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CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA

CRISTOVAM DIONÍSIO DE BARROS

AUTOR

OS EFEITOS SECUNDÁRIOS DA CONDENAÇÃO PENAL


E O ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA DA UNIÃO
Belo Horizonte
2009

CRISTOVAM DIONÍSIO DE BARROS

OS EFEITOS SECUNDÁRIOS DA CONDENAÇÃO PENAL


E O ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA DA UNIÃO
Monografia apresentada ao curso de
Direito do Centro Universitário Newton
Paiva Ferreira, como requisito parcial para
a obtenção do certificado de bacharelado
em Direito.

Professor Orientador: Ronaldo Passos


Braga.

BELO HORIZONTE
2009
Catalogação na fonte – Biblioteca do Centro Universitário Newton Paiva

Dionísio, Cristovam de Barros


Os efeitos secundários da condenação penal e o enriquecimento sem causa
da União
Cristovam Dionísio de Barros; Orientador: Ronaldo Passos Braga – 2009
Monografia – Centro Universitário Newton Paiva
Curso de bacharelado em Direito
1. Direito Penal. 2. Direito Administrativo. 3. Direito Tributário.

CRISTOVAM DIONÍSIO DE BARROS

OS EFEITOS SECUNDÁRIOS DA CONDENAÇÃO PENAL


E O ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA DA UNIÃO

BANCA JULGADORA

MONOGRAFIA PARA OBTENÇÃO DE BACHARELADO EM DIREITO


__________________________________________
Presidente e Orientador Prof. Dr. Ronaldo Braga
Centro Universitário Newton Paiva

___________________________________________
1º Titular

________________________________________
2º Titular

Data de aprovação: Belo Horizonte, 23 de novembro de 2009.


DEDICATÓRIA

Dedico esta monografia ao meu filho José


Carlos razão do meu viver.
Dedico também a Yeda, mulher de notável
dedicação a família e a Justiça, presente na
minha vida, onde encontrei amor e carinho e
uma nova razão de ser, sem a qual nada disso
seria possível, inclusive pela gentil revisão
desse trabalho.
À Professora Graça Ribeiro que contribuiu
com o meu ingresso na carreira jurídica.
À Wilton com quem sempre pude contar.
À Luziene Medeiros, Timóteo Lima, Carlos
Alexandre, Luiz Henrique e Pedro onde
sempre encontrei apoio e palavras de
esperança, especialmente pela compreensão da
minha ausência durante esses últimos meses.
À Daniel Athias pela boa amizade.
Aos meus irmãos pela distância e a minha mãe
por me ensinar que a fé em Deus é invencível
e ao meu pai por ter me instruído que o
homem é tudo aquilo que ele deseja ser.
Às minhas colegas Jandaira Cardoso, Juliana
Magioni, Camila Fabbri, Larisse Tavares,
Carol Calzabara, Larissa Lima e Mary Helen.
Aos Professores Jean Carlos Fernandes e
Gustavo Costa Nassif que me acolheram e me
ajudaram na carreira acadêmica.
Ao Advogado Cal Garcia Filho exemplo de
virtude, honestidade e crença na Justiça a ser
seguido por cada um de nós.
Aos Advogados de coração João dos Santos
Gomes Filho, Soraya dos Santos Pereira, Selita
Maria Souza Garcia, José Ari Matos, Eduardo
de Vilhena Toledo, Cristiane Paraskevi Kollia,
Letícia Severo Soares e Francisco de Assis do
Rego, abnegados pelo Direito.
À Matheus Raddi pelo empenho e dedicação
às atividades jurídicas.
Queria Agradecer a todos aqueles que de
alguma forma contribuíram para o meu
percurso pessoal e para minha formação
intelectual para que eu chegasse até aqui.
Às memórias dos saudosos e festejados
Professores Cal Garcia e Ruy Barbosa, por me
apresentarem ao Direito e mostrarem que
ninguém rouba o saber jurídico e que diziam:
nada é impossível, pois “quando não
encontrar a solução no livro, vá à capa que
você encontra”, suas palavras ainda ressoam, e
constituem um legado precioso de inspiração
permanente para todos os que crêem no
Direito, e têm necessidade de justiça!
AGRADECIMENTOS

Agradeço ao meu Orientador,


Professor Mestre Ronaldo Passos Braga e aos
meus amigos Professores Rogério Machado
Flores Pereira e Júlio César Faria Zini pelas
idéias discutidas durante a elaboração do
trabalho e aos demais Professores da UNITRI,
Helen Solis, Luciana Bernadelli, Gustavo
Martins de Sá, Gil Mesquita, Karlos Alves,
bem como aos Professores da Newton Paiva,
Bernardo Câmera, Leandro Henrique, Amaury
Soier, Tatiana Ribeiro, Ricardo Boson e
Joaquim Lorendz pela dedicação e paciência
com que sempre procuraram responder as
minhas indagações e inquietações do Direito.
Aliás, foram muitas, pois é na academia que se
instaura e trava o verdadeiro conhecimento
cientifico imprescindível para explicar as suas
afirmações e estabelecer sua verificação, com
a promoção do Direito, tendo como norte,
realizar Justiça.
NOTA DO ALUNO

Este é um trabalho em curso, sobre a


minha compreensão do Direito, que tem como
ponto central realizar justiça. Por isso, a
minha preocupação com os efeitos secundários
da condenação penal, pois, “parece incrível
que homens destinados ao equilíbrio e à
serenidade percam, não poucas vezes, o
referencial ético que normalmente norteia sua
conduta – pois cuidam do julgamento do
comportamento humano -, para deixarem se
levar pela emoção produzida pelo caso
concreto. Ou, pior ainda, pela comoção
causada pelas condutas desviantes de muitos
dos membros da sociedade, das quais,
certamente, esses mesmos julgadores,
enquanto membros dessa mesma sociedade, na
qual circulam, tanto quanto seus parentes e
amigos, têm tudo para virem, tanto quanto
seus familiares e amigos, cedo ou tarde, a ser
vítimas1”. Forrado dessas idéias, foi que
escrevi essa monografia e trilhe o caminho da
pesquisa.

1
- SUANNES, Adauto. Os Fundamentos Éticos do Devido Processo Penal. São Paulo: RT, 1999, pág.
33.
A justiça existe, é preciso que exista, quero
que exista. Vocês, juízes, têm de me ouvir.
Deixemos os astros em seu céu, ajudemo-nos
entre nós, aqui na terra, a mitigar de perto,
com um pouco de justiça humana, a injustiça
distante e impassível das estrelas2.

2
- CALAMANDREI, Piero. Eles, os Juízes, vistos por um advogado. São Paulo: Martins Afonso, 2000,
p. 16.
RESUMO

Trata-se da análise dos efeitos secundários da condenação penal, inseridos no art.


91, II, “b” do Código Penal, como sanção penal, a perda dos bens e valores auferidos pelo
infrator, com a prática do crime, para fins de reparação do dano. Delimitou-se o tema, na
hipótese de condenação pela prática do crime previsto no art. 1º da Lei 8.137/90 contra a
União Federal. Analisando a perda dos bens e valores à luz dos princípios da capacidade
econômica, da proporcionalidade, da razoabilidade, do enriquecimento sem causa e da função
social da pena e, uma vez reconhecidos que esses bens foram adquiridos com a prática do fato
criminoso, e declarada a sua perda em sentença penal condenatória em favor da União,
surgem diversos questionamentos, dentre outros, se é possível compensar o valor do confisco
no âmbito da esfera administrativa e, conseqüentemente, se a não compensação incorreria em
abuso e desvio de poder da União. Será apresentada a diferença entre confisco e pena de
perdimento, tecendo considerações sobre o art. 85, III, da Lei 91.030/85. E, por serem esses
os objetos de análises dessa pesquisa, será indagado: se é possível compensar os valores
percebidos pela União decorrentes de confisco no âmbito da esfera penal a título de tornar
certa a obrigação de indenizar o dano causado pelo crime. Surgem mais questionamentos, no
sentido de saber se a compensação do confisco pode funcionar como fato modificativo ou
extintivo do direito da União exigir o crédito tributário nos exatos termos do art. 326 do CPC
c/c §1º, do art. 45, do CP, bem assim, como causa de extinção da punibilidade. Será indagado,
também: se é possível cumular a sanção da perda de bens e valores com a pena privativa de
liberdade após a introdução da Lei 9.714/98 que alterou o art. 43, II, do Código Penal. Será
averiguado, ainda: se a perda de bens e valores é a própria pena restritiva de direitos ou é
mero efeito secundário da condenação penal. Serão analisados os efeitos da pena privativa de
liberdade, o sistema carcerário, os objetivos das Regras de Tóquio e a necessidade de soluções
alternativas à prisão, visando à redução do número de reclusos e a reinserção social dos
delinqüentes e a sobrevivência da família como base da sociedade.

Palavras-chave: Perda de Bens e Valores, Efeitos Secundários da Condenação Penal,


Confisco, Princípios da Capacidade Econômica, da Proporcionalidade, da Razoabilidade, do
Enriquecimento Sem Causa, da Função Social da Pena. Pena de Perdimento e Confisco. As
Regras de Tóquio. Pena Restritiva de Direito. Pena Privativa de Liberdade.
ABSTRACT

THE SECONDARY EFFECTS OF THE PENAL CONDEMNATION


AND THE CAUSELESS ENRICHMENT OF THE UNION

The present dissertation the analysis of the secondary effects of the penal
condemnation, inserted in the art. 91, II, b, of the penal code, as penal sanction, the loss of the
goods and values gained by the offender, with the practice of the crime, for ends of repair of
the damage. The theme was delimited, in the condemnation hypothesis for the practice of the
crime foreseen in the art. 1st of the Law 8.137/90 against the Federal Union. Analyzing the
loss of the goods and values to the light of the beginnings of the economical capacity, of the
proportionality, of the reasonable, of the causeless enrichment and of the social function of
the feather and, once recognized that those goods were acquired with the practice of the
criminal fact, and declared your loss in condemnatory penal sentence in favor of the Union,
several question appear, among other, if it is possible to compensate the value of the
confiscation in the ambit of the administrative sphere and, consequently, if the non
compensation would incur in abuse and deviation of power of the Union. More question
appear, in the sense of knowing the compensation of the confiscation can work as fact modify
or extinction of the right of the Union to demand the tributary credit in the exact ones we have
of the art. 326 of CPC c/c §1st, of the art. 45, of CP, well like this, as cause of extinction of
the punishment. It will be investigated, still: if it is possible accumulate the sanction of loss of
goods and values with the private feather of the freedom after the introduction of the Law
9.714/98 that altered the art. 43, II, of the penal code. It will be discovered, still: if the loss of
goods and values are the own restrictive feather of rights or it is mere secondary effect of the
penal condemnation. The effects of the private feather of freedom will be analyzed, the prison
system, the objectives of the Rules of Tokyo and the need of alternative solutions to the
prison, seeking to the reduction of the number of recluse and the criminals' social to reinsert
and the survival of the family as base of the society.

Key-words: Loss of Goods and Values, causeless Enrichment of the Union, Secondary
Effects of the Penal Condemnation, I Confiscate, Beginning’s of the Economical Capacity, of
the Proportionality and of Reasonable, of the causeless Enrichment, of the Social Function of
the Feather. Feather of loss and Confiscation. The Rules of Tokyo.
LISTA DE ABREVIATURAS

ac. – acórdão
Ap – Apelação
art. – artigo
CPC – Código de Processo Civil
c/c – combinado com
CC – Código Civil
CF – Constituição Federal
cf. - conforme
DJE – Diário Oficial da Justiça do Estado
DJU – Diário Oficial da Justiça da União
DL – decreto-lei
DOE – Diário Oficial do Estado
DOU – Diário Oficial da União
ed. – edição
EC – Emenda Constitucional
LJE – Lei dos juizados Especiais estaduais (L 9099/95)
LR – Lei dos Recursos (L 8038/90)
PEC –Projeto de Emenda Constitucional
PL – Projeto de Lei
RE – recurso extraordinário
REsp – recurso especial
RISTF – Regimento Interno do Superior Tribunal de Justiça
STF – Supremo Tribunal Federal
STJ – Superior Tribunal de Justiça
TJ – Tribunal de Justiça
trad. – tradutor
TRF – Tribunal Regional Federal
Ujur – uniformização da jurisprudência
Un. – unânime
v.u. – votação unânime
SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO........................................................................................15
1. TEMA 16
1.1 PROBLEMA 16
1.2 Objetivo geral 18
1.3 Objetivos específicos 18
1.4 JUSTIFICATIVA 18
1.5 HIPÓTESES 19
1.6 METODOLOGIA 20
1.7 MARCO TEÓRICO 20

2 RELATIVIZAÇÃO DOS DIREITOS...................................................21

2.1 A PERDA DOS BENS OU VALORES..................................................22

3 DISTINÇÕES ENTRE REGRAS E PRINCÍPIOS..............................24

3.1 PRINCÍPIOS DA PROPORCIONALIDADE E RAZOABILIDADE26

4 CONFISCO E PENA DE PERDIMENTO............................................28

4.1 NATUREZA JURÍDICA DO CONFISCO E DO TRIBUTO.............31

5 ABUSO E DESVIO DE PODER............................................................43

6 MUTAÇÃO NA INTERPRETAÇÃO DAS LEIS................................45

7 EVOLUÇÃO HISTÓRICA DA PENA NO BRASIL...........................49

8 REGRAS DE TÓQUIO...........................................................................51

8.1 O BRASIL E AS REGRAS DE TÓQUIO.............................................66

9 CARÁTER AUTÔNOMO E SUBSTITUTIVO ...................................69

9.1 PERDA DE BENS E VALORES É A PRÓPRIA PENA.....................70

10 PRINCÍPIO DO ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA.......................73

10.1 PRINCÍPIO DA CAPACIDADE ECONÔMICA.................................75

10.2 PRINCÍPIO DA FUNÇÃO SOCIAL DA PENA..................................76

11 CONCLUSÃO..........................................................................................80

REFERÊNCIAS............................................................................................................
15

86
INTRODUÇÃO

O presente tema exsurge do interesse em estudar a inovação no direito penal


vigente, introduzida pela Lei 8.137/90 e a perda dos bens em favor da União como efeito
secundário da condenação penal, tornar certa a obrigação de indenizar o dano causado pelo
crime (art. 91, II, “b” do Código Penal).
Assim, a Legislação Especial vigente, atendendo aos anseios sociais, evoluiu
grandemente nesse campo, inserindo a relevante figura da redução ou supressão do tributo ou
contribuição social e qualquer acessório, em seu art. 1º da Lei 8.137/90, que será objeto de
análise, como elemento integrante e indispensável do tipo penal, cujo produto ou qualquer
bem ou valor que constitua proveito da redução ou supressão do tributo com a prática do fato
criminoso, será perdido em favor da União, ressalvado o direito de terceiro de boa-fé.
Delimitou-se o tema na hipótese da perda de bem em favor da União, como efeito
secundário da condenação penal pelo crime contra a ordem tributária, sendo que permanece
inalterado o mesmo crédito fiscal na esfera administrativa que embasou a condenação penal.
Nesse caso, indaga-se quanto à possibilidade de compensar esses valores no âmbito da
Administração Federal, que foram recebidos a título do confisco. Para melhor compreensão,
será apresentada a diferença entre confisco e pena de perdimento, bem como será feita uma
análise dos conceitos, de acordo com a dogmática do ordenamento jurídico.
A partir desses conceitos, surge o primeiro ponto de controvérsia no ordenamento
jurídico brasileiro. É que não incide fato gerador de tributo sobre bem ou valor que tenha sido
objeto da pena de perdimento. Desse modo, se a autoridade fiscal impõe a perda de
perdimento, o tributo não será devido.
Desta forma, uma vez admitido que o confisco apresente o mesmo efeito da pena
de perdimento, pois afasta a propriedade do bem em prol da União, sendo ambos sinônimos
de infração à lei em razão de fraudar a União, os créditos fiscais constituídos não merecem
subsistir em razão da perda dos bens ou valores.
Já no campo civil, de acordo com os arts. 326 e 741, VI, do CPC c/c art. 368 do
CC, a compensação funciona como fato modificativo ou extintivo do direito do autor e deve
ser argumentado na execução fiscal se o seqüestro ou a condenação tiver ocorrido antes ou no
seu transcurso. Caso, todavia, tenha ocorrido o confisco, de forma total ou parcial, após a
execução, o juízo civil terá que considerar isso como realização do seu cumprimento, de tal
modo a extinguir a execução ou restringi-la à parte ainda não coberta pelo confisco.
17

Partindo-se do conceito de confisco, foi iniciada a pesquisa demonstrando-se as


modificações do Direito Penal brasileiro, que ao longo de sua evolução abandonou a clássica
visão individual e normativa, assumindo uma visão principiológica e atenta à função social da
pena. Logo, observa-se uma substituição das penas privativas de liberdade pelas restritivas de
direito, de forma autônoma, a perda de bens e valores (CP, art. 43, II).
Como conseqüência dessa evolução, surge o art. 44 do Código Penal vigente,
inserindo as penas restritivas de direito como substitutivas das penas privativas de liberdade,
gerando novos efeitos nas condenações penais, pois não se pode mais aplicar, a pena privativa
de liberdade cumulada com a restritiva de direitos.
Se reconhecida a perda de bens e valores como pena restritiva de direitos (art. 43,
II c/c art.44, ambos do CP), pode-se declarar a ilegalidade da pena de prisão, porque não é
mais possível a acumulação da pena restritiva de direito (perda dos bens e valores do proveito
ou produto do crime) com a pena privativa de liberdade, sob pena de constituir verdadeira
contradição, tendo em vista que atualmente a perda de bens e valores, acrescida pela Lei
9.714/98, ao contrario das antigas penas acessórias, que eram aplicadas junto com a pena
privativa de liberdade, possui hoje a mesma natureza principal de pena na condenação penal
e, por isso, não se pode considerar como simples efeito secundário genérico de natureza
extrapenal, repise trata-se de pena, efeito principal da condenação penal.
Portanto, com a nova sistemática penal implantada pela Lei 9.718/98, já não se
pode admitir a imposição cumulada da pena privativa de liberdade com a pena restritiva de
direitos, que sempre substitui a pena de prisão, ainda que não tenha sido convertida ou que
seja considerado efeito secundário da condenação penal, mas desde que tenha ocorrido a
perda de bens e valores na condenação penal, esta será considerada como substituição indireta
da pena privativa de liberdade aplicada, pela restritiva de direitos, seja porque a perda de bens
e valores é pena restritiva de direito (CP, art. 43, II), seja porque atualmente a perda de bens e
valores não pode ser imposta cumulativamente com a pena privativa de liberdade.
A jurisprudência, por sua vez, entende que as penas restritivas "possuem caráter
substitutivo, não podendo coexistir com a pena privativa de liberdade 3”. Logo, a pena
privativa de liberdade pode ser substituída pela perda de bens e valores, indicando ser medida
suficiente para fins de prevenção e repressão ao delito4.

3
- Brasil. STF. HC 70.355/MG. 2a T. Min. Rel. Néri da Silveira, julgado em 29.06.93.
4
- REALE, Miguel Júnior. Despenalização no Direito Penal Econômico Terceira Via Entre o Crime e a
Infração Administrativa, IBCCRIM.
18

CAPÍTULO I
1. Tema
Os efeitos secundários da condenação penal e o enriquecimento sem causa da
União – aqui delimitada à órbita dos Crimes Contra a Ordem Tributária - podem contribuir
efetivamente na defesa dos cidadãos submetidos à ação penal, proporcionando, assim, impedir
uma ruptura paradigmática entre o crédito tributário da Fazenda Pública derivado de fato
gerador de ato ilícito e o valor recebido em virtude do confisco, decorrente da condenação
penal, para fins de reparação do dano à União.

