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2
FUNDAÇÃO PRESIDENTE ANTÔNIO CARLOS
(COORDENADORA)

DIÁLOGOS COM O DIREITO

1ª Edição

MARIANA,

FUPAC-MARIANA
2018

1
FICHA CATALOGRÁFICA

DIÁLOGOS COM O DIREITO

Fundação Presidente Antônio Carlos (coordenadora). Diálogos


com o Direito. 1 edição. Mariana: FUPAC-MARIANA, 2018. 281p.

ISBN: 978-85-98974-23-1

Coletânea de textos do 6º Concurso de Ensaios e de Artigos Acadêmicos


da Faculdade Presidente Antônio Carlos de Mariana.

Capa, edição e diagramação: Magna Campos

1. Direito. 2. Atualidades Jurídicas. 2. Ensino Jurídico. 4. Direito:


contemporaneidade e ensino. 5. Interdisciplinaridade.

* A revisão textual é de responsabilidade dos autores de


cada ensaio ou artigo do livro.

2
AUTORES

Adriana Pereira Casais


Alessandra Gomes Machado
Alexandre Guilherme dos Santos
Alisson Machado
Altair Marchetti
Aparecido José
Bruno Luís Faria Araújo
Fabricio de Jesus Oliveira de Souza
Flaviana Oliveira de Souza
Gabriela Camêllo
Gustavo Magalhães Ribeiro Neves
Henrique Geraldo de Brito Moreira
Junio C. de Abreu Lima
Lucas Costa de Oliveira
Magna Campos
Márcia Machado Bento
Marisa Quintão
Mateus Fernandes Leão
Michele Aparecida Gomes Guimarães
Monica Santos
Patrícia Dias
Patrícia Magalhães
Raphael Furtado Carminate
Raquel Araújo
René Dentz
Saulo Camêllo
Vitor Lopes
Wanise Silva Prado

3
PREFÁCIO

É com enorme satisfação que apresento a obra “Diálogos


com o Direito”, que é o sexto volume de uma série de livros
destinados ao fomento e desenvolvimento da pesquisa científica
na Faculdade de Direito da Faculdade Presidente Antônio
Carlos de Mariana.
Esta obra é fruto da produção conjunta de alunos, ex-
alunos e professores da instituição, que contribuíram com
diversos textos para sua configuração. O livro tem o mérito de
abordar temáticas jurídicas variadas, despertando o interesse
de discentes e profissionais do Direito de diferentes períodos e
áreas de atuação, respectivamente.
Além disso, ao fomentar a interdisciplinaridade e a
transdisciplinaridade no ambiente acadêmico universitário,
através de textos que versam sobre diferentes áreas do
conhecimento, afins ao Direito, a obra permite ao leitor ampliar
seu horizonte de compreensão desta ciência social aplicada e
compreender sua interface com outras ciências.
Os assuntos abordados são atuais e instigantes,
estimulando a comunidade acadêmica ao debate e
aprofundamento dos temas, promovendo a elaboração de
críticas e ensaios e, consequentemente, o desenvolvimento do
conhecimento.
Parabenizo, portanto, todos os que colaboraram para a
consecução desta obra, e convido a todos à sua leitura e debate.

Raphael Furtado Carminate


Professor universitário, Doutorando e mestre e Direito
Privado pela PUC Minas

4
5
SUMÁRIO

PENSANDO A DOGMÁTICA PARA ALÉM DO POSITIVISMO JURÍDICO .... 11


Lucas Costa de Oliveira e Gustavo Magalhães Ribeiro Neves
Resumo: .................................................................................................. 11
Introdução .............................................................................................. 11
2. Desenvolvimento histórico ................................................................... 14
2.1 Direito Romano ................................................................................. 14
2.2 Direito Medieval ................................................................................ 16
2.3 Direito Moderno ................................................................................ 18
3. Concepções contemporâneas ............................................................... 22
3.1 Dogmática jurídica: como enquadrá-la? ............................................. 23
3.2 Zetética vs. Dogmática ....................................................................... 26
3.3 O modelo Dreier-Alexy de dogmática jurídica ..................................... 28
4. Importância e relevância...................................................................... 30
Conclusão ............................................................................................... 31
Referências: ............................................................................................ 33

