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Justiça Restaurativa: a autocomposição

como alternativa à resolução dos


conflitos na esfera penal

Tiago Luiz Trucollo


Acadêmico graduando em Direito pela Universidade do Oeste de Santa Catarina (Campus
de São Miguel do Oeste, Santa Catarina).

Lucas Pichetti Trento


Professor graduado em Direito e pós-graduado em Direito Processual Civil pela Universidade
do Oeste de Santa Catarina. Advogado e docente na mesma universidade (Campus de
São Miguel do Oeste e Pinhalzinho, Santa Catarina).

Resumo: A autocomposição, fundamentada nos princípios da Justiça Restaurativa, ergue-se como uma
possível alternativa à resolução dos conflitos na esfera penal. Assim, averiguar-se-á a partir dos ideais
de reparação e regeneração a aplicabilidade do processo de restauração no bojo dos processos penais.
Para tanto, utilizando-se o método dedutivo como método de pesquisa, se dará ênfase à pesquisa
qualitativa. O trabalho, por seu turno, foi desenvolvido em três partes, a primeira relatando a política
nacional de Justiça Restaurativa; a segunda expõe a Justiça Restaurativa e sua possível aplicação na
esfera penal e a terceira aduz projetos de aplicação da Justiça Restaurativa em âmbito penal. Por fim,
chegou-se à conclusão de que, havendo possibilidade e plausibilidade, o processo restaurativo poderá
ser aplicado na esfera penal, regendo-se pelo protagonismo das partes e, como consequência, ampliando
os horizontes da autocomposição aplicada ao direito penal.
Palavras-chave: Direito penal. Justiça Restaurativa. Autocomposição. Conflito.

Sumário: Introdução – 1 Política nacional de Justiça Restaurativa – 2 Justiça Restaurativa na esfera


penal – 3 Justiça Restaurativa: a autocomposição como alternativa à resolução dos conflitos na esfera
penal – 4 Conclusão – Referências

Introdução
O controle do Estado sobre as relações humanas é inevitável para a regula-
ção social. E quando se pensa em transgressões de normas penais a ingerência
estatal passa a ser ainda maior. Diante disso, resplandece saber a possibilidade,
ou não, de aplicação de métodos alternativos, em especial a autocomposição, para
a resolução dos conflitos na esfera penal.
Diante disso, tem-se o questionamento acerca de a possibilidade da Justiça
Restaurativa, aplicada mediante procedimentos de autocomposição, ser utilizada
como meio para solucionar os conflitos na esfera penal.

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Da pergunta, gizem-se algumas respostas. Primeiro, quando se está diante


de um possível crime é cediço que os meios consensuais são olvidados pelo en-
raizado sistema acusatório, baseado, sobretudo, na forte presença estatal. Nes-
se sentido, objetiva-se ater, dentro de certos limites, a necessidade da ingerência
estatal no tratamento de conflitos, concedendo às partes maior protagonismo nas
resoluções das contendas.
Nessa temática, a Justiça Restaurativa se insere ao ligar a perspectiva de res-
taurar com o fomento ao subjetivismo no tratamento dos conflitos. Norteada princi-
palmente a partir de resoluções e princípios, a Justiça Restaurativa ergue-se como
uma alternativa de mudança na forma como se vê o delito, propiciando a aplicação
dos meios consensuais em determinados conflitos, inclusive os de natureza penal,
desde que as condições do delito tornem adequada a tentativa de restauração.
Aliás, pontua-se que muito embora não esteja positivada no ordenamento ju-
rídico, a autocomposição, ligada aos ditames da Justiça Restaurativa, guarda rela-
ção com as preleções herdadas dos procedimentos de autocomposição da esfera
cível, dos juizados especiais criminais e até mesmo dos acordos de não persecução
penal, este último, recentemente inserido no ordenamento jurídico.
Ademais, circunstâncias como a formação congruente do terceiro facilitador
e a estruturação do processo autocompositivo, adequando-o às realidades locais,
conduzem a uma efetividade maior do processo com o objetivo de alcançar a res-
tauração. E, porquanto flexíveis, o processo baseado na restauração tende a acom-
panhar e transformar-se conforme as evoluções sociais.
A propósito, por serem bens jurídicos sensíveis, a aplicação dos processos
de autocomposição na esfera penal deve, mormente, alcançar apenas aqueles
conflitos passíveis de restauração, dado que, ao aplicar esse método, se almeja
permitir a participação ativa da vítima e de interessados no processo, visando res-
taurar a situação. Assim, por certo, deve-se restaurar apenas até onde for possível,
protegendo bens jurídicos sensíveis e potencialmente violados.
Os projetos aplicados em território nacional, utilizando-se o viés restaurativo,
têm demonstrado resultados convidativos, que impulsionam seu crescimento como
uma possível alternativa ao tratamento dos conflitos, inclusive na esfera penal. Além
do mais, esses projetos fomentam o crescimento de ideias que influem no desen-
volvimento de outros projetos ambiciosos ligados ao epopeico modelo restaurativo.
Assim, por derradeiro, pontua-se que a presente pesquisa, utilizando-se do
método dedutivo, está organizada em três pontos: primeiro demonstrará a abran-
gência da política nacional de Justiça Restaurativa; por conseguinte apresentará a
Justiça Restaurativa na esfera penal e, por fim, exporá alguns projetos de aplica-
ção da Justiça Restaurativa.

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Justiça Restaurativa: a autocomposição como alternativa à resolução dos conflitos na esfera penal

1 Política nacional de Justiça Restaurativa


A Justiça Restaurativa, concebida sob a premissa de restaurar, é resultado
de uma construção histórica, sobretudo, daqueles que viram a possibilidade res-
tauradora como alternativa para a solução dos conflitos. À vista disso, com fulcro
na latente preocupação no tratamento dos conflitos, é oportuno apresentar o mé-
todo restaurativo como uma alternativa ao Sistema de Justiça, especificamente
em âmbito penal.
Assim, faz-se mister indicar que a política nacional de Justiça Restaurativa,
embora ainda prematura, vem sendo estruturada principalmente a partir de reso-
luções e princípios, dando forma a essa nova perspectiva para o direito. Logo, ao
compreender os alicerces da Justiça Restaurativa é possível desmesurar sua apli-
cação prática, sobretudo, em âmbito criminal.
Sob esse prisma, nesse primeiro ponto, far-se-á uma análise acerca da ori-
gem da Justiça Restaurativa em âmbito criminal, bem como dos princípios que
norteiam essa esfera do direito.

1.1 Origem da Justiça Restaurativa em matéria criminal


Inicialmente, insta consignar que, muito embora seja um conceito ainda novo,
principalmente quando se vislumbra sua aplicação em âmbito penal, a Justiça Res-
taurativa é fruto de uma construção histórica, a partir das experiências de culturas
que viram na restauração uma possibilidade para a solução dos seus conflitos.
Assim, imperioso destacar, que “os alicerces da aplicação de métodos res-
tauradores estão ligados a práticas de tribos indígenas e nas tradições de países
como Austrália, Nova Zelândia, Canadá, Estados Unidos e África do Sul” (CAMARGO,
2017, p. 55).
Como visto, as primeiras experiências restaurativas ocorreram em tribos indí-
genas, que, mesmo na forma mais primitiva do direito, perceberam os benefícios
da restauração no tratamento dos conflitos.
Com o passar do tempo, já muito mais evoluída e estruturada, a Justiça Res-
taurativa “foi formalmente incorporada na Nova Zelândia, a partir da preocupação
em dar respostas satisfatórias para a sociedade” (CAMARGO, 2017, p. 55).
Ressalta-se que na experiência neozelandesa “a proposta consistia na reunião
do grupo familiar, envolvidos e comunidade para tomada de decisões” (MAXWELL,
2005 citado por CAMARGO, 2017, p. 55), sendo aplicada principalmente em infra-
ções cometidas por crianças e adolescentes em crimes de menor complexidade.
Nada obstante, “o interesse pela Justiça Restaurativa no Ocidente ocorreu em
1974, a partir de um projeto de reconciliação entre ofendido e ofensor em Kitchener,

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Ontário, no Canadá. Esses projetos comunitários tinham como objetivo mediar con-
flitos entre ofendidos e ofensores após a sentença” (BRAITHWAITE, 2002 citado
por CAMARGO, 2017, p. 55).
As experiências observadas ao longo do tempo, tornam possível, mesmo que
de forma tenra, compreender alguns ideais da Justiça Restaurativa, principalmente
ao perceber sua capacidade de mutabilidade e adequação conforme o meio em
que está inserida, estando, portanto, em constante construção, sem perder a es-
sência que é restaurar.

1.2 Princípios norteadores da Justiça Restaurativa no


âmbito penal
Superado o introito, insta destacar que malgrado inexista um diploma que dis-
cipline a aplicação dos métodos restaurativos em território nacional, os mecanismos
reconstrutores vêm estruturados principalmente a partir de resoluções e princípios.
Nesse ínterim, a Resolução nº 2002/12, da Organização das Nações Unidas
(ONU), que reconheceu a importância do aprimoramento da Justiça Restaurativa
em todo o mundo, adotando esses mecanismos em algumas espécies de infra-
ções penais, e a Resolução nº 225/16, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ),
que dispõe sobre a Política Nacional de Justiça Restaurativa no âmbito do Poder
Judiciário, despontam como os principais nortes para a estruturação e compreen-
são da Justiça Restaurativa no âmbito do direito penal.
Nesse contexto, em seguida, serão analisados alguns dos princípios nortea-
dores da Justiça Restaurativa em âmbito penal. No entanto, é importante conside-
rar aqui, agora, que não se buscou esgotá-los, mas sim ressaltar aqueles que são
alicerces para todo o processo, em especial aqueles que permeiam a prática dos
métodos restaurativos, com enfoque na autocomposição.

1.2.1 Princípio da dignidade da pessoa humana


Trata-se de um dos fundamentos da República, previsto no art. 1º, III, da
Constituição Federal, também presente na Declaração Universal dos Direitos Hu-
manos e no Pacto Internacional Sobre Direitos Civis e Políticos.
Segundo Greco (2015), a dignidade da pessoa humana pode ser entendida
como uma qualidade que faz parte da própria condição humana, ou seja, é algo
inerente ao ser humano, sendo considerada irrenunciável e inalienável.
Sob esse prisma, o processo penal é constituído para servir de alicerce ao
justo procedimento de apuração da existência da infração penal e de quem seja
seu autor, de forma a dar relevo especial à dignidade da pessoa humana, durante
o desenvolvimento do processo. (NUCCI, 2015, p. 39).

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Nessa temática, se compreende que a dignidade da pessoa humana é vetor


principal para todo e qualquer procedimento aplicado e, no que tange à Justiça
Restaurativa, ergue-se como uma garantia aos envolvidos de um tratamento mais
adequado e condizente com o conflito causado e sua possível solução.

1.2.2 Princípio da intervenção mínima


É evidente que pela sua natureza, o direito penal deve intervir para tutelar
bens jurídicos relevantes, isto é, quando estes não puderam ser tutelados de ou-
tra forma. Nesse sentido, o conceito da intervenção mínima é explicado por Matos
e Siqueira (2010, p. 1):

Com o Princípio da Intervenção Mínima objetiva-se restringir a inci-


dência de normas incriminadoras às hipóteses de ofensas a bens
jurídicos fundamentais. Desta forma, ficam reservados aos demais
ramos do ordenamento jurídico as ilicitudes que não ofendem bens
fundamentais.

Para Nucci (2015), fosse o direito penal a primeira opção do legislador para
o tratamento de conflitos, estar-se-ia vulgarizando a força estatal, privilegiando a
brutalidade, aplicando-se a todos os conflitos a reprimenda máxima. Por muito ló-
gico, essa máxima não vigora no ordenamento jurídico.
Como se sabe, de uma situação fática podem advir responsabilidades de
ordem civil, administrativa ou penal, apuradas conforme procedimentos próprios e
compatíveis com a respectiva natureza da infração. Nesse ínterim, o Estado deve
sustentar o controle social através das sanções penais, apenas quando outras
sanções, de diferentes naturezas, não possam solucionar a situação.
Logo, o princípio da intervenção mínima é o apontador desses limites, per-
mitindo que o costume atue como reparador da ânsia legislativa crescente e, em
lugar de editar novas figuras delitivas, promova o esvaziamento do direito penal
brasileiro (NUCCI, 2015, p. 142).
Dessa forma, o princípio da intervenção mínima pode ser entendido como
uma abstenção do direito penal tanto em intervir em determinadas situações como
também em intervir como último argumento, ou seja, de forma subsidiária.
Em sintonia, a Justiça Restaurativa caminha na mesma trilha, uma vez que
a resolução de determinados crimes, de menor complexidade, podem ser supe-
rados através dos métodos restaurativos. Nessa perspectiva, as vertentes de in-
tervenção mínima podem orientar o legislador no momento de seleção dos bens
jurídicos passíveis de tutela por outros meios, incluindo aqueles passíveis ao pro-
cesso de restauração.

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1.2.3 Princípio da proporcionalidade


Dada sua importância, o princípio da proporcionalidade desponta praticamente
em todas as esferas do direito. No direito penal não poderia ser diferente, tendo
em vista que há uma necessidade de haver uma proporção entre o ilícito causado
e a pena aplicada.
Em que pese compor a estrutura normativa, o princípio da proporcionalidade
não foi insculpido expressamente na Constituição Federal. Ele está previsto impli-
citamente em diversos dispositivos, por exemplo, nos incisos XLII, XLIV, XLVI do
art. 5º da CF/88.
A partir da interpretação do texto dos dispositivos supracitados, a interven-
ção será considerada proporcional se tiver como escopo evitar lesões a direitos
fundamentais e interesses indispensáveis à sociedade. Por certo, quanto maior a
sensibilidade ou lesão ao bem jurídico atingido, maior será a pena aplicada, isto
é, a sanção penal será proporcional à gravidade do delito.
Nesse compasso, como bem leciona Nucci (2015, p. 87):

A proporcionalidade destina-se, basicamente, ao legislador, para que


construa tipos penais adequados aos fatos criminosos a punir, em
particular no que se refere à sanção cominada. Entretanto, há o lado
processual do princípio, dizendo respeito à decretação de medidas
restritivas dos direitos individuais, tais como liberdade, intimidade,
privacidade etc.

Sob o viés restaurativo, em muitos delitos, notadamente aqueles sem gra-


vidade, praticados sem violência ou grave ameaça, vê-se como possível a aplica-
ção de formas alternativas de solucionar o ocorrido, com a finalidade de restaurar
a situação. Por lógico, ainda em atenção ao princípio em tela, não mostrando-se
proporcional a aplicação dos métodos restaurativos ao caso, devem-se aplicar as
normas já insculpidas no diploma penal.

1.2.4 Princípio do devido processo legal


A ausência de legislação em relação à Justiça Restaurativa prejudica, por
ora, que se vislumbre sua aplicação prática. Porém, para a verdadeira aplicação
do processo restaurativo deverão, por certo, serem observados princípios basilares
como o devido processo legal.
Referido princípio está previsto na Constituição Federal, em seu artigo 5º, in-
ciso LIV, o qual disciplina que “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens
sem o devido processo legal”.

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No mesmo compasso, têm-se os ensinamentos de Nucci (2015, p. 82), que


prelecionam que:

O devido processo legal, no âmbito do Direito Penal, delineia-se pela


aplicação efetiva dos princípios penais, mormente os de alçada cons-
titucional, interligando-se a aspectos fundamentais do conceito de cri-
me. Em primeiro plano, deve-se destacar a importância da legalidade
e seus corolários indispensáveis.

Assim, em que pese a restauração seja construída com base na manifestação


dos envolvidos, é coerente que se tenha um norte delimitando as diretrizes dessa
autocomposição. Assegurando-se, portanto, formas instrumentais adequadas, a
fim de garantir a segurança jurídica do ato e de seus efeitos às partes.
De forma sucinta, o devido processo legal como princípio basilar em todo e
qualquer processo, deve ser aplicado, inclusive, nos processos de restauração,
garantindo segurança jurídica para aqueles que se sujeitam a esse procedimento.

1.2.5 Princípio do contraditório e ampla defesa


O contraditório e a ampla defesa são princípios constitucionalmente previs-
tos (art. 5º, LV) e traduzem-se, basicamente, como a paridade de armas entre as
partes, ou seja, não restringir os meios das partes de provar o alegado e contes-
tar o arguido pela outra, garantindo sempre à parte a possibilidade de contestar
ou justificar sua conduta.
O contraditório consubstancia-se por ser o direito a contrapor argumentos
contrários ao próprio interesse sendo inerente a qualquer das partes no proces-
so; trata-se, pois, de princípio aplicável tanto à acusação quanto à defesa (NUCCI,
2015, p. 737).
A ampla defesa, por sua vez, cuida-se de instrumento exclusivo do acusado
para refutar a acusação, se utilizando dos mecanismos legais, buscando, acima
de tudo, manter o seu estado de inocência (NUCCI, 2015, p. 736).
Nevrálgico ressaltar que na Justiça Restaurativa a acusação, na figura do
parquet, cede espaço para a vítima, que por sua vez, expõe ao autor e ao terceiro
facilitador os seus anseios na possível tentativa de resolução do conflito.
Registre-se, o contraditório e ampla defesa são princípios de grande relevân-
cia na Justiça Restaurativa, pois possibilitam também ao acusado expor os seus
anseios e, inclusive, não concordar com os termos expostos pela vítima; ou seja,
dá-se independência tanto ao autor quanto à vítima para decidir sobre a possibili-
dade da restauração.

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2 Justiça Restaurativa na esfera penal


Pensar a Justiça Restaurativa na esfera penal é, sobretudo, contraditar o
sistema tradicional retributivo. E, muito embora não se ampare em uma previsão
legal, a Justiça Restaurativa tem importante espaço no constante esforço em des-
judicializar os conflitos. Assim, apesar de ser um conceito ainda absconso, princi-
palmente quando se vislumbra sua aplicação no âmbito penal, apresenta grande
potencial como alternativa ao sistema então vigente.
Dessa forma, com o objetivo de tornar cristalino o significado da Justiça Res-
taurativa, este capítulo destina-se a promover uma abordagem do instituto, trazendo,
dentre outros temas, seus traços caracterizadores, aplicabilidade e procedimento.

2.1 Características do método restaurativo


A Justiça Restaurativa nasce a partir de um modelo contemporâneo de política
criminal, que busca, através dos procedimentos de autocomposição, dar protago-
nismo às partes na resolução dos conflitos. Dessa forma, o intuito é dar aos en-
volvidos, em especial ao ofendido, a oportunidade preliminar de compartilhar seus
anseios e possibilitar, de forma justa e conjunta, a solução do conflito.
Conquanto não exista uma lei que discipline o processo, as Resoluções nº
2002/12, da ONU, e nº 225/16, do CNJ, despontam como os principais diplomas
sobre o tema e permitem, mesmo que de forma prematura, idealizar uma noção
geral sobre o os ideais restaurativos.
Assim, com fulcro nas mencionadas resoluções, a Justiça Restaurativa tem,
em sua concepção, o objetivo de promover o encontro do indivíduo com a sua pró-
pria consciência, em especial da vítima que ostenta a condição de principal inte-
ressada no feito.
Logo, imperioso destacar um relevante extrato da obra de Howard Zehr (2012,
p. 49), que sugere uma definição simples mas compreensível da Justiça Restaurativa:

É um processo para envolver, tanto quanto possível, todos aqueles


que têm interesse em determinada ofensa, num processo que co-
letivamente identifica e trata os danos, necessidades e obrigações
decorrentes da ofensa, a fim de promover o restabelecimento das
pessoas e endireitar as coisas, na medida do possível.

Desse modo, compreende-se a Justiça Restaurativa a partir de um processo


no qual vítima e réu – e, quando possível, outros membros da comunidade, afe-
tados por uma transgressão – participam ativamente da resolução das questões
oriundas da conduta, contando sempre que possível com a ajuda de um terceiro
facilitador, buscando ao final a restauração da situação.

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Em que pese seja possível ter uma noção geral sobre o tema, é bem verdade,
e muito em razão de sua extemporaneidade no direito penal, que ainda se observa
uma carência em relação a uma definição objetiva e sólida sobre a Justiça Restau-
rativa e como seria sua aplicação nos processos criminais. Os conceitos existen-
tes, aliás, são produtos de construções doutrinárias. Nesse sentido, a doutrina
assume um papel fundamental no trabalho de arquitetar o tema.
Nessa temática, importante destacar (SLAKMON; GOMES PINTO, 2005 cita-
dos por HUESO, 2015, p. 45, grifos nossos):

Como é um paradigma novo, o conceito de Justiça Restaurativa ain-


da é algo inconcluso, que só pode ser captado em seu movimento de
construção. Trata-se de um conceito intrinsecamente complexo e aber-
to. Mas podemos avançar em um conceito preliminar, dizendo que ela,
a Justiça Restaurativa, pode ser definida como um procedimento de
consenso, em que a vítima e o infrator, e, quando apropriado, outras
pessoas ou membros da comunidade afetados pelo crime, como su-
jeitos centrais, participam coletiva e ativamente na construção de so-
luções para a restauração dos traumas e perdas causados pelo crime.

Assim, muito embora alguns autores, como os supracitados, se aventurem


no trabalho de construir um conceito para Justiça Restaurativa, é cediço que tal
definição ainda está longe de estar sedimentada. A Justiça Restaurativa, aplica-
da ao direito penal, ainda permanece em constante desenvolvimento e, talvez por
isso, seja tão difícil conceituá-la. Diga-se, “a Justiça Restaurativa não se trata de
um modelo monolítico, mas plural, aberto e em construção”. (ANDRADE, 2016 ci-
tado por CAMARGO, 2017, p. 58).
Desse modo, é mais seguro partir da ideia de que Justiça Restaurativa é um
todo podendo ser compreendida a partir de pressupostos, como a reparação do
dano e a participação ativa das partes envolvidas e interessadas (ofensor, ofendi-
do e membros da comunidade).
A partir desses pressupostos básicos, é possível edificar o processo, no qual
inicialmente devem ser identificadas as necessidades e consequências provenien-
tes dessa conduta e do trauma causado, em especial aquelas externadas pela
vítima, sendo possível assim definir o melhor método de solução, com o objetivo
final de restaurar a situação.
Nessa toada, Howard Zehr (2008 citado por HUESO, 2015, p. 46) vai além,
ao relacionar a Justiça Restaurativa a uma nova perspectiva sobre o crime:

O que a Justiça Restaurativa oferece não é só uma nova prática de


justiça, mas um olhar diferente de crime e um novo objetivo para
a justiça: o crime é visto como uma fonte de prejuízo que deve ser
reparado. Além disso, o dano essencial do crime é a perda da con-
fiança, tanto ao nível interpessoal e social. O que as vítimas e as

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comunidades precisam é ter sua confiança restaurada. A obrigação


fundamental do delinquente é mostrar que são confiáveis. O objetivo
da justiça deve ser incentivar este processo. O objetivo principal da
justiça, então, deveria ser o reestabelecimento da confiança. A ten-
tativa de conseguir isso em ambos os níveis pessoal e social pode
fornecer um guarda-chuva unificador para a nossa resposta ao crime.
Ao invés de substituir outros, os objetivos mais tradicionais, que se
tornaria a principal consideração na sentença, oferecendo razões e
limites para a aplicação das metas, como a incapacitação e punição.

Em outras palavras, é importante entender que, ao implantar esse método,


o enfoque deixa de ser a persecução penal e passa a ser a restauração da situa-
ção. Entretanto, tamanha é a complexidade, que para atingir esse objetivo não
basta somente aplicar os métodos consensuais, mas sim focar no subjetivo, ou
seja, nos anseios do ofensor e ofendido, na reprovação social do delito, de modo
a alcançar uma restauração completa e, sobretudo, despertar um sentimento de
justiça às partes.
Ademais, encorpando essa nova perspectiva no direito penal, Jaccoud (2005,
p. 170) traz uma redefinição do conceito de crime, ressaltando que o crime não é
mais entendido como uma violação contra o Estado, mas sim uma conduta gera-
dora de efeitos e consequências, o qual pode ser resolvido, muitas vezes, a partir
da oitiva do ofendido, das instituições sociais e do próprio ofensor.
A propósito, o que se observa atualmente é uma convergência de pensamentos
sobre a aplicação dos métodos consensuais como uma alternativa à judicialização
dos conflitos. Tanto é verdade, que a restauração das situações vem ganhando
um importante espaço no direito, através da criação de políticas incentivadoras a
esses métodos, instrumentalizando e evoluindo os procedimentos.
Verdade seja dita, para Hueso (2015), diversos projetos encontram-se im-
plantados e apresentam importantes índices de reconciliação e ressocialização,
desafogando o sistema judiciário e agradando muito mais as partes envolvidas.
Destarte, tratar de Justiça Restaurativa no direito penal implica, necessaria-
mente, analisar os princípios sensíveis que norteiam essa esfera do direito, alguns,
inclusive, analisados alhures. Muito porque se deve restaurar apenas até onde for
possível, tendo em vista que há situações em que não poderão ser aplicadas as
diretrizes restaurativas em razão da gravidade do delito.
Assim, excetuando-se as situações mais graves, aplicar métodos restaura-
tivos como alternativa à solução dos conflitos, representa uma grande alternativa
ao sistema retributivo tradicional. Desse modo, a ambiciosa ideia de aplicar ao
direito penal, mormente ao possibilitar a reparação, com protagonismo da vítima,
permite que, nos termos acordados entre as partes, com a devida reparação do
dano ao bem jurídico, possam elas voltar ao convívio social sem ter que enfrentar
um tortuoso processo penal.

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Esse modelo, ainda que absconso, sobrevém como uma alternativa de desafo-
gamento ao Judiciário, pois parte da preocupação da construção de uma sociedade
melhor, que se atenta ao futuro dos indivíduos afetados por uma transgressão e
não apenas em punir fatos pretéritos.

2.2 Justiça Restaurativa X Justiça Retributiva


Nessa temática abordada, se faz importante destacar que a Justiça Restau-
rativa não se confunde com a Justiça Retributiva. Enquanto esta, vigente, apoia-se
no ideal de retribuir o mal praticado, ou seja, de penalizar o infrator como contra-
partida de sua conduta, aquela foi concebida sob a premissa de restaurar a har-
monia social. Isto se deve, mormente, ao fato de uma conduta criminosa não ferir
apenas o bem jurídico protegido pela norma, mas também representar um evento
causador de prejuízos e consequências sociais, ou seja, “[a Justiça Restaurativa]
apoia-se num sistema que reconstrói o paradigma de justiça e não culmina com a
imposição de uma pena irracional” (SILVA, 2007, p. 20).
Dessa forma, diferentemente do método retributivo, em que se olha para
a culpa e para o passado, o ideal restaurativo pensa no futuro, na superação do
ocorrido e na elaboração de propostas de solução, objetivando a restauração do
ocorrido e buscando fomentar os valores de paz social entre os indivíduos.
A propósito, importa destacar que conforme Nucci (2015), em matéria penal,
há lide, que se compreende como uma contenda envolvendo interesses díspares,
no cenário do cometimento do crime. Quando ocorre a transgressão, lesando um
bem jurídico, gera um contraposto interesse de que haja punição. Passa, até então,
ao Estado a responsabilidade de intervenção e aplicação da lei penal.
Nesse caminhar, Howard Zehr (2008) descreve que as instituições e os mé-
todos fazem parte do ciclo vicioso de violência em vez de representar soluções
para ela. Enquanto a Justiça retributiva está focada em reprimir o dano, a Justiça
Restaurativa preocupa-se em reparar o dano. Ainda, para o autor:

A vítima, o infrator e a comunidade se apropriam de significativa parte do


processo decisório, na busca compartilhada de cura e transformação,
mediante uma recontextualização construtiva do conflito, numa vivência
restauradora. O processo atravessa a superficialidade e mergulha fun-
do no conflito, enfatizando as subjetividades envolvidas (ZEHR, 2008,
p. 100).

É bem verdade que não há como elencar o método restaurativo como a grande
solução para os problemas, tampouco romper o modelo retributivo por completo,
tendo em vista que há crimes impossíveis de serem resolvidos pelo viés restaurativo.

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Tiago Luiz Trucollo, Lucas Pichetti Trento

Conforme Silva (2007), através desse sistema, pretende-se melhorar o futuro, pro-
curando uma solução para o problema e formas de evitar que os erros se repitam.
Assim, o uso aliado de mecanismos reconstrutores possibilitaria uma mu-
dança considerável, uma vez que diminuiria a necessidade de atuação do Estado
nos crimes menos graves e, consequentemente, os processos em tramitação nas
varas criminais.

2.3 Aplicabilidade
Muito por ser um modelo audacioso, a aplicação dos métodos consensuais,
através das diretrizes da Justiça Restaurativa, ainda caminha a passos lentos. O
que se observa, no entanto, é uma constante preocupação na desjudicialização
dos conflitos, numa clara tentativa de desafogar o sobrecarregado Poder Judiciário.
O próprio CNJ, como instituição que visa aperfeiçoar o trabalho do sistema
judiciário brasileiro, editou a Resolução nº 225, de 31 de maio de 2016, a qual
estabelece importante marco legal, dispondo sobre a Política Nacional de Justiça
Restaurativa no âmbito do Poder Judiciário, dando-lhe a seguinte definição:

A Justiça Restaurativa constitui-se como um conjunto ordenado e sis-


têmico de princípios, métodos, técnicas e atividades próprias, que
visa à conscientização sobre os fatores relacionais, institucionais e
sociais motivadores de conflitos e violência, e por meio do qual os
conflitos que geram dano, concreto ou abstrato, são solucionados.

No mesmo sentido, a Resolução nº 125, também do CNJ, estimula a prática


dos métodos consensuais e soluções extrajudiciais aos conflitos, nas mais variadas
esferas do direito. O interesse em desjudicializar os conflitos existentes é notório e,
sobretudo, necessário para o Poder Judiciário. Entretanto, malgrado exista a preo-
cupação de aplicação dos métodos autocompositivos, os poucos projetos existen-
tes acabam, muitas vezes, se sustentando com pouco ou nenhum investimento.
Indiscutivelmente, há desconfiança sobre a aplicação dos métodos consen-
suais, em especial a autocomposição no direito penal. No entanto, o procedimento
abarcado pela Justiça Restaurativa não tem aplicação irrestrita. Como já enfatiza-
do, deve ser utilizado nos crimes menos graves, praticados sem violência ou grave
ameaça, por opção das partes, em que o método se mostre eficaz e suficiente para
reprovação e prevenção de novos crimes (HUESO, 2015, p. 47).
A artéria da Justiça Restaurativa carrega o uso do diálogo, a partir da oitiva
das partes, principalmente da vítima, priorizando a sua participação direta ao lon-
go do procedimento restaurativo, visto como principal condão para resolução do
conflito. A propósito, importante reconhecer que, na maioria dos crimes, a principal
interessada é a vítima, que sofreu a violação.

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Justiça Restaurativa: a autocomposição como alternativa à resolução dos conflitos na esfera penal

Aplicando-se esse método, possibilita-se ao autor uma chance de restaurar


a situação e, ao mesmo tempo, conscientizar-se sobre os efeitos da conduta. Isso
tudo evitando-se um tortuoso processo penal.
Destaca-se que a autocomposição tem como objetivos centrais o restabele-
cimento da comunicação entre as partes, a prevenção e o tratamento dos confli-
tos, a reparação do dano material e imaterial e a preocupação com o tratamento
pós-delito (GUERRA, 2017, p. 234).
O desenvolvimento desse método de resolução ocorre a partir da interferên-
cia de um terceiro, com a finalidade de contribuir no diálogo entre as partes. É um
modo de reconstrução e gestão da vida social, graças ao protagonismo dado às
partes, que escolheram de forma voluntária a tentativa de autocomposição, pos-
sibilitando, inclusive, que a partir do diálogo as partes decidam se é possível ou
não restaurar a situação (GUERRA, 2017, p. 215).
Quanto ao procedimento, a Resolução nº 225/16 do Conselho Nacional de
Justiça descreve o método para aplicação no âmbito judicial, destacando, em seu
artigo 7º, a possibilidade de ser encaminhado pelo juiz, de ofício ou a requerimento
das partes, pelos advogados das partes, pela Defensoria Pública, pelo Ministério
Público ou pelos setores de Psicologia e Serviço Social, em qualquer fase do pro-
cesso judicial. Além disso, prevê a possibilidade de a autoridade policial sugerir o
encaminhamento das partes ao procedimento restaurativo antes mesmo da fase
judicial, no momento de confecção do inquérito policial.
A partir desse modelo, em audiência supervisionada pela autoridade judiciá-
ria e na presença do terceiro facilitador, a vítima assume o papel principal, expres-
sando seus anseios e participando ativamente do diálogo com o ofensor sobre os
motivos e circunstâncias dos fatos delitivos, isso com a permissão legal e crivo
do Poder Judiciário.
Nessa linha, esclarece Sica (2008 citado por GUERRA, 2017, p. 219) em
sua obra:

(...) no âmbito penal, a mediação deverá ser submetida a controle


jurisdicional, seja na decisão de enviar o caso à mediação, seja na
aceitação de seu resultado como forma de exclusão da intervenção
penal. Assim, é necessário definir parâmetros de regulação legal,
para que não se torne um procedimento privado de garantias ou uma
forma de privatização do conflito, cuja gerência seria conferida ao
Estado, como espécie de “administração pública de interesses priva-
dos”. Pelo contrário, o controle jurisdicional preserva o caráter público
da demanda, reconhecendo, apenas, a possibilidade de intervenção
direta das partes em sua solução e, ainda, garante o envolvimento
comunitário, ao qual já se fez várias referências pois é, justamente,
o elemento que diferencia a mediação penal de outras mediações.

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Tiago Luiz Trucollo, Lucas Pichetti Trento

Não há, pois, uma grande solução à criminalidade, há, no entanto, uma pos-
sibilidade de resolver os conflitos menos graves, através da aplicação de métodos
consensuais, como a autocomposição, com fulcro no procedimento insculpido na
referida resolução. Isso permitiria, muitas vezes, arquivar processos em seu início,
dando às partes, principalmente ao autor, uma chance para corrigir seu erro e voltar
a viver socialmente, sem o contraste de uma condenação criminal.
O sistema penal brasileiro enfrenta diversos problemas, muitos deles decor-
rentes da superlotação de processos nas varas criminais. Possibilitar uma reso-
lução sem o uso de um vagaroso processo é possibilitar uma nova chance para
vários indivíduos.

2.4 Autocomposição
Os procedimentos de autocomposição são a forma de instrumentalização dos
ideais restaurativos nos processos criminais. Por esse método, o objetivo é chegar
a um acordo neutro entre as partes, na qual um terceiro facilitador conduz o ato,
facilitando a comunicação entre os envolvidos.
Como grande modelo de aplicação da autocomposição nos processos crimi-
nais, a Lei nº 9.099/95, que regulamenta o procedimento adotado nos crimes de
menor potencial ofensivo, tem como regra a realização de audiência preliminar de
conciliação entre as partes, objetivando a resolução consensual, com a possibli-
dade de acordo, nos termos definidos pelas partes.
Aliás, o órgão legiferante recentemente, ao editar a Lei nº 13.964/19, inseriu
o artigo 28-A no Código de Processo Penal (que institui o acordo de não persecução
penal), possibilitando que o Ministério Público ofereça, desde que preenchidos os
requisitos legais, um acordo como alternativa à persecução penal.
Nessa toada, é compreensível que a intenção do legislador, ao editar esse
artigo, foi fomentar a resolução alternativa dos conflitos. Conquanto seja inédito
no direito penal brasileiro, o acordo de não persecução penal representa sobretu-
do uma evolução da transação penal, método utilizado nos crimes de menor po-
tencial ofensivo.
E, nesse caminhar, se o legislador vê como possível a resolução das infrações
penais por meio do oferecimento de um acordo, é compreensível que a expansão
dos métodos consensuais, em especial a autocomposição, deve ser visto como
mais uma alternativa no direito penal.
O Estado, ao monopolizar a solução dos conflitos a partir de um processo
judicial, acabou por receber encargos exaustivos, de forma que a sociedade de-
posita a responsabilidade nele para resolução de todas as condutas, as quais,
muitas vezes, poderiam ser resolvidas entre as partes. No mesmo sentido, Silva
(2007, p. 13) assim aduz:

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Justiça Restaurativa: a autocomposição como alternativa à resolução dos conflitos na esfera penal

De acordo com o modelo penal tradicional, o Estado, através dos per-


sonagens que fazem parte das agências formais de controle social
(Juízes, promotores, delegados, advogados, etc.), subtrai os conflitos
das partes, transformam-nos em casos e as impede de participar di-
retamente da sua solução.

De mais a mais, a autocomposição como método alternativo, traduz a demo-


cratização do Sistema de Justiça, tornando-o mais participativo, com a inclusão das
partes no processo de solução do conflito, podendo, inclusive, ter a participação
dos membros da sociedade e do Ministério Público. Traduz, inclusive, uma nova
noção de subsidiariedade do direito penal, permitindo, dessa forma, a desjudicia-
lização de alguns conflitos.
No mais, ressalta-se que não se trata de algo imperativo, mas de livre deci-
são das partes, que podem optar ou não pelo método restaurativo, ocorrendo uma
relação de igualdade e alteridade, inclusive com o terceiro facilitador.
Portanto, paralelamente, as formas jurisdicionais tradicionais, existem possi-
bilidades alternativas de tratamento dos conflitos, nas quais se atribui legalidade
e protagonismo às partes, com o objetivo de compor o litígio. Não se discute a im-
portância do Judiciário, mas sim uma maneira diversa de tratamento dos conflitos,
a partir da convenção entre as partes.

2.5 Terceiro facilitador


Muito embora no método comum o processo gira em torno das decisões do
magistrado, na Justiça Restaurativa, as partes têm legitimidade para atuar. Há, no
entanto, a figura do terceiro facilitador, o qual não possui papel central na solução
do conflito. Como regra, possui papel secundário, poder de decisão limitado, não
podendo obrigar as partes a resolverem o conflito ou impor decisões. Deve mediá-
-las, com o objetivo de reconciliar os interesses conflitivos, conduzindo para que
construam a melhor solução (GUERRA, 2017, p. 212).
É justamente por ser um espaço democrático que o terceiro facilitador, em
vez de se posicionar em local superior às partes, encontra-se junto a elas, parti-
lhando de um espaço comum, voltado para a construção do consenso, devendo,
sobretudo, dominar técnicas, ter seriedade e definitividade na composição do
conflito, o que deve ser feito por quem detenha conhecimento técnico especifico
(GUERRA, 2017, p. 231).
Malgrado não exista um procedimento padronizado para realização do ato,
entende-se que o procedimento poderá ser conduzido pelo facilitador a partir dos
princípios da oralidade e informalidade, herdados da Lei nº 9099/95. São, aliás,
características presentes nos juizados especiais criminais, por se tratar de um

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Tiago Luiz Trucollo, Lucas Pichetti Trento

processo informal, no qual as partes têm a oportunidade de debater livremente os


seus anseios objetivando a autocomposição.
Assim, fulcrado nesses princípios, o terceiro facilitador não deve se preocu-
par com procedimentos padrões, mas sim ser capaz de externar para as partes
o objetivo do ato, de forma a gerar elementos que permitam aos envolvidos com-
preender o problema, o seu posicionamento em relação a ele e as possíveis alter-
nativas para sua solução.
Conforme leciona Silva (2007), o terceiro tentará fazer com que as partes
estabeleçam um consenso sobre o evento e firmem um acordo restaurador, obje-
tivando, dessa forma, a resolução do conflito, o que antes ficava exclusivamente
ligada a figura do Estado, como grande soberano na resolução dos conflitos.
A propósito, outra característica da autocomposição é o intento de resolver
as pendências através do debate e do consenso, tendo como objetivo final, a res-
tauração das relações entre os envolvidos. Não se pode considerar exitoso o pro-
cesso de autocomposição em que as partes somente acordam um simples termo
de indenização e em que o autor não compreende as consequências da conduta.
Logo, uma das funções do terceiro facilitador é, justamente, fazer com que as par-
tes cheguem a um consenso e que, principalmente, o infrator entenda as conse-
quências de sua conduta para não voltar a delinquir, adequando-se ao tratamento
necessário pós-delito (WART, 2004, apud GUERRA, 2017, p. 234).
Como ressaltado, existe uma tendência à aplicação dos métodos consen-
suais, principalmente de forma inicial, de modo a transformar o método judicial
em subsidiário. Ressalta-se que o terceiro facilitador tem papel fundamental nessa
perspectiva, porque ele pode ajudar, muitas vezes, a formar um resultado antes
que o processo avance, e daí, diante da satisfação das partes, se tem a certeza
do alcance da justiça.

2.6 Delitos abrangidos pela Justiça Restaurativa


Há, por certo, uma grande discussão sobre a abrangência da Justiça Res-
taurativa no direito penal, tendo em vista que o modelo restaurador, ao menos
em uma perspectiva inicial e até mesmo lógica, não pode ser aplicado a todo e
qualquer delito.
A propósito, há consenso que condutas que ferem bens jurídicos sensíveis não
podem ser suscetíveis a restauração, a partir do diálogo com o autor. No entanto,
nos delitos com vítima determinada, praticados sem violência ou grave ameaça à
pessoa e que a autocomposição se mostre como alternativa para a reprovação e
prevenção do crime, podem ser objetos de restauração.

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Justiça Restaurativa: a autocomposição como alternativa à resolução dos conflitos na esfera penal

Os delitos que atingem a coletividade, conhecidos e aqui apontados como


crimes vagos, por não terem uma vítima determinada, obstam também, ao menos
em um primeiro momento, uma possível tentativa de restauração.
Conforme Hueso (2015), para que a restauração seja aplicada, deve prece-
der algo ameno, ou seja, uma conduta praticada sem violência ou grave ameaça
à pessoa, em que a vítima seja individualizada, levando em conta, em todos os
casos, a vontade da vítima na adoção do método restaurativo.
Além disso, a aplicação desse método, a partir da tentativa de autocompo-
sição, deve ser suficiente para reprovação e prevenção de novos crimes, devendo
por essa razão se verificar, de forma preliminar, a voluntariedade das partes em
escolher esse procedimento.
Ainda, segundo Hueso (2015), seria algo próximo ao aplicado nos crimes de
menor potencial ofensivo, albergados pela Lei nº 9099/95. Nos juizados especiais
criminais, tem-se a aplicação da autocomposição para os crimes e contravenções
com pena inferior a dois anos, onde se tem, como regra, a tentativa preliminar de
conciliação entre as partes, com a possibilidade de acordo e transação, objetivan-
do resolver o conflito nos primórdios, antes mesmo de existir um processo formal.
Entretanto, o objetivo é ampliar e aperfeiçoar os métodos já existentes, não
se limitando aos crimes de menor potencial ofensivo, mas aqueles possíveis de
restauração, de modo a solucionar alguns dos conflitos e consequentemente de-
sinchar o Poder Judiciário.
Pontua-se que contumaz exemplos são os crimes em que a vítima sequer
deseja que o réu seja processado, mas sim almeja a reparação do dano, a devolu-
ção de objetos, se for o caso uma indenização proporcional e principalmente que
o autor demonstre que não cometerá tal conduta novamente.

2.7 Indisponibilidade e reserva de jurisdição


Um dos pontos de maior questionamento é, sem dúvida, a possibilidade ou
não de aplicação dos métodos consensuais em crimes que perpassam o menor
potencial ofensivo, como nas ações penais públicas incondicionadas, de titularida-
de do Ministério Público, isso por conta do princípio da indisponibilidade.
Nestes casos específicos, ocorre que o procedimento autocompositivo pode
ser solicitado ou autorizado pelo Ministério Público, como fiscalizador ou titular da
ação penal, sempre respeitando a vontade das partes (GUERRA, 2017, p. 254).
A lacuna legislativa para aplicar esse método ainda é algo a ser superado, é
bem verdade que uma base legal traria maior segurança jurídica ao procedimento,
ainda mais considerando que na tendência dos países que adotam o civil law, vê-se
a necessidade de todos os procedimentos serem positivados, sendo comum uma
certa resistência, por parte da maioria dos operadores do direito, em aplicar um

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Tiago Luiz Trucollo, Lucas Pichetti Trento

novo procedimento. No entanto, apesar da inexistência de positivação, a partir da


hermenêutica constitucional e leis já existentes, se vê como possível a aplicação
desse novo procedimento (GUERRA, 2017, p. 253).
No Brasil, se destacam a já conhecida Lei nº 9.099/1995, que regulamenta a
formalização de autocomposições no processo penal brasileiro, abrangendo os cri-
mes de menor potencial ofensivo e, cumulativamente, a recente Lei n º 13.964/19,
que inseriu o artigo 28-A no Código de Processo Penal (que institui o acordo de
não persecução penal), possibilitando que o Ministério Público ofereça, desde que
preenchidos os requisitos legais, um acordo como alternativa à persecução penal,
regulamentando, dessa forma, a formalização de acordos no processo penal bra-
sileiro (GUERRA, 2017, p. 253).
A propósito, sobre o procedimento adotado nos juizados especiais criminais,
aduz Silva (2007):

Assim, uma importante inovação propiciada pela nova sistemática


dos Juizados Especiais Criminais foi a introdução na nossa ordem
jurídica do princípio da discricionariedade regrada, que significa que,
excepcionalmente, pode o Ministério Público dispor da persecução
criminal para propor medidas alternativas, rompendo com a rigidez do
princípio da indisponibilidade da ação penal.

É por meio desses comandos legais e preceitos constitucionais, que se pode


extrair alguma fundamentação para aplicação imediata dos institutos alternativos
de autocomposição no processo penal.
Aliás, ainda sobre a atuação do Ministério Público, verifica-se que é essen-
cial para adoção do procedimento consensual, visto que se trata do titular da ação
penal. Isto é, cabe ao parquet analisar a natureza da infração, as consequências
da conduta e condição pessoal da vítima, para, então, concluir pela adequação ao
método restaurativo, através da autocomposição. Nesse caminhar, o membro do
Ministério Público atuaria regido pelo princípio da liberdade regrada, e, portanto,
não haveria qualquer impedimento legal para a sua aplicação.

2.8 Efeitos materiais e formais


De outro norte, ainda discute-se os efeitos penais e processuais da aplicação
da autocomposição, através dos métodos restaurativos. Nesse caminhar, leciona
Baldan (2013, citado por HUESO, 2015, p. 53):

(...) a instauração de práticas restaurativas no pensar e no atuar do


sistema de justiça criminal não configura qualquer favor ao delinquen-
te, mas sim uma tomada de posição em busca de uma finalidade

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Justiça Restaurativa: a autocomposição como alternativa à resolução dos conflitos na esfera penal

racional – e não patológica e emocional – do exercício do direito de


punir estatal.

Nos casos de descumprimento do acordado ou, mesmo, havendo impossi-


bilidade no estabelecimento de cláusulas para a restauração, retoma-se o curso
normal do processo.
Por outro lado, verificado o cumprimento integral das cláusulas, bem como
a restauração da situação, consequentemente haveria a extinção da punibilidade
e arquivamento do processo. Ressalta-se que, enquanto o acordo estiver sendo
cumprido, deverá ser suspenso o prazo prescricional para afastar qualquer tenta-
tiva de macular o processo restaurativo.

3 Justiça Restaurativa: a autocomposição como alternativa à


resolução dos conflitos na esfera penal
Em que pese não conserve um diploma que discipline o procedimento de
aplicação, a Justiça Restaurativa encontra amparo em princípios já estabelecidos
no direito penal, expostos alhures, assim como em resoluções que delimitam a
abrangência da aplicação desse método. Os projetos já aplicados, a propósito,
mostram resultados convidativos no plano de restaurar, fomentando para a expan-
são de outros projetos com a essência restaurativa.

3.1 Projetos de aplicação da Justiça Restaurativa na esfera


penal
Tecidas as considerações sobre a Justiça Restaurativa, pertinente trazer à
baila alguns projetos de aplicação da autocomposição que foram empregados de
forma prática, isto é, na rotina do judiciário brasileiro, como forma de resolução
de conflitos existentes.
Destaca-se que os projetos foram aplicados em diversos pontos do território
nacional, observando e adequando-se às realidades locais.
Destaca-se, de início, o Projeto Justiça para o século 21 que foi aplicado jun-
to ao Juizado da infância e da juventude da Comarca de Porto Alegre-RS. Referido
projeto tomou forma através da Resolução nº 822/2010, do Conselho de Magistra-
tura (COMAG), o qual estabeleceu as regras de aplicação da Justiça Restaurativa.
A atividade é monitorada pela Corregedoria Geral da Justiça, mediante a remessa
de relatórios que indicam a quantidade de feitos atendidos, a espécie dos atos in-
fracionais, número de acordos obtidos, número de acordos cumpridos e, senão o
mais importante, o grau de satisfação das partes. Além do mais, destaca-se que

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Tiago Luiz Trucollo, Lucas Pichetti Trento

a incorporação de conceitos nessa vara, uma das pioneiras em práticas restaura-


tivas, foi fundamental para o aporte de instituições e sistematização de uma nova
ação pró-ativa, que serviu de modelo para projetos que se multiplicam pelo Brasil
(HUESO, 2015, p. 79).
De mais a mais, outro projeto que apresentou resultados convidativos foram
os Núcleos Especiais Criminais pertencentes à Polícia do Estado de São Paulo
(NECRIM), cuja primeira experiência ocorreu no ano de 2003. Ganhando força a
partir de 2009, sobretudo na região de Bauru e Lins, se destacando com função
especializada em resolução de pequenos conflitos, objetivando a resolução de
crimes de menor potencial ofensivo ainda na fase policial. Nos procedimentos do
NECRIM, a mediação é feita ainda na fase policial através de audiências concilia-
doras, formalizando o denominado Termo de Composição Preliminar, passando
após pela apreciação do Ministério Público e homologação, ou não, pelo magistra-
do (HUESO, 2015, p. 85).
Ainda, convém destacar, outros projetos que demonstraram resultados satis-
fatórios: Belo Horizonte-MG (Projeto Mediar, 2006); Santana-SP (Projeto Experimen-
tal Cantaneira de Mediação Penal Interdisciplinar, 2005); Campinas-SP (“Justiça e
Educação – Novas Perspectivas”, 2008); Joinville-SC (“Projeto Mediação”, 2003);
Heliópolis e Guarulhos-SP (“Projeto Justiça e Educação em Heliópolis e Guarulhos:
Parceria para a Cidadania”, 2006); São Caetano do Sul-SP (“Justiça, Educação e
Comunidade: Parcerias para a Cidadania”, 2005); Brasília-DF (Projeto no Juizado
Especial Criminal do Núcleo de Bandeirante, 2005); Porto Alegre-RS, (“Promovendo
Práticas Restaurativas no Sistema de Justiça Brasileiro”, 2005) (BORGES; PRU-
DENTE, 2012, p. 184).
Assim, embora o procedimento restaurativo não esteja sedimentado em um
diploma legal, os vários projetos aplicados na prática, em conformidade com as
realidades locais, apresentam resultados convidativos, vangloriando a importância
que os ideias restaurativos representam no meio social e, sobretudo, demonstran-
do que é possível aplicá-los em delitos de natureza penal.

4 Conclusão
Como ponderado na presente pesquisa, a Justiça Restaurativa ergue-se como
alternativa à resolução dos conflitos em várias esferas do direito, baseada na má-
xima de restaurar. Em conformidade, sua aplicação em âmbito penal está condi-
cionada a análise das circunstâncias do delito, sobretudo do bem jurídico tutelado,
tendo em vista que se deve restaurar somente até onde for possível.
A Justiça Restaurativa vem estruturada a partir do ideal de consenso, em
que as partes assumem o papel de sujeitos centrais, participando de forma ativa

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Justiça Restaurativa: a autocomposição como alternativa à resolução dos conflitos na esfera penal

e coletiva na construção da solução do conflito, objetivando restaurar as conse-


quências causadas pelo crime.
O processo restaurativo, embora não esteja positivado no ordenamento ju-
rídico, encontra amparo principalmente a partir de resoluções e princípios, não
implicando violação a direitos ou garantias individuais das partes submetidas a
esse procedimento e não demandando de modelos pré-definidos, possibilitando,
assim, a sua aplicação.
Dessa forma, ao fomentar a utilização de métodos alternativos, inclusive em
âmbito penal, se oportuniza às partes um maior protagonismo, culminando, por
consequência, em uma menor ingerência do Estado nas relações humanas, pos-
sibilitando a restauração pelas partes.
A propósito, essa preocupação em tutelar os bens jurídicos sensíveis, de
igual forma resta protegido, tendo em vista que determinados delitos não deverão
ser submetidos aos métodos restaurativos, classificando-os conforme as circuns-
tâncias que foram cometidos e a vontade das partes em se submeter ao processo
de restauração.
No que tange à possibilidade de a Justiça Restaurativa ser incluída no sis-
tema penal, igualmente, restou concluído que prescinde alteração legislativa para
possibilitar sua aplicação. É evidente, no entanto, que uma futura normatização
do processo pelo órgão legiferante traria maior segurança na aplicação do método.
Em relação ao discutido, se os ideais restaurativos poderiam ser inseridos
no Sistema de Justiça brasileiro, a resposta vem a partir da análise dos projetos
já aplicados em território nacional, como o Projeto Justiça para o século 21 e o
NECRIM, que demonstraram resultados convidativos e que amparam o crescimento
de outros tantos projetos que visam melhorar a prestação jurisdicional.
Portanto, conclui-se que a autocomposição, fundamentada nos princípios da
Justiça Restaurativa, representa uma alternativa para a resolução dos conflitos na
esfera penal. Sendo possível a inserção de práticas restaurativas no Sistema de
Justiça brasileiro e, como consequência, diminuindo a necessidade de intervenção
estatal na resolução dos conflitos, dando às partes o protagonismo e almejando
o alcance de um verdadeiro significado de Justiça para todos.

Abstract: Self-composition, based on the principles of restorative justice, stands as an possible


alternative to conflict resolution in the criminal sphere. Thus, from the ideals of repair and regeneration,
the applicability of the restoration process in criminal proceedings will be investigated. Therefore, using
the deductive method as a research method, emphasis will be placed on qualitative research. The
work, in turn, was developed in three parts, the first reporting the national policy of restorative justice;
the second exposes restorative justice and its possible application in the criminal sphere and the
third introduces projects for the application of restorative justice in the criminal sphere. Finally, it was
concluded that if there is possibility and plausibility, the restorative process can be applied in the criminal

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Tiago Luiz Trucollo, Lucas Pichetti Trento

sphere, governed by the protagonism of the parties and, as a consequence, expanding the horizons of
self-composition applied to criminal law.
Keywords: Criminal law. Restorative Justice. Self-composition. Conflict.

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Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2018 da Associação


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TRUCOLLO, Tiago Luiz; TRENTO, Lucas Pichetti. Justiça Restaurativa: a au-


tocomposição como alternativa à resolução dos conflitos na esfera penal.
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p. 207-229, jan./jun. 2023.

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