1.1. Problema
As conquistas recentes no campo do Direito Constitucional fizeram com que seja
possível relativizar o conhecimento cientifico e delimitar o objeto de estudo relacionado entre
os direitos penal, administrativo e tributário, conciliando os institutos e, não isoladamente. Tal
afirmação pode ser comprovada pela decisão do Supremo Tribunal Federal no HC n º 81.611-
SP: os delitos previstos no art. 1º da Lei 8.137/90, somente existem, após o exaurimento do
processo administrativo fiscal; precisa, necessariamente, que a autoridade administrativa
constitua o crédito tributário devido, para que sejam implementadas as condições dos seus
elementos penais.
O problema aqui estudado situa-se nesse âmbito, e repousa na literalidade do art.
91, II, “b” do Código Penal, ou seja, a possibilidade de o crédito tributário persistir exigível
pela Fazenda Pública, mesmo quando comprovadamente tenha se dado o confisco de bens ou
valores igual ou superior a obrigação tributária, trazendo como conseqüência a
impossibilidade econômica do cumprimento da prestação. Tal problema é relevante, não só
porque tem deixado de lado a observação aos princípios do enriquecimento sem causa, da
perda da capacidade contributiva e da proporcionalidade da pena, mas principalmente, porque
viola a função social da pena.
Para bem compreender essa questão, sugere-se a análise interdisciplinar dos
direitos penal, administrativo e tributário – através dos princípios constitucionais – como
fatores fundamentais para a observância da função social da pena, porque o confisco de bens
de igual valor ou superior a exigência tributária, deveria impedir o prosseguimento da
execução fiscal, sobretudo quando ocorrer a inexistência de bens no patrimônio do
devedor/condenado. Nesse sentido, a eficácia do direito constitucional, a partir dos princípios
19

da perda da capacidade econômica, da proporcionalidade da pena e do enriquecimento sem


causa da União, implicará na possibilidade de compensar o débito tributário no âmbito da
esfera administrativa e poderá proporcionar, em termos práticos, benefícios singulares para a
área de pesquisas e da função social da condenação penal.
A partir do que foi acima exposto, o grande desafio posto à comunidade cientifica
é indagar: é legal o prosseguimento da execução fiscal após o confisco do bem do infrator em
valor igual ou superior ao crédito tributário?
Ou então: é possível compensar os débitos tributários do contribuinte na esfera
administrativa com os valores percebidos pela União, decorrentes do confisco no âmbito da
esfera penal a título de tornar certa a obrigação de indenizar o dano causado pelo crime?
Considerando a complexidade de tais inquirições, para que as mesmas sejam
desvendadas, implica, ainda, em outros questionamentos, como: O fato da União ficar com o
produto do crime em razão do confisco no valor igual ou superior ao crédito tributário e ainda
prosseguir com a execução fiscal constituem enriquecimento sem causa?
É possível suspender o curso da execução fiscal enquanto não decidida à questão
penal, na hipótese de o acusado ter seus bens seqüestrados? Essa suspensão deve ser pleiteada
na ação penal ou na execução fiscal?
É admissível o levantamento do seqüestro para o pagamento do débito tributário a
fim de alcançar a extinção da punibilidade?
É possível a conseqüência automática e genérica dos efeitos secundários da
condenação penal, dispensando seu expresso pedido na denúncia pela acusação, após a
Constituição Federal de 1988?
É possível as esferas penal e administrativa se comunicarem para prover as
condições dos elementos do tipo penal previsto no art. 1º da Lei 8.137/90 e não se
comunicarem para fins da extinção do crédito tributário? Qual a diferença da comunicação
para implementar as condições dos elementos do tipo penal e da não comunicação para
extinguir o crédito tributário, já que se cuida de crime material de resultado, de dano, contra a
mesma vítima (União) através da mesma supressão ou redução do mesmo tributo devido? O
que deve prevalecer: o rigorismo frio da lei ou a proteção dos Direitos e Garantias
Fundamentais contra os abusos do Estado?
20

1.2. Objetivo geral


O objetivo geral do trabalho será um exame crítico das condenações penais nos
crimes contra a ordem tributária, sob a luz dos princípios constitucionais da perda da
capacidade econômica, da proporcionalidade, da razoabilidade e do enriquecimento sem
causa da União, buscando compreender os significados desses princípios, respectivamente, e
de que forma os mesmos vem sendo observados no âmbito das condenações penais.

1.3. Objetivos específicos


Estabelecer a relação entre o Direito Penal, Tributário e Administrativo;
Enfatizar o paradoxo existente entre as injustiças que cercam o prosseguimento da
execução fiscal quando se deu o confisco dos bens do condenado em valor igual ou superior
ao débito fiscal, através da atuação interdisciplinar dos Direitos em pesquisa na efetivação da
função social da condenação penal.
Apontar alguns (novos) posicionamentos doutrinários e legais a respeito do tema
na área de pesquisa tributária e administrativa, com reflexo nos crimes contra a ordem
tributária, eis que se mostra uma problemática relevante, complexa e essencialmente
interdisciplinar.
Enfocar a interdisciplinaridade do Direito sob o ângulo do pensamento complexo;
Demonstrar que a complexidade da sociedade contemporânea impõe ao jurista
uma nova postura, voltada à função social da pena, como núcleo dos direitos dos sujeitos
envolvidos nos crimes contra a ordem tributária;
Destacar a importância dos princípios constitucionais da perda da capacidade
econômica, da proporcionalidade da pena e do enriquecimento sem causa da União, como
instrumentos de efetivação da função social da condenação penal, visando à solução de
controvérsias a respeito da possibilidade do prosseguimento da execução fiscal, quando a
União já tenha confiscado bem em valor igual ou superior ao crédito tributário.

1.4. Justificativa
Justifica-se a presente pesquisa pelos seus valores teórico, social e jurídico,
imprescindíveis ao conteúdo de um trabalho científico na seara do Direito Penal, eis que se
vive uma época de grandes transformações, onde a sociedade brasileira depara-se com os
crimes contra a ordem tributária, fazendo com que a comunidade jurídica, se posicione não só
21

para evitar os prejuízos do Estado, mas principalmente para evitar os danos irreparáveis ao
condenado e fazer valer a função social da condenação penal.
O tema escolhido – Os efeitos secundários da condenação penal e o
enriquecimento sem causa da União – justifica-se teoricamente por versar sobre novos
direitos, que ainda não foram suficientemente abordados pela doutrina e jurisprudência,
implicando em polêmicas que aqui são colocadas em debate, bem como porque a partir do
conhecimento e da compreensão do significado dos princípios da capacidade econômica, da
proporcionalidade, da razoabilidade, do enriquecimento sem causa, da função social da pena e
dos efeitos produzidos pelos mesmos no ordenamento jurídico pátrio, poder-se-á avistar se
eles, verdadeiramente, limitam o poder do Estado, assegurando os direitos e garantias
fundamentais do cidadão contra possíveis abusos e desvio de poder, na atuação judicial, no
exercício dos efeitos secundários da condenação penal.
O confisco, como efeito secundário da condenação penal, nos crimes contra a
ordem tributária, é assunto ainda pouco explorado, pela doutrina pátria e estrangeira; e,
quando se penetra no problema da efetividade dos princípios da capacidade contributiva, da
proporcionalidade e do enriquecimento sem causa, o campo de pesquisa reduz-se ainda mais.
As pouquíssimas doutrinas específicas sobre o assunto e a forma habitual com
que o tema tem sido tratado nas condenações penais, apesar da importância dos princípios
para limitar o poder do Estado, demonstram a razão da escolha do tema, para que o preceito
legal não continue sendo tratado como simples efeito secundário da condenação penal.

1.5. Hipóteses
Em decorrência da realidade anteriormente apresentada, a possibilidade que se
pretende indicar para responder ao problema aqui proposto situa-se na interdisciplinaridade do
direito penal, administrativo e tributário e não isoladamente, tendo como instrumento
essencial a efetivação da função social da condenação penal.
Desse modo, vislumbra-se, neste trabalho, estudar a interdisciplinaridade do
direito penal, administrativo e tributário como um todo e como novo paradigma para a
solução dos crimes contra a ordem tributária, buscando, a partir da integração dos princípios
da perda da capacidade econômica, do enriquecimento sem causa do Estado, da
proporcionalidade, da razoabilidade e da função social da pena, construir um freio
teoricamente efetivo, frente ao Poder da União, nas condenações penais, vez que, sob a
justificativa da independência das esferas penal, administrativa e tributária, sem dúvida, pelo
22

mesmo fato, ocorre em cúmulo de penas 5, seja como conseqüência de imposições


administrativas, seja como conseqüência da condenação penal os efeitos secundários
automáticos da perda dos bens e valores ao argumento de tornar certa a obrigação de
indenizar o dano causado pelo crime e, o que é pior e mais grave, prossegue-se a execução
fiscal, sem compensar os valores recebidos pelo confisco.

1.6. Metodologia
O presente trabalho terá como método a analogia e a síntese, posto que o que se
pretende é analisar os institutos jurídicos análogos, bem como, combinar as afirmações e
dúvidas em novas noções, restando o que elas têm de legítimo para construir o saber, travando
uma discussão crítica em torno do tema.
Relativamente ao procedimento de pesquisa adotado, poderá ser abordado sob três
pontos de vista. Quanto à natureza da pesquisa, está será básica, visto que objetiva gerar
conhecimentos novos, úteis para os operadores do Direito. Por outro lado, do ângulo de seus
objetivos, a pesquisa será essencialmente exploratória, sendo que, do ponto de vista de seu
objeto, deverá ser qualitativa, utilizando-se de pesquisa bibliográfica e documental, tendo em
vista o caráter preponderantemente teórico do estudo, possuindo como fontes privilegiadas, a
doutrina, a jurisprudência e as normatizações nacionais e internacionais existentes.

1.7. Marco Teórico


O ponto de partida da presente pesquisa consiste na relativização dos Direitos,
penal, tributário e administrativo, de modo que possam ser estudados em conjunto e não
isoladamente, bem como a compreensão dos princípios da capacidade econômica, da
proporcionalidade, da razoabilidade, do enriquecimento sem causa e da função social da pena,
como limitadores do poder do Estado, e ainda, a diferença entre confisco e pena de
perdimento, e o fato de que não incide tributo sobre bem ou valor que tenha sido objeto de
pena de perdimento.

CAPÍTULO II
5
- REALE, Miguel Júnior. Despenalização no Direito Penal Econômico: Uma Terceira via entre o Crime
e a Infração. Ciências Criminais. Volume28, páginas 123/124, Outubro/Dezembro, 1999.
23

2. Relativização dos Direitos

As conquistas recentes do nosso Estado Democrático de Direito nos mostram que


as regras não possuem vontade própria e que é possível relativizar o objeto de estudo
relacionado entre os direitos penal, administrativo e tributário, conciliando os institutos e, não
isolados, como requisito para o crime descrito no art. 1º da Lei 8.137/90. Tal afirmação pode
ser comprovada pela decisão do Supremo Tribunal Federal no HC n º 81.611-SP: a
constituição definitiva do crédito tributário e conseqüente reconhecimento de sua
exigibilidade (an debeatur) e valor devido (quantum debeatur) configuram uma condição
objetiva de punibilidade para os crimes contra a ordem tributária, ou seja, se apresenta como
um requisito cuja existência condiciona a punibilidade do injusto penal.
Assim, os delitos previstos no art. 1º da Lei 8.137/90, somente existem, após o
exaurimento do processo administrativo fiscal; precisa, necessariamente, que a autoridade
administrativa constitua o crédito tributário devido, para que sejam implementadas as
condições dos seus elementos penais.
Dispõe o art. 142 do CTN:

Art. 142. Compete privativamente à autoridade administrativa


constituir o crédito tributário pelo lançamento, assim entendido o
procedimento administrativo tendente a verificar a ocorrência do fato
gerador da obrigação correspondente, determinar a matéria tributável,
calcular o montante do tributo devido, identificar o sujeito passivo e
sendo caso, propor a aplicação da penalidade cabível.

Dispõe, de outro lado, o art. 1º da Lei 8.137/90:

Art. 1º. Constitui crime contra a ordem tributária suprimir ou reduzir


tributo, ou contribuição social e qualquer acessório, mediante as
seguintes condutas:
(...)

Com efeito, o crime do art. 1º da Lei 8.137/90 somente se consuma, mediante as


condutas prescritas, quando ocorrer à supressão ou a redução do tributo cuja constituição
compete privativamente à autoridade administrativa.
Note-se, portanto, a dependência do Direito Penal ao Direito Administrativo na
necessidade de aguardar a sua decisão final, para saber o acertamento ou não do crédito
24

tributário, para que constitua o elemento essencial do tipo ou a condição objetiva de


punibilidade. Logo, se a decisão administrativa for favorável ao contribuinte elide o juízo
positivo da tipicidade, ainda que tenha havido fraude, eis que não haverá redução ou
supressão do tributo para que se possa imputar o crime previsto no art. 1º da Lei 8.137/90,
pela ausência do elemento essencial do tipo.
Conseqüentemente, ainda que a ação do agente seja típica, ela está subordinada à
decisão diversa da ação penal, pois enquanto pendente o processo administrativo sobre a
existência ou não de tributo devido, não se pode sequer, iniciar a persecutio criminis in
iudicio, ou até mesmo a instauração de inquérito policial, pois somente se justificam, após a
constituição definitiva do crédito tributário devido, sendo flagrante o constrangimento ilegal
decorrente da inobservância deste dado objetivo6.

2.1. Perda de Bens ou Valores

Pois bem. Como efeito secundário da condenação penal o agente tem a obrigação
de indenizar os prejuízos causados a União pelo crime consistente na supressão ou a redução
do tributo (art. 91, II, “b” do CP), in verbis:

Art. 91. São efeitos da condenação:


I - tornar certa a obrigação de indenizar o dano causado pelo crime;
II - a perda em favor da União, ressalvado o direito do lesado ou de
terceiro de boa-fé:
a) dos instrumentos do crime, desde que consistam em coisa cujo
fabrico, alienação, uso, porte ou detenção constitua fato ilícito;
b) do produto do crime ou de qualquer bem ou valor que
constitua proveito auferido pelo agente com a prática do fato
criminoso.

Assim, o produto conseguido pela supressão ou a redução do tributo é perdido em


favor da União, para indenizar o dano causado pelo crime.
A partir do que foi acima exposto, o grande desafio posto na presente monografia
é saber: é possível compensar os débitos tributários do contribuinte na esfera administrativa
com os valores percebidos pela União decorrentes de confisco no âmbito da esfera penal a
título de tornar certa a obrigação de indenizar o dano causado pelo crime?

6
- Brasil. STJ. REsp 927.321/DF, Min. Rel. Felix Fischer, julgado em 30.08.2007.
25

Ou então: é legal o prosseguimento da execução fiscal após o confisco do bem do


infrator em valor igual ou superior ao crédito tributário?

CAPÍTULO III
26

3. Distinções entre Regras e Princípios

CANOTILHO estabelece uma série de critérios para distinguir as regras dos


princípios dizendo que:
O "grau de abstração" dos princípios é elevado enquanto o das regras é de
reduzida abstração;
O "Grau de determinabilidade" dos princípios, por serem vagos e
indeterminados necessita de mediação do legislador ou do juiz, para serem concretizados,
enquanto os das regras podem ser aplicados diretamente;
O "Carácter de fundamentalidade no sistema das fontes do direito" ocupa o
papel ou função de fundamento no ordenamento jurídico ou importância que detêm, com
posição de supremacia na escala hierárquica;
A "Proximidade’ "da idéia de direito" dos princípios seria radicado na exigência
da ‘justiça’, ou na ‘idéia de direito’, enquanto o das regras poderia apresentar conteúdo
"meramente funcional";
A "Natureza normogenética", dos princípios situa-se como fundamento para as
regras7.
Além dessa distinção, Canotilho ainda ressalta que os princípios são
qualitativamente distintos das regras, com base nos seguintes aspectos:
1.°) Enquanto uma regra é ou não é cumprida, um princípio possui vários graus de
concretização, variando em razão de condicionalismos fáticos e jurídicos;
2.°) Enquanto os princípios podem coexistir, apesar de serem antinômicos, as
regras em conflito excluem-se, ou seja, os princípios permitem um "balanceamento de valores
e interesses", já as regras exigem o tudo ou nada;
3.°) Enquanto os princípios podem envolver problemas de validade e de peso, já
as regras só enfrentam questão de validade. (2000, p. 1125).
Assim sendo, é possível que tenhamos princípios em rota de colisão com outros
princípios e, se isso ocorrer, deve se situar na esfera do seu peso ou valor, já que todos estão
no mesmo plano de validade sem que tenha de alijar um ou outro dos princípios, tal qual
decidiu o STF no HC nº 81.611-SP, em que reconheceu a independência do Direito
administrativo, tributário e penal, harmonizando os princípios e reafirmando o seu peso ou

7
- CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 4. ed. Coimbra: Almedina,
2000. Página 1124-1125.
27

valor de cada qual, pois declarou que compete exclusivamente à administração dizer,
primeiro, se o tributo é devido, depois, então, autorizar o Parquet iniciar a persecução penal,
distinguindo que um dos princípios merece ser mais considerado nos crimes do art. 1º da Lei
8.137/90, não significando dizer, que em outra situação não se possa entender de modo
diverso, nos crimes formais ou de mera conduta, em que não se requer esgotar a esfera
administrativa para dar início a ação penal, porque não exigem resultado.
Com isso, o STF vem demonstrando que os princípios nem sempre podem ser
aplicados simultaneamente, porque às vezes eles podem tornar-se antagônicos e de difícil
compatibilidade, mas sim que devem conviver de forma harmônica.
Desta forma, é necessário para compatibilizar o exercício dos princípios o
sacrifício momentâneo de um em beneficio do outro, levando em conta o peso e a relevância
de cada um deles, adequando-os um ao outro, com o mínimo de restrição e, tendo como norte
a essência dos direitos constitucionais envolvidos na questão, sob pena da decisão se tornar
ilegítima, inconstitucional e injusta.
A decisão deverá, pois, revestir de elementos harmonizadores entre os princípios
tencionados, evitando a eliminação de um em prol do outro princípio colidente, verificando os
seus traços mais marcantes e sopesando proporcionalmente e racionalmente, os valores em
jogo na busca da solução que melhor recomenda os direitos lesados ou ameaçados. Com isso,
o julgador formulará a solução mais adequada ao caso concreto, manterá a integridade do
ordenamento jurídico e garantirá os direitos fundamentais, eis que observará as normas
especificas.
Já as regras não possuem tais dimensões, porque se o conflito ocorrer só irá
prevalecer apenas uma delas em virtude de seu peso maior. Sim, as regras, no mundo da
normatividade jurídica, são partidárias do tudo ou nada, enquanto os princípios se
contemporizam, podem ser contrapostos sem se excluírem mutuamente. Por isso se diz o
conflito entre normas de antinomia jurídica própria, e entre princípios, imprópria.

3.1. Princípios da Proporcionalidade, da Razoabilidade e da interpretação


das regras
28

O princípio da proporcionalidade vem sendo utilizado para aferir legitimidade das


restrições de direitos que emanam da idéia de justiça, equidade, bom senso, justa medida,
proibição e excesso, servindo de regra para todo o ordenamento jurídico.
Já o princípio da razoabilidade, embora venha sendo utilizado como sinônimo do
princípio da proporcionalidade, por boa parte da doutrina, não é sinônimo, muito embora
ambos não constem expressamente na Constituição Federal vigente, são princípios jurídicos
implícitos do Estado de Direito, e garantias fundamentais para a concretização dos valores
consagrados apresentando uma função limitadora da atuação estatal, como normas de vedação
ao abuso e desvio de poder.
Podemos destacar que o princípio da razoabilidade repousa na idéia de escolha
entre as múltiplas soluções legitimas e legais possíveis, aquela que melhor atenda os
interesses constitucionais, exige, portanto, racionalidade na escolha da solução.
Enquanto o princípio da proporcionalidade apresenta uma função limitadora da
dose da solução encontrada, visa evitar uma dose apática ou excessiva, busca a dose certa
acerca da escolha encontrada.
Como direito constitucional impõe as autoridades administrativa e judicial
obediência aos direitos fundamentais nas colisões entre bens ou valores igualmente protegidos
pela Constituição Federal, que só se resolvem de modo justo ou equilibrado, quando
indissociável da ponderação, adequação e necessidade, os quais compõem a
proporcionalidade e a razoabilidade.
Assim, os enunciados normativos devem ser interpretados de modo a cumprir
exatamente as funções que se destinam, acerca da relação meio-fim, entre a regra e o seu fim
buscando, sem ampliar nem reduzir os instrumentos aptos e legítimos aos fins que se
destinam.
A idéia de estabelecer parâmetro para controlar e/ou racionalizar a interpretação
das regras, deriva imediatamente da certeza e da segurança jurídica que trazem os princípios,
pois estariam sendo comprometidos, caso o aplicador do direito dê as regras o significado que
lhes prescrevem à revelia dos princípios, eis que o direito não é apenas a regra, mas sim bloco
normativo incorporado no texto da Lei Maior.
Por isso que, o intérprete não pode pretender um resultado que só a regra
satisfaça, até porque a interpretação jurídica é essencialmente um fenômeno social e, assim,
deve alcançar não só um nível de aceitabilidade geral e compatível com o texto vinculante
constitucional, mas principalmente que concretize o resultado esperado.
29

Ao interprete cabe a adequação das regras conforme a Constituição, pois embora o


preceito da regra seja valido com a Lei Maior, poderá a sua interpretação ser inconstitucional
quando ela não alcançar a sua finalidade ou não modificar a situação e/ou não atingir o
propósito da sua elaboração, para que possa ser compatível com a Constituição.
Via de regra, essa interpretação decorre da aplicação da igualdade, naquelas
situações em que alguma lei contempla uma obrigação a certo grupo de pessoas, deixando de
contemplar a outros indivíduos que se encontram nas mesmas condições. Nesse caso, o
interprete deve conferir o mesmo tratamento ao grupo por ela excluído, ou seja, deve estender
aos excluídos o beneficio antes concedido apenas aos indivíduos contemplados.
O texto da regra não é inconstitucional ao delimitar ou omitir o universo dos seus
beneficiários, mas sim a interpretação de beneficio restritivo sem concedê-lo aos demais, ou
seja, o que se nega é o mesmo direito ao argumento de natureza distinta ou contrária daquela
regra que não nega o mesmo direito aos grupos merecedores de idêntico tratamento.
A Carta Política impõe ao juiz a função de legitimo criador do direito igualitário,
com base nos fundamentos de validade de todo o ordenamento jurídico, compondo a sua
interpretação através do conjunto de regras e de princípios dotados de força normativa própria
e imediatamente eficaz, rebaixando a lei, antes soberana, à condição de ato
infraconstitucional, sujeito ao controle de legitimidade, formal e material.
Daí a necessidade do interprete avaliar a solução correta e justa à luz do caso
concreto aplicando o princípio escolhido por valoração através da descoberta do sentido da
regra, isto é, qual o objeto idealizado pelo legislador para a concretização da sua utilização
que, nas circunstâncias do caso, realize a justiça como referência última da idéia de direito.