ARGUMENTAÇÃO E SISTEMA RETÓRICO: ANÁLISE DOS FILMES


NEGAÇÃO, SOB CUSTÓDIA E TEMPO DE MATAR .................................... 35
Magna Campos, Mateus Fernandes Leão e Vitor Junior
Resumo: .................................................................................................. 35
Introdução: ............................................................................................. 35
2. Sistema retórico: ethos, pathos e logos ................................................. 36
3. Análise do sistema retórico dos filmes: Negação, Sob Custódia e Tempo
de Matar ................................................................................................. 43
3.1 Filme Negação ................................................................................... 43
3.2 Filme Sob Custódia ........................................................................... 50
3.3 Filme Tempo de Matar ....................................................................... 55
Considerações finais:............................................................................... 62
Referências: ............................................................................................ 63

INCLUSÃO DE CRIANÇAS COM NECESSIDADES EDUCATIVAS ESPECIAIS


NO ENSINO FUNDAMENTAL: UMA ANÁLISE DO CONTEXTO E DA
LEGISLAÇÃO BRASILEIRA ........................................................................ 65
Patrícia Dias, Michele Aparecida Gomes Guimarães e Magna Campos
Resumo: .................................................................................................. 65
Introdução: ............................................................................................. 65
2. Educação especial na perspectiva da educação inclusiva ..................... 68
3. O direito à educação ............................................................................ 70
4. Lei 13.146 – Estatuto da pessoa com deficiência .................................. 76
5. A escola inclusiva ................................................................................ 80
6. Direitos da criança na sala de aula ...................................................... 86
7. A política de inclusão e a prática no ensino regular ............................. 87
Considerações Finais............................................................................... 89
Referências: ............................................................................................ 90

6
SUCESSÃO E CONFLITOS DENTRO DAS EMPRESAS FAMILIAR ............. 93
Bruno Luís Faria Araújo, Henrique Geraldo de Brito Moreira e Aparecido
José
Resumo ................................................................................................... 93
Introdução .............................................................................................. 93
2. O que é uma empresa familiar ............................................................. 94
3. Sucessão e conflitos na empresa familiar ............................................. 95
4. Postura diante do conflito de poder.................................................... 111
Considerações finais.............................................................................. 116
Referências: .......................................................................................... 117

PODER JUDICIÁRIO E A POPULAÇÃO PRISIONAL: O COLAPSO DA


JUSTIÇA CRIMINAL E OS CUSTODIADOS DA UNIDADE PRISIONAL DA
COMARCA DE MARIANA-MG ................................................................... 119
Márcia Machado Bento
Resumo ................................................................................................. 119
Introdução ............................................................................................ 119
2. Direitos Humanos ............................................................................. 121
3. O colapso da justiça criminal e o encarceramento brasileiro .............. 123
4. Unidade Prisional de Mariana/MG .................................................... 126
4.1 Presos no regime semiaberto e aberto .............................................. 127
4.2. Assistência, educação, trabalho... ................................................... 130
4.3. Melhorias ....................................................................................... 131
4.4. Sugestões ....................................................................................... 131
5. Das Varas Criminais e Execução Penal da Comarca de Mariana ........ 132
5.1. Críticas e sugestões ........................................................................ 134
Considerações finais.............................................................................. 136
Referências: .......................................................................................... 138

A EVOLUÇÃO DAS ESTRUTURAS FAMILIARES NO BRASIL E A


NECESSIDADE DO RECONHECIMENTO JURÍDICO DAS UNIÕES
POLIAFETIVAS ........................................................................................ 140
Wanise Silva Prado
Resumo ................................................................................................. 140
Introdução ............................................................................................ 141
2. O conceito de família no ordenamento brasileiro ................................ 142
3. Formas de constituição da família ..................................................... 146
3.1. A formação da família através do matrimônio ................................. 146
3.2 A união estável ................................................................................ 147
3.3 Família monoparental...................................................................... 149
3.4 Família eudemonista ....................................................................... 150
3.5 União homoafetiva ........................................................................... 151
4. Interpretação ampla do conceito de família trazido pela constituição .. 152
5. União poliafetiva x poligamia ............................................................. 156
6. As escrituras públicas de união poliafetiva ........................................ 158
Conclusão ............................................................................................. 160
Referências: .......................................................................................... 161

