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Resumo: A autocomposição, fundamentada nos princípios da Justiça Restaurativa, ergue-se como uma
possível alternativa à resolução dos conflitos na esfera penal. Assim, averiguar-se-á a partir dos ideais
de reparação e regeneração a aplicabilidade do processo de restauração no bojo dos processos penais.
Para tanto, utilizando-se o método dedutivo como método de pesquisa, se dará ênfase à pesquisa
qualitativa. O trabalho, por seu turno, foi desenvolvido em três partes, a primeira relatando a política
nacional de Justiça Restaurativa; a segunda expõe a Justiça Restaurativa e sua possível aplicação na
esfera penal e a terceira aduz projetos de aplicação da Justiça Restaurativa em âmbito penal. Por fim,
chegou-se à conclusão de que, havendo possibilidade e plausibilidade, o processo restaurativo poderá
ser aplicado na esfera penal, regendo-se pelo protagonismo das partes e, como consequência, ampliando
os horizontes da autocomposição aplicada ao direito penal.
Palavras-chave: Direito penal. Justiça Restaurativa. Autocomposição. Conflito.
Introdução
O controle do Estado sobre as relações humanas é inevitável para a regula-
ção social. E quando se pensa em transgressões de normas penais a ingerência
estatal passa a ser ainda maior. Diante disso, resplandece saber a possibilidade,
ou não, de aplicação de métodos alternativos, em especial a autocomposição, para
a resolução dos conflitos na esfera penal.
Diante disso, tem-se o questionamento acerca de a possibilidade da Justiça
Restaurativa, aplicada mediante procedimentos de autocomposição, ser utilizada
como meio para solucionar os conflitos na esfera penal.
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Ontário, no Canadá. Esses projetos comunitários tinham como objetivo mediar con-
flitos entre ofendidos e ofensores após a sentença” (BRAITHWAITE, 2002 citado
por CAMARGO, 2017, p. 55).
As experiências observadas ao longo do tempo, tornam possível, mesmo que
de forma tenra, compreender alguns ideais da Justiça Restaurativa, principalmente
ao perceber sua capacidade de mutabilidade e adequação conforme o meio em
que está inserida, estando, portanto, em constante construção, sem perder a es-
sência que é restaurar.
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Para Nucci (2015), fosse o direito penal a primeira opção do legislador para
o tratamento de conflitos, estar-se-ia vulgarizando a força estatal, privilegiando a
brutalidade, aplicando-se a todos os conflitos a reprimenda máxima. Por muito ló-
gico, essa máxima não vigora no ordenamento jurídico.
Como se sabe, de uma situação fática podem advir responsabilidades de
ordem civil, administrativa ou penal, apuradas conforme procedimentos próprios e
compatíveis com a respectiva natureza da infração. Nesse ínterim, o Estado deve
sustentar o controle social através das sanções penais, apenas quando outras
sanções, de diferentes naturezas, não possam solucionar a situação.
Logo, o princípio da intervenção mínima é o apontador desses limites, per-
mitindo que o costume atue como reparador da ânsia legislativa crescente e, em
lugar de editar novas figuras delitivas, promova o esvaziamento do direito penal
brasileiro (NUCCI, 2015, p. 142).
Dessa forma, o princípio da intervenção mínima pode ser entendido como
uma abstenção do direito penal tanto em intervir em determinadas situações como
também em intervir como último argumento, ou seja, de forma subsidiária.
Em sintonia, a Justiça Restaurativa caminha na mesma trilha, uma vez que
a resolução de determinados crimes, de menor complexidade, podem ser supe-
rados através dos métodos restaurativos. Nessa perspectiva, as vertentes de in-
tervenção mínima podem orientar o legislador no momento de seleção dos bens
jurídicos passíveis de tutela por outros meios, incluindo aqueles passíveis ao pro-
cesso de restauração.
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Em que pese seja possível ter uma noção geral sobre o tema, é bem verdade,
e muito em razão de sua extemporaneidade no direito penal, que ainda se observa
uma carência em relação a uma definição objetiva e sólida sobre a Justiça Restau-
rativa e como seria sua aplicação nos processos criminais. Os conceitos existen-
tes, aliás, são produtos de construções doutrinárias. Nesse sentido, a doutrina
assume um papel fundamental no trabalho de arquitetar o tema.
Nessa temática, importante destacar (SLAKMON; GOMES PINTO, 2005 cita-
dos por HUESO, 2015, p. 45, grifos nossos):
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Esse modelo, ainda que absconso, sobrevém como uma alternativa de desafo-
gamento ao Judiciário, pois parte da preocupação da construção de uma sociedade
melhor, que se atenta ao futuro dos indivíduos afetados por uma transgressão e
não apenas em punir fatos pretéritos.
É bem verdade que não há como elencar o método restaurativo como a grande
solução para os problemas, tampouco romper o modelo retributivo por completo,
tendo em vista que há crimes impossíveis de serem resolvidos pelo viés restaurativo.
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Conforme Silva (2007), através desse sistema, pretende-se melhorar o futuro, pro-
curando uma solução para o problema e formas de evitar que os erros se repitam.
Assim, o uso aliado de mecanismos reconstrutores possibilitaria uma mu-
dança considerável, uma vez que diminuiria a necessidade de atuação do Estado
nos crimes menos graves e, consequentemente, os processos em tramitação nas
varas criminais.
2.3 Aplicabilidade
Muito por ser um modelo audacioso, a aplicação dos métodos consensuais,
através das diretrizes da Justiça Restaurativa, ainda caminha a passos lentos. O
que se observa, no entanto, é uma constante preocupação na desjudicialização
dos conflitos, numa clara tentativa de desafogar o sobrecarregado Poder Judiciário.
O próprio CNJ, como instituição que visa aperfeiçoar o trabalho do sistema
judiciário brasileiro, editou a Resolução nº 225, de 31 de maio de 2016, a qual
estabelece importante marco legal, dispondo sobre a Política Nacional de Justiça
Restaurativa no âmbito do Poder Judiciário, dando-lhe a seguinte definição:
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Não há, pois, uma grande solução à criminalidade, há, no entanto, uma pos-
sibilidade de resolver os conflitos menos graves, através da aplicação de métodos
consensuais, como a autocomposição, com fulcro no procedimento insculpido na
referida resolução. Isso permitiria, muitas vezes, arquivar processos em seu início,
dando às partes, principalmente ao autor, uma chance para corrigir seu erro e voltar
a viver socialmente, sem o contraste de uma condenação criminal.
O sistema penal brasileiro enfrenta diversos problemas, muitos deles decor-
rentes da superlotação de processos nas varas criminais. Possibilitar uma reso-
lução sem o uso de um vagaroso processo é possibilitar uma nova chance para
vários indivíduos.
2.4 Autocomposição
Os procedimentos de autocomposição são a forma de instrumentalização dos
ideais restaurativos nos processos criminais. Por esse método, o objetivo é chegar
a um acordo neutro entre as partes, na qual um terceiro facilitador conduz o ato,
facilitando a comunicação entre os envolvidos.
Como grande modelo de aplicação da autocomposição nos processos crimi-
nais, a Lei nº 9.099/95, que regulamenta o procedimento adotado nos crimes de
menor potencial ofensivo, tem como regra a realização de audiência preliminar de
conciliação entre as partes, objetivando a resolução consensual, com a possibli-
dade de acordo, nos termos definidos pelas partes.
Aliás, o órgão legiferante recentemente, ao editar a Lei nº 13.964/19, inseriu
o artigo 28-A no Código de Processo Penal (que institui o acordo de não persecução
penal), possibilitando que o Ministério Público ofereça, desde que preenchidos os
requisitos legais, um acordo como alternativa à persecução penal.
Nessa toada, é compreensível que a intenção do legislador, ao editar esse
artigo, foi fomentar a resolução alternativa dos conflitos. Conquanto seja inédito
no direito penal brasileiro, o acordo de não persecução penal representa sobretu-
do uma evolução da transação penal, método utilizado nos crimes de menor po-
tencial ofensivo.
E, nesse caminhar, se o legislador vê como possível a resolução das infrações
penais por meio do oferecimento de um acordo, é compreensível que a expansão
dos métodos consensuais, em especial a autocomposição, deve ser visto como
mais uma alternativa no direito penal.
O Estado, ao monopolizar a solução dos conflitos a partir de um processo
judicial, acabou por receber encargos exaustivos, de forma que a sociedade de-
posita a responsabilidade nele para resolução de todas as condutas, as quais,
muitas vezes, poderiam ser resolvidas entre as partes. No mesmo sentido, Silva
(2007, p. 13) assim aduz:
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4 Conclusão
Como ponderado na presente pesquisa, a Justiça Restaurativa ergue-se como
alternativa à resolução dos conflitos em várias esferas do direito, baseada na má-
xima de restaurar. Em conformidade, sua aplicação em âmbito penal está condi-
cionada a análise das circunstâncias do delito, sobretudo do bem jurídico tutelado,
tendo em vista que se deve restaurar somente até onde for possível.
A Justiça Restaurativa vem estruturada a partir do ideal de consenso, em
que as partes assumem o papel de sujeitos centrais, participando de forma ativa
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sphere, governed by the protagonism of the parties and, as a consequence, expanding the horizons of
self-composition applied to criminal law.
Keywords: Criminal law. Restorative Justice. Self-composition. Conflict.
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