CAPÍTULO IV
4. Confisco e Pena de Perdimento no Direito Tributário
30

O instituto do confisco é milenar, desde o Direito Romano até os tempos atuais.


Na Idade Média, a igreja utilizava o confisco para apreender os bens dos hereges. Somente
com a evolução do processo de humanização, na segunda metade do século XVIII, que o
direito começou a por em dúvida a justiça e aplicação do confisco. A partir de então, o
confisco saiu e retornou ao cenário jurídico por várias vezes.
A França aboliu o confisco através dos arts. 2º e 17 da Declaração dos Direitos do
Homem e do Cidadão, de 26/08/1789, durante a revolução Francesa nos seguintes termos:

Art. 2.º A finalidade de toda associação política é a conservação dos


direitos naturais e imprescritíveis do homem. Esses direitos são a
liberdade, a propriedade, a segurança e a resistência à opressão.

Art. 17.º Como a propriedade é um direito inviolável e sagrado,


ninguém dela pode ser privado, a não ser quando a necessidade
pública legalmente comprovada o exigir e sob condição de justa e
prévia indenização.

Posteriormente, o confisco retornou ao ordenamento jurídico francês, por


Napoleão, como arma eficaz frente aos adversários políticos, principalmente nas guerras
visando à apropriação dos bens dos inimigos, discutindo se o confiscável era unicamente a
propriedade pública do inimigo ou também os bens particulares do mesmo, havendo a
doutrina se inclinado a admitir os bens públicos, porque a guerra é um conflito entre Estados,
e não entre pessoas, motivo pelo qual o regulamento militar proíbe o confisco dos bens
privados de seu inimigo. Daí nasceu à idéia de confisco não apenas como punição, mas
também como medida de prevenção.
Feita essa breve digressão histórica, cumpre se passar à conceituação do que
venha a ser confisco, para que se possa evoluir, no sentido da compreensão como “efeitos
secundários da condenação” penal.
Confiscar vem do latim confiscare é ato de penalização, resultante da prática de
algum crime, conforme dispõe o Código Penal no seu art. 43, II:

Art. 43. As penas restritivas de direitos são:


(...)
II - perda de bens e valores;
31

No âmbito do Direito Penal, o confisco vem sendo utilizado para apropriar-se de


bens do criminoso, como pena pelo delito praticado, conforme disposto no art. 5º, XLVI, “b”
da Constituição Federal, in verbis.

XLVI - a lei regulará a individualização da pena e adotará, entre


outras, as seguintes:
(...)
b) perda de bens;

O confisco, portanto, vai muito além da mera limitação ao direito de propriedade e


adentra ao campo da pena de privação, pois não visa somente à obrigação de indenizar o dano
causado pelo crime, na medida em que visa à perda de todo o produto e proveito auferido pelo
agente com a prática do fato criminoso em favor do Estado. Logo, não visa só o ressarcimento
à vítima, mas uma pena capaz de aniquilar o agente pela conduta ilícita praticada.
Nesse sentido, a pena de perdimento apresenta o mesmo efeito do confisco, pois
afasta a propriedade dos bens do particular em prol do Fisco no caso de descumprimento das
regras aduaneiras com o objetivo de fraudar o Fisco.
Note-se, portanto, que o confisco e a pena de perdimento são conseqüências dos
atos ilícitos comissivos ou omissivos que atentam ao erário público. Nesse sentido, a Súmula
138 do antigo TFR, de 05.05.1983, já dispunha que:

A pena de perdimento de veiculo, utilizado em contrabando ou


descaminho, somente se justifica se demonstrada, em procedimento
regular, a responsabilidade do seu proprietário na prática do ilícito.

Sendo assim, não há como forçar uma distinção entre perdimento de bens e
confisco, pois o primeiro é espécie do segundo, que é gênero.
Cumpre observar que a legislação pátria não admite a incidência tributária sobre
bens que tenham sido objeto de pena de perdimento, conforme disposto no art. 85 do Decreto
nº 91.030/85:

Art. 85. O imposto não incide sobre:


(...)
III - mercadoria estrangeira que tenha sido objeto da pena de
perdimento.
32

Diante do que foi exposto até aqui, parece plenamente justificada a assertiva
constante no art. 85 do Decreto nº 91.030/85 de que, não incide imposto quando a autoridade
fiscal impõe pena de perdimento, tendo em vista que o confisco adentra ao campo da pena de
privação própria, em face do cometimento de ato ilegal, que é punido através da tomada de
seu patrimônio, conforme disposto no inc. II do art. 43 do CP.
A jurisprudência pátria vem reconhecendo a impossibilidade de se cumular a
perda dos bens com a cobrança de tributos:

TRIBUTÁRIO. IMPORTAÇÃO DE VEÍCULO ALBERGADA POR


LIMINAR POSTERIORMENTE CASSADA. RECOLHIMENTO
DE TRIBUTOS. IPI E II. APLICAÇÃO DA PENA DE
PERDIMENTO. ART. 118, I, DO CTN. ART. 85, III, DO
REGULAMENTO ADUANEIRO. REPETIÇÃO DE INDÉBITO.
VIABILIDADE.
1. Uma vez cassada a liminar ou cessada a sua eficácia, voltam as
coisas ao status quo ante. Desse modo, se é correto afirmar a
impossibilidade de se obstar a aplicação da pena de perdimento com a
denegação do mandamus, não menos correto afirmar-se que a
retroação da cassação da liminar que autorizou a importação do bem
também irradia seus efeitos na esfera tributária, qual seja, no tocante
aos recolhimentos dos impostos (IPI e II) devidos por ocasião da
operação de importação, posteriormente tornada sem efeito devido à
denegação da ordem.
2. A leitura do art. 118, inciso I, do CTN, segundo o qual a definição
legal do fato gerador é interpretada abstraindo-se da validade jurídica
dos atos efetivamente praticados pelos contribuintes, responsáveis, ou
terceiros, bem como da natureza do seu objeto ou dos seus efeitos,
deve ser conjugada com a do art. 85, III, do Regulamento Aduaneiro
(Decreto 91.030/85) que prevê a não incidência dos tributos sobre
mercadoria estrangeira que tenha sido objeto da pena de perdimento.
3. Negar o direito à restituição dos tributos à demandante que teve
contra o seu veículo a aplicação da pena de perdimento consistiria em
dar um tratamento mais gravoso para o contribuinte que importa o
bem albergado por um provimento judicial, ainda que precário, do
que o previsto para o caso de importação clandestina, uma vez que
para este último caso somente aplicar-se-ia o perdimento do bem,
enquanto na primeira situação, além do perdimento da mercadoria, o
importador ainda teria que arcar com os tributos respectivos,
incidentes sobre um objeto que não mais integra o seu patrimônio,
exatamente devido à cassação do provimento judicial que permitira a
operação de importação, em total afronta aos princípios da
razoabilidade e da proporcionalidade, os quais norteiam o nosso
ordenamento jurídico.
4. A insubsistência do fato tributável, com a completa supressão de
seus efeitos econômicos, implica inexoravelmente a impossibilidade
de exigência do tributo, porque leva ao desaparecimento do suporte
33

fático de incidência da norma de tributação, que é o signo presuntivo


de capacidade contributiva. Assim, tanto do ponto de vista da lógica
jurídica formal não se pode mais falar de obrigação tributária, à
míngua do fato gerador respectivo, como do ponto de vista axiológico
não se pode mais falar de capacidade contributiva, que desaparece
com o perdimento da riqueza sobre a qual incidiria o tributo. (Hugo
de Brito Machado, Curso de Direito Tributário, 24ª edição, 2004, p.
135)
5. Ademais, embora o automóvel já havia sido alienado quando da
aplicação da pena de perdimento, a parte autora comprova a
indenização ao adquirente, consoante documento trazido aos autos, o
qual não foi impugnado pela Fazenda Nacional, daí exsurgindo
estreme de dúvidas a legitimidade da demandante para pleitear a
devolução dos tributos que recolheu no momento da importação do
bem.
6. Reconhecimento do direito à restituição dos tributos recolhidos
(IPI e II), corrigidos monetariamente8.

Da mesma forma, se o Juiz impõe ao réu o confisco, como ocorre com os efeitos
secundários da condenação penal (art. 91, II, “b”, do CP), o tributo só será devido, naquele
quantum não alcançado pelo confisco. Se assim não fosse, o sujeito que praticasse o
descaminho (art. 334, CP - ilícito penal tributário), restaria beneficiado – uma vez que nessa
hipótese ocorreria apenas a incidência da pena de perdimento sobre os bens –, enquanto, para
o sujeito que praticasse os ilícitos previstos no art. 1º da Lei 8.137/90, dar-se-ia tratamento
exacerbado, pois, além da aplicação do confisco, seriam cobrados os tributos de um beneficio
que nunca existiu, na medida em que o proveito obtido pelo agente foi perdido em favor da
União, sendo que ambos os crimes, tem como fim iludir, no todo ou em parte o pagamento de
tributo, o que implicaria violação aos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade.

4.1. Natureza Jurídica do Confisco e do Tributo

O tributo, por dicção expressa do art. 3º do Código Tributário Nacional, não


representa sanção de ato ilícito. Veja-se:

Art. 3º. Tributo é toda prestação pecuniária compulsória, em moeda


ou cujo valor nela se possa exprimir, que não constitua sanção de ato
ilícito, instituída em lei e cobrada mediante atividade administrativa
plenamente vinculada.
8
- RIO GRANDE DO SUL. TRF 4ª R. Apelação cível n. 2003.72.00.008144-5/SC. Des. Rel. MARIA
LÚCIA LUZ LEIRIA, julgado em 01.12.04.
34

Por outro lado, confisco está ligado à sanção (pena) por ato ilícito. O tributo limita
a propriedade e, se justifica, para a própria garantia do direito de propriedade, ao passo que o
confisco subtrai e aniquila a propriedade.
Contudo, os dois institutos se aproximam quando se aplica a regra do art. 91 do
CP, tendo em vista a obrigação do infrator de indenizar o dano causado pela sonegação fiscal,
através da perda em favor da União, do produto do crime ou de qualquer bem ou valor, que
constitua proveito auferido com a prática do fato criminoso.
O crime descrito no art. 1º da Lei 8.137/90 exige a supressão ou redução de
tributo na qual se opera com a produção do resultado, como fato natural do tipo penal, na
esfera da realidade do infrator. Esse acréscimo ilícito no seu patrimônio, que autoriza o
confisco, se realiza pela afetação do bem jurídico tutelado pela norma, isto é, pelo dano
propriamente dito que sofre a União pelo não recolhimento do tributo.
O resultado dano causado pelo crime previsto no art. 1º da Lei 8.137/90 é a
exigência de supressão ou redução do tributo com real prejuízo a União. A ação do infrator
consiste em sonegar o crédito tributário devido a União. Deixa de recolher aos cofres públicos
o tributo para ficar para si. O dano a União é real e necessário para que o tipo penal seja
incrementado nas hipóteses do art. 1º que contemplam resultado de dano. As ações somente
são puníveis se tiver ocorrido o efetivo prejuízo a União através da supressão ou da redução
de tributo. Do contrário, não se poderá cogitar dano ao erário.
Realizada a ação criminosa para encobrir a obrigação tributária, emerge o
interesse estatal na persecutio criminis e o dever de o infrator indenizar o dano causado.
Assim, por exemplo, se inserido elemento inexato em livro exigido pela lei fiscal,
mas disso não resultou supressão ou redução de tributo, não poderá falar-se em confisco,
porque o crime não se consumou, pois não houve dano a União. Isto porque, ainda não estarão
preenchidos todos os elementos da definição legal. Teria se realizado o núcleo do
complemento, porém não o núcleo principal do tipo, porque depende da criação da obrigação
tributária e do conseqüente dever de reparar o dano (pagar o tributo) que passa a ter o infrator.
Esse dano foi que justificou a regra do art. 91 do CP e neutralizaria o processo
criminal, caso a esfera administrativa, eventualmente, anule o lançamento fiscal, pois
influenciará no juízo penal, eis que o dano não ocorreu, porque a obrigação tributária não
aconteceu consubstanciada na supressão ou redução de tributo, situação condicionada à
existência do dano pela obrigação tributária devida.
35

Revela destacar que, se houver fraude, mas se dessa fraude o fato não gerar dano,
é porque não teve condição de gerar uma obrigação tributária. Logo, impossível falar-se em
confisco perda de bens ou valores em favor da União.
A essa altura, caberia indagar: por que não se pode compensar o crédito da União
se os bens ou valores foram perdidos em face da obrigação do infrator em indenizar o dano
causado pelo crime descrito no art. 1º da Lei 8.137/90?
Portanto, mesmo tendo natureza distinta o crédito tributário (fato gerador da
obrigação tributária) e o confisco (sanção pelo ato ilícito praticado) como efeito secundário da
condenação penal, ainda assim, não altera o direito de compensá-los, porque para existir
confisco houve primeiro dano a União consistente na redução ou supressão de tributo.
Não se trata, portanto de vedar o confisco, mas de evitar o enriquecimento sem
causa da União e punição excessiva ao infrator. Penalização injusta, frise-se, quando não
compensado o crédito tributário pelo confisco, porque a perda de bens e valores foi confiscada
ao final pelo não recolhimento do tributo devido.
Evidentemente, alguém objetará que mesmo essa circunstância não impedirá o
confisco acrescido da cobrança do tributo ao argumento de naturezas diversas. Creio, porém,
que essa afirmação incidirá em erro jurídico. Trata-se de silogismo simplista, com todas as
vênias possíveis, o argumento é muito pobre, inclusive, porque viola o espírito do legislador
ao inserir a regra do art. 91 do CP, que foi tornar certa a obrigação de indenizar o dano
causado pelo crime.
Não obstante essas considerações, MIZABEL DERZI9 esclarece com base em
outros fundamentos, por outro ponto de vista, que não pode ocorrer o confisco e a obrigação
tributaria, com base no mesmo fato gerador, porque um elimina o outro:

Grande parte da doutrina nacional vislumbrou no art. 118 do CTN


uma autorização genérica para a tributação do ilícito, embora o
enunciado lingüístico do dispositivo não assegure esse alcance:
“Art. 118. A definição legal do fato gerador é interpretada abstraindo-
se:
I - da validade jurídica dos atos efetivamente praticados pelos
contribuintes, responsáveis, ou terceiros, bem como da natureza do
seu objeto ou dos seus efeitos;
II - dos efeitos dos fatos efetivamente ocorridos.”

9
- DERZI, Mizabel. Crimes Contra a Ordem Tributária. São Paulo: IOB, 2002, pág. 81 a 96.
36

A nulidade e a anulabilidade dos atos jurídicos não advêm apenas,


como é sabido, da ilicitude do objeto. Diversas causas gerais,
materiais, ou formais (capacidade do agente; vício de vontade;
forma prescrita ou não defesa em lei) ou especificas podem ser
propostas em lei como essenciais à validade do ato, ou como
requisito ou condição ao desencadeamento de determinados efeitos
(cf. CC, art. 145). O não-cumprimento das condições postas pela
lei civil pode invalidar o ato ou modificar-lhe os efeitos. Parece
elementar que a ilicitude do objeto é apenas um dentre outros
requisitos ou condições gerais ou específicas à validade do ato ou
ao desencadeamento de determinados efeitos.

Portanto, é precipitado concluir que a ilicitude do objeto é


absolutamente irrelevante para a tributação, pois a interpretação do
art. 118 do CTN deve ser conciliada com os mais relevantes
princípios jurídicos, morais e éticos, assim como resultar da
integridade do sistema jurídico.

Não obstante, tradicionalmente, há quem considere para a


tributação irrelevante a ilicitude, ainda que penal, a imoralidade do
objeto do ato jurídico ou o malogro de seus efeitos. Confira-se, por
todos, Aliomar Baleeiro:

“já vimos que são nulos os atos jurídicos, por expressa disposição
do art. 145, II, do CC quando for ilícito ou impossível seu objeto.
Isso é irrelevante para o CTN. Pouco importa, para a sobrevivência
da tributação sobre determinado ato jurídico, a circunstância de ser
ilegal, imoral, ou contrário aos bons costumes, ou mesmo
criminoso o seu objeto, como o jogo proibido, a prostituição, o
lenocínio, a corrupção, a usura, o curandeirismo, o câmbio negro,
etc”.

A matéria foi controvertida, muitas vezes na Europa.

Amílcar Falcão, que recorda o chamado princípio do non olet (da


famosa reposta do Imperador Vespasiano – “Não cheira!”, ao filho
que lhe exprobrava a tributação das cloacas) – cita a repugnância
do Tribunal Federal de Recursos em admitir a incidência do
imposto de renda nos proventos da exploração do jogo do bicho e
de outras formas de jogos proibidos (ob. cit., nº 24).

Deve admitir-se, pensamos, a tributação de tais atividades


eticamente condenáveis e condenadas. O que importa não é o
aspecto moral, mas a capacidade econômica dos que com elas se
locupletam.

Do ponto de vista moral, parece-nos que é pior deixá-los imunes


dos tributos exigidos das atividades lícitas, úteis e eticamente
acolhidas.
37

Certo é que Roma, reis medievais e, na fase contemporânea, países


cultos não vacilaram em fazê-lo, ainda que sob o manto de
subterfúgios e eufemismos.
O nosso sistema de imposto de renda, depois de 1962, passou a
exigir a declaração de bens da pessoa física, e também se reserva o
direito de apurar a comprovação da origem das receitas ou recursos
com que foram adquiridos os valores supervenientes. Se tal
comprovação não é feita ou não convence, o incremento não
justificado do patrimônio é lançado como renda e tributado com
multa.

Muitas vezes, o contribuinte não afronta a máxima nemo auditur


propriam turpitudinem allegans.

De qualquer modo, na interpretação do fato gerador, não


considerará a autoridade ou o juiz, a alegação da ilicitude ou
imoralidade do objeto do ato jurídico ou do malogro de seus
efeitos.” (Cf. Direito Tributário Brasileiro. Atual. Misabel Derzi.
11. ed. Forense, Rio de Janeiro, 2000, p. 714-15).

Confirmando o pensamento acima transcrito, que teve em Amilcar


Falcão um clássico defensor, algumas decisões jurisprudenciais,
tanto do Supremo Tribunal Federal, como do Superior Tribunal de
Justiça, têm trilhado o mesmo percurso, a saber:

“EMENTA. Sonegação fiscal de lucro advindo de atividade


criminosa: non olet. Drogas: tráfico de drogas, envolvendo
sociedades comerciais organizadas, com lucros vultosos subtraídos
à contabilização regular das empresas e subtraídos à declaração de
rendimentos: caracterização, em tese, de crime de sonegação
fiscal, a acarretar a competência da Justiça Federal e atrair pela
conexão, o tráfico de entorpecentes: irrelevância da origem ilícita,
mesmo, quando criminal, da renda subtraída à tributação. A
exoneração tributária dos resultados econômicos de fato criminoso
– antes de ser corolário do princípio da moralidade – constitui
violação do princípio da isonomia fiscal, de manifesta inspiração
ética.” (Cf. Supremo Tribunal Federal. HC-77530/RS. Min.
SEPÚLVEDA PERTENCE. 1ª T. Unânime. DJ 18.09.98, p.
00007).

“EMENTA. São tributáveis, ex vi do art. 118, do Código


Tributário Nacional, as operações ou atividades ilícitas ou imorais,
posto a definição legal do fato gerador é interpretada com
abstração da validade jurídica dos atos efetivamente praticados
pelos contribuintes, responsáveis ou terceiros, bem como da
natureza do seu objeto ou dos seus efeitos.
- Não constitui bis in idem a instauração de ação penal para ambos
os crimes, posto caracterizados peculato e sonegação fiscal,
38

reduzindo-se, porém a pena para o segundo crime à vista das


circunstancias judiciais. Recurso conhecido e provido.” (Cf. STJ.
5a T. Resp. 182563/RJ; Rel. ARNALDO DA FONSECA, DJ
23.11.98, p. 198).

“EMENTA. 1. É possível a tributação sobre rendimentos auferidos


de atividade ilícita, seja de natureza civil ou penal; o pagamento de
tributo não é sanção decorrente, mas uma arrecadação decorrente
de renda ou lucro percebidos, mesmo que obtidos de forma ilícita.
2. Noticiada a prática de sonegação de tributos federais, cabe à
Justiça Federal processar e julgar esse crime e os que lhe forem
conexos (Súmula nº 122/STJ).
3. Inadmissível a revogação da prisão preventiva se subsistentes os
motivos autorizadores.
4. Habeas corpus conhecido; pedido indeferido.” (Cf. STJ. 5a T.
HC 7444/RS. Rel. Min. EDSON VIDIGAL, unânime. DJ 03.08.98,
p. 268).

Extrai-se das passagens reproduzidas, que nossos tribunais


superiores, segundo algumas decisões, consentem na tributação da
atividade ilícita ou do lucro dela advindo, sem distinguir entre o
ilícito penal (de extrema gravidade) e outros. Aqueles que defendem
a tributação ampla e total da ilicitude fundam-se:

- no princípio da isonomia, que imporia o mesmo tratamento


tributário tanto ao contribuinte honesto como ao criminoso;

- no princípio da capacidade econômica, presumindo na


objetividade da hipótese de incidência dos tributos, à qual é estranha
a origem lícita ou ilícita da renda ou do patrimônio obtido;

- no art. 118 do CTN, que autorizaria essa interpretação.

Há evidente equívoco nesse raciocínio. Ele parte do pressuposto de


que os bens ou valores obtidos com o delito – efetivamente
comprovado – pertençam ao agente criminoso, equiparando a
propriedade lícita à ilícita e legitimando-a – inclusive aquela advinda
do furto, roubo, extorsão, apropriação indébita, corrupção, tráfico de
entorpecente, etc. – parificando o contribuinte honesto (que adquiriu
o dever de solidariedade, inerente à cidadania, de pagar tributos) ao
delinqüente; estabelecendo uma espúria e intolerável sociedade entre
o agente que comete a ilicitude penal e o Estado, a reclamar a sua
cota-parte naquela riqueza, a título de tributo.
Ao contrário, parece-nos que, em nossa ordem jurídica, não se pode
conceder tratamento igual a fatos e pessoas diferentes, nem tampouco
legitimar, ou “lavar”, por meio da tributação, a titularidade de
valores, fruto da criminalidade. O perdimento dos bens deve ser a
conseqüência imposta e, uma vez expropriado o delinqüente de seus
39

recursos, patrimônio ou renda, inexistiria fato jurídico, presuntivo de


capacidade econômica, fato tributável (art. 3º do CTN).

Ora, de longa data, entre nós, as leis prevêem o destino dos bens de
origem criminosa. O Código Penal disciplina a matéria, o decreto-Lei
nº 9.760, de 05 de setembro de 1946, diz incluírem-se entre os bens
da União, “os bens perdidos pelo criminoso condenado por sentença
proferida em processo judiciário federal” (art. 1º, k). O Código de
Processo Penal (Decreto-Lei nº 3689/41) determina o seqüestro de
bens imóveis ou móveis (sendo o caso, busca e apreensão) adquiridos
pelo indiciado com os proventos do crime. O perdimento daqueles
bens, produto da infração, é assim a regra. Antes e depois da Lei nº
9.613/98, o correto é concluir que, estando comprovado o crime do
qual se originaram os recursos ou o acréscimo patrimonial, seguir-se-
á a apreensão ou o seqüestro dos bens, fruto da infração.
Coerentemente, a Lei nº 9.613/98, que coíbe a prática dos crimes de
lavagem de dinheiro, disciplinou, renovando em alguns aspectos, as
normas processuais pertinentes e determinou, como efeitos da
condenação, a perda dos bens, direitos e valores, objeto do crime,
assim como a interdição do exercício de cargo ou função pública de
qualquer natureza (art. 7º, I e II).

Ao contrário do que supõem alguns, é absolutamente incabível a


exigência de tributos sobre bens, valores ou direitos que se
confiscaram, retornando às vítimas ou à administração publica lesada.
Pois tributo, que não é sanção de ato ilícito, repousa exatamente na
presunção de riqueza, em fato signo presuntivo de renda, capital ou
patrimônio.

Imposto poderá incidir sobre a ostentação de riqueza ou o


crescimento patrimonial incompatíveis com a renda declarada no
pressuposto de ter havido anterior omissão de receita. Receita em tese
de origem lícita, porém nunca comprovadamente criminosa. Não
seria ético, conhecendo o Estado a origem criminosa dos bens e
direitos, que legitimasse a ilicitude, associando-se ao delinqüente e
dele cobrando uma quota, a titulo de tributo.

Portanto, põem-se alternativas excludentes, ou origem dos recursos é


lícita, cobrando-se em conseqüência o tributo devido e sonegado, por
meio da execução fiscal, ou é ilícita, sendo cabível o perdimento dos
bens e recursos, fruto da infração.

Autores nacionais e estrangeiros (v.g. Sacha Calmon, Falsita, Ricardo


Lobo Torres), com propriedade, limitam a possibilidade da incidência
dos tributos aos ilícitos administrativos ou civis, quer pela natureza
essencial dos bens protegidos no Direito Penal, quer pela ilicitude
essencial da natureza da atividade penal. Na verdade, a gravidade da
conseqüência penal – perdimento dos bens e valores, fruto do delito –
deveria ser perseguida insistentemente pelos Poderes Públicos,
40

cassando-se dessa forma a capacidade econômica de pagar o imposto.


É que o enriquecimento, que tem como causa eficiente e suficiente o
crime, deve ter como conseqüência o desapossamento de seu proveito
econômico.

O dever de pagar tributo, ao contrário, nasce da concretização de um


fato-signo presuntivo de riqueza, licitamente obtida, fato posto pelo
legislador como hipótese de incidência da norma tributária. Na
verdade, em todo regime capitalista, os tributos configuram dever de
solidariedade dos mais nobres, legitimação da capacidade econômica
do titular da renda ou do consumo. Tanto isso é verdade que os
crimes contra a ordem tributária não advêm do singelo não-
pagamento do imposto. Não basta a inadimplência, mero
descumprimento do dever em face do credor (Fazenda Pública). É
mais, não basta o efeito almejado, que é suprimir ou reduzir tributo.
Para que se configurem os crimes contra a ordem tributária é
necessária a existência de conduta material (comissiva ou omissiva),
que fraude a fiscalização, inserindo-se falsamente em declarações,
operações, livros ou documentos (sonegação); ou, ainda, a posse
dolosa de valor de tributo previamente descontado ou cobrado de
terceiros pelo contribuinte e que deveria ter sido recolhido aos cofres
públicos. Se não há alteração de documentos ou omissão de dados
obrigatórios, se não há desonestidade na escrita, fica afastada de
imediato qualquer possibilidade de ilicitude penal.

A ordem jurídica pressupõe, quer do ponto de vista do Direito Penal,


quer do Direito Tributário, que mesmo na hipótese de sonegação ou
crime contra a ordem tributária, não se deverá impor o perdimento
dos bens sonegados ou da riqueza que se subtraiu ao Fisco. A razão
reside em que essa riqueza pertence propriamente ao contribuinte e
deverá ter nascido de atividade lícita. Pode haver resistência delituosa
ao cumprimento do dever de pagar tributo, nesse caso, impõem-se as
conseqüências penais e civis paralelamente. Mas em nenhuma delas
se inclui o perdimento de bens. Tal diferenciação é de alta relevância
e não impede a compreensão unitária do injusto penal.

É cediço afirmar que não pode haver distinção entre os crimes,


sancionados com pena privativa de liberdade, no corpo do Código
Penal e outros, disciplinados pelo legislador em leis especiais e, por
ele, também punidos com igual pena. Sob esse aspecto, não há
discrepância na doutrina nacional ou estrangeira (e mesmo na
jurisprudência dos mais diversificados países). Ao contrário, mesmo
aqueles doutrinadores que se esforçaram – inutilmente – por buscar
uma autonomia científica do Direito Tributário, distinguindo entre as
sanções penais repressivas, campo próprio do Direito Penal, e aquelas
sanções indenizatórias (multas pecuniárias), que configurariam o
ilícito tributário não penal, admitiram dos princípios básicos do
Direito Penal aos delitos de fundo tributário, sancionados com penas
privativa de liberdade (como sonegação fiscal), mesmo que tais
41

delitos venham regulados em leis próprias, estranhas ao Código


Penal.
(...)

Inexiste a possibilidade do perdimento de bens, ou seu seqüestro, mas


paralelamente terá curso a execução fiscal do crédito tributária, não
por força da atuação da norma penal, mas da norma tributária. Essa
diferenciação reside, exatamente, no pressuposto essencial,
decorrente do sistema jurídico, de que a obrigação tributária nasce de
fato lícito.
(...)

As normas que criam impostos descrevem, como hipótese, fato que


seja indício de capacidade econômica, fato signo presuntivo de renda,
capital ou patrimônio, como diria A. Becker. Mas pressupõem a
licitude da fonte, a legitimidade da propriedade da riqueza. A certeza
advém de que a capacidade objetiva, entre nós, é desenhada a partir
da própria Constituição Federal e o regime capitalista por ela
pressuposto não é patível com a criminalidade.

O art. 145, § 1º da Constituição vigente consagra expressamente o


princípio da capacidade contributiva.

“Art. 145. ...


§ 1º Sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão
graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte,
facultado a administração tributária, especialmente para conferir
efetivamente a esse objetivo, identificar, respeitados os direitos
individuais e os termos da lei, o patrimônio, os rendimentos e as
atividades econômicas do contribuinte.”

O princípio da capacidade contributiva é clássico e foi, há mais de


dois séculos, preconizado pelo economista alemão Von Iusti e
difundido por Adam Smith. Convém anotar, novamente, que a
Constituição de 1988, na mesma trilha daquelas advindas após a
Segunda Grande Guerra, possui um grau de normatividade muito
superior às anteriores, trabalha com exigências jurídicas concretas e
dota os direitos e garantias fundamentais de aplicação imediata,
mesmo sem a intervenção do Poder Legislativo, concedendo poder
regulamentador, normatizador – supletivo ao Poder Judiciário (art. 5º,
LXXI).

Pois é exatamente o aspecto da concreção e da efetividade do


princípio da capacidade contributiva que é necessário destacar. Como
se pode observar, os termos e expressões da norma vigente são
“aparentemente” muito similares àqueles que compunham a regra do
art. 202 da CF de 1946. além disso, o que se continha implicitamente
na Constituição de 1969 evidencia-se, portanto, com todas as luzes,
no Texto de 1988. Mas se se podia afirmar sua diretriz meramente
42

programática no contexto constitucional de 1946 como o fazia


Aliomar Baleeiro, já não se pode negar a força vinculante do preceito
tanto para o legislador ordinário, como para o intérprete e aplicador
da norma na Constituição de 1988.

É que a capacidade contributiva é princípio que serve de critério ou


de instrumento à concretização dos direitos fundamentais individuais,
quais sejam, a igualdade e o direito de propriedade ou vedação do
confisco. Portanto, o princípio da capacidade contributiva não mais
pode ser interpretado à luz da concepção de um Estado de Direito
ultrapassado e abstencionista. Ao contrário, a Constituição de 1988
tende à concreção, à efetividade e à consagração de princípios
autoaplicáveis, obrigatórios não apenas para o legislador, como
também para o intérprete e aplicador da lei. Essa mesma evolução
ocorreu em outros países. Basta citar o caso da Constituição italiana,
a qual consagra também, desde a década de cinqüenta, em seu art. 53,
o princípio da capacidade contributiva e a progressividade do sistema.
Mas a doutrina dá notícia de que uma primeira interpretação conferiu
àquela norma um caráter meramente programático, despido-a de
eficácia imediata. Posteriormente, sem que tivesse havido mudança
literal do Texto fundamental, a Corte Constitucional da Itália passou
a aferir a constitucionalidade dos preceitos tributários, por confronto
direto com o princípio da capacidade contributiva e, sobretudo,
atribuiu-lhe conteúdo concreto, informando pelas reais forças
econômicas do contribuinte. (Cf. Francesco Moschetti. II Principio
della Capacita Contributiva. Padova: CEDAM. 1973, p. 21).

O grande construtor italiano do princípio da capacidade contributiva


foi, sem dúvida, Griziotti, que estabeleceu uma correspondência entre
tal capacidade e os serviços públicos, erigindo tal princípio em
elemento casual da obrigação tributária. Repelida a teoria de
Griziotti, sobretudo com Giannini (Istituzioni di Diritto Tributário, 8.
ed. Giuffrè, Milão, 1960, p. 60 e ss), renasce o princípio da
capacidade contributiva, posteriormente, revitalizado pela longa e
profunda monografia de Giardina (Le Basi Teoriche Del Principio
della Capacita Contributiva. Milão, Giuffrè. Ed., 1961, p. 439 e ss),
que visa a dotar de efetividade o art. 53 da Constituição italiana. Para
isso, destaca o autor, exatamente, a força econômica, que não esgota
o conteúdo do princípio da capacidade contributiva, a qual é pesada e
valorada pelo legislador, mas presta a limitar e a condicionar a
margem de discricionariedade legislativa, a saber:

- tolhendo as imposições excessivas, que sejam confiscatórias;

- impedindo a oneração das rendas mínimas e levando à graduação


progressiva do sistema tributário.

Por conseguinte, não deve surpreender o fato de a Constituição de


1988, que tende à concreção e à efetividade, referir no art. 145, § 1º, a
43

capacidade econômica e não capacidade contributiva. Com isso, ela


pretendeu afastar as criações jurisprudências, administrativas ou
legais que, baseadas em presunções, ficções e falseamentos,
buscassem atingir fatos que não estivessem assentados em realidade
econômicas. Capacidade econômica contributiva, então, somente se
pode medir por meio das verdadeiras forças econômicas do
contribuinte como quer Moschetti.

Diferentes autores distinguem entre capacidade econômica objetiva


(ou absoluta) e subjetiva (ou relativa e pessoal). Emilio Giardina (Lê
Basi Teoriche Del Principio della Capacita Contributiva. Milão. Dott.
ª Giuffrè Ed. 1961, p. 439), explica que a capacidade objetiva
absoluta obriga o legislador a tão somente eleger como hipóteses de
incidência de tributos aqueles fatos que, efetivamente, sejam indícios
de capacidade econômica. Daí se inferir a aptidão abstrata e em tese
para concorrer aos gastos públicos da pessoa que realiza tais fatos
indicadores de riqueza. No mesmo sentido, aponta Alberto Xavier,
ele explica que o legislador pode:

“....escolher livremente as manifestações de riqueza que repute


relevantes para efeitos tributários, bem como delimitá-las por uma ou
outra forma mas sempre deverá proceder a essa escolha de entre as
situações da vida reveladora de capacidade contributiva e sempre a
estas se há de referir na definição dos critérios de medida do
tributo”(Cf. Manual de Direito Fiscal. Fac. De Direito de Lisboa,
1974, vol. I, p. 108).

Não obstante, a capacidade relativa ou subjetiva refere-se à concreta e


real aptidão de determinada pessoa (considerados seus encargos
obrigatórios pessoais e inafastáveis) para o pagamento de certo
imposto. (Cf. Regina Helena Costa, Princípio da Capacidade
Contributiva. São Paulo, Malheiros Ed. 1993, p. 29).

Convém lembrar, não obstante, que, ao contrário do que acontece na


maior parte dos países ocidentais, a Constituição brasileira já
enumera a competência tributária para instituir impostos, elegendo de
antemão as possíveis hipóteses de incidência. Não há liberdade
alguma para o legislador municipal ou estadual inventar imposto
novo, campo no qual a Constituição já esgotou e delimitou, pelo
menos genericamente, a capacidade econômica objetiva. Apenas a
União, no exercício de sua competência residual, pode criar imposto
novo. Deve-se acrescentar ainda que os mais importantes tributos
federais estão previstos na Constituição. Assim, o princípio da
capacidade econômica, no sentido objetivo-absoluto, não é apenas
norma autoaplicável, mas de conteúdo já amplamente determinado no
Texto Magno.

Ora, em todas as espécies delituosas em que, por sua natureza, se


aplicar o perdimento dos bens, por seqüestro ou arresto, perder-se-á
44

também a capacidade econômica, que aparentemente havia. Resulta


exatamente da concreção e da autoaplicabilidade do princípio da
capacidade econômica que, uma vez desapossado o criminoso do
fruto da atividade ilícita, inexistirá a possibilidade de tributação.
Resulta, ainda, da objetividade da presunção de capacidade
econômica das hipóteses de incidência das normas tributárias,
desenhadas a partir da Constituição Federal, que aquela presunção se
sustente na ilicitude, na moralidade e na legalidade da iniciativa
privada. Toda a estrutura constitucional repousa na idéia da
legitimidade na aquisição do patrimônio e da renda em uma
sociedade capitalista e tem na contrapartida o dever solidário de pagar
imposto o seu ponto de equilíbrio. Somente se intitulam contribuintes
(por mais conflituosas que sejam as relações entre as Fazendas e os
cidadãos-contribuintes) as pessoas que adquirirem legal e
legitimamente riqueza (renda, poupada ou consumida, ou
patrimônio). Sobre essa riqueza é que se cobram tributos.

Com efeito, o presente estudo não se propõe a analisar a possibilidade ou não de


obrigação tributária nascer de fato ilícito, que, ademais, não creio essencial para saber: é legal
o prosseguimento da execução fiscal após o confisco do bem do infrator em valor igual ou
superior ao crédito tributário?
Ou então: é possível compensar os débitos tributários do contribuinte na esfera
administrativa com os valores percebidos pela União decorrentes de confisco no âmbito da
esfera penal a título de tornar certa a obrigação de indenizar o dano causado pelo crime?
É obvio que as naturezas do confisco e do tributo são distintas, mas também é
obvio que esse poder-dever do Estado tem que ser exercido com equilíbrio e em harmonia
com os princípios constitucionais e segundo suas exigências e limites. Se a lei for omissa ou
exagerar na imposição da penalidade, indispensável à correção através da via judicial.

CAPÍTULO V
5. Abuso e Desvio de Poder
45

Parece inegável a relação existente entre o confisco e a obrigação de indenizar o


dano causado pelo crime e a figura do abuso de poder do Estado pela não compensação do
confisco, que tem como pressuposto, a existência do prejuízo material resultante da supressão
ou redução do tributo, cujo valor do tributo está limitado.
Com efeito, ocorre abuso de poder quando a autoridade, embora investida de
jurisdição constitucional, comete excesso ou desvio de finalidade da lei.
Assim, o abuso de poder surge com o desequilíbrio da ordem jurídica. O excesso
ocorre quando o ato colide com os princípios constitucionais e, no caso do desvio,
diferentemente, age dentro dos limites dos princípios constitucionais, mas baseado em
motivos ou fins diversos daqueles determinados pela lei, pelo interesse público.
A caracterização da não compensação do confisco frente ao débito fiscal do
infrator com a União é também uma forma de abuso de poder, inclusive desvio da finalidade
do art. 91 do CP, que é tornar certa a obrigação de indenizar os prejuízos causados pelo crime.
Ora, o legislador não fez diferença entre os efeitos da condenação penal, tornar
certa a obrigação de indenizar o dano causado a União (crimes contra a ordem tributária) e o
dano causado às demais vítimas (crimes contra patrimônio), de modo a impedir a dedução do
valor do confisco do montante do débito tributário e não impedir a dedução na reparação civil,
tal qual prescreve a segunda parte do §1º do art. 45 do CP, para os demais casos:

§ 1º. (...) O valor pago será deduzido do montante de eventual


condenação em ação de reparação civil, se coincidentes os
beneficiários.

Mutatis mutandi, tendo em vista que a sentença penal condenatória tem natureza
de título executivo, permitindo ao ofendido reclamar a indenização no juízo cível, sem que o
condenado possa discutir a existência do crime ou a sua responsabilidade, bem como deduzir
o valor pago na esfera penal, também deve ter natureza de recibo o confisco das condenações
penais nos crimes contra a ordem tributária, permitindo ao infrator compensá-lo na
administração ou no juízo cível onde tramita a execução fiscal o valor do confisco, tendo em
vista a unidade do ilícito, e as suas diferentes esferas de repercussão.
Pois bem. Não está se sustentando que a regra do art. 91 do CP seja
inconstitucional, mas sim, que quando ela entrou em vigor em 1940, ainda não existiam as
previsões expressas nos arts. 44, 43, II, e §1º, 45, todos do CP, que só ocorreram em 1998.
Logo, mostra-se evidente abuso de poder e desvio de finalidade a não dedução do confisco,
46

porque se a regra do art. 91 do CP, visa impedir que os bens e valores do crime enriqueçam o
patrimônio do infrator, também não deve enriquecer o patrimônio da União
injustificadamente. Assim, constitui desvio de finalidade e abuso de poder a não compensação
do confisco, porque a perda se deu para garantir a reparação do dano causado pelo crime.
Destarte, é medida desumana e injusta, a União ficar com o produto do crime e ao
mesmo tempo não compensar os valores recebidos a título de indenização pela supressão ou
redução de tributo causado pelo crime, considerando, que o mesmo crédito tributário que
embasou a condenação penal, é o mesmo que foi suprimido ou reduzido; é o mesmo que
fundamentou o confisco; e, é o mesmo que embasou a Certidão da Dívida Ativa, pois
constituem um único proveito auferido pelo agente com a prática do mesmo fato criminoso.
Assim, embora o crédito tributário tenha natureza jurídica distinta do confisco,
não compensá-lo, implica em evidente violação aos princípios da proporcionalidade, da
razoabilidade, da capacidade econômica, do enriquecimento sem causa e da função social da
pena, além de incorrer o Estado em manifesto abuso e desvio de poder, já que o confisco não
pode servir para suprir a crescente falta de verba do Estado.
O abuso aqui é cometido pelo Poder Judiciário e não pelo Poder Legislativo ou
Executivo que não está interpretando corretamente os limites e as balizas do art. 91 do CP, em
face da alteração do Código Penal introduzida pela Lei 9.714, de 25/11/1998.

CAPÍTULO VI
6. Mutação na Interpretação das Leis
47

O problema dos limites da interpretação do art. 91 do CP, não se coloca apenas,


na hermenêutica jurídica, mas também no campo das mutações normativas, isto é, das
alterações na interpretação dos enunciados, considerando incólume o seu texto verbal. Trata-
se da mudança semântica jurídica sofrida pelo tempo do significado das palavras.
Assim, as mutações normativas nada mais são que as alterações semânticas dos
preceitos normativos, em face da modificação da sociedade em que se concretiza a aplicação
da lei, conforme leciona Miguel Reale10:

Leis há, sem dúvida, que durante todo o período de sua vigência,
sofrem pequenas alterações semânticas, mantendo quase intocável a
sua conotação originária. Isso ocorre quando não se verifica mudança
de relevo na tábua dos valores sociais, nem inovações de monta no
concernente aos suportes fáticos.
Muitas e muitas vezes, porém, as palavras das leis conservam-se
imutáveis, mas a sua acepção sofre um processo de erosão ou, ao
contrário, de enriquecimento, em virtude da interferência de fatores
diversos que vêm amoldar a letra da lei a um novo espírito, a uma
imprevista ratio júris. Tais alterações na semântica normativa podem
resultar:
a) do impacto de valoração novas, ou de mutações imprevistas na
hierarquia dos valores dominantes;
b) da superveniência de fatos que venham modificar para mais ou para
menos os dados da incidência normativa;
c) da intercorrência de outras normas, que não revogam propriamente
uma regra em vigor, mas interferem no seu campo ou linha de
interpretação; (...).

Portanto, as mutações das leis são decorrentes também da intercorrência de outras


normas que são introduzidas no ordenamento jurídico pátrio. Logo, a questão dos limites da
interpretação dos enunciados jurídicos vai transformando o direito legislativo em direito
interpretado, porque o papel do Poder Judiciário é a interpretação como instrumento
juridicamente idôneo ao fim que se destina, em harmonia com os princípios constitucionais.
As transformações resultantes dos processos sociais, econômicos e políticos caracterizam, em
seus múltiplos e complexos aspectos da sociedade moderna.
Neste ponto, traz-se a baila, recente mutação na interpretação da regra do art. 168-
A do CP pelo STF que, renunciando à orientação então vigorante, passou a equiparar o não-
repasse das contribuições sociais dos segurados a Previdência Social, aos crimes tributários

10
- REALE, Miguel. Filosofia do Direito, 9ª. Ed., São Paulo: Saraiva, 1982, p. 563-564.
48

em geral, exigindo o termino de possível processo administrativo para legitimar a instauração


de inquérito policial e/ou o recebimento da denúncia. Veja-se:

APROPRIAÇÃO INDÉBITA PREVIDENCIÁRIA – CRIME –


ESPÉCIE. A apropriação indébita disciplinada no artigo 168-A
do Código Penal consubstancia crime omissivo material e não
simplesmente formal. INQUÉRITO – SONEGAÇÃO FISCAL –
PROCESSO ADMINISTRATIVO. Estando em curso processo
administrativo mediante o qual questionada a exigibilidade do
tributo, ficam afastadas a persecução criminal e – ante o
princípio da não-contradição, o princípio da razão suficiente – a
manutenção de inquérito, ainda que sobrestado11.

Submetida a questão ao crivo do STJ, mobilizou-se alguma


resistência. No HC 82.397 (2007) houve empate na votação, prevalecendo à posição mais
favorável ao réu. De lá para cá,  as 5ª e 6ª Turmas promoveram uma verdadeira mutação na
interpretação do art. 168-A do CP, conforme se verifica nas seguintes ementas:

HABEAS CORPUS. PROCESSUAL PENAL. CRIME DE


APROPRIAÇÃO INDÉBITA DE CONTRIBUIÇÃO
PREVIDENCIÁRIA. MUDANÇA DE ENTENDIMENTO.
DELITO MATERIAL. PRÉVIO ESGOTAMENTO DA VIA
ADMINISTRATIVA. IMPRESCINDIBILIDADE.
CONDIÇÃO DE PROCEDIBILIDADE PARA A
INSTAURAÇÃO DE INQUÉRITO POLICIAL.
TRANCAMENTO DO INQUÉRITO POLICIAL POR FALTA
DE JUSTA CAUSA. PRECEDENTE DO STF.

1. Nos termos do entendimento recente da Suprema Corte, os


crimes de sonegação e apropriação indébita previdenciária
também são crimes materiais, exigindo para sua consumação a
ocorrência de resultado naturalístico, consistente em dano para a
Previdência.

2. O prévio esgotamento da via administrativa constitui, desse


modo, condição de procedibilidade para a ação penal, sem o que
não se vislumbra justa causa para a instauração de inquérito
policial, já que o suposto crédito fiscal ainda pende de
lançamento definitivo, impedindo a configuração do delito e,
por conseguinte, o início da contagem do prazo prescricional.

3. No caso dos autos, constata-se o constrangimento ilegal,


tendo em vista que o processo administrativo,  no qual se

11
- BRASIL. STF. Inq. AgR 2.537-2/GO. Pleno. Min. Rel. Marco Aurélio, julgado em 10.03.2008, DJE
12.06.2008.
49

imputou a existência de débitos tributários, ainda não havia


chegado ao seu termo final, quando da instauração do inquérito
policial para apurar a prática do suposto delito.

4. Ordem concedida para trancar o inquérito policial relativo à


NFLD DEBCAD n.º 37.018.027-5, diante da ausência de justa
causa para a sua instauração, por inexistir lançamento definitivo
do débito fiscal, ficando suspenso o prazo prescricional até o
julgamento definitivo do processo administrativo. (HC
96.348/BA, Relatora Ministra Laurita Vaz, T5, 24/06/2008, DJe
04/08/2008).

Apropriação indébita previdenciária (caso). Esfera


administrativa (Lei nº 9.430/96). Processo administrativo-fiscal
(pendência). Recebimento da denúncia (impossibilidade). Ação
penal (extinção).

1. A propósito da natureza e do conteúdo da norma inscrita no


art. 83 da Lei nº 9.430/96, o prevalente entendimento é o de que
a condição ali existente é condição objetiva de punibilidade,
aplicando-se tanto aos crimes contra a ordem tributária quanto
ao de apropriação indébita previdenciária.

2. Na pendência de processo administrativo-fiscal no qual se


discute a exigibilidade de contribuição previdenciária, não há
falar em procedimento penal, menos ainda em recebimento de
denúncia ofertada.

3. Ordem de habeas corpus concedida para se extinguir a ação


penal sem prejuízo de outra, se e quando oportuna12.

Assim sendo, o juiz no exercício de sua atividade interpretativa, especialmente no


âmbito penal, deve observar um princípio hermenêutico básico (tal como aquele proclamado
na segunda parte do §1º do art. 45 do CP), que determina: “o valor pago será deduzido do
montante de eventual condenação em ação de reparação civil, se coincidentes os
beneficiários”, bem como a regra do art. 91 do CP, que prescreve o confisco para “tornar
certa a obrigação de indenizar o dano causado pelo crime”.
O Poder Judiciário, nesse processo hermenêutico, deverá extrair a máxima
eficácia das regras supracitadas e das proclamações constitucionais de direitos e garantias
fundamentais, através dos princípios da proporcionalidade, da razoabilidade, da capacidade
econômica, do enriquecimento sem causa e da função social da pena, como forma de

12
- BRASIL. STJ. HC 82.397/RJ. 6. Turma. Min. Rel. Hamilton Carvalhido, julgado em 25.09.07, DJe
19.05.08.
50

viabilizar a dedução ou a compensação do confisco frente ao crédito tributário constituído,


sob pena de tais princípios tornarem-se palavras vãs.

CAPÍTULO VII
7. Evolução Histórica da Pena no Brasil
51

No Brasil, os povos indígenas adotavam valores culturais de punição condizentes


à vingança de sangue, a regra de Talião, a perda da paz, a pena de morte através de tacape e as
penas corporais, sob a concepção de suas crendices.
Neste sentido, René Ariel Dotti13, afirma:

Ter encontrado sinais de punição na forma do talião e da vingança do


sangue para as lesões cometidas nas tribos indígenas brasileiras.
Acrescenta que a perda da paz também era utilizada, porém
predominavam a pena de morte (através do tacape) e as penas
corporais.

Nessa fase, vê-se a pratica desproporcional à ofensa, atinge não só o ofensor,


como também todo o seu grupo familiar. As relações Totêmicas ainda prevalecem, sendo que
as práticas punitivas desses povos indígenas em nada influenciaram na legislação brasileira,
porque elas sobrevieram da Coroa Portuguesa, constantes nas famosas Ordenações do Reino.
No período colonial, vigoraram as Ordenações Afonsinas (até 1512), as
Ordenações Manuelinas (até 1569), ambas tratavam do tema penal em que a privação da
liberdade era utilizada para garantir o julgamento e meio coercitivo do pagamento da pena
pecuniária.
As Ordenações Filipinas foram introduzidas em nosso Direito penal pelo
Imperador da Península Ibérica, o monarca Felipe e nelas estavam contidos muitos delitos e
variadas formas de suplício, a serem aplicados ao corpo do condenado, sendo esta modalidade
confundida com a fundamentação teológica, porém, vale dizer, que se constituíam nas
principais armas políticas do soberano para manter o controle social.
Atualmente, a pena aplicada ao indivíduo que praticou um ato ilícito pode
objetivar várias finalidades: puní-lo pelo ato que cometeu e reeducá-lo, de modo que possa ser
reintegrado à sociedade e que não cometa tais atos novamente, servindo, portanto, de exemplo
para que nenhum outro indivíduo persiga o caminho percorrido por este infrator, além de
proteger a sociedade, de modo que o Estado, único titular do direito de punir, aprisione
qualquer pessoa capaz de desestabilizar a paz pública e o bem comum.
Portanto, para que a pena imposta pelo Estado alcance essas finalidades, deve
estar revestida de notável discrição para que cumpra o seu papel sem precisar ser injusta,
desnecessária ou cruel. Sucede, que o ser humano ao longo de sua evolução, chegou à

13
- DOTTI, René Ariel. Bases e alternativas para o sistema de penas. 2.ed. São Paulo: RT, 1.998, p. 44.
52

conclusão que as penas extremamente severas, não eram suficientes para reduzir os delitos – o
sistema de “vingança institucionalizada” não produzia os efeitos desejados.
Isso vem sendo discutido desde épocas mais remotas, como evidencia
MONTESQUIEU14 em sua singular obra, “O Espírito das Leis”:

Os homens não precisam, absolutamente, ser levados pelos caminhos


extremos; deve-se procurar os meios que a natureza nos oferece para
os conduzir.”
(...)
“É, entre nós, um grande erro aplicar o mesmo castigo ao que assalta
estradas e ao que rouba e assassina. É evidente, para a segurança
pública, que se deveria estabelecer alguma diferença na pena.

Indubitavelmente, o sistema carcerário é um grande fracasso do Direito Penal, seja


porque não diminui o índice de criminalidade, seja porque especializa o infrator no crime, seja
também, porque devolve a sociedade o condenado em condição pior do que quando ele
entrou, seja ainda porque permite a perda paulatina da sua aptidão para o trabalho.
A partir deste raciocínio, a Resolução n. 45/110, da Assembléia Geral das Nações
Unidas aprovou as Regras de Tóquio como o resultado dos debates e intercâmbio de
experiências mundiais, iniciados em Tóquio pelo Instituto da Ásia e do Extremo Oriente, para
a Prevenção do delito e Tratamento do Delinqüente, órgão das Nações Unidas, que introduziu
no Brasil como baliza para a implantação, execução e fiscalização das medidas alternativas à
pena privativa de liberdade e como solução para pequena e média criminalidade, enfatizando
a necessidade da substituição da prisão por pena alternativa e a redução do número de
reclusos.

CAPÍTULO VIII
8. Regras de Tóquio Sobre as Penas e Medidas Alternativas

A Assembléia Geral das Nações Unidas, através da Resolução 217 de 10/12/1948,


proclamou a Declaração Universal dos Direitos Humanos e reconheceu a dignidade da pessoa
humana como fundamento da liberdade, da justiça e da paz, cujo preâmbulo enfatizou que o
14
- MONTESQUIEU. in "Do Espírito das Leis", Coleção Os Pensadores, Nova Cultural, 2000.
53

desrespeito pelos direitos humanos constitui atos bárbaros e que os direitos humanos devem
ser protegidos pelo Estado, para que o homem não seja compelido à opressão. Veja-se:

(...)   
      Considerando que o desprezo e o desrespeito pelos direitos
humanos resultaram em atos bárbaros que ultrajaram a
consciência da Humanidade e que o advento de um mundo em
que os homens gozem de liberdade de palavra, de crença e da
liberdade de viverem a salvo do temor e da necessidade foi
proclamado como a mais alta aspiração do homem comum,   
        Considerando essencial que os direitos humanos sejam
protegidos pelo Estado de Direito, para que o homem não seja
compelido, como último recurso, à rebelião contra tirania e a
opressão,   
        (...)

Assim, foi que surgiram as Regras Mínimas das Nações Unidas sobre as Medidas
Não-privativas de Liberdade, como resposta a Escola Clássica que vê o delito como uma
ofensa ao Estado, punindo com pena rigorosa, visando retribuir ao infrator o mal por ele
praticado, além de inibir a ocorrência de novos delitos, sem qualquer caráter de
ressocialização.
Considerando que a pena-prisão constitui punição desumana, eis que degradante,
cruel e torturante, surgiram as penas restritivas de direito como medidas alternativas à prisão,
inclusive para evitar os abusos e arbitrariedades que sempre ensejaram a prisão para aqueles
casos de pequena e média criminalidade.
A Assembléia Geral das Nações Unidas expediu a Resolução 45/110, aprovada
em 14/12/90 na 68.ª sessão plenária, adotando as Regras de Tóquio que estabelecem em
síntese, a necessidade de soluções alternativas à prisão, visando à redução do número de
reclusos e a reinserção social dos delinqüentes, e no item 4., solicita aos Estados membros, na
qual o Brasil faz parte, que apliquem as Regras de Tóquio e dê especial publicidade a elas
levando-as ao conhecimento dos responsáveis pelas suas aplicações, inclusive “do Ministério
Público, dos Juízes, dos funcionários encarregados de controlar a liberdade condicional, dos
advogados, das vítimas, dos delinqüentes, dos serviços sociais e das organizações
governamentais que participam na aplicação das medidas não privativas de liberdade, e dos
representantes do poder executivo e do corpo legislativo assim como da população”, nos
seguintes termos:
54

Lembrando a Resolução 8 do Sexto Congresso das Nações Unidas


para a Prevenção do Crime e o Tratamento dos Delinqüentes(4)
relativa às soluções alternativas à prisão,

Lembrando também a Resolução 16 do Sétimo Congresso das Nações


Unidas para a Prevenção do Crime e o Tratamento dos
Delinqüentes(5), relativa à redução do número dos reclusos, soluções
alternativas à prisão e reinserção social dos delinqüentes,

Lembrando ainda a secção XI da Resolução 1986/10 do Conselho


Econômico e Social sobre as penas substitutivas da prisão, na qual,
designadamente, era pedido ao Secretário-Geral que elaborasse um
relatório sobre as penas substitutivas da prisão destinado ao Oitavo
Congresso das Nações Unidas para a Prevenção do Crime e o
Tratamento dos Delinqüentes e que estudasse a questão com vista à
formulação de princípios básicos neste domínio, com a assistência
dos institutos das Nações Unidas para a Prevenção do Crime e o
Tratamento dos Delinqüentes,

Consciente da necessidade de elaborar abordagens e estratégias


locais, nacionais, regionais e internacionais no domínio do tratamento
dos delinqüentes em meio aberto, assim como da necessidade de
elaborar regras mínimas, como está sublinhado na secção do relatório
do Comitê para a Prevenção do Crime e a Luta contra a Delinqüência
sobre a sua quarta sessão, relativa aos meios mais eficazes de
prevenir a criminalidade e melhorar o tratamento dos delinqüentes(6),

Convicta de que as penas substitutivas da prisão podem constituir um


meio eficaz de tratar os delinqüentes no seio da coletividade, tanto no
interesse do delinqüente quanto no da sociedade,

Consciente do fato de que as penas restritivas de liberdade só são


justificáveis do ponto de vista da segurança pública, da prevenção do
crime, da necessidade de uma sanção justa e da dissuasão e que o
objetivo último da justiça penal é a reinserção social do delinqüente,

Sublinhando que o aumento da população penitenciária e a


superlotação das prisões em muitos países constituem fatores
susceptíveis de entravar a aplicação das Regras Mínimas para o
tratamento de reclusos,

Tomando nota com satisfação do trabalho realizado pelo Comitê para


a Prevenção do Crime e a Luta contra a Delinqüência, assim como
pela Reunião Preparatória Inter-regional do Oitavo Congresso das
Nações Unidas para a Prevenção do Crime e o Tratamento dos
Delinqüentes, sobre o tema II "As políticas de justiça penal e os
problemas da pena de prisão, as outras sanções penais e as medidas
de substituição", e pelas reuniões regionais preparatórias do Oitavo
Congresso,
55

Exprimindo a sua gratidão ao Instituto Regional das Nações Unidas


da Ásia e Extremo Oriente para a prevenção do crime e o tratamento
dos delinqüentes pelo trabalho realizado com vista à formulação das
Regras Mínimas para a elaboração de medidas não privativas de
liberdade, assim como às diversas organizações intergovernamentais
e não governamentais que participaram nestes trabalhos, em especial
a Fundação Internacional Penal e Penitenciária pela sua contribuição
nas atividades preparatórias,

1. Adota as Regras Mínimas das Nações Unidas para a Elaboração de


Medidas não Privativas de Liberdade, anexas à presente resolução, e
aprova a recomendação do Comitê para a Prevenção do Crime e a
Luta contra a Delinqüência no sentido de que estas regras sejam
denominadas "Regras de Tóquio";

2. Recomenda a implementação e aplicação das Regras de Tóquio à


escala nacional, regional e inter-regional, tendo em conta o contexto
político, econômico, social e cultural e as tradições de cada país;

3. Solicita aos Estados membros que apliquem as Regras de Tóquio


no quadro das suas políticas e práticas;

4. Convida os Estados membros a levarem as Regras de Tóquio à


atenção, especialmente dos responsáveis pela aplicação das leis, do
Ministério Público, dos juízes, dos funcionários encarregados de
controlar a liberdade condicional, dos advogados, das vítimas, dos
delinqüentes, dos serviços sociais e das organizações governamentais
que participam na aplicação das medidas não privativas de liberdade,
e dos representantes do poder executivo e do corpo legislativo assim
como da população;

5. Solicita aos Estados membros que elaborem um relatório de cinco


em cinco anos, a partir de 1994, sobre a aplicação das Regras de
Tóquio;

6. Solicita insistentemente às comissões regionais, aos institutos das


Nações Unidas para a prevenção do crime e o tratamento dos
delinqüentes, às instituições especializadas e outras entidades do
sistema das Nações Unidas, às outras organizações
intergovernamentais competentes e às organizações não
governamentais dotadas de estatuto consultivo junto do Conselho
Econômico e Social que participem ativamente na aplicação das
Regras de Tóquio;

7. Solicita ao Comitê para a Prevenção do Crime e a Luta contra a


Delinqüência, que considere como matéria prioritária, a aplicação da
presente resolução;
56

8. Solicita ao Secretário-Geral que tome as disposições necessárias


para elaborar um comentário sobre as Regras de Tóquio, que será
apresentado para aprovação e ulterior difusão pelo Comitê para a
Prevenção do Crime e a Luta contra a Delinqüência na sua décima
segunda sessão, dando especial atenção às garantias legais, à
aplicação das Regras e à elaboração de princípios diretores similares
a nível regional;

9. Convida os institutos das Nações Unidas para a prevenção do


crime e o tratamento dos delinqüentes a auxiliarem o Secretário-Geral
nesta tarefa;

10. Solicita insistentemente às organizações intergovernamentais e


não governamentais e às outras entidades interessadas que se
associem ativamente a esta iniciativa;

11. Solicita ao Secretário-Geral que tome as medidas necessárias para


assegurar a mais ampla difusão possível das Regras de Tóquio,
designadamente comunicando-as aos Governos, às organizações
intergovernamentais e não governamentais competentes e outras
partes interessadas;

12. Solicita ainda ao Secretário-Geral que elabore, de cinco em cinco


anos, a partir de 1994, um relatório a submeter ao Comitê para a
Prevenção do Crime e a Luta contra a Delinqüência sobre a aplicação
das Regras de Tóquio;

13. Solicita finalmente ao Secretário-Geral que auxilie os Estados


membros, a pedido destes, a aplicarem as Regras de Tóquio e a
elaborarem regularmente um relatório sobre o assunto ao Comitê para
a Prevenção do Crime e a Luta contra a Delinqüência;

14. Solicita que a presente resolução e o anexo junto sejam


comunicados a todos os órgãos das Nações Unidas interessados e
sejam incorporados na próxima edição da publicação das Nações
Unidas intitulada Direitos do Homem: Compilação de Instrumentos
Internacionais.

68.ª sessão plenária (14 de Dezembro de 1990).

Vê-se, pois, os objetivos fundamentais das Regras de Tóquio sobre as medidas


não-privativas de liberdade como regras e garantias mínimas de princípios básicos para a
aplicação das penas alternativas, estimulando o senso de responsabilidade e a participação da
sociedade na administração da Justiça Penal, descritas nos seguintes termos:
57

Regras Mínimas das Nações Unidas para a Elaboração de Medidas


não Privativas de Liberdade (Regras de Tóquio)

I - PRINCÍPIOS GERAIS

1. Objetivos fundamentais

1.1. As presentes Regras Mínimas enunciam uma série de princípios


básicos tendo em vista favorecer o recurso a medidas não privativas
de liberdade, assim como garantias mínimas para as pessoas
submetidas a medidas substitutivas da prisão.

1.2. As presentes Regras visam encorajar a coletividade a participar


mais no processo da justiça penal e, muito especialmente, no
tratamento dos delinqüentes, assim como desenvolver nestes últimos
o sentido da sua responsabilidade para com a sociedade.

1.3. A aplicação das presentes Regras tem em conta a situação


política, econômica, social e cultural de cada país e os fins e objetivos
do seu sistema de justiça penal.

1.4. Os Estados membros esforçam-se por aplicar as presentes Regras


de modo a realizarem um justo equilíbrio entre os direitos dos
delinqüentes, os direitos das vítimas e as preocupações da sociedade
relativas à segurança pública e à prevenção do crime.

1.5. Nos seus sistemas jurídicos respectivos, os Estados membros


esforçam-se por introduzir medidas não privativas de liberdade para
proporcionar outras opções a fim de reduzir o recurso às penas de
prisão e racionalizar as políticas de justiça penal, tendo em
consideração o respeito dos direitos humanos, as exigências da justiça
social e as necessidades de reinserção dos delinqüentes.

2. Campo de aplicação das medidas não privativas de liberdade

2.1. As disposições pertinentes das presentes Regras aplicam-se a


todas as pessoas que são objeto de procedimento de julgamento ou de
execução de sentença, em todas as fases da administração da justiça
penal. Para os fins das presentes Regras, estas pessoas são
denominadas "delinqüentes" - quer se trate de suspeitos, de acusados
ou de condenados.

2.2. As presentes Regras aplicam-se sem discriminação de raça, cor,


sexo, idade, língua, religião, opinião política ou outra, origem
nacional ou social, fortuna, nascimento ou outra condição.

2.3. Para assegurar uma grande flexibilidade que permita tomar em


consideração a natureza e a gravidade da infração, a personalidade e
os antecedentes do delinqüente e a proteção da sociedade e para se
58

evitar o recurso inútil à prisão, o sistema de justiça penal deverá


prever um vasto arsenal de medidas não privativas de liberdade,
desde as medidas que podem ser tomadas antes do processo até às
disposições relativas à aplicação das penas. O número e as espécies
das medidas não privativas de liberdade disponíveis devem ser
determinados de tal modo que se torne possível a fixação coerente da
pena.

2.4. O estabelecimento de novas medidas não privativas de liberdade


deve ser encarada e seguida de perto e a sua aplicação deve ser objeto
de uma avaliação sistemática.

2.5. Procurar-se-á, no respeito das garantias jurídicas e das regras de


direito, tratar o caso dos delinqüentes no quadro da comunidade
evitando o recurso a um processo formal ou aos tribunais.

2.6. As medidas não privativas de liberdade devem ser aplicadas de


acordo com o princípio da intervenção mínima.

2.7. O recurso a medidas não privativas de liberdade deve inscrever-


se no quadro dos esforços de despenalização e de descriminalização,
e não prejudicá-los ou retardá-los.

3. Garantias jurídicas

3.1. A adoção, a definição e a aplicação de medidas não privativas de


liberdade devem ser prescritas por lei.

3.2. A escolha da medida não privativa de liberdade é fundada em


critérios estabelecidos relativos tanto à natureza e gravidade da
infração como à personalidade e antecedentes do delinqüente, ao
objetivo da condenação e aos direitos das vítimas.

3.3. O poder discricionário é exercido pela autoridade judiciária ou


outra autoridade independente competente em todas as fases do
processo, com toda a responsabilidade e de acordo unicamente com
as regras de direito.

3.4. As medidas não privativas de liberdade que impliquem uma


obrigação para o delinqüente e que sejam aplicadas antes do
processo, ou em lugar deste, requerem o consentimento do
delinqüente.

3.5. As decisões relativas à aplicação de medidas não privativas de


liberdade estão subordinadas a exame da autoridade judiciária ou de
qualquer outra autoridade independente competente, a pedido do
delinqüente.
59

3.6. O delinqüente tem o direito de apresentar junto da autoridade


judiciária ou de qualquer outra autoridade independente competente
uma petição ou uma queixa relacionada com aspectos que atinjam os
seus direitos individuais na aplicação das medidas não privativas de
liberdade.

3.7. Devem ser previstas disposições adequadas para o recurso e, se


possível, para a reparação dos prejuízos decorrentes da não
observância dos direitos do homem reconhecidos no plano
internacional.

3.8. As medidas não privativas de liberdade não admitem


experimentações médicas ou psicológicas efetuadas sobre o
delinqüente, nem podem comportar risco indevido de dano físico ou
mental para este.

3.9. A dignidade do delinqüente submetido a medidas não privativas


de liberdade deve estar protegida em qualquer momento.

3.10. Quando da aplicação de medidas não privativas de liberdade, os


direitos do delinqüente não podem ser objeto de restrições que
excedam as autorizadas pela autoridade competente que proferiu a
decisão de aplicar a medida.

3.11. A aplicação de medidas não privativas de liberdade faz-se no


respeito pelo direito do delinqüente e da sua família à vida privada.

3.12. O processo pessoal do delinqüente é estritamente confidencial e


inacessível a terceiros. Só podem ter acesso a ele as pessoas
diretamente interessadas na tramitação do caso, ou outras pessoas
devidamente autorizadas.

4. Cláusula de proteção

4.1. Nenhuma das disposições das presentes Regras deve ser


interpretada como excluindo a aplicação das Regras Mínimas para o
Tratamento de Reclusos(7), das Regras Mínimas das Nações Unidas
para a Administração da Justiça de Menores(8), do Conjunto de
Princípios para a Proteção de Todas as Pessoas sujeitas a Qualquer
Forma de Detenção ou Prisão(9), e dos outros instrumentos e regras
relativos aos direitos do homem reconhecidos pela comunidade
internacional e relativos ao tratamento dos delinqüentes e à proteção
dos seus direitos fundamentais enquanto seres humanos.

II - ANTES DO PROCESSO

5. Medidas que podem ser tomadas antes do processo


60

5.1. Quando isso for adequado e compatível com o seu sistema


jurídico, a polícia, o Ministério Público ou outros serviços
encarregados da justiça penal podem retirar os procedimentos contra
o delinqüente se considerarem que não é necessário recorrer a um
processo judicial para fins da proteção da sociedade, da prevenção do
crime ou da promoção do respeito pela lei ou pelos direitos das
vítimas. Serão fixados critérios em cada sistema jurídico para
determinar se convém retirar os procedimentos ou para decidir sobre
o processo a seguir. Em caso de infração menor, o Ministério Público
pode impor, sendo caso disso, medidas não privativas de liberdade.

6. A prisão preventiva como medida de último recurso

6.1. A prisão preventiva deve ser uma medida de último recurso nos
procedimentos penais, tendo devidamente em conta o inquérito sobre
a presumível infração e a proteção da sociedade e da vítima.

6.2. As medidas substitutivas da prisão preventiva são utilizadas


sempre que possível. A prisão preventiva não deve durar mais do que
o necessário para atingir os objetivos enunciados na regra 6.1. e deve
ser administrada com humanidade e respeitando a dignidade da
pessoa.

6.3. O delinqüente tem o direito de recorrer, em caso de prisão


preventiva, para uma autoridade judiciária ou para qualquer outra
autoridade independente.

III - PROCESSO E CONDENAÇÃO

7. Relatórios de inquéritos sociais

7.1. Quando seja possível obter relatórios de inquéritos sociais, a


autoridade judiciária pode socorrer-se de um relatório preparado por
um funcionário ou organismo competente e autorizado. Este relatório
deverá conter informações sobre o meio social do delinqüente
susceptíveis de explicar o tipo de infração que este comete
habitualmente e as infrações que lhe são concretamente imputadas.
Deverá conter igualmente informações e recomendações pertinentes
para fins de fixação da pena. Os relatórios deste gênero serão
concretos, objetivos e imparciais e as opiniões pessoais serão
claramente indicadas como tais.

8. Penas

8.1. A autoridade judiciária, tendo à sua disposição um arsenal de


medidas não privativas de liberdade, tem em conta, na sua decisão, a
necessidade de reinserção do delinqüente, a proteção da sociedade e
do interesse da vítima, que deve poder ser consultada sempre que for
oportuno.
61

8.2. As autoridades competentes podem tomar as seguintes medidas:

a) Sanções verbais, como a admoestação, a repreensão e a


advertência;
b) Manutenção em liberdade antes da decisão do tribunal;
c) Penas privativas de direitos;
d) Penas econômicas e pecuniárias, como a multa e o dia de multa;
e) Perda ou apreensão;
f) Restituição à vítima ou indenização desta;
g) Condenação suspensa ou suspensão da pena;
h) Regime de prova e vigilância judiciária;
i) Imposição de prestação de serviços à comunidade;
j) Afetação a um estabelecimento aberto;
k) Residência fixa;
l) Qualquer outra forma de tratamento em meio aberto;
m) Uma combinação destas medidas.

IV - APLICAÇÃO DAS PENAS

9. Disposições relativas à aplicação das penas

9.1. As autoridades competentes têm à sua disposição uma vasta


gama de medidas de substituição relativas à aplicação das penas
tendo em vista evitar a prisão e ajudar o delinqüente a reinserir-se
rapidamente na sociedade.

9.2. As medidas relativas à aplicação das penas são entre outras, as


seguintes:

a) Autorizações de saída e colocação em estabelecimento de


reinserção;
b) Libertação para fins de trabalho ou educação;
c) Libertação condicional, segundo diversas fórmulas;
d) Remissão da pena;
e) Indulto.

9.3. As decisões sobre medidas relativas à aplicação das penas estão


subordinadas, exceto no caso da anistia, ao exame da autoridade
judiciária ou de qualquer outra autoridade independente competente,
a pedido do delinqüente.

9.4. Qualquer forma de libertação de um estabelecimento


penitenciário que conduza a medidas não privativas de liberdade deve
ser encarada o mais cedo possível.

V - EXECUÇÃO DAS MEDIDAS NÃO PRIVATIVAS DE


LIBERDADE

10. Vigilância
62

10.1. A vigilância tem por objetivo diminuir os casos de reincidência


e facilitar a reinserção do delinqüente na sociedade de modo a reduzir
ao máximo as oportunidades de reincidência.

10.2. Quando uma medida não privativa de liberdade requer


vigilância, esta é exercida por uma autoridade competente, nas
condições definidas pela lei.

10.3. Para cada medida não privativa de liberdade, convém


determinar o regime de vigilância e tratamento melhor adaptado ao
delinqüente tendo em vista ajudá-lo
a emendar-se. Este regime deve ser periodicamente examinado e,
sendo caso disso, adaptado.

10.4. Os delinqüentes deverão, se necessário, receber uma assistência


psicológica, social e material e serão tomadas disposições para
reforçar os seus laços com a comunidade e facilitar a sua reinserção
na sociedade.

11. Duração das medidas não privativas de liberdade

11.1. A duração das medidas não privativas de liberdade não


ultrapassa o período estabelecido pela autoridade competente de
acordo com a legislação em vigor.

11.2. Pode pôr-se fim a uma medida não privativa de liberdade


quando o delinqüente reage favoravelmente à sua aplicação.

12. Condições das medidas não privativas de liberdade

12.1. Quando a autoridade competente fixa as condições a respeitar


pelo delinqüente, deverá ter em conta as necessidades da sociedade e
as necessidades e os direitos do delinqüente e da vítima.

12.2. Estas condições são práticas, precisas e no menor número


possível e visam evitar a reincidência e aumentar as oportunidades de
reinserção social do delinqüente, tendo também em conta as
necessidades da vítima.

12.3. No começo da aplicação de uma medida não privativa de


liberdade, são explicadas ao delinqüente, oralmente e por escrito, as
condições de aplicação da medida, assim como os seus direitos e
obrigações.

12.4. As condições podem ser modificadas pela autoridade


competente, de acordo com a lei, em função dos progressos
realizados pelo delinqüente.

13. Como assegurar o tratamento


63

13.1. Em certos casos convém, no âmbito de uma medida não


privativa de liberdade, preparar diversas soluções tais como métodos
individualizados, terapia de grupo, programas com alojamento e
tratamento especializado de diversas categorias de delinqüentes,
tendo em vista responder mais eficazmente às necessidades destes
últimos.

13.2. O tratamento é efetuado por especialistas que têm a formação


requerida e uma experiência prática apropriada.

13.3. Quando se decide que um tratamento é necessário, convém


analisar os antecedentes, a personalidade, as aptidões, a inteligência e
os valores do delinqüente, em especial as circunstâncias que
conduziram à infração.

13.4. Para aplicação das medidas não privativas de liberdade, a


autoridade competente pode apelar ao concurso da coletividade e aos
vetores de socialização.

13.5. O número de casos entregues a cada agente deve manter-se,


tanto quanto possível, a um nível razoável a fim de assegurar a
eficácia dos programas de tratamento.

13.6. A autoridade competente abre e gere um processo para cada


delinqüente.

14. Disciplina e desrespeito pelas condições do tratamento

14.1. O desrespeito das condições a observar pelos delinqüentes pode


conduzir à modificação ou à revogação da medida não privativa de
liberdade.

14.2. A modificação ou a revogação da medida não privativa de


liberdade só pode ser decidida pela autoridade competente depois de
um exame pormenorizado dos fatos relatados pelo funcionário
encarregado da vigilância e pelo delinqüente.

14.3. O insucesso de uma medida não privativa de liberdade não deve


conduzir automaticamente a uma medida de prisão.

14.4. Em caso de modificação ou de revogação da medida não


privativa de liberdade, a autoridade competente esforça-se por
encontrar uma solução de substituição adequada. Uma pena privativa
de liberdade só pode ser pronunciada se não existirem outras medidas
adequadas.

14.5. O poder de prender e de deter o delinqüente que não respeita as


condições enunciadas é regido por lei.
64

14.6. Em caso de modificação ou revogação da medida não privativa


de liberdade, o delinqüente tem o direito de recorrer para uma
autoridade judicial ou outra autoridade independente.

VI - PESSOAL

15. Recrutamento

15.1. No recrutamento, ninguém pode ser objeto de uma


discriminação fundada na raça, cor, sexo, idade, língua, religião,
opiniões políticas ou outras, na origem nacional ou social, nos bens,
no nascimento ou qualquer outro motivo. A política de recrutamento
deverá ter em conta as políticas nacionais de ação em favor dos
grupos desfavorecidos e a diversidade dos delinqüentes colocados sob
vigilância.

15.2. As pessoas nomeadas para aplicar medidas não privativas de


liberdade devem ser pessoalmente qualificadas e ter, se possível, uma
formação especializada apropriada e uma certa experiência prática.
Estas qualificações serão claramente definidas.

15.3. A fim de ser possível recrutar e manter pessoal qualificado,


convém assegurar-lhe um estatuto, uma remuneração e vantagens
adequadas, tendo em consideração a natureza do trabalho pedido, e
oferecer-lhe possibilidades de aperfeiçoamento e perspectivas de
carreira.

16. Formação do pessoal

16.1. A formação visa fazer com que o pessoal tome consciência das
suas responsabilidades em matéria de reinserção dos delinqüentes, da
proteção dos direitos dos delinqüentes e da proteção da sociedade.
Deve igualmente sensibilizá-lo para a necessidade de uma cooperação
e de uma coordenação das atividades com outros órgãos competentes.

16.2. Antes de assumirem as suas funções, os agentes receberão uma


formação que incide, designadamente, sobre a natureza das medidas
não privativas de liberdade, os objetivos da vigilância e as diversas
modalidades de aplicação das ditas medidas.

16.3. Uma vez em funções, os agentes manterão atualizados e


desenvolverão os seus conhecimentos e as suas qualificações
profissionais graças a uma formação permanente e a cursos de
reciclagem. Serão previstos meios apropriados para este fim.

VII - VOLUNTARIADO E OUTROS RECURSOS DA


COLECTIVIDADE

17. Participação da coletividade


65

17.1. A participação da coletividade deve ser encorajada, porque


constitui um recurso capital e um dos meios mais importantes de
reforçar laços entre os delinqüentes submetidos a medidas não
privativas de liberdade e as suas famílias e a comunidade. Esta
participação deve completar os esforços dos serviços encarregados de
administrar a justiça penal.

17.2. A participação da coletividade deve ser considerada como uma


oportunidade para os seus membros de contribuírem para a proteção
da sua sociedade.

18. Compreensão e cooperação por parte do público

18.1. Os poderes públicos, o setor privado e o grande público devem


ser encorajados a apoiarem as organizações voluntárias que
participem na aplicação das medidas não privativas de liberdade.

18.2. Devem ser regularmente organizadas conferências, seminários,


simpósios e outras atividades para melhor se fazer sentir que a
participação do público é necessária para a aplicação das medidas não
privativas de liberdade.

18.3. É conveniente recorrer aos meios de comunicação social, sob


todas as suas formas, para fazer com que o público adote uma atitude
construtiva que conduza a atividades apropriadas para favorecerem
uma ampla aplicação do tratamento em meio aberto e a integração
social dos delinqüentes.

18.4. Deve fazer-se tudo para informar o público sobre a importância


do seu papel na aplicação das medidas não privativas de liberdade.

19. Voluntários

19.1. Os voluntários são rigorosamente selecionados e recrutados


segundo as aptidões exigidas para os trabalhos considerados e o
interesse que têm por eles. São convenientemente formados para o
desenvolvimento das funções específicas que lhes sejam confiadas e
podem receber apoio e conselhos da autoridade competente, que
podem também consultar.

19.2. Os voluntários encorajam os delinqüentes e as famílias a


entrarem em ligação concreta com a coletividade e a ampliá-la,
fornecendo-lhes conselhos e qualquer outra forma de assistência
apropriada, de acordo com os seus meios e as necessidades dos
delinqüentes.

19.3. No exercício das suas funções, os voluntários estão cobertos por


um seguro contra acidentes e ferimentos e por um seguro contra
terceiros. As despesas autorizadas relativas ao seu trabalho são-lhes
66

reembolsadas. Os serviços que prestam à comunidade deverão ser


oficialmente reconhecidos.

VIII - INVESTIGAÇÃO, PLANIFICAÇÃO, ELABORAÇÃO


DAS POLÍTICAS E AVALIAÇÃO

20. Investigação e planificação

20.1. Convém procurar interessar as entidades tanto públicas quanto


privadas, na organização e na promoção da investigação sobre o
tratamento dos delinqüentes em meio aberto, que constitui um
aspecto essencial da planificação.

20.2. A investigação sobre os problemas com que se debatem os


indivíduos em causa, os práticos, a comunidade e os responsáveis
deve ser efetuada de modo permanente.

20.3. Os serviços de investigação e de informação devem ser


integrados no sistema de justiça penal para recolher e analisar os
dados estatísticos pertinentes sobre a aplicação do tratamento de
delinqüentes em meio aberto.

21. Elaboração das políticas e preparação dos programas

21.1. Os programas relativos às medidas não privativas de liberdade


devem ser planificados e aplicados de modo sistemático como parte
integrante do sistema de justiça penal no processo de
desenvolvimento nacional.

21.2. Os programas devem ser regularmente revistos e avaliados a


fim de se tornar mais eficaz a aplicação das medidas não privativas de
liberdade.

21.3. Deve efetuar-se um exame periódico para avaliar o


funcionamento das medidas não privativas de liberdade e ver em que
medida conseguem atingir os objetivos que lhes foram fixados.

22. Ligação com outros organismos aparentados e atividades conexas

22.1. Devem ser implementados a diferentes níveis os serviços


necessários para assegurar a ligação entre, por um lado, os serviços
responsáveis pelas medidas não privativas de liberdade, os outros
sectores do sistema da justiça penal, os organismos de
desenvolvimento social e de proteção social, tanto públicos quanto
privados, em domínios tais como a saúde, o alojamento, a educação e
o trabalho, e os meios de comunicação social por outro lado.

23. Cooperação internacional


67

23.1. Far-se-ão esforços para promover a cooperação científica entre


países no domínio do tratamento dos delinqüentes em meio aberto.
Convém reforçar o intercâmbio entre os Estados membros sobre as
medidas não privativas de liberdade quer se trate de investigação, de
formação, de assistência técnica ou de informação por intermédio dos
institutos das Nações Unidas para a prevenção do crime e o
tratamento dos delinqüentes e em estrita colaboração com o serviço
da prevenção do crime e de justiça penal do Centro para o
Desenvolvimento Social e as Questões Humanitárias do Secretariado
da Organização das Nações Unidas.

23.2. Convém encorajar a realização de estudos comparativos e a


harmonização das disposições legislativas para alargar a gama das
opções não institucionais e facilitar a sua aplicação para lá das
fronteiras nacionais, de acordo com o tratado tipo relativo à
transferência de vigilância de delinqüentes que beneficiam de uma
suspensão da execução da pena ou de uma liberdade condicional(10).

Como se vê, existe expressa solicitação e determinação das Nações Unidas aos
Estados Membros no item 4. “a levarem as Regras de Tóquio à atenção, especialmente dos
responsáveis pela aplicação das leis”, no entanto, não são divulgadas e quase nada aplicadas
no nosso ordenamento jurídico.
Embora no item 17.1. as Regras de Tóquio determinem o encorajamento e a
participação da coletividade, porque constitui um recurso capital e um dos meios mais
importantes de reforçar laços entre os delinqüentes submetidos as medidas não privativas de
liberdade e as suas famílias e a comunidade, contudo, até hoje não mereceram atenção
especial, seja pelos responsáveis pela divulgação, seja pelos responsáveis pela aplicação,
sobretudo, quando considera a participação da coletividade “como uma oportunidade para os
seus membros de contribuírem para a proteção da sua sociedade”.
Isso, entretanto, não nos faz desatentos, ao fato de que consta expressamente no
item 14.4., que: “em caso de modificação ou de revogação da medida não privativa de
liberdade, a autoridade competente esforça-se por encontrar uma solução de substituição
adequada. Uma pena privativa de liberdade só pode ser pronunciada se não existirem outras
medidas adequadas”. Contudo, temos visto na jurisprudência pátria a imediata conversão em
pena privativa de liberdade pelo descumprimento da pena restritiva de direitos.
Assim, as autoridades competentes e os operadores do Direito Penal têm à sua
disposição uma vasta gama de medidas para evitar a prisão, reduzir o número de reclusos e
ajudar o delinqüente a se reinserir rapidamente na sociedade.
68

8.1. O Brasil e as Regras de Tóquio

A Constituição Federal de 1988 reconhece a prevalência dos direitos humanos


como princípio fundamental a reger o Brasil nas relações internacionais, nos termos do art. 4º,
II, inclusive com aplicabilidade imediata prevista no § 1º do art. 5º, do texto:

Art. 4º. A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações


internacionais pelos seguintes princípios:
(...)
II - prevalência dos direitos humanos;

Art. 5º. (...)


§ 1º. As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm
aplicação imediata.

Com efeito, não há como negar que as Regras de Tóquio apresentam forças
jurídicas obrigatórias por integrarem o direito costumeiro internacional e os princípios gerais
do direito. Aliás, para a ONU, se a Declaração Universal dos Direitos Humanos não era,
originalmente, compulsória, hoje tem força de jus cogens, ou seja, é um direito “que obriga”,
que se impõe objetivamente aos Estados por integrar o direito costumeiro internacional. Logo,
as Regras de Tóquio possuem imperatividade de caráter especial, diante de sua solenidade e
universalidade.
Tal circunstância, todavia, não vem merecendo a necessária importância das
autoridades públicas brasileiras, muito embora seu conteúdo tenha originado as penas
alternativas e diversos tratados internacionais sobre direitos humanos; conjunto de regras de
ordem pública impositiva e vinculante aos Estados-membros no sentido de que todos devem
envidar esforços para introduzi-las no direito interno.
Ademais, a natureza das obrigações de proteção aos direitos humanos consagra o
indivíduo como principal preocupação da responsabilidade internacional por violação dos
direitos humanos. Daí, a prerrogativa de buscar a tutela junto a ONU pelo descumprimento
das Regras de Tóquio, inclusive com imposição de sanções ao Estado.
Deste modo, qualquer pessoa do povo pode exigir junto a ONU a
responsabilidade do Brasil para que cumpra as Regras de Tóquio tendo em vista que a
jurisprudência internacional considera a responsabilidade do Estado como sendo um princípio
69

geral do Direito Internacional. Mas, o que importa aqui, é ressaltar que as Regras de Tóquio
impõem um equilíbrio (1.4, 3.2, 5.1, etc.) entre os interesses do infrator (ressocialização), da
vítima (reparação do dano) e da comunidade na prevenção e segurança jurídica, promovendo
a utilização de medidas destinadas a reduzir o delito e a reinserção do infrator na sociedade,
conforme consta expressamente no item 8.1., in verbis:

8.1. A autoridade judiciária, tendo à sua disposição um arsenal de


medidas não privativas de liberdade, tem em conta, na sua decisão, a
necessidade de reinserção do delinqüente, a proteção da sociedade e
do interesse da vítima, que deve poder ser consultada sempre que for
oportuno.

Assim, não é possível reduzir o delito e a ressocialização do infrator, dificultando


a sua inserção no mercado de trabalho, tendo em vista que a perda dos bens e valores, sem
compensar o débito tributário, aniquilará a sua possibilidade de recomeçar, seja porque
impede saldar a dívida fiscal, seja porque falta equilíbrio entre os interesses do infrator, da
vítima e da comunidade, seja ainda, por ser injusto, seja também, por ser incoerente, pois o
confisco se deu pela obrigação de indenizar o dano causado pelo crime.
Desse modo, é necessária a compensação do confisco, pois já não parece correto o
fim do Direito penal como instrumento de tirania, ou seja, já não parece legal o Estado não
respeitar as Regras de Tóquio, que embora o Brasil seja um Estado legítimo, mas cruel, por
ser injusto, tendo em vista que a não compensação do confisco apresenta evidente
desequilíbrio entre os interesses do infrator, da vítima e da comunidade.
Ademais, o art. 91 do CP não pode ser interpretado de modo a excluir a aplicação
das Regras mínimas de Tóquio, tendo em vista que a Constituição Federal reconhece a
prevalência dos direitos humanos (art. 4º, II) com aplicabilidade imediata (§ 1º do art. 5º),
sobretudo quando consta expressamente no item 4.1. das Regras de Tóquio, que:

4.1. Nenhuma das disposições das presentes Regras deve ser


interpretada como excluindo a aplicação das Regras Mínimas para o
Tratamento de Reclusos(7), das Regras Mínimas das Nações Unidas
para a Administração da Justiça de Menores(8), do Conjunto de
Princípios para a Proteção de Todas as Pessoas sujeitas a Qualquer
Forma de Detenção ou Prisão(9), e dos outros instrumentos e regras
relativos aos direitos do homem reconhecidos pela comunidade
internacional e relativos ao tratamento dos delinqüentes e à proteção
dos seus direitos fundamentais enquanto seres humanos.
70

Conclui-se, pois, que não poderá mais haver pena de prisão para os crimes de
pequena e média criminalidade (como nos crimes contra a ordem tributária - sem violência),
porque as Regras de Tóquio exigem a redução das penas de prisão e o número de reclusos no
item 8.2., “c”, “d”, “e” e “f”, bem como porque a perda de bens e valores constitui a própria
pena privativa de direito, por força do art. 43, II, do Código Penal, não podendo coexistir
cumulativamente com a pena privativa de liberdade, conforme se passa a demonstrar.

CAPÍTULO IX
9. Caráter Autônomo e Substitutivo das Penas Restritivas de Direito

Com a reforma do Código Penal de 1984, foram introduzidas as penas restritivas


de direitos em nosso ordenamento jurídico pátrio pela Lei 7.209/84, entre elas a prestação de
serviço à comunidade ou a entidades públicas, a interdição temporária de direitos e a
limitação de fim de semana. Essas penas são de caráter substitutivo, que a sociedade apelidou
de “Penas Alternativas”, sem saber que a sua origem adveio das Regras de Tóquio.
Quatorze anos mais tarde, a Lei 9.714/98 reformulou os dispositivos do Código
Penal, introduzindo mais duas penas restritivas de direitos – a prestação pecuniária e a perda
de bens e valores.
71

Pois bem. O que interessa aqui, nesse tópico, é demonstrar que a pena restritiva de
direito é autônoma e substitui a pena privativa de liberdade, como explicita o art. 44 do
Código Penal. O conceito de autonomia, no referido dispositivo legal, diz respeito ao fato de
que a pena restritiva de direito, por si só, já satisfaz o cumprimento da pena privativa de
liberdade. A pena restritiva de direito não pode coexistir com a pena privativa de liberdade, ou
se aplica uma, ou se aplica outra, jamais as duas cumulativamente.
Celso Delmanto15 leciona que: “dentro desse contexto, foram imaginadas as penas
restritivas de direitos: sanções autônomas, que substituíssem as penas privativas de liberdade
(reclusão, detenção ou prisão) por certas restrições ou obrigações, quando preenchidos as
condições legais para a substituição”.
Nesse sentido, é o posicionamento de Ruy Rosado de Aguiar Júnior 16, nos
seguintes termos:

As penas restritivas "possuem caráter substitutivo, não podendo


coexistir com a pena privativa de liberdade, nem ser aplicadas
diretamente, sem antes ser fixada a pena privativa de liberdade".

Com efeito, o Supremo Tribunal Federal17 afirmou que as penas restritivas de


direitos são autônomas e substituem as privativas de liberdade. Logo, não se pode admitir a
imposição cumulada das penas restritivas de direito com a privativa de liberdade, em virtude
da reforma penal introduzida pela Lei 9.714/98, sob pena de constituir um bis in idem de
penas. Confira-se:

HABEAS CORPUS". CÓDIGO PENAL, ART. 228, PARS. 1. E 3..


MOTIVO TORPE. NOS CRIMES CONTRA OS COSTUMES NÃO
INCIDE A AGRAVANTE DO MOTIVO TORPE, "UT" ART. 61, II,
LETRA "A", DO CÓDIGO PENAL, PORQUE ELA INTEGRA O
PRÓPRIO TIPO. INTERDIÇÃO DE DIREITOS. NÃO SE IMPÕE A
INTERDIÇÃO DE DIREITOS CUMULATIVAMENTE COM A
PENA PRIVATIVA DE LIBERDADE. CONSOANTE O ART. 44
DO CÓDIGO PENAL, NA REDAÇÃO VIGENTE, AS PENAS
RESTRITIVAS DE DIREITOS SÃO AUTÔNOMOS E
SUBSTITUEM AS PRIVATIVAS DE LIBERDADE, NAS
15
- DELMANTO, Celso. Código Penal Comentado, 6.ed, Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 84.
16
- ROSADO DE AGUIAR, Ruy Júnior. Revista Síntese de Direito Penal e Processual Penal nº 03 - AGO-
SET/2000, pág. 24.
17
- Brasil. STF. HC 70.355/MG. 2ª T. Min. Rel. NÉRI DA SILVEIRA, julgado em 29.06.93.
72

HIPÓTESES PREVISTAS NA LEI. POSSUEM CARÁTER


SUBSTITUTIVO, NÃO PODENDO COEXISTIR COM A PENA
PRIVATIVA DE LIBERDADE, NEM SER APLICADAS
DIRETAMENTE, SEM ANTES SER FIXADA A PENA
PRIVATIVA DE LIBERDADE, QUE SERÁ POR ELAS
SUBSTITUÍDA, QUANDO COUBER. "HABEAS CORPUS"
DEFERIDO, EM PARTE, PARA EXCLUIR DA SENTENÇA A
AGRAVAÇÃO DE UM SEXTO (CP, ART. 61, II, LETRA "A") E
CANCELAR A PENA DE INTERDIÇÃO TEMPORÁRIA DE
DIREITOS (CP. ART. 47, II), RESULTANDO DISSO PASSAR A
PENA IMPOSTA AO PACIENTE A SER DE QUATRO ANOS DE
RECLUSÃO E DEZ DIAS-MULTA. EXTENSÃO DA DECISÃO
AOS CO-RÉUS.

Desta forma, não encontra apoio legal, a cumulação da perda de bens e valores
com a pena privativa de liberdade, ainda que seja ao argumento de efeitos secundários da
condenação penal, porque a regra do art. 44 do CP, estabelece que as penas restritivas de
direitos sejam sempre autônomas, não podendo coexistir com a pena privativa de liberdade.

9.1. Perda de Bens e Valores é a Própria Pena Restritiva de Direito

Fixada a impossibilidade de declarar a pena restritiva de direito cumulada com a


pena privativa de liberdade, cumpre agora demonstrar, que a perda de bens e valores é a
própria pena restritiva de direito, que substitui a pena privativa de liberdade, pois já não se
pode considerar a regra do art. 91, II, “b”, do Código Penal, como mero efeito secundário da
condenação penal, tendo em vista a introdução no Direito Penal da perda de bens e valores
como pena restritiva de direito pela Lei 9.714/98.
A novidade introduzida pela Lei 9.714/98 não eliminou o disposto no art. 91 do
CP, que prevê como efeito secundário da condenação penal, a perda de bens e valores em
favor da União, mas equiparou a sua aplicação, por via transversa, a própria pena restritiva de
direito à perda de bens e valores, conforme disposto no Código Penal:

Art. 43. As penas restritivas de direitos são:


(...)
II - perda de bens e valores;

Art. 44. As penas restritivas de direitos são autônomas e substituem


as privativas de liberdade (...).

Art. 45. (...)


73

§ 3º. A perda de bens e valores pertencentes aos condenados dar-se-á,


ressalvada a legislação especial, em favor do Fundo Penitenciário
Nacional, e seu valor terá como teto - o que for maior - o montante do
prejuízo causado ou do provento obtido pelo agente ou por terceiro,
em conseqüência da prática do crime.

Assim sendo, a perda de bens e valores transcende os efeitos secundários da


condenação penal disposto no art. 91, II, “b”, do CP, eis que recai sobre todo o produto ou o
proveito obtido em conseqüência da prática do crime, incidindo por via transversa como
verdadeira pena restritiva de direito, nos moldes do arts. 44 e 43, II, definida no art. 45, § 3º,
do CP. Logo, não há diferença entre as regras do art. 91, II, “b” e a do art. 43, II, do mesmo
Codex, para os quais as sanções são idênticas: perda de bens e valores.
Deste modo, haverá um bis in idem se se considerar que o primeiro se presta
apenas para reparar o dano e o segundo para punir, quando é certo que em ambos estabelece a
mesma pena a perda de bens e valores e, por isso não pode ser considerado mero efeito
secundário da condenação penal, mas sim a própria pena restritiva de direito.
Por esta razão, não se pode aceitar que o agente sofra duas punições que se
somarão: a do art. 91, II, “b” e a do art. 43, ambas do Código Penal. Haverá, sem dúvida, pelo
mesmo fato, um cúmulo de penas, ferindo-se o princípio da razoabilidade e
proporcionalidade, ao se somar sanções não cumulativas pelo mesmo fato, em especial se
forem idênticas, por exemplo, duas penas restritivas de direito (art. 43, CP: I – prestação
pecuniária e II - perda de bens e valores), ou pena de prisão e pena restritiva de direitos.
As sanções que se somam não têm distinções e guardam as mesmas finalidades,
retribuições e conteúdo de censura moral, porquanto ambas são penas restritivas de direito.
Aliás, uma das razões de ser da pena restritiva de direitos é chegar-se à perda de
bens e valores do infrator, que na hipótese de ocorrer, não deve ser cumulada com outra pena
restritiva de direito ou de prisão. Fora isso, é desconhecer a ordem lógica das coisas, o
princípio próprio à lógica da razão suficiente, da não-contradição. A perda de bens e valores
existe como pena restritiva de direito e, se esta foi implementada, ainda que seja ao argumento
de efeito secundário da condenação penal, inadmissível é a aplicação de outra modalidade de
pena, seja restritiva de direito, seja de prisão.
74

CAPÍTULO X
10. Princípio do Enriquecimento sem Causa

O conteúdo normativo do princípio da vedação do enriquecimento sem causa está


disciplinado no Código Civil, verbis:
Art. 884. Aquele que, sem justa causa, se enriquecer à custa de
outrem, será obrigado a restituir o indevidamente auferido, feita a
atualização dos valores monetários.
75

Destarte, o enriquecimento sem causa constitui um incremento do patrimônio de


alguém, em detrimento do patrimônio de outrem, sendo considerado um princípio geral de
direito. Nesse aspecto, assevera García de Enterria18:

(...) los principios generales del Derecho son una condensación de


los grandes valores jurídicos materiales que constituyen el
substractum del Ordenamiento y de la experiencia reiterada de la
vida jurídica. No consisten, pues, en una abstracta e indeterminada
invocación de la justicia o de la consciencia moral o de la discreción
del juez, sino, más bien, en la expresión de una justicia material
especificada técnicamente en función de los problemas jurídicos
concretos y objetivada en la lógica misma de lãs instituciones.

Em consonância com esta argumentação, Celso Antônio Bandeira de Mello 19,


inspirado pela conceituação de Oswaldo Aranha Bandeira de Mello, estabelece que os
princípios gerais do direito, são os que:

(...) se infiltram no ordenamento jurídico de dado momento histórico'


e traduzem 'o mínimo de moralidade que circunda o preceito legal,
latente na fórmula escrita ou costumeira' e ao ressaltar que são 'as
teses jurídicas genéricas que informam o ordenamento jurídico-
positivo do Estado', conquanto não se achem expressadas em texto
legal específico. No exemplário de tais princípios gerais, o autor
menciona, entre outros, o de que ninguém deve ser punido sem ser
ouvido, o do enriquecimento sem causa, o de que ninguém pode se
beneficiar da própria malícia (...).

Portanto, uma vez considerado como princípio geral do direito, o enriquecimento


sem causa não está apenas atrelado à esfera privada, pois também é aplicado no direito
administrativo. Assim, ainda que o confisco tenha natureza distinta do tributo e tenha sido
aplicado, em virtude da condenação penal, não se pode dizer que a perda de bens e valores
não produziu efeitos, seja a capacidade econômica do agente, seja aos cofres da União.
Errado, portanto, dizer-se que os efeitos secundários da condenação penal são
automáticos e não tem natureza reparatória nem se comunicam com a pena restritiva de

18
- GARCÍA DE ENTERRIA, Eduardo; RAMÓN FERNÁNDEZ, Tomás. Curso de Derecho
Administrativo. 3.ed., vol. I. Madrid: Civitas, 1981, p. 400.
19
- MELLO, Celso Antônio Bandeira. O Princípio do Enriquecimento Sem Causa em Direito
Administrativo. Revista Eletrônica de Direito Administrativo Econômico, Salvador, Instituto de Direito
Público da Bahia, n.º 5, fev./mar./abril de 2006, p. 5.
76

direito e nem substituem a pena privativa de liberdade. Aliás, ninguém cogitaria de impor o
confisco, senão pelos efeitos que produz ou que poderia produzir.
Ademais, cumpre ressaltar que não se trata de erro na aplicação da regra do art.
91, II, “b”, do CP, por parte do juiz, pois é constitucional, mas o recebimento de verba pelos
efeitos secundários da condenação penal, ao argumento de tornar certa a obrigação de
indenizar o dano causado a União pelo crime, a qual não poderia locupletar-se, sem
compensar os créditos tributários exigidos pela Administração, seja porque tais créditos
fundamentam a condenação penal, seja porque tais créditos são os próprios danos causados
pelo crime do art. 1º da Lei 8.137/90.
Nesse sentido, leciona Ruy Rosado de Aguiar Júnior20, que a pena substitutiva de
prestação pecuniária tem natureza indenizatória pelo dano causado pelo crime, in verbis:

Como tem natureza reparatória, o valor pago será deduzido do


montante de eventual condenação em ação de reparação civil, se
coincidentes os beneficiários. Distingue-se da multa penitenciária,
pois esta não tem aquela finalidade e se destina à Fazenda Pública
(art. 51); também não se confunde com a multa reparatória do art. 297
do CTB, que, embora tenha o mesmo caráter indenizatório e seja
paga em favor da vítima ou seus sucessores, tem esta como
pressuposto a existência de prejuízo material resultante do delito, a
cujo valor está limitada.

Note-se, pois, se o agente pratica um crime contra um cidadão e ocorrendo a perda


de bens e valores, haverá sua dedução na reparação civil. Logo, não há porque negar o mesmo
tratamento ao agente que pratica um crime contra a União e ocorrendo o confisco de bens e
valores, ser privado do direito de deduzir o débito tributário.
Assim sendo, não é lícito a União ficar com o produto do crime e ainda exigir o
crédito tributário que embasou a própria condenação penal que deu origem ao confisco, ou
seja, sem compensar o crédito tributário no âmbito da esfera administrativa (dano causado).
Em suma, a supressão ou a redução do tributo foi diretamente adquirida com a
prática delituosa, que foram perdidas a fim de garantir a indenização à União. Logo,
permanecer inalterado o crédito fiscal na esfera administrativa ou na execução fiscal que
embasou a condenação penal pelo crime previsto no art. 1º da Lei 8.137/90 constitui
enriquecimento sem causa da União e viola o princípio da capacidade econômica.

20
- ROSADO DE AGUIAR, Ruy Júnior. Revista Síntese de Direito Penal e Processual Penal nº 03 -
AGO-SET/2000, pág. 24.
77

Assim, a compensação do tributo é medida necessária que se impõe, sobretudo


para o retorno do infrator no meio social, porque constitui recurso capital e meio importante
para reinseri-lo no mercado de trabalho e reforçar os laços entre o delinqüente e a
comunidade.

10.1. Princípio da Capacidade Econômica

O princípio da capacidade econômica foi introduzido no nosso sistema jurídico


pelo art. 202 da Constituição de 1946, que assim dispõe:

Art. 202. Os tributos terão caráter pessoal sempre que isso for
possível, e serão graduados conforme a capacidade econômica do
contribuinte.

Atualmente, inserido no art. 145, § 1º da Constituição Federal, in verbis:

§ 1º. Sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão


graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte,
facultado à administração tributária, especialmente para conferir
efetividade a esses objetivos, identificar, respeitados os direitos
individuais e nos termos da lei, o patrimônio, os rendimentos e as
atividades econômicas do contribuinte.

Verifica-se, pois, as limitações constitucionais, não só ao poder de exigir tributo,


mas principalmente a capacidade de pagar tributo, em virtude da ausência absoluta ou relativa
da fortuna do condenado que foi absorvida pela União e, por isso, deve compensar o crédito
tributário até o quantum recebido pelo confisco.
Esse entendimento encontra guarida na cabal lição de Hugo de Brito Machado 21,
no ponto, verbis:

A insubsistência do fato tributável, com a completa supressão de seus


efeitos econômicos, implica inexoravelmente a impossibilidade de
exigência do tributo, porque leva ao desaparecimento do suporte
fático de incidência da norma de tributação, que é o signo presuntivo
de capacidade contributiva. Assim, tanto do ponto de vista da lógica
jurídica formal não se pode mais falar de obrigação tributária, à

21
- MACHADO, Hugo de Brito. Curso de direito tributário. 26. ed., São Paulo: Malheiros, 2005, p. 146.
78

míngua do fato gerador respectivo, como do ponto de vista axiológico


não se pode mais falar de capacidade contributiva, que desaparece
com o perdimento da riqueza sobre a qual incidiria o tributo.

Destarte, se o agente perde os bens e valores que foram auferidos com a prática do
fato criminoso por deixar de repassar o tributo devido a União, não poderá ser intitulado
contribuinte, porque não mais possui a riqueza resultante do crime praticado, em virtude do
confisco, que ocasionou a perda da capacidade econômica. Daí, ainda deriva o direito do
condenado de compensar o crédito tributário, dos valores já percebidos pela União por meio
do confisco, porque a perda de bens e valores irradia seus efeitos também à capacidade
econômica do infrator.

10.2. Princípio da Função Social da Pena

A pena é conseqüência jurídica imposta pelo Estado pela violação de um preceito


penal. Com efeito, desde a Revolução Francesa toda pena desnecessária é tirânica. Logo, a
pena deve ser suficiente e necessária para a prevenção e a socialização do delinqüente.
O Código Penal de 1940, representante de uma sociedade capitalista e
patrimonial, reconhecia apenas a pena de reclusão de liberdade, a qual era tida como medida
fundamental da sociedade, em especial, para ser protegida contra os crimes patrimoniais.
A experiência clássica marcada pelo positivismo para “cientificar” o Direito
purificando e neutralizando fez com que o Direito Penal se afastasse da realidade social,
transformando o ser humano em um mero observador, pois se fundava num juízo da ciência
das normas (neutralidade e objetividade) e não de valor.
A neutralidade afastou por completo o operador do direito de seu objeto, de modo
que não fosse influenciado pelo meio social. A objetividade é a verificação das regras validas,
independente do observador, que permita a sua aplicação.
O positivismo resultou decisões descompassadas com a realidade social, já que o
Direito era considerado uma ciência neutra e objetiva.
Percebeu-se, a partir do materialismo histórico de Marx e do inconsciente de
Freud, que o Direito é o produto da cultura, representando a visão de mundo de pessoas
concretas, com uma determinada experiência de vida, em um determinado momento e tempo.
79

A neutralidade, tão almejada pelo positivismo, era impossível, porque


pressupunha um observador sem historia, sem memória, sem desejos, uma irrealidade, quando
o desejável é um interprete ciente de sua realidade social, cuja atuação não consista na
reprodução inconsciente da norma, mas sim sujeito à interpretação que veicula várias
possibilidades a serem adotadas para atender a finalidade social.
A Constituição Federal é a sede dessa finalidade social, que através dos princípios
irradia os direitos e garantias dos cidadãos. Nela, encontramos a dignidade da pessoa humana
(CR/88, art. 1º, III), a qual o Estado tem o dever de respeito e proteção do indivíduo contra
penas desnecessárias, exacerbadas, ofensivas ou humilhantes; a lei regulará a individualização
da pena (CR/88, art. 5º, XLVI), tornando adaptável a pena à realidade subjetiva especifica
para cada infrator, sob pena do retorno primitivo do sistema das punições; a pena será
cumprida em estabelecimentos distintos, de acordo com a natureza do delito, a idade e o sexo
do apenado (CR/88, art. 5º, XLVIII), visando recuperar o infrator, e não o seu
desenvolvimento na atividade criminosa, o que jamais será alcançado através do cumprimento
da pena no mesmo estabelecimento prisional, utilizando e transformando as pessoas mais
frágeis e menos experientes em um mero objeto dos mais experientes e fortes.
Tendo em vista esses princípios, resta claro que a pessoa humana, não deve ser
vista apenas sob o prisma da produção do indivíduo, sob pena de resultar num individualismo
extremo, mas deve ser vista em seu aspecto social, um membro da sociedade.
Contudo, o sistema penal é formal, só existe no papel. Materialmente é corrupto e
degenerador de pessoas, verdadeiro depósito humano, sem a menor dignidade humana, nas
quais as pessoas se vêem envolvidas num cipoal de regras internas revolucionárias e
necessárias para garantir a sua sobrevivência, compelido-as a associarem-se e permanecerem
associadas, mantidas em servidão e submetidas aos criminosos mais experientes e fortes, sem
qualquer proteção do Estado, restando violados, sem números, de direitos e garantias
fundamentais do condenado.
A Lei 9.714/98 veio a baila por isso, e alterou o art. 43 e ss do CP, introduzindo
novo sistema penal alternativo brasileiro, afastando-se do modelo clássico que privilegia o
encarceramento, por não acreditar na função da prisão, procurando sancionar o infrator com
penas e medidas alternativas, sem tirá-lo do convívio da familiar, profissional e social.
Por tais motivos, é que surgiu o perdão judicial, em que se deixa de aplicar à pena
quando se verifica que ela é desnecessária, porque a dor sofrida pelo agente já é suficiente
80

pela reprovação do crime; a bagatela por revelar desnecessária a pena, embora relevante o
fato, mas insignificantes as conseqüências, sendo excessiva e desnecessária a pena.
Desse modo, é que a pena de prisão vem perdendo a sua indistinta e genérica
aplicação, aproveitando, apenas, aos casos excepcionais, como uma excelente providência de
política criminal para evitar que o infrator sem periculosidade, no cárcere, venha ser mais um
especialista na faculdade do crime, tendo em vista que o nosso sistema carcerário é muito
bonito somente no papel. Na prática é um desastre!
Dessa forma, é necessário verificar se a pena tem cumprindo a sua função social,
garantindo a sua eficácia e relevância, tendo como norte o fim que se destina o Direito Penal,
que é a proteção e o equilíbrio da sociedade através da defesa dos bens jurídicos relevantes,
superando o costume da privação da liberdade como solução genérica dos problemas da
sociedade, pois a pena suficiente e necessária passa pelo crivo da racionalidade.
Assim, impõe-se, atualmente, um novo raciocínio jurídico das penas, raciocínio
esse que atenda aos anseios constitucionais sobre a aplicação da pena, que atenda a sua função
social, isto é, que seja capaz de devolver a sociedade o condenado em condição melhor do que
quando ele entrou no sistema carcerário. As penas restritivas de direitos vêm atendendo essa
função social, eis que tem alcançado redução maior de reincidência que as penas privativas de
liberdade.
Portanto, o juiz tem o dever constitucional de aplicar penas que realmente atenda
a função social, inclusive, no lugar de prestação de serviço à comunidade ou a entidades
públicas, deveria ministrar cursos de valores éticos de cidadania e profissionalizantes,
inserindo o infrator no mercado de trabalho, com inclusão da função social na sua família,
pois não se pode esquecer que a família é a base da sociedade e que todo infrator, de alguma
forma, teve a sua origem em uma família, reintroduzindo em sua origem as idéias e os valores
sociais do trabalho e da livre iniciativa de todos os cidadãos.
Destarte, as penas necessitam passar pelo crivo da racionalidade contemporânea,
impedindo que o condenado se torne um instrumento de revolta, violência e represália, pois só
assim o Direito Penal poderá cumprir a sua função preventiva e socializadora. Este novo
modelo racional de Política Criminal é o que se defende para o nosso país.
Por conseguinte, a pena eficaz é aquela adaptada as circunstâncias de modo,
tempo e lugar, e aos avanços e dificuldades da sociedade, prevenindo e socializando o
infrator, pois toda pena exacerbada, é desnecessária, desumana e tirânica.
81

De igual modo, revela-se tirânica a não compensação do crédito tributário devido


na esfera administrativa com os valores percebidos pelo confisco, seja porque os bens e
valores perdidos foram para indenizar o dano causado a União pela sonegação fiscal, seja
porque o confisco se deu para a restauração da infração (do não recolhimento do tributo), seja
ainda porque revela enriquecimento sem causa da União a não compensação, seja também
porque é desproporcional ao injusto praticado a não compensação, seja mesmo porque o
ordenamento jurídico veda a cumulação de pena restritiva de direito (perda dos bens e
valores) com pena privativa de liberdade, seja até porque injusta e desnecessária a não
compensação do confisco, seja por fim porque tirânica e exacerbada a pena da perda de bens e
valores cumulada com a pena de multa mais pena de reclusão de liberdade do infrator.

CAPÍTULO XI
11. Conclusão

Houve modificações na estrutura das penas no Direito Penal, desde a introdução


da Lei 9.714/98. Antes, o confisco esteve assentado como conseqüência extrapenal genérica
da condenação passada em julgado, independente da pena privativa de liberdade, inclusive
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naquela época o confisco dispensava sua expressa declaração na sentença condenatória e, uma
vez condenado, a partir do momento em que se torna irrecorrível, incidiam os efeitos
secundários da condenação penal para fins de reparação de dano.
Em reação a Escola Clássica, surgiram as Regras de Tóquio solicitando aos
Estados-Membros a aplicação de penas alternativas à prisão, visando à redução do número de
reclusos e a reinserção social dos delinqüentes e o seu afastamento da família e da sociedade.
Em razão disso, a sociedade passou a exigir do Estado o reconhecimento a
dignidade da pessoa humana como fundamento da liberdade, para que o homem não seja
compelido à punição degradante e, foi então que no dia 5 de outubro de 1988 foi promulgada
a Constituição da República Federativa do Brasil, reconhecendo a prevalência dos direitos
humanos como princípio fundamental a reger o Brasil, limitando as punições cruéis e
torturantes e evitando os abusos e arbitrariedades que sempre ensejaram a prisão.
Assim, as mudanças drásticas e céleres de cunho social e política criminal,
passaram a exigir transformações e atualizações nas penas e no direito penal brasileiro. E,
portanto, foram essas exigências da sociedade moderna que influenciaram as Regras de
Tóquio e, por conseqüência, o Código Penal através da Lei 7.209/84 introduziu as penas
restritivas de direito e, posteriormente, a Lei 9.714/98, que alterou a redação do art. 43, II, do
CP, que passou a ser pena restritiva de direito a perda de bens e valores.
É patente que nos últimos tempos o direito penal brasileiro tem abraçado os
tratados internacionais sobre direitos humanos que apresentam forças jurídicas obrigatórias
jus cogens que impõem objetivamente aos Estados por integrarem o direito costumeiro
internacional. Assim, a dicotomia clássica do direito penal positivo vem perdendo campo,
dando lugar a novas interpretações do direito penal e da aplicação das penas, com o objetivo
de reduzir o número de reclusos, soluções alternativas à prisão e reinserção social do infrator
como a melhor maneira para a preservação da dignidade da pessoa humana.
O direito penal racional não aceita o Estado opressivo, injusto e cruel, punindo
com penas rigorosas visando apenas retribuir ao infrator o mal por ele praticado, sem qualquer
caráter de ressocialização, sobretudo, sem a preservação da dignidade da pessoa humana,
como cerne de todo o sistema jurídico penal. A tendência moderna é no sentido de que o
direito penal deve utilizar de meios eficazes para prevenir a criminalidade, o que só pode ser
alcançado melhorando o tratamento dos transgressores.
83

Deste modo, caem as barreiras que dividem de forma intransponível o direito


clássico do alternativo, dando espaço às penas alternativas, até mesmo porque positivadas no
nosso ordenamento jurídico pátrio, inclusive através das Regras de Tóquio.
O novo Estado Democrático de Direito, mais relativizado, não permite que a
norma normalize irracionalmente as pessoas agrupadas. O positivismo já não nos engessa,
sendo necessário compatibilizar com o ordenamento jurídico pátrio. Existe uma evidente e
clara dinâmica, mutação na interpretação da norma quando se verifica que ela rompe com os
valores da sociedade e colide com os princípios Constitucionais, sobretudo, porque o Estado
Democrático de Direito se regula pelos direitos e deveres de respeito aos cidadãos e aos
princípios Constitucionais, os quais existem justamente para limitar o poder do Estado.
Assim, os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade vêm sendo
utilizados para aferir legitimidade das restrições de direitos das pessoas e emana da idéia, de
justa medida, limitando os excessos e abusos praticados pelo Estado.
O instituto da pena de perdimento atendendo aos anseios sociais evoluiu
grandemente, inserindo a relevante figura da não incidência tributária sobre bens que tenham
sido objeto de pena de perdimento, em seu art. 85 do Decreto 91.030/85, tendo em vista que o
confisco adentra o campo da própria pena em face da privação do patrimônio. Assim, se no
mundo dos fatos, a hipótese de incidência tributária não subsiste, ou ainda que existam seus
efeitos tributários, resta legítima a pretensão de compensação dos créditos tributários, quer
sob o prisma da lógica jurídica formal do confisco - indenizar o dano causado - quer sob o
prisma axiológico - ausência de capacidade econômica, que desaparece com o perdimento do
produto do crime, da riqueza sobre a qual incidiria os tributos.
Muito embora alguns doutrinadores sustentem que são automáticas e genéricas as
conseqüências extrapenais da condenação, convém observar que o tributo só será devido,
naquele quantum não alcançado pelo confisco. Se assim não fosse, beneficiaria o sujeito que
praticasse o ilícito tributário previsto no art. 334 do CP. Enquanto, que, para o sujeito que
praticasse o ilícito previsto no art. 1º da Lei 8.137/90, dar-se-ia tratamento exacerbado, sendo
que o confisco e a pena de perdimento têm a mesma natureza de sanção (pena) por ato ilícito.
A mutação na interpretação das leis, não se coloca apenas na hermenêutica
jurídica isolada, mas também na interpretação do conjunto de enunciados. Com efeito, no art.
91, II, “b”, CP, consta expressamente que são efeitos da condenação penal “tornar certa a
obrigação de indenizar o dano causado pelo crime” e no §1º do art. 45 do CP, que “o valor
pago será deduzido do montante de eventual condenação em ação reparatória civil, se
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coincidentes os beneficiários”. O juiz deve extrair, nesse processo hermenêutico, a máxima


eficácia dessas regras, como forma de viabilizar a compensação do confisco frente ao crédito
tributário da União, sob pena de se tornarem palavras vãs.
Note-se, pois que o §1º do art. 45 do CP, tem o objetivo de reequilibrar a relação
entre vítima e transgressor, de um lado, evitando que o agente se beneficie do proveito
auferido com crime, de outro, evitando o enriquecimento sem causa da vítima. Assim, ainda
que o confisco tenha natureza distinta do tributo, não se pode dizer que a perda de bens e
valores não produziu seus efeitos, seja ao patrimônio do infrator (princípio da capacidade
econômica), seja ao patrimônio da União (princípio do enriquecimento sem causa). Logo, é
conseqüência direta e imediata do confisco a obrigação de indenizar o dano causado pelo
crime e, por isso, deve ser compensado o crédito tributário suprimido ou reduzido, sob pena
de violação aos princípios da perda da capacidade econômica, da proporcionalidade, da
razoabilidade e do enriquecimento sem causa.
De outra banda, a Lei 9.714/98 introduziu no Código Penal “perda de bens e
valores”, como pena restritiva de direito, de forma autônoma e substitutiva a pena privativa de
liberdade, como explicitam os arts. 43, II, e 44 do CP.
Nessa esteira, a perda de bens e valores já não pode mais ser vista como mero
efeito secundário da condenação penal, mas sim como a própria pena restritiva de direito, por
força transversa do art. art. 43, II, do CP, substituindo a prisão como pena restritiva de direito.
Logo, não se pode cumular a perda de bens e valores com a prisão.
O princípio da função social da pena resta claro que a pena não deve ser vista
somente como uma resposta rigorosa do Estado, visando só retribuir ao transgressor o mal por
ele praticado, fazendo crer, que isso impeça a ocorrência de novos delitos e que tenha caráter
de ressocialização, quando é certo que a prisão sempre foi o grande fracasso do direito penal.
A pena deve ser vista, ainda, em seu aspecto social, eis que a pessoa antes de ser
um infrator, é membro da sociedade, e teve a sua base em uma família que é à base da
sociedade, pois “certamente, esses mesmos julgadores, enquanto membros dessa mesma
sociedade, na qual circulam, tanto quanto seus parentes e amigos, têm tudo para virem, tanto
quanto seus familiares e amigos, cedo ou tarde, a ser vítimas22”.
Do mesmo modo, é necessário que a pena alcance a sua função social, que
devolva a sociedade o infrator em condição melhor do que quando infringiu a lei penal e isso
só será possível, passando pelo crivo da racionalidade, através de penas que visem inserir o
22
- SUANNES, Adauto. Os Fundamentos Éticos do Devido Processo Penal. São Paulo: RT, pág. 33.
85

infrator no mercado de trabalho, ministrando valores éticos e cursos profissionalizantes, com


a inclusão social da sua família, tendo como norte o fim que se destina o Direito Penal
moderno que é a proteção e o equilíbrio da sociedade através da defesa dos bens jurídicos
relevantes. Logo, as penas necessitam passar pelo crivo da racionalidade, impedindo que o
infrator se torne um instrumento de revolta, de violência e de represália, pois só assim, o
Direito Penal poderá cumprir a sua função preventiva e socializadora.
Destarte, na hipótese de condenação penal pelo crime previsto no art. 1º da Lei
8.137/90, consistente na fraude que resulte da supressão ou redução de tributo devido,
surgem diversos questionamentos, dentre outros, se é possível cumular a sanção de perda de
bens e valores com a pena privativa da liberdade após a introdução da Lei 9.714/98 que
alterou o art. 43, II, do Código Penal e, também, se é possível compensar os valores
percebidos pela União decorrentes de confisco no âmbito da esfera penal a título de
tornar certa a obrigação de indenizar o dano causado pelo crime.
Quanto à primeira indagação, demonstrada que a perda de bens e valores é pena
restritiva de direito (art. 43, II, CP), resta incontroverso, que possui caráter substitutivo, não
podendo coexistir com a pena privativa de liberdade, nem ser aplicada cumulativamente, por
determinação expressa do art. 44, do CP.
No que concerne à segunda indagação, a ordem jurídica constitucional impõe a
compensação do confisco, seja do ponto de vista do Direito Penal, seja do ponto de vista do
Direito Tributário, na medida em que a perda de bens e valores pressupõe a obrigação de
indenizar o dano causado pelo crime (art. 91, II, “b”, CP); pressupõe também, a perda da
capacidade econômica em virtude do confisco (art. 145, § 1º, CF); pressupõe ainda, a não
incidência de tributo no confisco (art. 85, III, Decreto nº 91.030/85).
Em face de todo o exposto, percebe-se o abuso de poder e desvio de finalidade da
regra prevista no art. 91, II, “b”, CP, pois baseados em motivos diversos daqueles fins
determinados pela lei, que é “tornar certa a obrigação de indenizar o dano causado pelo
crime”, a União deixa de compensar a perda de bens e valores frente ao tributo reduzido ou
suprimido, e ainda, cumula com a pena de prisão.
Daí porque, não se deverá negar ao infrator o direito de compensação do crédito
tributário com os valores já percebidos pelo confisco na esfera penal. A razão reside no fato
de que essa riqueza adquirida pelo infrator sempre pertenceu a União, apenas não lhe havia
sido repassada e, por isso, impõe-se a compensação, pois o suporte jurídico a respaldar o
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confisco – como efeito secundário da condenação penal –, é tornar certa a obrigação de


indenizar o dano causado pelo crime.
Mesmo que se queira sustentar a autonomia cientifica do Direito Tributário,
distinguindo entre as sanções penais repressivas, campo próprio do Direito Penal, e obrigação
tributária, fato gerador de tributo não penal, ainda assim, a pretensão não merece prosperar,
porque a sanção penal do art. 91, II, “b”, CP, tem por finalidade indenizar o dano causado
pelo não pagamento do tributo, objeto direto do crime do art. 1º da Lei 8.137/90.
Precisamente para limitar o poder do Estado e evitar situações como essa, posta a
desate, na presente monografia, na qual a União vem obtendo um locupletamento à custa do
patrimônio alheio do condenado, consistente na não compensação dos créditos tributários com
os valores já percebidos em esfera penal pelo confisco. Isto porque, universalmente, se acolhe
o princípio jurídico segundo o qual prescreve o enriquecimento sem causa que desabona a
interpretação que favoreça este resultado injusto, abominado pela consciência dos povos.
A interpretação do ordenamento pátrio é uma tarefa jurídica que se sujeita aos
cânones de racionalidade e de motivação exigíveis das decisões proferidas pelo Poder
Judiciário, não podendo ser cega às regras introduzidas no ordenamento jurídico pátrio, nem
fazer vistas grossas aos seus efeitos ou indiferente às conseqüências sociais de suas decisões.
Logo, para impedir resultados injustos ou danosos ao bem comum, o juiz deve agir,
sopesando e conciliando os institutos na busca da finalidade que se destinam, pois contra os
direitos e garantias fundamentais o magistrado não pode nem deve decidir jamais e, em caso
de conflito, entre o direito e a política, está vinculada ao direito.
Não foi possível, verificar se atualmente é plausível afirmar que são genéricas e
automáticas as conseqüências extrapenais, dispensando ou não a sua expressa declaração na
sentença condenatória. Igualmente, não foi possível examinar, se é necessário ou não o
Ministério Público mencionar na denúncia os bens e valores que pretende sejam confiscados,
frente aos princípios vigentes que foram introduzidos no ordenamento jurídico pátrio pela
Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
Por fim, não foi possível averiguar, se havendo seqüestro ou arresto de bens, de
modo, a impedir o pagamento do tributo devido, antes ou durante a ação penal, se a
declaração do confisco implicaria a extinção da punibilidade, quando igual ou superior ao
valor do débito fiscal, tendo em vista a impossibilidade real de o infrator efetuar o pagamento.
87

Todavia, como foi dito no início, este é um trabalho em curso e face limitação da
monografia e tempo, por estar cursando atualmente 9 (nove) matérias, não foi possível
esclarecer todas as indagações, mas certamente serão num futuro próximo.
88

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