7
ZYGMUNT BAUMAN: CARTAS DO MUNDO LIQUIDO MODERNO ............ 166
Altair Marchetti, Gabriela Camêllo, Marisa Quintão, Monica Santos, Saulo
Camêllo, Vitor Lopes e René Dentz
Resumo: ................................................................................................ 166
Introdução ............................................................................................ 166
2. Estrangeiros são perigosos. Será? ...................................................... 167
3. Tribos e céus ..................................................................................... 171
4. Estabelecendo limites ........................................................................ 173
5. Como pessoas boas se tornam pessoas más ...................................... 176
6. Destino e caráter ............................................................................... 179
7. Albert Camus Ou: Eu me revolto, logo, nós existimos... ..................... 181
Considerações finais.............................................................................. 183
Referências: .......................................................................................... 183

A EUTANÁSIA: UMA REFLEXÃO SOBRE ASPECTO MORAL E JURÍDICA,


COM FUNDAMENTAÇÃO NAS TEORIAS FILOSÓFICAS DE KANT, STUART
MILL E A TEORIA DO LIBERTARISMO ................................................... 185
Alessandra Gomes Machado, Adriana Pereira Casais, Fabricio de Jesus
Oliveira de Souza, Flaviana Oliveira de Souza, Mateus F. Leão e René Dentz
Resumo ................................................................................................. 185
Introdução ............................................................................................ 185
2. Etimologia e classificações ................................................................. 187
3. A eutanásia ....................................................................................... 188
4. Visão dos filósofos, código de ética médica e eutanásia ...................... 190
5. Visão jurídica .................................................................................... 194
6. Reflexão sobre a prática da eutanásia ................................................ 196
Considerações finais.............................................................................. 198
Referências ........................................................................................... 199

IMPORTÂNCIA DA ARGUMENTAÇÃO NO ÂMBITO DO DIREITO


CONTEMPORÂNEO .................................................................................. 201
Raquel Araújo e Magna Campos
Resumo: ................................................................................................ 201
Introdução ............................................................................................ 201
2. A argumentação no Direito: importância ............................................ 202
3. Nova Retórica: argumentação versus demonstração ........................... 207
4. O papel da lógica como técnica argumentativa: .................................. 210
Considerações finais:............................................................................. 214
Referência: ............................................................................................ 215

UMA ABORDAGEM JURÍDICO-ANTROPOLÓGICA A PARTIR DE PAUL


RICOEUR ................................................................................................. 216
Patrícia Magalhães, Alisson Machado e René Dentz
Resumo: ................................................................................................ 216
Introdução ............................................................................................ 216
2. Do sujeito capaz ao sujeito de direito ................................................. 217
Considerações finais.............................................................................. 224
Referências: .......................................................................................... 225

8
FILOSOFIA DO DIREITO DE RONALD DWORKIN: DIREITO COMO
INTEGRIDADE COMO FORMA DE SUPERAR O CONVENCIONALISMO E O
PRAGMATISMO JURÍDICO ...................................................................... 227
Altair Marchetti, Gabriella Camêllo, Marisa Marchetti, Monica Santos,
Saulo Camêllo, Vitor Lopes e René Dentz
Resumo: ................................................................................................ 227
Introdução ............................................................................................ 227
2 Método interpretativo proposto por Dworkin ....................................... 231
3.Etapas da interpretação ..................................................................... 232
4. Convencionalismo ............................................................................. 236
5. Pragmatismo jurídico ........................................................................ 238
6. Direito como integridade.................................................................... 240
Considerações finais.............................................................................. 244
Referências: .......................................................................................... 245

SCHOPENHAUER: METAFÍSICA DA VONTADE E JUSTIÇA .................... 248


Junio C. de Abreu Lima e Magna Campos
Resumo: ................................................................................................ 248
Introdução ............................................................................................ 248
2. Breves apontamentos sobre a filosofia de Schopenhauer e a problemática
da vontade ............................................................................................ 249
2.1 A questão da morte e origem da filosofia .......................................... 249
2.2. Metafísica, religião e filosofia .......................................................... 252
2.3 Vontade e justiça ............................................................................. 256
Considerações finais.............................................................................. 260
Referências: .......................................................................................... 261

ANÁLISE DO RECURSO ESPECIAL N. 1475759/DF: DA PRESCRIÇÃO NA


AÇÃO DE PETIÇÃO DE HERANÇA CUMULADA COM INVESTIGAÇÃO DE
PATERNIDADE ......................................................................................... 263
Alexandre Guilherme dos Santos e Raphael Furtado Carminate
Resumo: ................................................................................................ 263
Introdução ............................................................................................ 263
2. Sobre a ação de petição de herança ................................................... 265
3. