegados
pelos sócios. Aqui tratamos dos deveres secundários de vigilância. Esses admi-

16 SCHMIDT, Andrei Zenkner. Direito penal econômico: parte geral. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2015. p. 179.
17 ESTELLITA, 2017, p. 215.
18 ESTELLITA, 2017, p. 217.
Doutrina – Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal Nº 97 – Ago-Set/2020 115

nistradores, que também deverão observar os deveres de vigilância, só serão


responsabilizados na medida da delegação de poderes a eles atribuídos pelos
sócios. O fato relevante que ocorre nessa delegação dos poderes de gestão de
uma empresa é que os delegados – administradores que recebem o mandato
da gestão – não conseguem, na maioria das vezes, exercer os poderes delegados
sem a ajuda de colaboradores.
No desenvolvimento da gestão, esses administradores vão delegar seus
poderes aos colaboradores em conformidade com a função exercida por cada
um dentro de uma estrutura hierarquizada. Ao transferir parte de seus pode-
res de gestão, esses administradores assumem uma posição de garantidores
dos deveres de vigilância, no limite da sua responsabilidade fixada por suas
atribuições na estrutura organizacional.
Sendo a estrutura departamentalizada, a sua responsabilidade se dá
de forma horizontal e seus deveres de vigilância vão até o limite da respon-
sabilidade do gestor de outro departamento. Porém, em relação aos demais
colaboradores, subordinados ao garantidor, diz-se que a responsabilidade
penal será sempre vertical. Na apuração dessa responsabilidade, verifica-se a
relação verticalizada entre o gestor e a sua equipe.
Essas formas de administrar as sociedades limitadas, no plano da impu-
tação da autoria delitiva, estabelecem os critérios para se avaliar a posição de
garante e, ao mesmo tempo, determinar se os deveres de vigilância decorrem
dos deveres originários ou secundários.
Em suma, os deveres originários são diretamente ligados aos sócios, e
os deveres secundários afetos aos que exercem os poderes de gestão delegados,
tornando, assim, novos garantidores dos deveres de vigilância.

5 O Compliance Officer e o Job Description


Os programas de conformidade e integridade surgem como instrumen-
to de contenção de riscos dentro da empresa, a qual busca os meios possíveis
de evitar o cometimento de delitos, com a previsão de códigos próprios de
conduta, canais internos de denúncias e de fiscalização, bem como auditoria,
capacitação dos funcionários, entre outros.
Na nova figura de garantidor dos deveres de vigilância, para verificar se
esse programa de integridade tem sido aplicado corretamente, é que se insere o
compliance officer. É nele que vai ocorrer a concentração das atividades de coleta,
seleção e sistematização de informações sobre possíveis práticas criminosas
no horizonte das empresas. Essa concentração de poderes eleva sobremaneira
Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal Nº 97 – Ago-Set/2020 – Doutrina
116

os deveres de vigilância desses profissionais, naturalmente onerando-os com


a carga inerente à natureza de suas atividades.
Torna-se imprescindível, destarte, que a descrição desses deveres seja
definida com exatidão e clareza. Daí a importância do job description para a
compreensão do compliance officer e do conjunto de deveres de vigilância que
devem ser por ele observados.
Estellita destaca que é necessária a conjunção do fundamento jurídico –
normalmente, o contrato de trabalho – com a assunção fática, especialmente
para o caso dos compliance officers que não integram a administração da empresa,
visto que, sendo a posição de garantidor do compliance officer sempre derivada,
não se pode prescindir da atribuição das tarefas desse encarregado de vigilância
para fundá-la somente na assunção, e isso, porque, quando se trata de delega-
ção, há uma relação entre as partes: o delegado só pode assumir aquilo que o
delegante lhe transfere. Disso, inclusive, decorre a asserção da autora, sobre
ser discutível o dever do compliance officer, em comunicar eventuais práticas
ilícitas às autoridades, exceto no caso da específica determinação da Lei de
Lavagem de Dinheiro, sendo certo que os seus deveres terminam “ali onde
dá cumprimento ao compromisso assumido com os órgãos de administração,
ou seja, a transmissão da informação aos dirigentes”19.
Portanto, é de singular importância a especificação das tarefas e deveres
do compliance officer para que se compatibilize com o grau de delegação formula-
da. O job description, de preferência, deve constar no manual de conformidade e
integridade da empresa e no contrato de trabalho do encarregado de compliance.
A descrição clara e exata das tarefas e deveres do encarregado do com-
pliance program de uma empresa serve basicamente a dois propósitos: o primeiro
é evidente e literal, traduzindo-se na descrição das obrigações para com os
deveres de vigilância estampados no job descripition e no contrato de trabalho,
a fim de orientar o próprio garantidor no desempenho de suas funções. O
outro, não evidenciado literalmente em um job description, mas de fundamental
importância para determinação da responsabilidade penal em caso de eventual
non compliance, qual seja, a excelência no cumprimento das regras de integri-
dade, indicando quais eram os deveres de agir pré-estabelecidos e todas as
ações praticadas para evitar o resultado de um ato ilícito, sempre dentro dos
limites dos poderes delegados.
Essas definições são significativas para que o compliance officer possa
exercer a observância das regras e procedimentos dentro da empresa, tendo
a incumbência de vigilância para evitar a prática de ilícitos, bem como a que-

19 ESTELLITA, 2017, p. 215.


Doutrina – Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal Nº 97 – Ago-Set/2020 117

bra dos padrões éticos pelos integrantes da empresa para com ela própria, e
também para com terceiros estranhos aos seus quadros.
Nesse ponto, mostra-se pertinente a lição de Silveira, para quem “os
fundamentos jurídico-penais do compliance têm em comum o parâmetro básico
de que existe um dever jurídico quanto às medidas possíveis, necessárias e
exigíveis à prevenção de infrações pela empresa”20.
Aspecto importante que deve ser frisado diz respeito à responsabilidade
originária dos dirigentes das empresas. Não obstante os deveres jurídicos do
encarregado pelo compliance, não se pode olvidar, contudo, que a palavra final
das decisões se encontra nas mãos dos dirigentes da empresa. Nesse sentido,
importante a observação de Lobo da Costa e Coelho Araújo, em seus estu-
dos sobre o tema, no sentido de que a estrutura que responderá pelo setor
de compliance empresarial, seja ela centrada em uma pessoa, em uma junta de
pessoas, ou, ainda, em um representante externo, não definirá, só por si, as
decisões a serem tomadas por essa companhia. Ela é apenas o alerta sobre os
riscos evidentes e inerentes às decisões. A afirmação pode parecer um tanto
óbvia, mas, muitas vezes, parte-se do pressuposto que o compliance officer
pode e deve fazer o impossível para evitar qualquer tipo de conduta ilícita
ou indesejada na companhia. Se assim o fosse, o compliance officer deveria ser,
em verdade, o executivo principal da companhia e não apenas uma área de
assessoria na administração21.
Desse modo, como não há previsão legal, no Brasil, de critérios para
o exercício dos deveres de vigilância do compliance officer, faltam parâmetros
claros para a aferição de sua responsabilidade em casos concretos. As tarefas
ficam descentralizadas entre os diferentes cargos e departamentos de direção
e administração da empresa ou, como mencionado, centralizadas exclusiva
e completamente no compliance officer. Nesse contexto é que se enfatiza, mais
uma vez, a importância de um bom programa de compliance e do job descrip-
tion, como fatores de limitação e de distribuição das responsabilidades com
os deveres de vigilância.
A adequada divisão e conhecimento prévios de funções e atribuições,
além de delimitar qual o âmbito de responsabilidade do compliance officer e de
como ele conduzirá a atividade de vigilância na empresa, auxilia na contenção
de riscos dentro da organização empresarial e impulsiona o cumprimento
desses deveres não apenas pelo encarregado de vigilância, como também por
todos os administradores.

20 SILVEIRA; SAAD-DINIZ, 2015, p. 142.


21 COSTA, Helena Regina Lobo da; ARAÚJO, Marina Pinhão Coelho. Criminal compliance na AP 470. Revista Brasileira
de Ciências Criminais – RBCCrim, São Paulo, RT, n. 106, 2013, p.223.
Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal Nº 97 – Ago-Set/2020 – Doutrina
118

É preciso dizer, no entanto, que, mesmo que haja um programa de


compliance na empresa e que tenha o compliance officer dado fiel cumprimento
dos deveres de vigilância descritos no conteúdo de um job description e/ou no
contrato de trabalho, isso não se traduz em automática imunidade, nem em
redução de uma eventual pena aplicada a ele ou aos dirigentes da empresa (ou
à própria pessoa jurídica, em crimes ambientais). Isso, porque não há, na legis-
lação brasileira, previsão de institutos específicos que amparem a aplicação de
medidas para a redução ou isenção da pena criminal nos casos de constatação
em juízo do cumprimento integral das regras de compliance pelos encarrega-
dos de vigilância e pelos administradores de uma empresa, restringindo-se a
minoração das consequências sancionadoras ao âmbito não criminal, como,
por exemplo, aquele alusivo à Lei Anticorrupção. Em eventual processo cri-
minal no qual se constata o efetivo cumprimento das regras de um programa
de conformidade e integridade por um compliance officer, a concessão judicial
de benefícios não poderá ser levada em conta pelo magistrado no momento
de sentenciar, à mingua de previsão legal, o que, naturalmente, arrefece o
estímulo para o desenvolvimento desse tipo de programas.
A aferição, no âmbito judicial, das formas de participação em um ato
criminoso, cometidas pelo encarregado dos deveres de vigilância, ocorrerá na
forma tradicional do direito penal vigente no nosso país, ou seja, observando
as regras da parte geral do Código Penal, da parte especial do mesmo Estatuto
Criminal e em observação às leis extravagantes relacionadas ao tema, sempre
observados os comandos constitucionais. De qualquer maneira, mesmo com
a aplicação, no Brasil, dessa forma de responsabilização penal clássica por
autoria individual, e ainda que não haja previsão legal expressa de isenção
ou redução da pena mediante a implementação do programa de compliance, o
prévio conhecimento e delimitação de atribuições dos encarregados de vigi-
lância – incluindo a previsão de um job description factível – tem a contribuir
na contenção dos riscos e na imposição de limites da responsabilidade penal
no âmbito da empresa, pois, como visto, facilitam a delimitação dos concretos
deveres de agir. Assim, a imputação penal vai ocorrer mediante a satisfação dos
pressupostos objetivos e subjetivos, com particular ênfase, no caso dos crimes
por omissão imprópria, na constatação de um prévio dever de agir da empresa
de modo geral e do compliance officer em específico, e na verificação sobre se
esse dever de agir para evitar o resultado foi cumprido satisfatoriamente.

6 Conclusão
É certo que, há muito tempo, observamos os problemas enfrentados nos
processos criminais tendentes à apuração da posição de garante no cotidiano
Doutrina – Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal Nº 97 – Ago-Set/2020 119

de nossos tribunais. Parece já tardar o momento de o legislador definir de


forma expressa a tipificação de condutas criminosas realizadas no âmbito das
empresas, conferindo segurança jurídica aos feitos dessa natureza, ou mes-
mo de cogitar, como sucede noutros países, da responsabilização da própria
pessoa jurídica.
Não se descarta, de outra parte, que a legislação brasileira caminhe
no sentido de elevar ao mesmo patamar de possibilidades de redução ou
isenção de pena existentes no Código Penal o adimplemento total das re-
gras de compliance em uma empresa, como uma das formas de exclusão da
responsabilidade criminal. Seria, com efeito, um incentivo para as empresas
fomentarem, cada vez mais, a implementação dos programas de integridade,
principalmente aquelas que estão expostas à intensa regulação, como é o caso
das pessoas jurídicas que atuam junto ao sistema financeiro nacional, para
ficarmos somente com um exemplo.
Enquanto isso não ocorre, o que se verifica é um contingente de de-
cisões judiciais que imputam responsabilidade ao garantidor sem substância
legal de elevada densidade, ou, por outra vertente, a constatação da cabal
impossibilidade de definirem-se, com grau razoável de verossimilhança, os
efetivos responsáveis pela prática ilícita, ensejando uma também indesejável
impunidade. A falta de uma orientação clara sobre o assunto abre espaço às
decisões discricionárias, calcadas por um profundo grau de subjetividade e
sem escorreita fundamentação.
Vislumbra-se, ainda, nos casos de delegação dos deveres de garantia
formalizados em um job description, seja em documentos internos, ou nos
constantes em contrato de trabalho, igualmente problemas para a efetivação
do juízo de imputação. Todo esse conjunto de circunstâncias negativas gera
uma grande insegurança jurídica, merecendo, por parte dos legisladores e dos
aplicadores do direito penal, uma especial atenção como forma de restringir o
significativo grau de arbítrio que carregam as decisões meramente intuitivas.
Dessa forma, o job description, além de orientar o exercício das funções
realmente desempenhadas pelo encarregado de vigilância de uma empresa,
cria, se bem compreendido, parâmetros para as decisões judiciais atentarem,
em cada caso concreto, aos deveres de agir atribuídos a cada compliance officer,
assim oferecendo critérios mais objetivos para fundamentação das decisões.

TITLE: Job description and compliance in corporate criminal law.

ABSTRACT: This article seeks to analyze the role of guarantor assumed by the Compliance Officer and
the importance of establishing, in the integrity programs of the companies or even in the employment
contract of the supervisors, the job description for the exercise of the position. This definition is able to
Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal Nº 97 – Ago-Set/2020 – Doutrina
120

protect not only these specific guarantors, but also the company directors and other employees, since, when
describing the Compliance Officer’s field of action, they inform these officers of the proper performance
of their surveillance duties and delimit the sphere of responsibility within the company.

KEYWORDS: Criminal Liability of Companies. Compliance and Surveillance Duties. Job Description.

7 Referências
AMBOS, Kai. Direito penal internacional econômico: Fundamentos da responsabilidade penal internacional
das empresas. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2019.
COSTA, Helena Regina Lobo da; ARAÚJO, Marina Pinhão Coelho. Criminal compliance na AP 470. Revista
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DAVID, Décio Franco. Manual de direito penal econômico. São Paulo: D’Plácido, 2020.
ESTELLITA, Heloisa. Responsabilidade penal de dirigentes de empresas por omissão: estudo sobre a responsabili-
dade omissiva imprópria de dirigentes de Sociedades Anônimas, Limitadas e encarregados de cumprimento
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MARTINS-COSTA, Antônio. Considerações sobre a omissão imprópria e a responsabilidade penal por
ingerência. In: CAVALCANTI, Fabiane da Rosa; FELDENS, Luciano; RUTTKE, Alberto (Org.). Ga-
rantias penais: estudo alusivo aos 20 anos de docência do Professor Alexandre Wunderlich. Porto Alegre:
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ROXIN, Claus. Autoria mediata por meio do domínio da organização. In: GRECO, Luiz; LOBATO,
Danilo (Coord.). Temas de direito penal: parte geral. Rio de Janeiro: Renovar, 2008.
SCHMIDT, Andrei Zenkner. Direito penal econômico: parte geral. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2015.
SILVEIRA, Renato de Mello Jorge; SAAD-DINIZ, Eduardo. Compliance, direito penal e lei anticorrupção.
São Paulo: Saraiva, 2015.
TORRÃO, Fernando. Societas delinquere potest?: da responsabilidade individual e colectiva nos “crimes de
empresa”. Coimbra: Almedina, 2010.

Recebido em: 17.07.2020


Aprovado em: 24.08.2020
Doutrina

A Internacionalização do Crime na
Sociedade da Informação

Bianca Santos Cavalli Almeida


Advogada e Mestranda no Programa de Mestrado em Direito
da Sociedade da Informação do Centro Universitário das
Faculdades Metropolitanas Unidas; Bacharel em Direito pela
Faculdade de Direito Mackenzie/SP; Especialista em Direito
Empresarial pela Fappes/SP e em Direito Tributário pela
Faculdade Damásio de Jesus/SP.

Ricardo Libel Waldman


Doutor em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande
do Sul; Professor do Mestrado em Direito da Sociedade
da Informação do Centro Universitário das Faculdades
Metropolitanas Unidas e na Escola de Direito da Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul; Membro
da Comissão Mundial de Direito Ambiental da União
Internacional para a Conservação da Natureza; Advogado.

RESUMO: O objetivo deste artigo é analisar quais as influências da globaliza-


ção e da era digital no expansionismo do crime organizado, identificando suas
características e seus efeitos na economia, política e cultura das nações, bem
como identificar sua sustentabilidade na sociedade global. Busca evidenciar o
desenvolvimento de nova espécie de criminalidade caracterizada pela transna-
cionalidade, e, por fim, relacionar as formas existentes em escala mundial para
o efetivo combate a esse tipo de crime organizado qualificado por sua fluidez
e tempestividade nas comunicações e relações extraterritoriais. Conclui, ainda,
pela necessidade de se traçar novas perspectivas ao combate ao crime aludido sob
o enfoque do processo de securitização, da segurança humana, da cooperação e
do consenso entre as nações.

PALAVRAS-CHAVE: Globalização. Crimes Transnacionais. Convenções In-


ternacionais. Sociedade da Informação. Direito Digital.

SUMÁRIO: Introdução. 1 A Globalização e sua Influência na Criminalidade.


2 O Crime Organizado e as Diferenças entre Transnacional e Internacional. 3
Convenção da ONU Contra o Crime Organizado Transnacional e a Conven-
ção de Budapeste. 4 Crime de Lavagem de Dinheiro. Considerações Finais.
Referências Bibliográficas.
Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal Nº 97 – Ago-Set/2020 – Doutrina
122

Introdução
O objeto central deste artigo é analisar as influências do crime organi-
zado transnacional na sociedade contemporânea, bem como a existência de
regime internacional de cooperação entre os Estados, diante da potencialização
adquirida pelas organizações criminosas nos crimes globais em função da
conectividade desses grupos propiciada pela era digital.
A abordagem permeará o exame do crime organizado, bem como a sua
característica transnacional, principalmente na agenda internacional, com de-
finições dos tipos criminais cotejados pelas agências nacionais e internacionais
de segurança, para, ao final, delimitar seu significado e estabelecer seu alcance.
Os resultados deste estudo apontam para a importância da vertente
econômica das atividades criminosas, materializada por meio do ganho ilícito,
característica primordial e final inerente a atividades ilegais e, concomitante-
mente, confirmar o caráter transnacional das atividades e sua influência no
mundo contemporâneo globalizado.
Serão observadas, ainda, as perspectivas políticas, econômicas e sociais
nesse cenário. A primeira revela o crime organizado transnacional como
resultante de um aparato estatal frágil com baixo grau de representatividade
e articulação das instituições públicas. Já na seara econômica, o crime trans-
nacional é promovido em razão da demanda do mercado por bens e serviços
ilícitos, com visão comercial das atividades ilegais. No quesito social, há uma
identificação da existência dos elementos sociais, culturais e étnicos, como
fatores presentes no desenvolvimento do crime organizado transnacional e
sua forma de organização hierarquizada e em redes.
Cabe salientar que a análise buscará verificar as causas e manifestações
do crime organizado transnacional e os fatores que determinaram sua trans-
nacionalização, destacando a influência dos processos de globalização e o en-
fraquecimento do poder estatal ocasionado pela dificuldade em se estabelecer
alianças voltadas ao compartilhamento de valores comuns com outros Estados.
Diante desse contexto, importante destacar que, tornou-se imperativa
a necessidade de as organizações criminosas protegerem seus ganhos ilícitos
através dos mecanismos de lavagem de dinheiro, destinados a ocultar a proce-
dência de tais ativos dificultando ou impedindo sua identificação e recuperação,
situação que será singularizada neste artigo.
Certamente, o reconhecimento das tipologias do crime organizado
transnacional permitiu a sistematização dos seus diversos aspectos intrínse-
cos, revelando a evolução dos arranjos organizacionais ao longo do tempo.
Nesse sentido, com o presente estudo, observou-se que esses grupos eram
Doutrina – Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal Nº 97 – Ago-Set/2020 123

identificados originariamente como hierarquizados, e, com o advento da re-


volução tecnológica, observa-se a transição para uma forma de atuação mais
descentralizada, em redes difusas.
A temática, por fim, busca verificar a viabilidade de intensificação ao
combate ao crime supramencionado, com foco nas diretrizes da Convenção
das Nações Unidas contra esse tipo criminal. Nesse âmbito, importante ava-
liar o desenvolvimento das novas políticas de segurança pública dos Estados,
destinadas a estabelecer regras de cooperação entre os órgãos do governo
relacionados com a segurança pública, fiscalização tributária e inteligência
financeira, de modo a organizar corporação destinada especialmente ao com-
bate à espécie de crime ora tratado.
No que concerne à metodologia, foi construída em pesquisa bibliográ-
fica e documental, com apoio no método dedutivo.

1 A Globalização e sua Influência na Criminalidade


A era digital, a partir do final do século XX, proporcionou mudanças
consideráveis em todos os campos da sociedade, trazendo velocidade no
compartilhamento da informação, aproximando distâncias longínquas, am-
pliando a rede de comunicação do indivíduo e alterando de forma definitiva
o comportamento humano e suas relações sociais (COSTA, 2001, p. 11).
Ainda, nesse período, com o estabelecimento da globalização no cená-
rio mundial (década de 1980), tornaram-se evidentes as transformações que
culminariam com o fim do mundo socialista e a antiga rivalidade dos tempos
da Guerra Fria, no início dos anos 1990 (CASTELLS, 2012, p. 76).
De fato, com o fim da bipolaridade (capitalismo/socialismo) e o domí-
nio do capitalismo em esfera global, os Estados Unidos, considerados como
triunfantes na Guerra Fria, assumiram o papel da grande potência mundial.
No entanto, apesar do indiscutível poderio americano, Japão e Alemanha
também surgiam como polos da economia mundial, que se tornou multipolar
(HUNTINGTON, 1996, p. 18-19).
Nesse contexto, a economia global sedimentou seu caráter inter-rela-
cional quando as empresas transnacionais cruzaram as fronteiras dos Estados
Nacionais, deslocando seu capital para atender a seus interesses econômicos
sempre que um território disponibilizasse maiores vantagens mercadológicas,
com a instalação de suas filiais em todo o mundo.
Integra-se a todo esse cenário a revolução dos meios de transporte, das
comunicações e o surgimento da informática. Nesse sentido, é salutar afirmar
Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal Nº 97 – Ago-Set/2020 – Doutrina
124

que a globalização e o consequente avanço tecnológico mundial contribuíram


para reconfigurar os conceitos de soberania e território (BAUMAN, 1999,
p. 66-68 e 110).
Nessa linha, surgiu o termo “aldeia global”, criado pelo filósofo cana-
dense Marshall McLuhan, segundo o qual, os avanços tecnológicos, sobretudo
aqueles relacionados aos meios de comunicação de massa como a televisão
iriam aproximar os indivíduos do globo, reduzindo as distâncias não somente
físicas, mas também sociais entre eles, criando, assim, uma unidade cultural,
isto é, uma verdadeira aldeia onde todos estariam, de alguma forma, interli-
gados (1992, p. 7).
De fato, a globalização da mesma forma que contribuiu para uma
conexão de relações econômicas, sociais, culturais, ambientais, informativas,
alterando de forma significativa os acontecimentos sociais, modificou, por
consequência, os comportamentos criminais.
Tal ponderação coaduna-se com a conclusão de Zygmunt Bauman no
que tange aos efeitos da globalização para a população mundial:

“Para alguns, ‘globalização’ é o que devemos fazer se quisermos ser felizes;


para outros, é a causa de nossa infelicidade. Para todos, porém, ‘globali-
zação’ é o destino irremediável do mundo, um processo irreversível; é
também um processo que nos afeta a todos na mesma medida e da mesma
maneira.” (1999, p. 7)

Conforme compreensão de Alberto Silva Franco, as facilidades advindas


dessa era como conforto e economicidade de tempo também beneficiaram a
logística da organização criminosa global, proporcionando-lhe gerenciamento
sofisticado do organismo e expertise para expandir-se de forma impressionante
(2000, p. 120).
Considerando, assim, as vantagens obtidas com a chegada de novas
tecnologias, bem como o encurtamento de distâncias entre países decorrente
do fim da Guerra Fria e surgimento da globalização, torna-se evidente que
o crime organizado global representa cada vez mais nos dias atuais ameaça
à segurança mundial, com reflexos importantes para a saúde pública, para
instituições democráticas e para a estabilidade econômica de todo o mundo
(ALBANESE, 2014, p. 63).
Segundo Manuel Castells, para sustentar as redes criminosas transna-
cionais como tráfico de drogas e de armas, por exemplo, há a utilização de
intermediários financeiros ou empresas de fachada para esconder a origem
dos ganhos ilícitos e transformá-los em recursos legítimos, ação que será
Doutrina – Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal Nº 97 – Ago-Set/2020 125

pormenorizada neste artigo e que prejudica de forma severa a identificação da


cadeia de ilicitude, ainda mais quando praticada com o auxílio da plataforma
cibernética (2012, p. 204).
Ainda, importante ressaltar que o crime organizado transnacional se
potencializa em regiões onde a corrupção governamental ou a falta de fisca-
lização predomina, com funcionários que recebem rendimentos de empresas
criminosas ou possuem, por vezes, participação acionária na entidade comercial
de aparência legítima (ALBANESE, 2014, p. 2).
Desse modo, imperioso se faz buscar meios de combater com veemência
essa espécie de crime que se alastra como epidemia em uma sociedade global
marcada pelo individualismo, pela impessoalidade nas relações, pelo consumo
desenfreado e pela fragilidade dos negócios e transações virtuais.
Vale asseverar que existem razões relevantes para o crescimento do
crime organizado. Como forma exemplificativa, destacam-se: a impunidade
e a ineficácia da justiça criminal em coibir os crimes de elite, mantendo foco
nos crimes praticados por grupos desfavorecidos social e economicamente,
bem como a alta demanda nas sociedades pelos produtos e serviços providos
pelos grupos criminosos (CASTELLS, 2012, p. 205-207).
Importante clarificar que há uma preocupação mundial progressiva com
grupos e operações de criminalidade econômica organizada que ultrapassam
as fronteiras nacionais, segundo preconiza o Ministério Público de Portugal
em seu Guia Legislativo Português para a Aplicação da Convenção das Na-
ções Unidas Contra a Criminalidade Econômica Organizada Transnacional
(MINISTÉRIO PÚBLICO DE PORTUGAL, 2019).
O mesmo guia expõe que, quanto aos autores, as vítimas e os instrumen-
tos ou produtos do crime, estes se localizam e atravessam diversas jurisdições
e assim a abordagem tradicional dos serviços responsáveis pela aplicação da
lei, centrada apenas em nível nacional, acaba inevitavelmente frustrada. Dessa
forma, na medida em que os tipos de crimes transnacionais e número de asso-
ciações criminosas parecem inflar, nenhum país fica imune, e, diante disso, é
indiscutível a necessidade de que todos os governos se auxiliem mutuamente
na luta contra esses delitos sofisticados e estruturados.
Diante de todo cenário acima descrito, a nova espécie de criminalidade
caracterizada pela transnacionalidade advinda desse panorama que se aproveita
dos avanços dos meios de comunicação e interligação entre os Estados, bem
como a ausência de um direito globalizado capaz de regular os acontecimentos
supranacionais.
Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal Nº 97 – Ago-Set/2020 – Doutrina
126

O termo transnacionalidade foi inicialmente utilizado por Samuel


Huntington no artigo Transnational Organizations in World Politics, em estudo
sobre Política Internacional voltado à observação do papel de algumas or-
ganizações no cenário mundial, visando identificar modelos de atuação da
Agência de Inteligência Norte-Americana (CIA), o Banco Mundial, a Igreja
Católica, a Companhia Aérea Air France e a Fundação Ford, por exemplo
(1973, p. 333-334).
O mesmo autor elucida que a nova espécie de crime está inserida no
gênero de organização criminosa, que se caracteriza, por sua vez, em uma
organização econômica, nos moldes de uma organização capitalista, estru-
turada sob o supedâneo da maximização dos lucros e controle vertical da
produtividade assemelhando-se a qualquer outra empresa multinacional legal.
Conforme esclarece Ziegler, a era digital favoreceu a rede criminosa
caracterizada por ser transnacional, pois propiciou velocidade e proteção na
troca de informação desses grupos e mais assertividade na abrangência desse
mercado:

“Para o crime organizado, a internet é um presente do céu. (...) Os cartéis


criminosos de todo mundo têm ao seu dispor informações de alto nível.
A internet representa um equipamento auxiliar precioso para a maioria
das comunicações entre diferentes cartéis criminosos, especialmente os
que se associam em joint ventures internacionais. Suas comunicações são
protegidas por programas de criptografia praticamente impenetráveis.
Fortemente marcados pela racionalidade americana, os novos chefões
surgidos no pós-guerra não se vinculam mais – em primeiro lugar – ao
controle da população ou da terra. (...) Os senhores do crime e seus cúm-
plices prosperam naturalmente nos ‘principados’ que enveredaram pela
modernização acelerada, desfrutando de uma inserção rápida no mercado
mundial.” (2003, p. 55)

Relevante apresentar as principais características do crime organizado,


elencadas pela Academia Nacional de Polícia Federal do Brasil: “Planejamento
empresarial, antijuridicidade, diversidade de área de atuação, estabilidade de
seus integrantes, cadeia de comando, pluralidade de agentes, compartimen-
tação, códigos de honra, controle territorial e fins lucrativos” (ACADEMIA
NACIONAL DA POLÍCIA FEDERAL, 2019).
Ainda, cabe mencionar a definição desse tipo criminal no art. 1º da Lei
n° 12.850/2013 do nosso ordenamento jurídico:

“§ 1º Considera-se organização criminosa a associação de 4 (quatro) ou mais


pessoas estruturalmente ordenada e caracterizada pela divisão de tarefas,
Doutrina – Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal Nº 97 – Ago-Set/2020 127

ainda que informalmente, com objetivo de obter, direta ou indiretamente,


vantagem de qualquer natureza, mediante a prática de infrações penais
cujas penas máximas sejam superiores a 4 (quatro) anos, ou que sejam de
caráter transnacional.” (BRASIL, 2013)

O crime organizado já foi exclusivamente um problema interno de


muitos países. No entanto, o caráter transnacional de ameaça global revela que
nenhum país pode combatê-lo sozinho. O combate ao tráfico de drogas, por
exemplo, precisa de cooperação política entre os Estados, que devem realizar
operações conjuntas e prestar assistência mútua.
No que tange à sua característica transnacional, cuja acepção da palavra
revela situação que ultrapassa os limites da nacionalidade, faz-se necessário
distinguir tal espécie de crime global de sua internacionalização, ponto que
será abordado a seguir.

2 O Crime Organizado e as Diferenças entre Transnacional e


Internacional
No que se refere ao fenômeno do crime organizado, para Francis Beck,
a característica fundamental da criminalidade organizada está pautada no seu
viés transnacional, mas se admite a ocorrência de criminalidade organizada
em um âmbito restrito às fronteiras nacionais (2004, p. 59).
Observa-se, ainda, que a criminalidade organizada se desenvolve em
diferentes modos, podendo adaptar-se a fins diversos. Desse modo, poder-se-ia
afirmar que há criminalidade organizada voltada ao narcotráfico, ao contra-
bando de armas, ao terrorismo, entre outros. Em realidade, o fenômeno do
crime organizado apresenta constante mutabilidade na medida em que pode
acompanhar o progresso tecnológico (BECK, 2004, p. 69).
Apesar de não possuir um conceito hermético e preciso, a criminali-
dade organizada apresenta características essenciais que a identificam como
tal, quais sejam: estrutura hierárquico-piramidal, estabelecida no mínimo
em três níveis, com a presença de um chefe, conselheiro, gerentes e partíci-
pes de outros escalões subalternos; divisão de tarefas entre os membros da
organização, como decorrência da diversificação de atividades; restrição dos
componentes apenas a pessoas de absoluta confiança, para melhor controlar
a atuação individual; envolvimento de agentes públicos; busca constante de
lucro e poder, e, por fim, lavagem do capital obtido ilicitamente (BARROS,
2004, p. 35-36).
Contudo, as características acima mencionadas não excluem a incidência
de outros caracteres, na medida em que não corresponde a um rol taxativo,
Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal Nº 97 – Ago-Set/2020 – Doutrina
128

mas meramente exemplificativo. Imprescindível ressaltar que a criminalidade


organizada não se confunde com a “prática organizada de delitos”. Enquanto
aquelas possuem a característica da permanência, configurando uma verdadeira
“instituição”, na medida em que ostenta uma duração maior que o tempo de
vida de seus integrantes, esta se volta para a prática organizada de diversas
infrações, desfazendo-se, por vezes, após a perpetração dos delitos (REALE
Jr., 1996, p. 182-183).
O conceito de crime internacional advém do cenário pós 2ª Guerra
Mundial no Tribunal Militar de Nuremberg, na Alemanha, em 1947, com
o objetivo de julgar os crimes cometidos pelos nazistas durante a guerra. A
criação desse tribunal se deu através de um acordo firmado entre os repre-
sentantes da URSS, dos EUA, da Grã-Bretanha e da França, em Londres,
em 1945 e, deste ano a 1949, o Tribunal julgou 199 homens, sendo 21 deles
líderes nazistas (ARAGÃO, 2009, p. 83-84).
Os crimes supracitados afetam a comunidade internacional no seu
conjunto e, por sua natureza, a ação e resultado podem ocorrer em um único
país, sem necessidade de transposição de espaço limítrofe entre territórios.
O Estatuto do Tribunal Militar Internacional de Nuremberg tipificou
os crimes no artigo 6º em três espécies: contra a paz, que significa planejar,
preparar, iniciar ou mover uma guerra de agressão ou uma guerra em viola-
ção a tratados, acordos ou compromissos internacionais, ou participar de um
plano ou conspiração comum para a consumação de qualquer um dos atos
anteriores; já os crimes de guerra são aqueles cuja violação de leis ou costu-
mes de guerra incluem, mas não se limitam a maus-tratos ou deportação para
trabalho escravo, ou para qualquer outro propósito, de população civil de ou
em território ocupado, assassinato ou maus-tratos de prisioneiros de guerra ou
pessoas ao mar, assassinato de reféns, por exemplo (NUREMBERG TRIAL
PROCEEDINGS, 2008).
Por fim, os crimes contra a humanidade que possuem a seguinte pre-
visão:

“Crimes contra a humanidade, designadamente homicídio, extermínio,


escravidão, deportação, e outros atos desumanos cometidos contra toda e
qualquer população civil, antes ou no decurso da guerra, ou perseguições
nos campos político, racial ou religioso, em execução ou em ligação com
qualquer dos crimes abrangidos pela jurisdição do Tribunal, quer tenham
sido ou não praticados em violação do direito interno do Estado onde são
perpetrados.” (ZOCOLER, 2013, p. 1)
Doutrina – Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal Nº 97 – Ago-Set/2020 129

Com vistas a delimitar a tipologia dos crimes supramencionados, cabe


elucidar que, por ataque contra uma população civil, entende-se qualquer
conduta que envolva a prática múltipla de atos referidos no rol de crimes de
competência do tribunal penal internacional contra uma população civil, de
acordo com a política de um Estado ou de uma organização de praticar esses
atos ou tendo em vista a prossecução dessa política.
O Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional, ora promulgado
em território nacional pelo Decreto nº 4.388/02, em seu art. 7º, por sua vez,
tipificou os crimes internacionais como: genocídio, crimes contra a humani-
dade, crimes de guerra, terrorismo e os crimes de agressão (BRASIL, 2002).
Nos termos desse artigo, § 2º, alínea b, do mesmo texto legal, há a definição
de extermínio, que compreende a sujeição intencional a condições de vida,
tais como a privação do acesso a alimentos ou medicamentos, com vista a
causar a destruição de uma parte da população.
Nesse contexto, significante mencionar como crimes internacionais
as violações graves aos tratados internacionais celebrados na Convenção de
Genebra, em 12 de agosto de 1949, (promulgados em território brasileiro
pelo Decreto nº 849, de junho de 1993), relacionadas aos seguintes atos di-
rigidos contra pessoas ou bens protegidos nos seguintes termos: homicídio
doloso, tortura ou outros tratamentos desumanos, incluindo as experiências
biológicas; o ato de causar intencionalmente grande sofrimento ou ofensas
graves à integridade física ou à saúde; destruição ou apropriação de bens em
larga escala, quando não justificadas por quaisquer necessidades militares e
executadas de forma ilegal e arbitrária e deportação ou transferência, ou a
privação de liberdade ilegais (BRASIL, 1993).
Conforme acepção de Christopher Macleod, ao praticar um crime con-
tra a humanidade, o sujeito ativo fracassa em satisfazer sua natureza humana:
comporta-se de maneira tal, que ignora ser ele mesmo um ser humano, pelo
que sua ação seria subumana (CITTADINO, 2018, p. 63 apud MACLEOD,
2010, p. 283).
O mesmo autor defende que os delitos ofendem a condição humana da
vítima, uma vez que importam em grave humilhação ou degradação física e/ou
moral, no que descreve esse tipo de crime como um agir contrário à natureza
(CITTADINO, 2018, p. 66 apud MACLEOD, 2010, p. 283).
Faz necessário aclarar que tanto o Tribunal Penal Internacional, já ante-
riormente mencionado, quanto os crimes submetidos a sua competência (os
crimes internacionais) nascem de uma necessidade bastante específica e dentro
do contexto, pós-Segunda Guerra Mundial (Tribunal Militar de Nuremberg,
Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal Nº 97 – Ago-Set/2020 – Doutrina
130

1947), de persecução penal de um fenômeno criminoso complexo e envolto


em repercussão internacional de violação de direitos humanos.
Já o crime organizado transnacional caracteriza-se pela prática de ilíci-
tos com a violação de ordenamentos jurídicos nacionais e, necessariamente,
interferindo em outro ou outros países, tipificado no país pelo Decreto nº
5.015/04, em seu art. 3º (BRASIL, 2004).
Conforme classifica Samuel Huntington, as organizações criminosas
transnacionais obedecem a três critérios basicamente: estrutura complexa
com comando hierarquizado; exercício de suas atividades com especialização
e domínio de técnica, e, por fim, desenvolvem suas ações através de várias
fronteiras, utilizando-se, para tanto, de instrumentos interbancários para a
transferência de capitais financeiros (1973, p. 333-334).
Assim, diferentemente do crime internacional, a ação criminosa obri-
gatoriamente envolverá mais de um país em alguma das fases do iter criminis
e a tipificação da conduta está, via de regra, nos ordenamentos jurídicos in-
ternos dos países. No mesmo sentido, Jay Albanese leciona que a perspectiva
transnacional se caracterizará quando o planejamento ou a execução do crime
envolva mais de um país (2007, p. 205).
Nas palavras de Claudio Langroiva Pereira (2013):

“tal ilícito apresenta características assemelhadas em várias nações, detém


um imenso poder com base em estratégia global e possui estrutura organi-
zativa que lhe permite aproveitar as fraquezas estruturais do sistema penal,
provoca danos sociais, possui grande força de expansão compreendendo
uma gama de condutas infracionais sem vítimas ou com vítimas difusas e
dispõe de meios instrumentais de moderna tecnologia.”

Conforme dispõe o Escritório das Nações Unidas sobre drogas e


crime, o crime organizado transnacional não é estagnado, é uma indústria
em constante mutação, adaptando-se aos mercados e criando novas formas
de criminalidade. Em suma, trata-se de um negócio ilícito que transcende
fronteiras culturais, sociais, linguísticas e geográficas e que não conhece regras
(UNODC, 2019).
Dentre as muitas atividades que podem ser definidas como crime or-
ganizado transnacional, pode-se destacar, segundo aponta a UNODC como
principais: o tráfico de drogas, contrabando de migrantes e mercadorias falsas,
tráfico de armas de fogo, tráfico humano (considera-se nesse tipo o trabalho
escravo, o tráfico sexual e de órgãos), lavagem de dinheiro, tráfico de material
nuclear, tráfico de vida selvagem e propriedade cultural e alguns aspectos do
cibercrime.
Doutrina – Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal Nº 97 – Ago-Set/2020 131

Vale mencionar dentre todos os crimes listados acima, o tráfico de dro-


gas é um dos mais lucrativos, como alerta UNODC (Escritório das Nações
Unidas sobre Drogas e Crime) em seu website. A Organização Mundial do
Trabalho (ILO – International Labour Organization), órgão das Nações Uni-
das, indicou que, por ano, cerca de 2,4 milhões de pessoas foram vítimas de
alguma forma de tráfico humano (exploração sexual ou para exploração do
trabalho), resultando em um lucro de U$ 32 bilhões para o crime organizado.
Somente na Europa, o tráfico de mulheres e crianças para a exploração sexual
envolve 140.000 vítimas, com faturamento de U$ 3 bilhões anualmente. No
contrabando de imigrantes, os criminosos rotineiramente praticam atroci-
dades, como agressões, sufocamento. Dados recentes indicam que no eixo
entre América Latina e América do Norte foram contrabandeados cerca de 3
milhões de imigrantes, gerando um faturamento de U$ 6,6 bilhões de dólares
(UNODC, 2019).
Ainda na mesma pesquisa realizada pelo Escritório supramencionado,
o contrabando de recursos minerais raros como diamantes e diversos outros
metais, no caso do Sudeste Asiático, gera anualmente uma renda de U$ 3,5
bilhões de dólares. Sem dúvida, o tráfico de animais silvestres é uma atividade
bastante lucrativa no mundo do crime transnacional e, conforme apontam
os dados divulgados pela organização UNODC (2019), o tráfico de marfim,
corno de rinoceronte, e partes de tigres da África e Sudeste Asiático produz
um lucro de U$ 75 milhões de dólares a cada ano, além de ameaça às espé-
cies em questão. Conforme a organização WWF-Brasil expõe em seu website,
os traficantes de animais movimentam aproximadamente 100 milhões de
toneladas de peixes, 1.5 milhão de aves vivas e 440.000 toneladas de plantas
medicinais a cada ano (WWF-BRASIL, 2019).
Já no que tange ao cibercrime, embora a UNODC o relacione como
um campo relativamente novo e com ampla aplicação em diversos setores,
atualmente é um dos negócios mais lucrativos para o crime transnacional,
gerando cerca de U$ 1 bilhão a cada ano. Os criminosos têm aumentado cada
vez mais o furto de dados privados, acesso a informações de contas bancárias
e pagamentos fraudulentos através de cartões de crédito clonados.
Faz-se significativo nessa análise pormenorizar o narcotráfico, um dos
tipos mais lucrativos de crime transnacional, no qual sua expansão em alta
escala iniciou-se a partir da década de 1970 e se desenvolveu na década de
1980 (GUIA NARCOTRÁFICO, 2016, p. 11).
Decerto, as drogas, da perspectiva de uma grande atividade econômica
informal em desenvolvimento, também crescem como uma das atividades
mais rentáveis e eficientes da indústria moderna em todo o mundo globalizado.
Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal Nº 97 – Ago-Set/2020 – Doutrina
132

No início da década de oitenta, o narcotráfico figurava como o empreendi-


mento transnacional mais destacado dos países da América Latina. Ao final do
milênio, a Organização das Nações Unidas (ONU) chegou a estimar que a
indústria das drogas gera um movimento de capital em torno de 400 bilhões
de dólares anuais, cifra equivalente “acerca do dobro da renda da indústria
farmacêutica mundial, ou a umas dez vezes o total de toda a assistência oficial
para o desenvolvimento” (SANTANA, 1999, vol. 42, n. 2).
Segundo Manuel Castells, as principais características dessa indústria
são: orientação pela demanda e exportação, indústria internacionalizada com
divisão de mão de obra em diferentes locais do processo produtivo, sistema
de lavagem de dinheiro é essencial para a manutenção da atividade, transações
são realizadas por meio de alto nível de violência e, para funcionar, há a ne-
cessidade da existência de corrupção e penetração em seu meio institucional,
como polícia, alfândega, juízes, políticos, banqueiros, químicos e transpor-
tadores (2012, p. 205).
Há que se reconhecer, assim, que, no cenário internacional contempo-
râneo, o narcotráfico faz-se presente em diversos âmbitos e atua como inimigo
que atenta contra a segurança mundial e que solapa os valores da democracia
do mercado livre.
Por fim, a percepção supranacional do crime transnacional pode ser
observada por meio de respostas políticas advindas das organizações interna-
cionais, destacando-se a Organização das Nações Unidas (ONU) e União
Europeia (EU), principalmente, as quais incorporam em seu debate o impacto
do crime organizado transnacional na agenda global e a influência na segurança
mundial, conforme será observado a seguir.

3 Convenção da ONU Contra o Crime Organizado Transnacional e a


Convenção de Budapeste
O primeiro instrumento global para combater o crime supramen-
cionado – a Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado
Transnacional (Convenção de Palermo) e seus três protocolos suplementares
– entrou em vigor em 2000, em Nova York, demonstrando o compromisso da
comunidade internacional para enfrentar o desafio de prevenção e combate
aos delitos supracitados.
A referida convenção foi ratificada pelo Brasil através do Decreto nº
5.015/04, sendo que o então Secretário- Geral da ONU, Kofi A. Annan, à
época, assim se manifestou no prefácio do termo:
Doutrina – Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal Nº 97 – Ago-Set/2020 133

“A comunidade internacional demonstrou o anseio político de resolver os


desafios globais com uma resposta global. Se o crime atravessa as fronteiras,
assim deve também ocorrer com a aplicação da lei. (...). Se os inimigos do
progresso e dos direitos humanos procuram explorar as facilidades e oportu-
nidades fornecidas pela globalização para seus propósitos, então temos que
explorar esses mesmos fatores para a defesa dos direitos humanos e derrotar
as forças ligadas ao crime, corrupção e tráfico de seres humanos. (...) Os
grupos criminais não desperdiçaram tempo para se agregarem à economia
globalizada e a tecnologia sofisticada que a ela acompanha. Mas os nossos
esforços para combatê-los permaneceram até o momento fragmentado e
as armas obsoletas. A Convenção nos proporciona uma nova ferramenta
para situar o flagelo do crime como um problema global.” (tradução nossa)
(UNODC, TOCebook, 2019).

A Convenção representa um passo importante na luta contra o crime


organizado transnacional e significa o reconhecimento por parte dos Estados-
Membros da gravidade do problema, bem como a necessidade de promover
e de reforçar a estreita cooperação internacional, a fim de enfrentar o crime
organizado transnacional (NAÇÕES UNIDAS BRASIL, 2013).
Com adoção quase universal, a Convenção é um marco que oferece
aos seus 178 Estados-Membros um quadro de cooperação para combater o
problema do crime organizado. Estados que ratificam o instrumento ficam
comprometidos a uma série de medidas, incluindo a criação de delitos domés-
ticos (participação em um grupo criminoso organizado, lavagem de dinheiro,
corrupção e obstrução da justiça), adoção de marcos de extradição, assistência
jurídica mútua e cooperação policial, além de promoção de treinamento e
assistência técnica para a construção ou melhoria da capacidade necessária
das autoridades nacionais.
O tratado contempla diversos protocolos importantes. O protocolo
para prevenir, suprimir e punir o tráfico de pessoas, especialmente mulheres
e crianças, é o primeiro instrumento global de vínculo jurídico, com uma
definição acordada de tráfico de pessoas. Isso permite consistência em todo o
mundo sobre o fenômeno do tráfico de pessoas, e facilita o estabelecimento
de legislação doméstica para investigar e processar casos. O protocolo também
prevê medidas importantes para proteger as vítimas, com pleno respeito pelos
direitos humanos.
Da mesma forma, o protocolo contra o contrabando de imigrantes
por terra, mar e ar é o primeiro instrumento internacional a fornecer uma
definição de contrabando de imigrantes, bem como medidas para proteger os
direitos de pessoas contrabandeadas, a fim de evitar sua exploração adicional.
Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal Nº 97 – Ago-Set/2020 – Doutrina
134

Já o protocolo contra a fabricação e tráfico ilícito de armas de fogo,


suas peças e componentes e munições convoca os signatários a adotarem e
implementarem a legislação mais forte possível de acordo com os seus sistemas
nacionais para prevenir, investigar e processar delitos relacionados à fabricação
e ao tráfico ilícitos de armas de fogo.
Importante pontuar que, conforme já anteriormente mencionado,
com o surgimento da internet, muitas possibilidades e oportunidades foram
deslumbradas, sobretudo no que diz respeito ao encurtamento das distâncias
e a obtenção, manipulação e armazenamento de informações. Das relações
no ciberespaço sobrevieram os crimes cibernéticos e houve a necessidade
da elaboração de novo tratado internacional com vistas a estabelecer regras
padronizadas internacionais aos Estados-Membros aderentes ao pacto.
Assim, uma das mais recentes convenções firmadas para combater tipo-
logia de crime oriundo da era digital, o cibercrime, a Convenção de Budapeste,
criada na Hungria pelo Conselho da Europa, trouxe o tratado internacional
de direito penal e direito processual penal pactuado no âmbito do Conselho
da Europa em 2001 para definir de forma harmônica os crimes praticados por
meio da internet e as formas de persecução (BUDAPESTE, 2001).
O referido pacto, que está em vigor desde 2004, após a ratificação de
cinco países, engloba mais de 20 países e tipifica os principais crimes come-
tidos na internet.
Em verdade, os crimes cibernéticos são, na maior parte das vezes, os
crimes comuns cometidos com o auxílio de um computador, podendo os
crimes de furto, apropriação indébita, estelionato ou dano ser cometidos por
esse canal com consideráveis prejuízos patrimoniais. Nesse sentido, há algo
além de uma nova ferramenta, de um novo meio, de novo modus operandi para
o cometimento de crimes: estamos diante de novas condutas não tipificadas,
segundo pondera Érica Lima Ferreira (2005, p. 32).
De acordo com seu preâmbulo, a Convenção prioriza “uma política cri-
minal comum, com o objetivo de proteger a sociedade contra a criminalidade
no ciberespaço, designadamente, através da adoção de legislação adequada e
da melhoria da cooperação internacional” e reconhece “a necessidade de uma
cooperação entre os Estados e a indústria privada”. Ademais, ainda em seu
escopo inicial, ressalta o obrigatório respeito: (i) à Convenção para a Proteção
dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais do Conselho da
Europa (1950); (ii) ao Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos
da ONU (1966); (iii) à Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da
Criança (1989); (iv) e à Convenção da Organização Internacional do Trabalho
sobre as Piores Formas do Trabalho Infantil (1999) (BUDAPESTE, 2001).
Doutrina – Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal Nº 97 – Ago-Set/2020 135

Prevê como crimes, designadamente, o acesso e intercepção ilegal em


redes informáticas, o dano e sabotagem informática, o uso de vírus, violações
de direito autoral, roubo ou a manipulação de dados ou serviços através de
pirataria ou vírus, roubo de identidade e fraude no setor bancário ou de co-
mércio eletrônico e a posse, produção e distribuição de material de pornografia
infantil na internet.
Na linha de análise do bem jurídico, Gianpaolo Smanio pondera que
se trata de um bem jurídico-penal de natureza difusa. Isso, porque, além de
atingir um número indeterminado de pessoas, gera conflituosidade entre o
interesse dos usuários da internet, os hackers e os crackers, bem como das grandes
corporações, quer de fornecedores, quer de provedores de acesso (2000, p.108).
Augusto Rossini, por sua vez, destaca a importância da Convenção
de Budapeste, no sentido de que ela traz condutas praticadas em ambiente
de rede, não as fora dele, abarcando, dessa forma, apenas os fatos típicos
ocorridos exclusivamente no ciberespaço, podendo receber a denominação
de “delito telemático”, dada a peculiaridade de ocorrer no e a partir do inter-
relacionamento entre os computadores em rede telemática usados na prática
delitiva (2004, p.110).
A seguir, será abordado um dos principais impulsionadores do crime
transnacional, o crime de lavagem de dinheiro. O tema possui grande des-
taque na agenda internacional da atualidade. Segundo Sieber (2008, p. 271),
“proporciona novas oportunidades de execução de crimes que ultrapassam
fronteiras, levando o direito penal a seus ‘limites territoriais’ e exigindo novos
modelos de um direito penal transnacional eficaz”.

4 Crime de Lavagem de Dinheiro


Embora as convenções surjam como mecanismo de combate e controle
do crime organizado transnacional, a lavagem de dinheiro, ação adotada pelas
organizações criminosas, favorece a penetração destas na economia mundial,
causando grandes danos no sistema financeiro global e desestabilizando a
governança das grandes nações e é considerada “o sustentáculo econômico
do crime organizado” (ALBANESE, 2014, p. 7).
Os avanços da tecnologia da informação vêm permitindo, muito rapi-
damente, as negociações comerciais, as transações de capitais por via online,
utilizando-se de computadores, meio pelo qual todos têm acesso. Todas essas
facilidades, sem dúvida, fragilizam o sistema de segurança, gerando o aumento
da criminalidade. Essas considerações são balizadas por Luis Andrade (2004,
p. 1):
Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal Nº 97 – Ago-Set/2020 – Doutrina
136

“(...) os criminosos têm hoje uma capacidade sem precedentes para, atra-
vés do recurso a computadores, obter, processar e proteger informação,
ultrapassando todos os esforços das forças policiais e de segurança. Podem
mesmo utilizar as capacidades interativas de computadores de grande porte
e de sistemas de telecomunicações para desenvolver estratégias de comer-
cialização para drogas e outros bens de consumo ilícito. Ou para encontrar
as rotas e métodos mais eficientes para introduzir e movimentar dinheiro
nos sistemas financeiros mundiais, sendo capazes de criar rastros falsos
para evitar a eventual detecção pelas estruturas de segurança. Também
podem tirar partido da velocidade e magnitude das transações financeiras
e do fato de que, na realidade, poucos obstáculos existem que, de forma
eficaz, evitem processar grandes quantidades de dinheiro sem detecção.”

Percebe-se que as telecomunicações são a espinha dorsal de uma ativi-


dade empresarial cada vez mais exigente, facilitando as transações criminosas
internacionais, garantindo aos seus operadores considerável segurança e
imunidade. Anteriormente à globalização, o crime organizado operava, mais
comumente, na esfera local ou nacional, excepcionalmente, ocorriam além
das fronteiras (BIJOS, 2015, p. 87).
Ainda, há que se mencionar que a globalização somada à liberalização
comercial e à abertura das fronteiras permitiu o desenvolvimento das corpora-
ções multinacionais. Todos esses acontecimentos foram utilizados pelo crime
organizado, que passou a ser um fenômeno de âmbito internacional, pois os
criminosos tiraram proveito das diversas formas da globalização.
Nessa mesma linha de raciocínio, Louise Shelley explica que: enquanto
o crescimento do comércio legal é regulado pela adesão às políticas de controle
de fronteiras, aos funcionários aduaneiros e aos sistemas burocráticos, os gru-
pos criminosos transnacionais exploram livremente as brechas dos sistemas
jurídicos estatais para aumentar o seu raio de ação. Eles viajam, assim, para
regiões onde não podem ser extraditados, instalam suas operações em países
nos quais a lei é aplicada de maneira ineficaz e corrupta e lavam seu dinheiro
em nações com sigilo bancário ou controles pouco eficazes. Segmentando
suas operações, tanto criminosos quanto terroristas colhem os benefícios
da globalização, ao mesmo tempo em que reduzem os riscos operacionais
(2006, p. 42).
Não é possível imaginar uma organização criminosa que não pratique
a lavagem de dinheiro obtido ilicitamente, como forma de viabilizar a con-
tinuidade dos crimes, visto ser esta a matriz do crime global. Para melhor
exemplificar, o dinheiro obtido com o tráfico de drogas é utilizado para a
estruturação de meios cada vez mais sofisticados de esconderijo, transporte
de entorpecentes e para a prática de corrupção de funcionários públicos,
Doutrina – Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal Nº 97 – Ago-Set/2020 137

visando à aquisição de negócios lícitos que servem de escudo para obtenção


de outros fundos com a finalidade de dissimular a origem ilícita deles. Nes-
se contexto, o delito de lavagem de dinheiro ataca frontalmente o sistema
econômico-financeiro de um país. No Brasil, o crime da lavagem de dinheiro
foi regulamentado pela Lei nº 12.683, de 2012, que alterou a Lei nº 9.613/98,
dispondo que se sujeitam ao estabelecido pela norma, “as pessoas físicas ou
jurídicas que comercializem bens de luxo ou de alto valor, intermedeiem a
sua comercialização ou exerçam atividades que envolvam grande volume de
recursos em espécie”, o que se depreende a modalidade cometida não apenas
no ambiente real, mas também no contexto virtual (BRASIL, 2012).
Oportuno assim afirmar que a internet e as transações virtuais geraram
uma problemática para os bancos e instituições financeiras: com a digitalização
da economia, reconhecer efetivamente seus clientes tornou-se um grande
desafio. Isso, porque, atualmente, os bancos mantêm poucas relações físicas,
face a face, com os titulares das contas. Assim, a vigilância, o controle e a fis-
calização, que até então se utilizavam dos registros e documentos financeiros,
terão também que se digitalizar e incorporar novas tecnologias para combater
os crimes financeiros de igual para igual. A lavagem de dinheiro tornou-se
virtual. O novo mercado único, integrado e digitalizado, circula vultosos
montantes de dinheiro em nanossegundos, e permite que o dinheiro percorra
por diferentes jurisdições e fiscalizações domésticas, o que torna mais difícil
ainda de se detectar a origem e a finalidade de cada transação (SAT et al., 2016).
Carlos Márcio Rissi Macedo comenta sobre o crime de “lavagem” de
dinheiro: Objetivando “apagar” este rastro de ilegalidade é que se desenvol-
veram as técnicas de reciclagem de dinheiro, cuja práxis denominou-se de
lavagem de dinheiro, de forma a torná-lo aparentemente lícito, obstando a
atividade investigativa das autoridades e habilitando-os à utilização tranquila,
sem a pecha de origem (2006, p. 29).
Em mesmo diapasão, ensina Marco Antonio de Barros (1998, p. 45)
que o crime em questão corresponde a:

“Operação financeira que oculta ou dissimula a incorporação na economia,


de bens, direitos ou valores que direta ou indiretamente são resultado ou
produto dos seguintes crimes: tráfico ilícito de entorpecentes ou drogas
afins; terrorismo; contrabando ou tráfico de armas, munições ou material
destinado à sua produção; extorsão mediante sequestro, praticados contra
a Administração Pública, cometidos contra o sistema financeiro nacional,
praticados por organização criminosa.”

Para melhor compreensão sobre a espécie de crime ora abordado,


necessário valer-se da definição de Adrienne Giannetti Nelson de Senna,
Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal Nº 97 – Ago-Set/2020 – Doutrina
138

ex-Presidente do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (COAF):


Lavagem de dinheiro é o processo pelo qual o criminoso transforma recursos
ganhos em atividades ilegais em ativos com uma origem aparentemente legal.
Essa prática geralmente envolve múltiplas transações, usadas para ocultar a
origem de ativos financeiros e permitir que eles sejam utilizados sem compro-
meter os criminosos. A dissimulação é, portanto, a base para toda a operação
de lavagem que envolva dinheiro proveniente de um crime antecedente
(SENNA, 2015).
Cumpre mencionar a criação e finalidade do COAF, órgão concebido
em 1998 com o objetivo de “(...) disciplinar, aplicar penas administrativas,
receber, examinar e identificar ocorrências suspeitas de atividades ilícitas
relacionadas à lavagem de dinheiro, além do recebimento das Comunicações
de Operações Suspeitas (...)” (MINISTÉRIO DA ECONOMIA, 2019).
Mister se faz esclarecer que, atualmente, o COAF sofreu alteração em
sua nomenclatura, a partir da publicação da MP n° 893, de 2019, que passou
a se chamar “Unidade de Inteligência Financeira”, ora vinculado administra-
tivamente ao Banco Central do Brasil (CONGRESSO NACIONAL, 2019).
Não restam dúvidas de que tanto o crime de lavagem de dinheiro
como os crimes que podem a ele estar associados, tais como o terrorismo, o
tráfico de drogas, o sequestro, a corrupção, têm um alcance que ultrapassa as
fronteiras; são crimes cuja repercussão não é mais em nível regional ou local,
como já foi dito antes, eles comprometem as atividades econômicas e trazem
desestabilização aos sistemas financeiros.
Observa-se também que esse tipo criminal permite que os criminosos
identificados como contrabandistas de armas, os terroristas, os corruptos, os
traficantes, continuem a receber seus lucros ilegais. Esse crime pode ocorrer
por intermédio de atividades, como o plantio, o comércio externo e interno
de drogas ilícitas. Assim, essas atividades fazem parecer que os produtos do
crime tenham sido conseguidos por meios legais. Salienta-se que a lavagem
de capitais é um crime relacionado, diretamente, com as atividades do crime
organizado.
Precedente ao COAF e correspondente a esse órgão em âmbito inter-
nacional, com mesmo propósito de promover mecanismos internacionais
de combate ao crime de lavagem de dinheiro, formou-se, em 1989, pelo
G-7, o organismo intergovernamental Financial Action Task Force on Money
Laundering (GAFI) cujas atividades visam estabelecer padrões e promover
a efetiva implementação de leis, regulamentos e medidas operacionais para
combater a lavagem de dinheiro, o financiamento ao terrorismo e outras
Doutrina – Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal Nº 97 – Ago-Set/2020 139

ameaças à integridade do sistema financeiro internacional (MINISTÉRIO


DA ECONOMIA, 2019).
Com o mesmo viés, a Convenção de Viena contra o Tráfico Ilícito de
Entorpecentes e de Substâncias Psicotrópicas de 1988 foi ratificada no Brasil
pelo Decreto nº 154/91 e com a aprovação da Lei nº 9.613/98 tipificou o cri-
me de lavagem de dinheiro (BRASIL, 1998). Em 2012, foi aprovada a Lei nº
12.683, que revogou a lista de crimes antecedentes necessários para que haja
condenação por lavagem. A partir dessa data, todos os crimes previstos no Có-
digo Penal Brasileiro são considerados crimes antecedentes (BRASIL, 2012).
Importante destacar os principais efeitos negativos da lavagem de di-
nheiro na economia mundial, como o comprometimento da legitimidade do
setor privado e da integridade dos mercados financeiros, distorções econômicas
e instabilidade e perda da capacidade do governo em controlar sua política
econômica. O crime organizado, que de tão dependente da “lavagem” se funde
a ela, representa ameaça à democracia e a soberania dos Estados, pela força do
montante que movimenta e pelo poder corruptor que enseja, infiltrando-se nos
negócios estatais e corrompendo servidores públicos, que, por vezes, passam
a ser associados às organizações criminosas (OLIVEIRA, 2018, p. 195-217).
Tal prática é caracterizada pelo conjunto de operações comerciais ou
financeiras que visam à incorporação na economia de cada país, de modo
transitório ou permanente, de recursos, bens e valores de origem ilícita.
Em sede doutrinária, a complexa dinâmica do branqueamento de ca-
pitais é subdividida em três fases: ocultação, dissimulação e integração dos
bens, direitos ou valores à economia formal.
O percurso da lavagem de dinheiro inicia-se logo após a obtenção do
bem, direito ou valor proveniente da prática do crime antecedente. Com isso,
o agente que possui a intenção de lavar pode iniciar a fase de ocultação ou
conversão do proveito ilícito (GODINHO COSTA, 2007, p. 32).
Trata-se de momento em que o sujeito ativo busca esconder os ativos
derivados da atividade ilícita, com o intuito futuro de mascarar sua origem
espúria.
O processo de lavagem de dinheiro internacional é iniciado com a co-
locação do dinheiro no sistema econômico por meio de depósitos, compra de
bens ou instrumentos negociáveis. Para ocultar sua origem, o criminoso pro-
cura movimentar o dinheiro em países com regras mais permissivas e naqueles
que possuem um sistema financeiro liberal. Para dificultar a identificação da
procedência do dinheiro, têm sido observadas técnicas sofisticadas e cada vez
mais dinâmicas, a exemplo do fracionamento dos valores que transitam pelo
Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal Nº 97 – Ago-Set/2020 – Doutrina
140

sistema financeiro e da utilização de estabelecimentos comerciais que usual-


mente trabalham com dinheiro em espécie (OLIVEIRA, 2018, p. 195-217).
Na ocultação, o objetivo principal consiste em inserir o ativo na econo-
mia formal, afastando-o da origem ilícita, de modo a dificultar o rastreamento
do crime. Essa inserção poderá ocorrer, por exemplo, com o fracionamento de
grandes somas em dinheiro em quantias menores, a fim de que não haja obri-
gação de comunicação das transações (CALLEGARI; WEBER, 2014, p. 15).
Ainda segundo parte da doutrina, a ocultação pode ocorrer de forma
mais singela, quando, por exemplo, o cidadão simplesmente esconde o di-
nheiro, enterrando-o ou guardando em fundo falso (BADARÓ; BOTTINI,
2013, p. 67), mas desde que tenha a intenção futura de conferir aparência de
licitude ao ativo.
Contudo, vale evidenciar que a simples ocultação, sem qualquer fina-
lidade ou intenção posterior de mascarar a origem do ativo, desconfigura a
prática de lavagem de dinheiro na modalidade “ocultar”, ainda que se possa
cogitar, na hipótese, da prática de favorecimento real, conforme sustentado
em artigo aqui publicado. Nesse sentido: “A guarda e ocultação de dinheiro
em espécie, supostamente produto de crime, não configura o delito do art.
1º, VI, da Lei nº 9.613/98” (TRF4, ACR 0012832-24.2007.404.7000/PR, Rel.
José Paulo Baltazar Junior, j. 23.07.2013, Sétima Turma, DE 01.08.2013).
Já a segunda fase da lavagem, denominada de dissimulação, estratificação
ou escurecimento, consiste no ato – ou conjunto de atos – praticados com
o fim de disfarçar a origem ilícita do ativo, com a efetivação de transações,
conversões e movimentações várias (MENDRONI, 2015, p. 182), que dis-
tanciem ainda mais o ativo de sua origem ilícita:

“É um ato um pouco mais sofisticado do que o mascaramento original,


um passo além, um conjunto de idas e vindas no círculo financeiro ou
comercial que atrapalha ou frustra a tentativa de encontrar sua ligação com
o ilícito antecedente. São exemplos de dissimulação as transações entre
contas-correntes no país ou no exterior, a movimentação de moeda via
cabo, a compra e venda sequencial de imóveis por valores artificiais (...).”
(BADARÓ; BOTTINI, 2013, p. 66)

A fase derradeira da lavagem consiste na integração dos benefícios


financeiros como se lícitos fossem. Nessa etapa, o dinheiro é incorporado na
economia formal, geralmente através da compra de bens, criação de pessoas
jurídicas, inversão de negócios, tudo com registros contábeis e tributários
capazes de justificar o capital de forma legal (CALLEGARI; WEBER, 2014,
p. 23; e COSTA, 2007, p. 32).
Doutrina – Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal Nº 97 – Ago-Set/2020 141

Trata-se do último estágio de conversão do ativo ilícito em lícito, au-


mentando ainda mais a dificuldade de identificação de sua origem, mormente
pelas sucessivas e complexas etapas de mascaramento.
Por fim, em que pese se possa dividir, doutrinariamente, a lavagem de
dinheiro em três etapas, mister ressaltar que o crime de branqueamento de
capitais é de tipo misto ou conteúdo variado, de modo que a prática de qualquer
das condutas (ocultação, dissimulação ou integração) configura o crime (BA-
DARÓ; BOTTINI, 2013, p. 27), consoante se reconhece na jurisprudência.
A importância da distinção em fases não deve ser superestimada. A
lavagem pode ocorrer nas mais diversas circunstâncias e, com frequência,
não podem ser distinguidas. Por exemplo: em crime de corrupção o produto
pode ser pago diretamente pelo corruptor ao corrupto mediante a aquisição
de alguma propriedade em nome de determinada pessoa.
Posto isso, pode-se concluir que a lavagem de dinheiro, juntamente
com a criminalidade transnacional, é uma patologia da globalização econô-
mica, visto não se tratar de um problema localizado, isolado em determinado
país ou região, mas, sim, de ordem global, internacional e de preocupação
comum a todas as nações.

Considerações Finais
Consoante explanação de Castells em sua obra Fim de Milênio: “crime
global é agente fundamental na economia e na era da informação” (2012, p.
411). Na mesma obra, o autor elenca os principais impactos dessas infrações
para a sociedade mundial, os quais estão destacados a seguir (CASTELLS,
2012, p. 228).
Esclarece, ainda, que a desestabilização do mercado de capitais em fun-
ção da mobilidade do capital proveniente da economia do crime, com capital
volátil e disposição dos criminosos para assumir altos riscos e, ainda, a flexibi-
lidade da rede global para driblar regulamentações nacionais e procedimentos
necessários à cooperação entre a polícia de diferentes países, alteração da base
de fornecimento, rotas de transporte; ainda, a grande mobilidade do processo
de lavagem de dinheiro na era digital (CASTELLS, op. cit.).
A corrupção da política democrática calcada em apoio a campanhas
políticas e extorsão de figuras públicas e a visão distorcida de jovens humildes
vislumbram em criminosos afamados como modelo de sucesso corroborando
com a “cultura da urgência”. Importante lembrar também a influência da
mídia sobre a população contemporânea quando lançam filmes de ação que
remetem o êxito do crime organizado global.
Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal Nº 97 – Ago-Set/2020 – Doutrina
142

Salutar esclarecer que o crime organizado transnacional traz um pro-


blema econômico para as nações, conforme já mencionado acima e segundo
dados de pesquisa do Banco Mundial, uma vez que obriga os Estados, as
empresas e as famílias a aumentarem seus gastos com segurança.
Ademais, há diversos componentes do custo econômico da insegurança:
o institucional, ou seja, o que os Estados gastam nos órgãos responsáveis pela
segurança e justiça; o investimento das empresas e das famílias em segurança
privada; os custos materiais, que incluem a perda dos bens afetados; os re-
cursos destinados ao sistema de saúde para atender as vítimas, assim como
as perdas pelo dano emocional causado e pelo que se deixa de produzir em
decorrência da morte ou da invalidez temporária ou permanente; o efeito
sobre os investimentos produtivos, ao desajustar os cálculos que dão forma às
oportunidades e incentivos para que as empresas invistam, criem empregos.
O combate a um fenômeno global como o crime organizado transna-
cional exige parcerias de todos os segmentos da sociedade, como: governos,
empresas, sociedade civil, organizações internacionais. No entanto, para que
haja efetivo combate contra o crime organizado faz-se necessário atentar para
os seguintes aspectos:
Coordenação: a ação integrada em nível internacional é crucial para
identificar, investigar e processar as pessoas e os grupos por detrás desses
crimes.
Educação e sensibilização: os cidadãos comuns precisam se informar
mais sobre o crime organizado e como este afeta a vida cotidiana, além de cha-
marem a atenção dos tomadores de decisão para que a questão global seja con-
siderada pelos políticos como uma prioridade a ser tratada. Os consumidores
possuem um papel fundamental a desempenhar nesse cenário: certificarem-se
de que o produto comprado não é oriundo do crime organizado.
Inteligência e tecnologia: os sistemas diversos da justiça criminal de
cada país, bem como os métodos convencionais da aplicação da lei são bené-
ficos para redes criminosas poderosas. Assim, é preciso desenvolver unidades
globais de inteligência através da formação de centros de aplicação da lei mais
especializadas, que devem ser equipadas com tecnologia de ponta.
Assistência entre as Nações: os países em desenvolvimento necessitam
de assistência na construção da sua capacidade de combater esses crimes. A
Convenção das Nações Unidas contra o crime organizado transnacional,
por exemplo, dispõe um corpo jurídico universal para ajudar a identificar,
deter e desmantelar grupos criminosos organizados. Em um nível prático, o
escritório UNODC ajuda a fortalecer a capacidade dos Estados de rastrear e
Doutrina – Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal Nº 97 – Ago-Set/2020 143

evitar a lavagem de dinheiro com treinamento e auxílio técnico para seguir


a trilha de dinheiro.
Decerto, acordos, tratados e convenções internacionais, medidas bila-
terais e regionais refletem a consciência de que a criminalidade transnacional
pode ser combatida eficazmente através da colaboração e assistência mútua
dos serviços de aplicação da lei dos Estados envolvidos ou afetados.

TITLE: The internationalization of crime in the information society.

ABSTRACT: The purpose of this article is to analyze the influences of globalization and the digital age
on the expansion of organized crime, identifying its characteristics and its effects on the economy, poli-
tics and culture of nations, as well as identifying its sustainability in global society. It seeks to highlight
the development of a new type of criminality characterized by transnationality, and finally, to relate the
existing forms on a global scale for the effective fight against this type of organized crime qualified by its
fluidity and timeliness in communications and extraterritorial relations. It also concludes, due to the need
to outline new perspectives to combat the crime mentioned under the focus of the securitization process,
human security, cooperation and consensus among Nations.

KEYWORDS: Globalization. Transnational Crimes. International Conventions. Information Society.


Digital Law.

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Recebido em: 28.01.2020
Aprovado em: 21.04.2020
Jurisprudência

Supremo Tribunal Federal


AGRAVO REGIMENTAL NO HABEAS CORPUS Nº 184.955 SÃO PAULO
RELATOR: MINISTRO ROBERTO BARROSO

Tráfico de Drogas. Dosimetria da Pena. Regime


Inicial de Cumprimento de Pena. Jurisprudência do
Supremo Tribunal Federal
1. A dosimetria da pena é questão relativa ao mérito da ação penal,
estando necessariamente vinculada ao conjunto fático-probatório, não
sendo possível às instâncias extraordinárias a análise de dados fáticos
da causa para redimensionar a pena finalmente aplicada. Precedente.
2. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é firme no sentido de
que natureza e a quantidade da droga apreendida justificam a fixação da
pena-base em patamar acima do mínimo legal. Precedentes.
3. No julgamento dos HCs 112.776 e 109.193, Rel. Min. Teori Zavas-
cki, o Tribunal, por maioria de votos, entendeu que configura ilegítimo
bis in idem considerar a natureza e a quantidade da substância ou do
produto para fixar a pena base (primeira etapa) e, simultaneamente,
para a escolha da fração de redução a ser imposta na terceira etapa da
dosimetria (§ 4º do art. 33 da Lei nº 11.343/06). Todavia, nada impede
que essa circunstância seja considerada para incidir, alternativamente,
na primeira etapa (pena-base) ou na terceira (fração de redução).
4. A imposição do regime de cumprimento mais severo do que a pena
aplicada permitir exige motivação idônea (Súmula nº 719/STF). Mas
o fato é que, no caso, o regime inicial fechado foi fixado com apoio em
dados empíricos idôneos, extraídos da prova judicialmente colhida,
notadamente a quantidade da droga apreendida.
5. Agravo regimental a que se nega provimento.
(STF; HC-AgR 184.955; SP; 1ª T.; Rel. Min. Roberto Barroso; DJE
17/08/2020; p. 30)

ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da
Primeira Turma da Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal, em Sessão
Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal Nº 97 – Ago-Set/2020 – Jurisprudência
148

Virtual, na conformidade da ata de julgamento, por maioria, em negar provi-


mento ao agravo interno, nos termos do voto do Relator, vencido o Ministro
Marco Aurélio.
Brasília, 26 de junho a 4 de agosto de 2020.
Ministro Luís Roberto Barroso – Relator

RELATÓRIO
O Senhor Ministro Luís Roberto Barroso (Relator):
1. Trata-se de agravo regimental interposto contra decisão monocrática
de minha lavra que, com base no art. 21, § 1º, do RI/STF, não conheceu do
habeas corpus.
2. Neste recurso, a parte agravante reitera os argumentos trazidos no
recurso ordinário. Sustenta que: (i) “o próprio Supremo Tribunal Federal,
inclusive em sede de Repercussão Geral, já reconheceu a impossibilidade
da utilização dos mesmos motivos ou circunstâncias em ambas as fases da
dosimetria da pena”; (ii) “houve verdadeiro bis in idem na aplicação da pena
ao agravante Henrique T. P., eis que utilizado a ‘quantidade de drogas’ tanto
na primeira fase para haver a majoração da pena base, como na terceira fase
para haver a desconsideração da causa de redução de pena”; (iii) “a imposição
de regime mais gravoso do que o montante da pena aplicada exige motivação
concreta em elementos constantes dos autos, notadamente porque o agra-
vante Henrique T. é primário e sem antecedentes, de modo que não haveria
motivos para majorar o regime inicial, sendo certo que a gravidade do delito
não é motivo justo para reconhecer a imposição de regime mais gravoso”.
3. É o relatório.

VOTO
O Senhor Ministro Luís Roberto Barroso (Relator):
1. O recurso não deve ser provido, tendo em vista que a parte recor-
rente não trouxe novos argumentos suficientes para modificar a decisão ora
agravada, que deve ser mantida pelos seus próprios fundamentos:
“1. Trata-se de habeas corpus, com pedido de concessão de liminar, impetrado
contra acórdão unânime da Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça,
da Relatoria do Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, assim ementado:
‘PENAL E PROCESSO PENAL. AGRAVO REGIMENTAL NO AGRA-
VO EM RECURSO ESPECIAL. TRÁFICO DE ENTORPECENTES. 1.
Jurisprudência – Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal Nº 97 – Ago-Set/2020 149

PENA-BASE. FUNDAMENTAÇÃO OBJETIVA. 2. ART. 42 DA LEI Nº


11.343/06. PREPONDERÂNCIA SOBRE O ART. 59 DO CP. QUANTI-
DADE E NATUREZA DA DROGA. MODULANDO A FRAÇÃO DE
DIMINUIÇÃO E ATÉ IMPEDINDO SUA INCIDÊNCIA. 3. TRÁFICO
PRIVILEGIADO. PRIMARIEDADE, BONS ANTECEDENTES, NÃO
SE DEDICAR A ATIVIDADES CRIMINOSAS OU INTEGRAR ORGA-
NIZAÇÃO CRIMINOSA. 4. PENA-BASE AUMENTADA. EXPRESSIVA
QUANTIDADE DE DROGAS. AFASTAMENTO DO PRIVILÉGIO. DE-
DICAÇÃO À PRÁTICA DE ATIVIDADES CRIMINOSAS. 5. QUANTI-
DADE DE ENTORPECENTES. JUSTIFICANDO A IMPOSIÇÃO DO
REGIME MAIS GRAVOSO. RECURSO DESPROVIDO.
1. A jurisprudência desta Corte Superior de Justiça é no sentido de que a
pena-base não pode ser fixada acima do mínimo legal com fundamento em
elementos constitutivos do crime ou com base em referências vagas, genéri-
cas, desprovidas de fundamentação objetiva para justificar a sua exasperação.
Precedentes: HC n. 272.126/MG, Rel. Min. Ribeiro Dantas, Quinta Turma,
j. 08.03.2016, DJe 17.03.2016; REsp 1.383.921/RN, Relª Minª Maria Thereza
de Assis Moura, Sexta Turma, j. 16.06.2015, DJe 25.06.2015; HC 297.450/
RS, Rel. Min. Jorge Mussi, Quinta Turma, j. 21.10.2014, DJe 29.10.2014.
2. Na hipótese do tráfico ilícito de entorpecentes, é indispensável atentar para
o que disciplina o art. 42 da Lei nº 11.343/06, segundo o qual o juiz, na fixa-
ção das penas, considerará, com preponderância sobre o previsto no art. 59 do
Código Penal. Ademais, a jurisprudência desta Corte firmou entendimento
no sentido de que a quantidade e a natureza das drogas apreendidas podem
servir de parâmetro para a modulação da fração de diminuição ou até impe-
dir a incidência do benefício, quando evidenciarem o envolvimento habitual
do agente com o narcotráfico. Nesse sentido, dentre outros: AgRg no REsp
1.644.417/SP, Rel. Min. Felix Fischer, Quinta Turma, DJe 29.03.2017; HC
385.437/SP, de minha relatoria, DJe 27.03.2017; HC 324.284/SP, Rel. Min.
Ribeiro Dantas, Quinta Turma, DJe 08.03.2016.
3. Com relação ao pleito de aplicação da redutora para incidir a minorante
do § 4º do art. 33 da Lei nº 11.343/06, faz-se necessário o preenchimento de
quatro requisitos cumulativos, quais sejam: primariedade, bons anteceden-
tes, não se dedicar a atividades criminosas ou integrar organização criminosa.
4. Da leitura do acórdão recorrido, verifica-se que o Tribunal local manteve
o acréscimo da pena-base devido à expressiva quantidade de entorpecentes
apreendida, além de afastar a redutora do crime de tráfico por entender que
o acusado se dedicava à reiterada prática delituosa, na medida em que o agra-
vante encomendou o transporte, entre estados da federação, de 20,250 kg
(vinte quilos e duzentos e cinquenta gramas) de maconha, acondicionada em
19 ‘tijolos’, e 254,850 g (duzentos e cinquenta e quatro gramas e oitocentos
e cinquenta miligramas) de cocaína, sem autorização ou em desacordo com
determinação legal ou regulamentar, não havendo que se falar em bis in idem
Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal Nº 97 – Ago-Set/2020 – Jurisprudência
150

(e-STJ, fl. 492/493). Assim, fica evidenciada fundamentação concreta, pelo


Tribunal local, para não aplicar o redutor previsto no § 4º do art. 33 da Lei nº
11.343/06.
5. Por sua vez, em relação ao regime de cumprimento de pena, a jurisprudên-
cia desta Corte Superior de Justiça também é no sentido de que a quantidade
e a qualidade da droga apreendida podem ser utilizadas como fundamento
para a determinação da fração de redução da pena com base no art. 33, § 4º,
da Lei nº 11.343/06, a fixação do regime mais gravoso e a vedação à substi-
tuição da sanção privativa de liberdade por restritiva de direitos. Precedentes:
AgRg no AREsp 867.211/SP, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, Quinta
Turma, j. 28.06.2016, DJe 01.08.2016; AgRg no AREsp 643.452/MG, Rel.
Min. Jorge Mussi, Quinta Turma, j. 16.06.2016, DJe 22.06.2016; AgRg no
AREsp 602.153/MS, Rel. Min. Felix Fischer, Quinta Turma, j. 26.04.2016,
DJe 06.05.2016. In casu, em atenção ao art. 33, § 2º, alínea c, do CP, c/c o art.
42 da Lei nº 11.343/06, embora estabelecida a pena definitiva em 6 anos, 9
meses e 20 dias de reclusão, a grande quantidade de entorpecente apreendido
(mais de 20 kg de maconha), justificam a imposição de regime prisional mais
gravoso, no caso, o fechado.
6. Agravo regimental a que se nega provimento.’
2. Extrai-se dos autos que o paciente foi condenado à pena de 7 (sete) anos,
9 (nove) meses e 10 (dez) dias de reclusão, em regime inicial fechado, pelo
crime previsto no art. 33, caput, c/c o art. 40, IV e VI, da Lei nº 11.343/06.
3. O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo deu parcial provimento à
apelação da defesa a fim de reduzir a pena para 6 (seis) anos, 9 (nove) meses
e 20 (vinte) dias de reclusão.
4. Em seguida, a defesa interpôs recurso especial, inadmitido na origem. Ato
contínuo, interpôs agravo. O Relator do AREsp 1.584.895, Ministro Reynal-
do Soares da Fonseca, conheceu do agravo para negar provimento ao recurso
especial. Contra essa decisão, foi interposto agravo regimental, não provido.
5. Neste habeas corpus, a parte impetrante aponta a ausência de fundamentação
idônea para a fixação da pena-base em patamar acima do mínimo legal. Além
disso, sustenta a aplicabilidade, no caso, da causa de diminuição de pena pre-
vista no art. 33, § 4º, da Lei nº 11.343/06, destacando a valoração da quantida-
de de entorpecente apreendida na primeira fase da fixação da pena. Por fim,
alega a possibilidade da imposição de regime inicial mais brando.
6. A defesa requer a concessão da ordem a fim de reduzir a pena imposta ao
acionante. Cumulativamente, pleiteia a fixação do regime inicial semiaberto.
7. Decido.
8. O habeas corpus não deve ser concedido.
Jurisprudência – Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal Nº 97 – Ago-Set/2020 151

9. A dosimetria da pena é questão relativa ao mérito da ação penal, estando


necessariamente vinculada ao conjunto fático-probatório, não sendo possível
às instâncias extraordinárias a análise de dados fáticos da causa para redimen-
sionar a pena finalmente aplicada. Nesse sentido, a discussão a respeito da
dosimetria da pena cinge-se ao controle da legalidade dos critérios utilizados,
restringindo-se, portanto, ao exame da motivação [formalmente idônea] de
mérito e à congruência lógico-jurídica entre os motivos declarados e a con-
clusão (HC 69.419, Rel. Min. Sepúlveda Pertence).
10. Não bastasse isso, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF) é
firme no sentido de que natureza e a quantidade da droga apreendida justifi-
cam a fixação da pena-base em patamar acima do mínimo legal (HC 126.055,
Rel. Min. Dias Toffoli; HC 122.299, Rel. Min. Dias Toffoli; HC 118.389,
Rel. Min. Teori Zavascki).
11. Na hipótese de que se trata, o Juízo de origem fixou a pena-base em pata-
mar acima do mínimo legal, com respaldo na quantidade da droga apreendida
(20,250 kg de maconha e 254,850 g de cocaína) e na existência de circuns-
tância judicial desfavorável, destacando que, ‘[e]mbora tecnicamente primá-
rio, (o paciente) responde a outros processos de tráfico de drogas’. Ausentes
circunstâncias agravantes ou atenuantes, manteve a pena neste patamar. Em
seguida, afastou a aplicação minorante prevista no art. 33, § 4º, da Lei nº
11.343/06, ‘pois praticou o réu crime grave, utilizando-se de adolescente,
além de mostrar grande envolvimento com o tráfico de drogas, em razão da
quantidade de entorpecentes encontrados em sua residência, praticando o
tráfico interestadual’. Após, aplicou as causas de aumento de pena previstas
no art. 40, IV e VI, ‘pois caracterizou-se a prática de tráfico entre Estados,
além de a conduta do réu visar a adolescentes’. Nesse contexto, o magistrado
fixou a pena definitiva em 7 (sete) anos, 9 (nove) meses e 10 (dez) dias de
reclusão.
12. Em seguida, o TJSP, em apelação, deu parcial provimento à apelação da
defesa apenas para reduzir a pena-base imposta na sentença condenatória,
fixando-a, contudo, em patamar ainda acima do mínimo legal. Sendo assim,
a Corte Estadual reduziu a pena para 6 (seis) anos, 9 (nove) meses e 20 (vinte)
dias de reclusão.
13. Nessas condições, não se verifica a alegada contrariedade à orientação
Plenária do STF. Isso porque, no julgamento dos HCs 112.776 e 109.193,
Rel. Min. Teori Zavascki, o Tribunal, por maioria de votos, entendeu que
configura ilegítimo bis in idem considerar a natureza e a quantidade da subs-
tância ou do produto para fixar a pena base (primeira etapa) e, simultanea-
mente, para a escolha da fração de redução a ser imposta na terceira etapa da
dosimetria (§ 4º do art. 33 da Lei nº 11.343/06). Todavia, nada impede que
essa circunstância seja considerada para incidir, alternativamente, na primeira
etapa (pena-base) ou na terceira (fração de redução).
Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal Nº 97 – Ago-Set/2020 – Jurisprudência
152

14. Quanto ao mais, reconheço certo que a imposição do regime de cumpri-


mento mais severo do que a pena aplicada permitir exige motivação idônea
(Súmula nº 719/STF). Mas o fato é que, no caso, o regime inicial fechado foi
fixado, com apoio em dados empíricos idôneos, extraídos da prova judicial-
mente colhida, notadamente a quantidade da droga apreendida.
15. Diante do exposto, com base no art. 21, § 1º, do RI/STF, não conheço do
habeas corpus.
(...)”

2. Tal como a decisão agravada demonstrou, a dosimetria da pena é


questão relativa ao mérito da ação penal, estando necessariamente vinculada ao
conjunto fático-probatório, não sendo possível às instâncias extraordinárias a
análise de dados fáticos da causa para redimensionar a pena finalmente aplicada.
3. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF) é firme no
sentido de que natureza e a quantidade da droga apreendida justificam a fixação
da pena-base em patamar acima do mínimo legal (HCs 122.299, 126.055, Rel.
Min. Dias Toffoli; HC 118.389, Rel. Min. Teori Zavascki).
4. E mais: no julgamento dos HCs 112.776 e 109.193, Rel. Min. Teori
Zavascki, o STF, por maioria de votos, entendeu que configura ilegítimo bis
in idem considerar a natureza e a quantidade da substância ou do produto para
fixar a pena base (primeira etapa) e, simultaneamente, para a escolha da fração
de redução a ser imposta na terceira etapa da dosimetria (§ 4º do art. 33 da Lei
nº 11.343/06). Todavia, nada impede que essa circunstância seja considerada
para incidir, alternativamente, na primeira etapa (pena-base) ou na terceira
(fração de redução).
5. Ainda: a imposição do regime de cumprimento mais severo do que a
pena aplicada permitir exige motivação idônea (Súmula nº 719/STF). Mas o
fato é que, no caso, o regime inicial fechado foi fixado, com apoio em dados
empíricos idôneos, extraídos da prova judicialmente colhida, notadamente a
quantidade da droga apreendida.
6. Verifica-se, portanto, que não há nenhuma espécie de teratologia,
abuso de poder ou ilegalidade flagrante que autorize o acolhimento da pre-
tensão defensiva no presente caso.
7. Diante do exposto, nego provimento ao agravo regimental.
8. É como voto.
Jurisprudência – Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal Nº 97 – Ago-Set/2020 153

VOTO
O Senhor Ministro Marco Aurélio – O habeas corpus não sofre qualquer
obstáculo, ainda que haja a necessidade de análise de fatos e provas.
Provejo o agravo para que o habeas tenha sequência.

EXTRATO DE ATA
Ag. Reg. no Habeas Corpus 184.955
Proced.: São Paulo
Relator: Min. Roberto Barroso
Agte.: Henrique T. P.
Adv.: Paulo Sergio Severiano (184460/SP)
Agdo.: Superior Tribunal de Justiça
Decisão: A Turma, por maioria, negou provimento ao agravo interno,
nos termos do voto do Relator, vencido o Ministro Marco Aurélio. Primeira
Turma, Sessão Virtual de 26.06.2020 a 04.08.2020.
Composição: Ministros Rosa Weber (Presidente), Marco Aurélio, Luiz
Fux, Luís Roberto Barroso e Alexandre de Moraes.
Luiz Gustavo Silva Almeida – Secretário da Primeira Turma
Jurisprudência

Superior Tribunal de Justiça


AGRAVO REGIMENTAL NO HABEAS CORPUS Nº 582.200 SÃO PAULO
RELATOR: MINISTRO RIBEIRO DANTAS

Roubo. Dosimetria. Emprego de Arma Branca.


Elevação da Pena-Base. Possibilidade. Vítima
Grávida. Incidência da Agravante. Inexistência de
Atenuante a Ser Compensada com a Agravante.
Roubo Simples. Ofensa à Súmula nº 443/STJ Não
Evidenciada. Circunstância Judicial Desfavorável.
Fixação do Regime Prisional Fechado Mantido.
Agravo Regimental Não Provido
1. Nos moldes do reconhecido no decisum ora impugnado, com o ad-
vento da Lei nº 13.654, de 23 de abril de 2018, que revogou o inciso
I do art. 157 do CP, o emprego de arma branca no crime de roubo
deixou de ser considerado como majorante, a justificar o incremento
da reprimenda na terceira fase do cálculo dosimétrico, sendo, porém,
plenamente possível a sua valoração como circunstância judicial desa-
bonadora, nos moldes do reconhecido no acórdão ora impugnado. No
caso, descabe falar em arbitrariedade na exasperação da básica a título
de culpabilidade, pois o emprego de arma branca na senda criminosa
demonstra maior índice de reprovação da conduta praticada pelo réu.
2. Quanto à agravante do art. 61, II, h, do CP, o crime foi praticado con-
tra mulher grávida, o que justifica o incremento da pena intermediária.
Além disso, considerando se tratar de agravante de natureza objetiva,
ela deve ser aplicada, independentemente do conhecimento do estado
gravídico da vítima pelo réu. Aplica-se, ao caso, o entendimento desta
Corte sobre a agravante etária, a qual, inclusive, foi estabelecida na
mesma alínea.
3. Não tendo sido reconhecida a presença de atenuante, descabe falar
em compensação na segunda fase da dosimetria.
4. Se a pena permaneceu inalterada na etapa derradeira do cálculo do-
simétrico, pois o réu foi condenado pela prática de roubo simples, não
se pode falar em ofensa à Súmula nº 443/STJ.
Jurisprudência – Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal Nº 97 – Ago-Set/2020 155

5. Estabelecida a pena-base acima do mínimo legal, por ter sido desfa-


voravelmente valorada circunstância do art. 59 do Estatuto Repressor,
admite-se a fixação de regime prisional mais gravoso do que o indicado
pelo quantum de reprimenda imposta ao réu.
6. Agravo regimental desprovido.
(STJ; AgRg-HC 582.200; Proc. 2020/0116225-0; SP; 5ª T.; Rel. Min.
Ribeiro Dantas; DJE 13/08/2020)

ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indica-
das, acordam os Ministros da Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça,
por unanimidade, negar provimento ao agravo regimental. Os Srs. Ministros
Joel Ilan Paciornik, Jorge Mussi e Reynaldo Soares da Fonseca votaram com
o Sr. Ministro Relator.
Ausente, justificadamente, o Sr. Ministro Felix Fischer.
Brasília (DF), 4 de agosto de 2020 (Data do Julgamento).
Ministro Ribeiro Dantas – Relator

RELATÓRIO
Exmo. Sr. Ministro Ribeiro Dantas (Relator):
Trata-se de agravo regimental interposto por Carlos A. M. contra a de-
cisão que não conheceu do writ, dada a inexistência de manifesta ilegalidade
nos parâmetros adotados no cálculo dosimétrico.
Em razões, o agravante sustenta que a pena-base deve ser sido esta-
belecida no mínimo legal, devendo, ainda, ser procedida à compensação da
atenuante e da agravante na segunda fase da dosimetria, bem como deve ser
reduzido o aumento na terceira fase a 1/3, por violação do entendimento da
Súmula nº 443/STJ, e fixado o regime prisional aberto.
Pugna, assim, pelo provimento do agravo, a fim de reduzir a pena e
estabelecer regime prisional menos severo para o início do desconto da sanção
corporal.
É o relatório.

VOTO
Exmo. Sr. Ministro Ribeiro Dantas (Relator):
Razão não assiste ao agravante.
Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal Nº 97 – Ago-Set/2020 – Jurisprudência
156

Nos moldes do reconhecido no decisum ora impugnado, com o advento


da Lei nº 13.654, de 23 de abril de 2018, que revogou o inciso I do art. 157 do
CP, o emprego de arma branca no crime de roubo deixou de ser considerado
como majorante, a justificar o incremento da reprimenda na terceira fase do
cálculo dosimétrico, sendo, porém, plenamente possível a sua valoração como
circunstância judicial desabonadora, nos moldes do reconhecido no acórdão
ora impugnado. No caso, descabe falar em arbitrariedade na exasperação da
básica a título de culpabilidade, pois o emprego de arma branca na senda cri-
minosa demonstra maior índice de reprovação da conduta praticada pelo réu.
Nesse sentido:
“AGRAVO REGIMENTAL NO HABEAS CORPUS. PENAL. ROUBO.
CRIME COMETIDO EM 24.01.2019. EMPREGO DE ARMA BRANCA.
FUNDAMENTO UTILIZADO PARA FIXAR A PENA-BASE ACIMA
DO MÍNIMO LEGAL. POSSIBILIDADE. PRECEDENTES. CABÍVEL
O REGIME INICIAL FECHADO, EM RAZÃO DA PRESENÇA DE
CIRCUNSTÂNCIA JUDICIAL DESFAVORÁVEL. AGRAVO DESPRO-
VIDO.
1. ‘Embora o emprego de arma branca tenha deixado de configurar causa de
aumento de pena entre a vigência da Lei nº 13.654/2018 e o advento da Lei nº
13.964/2019, a jurisprudência desta Corte é firme no sentido de ser possível
a utilização dessa circunstância para efeito de exasperar a pena-base’ (AgRg
no HC 563.219/SP, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, Quinta Turma, j.
10.03.2020, DJe 18.03.2020).
2. Tendo em vista a pena fixada – 4 (quatro) anos e 8 (oito) meses de reclusão
– e a existência de circunstância judicial desfavorável, é cabível a fixação do
regime inicial fechado, nos termos do art. 33, §§ 2º e 3º, do Código Penal.
3. Agravo desprovido.” (AgRg no HC 574.339/SP, Relª Minª Laurita Vaz,
Sexta Turma, j. 26.05.2020, DJe 03.06.2020)
Quanto à agravante do art. 61, II, h, do CP, o crime foi praticado contra
mulher grávida, o que justifica o incremento da pena intermediária. Além
disso, considerando se tratar de agravante de natureza objetiva, ela deve ser
aplicada, independentemente do conhecimento do estado gravídico da vítima
pelo réu. Aplica-se, ao caso, o entendimento desta Corte sobre a agravante
etária, a qual, inclusive, foi estabelecida na mesma alínea:
“HABEAS CORPUS SUBSTITUTIVO DE RECURSO. ROUBO CIR-
CUNSTANCIADO. MAUS ANTECEDENTES. PERÍODO DEPURA-
DOR. AUMENTO DE 1/4. VÁRIAS CONDENAÇÕES. AGRAVANTE
PREVISTA NO ART. 61, II, H, DO CÓDIGO PENAL. VÍTIMA MAIOR
DE 60 ANOS. SÚMULA Nº 443/STJ. HABEAS CORPUS NÃO CO-
NHECIDO.
Jurisprudência – Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal Nº 97 – Ago-Set/2020 157

1. Em consonância com a orientação jurisprudencial da Primeira Turma do


Supremo Tribunal Federal, esta Corte não admite habeas corpus substitutivo
de recurso próprio, sem prejuízo da concessão da ordem, de ofício, se existir
flagrante ilegalidade na liberdade de locomoção do paciente.
2. As condenações criminais alcançadas pelo período depurador de 5 anos,
previsto no art. 64, I, do Código Penal, afastam os efeitos da reincidência, mas
não impedem a configuração de maus antecedentes.
3. O aumento da pena-base em 1/4 não se mostra desproporcional, tendo em
vista a existência de várias condenações anteriores.
4. A incidência da agravante prevista no art. 61, II, h, do Código Penal, cir-
cunstância de natureza objetiva, independe da ciência do agente acerca da
idade da vítima.
5. O aumento da pena, em 3/8, na terceira fase, não se deu com fundamento
exclusivo no número de majorantes, mas sim em razão da maior reprovabi-
lidade da conduta, evidenciada, sobretudo, pelo número de agentes [quatro]
e pela restrição à liberdade das vítimas que foram colocadas em um quarto,
amarradas, juntamente com os pais idosos. Não há, portanto, ofensa à Súmu-
la nº 443 do STJ.
6. Habeas corpus não conhecido.” (HC 405.214/SP, Rel. ����������������������
Min. Joel Ilan Pacior-
nik, Quinta Turma, j. 03.10.2017, DJe 16.10.2017)
“HABEAS CORPUS IMPETRADO EM SUBSTITUIÇÃO A RECUR-
SO PRÓPRIO. NÃO CONHECIMENTO DO WRIT. ART. 157, § 2º,
INCISOS I E II, DO CÓDIGO PENAL. DOSIMETRIA DA PENA.
PENA-BASE FIXADA ACIMA DO MÍNIMO LEGAL. VALORAÇÃO
NEGATIVA DAS CONSEQUÊNCIAS DO DELITO. BEM QUE NÃO
FOI RESTITUÍDO À VÍTIMA. FUNDAMENTAÇÃO INIDÔNEA.
CONSEQUÊNCIA INERENTE AO TIPO. DECOTE DO REFERIDO
VETOR. AGRAVANTE PREVISTA NO ART. 61, INCISO II, ALÍNEA
H, DO CÓDIGO PENAL. VÍTIMA MAIOR DE 60 ANOS. PREVISÃO
JÁ EXISTENTE NO CÓDIGO PENAL. SUBSTITUIÇÃO DE TERMO
ABERTO POR PREVISÃO OBJETIVA. VÍTIMA QUE JÁ CONTAVA
COM IDADE SUPERIOR A 60 ANOS. AGENTE QUE NÃO PRECI-
SA TER CIÊNCIA DA IDADE DA VÍTIMA. CIRCUNSTÂNCIA OB-
JETIVA. VULNERABILIDADE PRESUMIDA. CONSTRANGIMENTO
ILEGAL EVIDENCIADO. HABEAS CORPUS NÃO CONHECIDO.
ORDEM CONCEDIDA DE OFÍCIO.
O Superior Tribunal de Justiça, seguindo o entendimento firmado pela Pri-
meira Turma do Supremo Tribunal Federal, não tem admitido a impetração
de habeas corpus em substituição ao recurso próprio, prestigiando o sistema
recursal ao tempo que preserva a importância e a utilidade do writ, visto per-
mitir a concessão da ordem, de ofício, nos casos de flagrante ilegalidade.
Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal Nº 97 – Ago-Set/2020 – Jurisprudência
158

A exasperação da pena deve estar fundamentada em elementos concretos ex-


traídos da conduta imputada ao acusado, os quais devem desbordar dos ele-
mentos próprios do tipo penal.
Na hipótese, a valoração negativa das consequências do delito fundamentou-
se no fato de a quantia subtraída não foi recuperada pela vítima. Entretanto,
a diminuição do patrimônio da vítima é inerente à prática de crime contra
o patrimônio, do qual o roubo é espécie. Necessário, portanto, o decote do
referido vetor. Precedentes.
Na segunda fase da dosimetria, quanto ao pretendido afastamento da agra-
vante prevista no art. 61, inciso II, alínea h, do Código Penal (ter o agente co-
metido o crime contra maior de 60 anos), deve-se ressaltar que a substituição
da expressão velho, constante do texto anterior, por maior de 60 (sessenta)
anos, incluída pela Lei nº 10.741/03 (Estatuto do Idoso) no Código Penal,
não tratou de inovação legal, mas apenas de substituição de conceito aberto
-cuja interpretação poderia vir a ser subjetiva e ampla –, por termo objetivo.
Tal substituição, porém, não é capaz de trazer prejuízos ao paciente, pois fi-
cou claramente assentado nos autos que, ao tempo da prática do delito, a
vítima já contava com 65 anos de idade.
Quanto à alegação de que o paciente não teria conhecimento da idade da
vítima, a jurisprudência desta Corte firmou-se no sentido de que a referida
circunstância tem natureza objetiva, a qual independe do conhecimento do
agente para sua incidência, uma vez que a vulnerabilidade do idoso é presu-
mida.
Habeas corpus não conhecido. Ordem concedida de ofício para reduzir a pena
aplicada ao paciente, pelo delito previsto no art. 157, § 2º, I e II, do Código
Penal, para 10 anos, 1 mês e 10 dias de reclusão, e 22 dias-multa, mantidos
os demais termos da condenação.” (HC 403.574/AC, Rel. Min. Reynaldo
Soares da Fonseca, Quinta Turma, j. 17.05.2018, DJe 30.05.2018)
Ainda, não tendo sido reconhecida a presença de atenuante, descabe
falar em compensação na segunda fase da dosimetria.
Além disso, se a pena permaneceu inalterada na etapa derradeira do
cálculo dosimétrico, pois o réu foi condenado pela prática de roubo simples,
não se pode falar em ofensa à Súmula nº 443/STJ.
Por fim, estabelecida a pena-base acima do mínimo legal, por ter sido
desfavoravelmente valorada circunstância do art. 59 do Estatuto Repressor,
admite-se a fixação de regime prisional mais gravoso do que o indicado pelo
quantum de reprimenda imposta ao réu.
A seguir, parcialmente, ementas de acórdãos desta Corte versando a
respeito da matéria e que respaldam essa solução:
Jurisprudência – Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal Nº 97 – Ago-Set/2020 159

“AGRAVO REGIMENTAL NO HABEAS CORPUS. ROUBO CIRCUNS-


TANCIADO (ART. 157, § 2º, INCISO I, DO CÓDIGO PENAL). REGIME
INICIAL FECHADO FIXADO COM BASE EM CIRCUNSTÂNCIA JU-
DICIAL DESFAVORÁVEL. MAUS ANTECEDENTES. MANUTENÇÃO
JUSTIFICADA. CONSTRANGIMENTO NÃO EVIDENCIADO.
1. A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça é assente no sentido de
que a escolha do sistema prisional não está atrelada, de modo absoluto, ao
quantum de pena firmada, devendo-se considerar as demais circunstâncias
do caso concreto.
2. Com efeito, não é possível constatar flagrante ilegalidade na imposição do
regime inicial fechado ao paciente, pois, embora a sua pena tenha sido fixada
em patamar inferior a 8 (oito) anos de reclusão, a existência de circunstância
judicial desfavorável, a exemplo dos maus antecedentes, indica que o modo
mais gravoso de execução mostra-se adequado na espécie.
(...)
4. Agravo regimental improvido.” (AgRg no HC 326.343/RJ, Rel. Min. Jorge
Mussi, Quinta Turma, j. 17.11.2015, DJe 25.11.2015, grifou-se)
“HABEAS CORPUS. ART. 1º, II, DA LEI Nº 8.137/90, POR QUATRO
VEZES, NA FORMA DO ART. 71 DO CP. PRIMEIRA FASE DA DOSI-
METRIA. CULPABILIDADE DESFAVORÁVEL. ELEMENTOS CON-
CRETOS INDICADOS PELO JULGADOR. WRIT DENEGADO.
1. A revisão da dosimetria da pena no habeas corpus somente é permitida nas
hipóteses de falta de fundamentação concreta ou quando a sanção aplicada é
notoriamente desproporcional e irrazoável diante do crime cometido.
2. A vetorial culpabilidade, analisada como maior grau de censurabilidade da
conduta, deve ser mantida quando o acórdão registra a maneira articulada do
réu para cometer a sonegação fiscal, pois ele, de forma engenhosa, criou uma
empresa formalmente integrada por sócios que, em verdade, não compu-
nham a sociedade empresarial, com a intenção preordenada de lesar o erário.
Tal reprovabilidade não é inerente ao tipo penal, pois a fraude fiscal prescinde
da criação de empresa de fachada. É inviável a fixação do regime inicial aberto
e a substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos ao réu
primário e condenado a reprimenda inferior a 4 anos de reclusão quando há
registro de circunstância judicial desfavorável (culpabilidade), consoante o
teor dos arts. 33, § 3º e 44, III, ambos do CP.
(...)
6. Habeas corpus denegado.” (HC 335.245/SP, Rel. Min. Rogerio Schietti
Cruz, Sexta Turma, j. 01.12.2015, DJe 11.12.2015, grifou-se)
Ante o exposto, nego provimento ao agravo regimental.
É o voto.
Jurisprudência

Superior Tribunal de Justiça


HABEAS CORPUS Nº 587.227 SANTA CATARINA
RELATORA: MINISTRA LAURITA VAZ

Tráfico de Drogas. Prisão em Flagrante Convertida


em Prisão Preventiva. Quantidade de Drogas Não
Exacerbada. Periculum Libertatis Não Demonstrado.
Fundamentação Inidônea. Ordem de Habeas Corpus
Concedida, Confirmando a Liminar
1. As instâncias ordinárias ressaltaram apenas a existência de indícios
de autoria e materialidade, bem como a gravidade abstrata do crime de
tráfico de drogas, deixando, assim, de justificar concreta e adequada-
mente em que medida a liberdade do Paciente poderia comprometer a
ordem pública ou econômica, ou, ainda, a aplicação da lei penal, bem
como a insuficiência das medidas previstas no art. 319 do Código de
Processo Penal.
2. A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça orienta-se no sentido
de que fundamentos vagos, aproveitáveis em qualquer outro processo,
não são idôneos para justificar a decretação de prisão preventiva, que só
pode ser decifrada à luz de elementos concretos constantes dos autos.
3. Cabe também ressaltar que a quantidade de droga apreendida –
665 g de maconha –, apesar de indicativa da traficância, não é capaz
de demonstrar, por si só, o periculum libertatis do paciente, que possui
condições pessoais favoráveis para responder ao processo em liberdade,
pois é primário e portador de bons antecedentes.
4. Ordem de habeas corpus concedida para, confirmando a liminar, re-
vogar a prisão preventiva do Paciente, se por outro motivo não estiver
preso, advertindo-o da necessidade de permanecer no distrito da culpa e
atender aos chamamentos judiciais, sem prejuízo da fixação de medidas
cautelares alternativas (art. 319 do Código de Processo Penal), desde
que de forma fundamentada.
(STJ; HC 587.227; Proc. 2020/0134344-7; SC; 6ª T.; Relª Minª Laurita
Vaz; DJE 19/08/2020)
Jurisprudência – Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal Nº 97 – Ago-Set/2020 161

ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Sex-
ta Turma do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos e das
notas taquigráficas a seguir, por unanimidade, conceder a ordem, nos termos
do voto da Sra. Ministra Relatora. Os Srs. Ministros Sebastião Reis Júnior,
Rogerio Schietti Cruz, Nefi Cordeiro e Antonio Saldanha Palheiro votaram
com a Sra. Ministra Relatora.
Brasília (DF), 4 de agosto de 2020 (Data do Julgamento).
Ministra Laurita Vaz – Relatora

RELATÓRIO
A Exma. Sra. Ministra Laurita Vaz:
Trata-se de habeas corpus, com pedido liminar, impetrado em favor de
Guilherme dos S. C. contra acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça do
Estado de Santa Catarina nos autos do HC 5014654-63.2020.8.24.0000.
Consta que o paciente foi preso em flagrante, no dia 23.05.2020, e
denunciado por ter, em tese, praticado o delito descrito no art. 33, caput, da
Lei nº 11.343/06. No dia seguinte, a prisão foi convertida em preventiva para
a garantia da ordem pública.
Narra o acórdão impugnado que o réu “foi preso em flagrante na posse
de considerável quantidade de drogas (665 gramas de maconha, já separadas
em 27 porções), além de apetrechos típicos do comércio espúrio (3 balanças
de precisão)” (fl. 83).
Inconformada, a defesa impetrou habeas corpus na Corte de origem, que
denegou a ordem, em acórdão de fls. 80-85, sem ementa.
Neste writ, a parte impetrante sustenta, em suma, que “a utilização da
prisão preventiva deve ser resguardada aos casos em que realmente existe o
periculum libertatis, e não ao traficante aventureiro, surpreendido sem quan-
tidade significativa de entorpecentes (622 gramas), e sendo este de natureza
comum ao tipo penal (maconha)” (fl. 7).
Afirma que o paciente “é primário e de bons antecedentes, possuindo
um filho que depende do seu sustento e dos seus cuidados durante os dias
úteis da semana” (fl. 7).
Requer, em medida liminar e no mérito, a concessão da ordem para “re-
vogar a prisão preventiva decretada, impondo medidas do art. 319 do Código
Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal Nº 97 – Ago-Set/2020 – Jurisprudência
162

de Processo Penal caso se entenda por necessário, ao menos até o julgamento


definitivo do writ” (fl. 12).
Deferi o pedido liminar às fls. 95-98, para determinar, até o julgamento
final do writ, a soltura do paciente.
As judiciosas informações foram prestadas às fls. 104-118 e 124-156,
com a juntada de peças processuais pertinentes à instrução do feito.
O Ministério Público Federal manifestou-se às fls. 119-123, opinando
pela denegação da ordem.
É o relatório.

VOTO
A Exma. Sra. Ministra Laurita Vaz (Relatora):
Reiterada jurisprudência desta Corte Superior de Justiça dita que toda
custódia imposta antes do exaurimento da jurisdição ordinária exige concreta
fundamentação, nos termos do disposto no art. 312 do Código de Processo
Penal.
No caso, o Juízo de primeiro grau, ao decretar a prisão preventiva do
paciente, consignou os seguintes fundamentos (fls. 58-59):
“A prisão em flagrante merece ser convertida em preventiva quando con-
vergentes os requisitos consistentes em condições de admissibilidade, indi-
cativos de cometimento de crime (fumus commissi delicti) e risco de liberdade
(periculum libertatis), devendo ser a medida pautada no postulado da propor-
cionalidade, conforme arts. 282, I e II, 312 e 313 do CPP.
Quanto ao primeiro pressuposto, constato que a situação versa sobre crime
cuja pena máxima é superior a 4 (quatro) anos (art. 313, I, do CPP), conso-
ante aplicação analógica do entendimento fixado nas Súmulas ns. 723/STF e
243/STJ.
No tocante ao segundo requisito, por sua vez, destaco que há prova da ocor-
rência de fatos típicos, ilícitos e culpáveis e, também, indícios suficientes para
imputabilidade perfunctória da autoria ao agente, conforme se extrai dos de-
poimentos dos condutores, bem como do auto de exibição e apreensão e
laudo de constatação (ev. 1). No ponto, cabe mencionar que, a princípio, não
restou demonstrado que o imputado tenha atuado acobertado pelas dirimen-
tes da legítima defesa, do estado de necessidade, do estrito cumprimento do
seu dever legal ou do exercício regular de um direito assegurado, consoante
arts. 310, parágrafo único, do CPP e 23, I a III, do CP.
Jurisprudência – Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal Nº 97 – Ago-Set/2020 163

No concernente ao terceiro requisito, assinalo que a prisão preventiva so-


mente é cabível quando presente o perigo de liberdade (periculum libertatis),
ante a insuficiência das medidas alternativas, conforme art. 282, § 6º, do CPP.
No caso, a conversão do flagrante em prisão preventiva se faz concretamente
necessária para a garantia da ordem pública. Justifico. O acusado foi surpre-
endido em posse de razoável quantia de entorpecentes fracionados e emba-
lados para venda (27 porções de maconha, traduzindo cerca de 665g – con-
forme laudo de constatação), bem como petrechos típicos do comércio de
drogas (balanças de precisão, papel filme, etc.).
Ademais, conforme se extrai da narrativa policial, a abordagem teria ocorrido
em razão de denúncias dando conta da ocorrência de tráfico de drogas na re-
sidência do custodiado e, com base em tais relatos, os agentes se dirigiram até
as proximidades, tendo logrado avistar o flagrado dispensando uma bolsa no
terreno vizinho, no interior do qual, posteriormente, constataram a existên-
cia da maior parte dos entorpecentes, sendo que o restante estava no interior
da moradia.
Registre-se, ainda, que o conduzido teria danificado seu aparelho celular an-
tes da chegada da polícia, a indicar que tal aparelho, possivelmente, conteria
dados significativos quanto à traficância.
Sobre o quarto requisito, por fim, assevero que a jurisdição deve observar
parâmetros de proporcionalidade, para afastar o excesso, entendido como a
ingerência exacerbada a direitos fundamentais da pessoa, e, ainda, evitar in-
suficiência, compreendida como a tutela ineficaz à garantia da persecução cri-
minal, à preservação da paz pública e à tranquilidade dos demais integrantes
da sociedade, que são titulares do direito constitucional à segurança pública.
No caso concreto, constato a existência de equilíbrio entre os limites superior
(excesso) e inferior (insuficiência), considerando que a prisão processual as-
segura a adequada e razoável repressão da criminalidade sem a destruição do
núcleo essencial dos direitos fundamentais do envolvido. O comércio ilícito
de entorpecentes, se trata de crime de extrema gravidade e como se sabe, é
responsável por grande parte da violência que assola este país e pelo finan-
ciamento do crime organizado. O Poder Judiciário não pode fechar os olhos
para o que ordinariamente acontece. Também não pode ignorar que a cres-
cente escalada da criminalidade na cidade de Criciúma, o que infelizmente
a tornou uma das cidades mais violentas do Estado, está diretamente ligada
ao tráfico de drogas. A população em geral exige o mais duro tratamento a
essa questão. Por isso, a omissão do Judiciário em combater esses crimes de
forma mais enérgica compromete ainda mais a sua credibilidade perante a
sociedade.
Com efeito, libertar o conduzido nesse momento seria incentivá-lo a con-
tinuar a perpetrar seus crimes, incutindo sentimento de impunidade tanto
em relação a ele próprio, quanto na comunidade. Enfim, necessário se faz
prevenir a reprodução de fatos criminosos, acautelar o meio social e, princi-
Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal Nº 97 – Ago-Set/2020 – Jurisprudência
164

palmente, a credibilidade da Justiça. A necessidade de acautelar o meio social


e evitar estímulos à prática de atos nocivos à sociedade justifica a conversão
da sua prisão em flagrante em prisão preventiva, mostrando-se inadequadas e
insuficientes outras medidas cautelares.
Por fim, note-se que predicados pessoais positivos, como primariedade e
residência fixa, não afastam o cabimento da prisão quando configurados,
em concreto, os requisitos da custódia (TJSC, Habeas Corpus [Criminal]
4004175- 62.2019.8.24.0000, de Blumenau, Rel. Des. José Everaldo Silva,
Quarta Câmara Criminal, j. 28.02.2019).
Nesse quadro, a segregação cautelar mostra-se concretamente necessária para
garantia da ordem pública.”
O acórdão impugnado, por sua vez, denegou a ordem originária con-
siderando que (fls. 83-84):
“A decisão que determinou a segregação cautelar do paciente apresenta funda-
mentação jurídica legítima, lastreada em elementos concretos depreendidos
dos autos acerca das circunstâncias do caso, os quais revelaram a necessidade
de se resguardar a ordem pública, haja vista a gravidade da conduta imputada.
Há prova da existência do crime, além de indícios suficientes de autoria por
parte do paciente, tendo em conta os elementos informativos colhidos du-
rante a fase inquisitorial, conforme se verifica de forma sintética do relatório,
no boletim de ocorrência, fotos, auto de exibição e apreensão, auto de cons-
tatação e declarações dos policiais militares, constantes dos autos do inquérito
policial. Evidente, portanto, a presença do fumus commissi delicti com relação
ao paciente.
(...) Soma-se ainda o relatos dos policiais (que possuem fé pública) de que
após denúncias sobre a ocorrência de tráfico de drogas na residência do pa-
ciente, flagraram o acusado dispensando uma bolsa em um terreno vizinho
onde continha a maior parte das drogas apreendidas, sendo que na sequência
fora encontrado mais entorpecentes na residência do paciente além dos ape-
trechos já citados. Além disso, foi informado que o conduzido teria danifica-
do seu aparelho celular antes da chegada da polícia.
Tais elementos concretos permitem a conclusão no sentido da necessidade
de se resguardar a ordem pública e de se oferecer pronta e eficaz resposta ao
indiciado e à sociedade a respeito do ocorrido.
Afora isso, o tráfico ilícito de entorpecentes é delito equiparado a hediondo,
que gera relevante perturbação na sociedade ao disseminar infelicidade nos
lares e fomentar a prática de outros delitos, o que caracteriza severo prejuízo
à ordem pública.
Consoante remansosa jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, a ele-
vada quantidade de droga apreendida, assim como sua nocividade e forma de
acondicionamento, são elementos concretos dos quais se depreende o efetivo
Jurisprudência – Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal Nº 97 – Ago-Set/2020 165

risco ao meio social, ante a gravidade da conduta imputada e a periculosidade


do agente.”
Verifica-se que as instâncias ordinárias ressaltaram apenas a existência de
indícios de autoria e materialidade, bem como a gravidade abstrata do crime
de tráfico de drogas, deixando, assim, de justificar concreta e adequadamente
em que medida a liberdade do paciente poderia comprometer a ordem pública
ou econômica, ou, ainda, a aplicação da lei penal, bem como a insuficiência
das medidas previstas no art. 319 do Código de Processo Penal.
A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça orienta-se no sentido
de que fundamentos vagos, aproveitáveis em qualquer outro processo, não
são idôneos para justificar a decretação de prisão preventiva, que só pode ser
decifrada à luz de elementos concretos constantes dos autos.
Cabe também ressaltar que a quantidade de droga apreendida – 665 g
de maconha –, apesar de indicativa da traficância, não é capaz de demonstrar,
por si só, o periculum libertatis do Paciente, que possui condições pessoais fa-
voráveis para responder ao processo em liberdade, pois é primário e portador
de bons antecedentes (fl. 45).
Assim, em observância ao binômio proporcionalidade e adequação,
impõe-se a revogação da custódia preventiva, com o estabelecimento de me-
didas cautelares diversas da prisão.
Ante o exposto, concedo a ordem de habeas corpus para, confirmando a
liminar, revogar a prisão preventiva do Paciente, se por outro motivo não
estiver preso, advertindo-o da necessidade de permanecer no distrito da cul-
pa e atender aos chamamentos judiciais, sem prejuízo da fixação de medidas
cautelares alternativas (art. 319 do Código de Processo Penal), desde que de
forma fundamentada.
É como voto.
Jurisprudência

Superior Tribunal de Justiça


RECURSO ESPECIAL Nº 1.853.916 PARANÁ
RELATOR: MINISTRO NEFI CORDEIRO

Execução Penal. Prestação Pecuniária. Detração.


Ausência de Previsão Legal. Recurso Provido
1. Esta Corte não admite a aplicação do instituto da detração penal à
pena de prestação pecuniária, por ausência de previsão legal. Precedente.
2. Recurso especial provido.
(STJ; REsp 1.853.916; Proc. 2019/0375253-1; PR; 6ª T.; Rel. Min. Nefi
Cordeiro; DJE 13/08/2020)

ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indi-
cadas, acordam os Ministros da Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça,
na conformidade dos votos e das notas taquigráficas a seguir, prosseguindo
o julgamento após o voto-vista do Sr. Ministro Sebastião Reis Júnior dando
provimento ao recurso especial, sendo acompanhado pelos Srs. Ministros
Rogerio Schietti Cruz, Antonio Saldanha Palheiro e Laurita Vaz, por unanimi-
dade, dar provimento ao recurso especial, nos termos do voto do Sr. Ministro
Relator. Os Srs. Ministros Antonio Saldanha Palheiro, Laurita Vaz, Sebastião
Reis Júnior e Rogerio Schietti Cruz votaram com o Sr. Ministro Relator.
Brasília (DF), 4 de agosto de 2020 (Data do Julgamento).
Ministro Antonio Saldanha Palheiro – Presidente
Ministro Nefi Cordeiro – Relator

RELATÓRIO
O Exmo. Sr. Ministro Nefi Cordeiro (Relator):
Trata-se de recurso especial interposto contra acórdão que deu provi-
mento aos embargos infringentes.
Sustenta o Ministério Público negativa de vigência ao art. 44 do CP, ao
substituir a pena privativa de liberdade por restritiva de direitos, após detração
da pena corporal, em razão do pagamento da prestação pecuniária.
Jurisprudência – Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal Nº 97 – Ago-Set/2020 167

Alega que “embora a prestação pecuniária seja uma pena restritiva de


direito, não é capaz de ser submetida ao processo de detração, porquanto seu
valor monetário não permite conversão em tempo” (fl. 162).
Requer o provimento do recurso para restabelecer o acórdão de ape-
lação.
Contra-arrazoado e admitido, manifestou-se o Ministério Público pelo
provimento do recurso especial.
É o relatório.

VOTO
O Exmo. Sr. Ministro Nefi Cordeiro (Relator):
Insurge-se o Ministério Público contra acórdão que deu provimento os
embargos infringentes interpostos pela defesa, para aplicar a detração, pelos
seguintes fundamentos (fls. 113-124):
“Ademais, cabe destacar que inexiste vedação legal acerca da possibilidade de
ser utilizada a pena de prestação de serviços à comunidade cumprida -ainda
que parcialmente – e a prestação pecuniária já paga, no cômputo a ser dedu-
zido da pena corporal reconvertida.
Jamil Chaim Alves, no artigo Execução das Penas Restritivas de Direitos, publi-
cado no estudo organizado por Guilherme de Souza Nucci (Execução penal
no Brasil: estudos e reflexões. Forense, 2019), pondera (com grifo meu) o
seguinte:
5.2 Cumprimento parcial e detração
Na hipótese de reconversão, pode ocorrer de o sentenciado ter cumprido a
pena restritiva de direitos imposta, surgindo dúvida no tocante ao cálculo da
sanção restante.
Deve-se atentar para a existência de dois tipos de penas restritivas de direitos:
as temporalmente mensuráveis (prestação de serviços à comunidade, limita-
ção de fim de semana e as interdições temporárias de direitos) e as tempo-
ralmente imensuráveis (prestação pecuniária, perda de bens e valores e pres-
tação de outra natureza). Nas primeiras, não há dificuldades: se o indivíduo,
por exemplo, foi condenado a dois anos de pena privativa de liberdade con-
vertida em restritivas de direitos, e cumpriu um ano desta, deverá cumprir
um ano de prisão. Quanto às penas não mensuráveis temporalmente surge
o problema em relação ao cálculo. É certo que se, se o sujeito não cumpriu
nada da restritiva, deverá, havendo a conversão, cumprir a pena privativa de
liberdade pelo prazo total da condenação.
Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal Nº 97 – Ago-Set/2020 – Jurisprudência
168

Se, no entanto, já cumpriu uma parte da restritiva, deverá o julgador, por


analogia in bonam partem, debitar algo da pena de prisão, aplicando, na falta de
outro critério mais adequado, a equidade. Se, por exemplo, já cumpriu um
terço do montante da prestação pecuniária, em caso de reconversão, teria de
cumprir dois terços da pena privativa de liberdade.
Também é possível que o indivíduo, condenado a duas restritivas de direito,
cumpra uma delas e descumpra a outra (ex.: condenado a prestação pecuniá-
ria e prestação de serviços à comunidade paga a primeira e se recusa a cumprir
a segunda). Diante da omissão lei, sugere-se a mesma solução apontada no
caso anterior: o juiz reconverterá a restritiva descumprida em privativa de
liberdade, mas debitará algo dela, equitativamente.
Desse modo, para fins de dedução, no caso de serem duas as restritivas de
direito estabelecidas em substituição a uma carcerária, s.m.j, tenho que cada
uma delas equivale ao percentual de 50% (cinquenta por cento) da pena pri-
vativa de liberdade total aplicada.
No caso de ser a pecuniária aplicada singularmente em substituição a uma
privativa de liberdade, a integralidade da pecuniária corresponde ao total da
privativa de liberdade substituída.
Exemplifico.
Imposta somente uma pena privativa de liberdade de 1 ano de reclusão ou
detenção, substituída por prestação pecuniária no valor de R$ 10.000,00
se, por ocasião da execução, o condenado tiver pago somente a metade (R$
5.000,00), quando sobrevier outra condenação, determina-se a conversão
dessa substitutiva com o cumprimento da metade do tempo imposto para a
pena privativa de liberdade.
Sobre tal possibilidade, trago à colação outros julgados das duas Turmas Cri-
minais desta Corte (7ª e 8ª):
‘DIREITO PENAL. AGRAVO EM EXECUÇÃO PENAL. CUMPRI-
MENTO DE PENAS DE RECLUSÃO E DE DETENÇÃO. ART. 69
DO CÓDIGO PENAL. DETRAÇÃO. PERDA PARCIAL DO OBJETO.
PRESTAÇÃO PECUNIÁRIA. EMPREGO DO VALOR DA FIANÇA.
DETRAÇÃO DA PENA PRIVATIVA DE LIBERDADE. 1. Em juízo de re-
tratação, a insurgência do agravante quanto à observância do art. 69 do Có-
digo Penal restou atendida, tendo sido somadas separadamente as penas de
reclusão e de detenção. 2. Os períodos de cumprimento da pena provisória,
ainda que de diferentes condenações, deve ser integralmente detraído do
montante total da pena de reclusão. 3. Inexiste óbice a que o valor do quan-
to de pena pecuniária adimplido com o emprego da fiança, seja utilizado,
proporcionalmente, na detração da pena privativa de liberdade resultante da
soma das penas em execução – já descontados os períodos de prisão provi-
sória. 4. Representaria contrassenso maculador da razoabilidade pensar que
a utilização da fiança para abater o pagamento da pena pecuniária, por não
Jurisprudência – Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal Nº 97 – Ago-Set/2020 169

haver decorrido de ato de espontaneidade do agravante, inviabilizasse o em-


prego da fiança para uma das finalidades previstas pelo art. 336 do Código de
Processo Penal: ‘O dinheiro ou objetos dados como fiança servirão ao paga-
mento das custas, da indenização do dano, da prestação pecuniária e da multa,
se o réu for condenado’. 5. O valor da pena pecuniária adimplida, quando
empregada como substitutiva da pena privativa de liberdade em conjunto
com outra pena restritiva de direitos, deve corresponder a 50% (metade) da
pena corporal. 6. Perda parcial do objeto do recurso em face da retratação
operada pelo juízo a quo. 7. No mérito, na parte conhecida, provido o agravo
de execução penal.’ (TRF4, AEPN 5001883-16.2018.404.7210/SC, minha
Relatoria, j. 18.09.2018)
‘PENAL E PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. RECONVER-
SÃO DA PENA RESTRITIVA DE DIREITOS EM PENA CARCERÁRIA.
DESCUMPRIMENTO INJUSTIFICADO DA SANÇÃO SUBSTITU-
TIVA. DETRAÇÃO. CRITÉRIOS. 1. Constitui hipótese de conversão
da pena restritiva de direitos em privativa de liberdade o descumprimento
injustificado da restrição imposta. 2. Caso em que as alegações do apenado
(dificuldades pessoais e profissionais) não se mostram suficientes para fins
de justificar o não cumprimento da prestação de serviços à comunidade,
considerando, ademais, que o paciente, decorridos cerca de quatro anos do
início da execução, cumpriu percentual ínfimo do total de horas relativas à
prestação de serviços à comunidade, bem assim que, instaurado anterior in-
cidente de conversão da reprimenda, foi-lhe concedida a benesse excepcional
da repristinação das penas substitutivas. 3. Substituída a pena privativa de
liberdade por duas restritivas de direitos, no procedimento de reconversão,
para fins de detração, cada modalidade de reprimenda alternativa deve cor-
responder à metade da sanção reclusiva. Evita-se, desse modo, que o apenado
resgate a totalidade da pena corporal mediante o cumprimento integral de
apenas uma das sanções substitutivas. Precedente da Turma.’ (TRF4, HC
0025504-10.2010.404.0000, Oitava Turma, Rel. Victor Luiz dos Santos Laus,
DE 05.10.2010)
‘AGRAVO DE EXECUÇÃO PENAL. DECRETO Nº 8.380/2014. CON-
CESSÃO DE INDULTO. NÃO CUMPRIMENTO DE REQUISI-
TO NECESSÁRIO. IMPOSSIBILIDADE. CONVERSÃO DAS PENAS
RESTRITIVAS DE DIREITO EM PENA PRIVATIVA DE LIBERDADE.
DETRAÇÃO. ABATIMENTO DAS PENAS RESTRITIVAS DE DIREI-
TOS. PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS A COMUNIDADE. PRESTAÇÃO
PECUNIÁRIA. POSSIBILIDADE. PRINCÍPIO DA EQUIDADE. 1. Para
que seja concedido o indulto, nos termos do art. 1º, XIII, do Decreto nº
8.172/2013, é necessário que o condenado tenha cumprido o requisito obje-
tivo relativamente a cada uma das penas restritivas de direito aplicadas. 2. No
caso de conversão de pena restritiva de direitos em pena privativa de liberda-
de, no cálculo da pena privativa de liberdade a executar deduzir-se-á o tempo
cumprido da pena restritiva de direitos, inexistindo ressalva legal acerca da
Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal Nº 97 – Ago-Set/2020 – Jurisprudência
170

possibilidade de detração da pena de prestação pecuniária. 3. Reconhecido o


direito do agravante ao abatimento da pena de prestação pecuniária.’ (Agravo
de Execução Penal 5005675-19.2015.404.7004, Rel. Juiz Fed. Conv. Gilson
Luiz Inácio, 7ª Turma, j. 15.12.2015)
A propósito, quanto às penas restritivas de direitos consistentes em prestação
pecuniária e perda de bens e valores, nas quais não existe período de tempo
de cumprimento a ser abatido, deve-se abater da pena privativa de liberdade
o percentual do pagamento de prestação pecuniária já efetuado pelo senten-
ciado, ainda que se utilize dos valores pagos a título de fiança. Aliás, quanto a
essa possibilidade prevê o art. 336 do CPP, in verbis:
‘Art. 336. O dinheiro ou objetos dados como fiança servirão ao pagamento
das custas, da indenização do dano, da prestação pecuniária e da multa, se o
réu for condenado. (Redação dada pela Lei nº 12.403, de 2011)
Parágrafo único. Este dispositivo terá aplicação ainda no caso da prescrição
depois da sentença condenatória. (Redação dada pela Lei nº 12.403, de 2011)’
Nesse quadro, em situações autorizativas e específicas de conversão e recon-
versão, a pena pecuniária imposta com outra restritiva de direitos correspon-
derá à metade da privativa de liberdade substituída e há de ser considerada
proporcionalmente ao seu quantum, para a realização da dedução.
No caso dos autos, constata-se do Processo de Execução 5004469-
68.2018.4.04.7002, que tramita na 4ª Vara Federal de Foz do Iguaçu/PR, que
o embargante foi condenado em três ações penais distintas (eventos 1, 24 e
68 desse feito), a saber:
a) Processo 5003008-32.2016.404.7002, por fato praticado em 07.06.2015, à
pena de 2 (dois) anos de reclusão, em regime aberto, substituída por presta-
ção de serviços à comunidade e prestação pecuniária, no valor de 5 (cinco)
salários mínimos;
b) Processo 5009718-05.2015.404.7002, por fato praticado em 17.08.2015, à
pena de 2 (dois) anos de reclusão, em regime aberto, substituída por presta-
ção de serviços à comunidade e prestação pecuniária, no valor de R$10.000,00
(dez mil reais);
c) Processo 5001631-11.2016.404.7007, por fato praticado em 04.04.2016, à
pena de 2 (dois) anos de reclusão, em regime aberto, substituída por presta-
ção de serviços à comunidade e perda da fiança.
Em um primeiro momento, o juízo de primeiro grau unificou as penas das
Ações Penais 5003008-32.2016.404.7002 e 5009718- 05.2015.404.7002 me-
diante a soma das penas aplicadas, resultando a pena privativa de liberdade
em 3 (três) anos, 8 (oito) meses e 28 (vinte e oito) dias de reclusão, já consi-
derada a detração do tempo da prisão provisória (ev. 28, SENT1, da Execução
Penal 5004469-68.2018.4.04.7002).
Jurisprudência – Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal Nº 97 – Ago-Set/2020 171

Após a soma, mantida a substituição da pena privativa de liberdade, o cum-


primento das penas restritivas de direitos foi determinado nos seguintes mol-
des: a) Prestação de Serviços à Comunidade: 1.353 horas (já considerada a
detração); b) Prestação Pecuniária: R$ 13.803,80 (já considerada a detração,
sendo proporcionalmente reduzida para R$ 9.033,80 a pena de prestação pe-
cuniária da Ação Penal 5009718-05.2015.4.04.7002).
Ato contínuo, ainda na sentença de unificação destas duas primeiras penas o
juízo de primeiro grau determinou o abatimento da pena de prestação pecu-
niária com os valores depositados a título de fiança.
Consoante se verifica do evento 30 – EXTR1-2; ev. 31, CERT1 e evento 68
– GUIADEP13) os valores apreendidos com o apenado e outros recolhidos
a título de fiança, à luz do art. 336 do CPP, foram utilizados para o abati-
mento e, portanto, para o pagamento das penas pecuniárias relativas às con-
denações oriundas das Ações Penais 5009718-05.2015.404.7002 e 5003008-
32.2016.404.7002.
Para tal abatimento foram considerados os valores apreendidos em poder
do réu no Inquérito Policial 5008896-16.2015.4.04.7002 (ev. 30, EXTR2, da
Execução Penal 5004469-68.2018.4.04.7002), o qual subsidiou o oferecimen-
to de denúncia na Ação Penal 5009718-05.2015.404.7002, e o valor recolhido
a título de fiança em relação ao mesmo fato (ev. 30, EXTR1, da Execução
Penal 5004469-68.2018.4.04.7002), com o que estavam à disposição do juízo
os valores atualizados de R$ 2.796,88 (apreensão) e R$ 8.116,66 (fiança).
Assim, realizado o abatimento, constou da certidão do ev. 31 da Execução
Penal 5004469-68.2018.4.04.7002 que após os descontos dos valores depo-
sitados nas contas informadas nos eventos 30, restará o remanescente de R$
2.896,26 para o apenado João Carlos pagar a título de prestação pecuniária,
além das custas processuais, no valor de R$ 595,90.
Decorre daí que, embora não tenha ocorrido a audiência admonitória para o
início da execução penal propriamente dita, com a efetiva prestação de ser-
viço à comunidade e o pagamento da prestação pecuniária residual, o fato é
que parte do valor das prestações pecuniárias, abatidos pelos valores pagos
a título de fiança, foi satisfeita, impondo-se que seja deduzida em caso de
reconversão das penas restritivas em privativa de liberdade, na forma do art.
44, § 4º, do Código Penal.
Em um segundo momento, o juízo de primeiro grau unificou as penas das
Ações Penais 5003008-32.2016.404.7002 e 5009718- 05.2015.404.7002, com
as da Ação Penal 5001631-11.2016.404.7007 (1 ano, 10 meses e 14 dias de
reclusão, após a detração do tempo de prisão provisória), mediante a soma
das penas aplicadas, resultando a pena privativa de liberdade em 5 (cinco)
anos, 7 (sete) meses e 12 (doze) dias de reclusão/detenção (ev. 71, SENT1, da
Execução Penal 5004469- 68.2018.4.04.7002).
Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal Nº 97 – Ago-Set/2020 – Jurisprudência
172

No que tange à Ação Penal 5001631-11.2016.404.7007, a pena privativa de


liberdade fora substituída por duas restritivas de direitos, uma de prestação de
serviço à comunidade e outra de perdimento da fiança. Nesse contexto, em-
bora a condenação desta terceira ação penal tenha sido incluída pela segunda
sentença de soma, diante da natureza atípica da pena restritiva de direitos
aplicada, é possível considerar que o perdimento do valor, em si mesmo, já é
satisfativo da pena substitutiva.
Por esse motivo, também quanto à Ação Penal 5001631-11.2016.404.7007,
embora não tenha ocorrido a audiência admonitória para o início da execução
penal propriamente dita, com a efetiva prestação de serviço à comunidade, é
preciso reconhecer que parte da pena restritiva de direitos já foi cumprida,
impondo-se que seja deduzida em caso de reconversão das penas restritivas
em privativa de liberdade, na forma do art. 44, § 4º, do Código Penal.
Em consequência, consigno que o magistrado, após a unificação das três pe-
nas, mas antes de reconverter as restritivas de direito em pena privativa de
liberdade, deveria ter considerado o valor pago a título de prestação pecuniá-
ria, ou de pena substitutiva de natureza pecuniária, e deduzir da sanção carce-
rária o percentual correspondente a esta substitutiva. E, após, caso resultasse
tempo de pena privativa de liberdade privativa inferior ou até 4 anos, deveria
determinar que o condenado cumprisse as restritivas de direitos fixadas no
tempo remanescente da corporal, sem, inclusive, operar qualquer modifica-
ção no regime prisional.
Desse modo, considerando que o apenado pagou integralmente duas das três
restritivas de natureza pecuniária (Ações Penais 5009718-05.2015.404.7002 e
5001631-11.2016.404.7007), pelos fundamentos acima adotados, possui o di-
reito de dedução de 2 (dois) anos da pena privativa de liberdade. Além disso,
cabe também a dedução proporcional da pena privativa de liberdade na Ação
Penal 5003008-32.2016.404.7002 do quanto correspondente ao cumprimen-
to parcial das penas restritivas de direitos, diante do abatimento parcial da
pena de prestação pecuniária com o saldo do valor pago a titulo de fiança
e do valor apreendido com o réu, ambos relativos à Ação Penal 5009718-
05.2015.404.7002.
E, na unificação, restando um saldo de pena corporal menor ou igual a quatro
anos, não se mostra adequada a reconversão em prisional, bem como a modi-
ficação – pura e simplesmente -do regime de cumprimento para o semiaber-
to, de modo que João Carlos deverá cumprir as restritivas de direito no valor
e tempo remanescente a ser, novamente, calculado pelo Juízo da Execução,
observando-se ainda o regime aberto fixado nas três condenações.”
O acórdão recorrido diverge da orientação jurisprudencial desta Corte
de que incabível a aplicação do instituto da detração à pena de prestação pe-
cuniária. Nesse sentido, confira-se o seguinte precedente:
Jurisprudência – Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal Nº 97 – Ago-Set/2020 173

“AGRAVO REGIMENTAL NO HABEAS CORPUS IMPETRADO EM


SUBSTITUIÇÃO A RECURSO PRÓPRIO. DETRAÇÃO NA PRESTA-
ÇÃO PECUNIÁRIA. AUSÊNCIA DE PREVISÃO LEGAL. REDUÇÃO.
REEXAME FÁTICO-PROBATÓRIO. IMPOSSIBILIDADE. AGRAVO
REGIMENTAL DESPROVIDO.
1. O Superior Tribunal de Justiça e o Supremo Tribunal Federal pacificaram
orientação no sentido de que não cabe habeas corpus substitutivo do recurso
legalmente previsto para a hipótese, impondo-se o não conhecimento da im-
petração, salvo quando constatada a existência de flagrante ilegalidade no ato
judicial impugnado a justificar a concessão da ordem de ofício.
2. Não é possível a aplicação por analogia da detração na prestação pecuniária,
pois, ainda que aplicadas conjuntamente (prestação de serviço à comunidade
e prestação pecuniária), trata-se de institutos diversos, com consequências
jurídicas distintas. Ademais, a prestação pecuniária tem caráter penal e in-
denizatório, sendo que o possível exame da redução do quantum arbitrado
ensejaria reanálise das provas carreadas nos autos, o que é incompatível com
a estreita via do writ.
3. Agravo regimental desprovido.” (AgRg no HC 401.049/SC, Rel. Min. Ri-
beiro Dantas, Quinta Turma, j. 13.12.2018, DJe 01.02.2019)
Ante o exposto, dou provimento ao recurso especial.

VOTO-VISTA
O Exmo. Sr. Ministro Sebastião Reis Júnior: Senhor Presidente, após
um exame minucioso dos autos, acompanho integralmente o eminente Relator.
Jurisprudência

Tribunal de Justiça de São Paulo


RECURSO EM SENTIDO ESTRITO Nº 1504046-38.2019.8.26.0536
RELATOR: DESEMBARGADOR SÉRGIO RIBAS

Injúria Racial e Desacato


Rejeição parcial da denúncia. Recurso da acusação. Pretendido o rece-
bimento da exordial também no que tange ao crime de injúria racial.
Procedência. Peça vestibular que apresenta todos os requisitos ínsitos
no art. 41 do Código de Processo Penal. Constatação de justa causa para
o exercício da ação penal. De rigor o recebimento da denúncia, pros-
seguindo-se a ação penal em seus ulteriores termos. Recurso provido.
(TJSP; RSE 1504046-38.2019.8.26.0536; Ac. 13858693; 8ª C.D.Crim.;
Rel. Des. Sérgio Ribas; DJESP 19/08/2020; p. 3.506)

ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos de Recurso em Sentido Estrito
1504046-38.2019.8.26.0536, da Comarca de Praia Grande, em que é recor-
rente Ministério Público do Estado de São Paulo, é recorrido Vinicius C. S.
Acordam, em sessão permanente e virtual da 8ª Câmara de Direito
Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo, proferir a seguinte decisão:
deram provimento ao recurso interposto pela Justiça Pública, cassando a r. decisão, ora
combatida, determinando que seja recebida a denúncia, dando-se prosseguimento à ação
penal. V.U., de conformidade com o voto do relator, que integra este acórdão.
O julgamento teve a participação dos Desembargadores Sérgio Ribas
(Presidente), Marco Antônio Cogan e Mauricio Valala.
São Paulo, 14 de agosto de 2020.
Desembargador Sérgio Ribas – Relator

Voto nº 42.028
Vistos.
Trata-se de recurso em sentido estrito interposto pelo Ministério Pú-
blico contra a r. decisão de fls. 45/46, que rejeitou a denúncia ofertada contra
Jurisprudência – Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal Nº 97 – Ago-Set/2020 175

Vinicius C. S. quanto à prática do crime de injúria racial por falta de justa


causa para o exercício da ação penal, recebendo-a apenas no tocante ao delito
de desacato.
Inconformado, recorre o Ministério Público visando à cassação da
r. decisão de primeiro grau, com o consequente recebimento da denúncia
também quanto ao crime de injúria racial. Sustenta que, diversamente do
decidido, existe justa causa para o exercício da ação penal, havendo indícios
suficientes de que tenha o acusado agido com animus injuriandi (fls. 107/123).
O recurso foi bem processado e contrariado pela defesa (fls. 75/77).
Em sede de juízo de retratação, a r. decisão foi mantida, sendo os autos
remetidos a este egrégio Tribunal (fl. 78).
Instada a se manifestar, a d. Procuradoria de Justiça pugnou pelo pro-
vimento do recurso (fls. 86/93).
É o relatório.
Consta da denúncia que em 17 de dezembro de 2019, por volta de
18h35min, na orla da praia (avenida Castelo Branco) do bairro da Vila Mi-
rim, Praia Grande/SP, Vinicius C. S. injuriou Juvenal A. S., ofendendo-lhe a
dignidade ou o decoro por meio da utilização de elementos referentes à cor
de sua pele.
Consta ainda que Vinicius desacatou funcionários públicos no exercício
da função.
Segundo se apurou, Vinicius fumava maconha na orla da praia, em
companhia de terceiros. Em razão disso, ele foi abordado pelos guardas
municipais Juvenal, Naylane e Jamisson que por ali patrulhavam. Durante a
abordagem, o acusado passou a debochar e a ofender os guardas municipais,
menosprezando o exercício da função pública, dizendo a eles que “passavam
fome”, que era dono de estabelecimento comercial e que os guardas ali faziam
suas refeições, que os guardas “não eram polícia”, dentre outras coisas.
Segundo relatado, Vinicius portava um cigarro de maconha já parcial-
mente consumido, além de um dichavador. Em dado momento, ele ensaiou
sair correndo do local, em fuga da abordagem, mas veio a ser contido pelos
guardas. Em tom ainda de sarcasmo e deboche, Vinicius ofendeu o guarda
Juvenal referindo-se a ele como “negão” e dando risada da situação.
A vítima Juvenal apresentou representação à fl. 06.
Estes são os fatos relatados na exordial.
Temos que a r. decisão merece reforma.
Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal Nº 97 – Ago-Set/2020 – Jurisprudência
176

Assevere-se que nos termos do art. 41 do Código de Processo Penal,


a denúncia deve conter a exposição do fato criminoso, com todas as suas
circunstâncias, a qualificação do acusado ou esclarecimentos pelos quais se
possa identificá-lo, a classificação do crime e, quando necessário, o rol de
testemunhas, e será rejeitada quando não atender a esses requisitos ou nas
hipóteses do art. 395 do citado Diploma Processual.
Assim, presentes essas condições somente quando inexistir a mínima
possibilidade de apuração da lesão ao bem jurídico tutelado é que a denúncia
deve ser rejeitada.
Pois bem.
No presente caso consta da denúncia apresentada os elementos mínimos
necessários ao seu recebimento e devido processamento.
Segundo a acusação, conforme acima relatado, abordado por guardas
municipais, o acusado Vinicius C. S. tentou fugir e, contido, passou a debo-
char e a ofender os guardas municipais, menosprezando o exercício da função
pública, dizendo a eles que “passavam fome”, que era dono de estabeleci-
mento comercial e que os guardas ali faziam suas refeições, que os guardas
“não eram polícia”, dentre outras coisas. Não contente, ainda em tom de
sarcasmo e deboche, Vinícius ofendeu o guarda civil Juvenal referindo-se a
ele como “negão” e dando risada da situação. E o guarda Juvenal apresentou
representação à fl. 06.
O MM. Juízo a quo, no entanto, entendeu ser o caso de rejeição da
denúncia no que diz respeito à imputação da prática do crime de injúria racial,
consignando, à fl. 45:
“(...) constata-se que o termo ‘negão’ não foi utilizado por ele com o intuito
de ofender a dignidade da vítima em razão de sua cor, ou seja, o termo não
foi utilizado como adjetivo depreciativo relativamente à cor da vítima, ca-
recendo o crime, portanto, do elemento subjetivo específico do tipo, que é
a especial intenção de ofender, magoar, macular a honra alheia em razão de
sua cor, mas, como a própria denúncia afirma em seu contexto, o fez em tom ‘de
sarcasmo e deboche’ (fl. 44) em razão da atuação da conduta funcional, o que
já está inserida na imputação do crime de desacato (art. 331 do CP), que se
configura com a firme intenção de humilhar e colocar em vexame a autori-
dade pública, desprestigiando-a, infirmando sua autoridade e objetivando o
achincalhe (RJD 17/71).
Desta forma, sem a comprovação nos autos, ao menos de maneira indiciária,
de que o acusado agiu imbuído do animus injuriandi, mostra-se inexistente a
justa causa para o início da persecutio criminis, razão pela qual rejeito a denúncia
no tocante ao crime de injúria racial, com fulcro no art. 395, III, do CPP.”
Jurisprudência – Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal Nº 97 – Ago-Set/2020 177

Assim, em suma, entendeu o d. magistrado que a expressão “Negão”


não teria sido usada pelo acusado em tom depreciativo ou visando ofender o
guarda civil em razão de sua cor ou origem racial, mas tão-somente sua figura
como autoridade pública e, diante da ausência de provas ou indícios de animus
injuriandi, rejeitou a denúncia pelo delito de injúria, enquadrando a conduta
apenas no delito de desacato.
Ocorre que, como ensina Renato Marcão, “a verificação de prova
cabal da acusação só se faz necessária para o deslinde do processo, quando
da procedência ou não da imputação”, de modo que a denúncia só deve ser
rejeitada “quando patente a ausência de justa causa ou a atipicidade da conduta,
diagnosticáveis primu icto oculi” (Código de Processo Penal comentado. São Paulo:
Saraiva, 2016. p. 991).
Assim, como já dito, é cediço que o Juízo, ao receber a denúncia, deve
observar se foram preenchidos os requisitos do art. 41 do Código de Processo
Penal, cabendo a rejeição da peça em caso de inépcia, de falta de pressuposto
processual ou de condição para o exercício da ação penal ou, ainda, se faltar
justa causa, de acordo com o art. 395 e incisos do CPP.
Nessa toada, verifica-se que as declarações do ofendido (fl. 05) e das
testemunhas presenciais Jamisson Carlos Nascimento da Silva (fls. 02/03) e
Naylane Oliveira da Silva (fl. 04), todos guardas municipais, juntamente com o
boletim de ocorrência de fls. 09/11 e o relatório final de fls. 35/37, constituem
importantes elementos de convicção sobre a materialidade do delito, além de
consubstanciar fortes indícios do pressuposto da autoria.
Em seu interrogatório, Vinícius admitiu ter sido abordado pelos guar-
das municipais enquanto portava um cigarro de maconha para uso pessoal
e um dichavador, alegando, contudo, que “tentou evitar atrito” com eles,
“mas mesmo assim foram truculentos e o conduziram à Delegacia”. Sobre a
acusação de ter ofendido um dos guardas em razão da cor da pele dele, negou
ter ofendido qualquer um dos guardas (fl. 07).
Por outro lado, a vítima e os guardas civis ouvidos informaram que o
acusado, além de desacatá-los, menosprezando o exercício da função pública,
teria proferido palavras injuriosas contra o guarda municipal Juvenal Augusto
de Souza, chamando-o de “Negão” em tom de sarcasmo e deboche, dando
risadas da situação (fls. 02/05).
Nessa toada, consoante destacou a d. Procuradoria Geral em seu pare-
cer, “em que pese o recorrido tenha inicialmente insultado e humilhado os
guardas civis municipais minimizando e desvalorizando o exercício de sua
função pública, quando decidiu dirigir a palavra especificamente ao GCM
Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal Nº 97 – Ago-Set/2020 – Jurisprudência
178

Juvenal e escolher chamá-lo de “Negão” em tom sarcástico e de deboche,


estava usando a cor de sua pele e sua origem racial como elemento deprecia-
tivo para ofender a honra subjetiva de Juvenal por suas características físicas
e não como funcionário público” (fl. 88).
Destarte, a denúncia oferecida pela nobre Promotoria de Justiça preen-
che os requisitos legais, descreve um fato criminoso, a punibilidade do delito
não está extinta pela prescrição ou outra causa, e está embasada em veementes
indícios da ocorrência de um crime. Apta, pois, para ser recebida e gerar o
início da ação penal. Não há que se falar em falta de justa causa para ação penal.
A rejeição da denúncia somente é permitida nas hipóteses elencadas no
art. 395 do CPP, sendo vedado ao Juiz fazer antecipadamente qualquer ilação
subjetiva sobre a prova até então produzida, o que deve ser levado a efeito
após a instauração da ação penal, com consequente instrução criminal, sob o
crivo do contraditório.
Com efeito, a análise aprofundada da prova e do elemento subjetivo
do tipo, para aferir com segurança eventual existência de animus injuriandi por
parte do acusado, deve ser realizada após a regular instrução do feito.
Diante de todo exposto, dou provimento ao recurso interposto pela Justiça
Pública, cassando a r. decisão, ora combatida, determinando que seja recebida
a denúncia, dando-se prosseguimento à ação penal.
Desembargador Sérgio Ribas – Relator
Divergência Jurisprudencial

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Prisão Preventiva – Homicídio Qualificado – Embriaguez


ao Volante – Aplicação de Medidas Cautelares Diversas
da Prisão – Possibilidade/Impossibilidade

97/1 → HOMICÍDIO QUALIFICADO COMETIDO NA DIREÇÃO DE VEÍCU-


LO AUTOMOTOR. EMBRIAGUEZ AO VOLANTE. PRISÃO PREVENTIVA. GARAN-
TIA DA ORDEM PÚBLICA. MOTIVAÇÃO INIDÔNEA. DESPROPORCIONALIDADE
DA CONSTRIÇÃO EM RAZÃO DAS CIRCUNSTÂNCIAS ATUAIS. CRIME PRATI-
CADO SEM VIOLÊNCIA INTENCIONAL OU GRAVE AMEAÇA. RECOMENDAÇÃO
Nº 62/2020 DO CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. APLICAÇÃO DE MEDIDAS
CAUTELARES DIVERSAS DA PRISÃO. POSSIBILIDADE. CONSTRANGIMENTO
ILEGAL EVIDENCIADO. 1. A prisão preventiva é cabível mediante decisão devidamente
fundamentada e com base em dados concretos, quando evidenciada a existência de cir-
cunstâncias que demonstrem a necessidade da medida extrema, nos termos dos arts. 312 e
seguintes do CPP. 2. Embora não esteja carente de fundamentação, a prisão cautelar, diante
das peculiaridades do caso – crime sem violência intencional ou grave ameaça – e, em razão
das circunstâncias atuais – pandemia –, está desproporcional, o que justifica a substituição da
medida extrema por outras alternativas. 3. Ordem concedida para substituir a prisão preventiva
imposta ao paciente por medidas alternativas, consistentes em: a) suspensão da habilitação para
dirigir veículo automotor; b) recolhimento domiciliar no período noturno, fins de semana e
feriados; c) proibição de frequentar bares e restaurantes; d) monitoramento eletrônico; bem
como outras cautelares que o juízo entender adequadas, salvo se por outro motivo estiver
preso e sob o compromisso de comparecimento aos atos do processo, cabendo ao Magistrado
de primeiro grau o estabelecimento das condições. (STJ; HC 554.822; Proc. 2019/0385405-3;
SP; 6ª T.; Rel. Min. Sebastião Reis Júnior; DJE 30/06/2020)

97/2 ← HOMICÍDIO QUALIFICADO E EMBRIAGUEZ AO VOLANTE. ALE-


GAÇÃO DE DECISÃO GENÉRICA E AUSÊNCIA DOS REQUISITOS DA PRISÃO
PREVENTIVA. PACIENTE PRIMÁRIO, COM ENDEREÇO FIXO E OCUPAÇÃO
LÍCITA. RISCOS À INTEGRIDADE FÍSICA EM DECORRÊNCIA DA PANDEMIA
DA COVID-19. LIMINAR INDEFERIDA. 1. Decisão detalhada e bem fundamentada que
encontra amparo nos juízos de urgência e necessidade que são próprios das cautelares pessoais.
Paciente envolvido em acidente automobilístico. Suposta condução do veículo em estado de
embriaguez e em alta velocidade. Informações de que o paciente teria trafegado de modo te-
merário ao menos duas vezes pelo local dos fatos antes de colidir com o motociclo da vítima.
Acidente automobilístico que resultou na colisão com outros seis veículos, provocando a morte
da vítima. Gravidade concreta dos fatos a ensejar a manutenção da custódia. 2. Inexistência
de informações de que o paciente integre grupo de risco ou mesmo indícios de omissão das
autoridades administrativas na adoção de medidas preventivas e profiláticas. 3. Ordem dene-
gada. (TJSP; HC 2116195-39.2020.8.26.0000; Ac. 13720342; 16ª C.D.Crim.; Rel. Des. Marcos
Alexandre Coelho Zilli; DJESP 10/07/2020; p. 3.256)
Ementário

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97/3 – AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. COMPETÊNCIA


POR PRERROGATIVA DE FUNÇÃO. CONSTITUIÇÃO ESTADUAL QUE ESTENDE
FORO CRIMINAL POR PRERROGATIVA DE FUNÇÃO A PROCURADORES DE ES-
TADO, PROCURADORES DA ASSEMBLEIA LEGISLATIVA, DEFENSORES PÚBLICOS
E DELEGADOS DE POLÍCIA. IMPOSSIBILIDADE DE EXTENSÃO DAS HIPÓTESES
DEFENDIDAS PELO LEGISLADOR CONSTITUINTE FEDERAL. AÇÃO DIRETA PRO-
CEDENTE. 1. A CF estabelece, como regra, com base no princípio do juiz natural e no princípio
da igualdade, que todos devem ser processados e julgados pelos mesmos órgãos jurisdicionais.
2. Em caráter excepcional, o texto constitucional estabelece o chamado foro por prerrogativa de
função com diferenciações em nível federal, estadual e municipal. 3. Impossibilidade de a Cons-
tituição Estadual, de forma discricionária, estender o chamado foro por prerrogativa de função
àqueles que não abarcados pelo legislador federal. 4. ADI julgada procedente para declarar a
inconstitucionalidade do art. 81, IV, da Constituição do Estado do Maranhão. (STF; ADI 2.553;
MA; T.P.; Red. p/o Ac. Min. Alexandre de Moraes; DJE 17/08/2020; p. 23)
97/4 – ACORDO DE COLABORAÇÃO PREMIADA. VOLUNTARIEDADE.
INDISPENSABILIDADE. AUSÊNCIA DE DIREITO LÍQUIDO E CERTO JUDICIAL-
MENTE EXIGÍVEL. RECURSO DESPROVIDO. 1. A jurisprudência do STF assentou que
o acordo de colaboração premiada consubstancia negócio jurídico processual, de modo que
seu aperfeiçoamento pressupõe voluntariedade de ambas as partes celebrantes. Precedentes.
2. Não cabe ao Poder Judiciário, que não detém atribuição para participar de negociações
na seara investigatória, impor ao Ministério Público a celebração de acordo de colaboração
premiada, notadamente, como ocorre na hipótese, em que há motivada indicação das razões
que, na visão do titular da ação penal, não recomendariam a formalização do discricionário
negócio jurídico processual. 3. A realização de tratativas dirigidas a avaliar a conveniência do
Ministério Público quanto à celebração do acordo de colaboração premiada não resulta na
necessária obrigatoriedade de efetiva formação de ajuste processual. 4. A negativa de celebração
de acordo de colaboração premiada, quando explicitada pelo Procurador-Geral da República
em feito de competência originária desta Suprema Corte, não se subordina a escrutínio no
âmbito das respectivas Câmaras de Coordenação e Revisão do Ministério Público. 5. Nada
obstante a ausência de demonstração de direito líquido e certo à imposição de celebração de
acordo de colaboração premiada, assegura-se ao impetrante, por óbvio, insurgência na seara
processual própria, inclusive quanto à eventual possibilidade de concessão de sanção premial
em sede sentenciante, independentemente de anuência do Ministério Público. Isso porque
a colaboração premiada configura realidade jurídica, em si, mais ampla do que o acordo de
colaboração premiada. 6. Agravo regimental desprovido. (STF; MS-AgR 35.693; DF; 2ª T.; Rel.
Min. Edson Fachin; DJE 24/07/2020; p. 109)
97/5 – ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO PENAL. ART. 28-A. DESCABIMEN-
TO DURANTE O PROCESSO CRIMINAL. 1. O novel instituto do acordo de não perse-
cução tem seu momento próprio, quando, não sendo o caso de arquivamento do inquérito,
estejam reunidas as condições para se evitar a ação penal, mediante acordo com o investigado.
A medida, adotada por questões de política criminal, é direcionada especificamente ao inqué-
rito policial para que, dadas determinadas e específicas circunstâncias, o processo penal sequer
chegue a ser necessário. 2. Ressalva apresentada quanto ao cabimento do acordo quando já
iniciada a ação penal. (TRF 4ª R.; ACR 5001326-48.2017.4.04.7118; RS; 8ª T.; Rel. Des. Fed.
Marcelo Cardozo da Silva; PJe 23/07/2020)
Ementário – Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal Nº 97 – Ago-Set/2020 181

97/6 – ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO PENAL. POSSIBILIDADE. BAIXA


DOS AUTOS. A 4ª Seção desta Corte, na sessão de 21.05.2020, em questão de ordem susci-
tada nos autos dos EINF 5001103-25.2017.404.7109/RS, decidiu pela aplicação do acordo de
não persecução penal (art. 28-A do CPP) aos processos com denúncia já recebida na data da
vigência da Lei nº 13.964/2019, inclusive para aqueles em grau de recurso. No caso dos autos,
constata-se, em tese, a presença dos requisitos legais para análise de eventual acordo de não
persecução penal, uma vez que a pena mínima cominada ao crime, cometido sem violência
ou grave ameaça, é inferior a 4 (quatro) anos, não se verificando, em princípio, a presença
dos impeditivos elencados no § 2º do art. 28-A do CPP, devendo os autos serem baixados à
origem para análise da proposição pelo Ministério Público Federal. (TRF 4ª R.; ACR 5002388-
85.2015.4.04.7121; RS; 7ª T.; Relª Desª Fed. Cláudia Cristina Cristofani; PJe 16/07/2020)
97/7 – ATENTADO CONTRA A SEGURANÇA DE TRANSPORTE AÉREO.
FORMA QUALIFICADA. QUEDA DE HELICÓPTERO. FALECIMENTO DAS VÍTIMAS.
ART. 261, § 1º C/C OS ARTS. 263 E 258 DO CÓDIGO PENAL. PORTE IRREGULAR
DE ARMA DE FOGO. USO RESTRITO. ART. 16 DA LEI Nº 10.826/03. FALSIFICAÇÃO
DE DOCUMENTO PÚBLICO. ART. 297 DO CP. TENTATIVA DE PROMOVER A
FUGA DE PESSOA PRESA. ART. 351 C/C O ART. 14, INCISO II, DO CP. 1. Consuma o
crime tipificado pelo art. 261 do CP, o agente que contrata passeio turístico de helicóptero e,
durante o voo, ameaça o piloto com arma de fogo para realizar percurso diverso. A ocorrência
de luta corporal entre piloto e sequestrador, resultando na queda do aparelho e falecimento
da vítima, atrai a incidência da qualificadora prevista pelo § 1º do próprio art. 261, bem como
das disposições previstas pelos arts. 263 e 258, ambos do CP. 2. Incide nas penas do art. 16 da
Lei nº 10.826/03 ao indivíduo que porta arma de fogo de uso restrito, sem autorização e em
desacordo com determinação legal ou regulamentar. 3. A contrafação de cédula de identidade
atrai a incidência do art. 297 do Código Penal. 4. A utilização de helicóptero para resgate de
pessoa legalmente presa, mas que, por circunstâncias alheias à vontade do agente, acaba não
ocorrendo em razão da queda do aparelho, atrai a incidência do art. 351 c/c o art. 14, inciso II,
do CP. (TRF 4ª R.; ACR 5004583-89.2018.4.04.7201; SC; 8ª T.; Rel. Des. Fed. Leandro Paulsen;
PJe 10/08/2020)
97/8 – ATO INFRACIONAL ANÁLOGO A ROUBO MAJORADO (ART. 157, § 2º,
II E § 2º, A, I, DO CP). EMPREGO DE VIOLÊNCIA E GRAVE AMEAÇA. INTERNAÇÃO.
INTELIGÊNCIA DO ART. 122, I, DO ECA. MEDIDA ADEQUADA. RECURSO DES-
PROVIDO. 1. A medida de internação se revela compatível com o disposto no art. 122, I, do
ECA, uma vez que o ato infracional fora praticado com emprego de violência e grave ameaça,
em concurso de pessoas e uso de arma de fogo. 2. A prática de ato infracional equiparado ao
crime de roubo qualificado, mediante violência ou grave ameaça à pessoa, por si só, motiva
a imposição da medida de internação do menor (Precedentes do STJ). 3. Apelo desprovido.
(TJAC; APL 0000302-27.2020.8.01.0001; Ac. 9.023; 2ª C.Cív.; Rel. Des. Roberto Barros; DJAC
11/08/2020; p. 7)
97/9 – CORREIÇÃO PARCIAL. DESCUMPRIMENTO DE MEDIDA PROTE-
TIVA. PROCEDIMENTO. IMPOSSIBILIDADE DE APLICAÇÃO DA LEI Nº 9.099
DECISÃO REFORMADA. O delito previsto no art. 24-A da Lei Maria da Penha tem os
objetivos, fático e jurídico, de proteção da mulher nas situações mencionadas na Lei nº 11.340,
deve ser processado e julgado pelo Juizado da Violência Doméstica. Deste modo, porque o
objetivo da punição de quem desrespeita a medida protetiva é, ao fim e ao cabo, a de proteger
a integridade física e psíquica da mulher a incolumidade moral, psicológica e física familiar, o
procedimento criminal segue o previsto na legislação referida acima. Deste modo, não se aplica
à hipótese referida os benefícios da Lei nº 9.099, como preveem o art. 41 da Lei nº 11.340 e
a Súmula nº 536 do Superior Tribunal de Justiça. Correição parcial procedente. (TJRS; CP
Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal Nº 97 – Ago-Set/2020 – Ementário
182

0075963-09.2020.8.21.7000; Proc. 70084376045; 1ª C.Crim.; Rel. Des. Sylvio Baptista Neto;


DJERS 18/08/2020)
97/10 – CRIME AMBIENTAL. ART. 40 DA LEI Nº 9.605/98. TIPO ABERTO.
CONSTITUCIONALIDADE. DOSIMETRIA DA PENA. PESSOA JURÍDICA. VALOR
MÍNIMO INDENIZÁVEL. ART. 387, IV, DO CPP. RECURSO MINISTERIAL PARCIAL-
MENTE PROVIDO. I – A opção legislativa de incriminar qualquer espécie de dano causado
à unidade de conservação, como ocorre no art. 40 da Lei nº 9.605/98, tem como objetivo
alargar a tipicidade tendo em vista a impossibilidade de o legislador prever todas as condutas
passíveis de serem causadoras de dano. A mens legis é justamente o de acolher o maior número
de situações fáticas, valendo-se de tipo penal aberto, sem que haja desrespeito ao princípio da
taxatividade. II – Tampouco se vislumbra inconstitucionalidade do tipo pelo uso da expressão
“unidades de conservação”. Trata-se de norma penal em branco, técnica perfeitamente aceita
no ordenamento jurídico brasileiro. III – A adoção de norma penal em branco somente vicia
o tipo penal quando impede que dele se extraia o núcleo essencial proibitivo da norma. IV – A
pena de multa aplicada à pessoa jurídica deve ser fixada de acordo com os parâmetros previstos
no art. 6º da Lei nº 9.605/98, bem como nos arts. 49 a 51 e 60 do CP. V – O valor mínimo
indenizável a que alude o art. 387 do CPP deve ser fixado apenas quando houver elementos
que permitam mensurar financeiramente o dano causado, de forma concreta e precisa. Nada
obsta que a apuração precisa de outros danos eventualmente causados seja feita na esfera cível.
VI – Recurso parcialmente provido. (TRF 2ª R.; ACR 0000837-48.2012.4.02.5107; RJ; 1ª T.Esp.;
Rel. Des. Fed. Abel Gomes; DEJF 27/07/2020)
97/11 – CRIME AMBIENTAL. ART. 48 DA LEI Nº 9.605/98. CRIME PERMA-
NENTE. ART. 60 DA LEI Nº 9.605/98. ATIVIDADE POTENCIALMENTE POLUIDO-
RA. PRESUNÇÃO. IMPOSSIBILIDADE. DANO EFETIVO NÃO COMPROVADO.
SÚMULA Nº 7/STJ. RECURSO IMPROVIDO. 1. “A jurisprudência tanto do Superior
Tribunal de Justiça quanto do Supremo Tribunal Federal reconhece que o tipo penal do art.
48 da Lei nº 9.605/98 é permanente e, dessa forma, pode ser interpretado de modo a incluir a
conduta daquele que mantém edificação, há muito construída, em área às margens de represa
artificial – na qual a vegetação nativa foi removida também há muito tempo –, não havendo
que se falar na ocorrência de prescrição da pretensão punitiva” (AgRg no AREsp 21.656/SP,
Rel. Min. Rogério Schietti Cruz, Sexta Turma, DJe 25.11.2015). 2. A configuração do delito
previsto no art. 60 da Lei nº 9.605/98, exige o desenvolvimento de atividade potencialmente
poluidora sem a correspondente licença ambiental. O fato de ser exigida a licença ambiental
não pode gerar a presunção de que a atividade desenvolvida pelo acusado seja potencialmente
poluidora (ut, AgRg no REsp 1.411.354/RS, Rel. Min. Moura Ribeiro, Quinta Turma, DJe
26.08.2014). 3. No caso em tela, o Tribunal de origem, soberano na apreciação do conjunto
fático-probatório dos autos, registrou que não ficou evidenciado, em nenhum momento, a
potencialidade poluidora do imóvel construído. A modificação desse entendimento esbarra
no óbice do Enunciado nº 7 da Súmula deste Tribunal. 4. Agravo regimental improvido. (STJ;
AgRg-REsp 1.840.129; Proc. 2019/0287801-8; RN; 5ª T.; Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca;
DJE 13/08/2020)
97/12 – DESCUMPRIMENTO DE MEDIDA PROTETIVA E AMEAÇA EM
CONTEXTO DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA. MANUTENÇÃO DA PRISÃO PREVEN-
TIVA. REQUISITOS DA PRISÃO CAUTELAR JÁ APRECIADOS EM IMPETRAÇÃO
PRECEDENTE. Writ não conhecido neste tocante. Desproporcionalidade da medida não
verificada. Necessidade de manutenção da custódia para o fim de assegurar a incolumidade
física e psicológica da vítima. Writ parcialmente conhecido e nesta parte denegado. (TJSP; HC
2161323-82.2020.8.26.0000; Ac. 13857188; 13ª C.D.Crim.; Rel. Des. Marcelo Gordo; DJESP
19/08/2020; p. 3.524)
Ementário – Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal Nº 97 – Ago-Set/2020 183

97/13 – EMBARGOS INFRINGENTES. CRIME CONTRA AS TELECOMUNI-


CAÇÕES. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. IMPOSSIBILIDADE DE APLICAÇÃO.
SÚMULA Nº 606 DO STJ. RECURSO DESPROVIDO. 1. “Não se aplica o princípio da
insignificância a casos de transmissão clandestina de sinal de internet via radiofrequência, que
caracteriza o fato típico previsto no art. 183 da Lei nº 9.472/97”. Súmula nº 606 do STJ. 2.
Prevalência do voto vencedor. 3. Embargos infringentes aos quais se nega provimento. (TRF
2ª R.; EI-Nul 0501734-07.2016.4.02.5001; RJ; 1ª S.Esp.; Rel. Des. Fed. Antonio Ivan Athié; DEJF
14/07/2020)
97/14 – EMBRIAGUEZ AO VOLANTE. SUBSTITUIÇÃO DA PENA PRIVATIVA
DE LIBERDADE POR RESTRITIVAS DE DIREITOS. REINCIDÊNCIA NÃO ESPECÍ-
FICA. MEDIDA SOCIALMENTE NÃO RECOMENDÁVEL. RECURSO DESPROVIDO.
1. “Nos termos do art. 44, § 3º, do CP e da jurisprudência desta Corte superior, a substituição
da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos, nos casos em que o agente possui rein-
cidência não específica, somente deve ocorrer quando for socialmente recomendável” (AgInt
no HC 389.274/SC, Rel. Min. Nefi Cordeiro, Sexta Turma, j. 02.05.2017, DJe 11.05.2017).
2. No caso dos autos, o Tribunal de origem manteve a negativa de substituição da pena do
agravante apontando elementos concretos dos autos aptos a evidenciar a sua inadequação. 3.
Agravo regimental desprovido. (STJ; AgRg-REsp 1.859.252; Proc. 2020/0018495-2; SP; 6ª T.;
Rel. Min. Antonio Saldanha Palheiro; DJE 12/08/2020)
97/15 – ESTELIONATO PREVIDENCIÁRIO. ART. 171, § 3º, DO CÓDIGO
PENAL. AUTORIA. COMPROVAÇÃO DO DOLO. 1. Uma vez afastado, por sentença
transitada em julgado, o motivo pelo qual o INSS cessou o benefício assistencial em favor de
Vera Lúcia Tibúrcio Montezuma, considerando-o regularmente concedido, resta afastado, em
consequência, o dolo na conduta da apelante, impondo-se sua absolvição. 2. Dado provimento
ao recurso para absolver a apelante. (TRF 2ª R.; ACR 0500865-66.2015.4.02.5102; RJ; 1ª T.Esp.;
Rel. Des. Fed. Antonio Ivan Athié; DEJF 14/08/2020)
97/16 – EXECUÇÃO CRIMINAL. PEDIDO DE PRISÃO DOMICILIAR INDEFE-
RIDO. Sentenciado no grupo de risco. Descabimento. Regime prisional fechado não admite a
prisão domiciliar. Inteligência do art. 117, II, da LEP. Impossibilidade de progressão per saltum.
Ausência de comprovação de que o sentenciado teria, em liberdade, cuidados médicos diversos
e mais eficazes daqueles prestados pelo Estado. Direito de assistência à saúde devidamente
assegurado ao paciente. Constrangimento ilegal não evidenciado. Ordem denegada. (TJSP;
HC 2179660-22.2020.8.26.0000; Ac. 13858418; 14ª C.D.Crim.; Rel. Des. Fernando Torres Garcia;
DJESP 19/08/2020; p. 3.540)
97/17 – EXECUÇÃO PENAL. FALTA GRAVE. PROCEDIMENTO ADMINISTRA-
TIVO DISCIPLINAR. NECESSIDADE. NOVO ENTENDIMENTO DO STF. REPER-
CUSSÃO GERAL. SUPERAÇÃO DA SÚMULA Nº 533/STF. AGRAVO IMPROVIDO.
1. A Terceira Seção do STJ, ao apreciar o REsp 1.378.557/RS, admitido como representativo
de controvérsia, entendeu pela necessidade de instauração de procedimento administrativo
disciplinar para o reconhecimento da falta grave, assegurado o direito de defesa, a ser realizado
por advogado constituído ou defensor público nomeado. 2. O entendimento foi sumulado
por esta Corte, conforme o Enunciado nº 533 da Súmula do STJ: “Para o reconhecimento
da prática de falta disciplinar, no âmbito da execução penal, é imprescindível a instauração de
procedimento administrativo pelo diretor do estabelecimento prisional, assegurado o direito de
defesa, a ser realizado por advogado constituído ou defensor público nomeado”. 3. O Supremo
Tribunal Federal em repercussão geral, ao julgar o RE 972.598/RS, em sessão do Plenário virtual
realizada em 04.05.2020, firmou a compreensão de que “A oitiva do condenado pelo Juízo da
Execução Penal, em audiência de justificação realizada na presença do defensor e do Ministé-
Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal Nº 97 – Ago-Set/2020 – Ementário
184

rio Público, afasta a necessidade de prévio Procedimento Administrativo Disciplinar (PAD),


assim como supre eventual ausência ou insuficiência de defesa técnica no PAD instaurado
para apurar a prática de falta grave durante o cumprimento da pena” (RE 972.598/RS, Pleno,
Rel. Min. Roberto Barroso, DJe 11.05.2020). 4. Comprovado que se assegurou ao paciente
o regular exercício do direito de defesa, na sede da audiência de justificação realizada no caso
concreto, inexiste qualquer nulidade a ser sanada, nem constrangimento ilegal a ser reparado.
5. Agravo regimental improvido. (STJ; AgRg-HC 581.854; Proc. 2020/0115130-7; PR; 6ª T.;
Rel. Min. Nefi Cordeiro; DJE 13/08/2020)
97/18 – EXECUÇÃO PENAL. PRETENDIDA CONCESSÃO DE PRISÃO DO-
MICILIAR PORQUE A PACIENTE É MÃE DE FILHOS MENORES DE 12 ANOS E
DIANTE DA PANDEMIA DE COVID-19. Condenação por crime que envolve violência
e grave ameaça, o que obsta o deferimento da benesse nos termos do art. 318-A, I, do CPP.
Da mesma forma, não ficou demonstrada a imprescindibilidade da prisão domiciliar prevista
no art. 117, III, da LEP, sendo inadmissível a sua concessão pela via estreita do writ. Ausência
de demonstração nos autos de que a paciente é acometida de alguma doença, colocando-a no
grupo de risco. Ordem denegada. (TJSP; HC 2172219-87.2020.8.26.0000; Ac. 13862458; 1ª
C.D.Crim.; Rel. Des. Diniz Fernando Ferreira da Cruz; DJESP 19/08/2020; p. 3.477)
97/19 – EXECUÇÃO PENAL DEFINITIVA. SUBSTITUIÇÃO PELO JUÍZO DAS
EXECUÇÕES CRIMINAIS DE PENA RESTRITIVA DE DIREITOS DE PRESTAÇÃO DE
SERVIÇOS À COMUNIDADE POR PRESTAÇÃO PECUNIÁRIA. IMPOSSIBILIDADE.
AUSÊNCIA DE CONSTRANGIMENTO ILEGAL. HABEAS CORPUS NÃO CONHECI-
DO. 1. O Superior Tribunal de Justiça, alinhando-se à nova jurisprudência da Corte Suprema,
também passou a restringir as hipóteses de cabimento do habeas corpus, não admitindo que o
remédio constitucional seja utilizado em substituição ao recurso ou ação cabível, ressalvadas as
situações em que, à vista da flagrante ilegalidade do ato apontado como coator, em prejuízo da
liberdade do paciente, seja cogente a concessão, de ofício, da ordem de habeas corpus (AgRg no
HC 437.522/PR, Rel. Min. Felix Fischer, Quinta Turma, j. 07.06.2018, DJe 15.06.2018). 2. É
vedado ao Juízo da Execução alterar a pena restritiva de direitos estabelecida em sentença con-
denatória transitada em julgado, sendo-lhe possível apenas alterar a forma de seu cumprimento
adaptando-a às peculiaridades do caso concreto, a fim de possibilitar o regular cumprimento da
medida pelo condenado, sem prejuízo de suas atividades profissionais. Precedentes do STJ. 3.
Habeas corpus de que não se conhece. (STJ; HC 582.136; Proc. 2020/0115882-2; SP; 5ª T.; Rel.
Min. Reynaldo Soares da Fonseca; DJE 13/08/2020)
97/20 – EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE DO AGRAVANTE INDEPENDEN-
TEMENTE DO PAGAMENTO DA PENA DE MULTA. PENAS PRIVATIVAS DE
LIBERDADE E RESTRITIVAS DE DIREITOS JÁ CUMPRIDAS. Multa ainda pendente
de pagamento. Pedido de extinção da punibilidade acertadamente indeferido. Julgamento da
ADI 3.150 pelo c. STF, em que reconhecido o caráter de sanção criminal da multa penal e a
legitimação prioritária do Ministério Público para sua execução perante a Vara das Execuções
Criminais. Cobrança da pena de multa pela Fazenda Pública em caráter subsidiário, por ser
também dívida de valor, apenas se o Ministério Público não houver atuado no prazo de 90
dias. Recurso desprovido. (TJSP; AG-ExPen 9003007-27.2019.8.26.0050; Ac. 13384587; 13ª
C.D.Crim.; Rel. Des. Marcelo Gordo; DJESP 19/08/2020; p. 3.536)
97/21 – FALTA GRAVE. PARTICIPAÇÃO EM MOVIMENTO PARA SUBVERTER
A ORDEM E A DISCIPLINA. ALTERAÇÃO DA DATA-BASE. PERDA DOS DIAS TRA-
BALHADOS NÃO DECLARADOS REMIDOS ATÉ A DATA DA FALTA. A participação
de movimento para subverter a ordem – conduta suficientemente demonstrada –, caracteriza
falta grave, consoante previsão contida no art. 50, inciso I, da Lei da Execução Penal, ficando
Ementário – Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal Nº 97 – Ago-Set/2020 185

o apenado sujeito às sanções disciplinares. A alteração da data-base para o dia do cometimento


da falta grave decorre do sistema progressivo adotado na legislação (LEP, art. 112). Possível a
perda de até 1/3 dos dias já trabalhados em caso de prática de falta grave no curso da execução,
mesmo que o reeducando ainda não tenha sido beneficiado com a declaração da remição, desde
que os dias trabalhados sejam anteriores à prática da indisciplina. Decisão por maioria. Agravo
desprovido, por maioria. (TJRS; AgExPen 0074901-31.2020.8.21.7000; Proc. 70084365428; 1ª
C.Crim.; Rel. Des. Honório Gonçalves da Silva Neto; DJERS 18/08/2020)
97/22 – FALTA GRAVE. PRETENDIDO O RECONHECIMENTO DA PRES-
CRIÇÃO DA PRETENSÃO PUNITIVA DA FALTA DISCIPLINAR. NÃO ACOLHI-
MENTO. LAPSO TEMPORAL NÃO DECORRIDO. Consoante firme entendimento das
Cortes Superiores, diante da ausência de previsão específica na Lei de Execução Penal, deve-se
aplicar analogicamente o menor lapso prescricional previsto no art. 109 do Código Penal,
atualmente estabelecido em 3 anos, em razão do advento da Lei nº 12.234/2010. Correlação
do direito penitenciário às matérias de Direito Penal e Processual Penal, a respeito dos quais
compete privativamente à União legislar. Inadmissibilidade da aplicação do disposto no art.
142, inciso III, da Lei nº 8.112/90. ABSOLVIÇÃO POR ATIPICIDADE DA CONDUTA
OU, AINDA, DESCLASSIFICAÇÃO PARA FALTA MÉDIA. NÃO ACOLHIMENTO.
Sentenciado que fugiu de estabelecimento prisional, caracterizando falta grave, por violação
do disposto no art. 50, II, da Lei de Execução Penal. Recurso não provido. (TJSP; AG-ExPen
7003300-93.2019.8.26.0482; Ac. 13383143; 13ª C.D.Crim.; Rel. Des. Luis Augusto de Sampaio
Arruda; DJESP 19/08/2020; p. 3.539)
97/23 – FURTO. PEQUENO VALOR DA VANTAGEM PATRIMONIAL. BEM
RESTITUÍDO À VÍTIMA. APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA AO
APELANTE PORTADOR DE MAUS ANTECEDENTES. POSSIBILIDADE. ABSOLVI-
ÇÃO. PREENCHIMENTO DOS REQUISITOS PARA APLICAÇÃO DA BENESSE. 1. É
entendimento consolidado do Superior Tribunal de Justiça que para aplicação do princípio da
insignificância deverá ser preenchido alguns requisitos, quais sejam a) a mínima ofensividade
da conduta do agente; b) nenhuma periculosidade social da ação; c) o reduzidíssimo grau de
reprovabilidade do comportamento; e d) a inexpressividade da lesão jurídica provocada. 2.
Nesse contexto, o pequeno valor da Res furtiva (R$ 72,44), aliado à capacidade econômica da
vítima (na espécie, um Supermercado), possui o condão de confirmar que o dano sofrido não
foi relevante e que o interesse social não justifica a onerosa intervenção estatal, ainda que o
apelante seja portador de maus antecedentes. 3. Recurso conhecido e provido. (TJAC; ACr
0013757-30.2018.8.01.0001; Ac. 31.457; C.Crim.; Rel. Des. Pedro Ranzi; DJAC 13/08/2020; p. 10)
97/24 – HABEAS CORPUS. Intimação de investigado para comparecimento com-
pulsório à Comissão Parlamentar de Inquérito, sob pena de condução coercitiva e crime de
desobediência. Direito ao silêncio e de ser acompanhado por advogado. Precedentes (HC
79.812/SP, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 16.02.01). Direito a não autoincriminação abrange a
faculdade de comparecer ao ato, ou seja, inexiste obrigatoriedade ou sanção pelo não compa-
recimento. Inteligência do direito ao silêncio. Precedente assentado pelo Plenário na proibição
de conduções coercitivas de investigados (ADPFs 395 e 444). Ordem concedida para convolar
a compulsoriedade de comparecimento em facultatividade. (STF; HC 171.438; DF; 2ª T.; Rel.
Min. Gilmar Mendes; DJE 17/08/2020; p. 40)
97/25 – HOMICÍDIO PRETERDOLOSO. Lesão corporal seguida de morte, art. 129,
§ 3º, do Código Penal. Sentença condenatória de quatro anos de reclusão, em regime aberto.
Pleito da defesa para desclassificação para o art. 129 caput, do Código Penal. Impossibilidade.
Comprovado nexo de causalidade entre lesão corporal provocada e o resultado morte. Sentença
condenatória: Mantida na íntegra. Recurso conhecido e desprovido, em consonância com o
Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal Nº 97 – Ago-Set/2020 – Ementário
186

parecer do Ministério Público graduado. (TJRR; ACr 0000183-92.2015.8.23.0045; C.Crim.;


Rel. Des. Leonardo Cupello; DJE 06/08/2020)
97/26 – HOMICÍDIO QUALIFICADO. ABORTO. PERICULUM LIBERTATIS.
AUSÊNCIA DE RISCO CONCRETO À SAÚDE DO PACIENTE. A regularidade da cus-
tódia do paciente foi reconhecida quando do julgamento do HC 70083718346, em fevereiro
de 2020. Os motivos que justificaram a segregação permanecem hígidos. Embora transcor-
ridos mais de oito anos desde a data do fato, o paciente permaneceu foragido por sete anos,
período em que registrados dois processos em sua certidão de antecedentes, pela prática de
roubo majorado e de lesão corporal. Tais circunstâncias indicam a necessidade da prisão para
garantia da ordem pública e da aplicação da Lei Penal, pois demonstram o atual risco gerado
pela liberdade do réu. Ademais, trata-se de crime grave, supostamente cometido em razão de
disputa por ponto de venda de drogas. Presentes, ainda, os requisitos do art. 312 do Código
de Processo Penal, não há flagrante ilegalidade a ser reconhecida. Os mesmos argumentos
contraindicam a aplicação da Recomendação nº 62/2020 do Conselho Nacional de Justiça,
pois demonstrada a periculosidade do agente, bem como por não haver alegação de ameaça
à saúde do paciente, que não integra grupo de risco de contaminação pela Covid-19. Ordem
denegada. (TJRS; HC 0068604-08.2020.8.21.7000; Proc. 70084302454; 1ª C.Crim.; Rel. Des.
Jayme Weingartner Neto; DJERS 18/08/2020)
97/27 – HOMICÍDIO QUALIFICADO, ESTUPRO DE VULNERÁVEL E OCUL-
TAÇÃO DE CADÁVER. PLEITO PARA QUE A SESSÃO DO TRIBUNAL DO JÚRI NÃO
SEJA REALIZADA DE PORTAS FECHADAS. PRINCÍPIO DA PUBLICIDADE. PASSÍVEL
DE LIMITAÇÕES OU RESTRIÇÕES PARA GARANTIR A INTIMIDADE, O INTE-
RESSE PÚBLICO OU A INTEGRIDADE. PRECEDENTES. AGRAVO REGIMENTAL
DESPROVIDO. 1. Conquanto o princípio constitucional da publicidade dos atos processuais
seja a regra, esse é passível de sofrer restrições para, tal qual no caso concreto, preservar o inte-
resse público ou a integridade e intimidade das partes. 2. O segredo de justiça previsto no art.
234-B do Código Penal deve se dar integralmente, se estendendo ao processo como um todo,
não prevendo distinção entre réu e vítima. 3. Agravo regimental desprovido. (STJ; AgRg-AREsp
1.676.136; Proc. 2020/0058487-0; RS; 6ª T.; Relª Minª Laurita Vaz; DJE 13/08/2020)
97/28 – INQUÉRITO POLICIAL. CRIME CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA.
OMISSÃO NO RECOLHIMENTO DE IMPOSTO RETIDO NA FONTE. PRESCRI-
ÇÃO PARCIAL. ESGOTAMENTO DO PROCESSO ADMINISTRATIVO FISCAL.
DESNECESSIDADE. CRIME DE NATUREZA FORMAL. RECURSO PARCIALMENTE
PROVIDO. 1. Recurso em sentido estrito interposto contra decisão que rejeitou o pedido
de reconhecimento da prescrição da pretensão punitiva quanto a fatos objeto de inquérito
policial que se amoldam, em tese, ao crime previsto no art. 2º, inciso II, da Lei nº 8.137/90. 2.
O crime descrito no art. 2º, II, da Lei nº 8.137/90 possui natureza formal e se consuma com a
omissão no recolhimento oportuno aos cofres públicos do tributo descontado ou cobrado na
qualidade de sujeito passivo da obrigação. 3. Prescindibilidade do esgotamento do processo
administrativo fiscal e do lançamento definitivo do tributo na esfera administrativa para a
propositura da ação penal, não se aplicando ao delito de formal do art. 2º, II, da Lei nº 8.137/90
a condição inserta na Súmula Vinculante nº 24. 4. Prescrição parcial reconhecida. 5. Recurso
parcialmente provido. (TRF 3ª R.; RSE 5001000-15.2020.4.03.6115; SP; 11ª T.; Rel. Des. Fed.
José Marcos Lunardelli; DEJF 14/08/2020)
97/29 – LESÃO CORPORAL E AMEAÇA. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA. Prisão em
flagrante convertida em preventiva. Pedido de revogação. Admissibilidade. Não vislumbrada
a utilidade final da custódia cautelar, sobretudo em razão do quantum da pena a ser imposta na
hipótese de eventual condenação. Possibilidade de eventual fixação de regime prisional mais
Ementário – Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal Nº 97 – Ago-Set/2020 187

brando. Ordem concedida para substituir a custódia cautelar por medidas cautelares e protetivas.
(TJSP; HC 2177917-74.2020.8.26.0000; Ac. 13853203; 14ª C.D.Crim.; Rel. Des. Fernando Torres
Garcia; DJESP 19/08/2020; p. 3.540)
97/30 – LIVRAMENTO CONDICIONAL CONCEDIDO. AFASTAMENTO DO
BENEFÍCIO PELA CONDIÇÃO DE REINCIDENTE ESPECÍFICO. Inadmissibilidade.
Orientações recentes dos Tribunais Superiores e desta Colenda Câmara acerca da não hediondez
do tráfico privilegiado. Existência de condenação anterior por esse delito não implica reco-
nhecimento de recidiva específica. Inaplicabilidade, portanto, das vedações previstas nos arts.
83, inciso V, do Código Penal, e 44, parágrafo único, da Lei de Drogas. Recurso desprovido.
(TJSP; AG-ExPen 9001136-44.2019.8.26.0637; Ac. 13384582; 13ª C.D.Crim.; Rel. Des. Marcelo
Gordo; DJESP 19/08/2020; p. 3.536)
97/31 – MEDIDAS PROTETIVAS. AFASTAMENTO DO LAR. NECESSIDADE.
AUSÊNCIA DE ILEGALIDADE. Mostra-se fundamentada a decisão que fixa medida protetiva
de afastamento do lar, visando preservar a integridade física e psicológica da mulher, dada a
proximidade entre endereços dela e do ex-marido. Ordem conhecida e denegada. (TJGO; HC
5293957-62.2020.8.09.0000; 1ª C.Crim.; Rel. Des. Ivo Favaro; DJEGO 22/07/2020)
97/32 – MOEDA FALSA. MATERIALIDADE, AUTORIA E DOLO COMPROVA-
DOS. DOSIMETRIA. DUPLO AGRAVAMENTO DA SANÇÃO PENAL PELO MESMO
PROCESSO PENAL. IMPOSSIBILIDADE. APELAÇÃO DE UM DOS RÉUS PARCIAL-
MENTE PROVIDA. 1. Materialidade, autoria e dolo comprovados. 2. Demonstrada a ciência
dos acusados quanto à falsidade das cédulas apreendidas, não prospera o pleito de absolvição nos
termos do art. 386, III ou VI, do Código de Processo Penal, pois não comprovado que receberam
de boa-fé as notas falsas ou não participaram dos fatos. Assim, pelos depoimentos das testemunhas
e prova dos autos, depreende-se que houve a introdução dolosa de moeda falsa na circulação,
conforme o § 1º do art. 289 do CP. 3. Conforme estabelece o art. 86, I, do Código Penal, é obriga-
tória a revogação do livramento condicional por crime cometido durante a vigência do benefício.
Ademais, aquele feito no qual concedido o benefício haverá de ser aqui considerado para efeito
de reincidência (CP, art. 61, I), não sendo possível empregá-lo duas vezes para efeito de agravar a
sanção penal. À míngua de circunstâncias judiciais desfavoráveis, reduzo a pena-base para 3 (três)
anos e 10 (dez) dias-multa. 4. Apelação de Thais Cristina dos Santos Ferraz desprovida e apelação
de Raphiner Oliveira e Silva provida em parte. (TRF 3ª R.; ACR 0001022-28.2019.4.03.6105;
SP; 5ª T.; Rel. Des. Fed. André Custódio Nekatschalow; DEJF 10/08/2020)
97/33 – MOEDA FALSA. PRISÃO PREVENTIVA DECRETADA. EXCEPCIONA-
LIDADE DO MOMENTO ATUAL. POSSIBILIDADE DE SUBSTITUIÇÃO DA PRISÃO
POR MEDIDAS CAUTELARES. DELITO PRATICADO SEM VIOLÊNCIA OU GRAVE
AMEAÇA. ORDEM CONCEDIDA. 1. A autoridade impetrada entendeu ser necessária a
decretação da prisão preventiva do paciente, para aplicação da Lei Penal e também como forma
de garantir a ordem pública e a ordem econômica. Fundamentou a necessidade da segregação
cautelar no fato de o paciente ter dito que já realizou outras postagens de envelopes com cédulas
falsas por mais de dez vezes. 2. A decisão proferida encontra-se devidamente fundamentada e
alicerçada em elementos concretos que indicam a gravidade da conduta perpetrada, bem como a
existência de indícios de que o paciente já praticou a mesma conduta delitiva em outras ocasiões,
fato que poderia indicar que faz do crime seu meio de vida. 3. Entretanto, o momento atual
é de excepcionalidade e o julgador deve levar em consideração a Recomendação nº 62/2020,
formulada pelo Conselho Nacional de Justiça, diante da emergência sanitária de abrangência
mundial consistente na epidemia causada pelo coronavírus. 4. Assim, em que pese os elementos
indicados pela autoridade impetrada, o delito ora imputado foi praticado sem violência ou grave
ameaça e não há indícios de que o paciente seja o responsável pela contrafação das cédulas
Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal Nº 97 – Ago-Set/2020 – Ementário
188

apreendidas. 5. Destaca-se também o caráter excepcional do encarceramento antes do trânsito


em julgado da decisão condenatória e, ainda, o fato de o crime em questão não ter envolvido
violência ou grave ameaça. 6. Possibilidade de substituição da prisão preventiva do paciente por
medidas cautelares diversas. 7. Ordem concedida. (TRF 3ª R.; HC 5011079-65.2020.4.03.0000;
SP; 5ª T.; Rel. Des. Fed. Paulo Gustavo Guedes Fontes; DEJF 10/08/2020)

97/34 – NULIDADE DA SENTENÇA. FUNDAMENTAÇÃO. SUSPENSÃO


PROCESSUAL. ART. 93 DO CPP. QUESTÃO PREJUDICIAL HETEROGÊNEA. CRI-
MES AMBIENTAIS. CONSTRUÇÃO ALÉM DA LICENÇA AMBIENTAL. ART. 64 DA
LEI Nº 9.605/98. IMPEDIR REGENERAÇÃO DA VEGETAÇÃO. ART. 48 DA LEI Nº
9.605/98. PRINCÍPIO DA CONSUNÇÃO. OBRIGAÇÃO DE RELEVANTE INTERESSE
AMBIENTAL. ART. 68 DA LEI Nº 9.605/98. 1. Fundamentação sucinta não é o mesmo do que
fundamentação insuficiente e/ou deficiente. Tendo o magistrado de primeiro grau apresentado
todos os argumentos e elementos probatórios que, em seu entendimento, dão guarida à tese
ministerial, não há nulidade a ser reconhecida. A divergência entre o entendimento consolidado
pela sentença judicial e aquele tido por correto pelas defesas conforma matéria de mérito a ser
solvida em apelação. 2. O Código de Processo Penal regulamenta, em seus arts. 92 e 93, as hipó-
teses de suspensão processual para fins de resolução prévia de questões prejudiciais heterogêneas,
ou seja, debates de matéria de natureza civil que influam diretamente no resultado da lide penal.
A paralisação da ação penal em razão do debate travado na seara civil, entretanto, pressupõe que
a questão prejudicial seja séria, fundada, de difícil solução e não verse sobre direito cuja prova a
Lei Civil limite. Hipótese não verificada no caso concreto. 3. A construção em área de preser-
vação permanente, não respeitados os limites definidos pela legislação ambiental, caracteriza a
prática do crime do art. 64 da Lei nº 9.605/98.4. Na hipótese, o impedimento à regeneração da
vegetação especialmente protegida, que configura isoladamente a conduta típica do art. 48 da
Lei nº 9.605/98 está dentro do iter criminis do art. 64 da Lei nº 9.605/98, cuja consumação ocorre
com a conclusão da construção. 5. Não comete o crime do art. 68, da Lei nº 9.605/98, o agente
público vinculado a órgão ambiental que, em detrimento de EIA/RIMA, solicita outros estudos
ambientais congruentes com o tipo de empreendimento em análise. (TRF 4ª R.; ACR 5006560-
22.2018.4.04.7200; SC; 8ª T.; Rel. Des. Fed. Leandro Paulsen; PJe 10/08/2020)

97/35 – OPERAÇÃO BROCA. CRIAÇÃO DE EMPRESAS DE FACHADA PARA


GERAÇÃO DE CRÉDITOS TRIBUTÁRIOS ILÍCITOS DE PIS E COFINS. FALSIDADE
IDEOLÓGICA. AUSÊNCIA DE JUSTA CAUSA. DELITO QUE SE APRESENTA COMO
MEIO PARA A PRÁTICA DE CRIMES CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA. TRAN-
CAMENTO DA AÇÃO PENAL. SÚMULA VINCULANTE Nº 24 DO STF. RECURSO
MINISTERIAL DESPROVIDO. 1. Considerando que as ações imputadas aos denunciados
tinham por objetivo gerar créditos ilícitos do Programa de Integração Social – PIS e da Con-
tribuição para Financiamento da Seguridade Social – Cofins, suas condutas estão tipificadas
na Lei nº 8.137/90, na medida em que foram o meio para se atingir o delito fim de sonegação
fiscal. 2. Decisão de trancamento da ação penal mantida, por ausência de justa causa, com base
no art. 395, III, do Código de Processo Penal, aplicada ao caso a Súmula Vinculante nº 24 do
Supremo Tribunal Federal. 3. Recurso ministerial conhecido com base no art. 579 do Código
de Processo Penal, ao qual se nega provimento. (TRF 2ª R.; RSE 0000727-35.2010.4.02.5005;
ES; 1ª T.Esp.; Rel. Des. Fed. Antonio Ivan Athié; DEJF 18/08/2020)

97/36 – PORTE ILEGAL DE ARMA DE FOGO E MUNIÇÕES. Art. 16 do Estatuto


do Desarmamento. Pleito que busca a absolvição. Possibilidade. Réu estava na posse de apenas
4 munições calibre 38 e 3 munições calibre 357. Aplicação do princípio da insignificância. Mu-
nições desacompanhadas de arma de fogo. Ausência de lesão ou ameaça de lesão à incolumidade
pública. Atipicidade material da conduta. Precedentes do colendo STJ e da Suprema Corte. STF.
Ementário – Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal Nº 97 – Ago-Set/2020 189

Recurso conhecido e provido em dissonância com o parecer do Ministério Público graduado.


(TJRR; ACr 0805760-21.2018.8.23.0010; C.Crim.; Rel. Des. Leonardo Cupello; DJE 06/08/2020)
97/37 – PRAZO PARA SUSPENSÃO DA HABILITAÇÃO (ART. 293 DO CTB). A
DEFESA SUSTENTA OMISSÃO NO ACÓRDÃO, UMA VEZ QUE NÃO FOI OBJE-
TO DE ANÁLISE POR ESTA CÂMARA CRIMINAL O PRAZO DE SUSPENSÃO DA
HABILITAÇÃO PARA CONDUÇÃO DE VEÍCULOS AUTOMOTORES. Embora não
tenha sido ponto de insurgência recursal, assiste razão ao embargante, uma vez que a pena de
suspensão ou proibição de se obter habilitação ou permissão para dirigir veículo automotor
deve guardar proporção com a gravidade do fato típico, observadas as circunstâncias judiciais,
atenuantes e agravantes, nos limites fixados no art. 293 do CTB, além de eventuais causas de
diminuição ou aumento de pena. Dentro deste contexto, considerando que a pena privativa
de liberdade foi fixada no mínimo legal, o mesmo deve ocorrer com o prazo de suspensão, ou
seja, deve ser fixado em 2 meses, guardando a mesma proporção da pena privativa de liberda-
de. Provimento dos embargos. (TJRJ; APL 0082780-67.2015.8.19.0001; 3ª C.Crim.; Relª Desª
Mônica Tolledo de Oliveira; DORJ 17/08/2020; p. 181)
97/38 – PRESCRIÇÃO DA PRETENSÃO EXECUTÓRIA. TERMO INICIAL.
TRÂNSITO EM JULGADO PARA AMBAS AS PARTES. RECURSO PROVIDO. 1. A
partir do julgamento do HC 84.078/MG, o STF assentou que o art. 5º, LVII, da Constituição
Federal, impede a chamada execução antecipada da pena, que se dava com o início do seu
cumprimento após o julgamento em segundo grau de jurisdição, conforme permitia o art. 637
do Código de Processo Penal. 2. A mudança jurisprudencial a respeito do tema da execução
provisória da pena no STF, conforme decidido no HC 126.292/SP, de 17.02.2016, foi revista
pelo Supremo no julgamento das ADCs 43, 44 e 54. 3. A partir do momento em que o STF
decide que recurso para Tribunal Superior impede o trânsito em julgado, não se pode falar – ao
menos do ponto de vista lógico – em trânsito em julgado para a acusação como marco inicial
do prazo de prescrição da pretensão executória. 4. No âmbito da Turma, consolidou-se o en-
tendimento de que o termo inicial da prescrição da pretensão executória é a data do trânsito
em julgado da decisão para ambas as partes, uma vez que não se pode dar início ao cumpri-
mento da pena, isto é, à execução, antes desse marco. 5. Agravo provido. (TRF 3ª R.; AgExPe
5004461-25.2019.4.03.6181; SP; 11ª T.; Rel. Des. Fed. Nino Oliveira Toldo; DEJF 11/08/2020)
97/39 – PRISÃO PREVENTIVA. GRAVIDADE CONCRETA DA CONDUTA.
GRUPO CRIMINOSO. VENDA FRAUDULENTA DE PRECATÓRIOS JUDICIAIS.
Movimentações financeiras recentes. A gravidade concreta da conduta – grupo criminoso
voltado à prática de crimes graves como falsidade ideológica, falsificação de documentos, uso
de documento falso e estelionato envolvendo a venda fraudulenta de precatórios, com atuação
em, pelo menos, dois estados da Federação, somados ao importante papel desempenhado pelo
paciente (há indícios de ser o operador financeiro do grupo) – com movimentações financeiras
recentes de elevados valores, recomendam seja mantida a prisão preventiva, como garantia da
ordem pública e conveniência da instrução criminal. Ordem denegada. (TJDF; REC 07277.80-
04.2020.8.07.0000; Ac. 127.2279; 2ª T.Crim.; Rel. Des. Jair Soares; PJe 17/08/2020)
97/40 – PROIBIÇÃO DE DUPLA PERSECUÇÃO PENAL E NE BIS IN IDEM.
Parâmetro para controle de convencionalidade. Art. 14.7 do Pacto Internacional sobre Direitos
Civis e Políticos. Art. 8.4 da Convenção Americana de Direitos Humanos. Precedentes da Corte
Interamericana de Direitos Humanos no sentido de “proteger os direitos dos cidadãos que tenham
sido processados por determinados fatos para que não voltem a ser julgados pelos mesmos fatos”
(Casos Loayza Tamayo vs. Peru de 1997; Mohamed vs. Argentina de 2012; J. Vs. Peru de 2013).
Limitação ao art. 8º do Código Penal e interpretação conjunta com o art. 5º do CP. Proibição de
o Estado brasileiro instaurar persecução penal fundada nos mesmos fatos de ação penal já tran-
Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal Nº 97 – Ago-Set/2020 – Ementário
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sitada em julgado sob a jurisdição de outro Estado. Precedente: Ext 1.223/DF, Rel. Min. Celso
de Mello, Segunda Turma, DJe 28.02.2014. Ordem de habeas corpus concedida para trancar o
processo penal. (STF; HC 171.118; SP; 2ª T.; Rel. Min. Gilmar Mendes; DJE 17/08/2020; p. 40)
97/41 – REGIME ABERTO. CONCESSÃO DE PRISÃO ALBERGUE DOMICI-
LIAR COM MONITORAMENTO ELETRÔNICO. O requisito subjetivo deve ater-se à
prevalência dos elementos contemporâneos. Transcrição da ficha disciplinar que não apresenta
qualquer falta do apenado. Ausência de comprovação pelo agravante de disponibilidade de vagas
nas casas de albergado existentes no Estado. Deferimento excepcional de prisão domiciliar.
(TJRJ; AgExPen 0249449-71.2019.8.19.0001; 3ª C.Crim.; Rel. Des. Antonio Carlos Nascimento
Amado; DORJ 17/08/2020; p. 175)
97/42 – REMIÇÃO DA PENA POR APROVAÇÃO NO EXAME NACIONAL PARA
CERTIFICAÇÃO DE COMPETÊNCIAS DE JOVENS E ADULTOS (ENCCEJA) EN-
SINO FUNDAMENTAL. RECOMENDAÇÃO CNJ Nº 44/2013. BASE DE CÁLCULO.
ART. 4º DA RESOLUÇÃO Nº 03/2010 DO CONSELHO NACIONAL DE EDUCAÇÃO.
1. Em caso de certificação do ensino fundamental pelo ENCCEJA, o Juiz, para fins de remição,
deverá considerar 50% de 1.600 horas, que é a carga horária definida legalmente para o ensino
fundamental, consoante o disposto no art. 1º, IV, da Recomendação nº 44/2013, do Conselho
Nacional de Justiça, e no art. 4º, II, da Resolução nº 03/2010 do Conselho Nacional de Edu-
cação, ou seja, 800 (oitocentas) horas. 2. Na hipótese, o Tribunal estadual considerou como
base de cálculo o parâmetro de 50% da carga horária de 1.600 horas (800 horas), com a divisão
pelas cinco áreas de conhecimento, que consistiria em 66 dias remidos, sendo que cada área
corresponde a 13 dias de remição. 3. Agravo regimental desprovido. (STJ; AgRg-HC 588.665;
Proc. 2020/0140600-8; SC; 6ª T.; Relª Minª Laurita Vaz; DJE 19/08/2020)
97/43 – REVISÃO CRIMINAL. ESTUPRO DE VULNERÁVEL. DOSIMETRIA
DA PENA. CULPABILIDADE, CIRCUNSTÂNCIAS E CONSEQUÊNCIAS DO CRI-
ME. VALORAÇÃO NEGATIVA DIVERSA AO BEM PROTEGIDO PELO TIPO PENAL.
APLICAÇÃO SUCESSIVA DAS CAUSAS DE AUMENTO DE PENA. ADMISSIBILIDA-
DE. PENA AUMENTADA PELA CONTINUIDADE DELITIVA EM DUPLICIDADE.
DECOTAÇÃO. 1. A exasperação das circunstâncias do crime foi fundamentada em elementos
diversos ao tipo penal, além do que a conduta do revisionando extrapolou os elementos normais
do tipo, não havendo qualquer razão para reparos na sentença nesse tópico. 2. É lícita a adoção
do critério cumulativo, sucessivo ou de efeito cascata quando há a incidência de mais de uma
causa de aumento de pena, devendo a majoração incidir uma após a outra, contudo, sobre o
resultado obtido na operação anterior. Precedentes do TJAC. 3. É cediço que nas hipóteses
de crime continuado, deverá ser aplicada a pena de um só dos crimes, se idênticas, ou a mais
grave, se diversas, aumentada, em qualquer caso, de um sexto a dois terços. No caso concreto,
a terceira causa de aumento de pena deverá ser decotada da dosimetria da pena, porquanto o
juiz fixou uma só reprimenda relativa a uma das vítimas, majorando-a duas vezes pela con-
tinuidade delitiva, incorrendo em manifesta duplicidade. 4. Revisão criminal parcialmente
procedente. (TJAC; RevCr 1000733-47.2020.8.01.0000; Ac. 11.451; T.P.; Rel. Des. Júnior Alberto;
DJAC 18/08/2020; p. 2)
97/44 – REVISÃO CRIMINAL. HOMICÍDIO TENTADO. CIRCUNSTÂNCIAS
JUDICIAIS. CIRCUNSTÂNCIAS DO CRIME. AUSÊNCIA DE FUNDAMENTAÇÃO
IDÔNEA PARA MAJORAÇÃO DA PENA-BASE. IMPRESCINDIBILIDADE DE MO-
TIVAÇÃO DO ATO DECISÓRIO. DECOTE NO INCREMENTO SANCIONATÓRIO.
POSSIBILIDADE. ACÓRDÃO REFORMADO. 1. É dever do magistrado analisar fundamen-
tadamente todas as circunstâncias judiciais (CP, art. 59), mormente quando é fixada pena-base
bem acima do mínimo legal. 2. É pacífica a jurisprudência dos Tribunais Superiores no sentido de
Ementário – Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal Nº 97 – Ago-Set/2020 191

que inquéritos e processos penais em andamento, ou mesmo condenações ainda não transitadas
em julgado, não podem ser negativamente valorados para fins de elevação da reprimenda-base,
sob pena de malferimento ao princípio constitucional da presunção de não culpabilidade. 3.
O comportamento da vítima é circunstância judicial ligada à vitimologia, que deve ser ne-
cessariamente neutra ou favorável ao réu, sendo descabida sua utilização para incrementar a
pena-base. Com efeito, se não resultar evidente a interferência da vítima no desdobramento
causal, como ocorreu na hipótese em análise, essa circunstância deve ser considerada neutra.
4. Revisão Criminal parcialmente procedente. (TJAC; RevCr 1002021-64.2019.8.01.0000; Ac.
11.448; T.P.; Rel. Des. Laudivon Nogueira; DJAC 19/08/2020; p. 2)
97/45 – REVISÃO CRIMINAL AJUIZADA COM FUNDAMENTO NO ART. 550
DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL MILITAR. CRIME MILITAR. CONCUSSÃO.
Pleito objetivando o afastamento da agravante genérica do art. 70, II, l, do CPM, por alegado bis
in idem. Improcede a alegação de ilegalidade, por bis in idem, em razão da incidência da agravante
genérica do art. 70, II, l, do CPM (“estando em serviço”) no crime de concussão. A prática do
delito em serviço não é elementar do tipo de concussão, para o qual basta que seja feita exigência
de vantagem indevida em razão da função exercida. O próprio tipo penal faz expressa menção
da caracterização do delito ainda que a exigência da vantagem indevida se dê fora da função ou
mesmo antes de assumi-la. Aliás, o Superior Tribunal de Justiça, por sua terceira seção, paci-
ficou entendimento no sentido de que a agravante genérica do art. 70, II, l, do CPM pode ser
aplicada aos militares que, em serviço, cometem o delito de concussão, já que a circunstância
de “estar em serviço” não é elementar do tipo do art. 305 do CPM. Registre-se, por fim, que
os julgados trazidos pelo requerente cuidam de entendimentos firmados antes do julgamento
da Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça, que pôs fim à divergência existente sobre a
matéria. Pedido revisional improcedente, na forma do voto do Relator. (TJRJ; RevCr 0034855-
05.2020.8.19.0000; 4ª G.C.Crim.; Rel. Des. Gilmar Augusto Teixeira; DORJ 18/08/2020; p. 191)
97/46 – ROUBO. DOSIMETRIA. PENA-BASE ACIMA DO MÍNIMO LEGAL.
MAUS ANTECEDENTES CONFIGURADOS. PERSONALIDADE. CONDUTA SO-
CIAL. RÉU COM MAIS DE UMA CONDENAÇÃO TRANSITADA EM JULGADO.
FUNDAMENTAÇÃO INIDÔNEA. HISTÓRICO CRIMINAL QUE CONFIGURA
APENAS MAUS ANTECEDENTES E REINCIDÊNCIA. FLAGRANTE ILEGALIDADE
EVIDENCIADA. CIRCUNSTÂNCIAS DO CRIME. MODUS OPERANDI. WRIT NÃO
CONHECIDO. ORDEM CONCEDIDA DE OFÍCIO. 1. Esta Corte – HC 535.063/SP,
Terceira Seção, Rel. Min. Sebastião Reis Junior, j. 10.06.2020 – e o Supremo Tribunal Federal
– AgRg no HC 180.365, Primeira Turma, Relª Minª Rosa Weber, j. 27.03.2020; AgR no HC
147.210, Segunda Turma, Rel. Min. Edson Fachin, j. 30.10.2018 –, pacificaram orientação no
sentido de que não cabe habeas corpus substitutivo do recurso legalmente previsto para a hi-
pótese, impondo-se o não conhecimento da impetração, salvo quando constatada a existência
de flagrante ilegalidade no ato judicial impugnado. 2. A individualização da pena é submetida
aos elementos de convicção judiciais acerca das circunstâncias do crime, cabendo às Cortes
Superiores apenas o controle da legalidade e da constitucionalidade dos critérios empregados,
a fim de evitar eventuais arbitrariedades. Assim, salvo flagrante ilegalidade, o reexame das
circunstâncias judiciais e dos critérios concretos de individualização da pena mostram-se inade-
quados à estreita via do habeas corpus, por exigirem revolvimento probatório. 3. As condenações
transitadas em julgado, mesmo que em maior número, não podem ser utilizadas para majorar
a pena-base em mais de uma circunstância judicial, devendo ser valoradas somente a título de
maus antecedentes. Precedentes da Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça. 4. Ainda
que o agente possua vasto histórico criminal, com diversas condenações transitadas em julgado,
elas devem ser divididas para, na segunda fase da dosimetria, configurar a reincidência, e, na
primeira etapa, serem sopesadas apenas como maus antecedentes, sob pena de bis in idem. 5.
Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal Nº 97 – Ago-Set/2020 – Ementário
192

Não se infere ilegalidade no tocante às circunstâncias do crime, pois o Decreto condenatório


demonstrou que o modus operandi do delito revela gravidade concreta superior à ínsita aos cri-
mes de roubo, pois o agente adentrou no veículo de transporte coletivo e, ameaçando a vítima,
motorista e cobrador do ônibus, com arma de fogo, subtraiu os valores que haviam sido pagos
pelos passageiros, colocando em risco todos aqueles que se encontravam no interior do veículo.
6. Habeas corpus não conhecido. Ordem concedida, de ofício, para reduzir a reprimenda do
paciente para 6 anos e 5 meses de reclusão, mais o pagamento de 14 dias-multa, mantida, no
mais, a sentença condenatória. (STJ; HC 582.014; Proc. 2020/0115431-3; RJ; 5ª T.; Rel. Min.
Ribeiro Dantas; DJE 13/08/2020)
97/47 – ROUBO CIRCUNSTANCIADO. Prisão preventiva. Excesso de prazo na
conclusão do inquérito policial. Ocorrência. Paciente preso há 116 dias sem que tenha sido
concluído o procedimento investigatório ou ao menos oferecida a denúncia. Constrangimento
ilegal configurado. Ordem concedida, com a substituição da prisão processual por medidas
cautelares alternativas (CPP, art. 319, I, II, IV e V). Liminar confirmada. (TJRR; HC 9000993-
73.2020.8.23.0000; C.Crim.; Rel. Des. Ricardo Oliveira; DJE 04/08/2020)
97/48 – ROUBO MAJORADO PELO CONCURSO DE PESSOAS (ART. 157, §
2º, II, DO CÓDIGO PENAL). Sentença condenatória. Apelação ministerial. Pretensa con-
denação dos acusados pelos crimes de ameaça e corrupção de menores. Procedência parcial.
Insuficiência de provas necessárias à condenação pelo delito do art. 147 do CP. Exegese do art.
386, VII, do CPP. Manutenção da sentença absolutória neste ponto. Condenação pelo crime
de corrupção de menores (art. 244-B do ECA). Possibilidade. Participação do adolescente
comprovada. Prova testemunhal. Prescindibilidade de efetiva corrupção do menor. Crime
formal. Observância à Súmula nº 500 do Superior Tribunal de Justiça. Recurso conhecido
e parcialmente provido. (TJRN; ACr 2020.000499-0; C.Crim.; Pedro Velho; Rel. Des. Gilson
Barbosa; DJRN 29/07/2020; p. 6)
97/49 – ROUBO MAJORADO PELO EMPREGO DE ARMA DE FOGO EM
CONTINUIDADE DELITIVA (ART. 157, § 2º, I, C/C O ART. 71, AMBOS DO CÓDIGO
PENAL). Sentença condenatória. Apelação criminal defensiva. Pretensa absolvição por insufici-
ência de provas. Impossibilidade. Materialidade e autoria do delito devidamente comprovadas.
Declarações da vítima e depoimento testemunhal capazes de embasar o Decreto condenatório.
Pedido subsidiário de desconsideração da majorante. Arma de fogo não apreendida ou periciada.
Impossibilidade. Prescindibilidade da apreensão e perícia da arma, desde que evidenciada sua
utilização por outros meios de prova. Precedentes do STJ. Recurso conhecido e desprovido.
(TJRN; ACr 2019.001206-5; C.Crim.; Natal; Rel. Des. Gilson Barbosa; DJRN 29/07/2020; p. 5)
97/50 – ROUBO QUALIFICADO. ART. 157, § 2º, I E II, DO CP. SENTENÇA
ABSOLUTÓRIA. Recurso do MP. Pedido de condenação dos réus pela prática descrita na
denúncia. Prova exuberante da autoria a partir dos depoimentos das vítimas, que são harmônicos
e demonstram a prática dos delitos desde sede policial, confirmando-se em sede de contra-
ditório e ampla defesa. O reconhecimento extrajudicial dos réus pelas vítimas possui grande
credibilidade probante. Por se tratar de crime patrimonial, as alegações dos lesados adquirem
grande importância. Causa de aumento de arma de fogo que deve ser reconhecida. Não há a
necessidade da apreensão da arma se, diante dos indícios colhidos, resultar claro que os agentes
utilizaram-na para a prática delituosa. Não há necessidade de se avaliar a potencialidade lesiva
da arma, o que não encontra abrigo, nem na jurisprudência, nem na doutrina. Concurso de
agentes configurado, uma vez que restou comprovado, nos autos, que os réus praticaram juntos
os delitos e também na companhia de outro meliante. Apelo ministerial que deve ser provido.
(TJRJ; APL 0174885-58.2018.8.19.0001; 2ª C.Crim.; Rel. Des. Flávio Marcelo de Azevedo Horta
Fernandes; DORJ 17/08/2020; p. 167)
Ementário – Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal Nº 97 – Ago-Set/2020 193

97/51 – ROUBO SIMPLES. ABSOLVIÇÃO. POSSIBILIDADE. AUSÊNCIA DE


PROVA PARA EMBASAR A CONDENAÇÃO. MEROS INDÍCIOS. PROVA NEBULOSA.
MELHOR SOLUÇÃO. PRONUNCIAMENTO DO NON LIQUET. 1. Existindo meros
indícios, prova nebulosa e geradora de dúvida sobre a autoria do delito, a absolvição é medida
que se impõe em observância ao princípio in dubio por reo. 2. Recurso provido. (TJMG; APCR
3287807-94.2012.8.13.0024; 5ª C.Crim.; Rel. Des. Pedro Vergara; DJEMG 19/08/2020)
97/52 – SAÍDAS TEMPORÁRIAS. REGIME ABERTO. Possibilidade. Ainda que o
art. 122 da LEP preveja a concessão do benefício das saídas temporárias aos presos do regime
semiaberto, é razoável o deferimento da benesse aos submetidos a regime mais brando, a
considerar o sistema progressivo inerente à execução da pena. O regime aberto configura-se
pelas noções de responsabilidade e autodisciplina, sendo contraditório negar benefício que é
legalmente concedido a apenados segregados em regime mais rigoroso. Precedentes. Agravo
desprovido, por maioria. (TJRS; AgExPen 0075139-50.2020.8.21.7000; Proc. 70084367804; 1ª
C.Crim.; Rel. Des. Jayme Weingartner Neto; DJERS 18/08/2020)
97/53 – SAÍDAS TEMPORÁRIAS. REQUISITO OBJETIVO NÃO IMPLEMENTA-
DO. DECISÃO REFORMADA. O art. 123 da Lei de Execução Penal prevê, expressamente, a
necessidade do cumprimento de 1/6 da pena para que sejam autorizadas as saídas temporárias.
Embora o agravante tenha iniciado o cumprimento da pena em regime semiaberto, o imple-
mento do requisito é imprescindível, para posterior análise do mérito subjetivo. Precedentes.
Agravo desprovido. (TJRS; AgExPen 0071763-56.2020.8.21.7000; Proc. 70084334044; 1ª
C.Crim.; Rel. Des. Jayme Weingartner Neto; DJERS 18/08/2020)
97/54 – UNIFICAÇÃO DE PENAS. REPRIMENDA REMANESCENTE SUPE-
RIOR A OITO ANOS. REGIME FECHADO. 1. Sobrevindo nova condenação ao processo de
execução penal, deve o Magistrado unificar as penas. A soma das condenações irá determinar o
regime no qual o preso irá cumprir pena, com base no art. 33 do Código Penal. Inteligência dos arts.
111 e 118, inciso II, da LEP. 2. Hipótese dos autos em que o apenado, ainda que tivesse alcançado
o requisito objetivo para progressão, sofreu nova condenação. A soma das penas, decorrente da
unificação, ensejou o cumprimento de pena remanescente superior a oito anos, autorizando a ma-
nutenção do regime fechado. Recurso desprovido. (TJRS; AgExPen 0074153-96.2020.8.21.7000;
Proc. 70084357946; 1ª C.Crim.; Rel. Des. Jayme Weingartner Neto; DJERS 18/08/2020)
97/55 – VIOLÊNCIA DOMÉSTICA. DEPOIMENTO ESPECIAL. PRODUÇÃO
ANTECIPADA DE PROVA. 1. A Lei nº 13.431/2017 não exige seja demonstrada a urgência
como condição para se realizar o depoimento especial da criança ou adolescente vítima de
violência (art. 11), a exemplo do que dispõe o art. 156, I, do CPP. 2. O depoimento especial
tem como objetivo não só preservar a prova do decurso do tempo, como também, e princi-
palmente, minimizar os danos psicológicos decorrentes da repetição de depoimentos pela
criança ou adolescente, evitando, com isso, sua exposição excessiva. 3. Não há constrangimento
ilegal na oitiva antecipada da vítima, que só ocorrerá na presença de defensor nomeado, o que
possibilitará a ampla defesa do paciente e o contraditório. 4. Ordem denegada. (TJDF; HBC
07247.91-25.2020.8.07.0000; Ac. 127.2104; 2ª T.Crim.; Rel. Des. Jair Soares; PJe 17/08/2020)
Sinopse Legislativa
* Nota: íntegras das normas disponíveis em nosso endereço eletrônico, no link dedicado a esta publicação.

Norma Data Publicação Ementa/Apelido


Estatuto da OAB - Serviços Prestados por
Advogados e por Profissionais de Contabili-
Lei nº 14.039 17/8/2020 18/8/2020 dade - Natureza Técnica e Singular - Alte-
ração do Decreto-Lei nº 9.295/46 e da Lei
nº 8.906/94.
Destaques dos Volumes Anteriores

Destaques do Volume nº 96
– Prisão e Pandemia – uma Análise Crítica das Decisões do Supremo Tribunal Federal Durante a Crise
da Covid-19
por Beatriz Massetto Trevisan, Advogada e Especialista, João Daniel Rassi, Mestre e Doutor, Marcos
Fuchs, Advogado, e Rebecca Groterhorst, Mestre
– Juiz das Garantias: uma Análise Crítica Sobre a (In)Eficácia do Sistema Proposto
por Gustavo Henrique de Andrade Cordeiro, Professor e Mestre, Thales Aporta Catelli, Advogado e
Mestrando, e Emerson Ademir Borges de Oliveira, Mestre e Doutor
– A Responsabilidade Penal por Omissão do Chefe do Poder Executivo no Combate à Epidemia Viral
do Novo Coronavírus (Covid-19)
por Bruno Zanesco Marinetti Knieling Galhardo, Especialista e Mestre
– O Alcance da Hediondez no Crime de Extorsão
por Oswaldo Henrique Duek Marques, Professor e Doutor, e Paulo Henrique Aranda Fuller,
Professor e Mestre
– O Recebimento de Honorários Advocatícios Maculados e o Crime de Lavagem de Dinheiro
por Andréia Cristina Vieira Braga, Advogada e Especialista
– A (Im)Possibilidade de Acesso a Provas Obtidas em Aplicativo de Mensagens Instantâneas sem
Autorização Judicial
por Américo Bedê Freire Júnior, Mestre e Doutor, e Eduardo Domingues Rezende, Mestrando
– Direitos da Personalidade e a Lei Maria da Penha: o Dilema das Cautelares nos Tribunais de Justiça
do Brasil
por Hugo Rogerio Grokskreutz, Advogado e Especialista, e Gustavo Noronha de Ávila, Mestre e Doutor

Destaques do Volume nº 95
– Acordo de Não Persecução Penal e suas Repercussões no Âmbito Administrativo
por Oswaldo Henrique Duek Marques, Livre-Docente e Doutor, e Silvio Luís Ferreira da Rocha,
Mestre e Doutor
– Aspectos Criminais da Lei Geral de Proteção de Dados e a Tutela Penal dos Dados Pessoais
por João Daniel Rassi, Mestre e Doutor, Victor Labate, Advogado, e Eloisa Yang, Advogada e
Mestranda
– Crimes Relacionados à Pandemia do Novo Coronavírus
por Leandro Bastos Nunes, Professor e Especialista
– Ensaio Sobre o Acaso e seus Corolários no Direito e no Processo Penal
por Orlando Faccini Neto, Professor e Doutor
– A Responsabilidade Penal da Pessoa Jurídica e o Compliance Diante de Situações de Pandemia
por Marcio Fernandes Fioravante da Silva, Advogado e Especialista
– O Caso Neymar: Divulgação de Imagens Íntimas sob a Perspectiva da Inexigibilidade de Conduta
Diversa
por Sebástian Borges de Albuquerque Mello, Mestre e Doutor, e Mariana Ribeiro de Almeida,
Advogada e Mestranda

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Índice Alfabético-Remissivo

A ARMA DE FOGO
- Porte ilegal de arma e munições. Art. 16 do
ABSOLVIÇÃO Estatuto do Desarmamento. Pleito que busca
- Arma de fogo. Porte ilegal de arma e muni- a absolvição. Possibilidade. Réu estava na
ções. Art. 16 do Estatuto do Desarmamento. posse de apenas 4 munições calibre 38 e 3
Pleito que busca a absolvição. Possibilidade. munições calibre 357. Aplicação do princípio
Réu estava na posse de apenas 4 munições da insignificância. Munições desacompa-
calibre 38 e 3 munições calibre 357. Aplicação nhadas de arma de fogo. Ausência de lesão
do princípio da insignificância. Munições ou ameaça de lesão à incolumidade pública.
desacompanhadas de arma de fogo. Ausência TJRR (Em. 97/36).......................................... 188
de lesão ou ameaça de lesão à incolumidade
ATENTADO CONTRA A
pública. TJRR (Em. 97/36)............................ 188
SEGURANÇA DE TRANSPORTE
- Estelionato previdenciário. Comprovação do AÉREO
dolo. Art. 171, § 3º, do CP. Uma vez afastado,
- Forma qualificada. Queda de helicóptero.
por sentença transitada em julgado, o motivo
Falecimento das vítimas. Art. 261, § 1º c/c
pelo qual o INSS cessou o benefício assisten-
os arts. 263 e 258 do CP. Porte irregular de
cial em favor de Vera Lúcia, considerando-o
arma de fogo. Uso restrito. Art. 16 da Lei
regularmente concedido, resta afastado, em
10.826/03. Falsificação de documento públi-
consequência, o dolo na conduta da apelante,
co. Art. 297 do CP. Tentativa de promover a
impondo-se sua absolvição. TRF 2ª R. (Em.
fuga de pessoa presa. Art. 351 c/c o art. 14,
97/15).............................................................. 183
II, do CP. TRF 4ª R. (Em. 97/7).................... 181
- Roubo. Possibilidade. Ausência de prova para
embasar a condenação. Meros indícios. Prova C
nebulosa. Melhor solução. Pronunciamento
do non liquet. TJMG (Em. 97/51)................... 193 CARTEIRA NACIONAL DE
HABILITAÇÃO
ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO
PENAL - Prazo para suspensão (art. 293 do CTB).
Considerando que a pena privativa de liber-
- Denúncia já recebida. Possibilidade. Art.
dade foi fixada no mínimo legal, o mesmo
28-A. Baixa dos autos. A aplicação do acordo
deve ocorrer com o prazo de suspensão, ou
de não persecução penal aos processos com
seja, deve ser fixado em 2 meses, guardando
denúncia já recebida na data da vigência da
a mesma proporção da pena privativa de
Lei 13.964/2019, inclusive para aqueles em
liberdade. TJRJ (Em. 97/37).......................... 189
grau de recurso. TRF 4ª R. (Em. 97/6)......... 181
- Descabimento durante o processo criminal. COISA JULGADA
Art. 28-A. Ressalva apresentada quanto ao - Proibição de dupla persecução penal e ne bis
cabimento do acordo quando já iniciada a in idem. Parâmetro para controle de conven-
ação penal. TRF 4ª R. (Em. 97/5).................. 180 cionalidade. Art. 14.7 do Pacto Internacional
sobre Direitos Civis e Políticos. Art. 8.4 da
ANTECEDENTES CRIMINAIS
Convenção Americana de Direitos Huma-
- Pena. Redução. Roubo. Pena-base acima do nos. Limitação ao art. 8º do Código Penal e
mínimo legal. Maus antecedentes configu- interpretação conjunta com o art. 5º do CP.
rados. Personalidade. Conduta social. Ainda Proibição de o Estado brasileiro instaurar
que o agente possua vasto histórico criminal, persecução penal fundada nos mesmos fatos
com diversas condenações transitadas em de ação penal já transitada em julgado sob a
julgado, elas devem ser divididas para, na se- jurisdição de outro Estado. HC concedido
gunda fase da dosimetria, configurar a reinci- para trancar o processo penal. STF (Em.
dência, e, na primeira etapa, serem sopesadas 97/40).............................................................. 189
apenas como maus antecedentes, sob pena de
bis in idem. Ordem concedida, de ofício, para COMPETÊNCIA
reduzir a reprimenda do paciente para 6 anos - Prerrogativa de função. Constituição Esta-
e 5 meses de reclusão, mais o pagamento de dual que estende foro criminal por prerro-
14 dias-multa, mantida, no mais, a sentença gativa de função a Procuradores de Estado,
condenatória. STJ (Em. 97/46)...................... 191 Procuradores da Assembleia Legislativa,
Índice Alfabético – Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal Nº 97 – Ago-Set/2020 197

Defensores Públicos e Delegados de Polícia. - Pessoa jurídica. Art. 40 da Lei 9.605/98. Tipo
Impossibilidade de extensão das hipóteses de- aberto. Constitucionalidade. Dosimetria da
fendidas pelo legislador constituinte federal. pena. Valor mínimo indenizável. Art. 387, IV,
ADI procedente. STF (Em. 97/3).................. 180 do CPP. Recurso ministerial parcialmente
provido. Uso da expressão “unidades de
CONCUSSÃO conservação”. TRF 2ª R. (Em. 97/10)........... 182
- Pena. Crime militar. Pleito objetivando o
CRIME MILITAR
afastamento da agravante genérica do art.
70, II, l, do CPM, por alegado bis in idem. A - Concussão. Pena. Pleito objetivando o afas-
prática do delito em serviço não é elementar tamento da agravante genérica do art. 70, II,
do tipo de concussão, para o qual basta que l, do CPM, por alegado bis in idem. A prática
seja feita exigência de vantagem indevida em do delito em serviço não é elementar do tipo
razão da função exercida. TJRJ (Em. 97/45). 191 de concussão, para o qual basta que seja feita
exigência de vantagem indevida em razão da
CORRUPÇÃO DE MENOR função exercida. TJRJ (Em. 97/45)............... 191
- Condenação pelo crime de corrupção de
menores (art. 244-B do ECA). Possibilidade. D
Participação do adolescente comprovada.
Prova testemunhal. Prescindibilidade de DELAÇÃO PREMIADA
efetiva corrupção do menor. Crime formal. - Acordo. Voluntariedade. Indispensabilidade.
TJRN (Em. 97/48)......................................... 192 Ausência de direito líquido e certo judicial-
mente exigível. A colaboração premiada con-
CRIME AMBIENTAL figura realidade jurídica, em si, mais ampla do
- Construção além da licença ambiental. Art. que o acordo de colaboração premiada. STF
64 da Lei 9.605/98. Impedir regeneração da (Em. 97/4)....................................................... 180
vegetação. Art. 48 da Lei 9.605/98. Princípio
DENÚNCIA
da consunção. Obrigação de relevante in-
teresse ambiental. Art. 68 da Lei 9.605/98. - Acórdão do TJSP – Injúria racial e desacato.
A construção em APP, não respeitados os Ofensa à dignidade ou decoro por meio da
limites definidos pela legislação ambiental, utilização de elementos referentes à cor de
caracteriza a prática do crime do art. 64 da sua pele. Denúncia recebida.......................... 174
Lei 9.605/98. Na hipótese, o impedimento à
DETRAÇÃO
regeneração da vegetação especialmente pro-
tegida, que configura isoladamente a conduta - Acórdão do STJ – Prestação pecuniária. Esta
típica do art. 48 da Lei 9.605/98 está dentro Corte não admite a aplicação do instituto à
do iter criminis do art. 64 da Lei 9.605/98, pena de prestação pecuniária, por ausência de
cuja consumação ocorre com a conclusão da previsão legal.................................................. 166
construção. Não comete o crime do art. 68, DIREITO AO SILÊNCIO
da Lei 9.605/98, o agente público vinculado a
órgão ambiental que, em detrimento de EIA/ - Investigado. Comparecimento compulsório
RIMA, solicita outros estudos ambientais à Comissão Parlamentar de Inquérito, sob
congruentes com o tipo de empreendimento pena de condução coercitiva e crime de
desobediência. Direito ao silêncio e de ser
em análise. TRF 4ª R. (Em. 97/34)............... 188
acompanhado por advogado. Direito a não
- Crime permanente. Art. 48 da Lei 9.605/98. autoincriminação abrange a faculdade de
Art. 60 da Lei 9.605/98. Atividade potencial- comparecer ao ato, ou seja, inexiste obrigato-
mente poluidora. Presunção. Impossibilida- riedade ou sanção pelo não comparecimento.
de. Dano efetivo não comprovado. STJ (Em. STF (Em. 97/24)............................................ 185
97/11).............................................................. 182
- Não comete o crime do art. 68 da Lei E
9.605/98, o agente público vinculado a ór-
gão ambiental que, em detrimento de EIA/ EMBRIAGUEZ AO VOLANTE
RIMA, solicita outros estudos ambientais - Homicídio qualificado. Prisão preventiva.
congruentes com o tipo de empreendimento Motivação inidônea. Desproporcionalidade
em análise. TRF 4ª R. (Em. 97/34)............... 188 da constrição em razão das circunstâncias
Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal Nº 97 – Ago-Set/2020 – Índice Alfabético
198

atuais. Crime praticado sem violência in- FALSIFICAÇÃO DE DOCUMENTO


tencional ou grave ameaça. Recomendação PÚBLICO
62/2020 do CNJ. Aplicação de medidas
- A contrafação de cédula de identidade atrai a
cautelares diversas da prisão. Possibilidade.
incidência do art. 297 do CP. TRF 4ª R. (Em.
STJ (Em. 97/1)............................................... 179
97/7)................................................................ 181
- Homicídio qualificado. Prisão preventiva.
Paciente primário, com endereço fixo e FALTA GRAVE
ocupação lícita. Irrelevância. Riscos à inte- - Participação em movimento para subverter a
gridade física em decorrência da pandemia ordem e a disciplina. Alteração da data-base.
da Covid-19. Inexistência. HC negado. TJSP Possível a perda de até 1/3 dos dias já trabalha-
(Em. 97/2)....................................................... 179 dos em caso de prática de falta grave no curso
- Pena. Substituição da privativa de liberdade da execução, mesmo que o reeducando ainda
por restritivas de direitos. Reincidência não não tenha sido beneficiado com a declaração
específica. Medida socialmente não recomen- da remição, desde que os dias trabalhados
dável. STJ (Em. 97/14)................................... 183 sejam anteriores à prática da indisciplina.
TJRS (Em. 97/21)........................................... 184
ESTELIONATO PREVIDENCIÁRIO
- Prescrição. Falta disciplinar. Não acolhimen-
- Comprovação do dolo. Art. 171, § 3º, do CP. to. Lapso temporal não decorrido, atualmente
Uma vez afastado, por sentença transitada estabelecido em 3 anos, em razão do advento
em julgado, o motivo pelo qual o INSS da Lei 12.234/2010. TJSP (Em. 97/22).......... 185
cessou o benefício assistencial em favor de
- Procedimento administrativo disciplinar.
Vera Lúcia, considerando-o regularmente
Necessidade. Novo entendimento do STF.
concedido, resta afastado, em consequência,
Repercussão geral. Superação da Súmula 533/
o dolo na conduta da apelante, impondo-se
STF. A oitiva do condenado pelo Juízo da
sua absolvição. TRF 2ª R. (Em. 97/15)......... 183
Execução Penal, em audiência de justificação
EXCESSO DE PRAZO realizada na presença do defensor e do MP,
afasta a necessidade de prévio PAD, assim
- Roubo circunstanciado. Prisão preventiva.
como supre eventual ausência ou insufici-
Excesso de prazo na conclusão do inquéri-
ência de defesa técnica no PAD instaurado
to policial. Ocorrência. Paciente preso há
para apurar a prática de falta grave durante o
116 dias sem que tenha sido concluído o
cumprimento da pena. STJ (Em. 97/17)....... 183
procedimento investigatório ou ao menos
oferecida a denúncia. Constrangimento ilegal - Sentenciado que fugiu de estabelecimento
configurado. TJRR (Em. 97/47).................... 192 prisional, caracterizando falta grave, por
violação do disposto no art. 50, II, da LEP.
EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE TJSP (Em. 97/22)........................................... 185
- Penas privativas de liberdade e restritivas de
FURTO
direitos já cumpridas. Multa ainda pendente
de pagamento. Pedido de extinção da punibi- - Pequeno valor da vantagem patrimonial. Bem
lidade acertadamente indeferido. TJSP (Em. restituído à vítima. Aplicação do princípio da
97/20).............................................................. 184 insignificância ao apelante portador de maus
antecedentes. Possibilidade. Absolvição. Pre-
F enchimento dos requisitos para aplicação da
benesse. TJAC (Em. 97/23)........................... 185
FALSIDADE IDEOLÓGICA
- Operação Broca. Criação de empresas de I
fachada para geração de créditos tributários
ilícitos de PIS e COFINS. Ausência de justa INJÚRIA RACIAL
causa. Delito que se apresenta como meio - Acórdão do TJSP – Ofensa à dignidade ou
para a prática de crimes contra a ordem tri- decoro por meio da utilização de elementos
butária. Trancamento da ação penal. TRF 2ª referentes à cor de sua pele. Denúncia rece-
R. (Em. 97/35)................................................ 188 bida.................................................................. 174
Índice Alfabético – Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal Nº 97 – Ago-Set/2020 199

INQUÉRITO POLICIAL LIVRAMENTO CONDICIONAL


- Omissão no recolhimento de imposto retido - Afastamento do benefício pela condição de
na fonte. Prescrição parcial. Esgotamento do reincidente específico. Inadmissibilidade.
processo administrativo fiscal. Desnecessi- Não hediondez do tráfico privilegiado. Ina-
dade. Crime de natureza formal. TRF 3ª R. plicabilidade, portanto, das vedações previstas
(Em. 97/28)..................................................... 186
nos arts. 83, V, do CP, e 44, parágrafo único,
INTERNAÇÃO da LD. TJSP (Em. 97/30).............................. 187
- Medida socioeducativa. Ato infracional
análogo a roubo majorado (art. 157, § 2º, II M
e § 2º, a, I, do CP). Emprego de violência e
grave ameaça. Art. 122, I, do ECA. Medida MEDIDA PROTETIVA
adequada. TJAC (Em. 97/8).......................... 181 - Afastamento do lar. Necessidade. Ausência
de ilegalidade. TJGO (Em. 97/31)................ 187
INTIMAÇÃO
- Investigado. Comparecimento compulsório - Descumprimento. Correição parcial. Proce-
à CPI, sob pena de condução coercitiva e dimento. Impossibilidade de aplicação da Lei
crime de desobediência. Direito ao silêncio e 9.099, como preveem o art. 41 da Lei 11.340
de ser acompanhado por advogado. Direito a e a Súmula 536/STJ. TJRS (Em. 97/9).......... 181
não autoincriminação abrange a faculdade de
comparecer ao ato, ou seja, inexiste obrigato- MEDIDA SOCIOEDUCATIVA
riedade ou sanção pelo não comparecimento. - Internação. Ato infracional análogo a roubo
STF (Em. 97/24)............................................ 185 majorado (art. 157, § 2º, II e § 2º, a, I, do
CP). Emprego de violência e grave ameaça.
J Art. 122, I, do ECA. Medida adequada. TJAC
(Em. 97/8)....................................................... 181
JÚRI
- Pleito para que a Sessão não seja realizada MOEDA FALSA
de portas fechadas. Princípio da publicidade. - Pena. Dosimetria. Duplo agravamento da
Passível de limitações ou restrições para ga- sanção penal pelo mesmo processo penal.
rantir a intimidade, o interesse público ou a Impossibilidade. Ademais, aquele feito no
integridade. O segredo de justiça previsto no
qual concedido o benefício haverá de ser
art. 234-B do CP deve se dar integralmente,
aqui considerado para efeito de reincidência
se estendendo ao processo como um todo,
não prevendo distinção entre réu e vítima. (CP, art. 61, I), não sendo possível empregá-
STJ (Em. 97/27)............................................. 186 lo duas vezes para efeito de agravar a sanção
penal. À míngua de circunstâncias judiciais
L desfavoráveis, reduzo a pena-base para 3 anos
e 10 dias-multa. TRF 3ª R. (Em. 97/32)....... 187
LESÃO CORPORAL SEGUIDA DE
- Prisão preventiva. Excepcionalidade do mo-
MORTE
mento atual. Possibilidade de substituição
- Sentença condenatória de 4 anos de reclusão, da prisão por medidas cautelares. Delito
em regime aberto. Art. 129, § 3º, do CP. Pleito praticado sem violência ou grave ameaça.
da defesa para desclassificação para o art. 129,
Ordem concedida. TRF 3ª R. (Em. 97/33)... 187
caput, do CP. Impossibilidade. TJRR (Em.
97/25).............................................................. 185 MULTA AMBIENTAL
LIBERDADE PROVISÓRIA - Pessoa jurídica. Art. 40 da Lei 9.605/98. Tipo
- Acórdão do STJ – Tóxicos. Tráfico. Prisão aberto. Constitucionalidade. Dosimetria da
em flagrante convertida em prisão preven- pena. Valor mínimo indenizável. Art. 387, IV,
tiva. Quantidade de drogas não exacerbada. do CPP. Recurso ministerial parcialmente
Periculum libertatis não demonstrado. Funda- provido. Uso da expressão “unidades de
mentação inidônea. HC concedido............... 160 conservação”. TRF 2ª R. (Em. 97/10)........... 182
Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal Nº 97 – Ago-Set/2020 – Índice Alfabético
200

P como base de cálculo o parâmetro de 50%


da carga horária de 1.600 horas (800 horas),
PENA com a divisão pelas 5 áreas de conhecimento,
que consistiria em 66 dias remidos, sendo que
- Acórdão do STF – Tóxicos. Tráfico. Dosime-
cada área corresponde a 13 dias de remição.
tria. Regime inicial de cumprimento fechado.
STJ (Em. 97/42)............................................. 190
A quantidade apreendida justifica a fixação
da pena-base em patamar acima do mínimo - Revisão criminal. Estupro de vulnerável.
legal................................................................. 147 Dosimetria da pena. Valoração negativa
diversa ao bem protegido pelo tipo penal.
- Acórdão do STJ – Roubo. Emprego de arma
Aplicação sucessiva das causas de aumento
branca. Elevação da pena-base. Possibilidade.
de pena. Admissibilidade. Pena aumentada
Vítima grávida. Incidência da agravante.
pela continuidade delitiva em duplicidade.
Inexistência de atenuante a ser compensada
Decotação. Revisão parcialmente procedente.
com a agravante. Regime prisional fechado
TJAC (Em. 97/43).......................................... 190
mantido........................................................... 154
- Revisão criminal. Homicídio tentado.
- Embriaguez ao volante. Substituição da pri-
Circunstâncias judiciais. Circunstâncias do
vativa de liberdade por restritivas de direitos.
crime. Ausência de fundamentação idônea
Reincidência não específica. Medida social-
para majoração da pena-base. Imprescindibi-
mente não recomendável. STJ (Em. 97/14). 183
lidade de motivação do ato decisório. Decote
- Execução penal definitiva. Substituição no incremento sancionatório. Possibilidade.
pelo juízo das execuções criminais de pena Revisão parcialmente procedente. TJAC
restritiva de direitos de prestação de serviços (Em. 97/44)..................................................... 190
à comunidade por prestação pecuniária.
- Roubo majorado pelo concurso de pessoas
Impossibilidade. STJ (Em. 97/19)................. 184
(art. 157, § 2º, II, do CP). Sentença con-
- Moeda falsa. Duplo agravamento da sanção denatória. Apelação ministerial. Pretensa
penal pelo mesmo processo penal. Impos- condenação dos acusados pelos crimes de
sibilidade. Ademais, aquele feito no qual ameaça e corrupção de menores. Procedência
concedido o benefício haverá de ser aqui parcial. Insuficiência de provas necessárias à
considerado para efeito de reincidência (CP, condenação pelo delito do art. 147 do CP.
art. 61, I), não sendo possível empregá-lo Exegese do art. 386, VII, do CPP. Manu-
duas vezes para efeito de agravar a sanção tenção da sentença absolutória neste ponto.
penal. À míngua de circunstâncias judiciais Condenação pelo crime de corrupção de
desfavoráveis, reduzo a pena-base para 3 anos menores (art. 244-B do ECA). Possibilidade.
e 10 dias-multa. TRF 3ª R. (Em. 97/32)....... 187 Participação do adolescente comprovada.
- Redução. Roubo. Pena-base acima do míni- Prova testemunhal. Prescindibilidade de
mo legal. Maus antecedentes configurados. efetiva corrupção do menor. Crime formal.
Personalidade. Conduta social. Réu com TJRN (Em. 97/48)......................................... 192
mais de uma condenação transitada em - Roubo qualificado. Art. 157, § 2º, I e II, do
julgado. Fundamentação inidônea. Histó- CP. Prova exuberante da autoria a partir dos
rico criminal que configura apenas maus depoimentos das vítimas, que são harmô-
antecedentes e reincidência. Ainda que o nicos e demonstram a prática dos delitos
agente possua vasto histórico criminal, com desde sede policial, confirmando-se em
diversas condenações transitadas em julgado, sede de contraditório e ampla defesa. Causa
elas devem ser divididas para, na segunda fase de aumento de arma de fogo que deve ser
da dosimetria, configurar a reincidência, e, reconhecida. Não há necessidade de se avaliar
na primeira etapa, serem sopesadas apenas a potencialidade lesiva da arma, o que não
como maus antecedentes, sob pena de bis encontra abrigo, nem na jurisprudência, nem
in idem. Ordem concedida, de ofício, para na doutrina. TJRJ (Em. 97/50)...................... 192
reduzir a reprimenda do paciente para 6 anos - Roubo qualificado. Emprego de arma de fogo
e 5 meses de reclusão, mais o pagamento de em continuidade delitiva (art. 157, § 2º, I, c/c
14 dias-multa, mantida, no mais, a sentença o art. 71, ambos do CP). Pretensa absolvição
condenatória. STJ (Em. 97/46)...................... 191 por insuficiência de provas. Impossibilidade.
- Remição. Aprovação no ENCCEJA. Na Materialidade e autoria do delito devidamen-
hipótese, o Tribunal estadual considerou te comprovadas. Declarações da vítima e
Índice Alfabético – Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal Nº 97 – Ago-Set/2020 201

depoimento testemunhal capazes de embasar excepcional de prisão domiciliar. TJRJ (Em.


o Decreto condenatório. Arma de fogo não 97/41).............................................................. 190
apreendida ou periciada. Impossibilidade. - Sentenciado no grupo de risco. Descabimen-
Prescindibilidade da apreensão e perícia da to. Regime prisional fechado não admite a
arma, desde que evidenciada sua utilização prisão domiciliar. Direito de assistência à
por outros meios de prova. TJRN (Em. saúde devidamente assegurado ao paciente.
97/49).............................................................. 192 TJSP (Em. 97/16)........................................... 183
PRAZO PRISÃO PREVENTIVA
- Ver Carteira Nacional de Habilitação. Sus- - Gravidade concreta da conduta. Grupo
pensão. criminoso. Venda fraudulenta de precató-
rios judiciais. Movimentações financeiras
PRERROGATIVA DE FUNÇÃO
recentes. Mantida a prisão preventiva, como
- Constituição Estadual que estende foro cri- garantia da ordem pública e conveniência da
minal por prerrogativa de função a Procura- instrução criminal. TJDF (Em. 97/39).......... 189
dores de Estado, Procuradores da Assembleia
- Homicídio qualificado. Aborto. Periculum
Legislativa, Defensores Públicos e Delegados
libertatis. Ausência de risco concreto à saúde
de Polícia. Impossibilidade de extensão das
do paciente. A regularidade da custódia do
hipóteses defendidas pelo legislador consti-
paciente foi reconhecida quando do julga-
tuinte federal. ADI. STF (Em. 97/3)............. 180
mento do HC 70083718346, em fevereiro de
PRESCRIÇÃO 2020. Trata-se de crime grave, supostamente
cometido em razão de disputa por ponto de
- Pretensão executória. No âmbito da Turma, venda de drogas. TJRS (Em. 97/26).............. 186
consolidou-se o entendimento de que o
termo inicial da prescrição da pretensão - Homicídio qualificado. Embriaguez ao
executória é a data do trânsito em julgado da volante. Motivação inidônea. Desproporcio-
decisão para ambas as partes, uma vez que nalidade da constrição em razão das circuns-
não se pode dar início ao cumprimento da tâncias atuais. Crime praticado sem violência
pena, isto é, à execução, antes desse marco. intencional ou grave ameaça. Recomendação
TRF 3ª R. (Em. 97/38)................................... 189 62/2020 do CNJ. Aplicação de medidas cau-
telares diversas da prisão. Possibilidade. STJ
PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA (Em. 97/1)....................................................... 179
- Furto. Pequeno valor da vantagem patrimo- - Homicídio qualificado. Embriaguez ao
nial. Bem restituído à vítima. Aplicação ao volante. Paciente primário, com endereço
apelante portador de maus antecedentes. Pos- fixo e ocupação lícita. Irrelevância. Riscos à
sibilidade. Absolvição. TJAC (Em. 97/23).... 185 integridade física em decorrência da pande-
mia da Covid-19. Inocorrência. HC negado.
- Não se aplica o princípio da insignificância
TJSP (Em. 97/2)............................................. 179
a casos de transmissão clandestina de sinal
de internet via radiofrequência, que caracte- - Moeda falsa. Excepcionalidade do momento
riza o fato típico previsto no art. 183 da Lei atual. Possibilidade de substituição da prisão
9.472/97. TRF 2ª R. (Em. 97/13)................... 183 por medidas cautelares. Delito praticado sem
violência ou grave ameaça. Ordem concedida.
PRISÃO DOMICILIAR TRF 3ª R. (Em. 97/33)................................... 187
- Paciente é mãe de filhos menores de 12 anos - Revogação. Roubo circunstanciado. Excesso
e diante da pandemia de Covid-19. Condena- de prazo na conclusão do inquérito policial.
ção por crime que envolve violência e grave Ocorrência. Paciente preso há 116 dias sem
ameaça, o que obsta o deferimento da benesse que tenha sido concluído o procedimento
nos termos do art. 318-A, I, do CPP. TJSP investigatório ou ao menos oferecida a de-
(Em. 97/18)..................................................... 184 núncia. Constrangimento ilegal configurado.
- Regime aberto. Concessão de prisão albergue TJRR (Em. 97/47).......................................... 192
domiciliar com monitoramento eletrônico. - Violência doméstica. Lesão corporal e amea-
Ausência de comprovação pelo agravante ça. Pedido de revogação. Admissibilidade.
de disponibilidade de vagas nas casas de al- Possibilidade de eventual fixação de regime
bergado existentes no Estado. Deferimento prisional mais brando. Ordem concedida para
Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal Nº 97 – Ago-Set/2020 – Índice Alfabético
202

substituir a custódia cautelar por medidas - Acórdão do STJ – Emprego de arma branca.
cautelares e protetivas. TJSP (Em. 97/29)..... 186 Elevação da pena-base. Possibilidade. Vítima
- Violência doméstica. Medida Protetiva. grávida. Incidência da agravante. Inexistência
Descumprimento. Necessidade de manu- de atenuante a ser compensada com a agra-
tenção da custódia para o fim de assegurar a vante. Regime prisional fechado mantido..... 154
incolumidade física e psicológica da vítima. ROUBO QUALIFICADO
TJSP (Em. 97/12)........................................... 182
- Emprego de arma de fogo. Art. 157, § 2º,
PROIBIÇÃO DE DUPLA I e II, do CP. Prova exuberante da autoria
PERSECUÇÃO PENAL E NE BIS IN a partir dos depoimentos das vítimas, que
IDEM são harmônicos e demonstram a prática dos
delitos desde sede policial, confirmando-se
- Parâmetro para controle de convencionalida-
em sede de contraditório e ampla defesa.
de. Art. 14.7 do Pacto Internacional sobre Di-
Causa de aumento de arma de fogo que deve
reitos Civis e Políticos. Art. 8.4 da Convenção
ser reconhecida. Não há necessidade de se
Americana de Direitos Humanos. Limitação
avaliar a potencialidade lesiva da arma, o que
ao art. 8º do Código Penal e interpretação
não encontra abrigo, nem na jurisprudência,
conjunta com o art. 5º do CP. Proibição de o
nem na doutrina. TJRJ (Em. 97/50).............. 192
Estado brasileiro instaurar persecução penal
fundada nos mesmos fatos de ação penal já - Emprego de arma de fogo. Continuidade
transitada em julgado sob a jurisdição de delitiva (art. 157, § 2º, I, c/c o art. 71, ambos
outro Estado. HC concedido para trancar o do CP). Pretensa absolvição por insuficiência
processo penal. STF (Em. 97/40).................. 189 de provas. Impossibilidade. Materialidade e
autoria do delito devidamente comprova-
PROVA das. Declarações da vítima e depoimento
- Produção antecipada. Violência doméstica. testemunhal capazes de embasar o Decreto
Admissibilidade. TJDF (Em. 97/55)............. 193 condenatório. Arma de fogo não apreendida
ou periciada. Impossibilidade. Prescindibi-
R lidade da apreensão e perícia da arma, desde
que evidenciada sua utilização por outros
RÁDIO PIRATA meios de prova. TJRN (Em. 97/49).............. 192

- Vide Telecomunicação. Princípio da Insigni-


S
ficância.
REVISÃO CRIMINAL SAÍDAS TEMPORÁRIAS
- Estupro de vulnerável. Dosimetria da pena. - Regime aberto. Possibilidade. TJRS (Em.
Valoração negativa diversa ao bem protegido 97/52).............................................................. 193
pelo tipo penal. Aplicação sucessiva das causas - Requisito objetivo não implementado. De-
de aumento de pena. Admissibilidade. Pena cisão reformada. TJRS (Em. 97/53).............. 193
aumentada pela continuidade delitiva em du-
plicidade. Decotação. Revisão parcialmente SEGREDO DE JUSTIÇA
procedente. TJAC (Em. 97/43)..................... 190 - Ver Júri. Princípio da Publicidade.
- Homicídio tentado. Circunstâncias judiciais. SONEGAÇÃO FISCAL
Circunstâncias do crime. Ausência de fun-
damentação idônea para majoração da pena- - Omissão no recolhimento de IRRF. Pres-
base. Imprescindibilidade de motivação do crição parcial. Esgotamento do processo
ato decisório. Decote no incremento sancio- administrativo fiscal. Desnecessidade. TRF
natório. Possibilidade. Revisão parcialmente 3ª R. (Em. 97/28)............................................ 186
procedente. TJAC (Em. 97/44)..................... 190 - Operação Broca. Criação de empresas de
fachada para geração de créditos tributários
ROUBO ilícitos de PIS e Cofins. Falsidade ideológica.
- Absolvição. Possibilidade. Ausência de prova Ausência de justa causa. Delito que se apre-
para embasar a condenação. Meros indícios. senta como meio para a prática de crimes
Prova nebulosa. Melhor solução. Pronuncia- contra a ordem tributária. Trancamento da
mento do non liquet. TJMG (Em. 97/51)....... 193 ação penal. TRF 2ª R. (Em. 97/35)................ 188
Índice Alfabético – Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal Nº 97 – Ago-Set/2020 203

SUSPENSÃO DO PROCESSO o apenado, ainda que tivesse alcançado o re-


- Questão prejudicial heterogênea. Art. 93 quisito objetivo para progressão, sofreu nova
do CPP. Crimes ambientais. Hipótese não condenação. A soma das penas, decorrente da
verificada no caso concreto. TRF 4ª R. (Em. unificação, ensejou o cumprimento de pena
97/34).............................................................. 188 remanescente superior a 8 anos, autorizando
a manutenção do regime fechado. TJRS (Em.
T 97/54).............................................................. 193

TELECOMUNICAÇÃO V
- Princípio da insignificância. Não se aplica o VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
princípio da insignificância a casos de trans-
missão clandestina de sinal de internet via - Depoimento especial. Produção antecipada
radiofrequência, que caracteriza o fato típico de prova. Não há constrangimento ilegal na
previsto no art. 183 da Lei 9.472/97. TRF 2ª oitiva antecipada da vítima, que só ocorrerá
R. (Em. 97/13)................................................ 183 na presença de defensor nomeado, o que
possibilitará a ampla defesa do paciente e o
TENTATIVA DE PROMOVER A FUGA contraditório. TJDF (Em. 97/55).................. 193
DE PESSOA PRESA
- Lesão corporal e ameaça. Prisão em flagrante
- A utilização de helicóptero para resgate convertida em preventiva. Pedido de re-
de pessoa legalmente presa, mas que, por vogação. Admissibilidade. Possibilidade de
circunstâncias alheias à vontade do agente, eventual fixação de regime prisional mais
acaba não ocorrendo em razão da queda do brando. Ordem concedida para substituir a
aparelho, atrai a incidência do art. 351 c/c o custódia cautelar por medidas cautelares e
art. 14, II, do CP. TRF 4ª R. (Em. 97/7)........ 181 protetivas. TJSP (Em. 97/29)......................... 186
TÓXICOS - Medida protetiva. Afastamento do lar. Ne-
- Acórdão do STF – Tráfico. Pena. Regime ini- cessidade. Ausência de ilegalidade. Mostra-se
cial de cumprimento fechado. A quantidade fundamentada a decisão que fixa medida pro-
apreendida justifica a fixação da pena-base tetiva de afastamento do lar, visando preservar
em patamar acima do mínimo legal.............. 147 a integridade física e psicológica da mulher,
dada a proximidade entre endereços dela e
- Acórdão do STJ – Tráfico. Prisão em flagran-
do ex-marido. TJGO (Em. 97/31)................ 187
te. Quantidade de drogas não exacerbada.
Periculum libertatis não demonstrado. Fun- - Medida protetiva. Descumprimento. Correi-
damentação inidônea. Liberdade provisória. ção parcial. Procedimento. Impossibilidade
HC concedido................................................ 160 de aplicação da Lei 9.099, como preveem o
art. 41 da Lei 11.340 e a Súmula 536/STJ.
U TJRS (Em. 97/9)............................................. 181
- Medida protetiva. Descumprimento. Ne-
UNIFICAÇÃO DE PENAS cessidade de manutenção da custódia para
- Reprimenda remanescente superior a 8 anos. o fim de assegurar a incolumidade física e
Regime fechado. Hipótese dos autos em que psicológica da vítima. TJSP (Em. 97/12)...... 182
Edital de Submissão de Artigos

A Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal faz público o


seu edital de submissão de artigos científicos para publicação.
1. Os trabalhos podem ser redigidos em diferentes idiomas (inglês, por-
tuguês, espanhol, francês, italiano e alemão), mas devem observar as normas
da revista, bem como a linha editorial de publicação.
2. Os artigos serão submetidos à apreciação do conselho editorial –
e/ou a outros especialistas da área – pelo sistema de blind peer review, com
aceite ou não, podendo ainda algum tipo de alteração ser recomendada pelos
pareceristas. Tais eventuais sugestões de modificação serão acordadas com os
autores. É garantido o anonimato dos autores, pareceristas e instituições de
ensino envolvidas no processo de avaliação.
3. O artigo deve ser original, encaminhado via site (http://www.
lexmagister.com.br/EnviarArtigos.aspx), em arquivo do Microsoft Word, com
espaçamento entre linhas de 1,5, fonte Times New Roman tamanho 12 e for-
matação em papel A4 (com margem superior e esquerda em 3 cm e margem
inferior e direita em 2 cm). Devem ser apresentadas em destaque as citações
com mais de três linhas, em fonte tamanho 10 e espaçamento simples.
4. Os textos devem conter no mínimo 10 e no máximo 25 laudas, in-
cluindo notas finais. As resenhas não devem ultrapassar 5 laudas.
5. Os artigos deverão ser acompanhados de resumo em português e
inglês, com no máximo 15 linhas e indicação de palavras-chave em português
e inglês. O sumário contendo os tópicos em que se divide o artigo deverá estar
localizado abaixo do título e nome do autor.
6. Deverão estar indicadas, ainda, as seguintes informações sobre o au-
tor: instituição a qual é ligado, cargo que ocupa, e-mail e titulação acadêmica.
7. As referências bibliográficas dos artigos deverão ser elaboradas de
acordo com as especificações da Associação Brasileira de Normas Técnicas
(NBR 6023) e apresentadas no final do texto.
8. O autor receberá um exemplar da revista na qual seu artigo for
publicado.

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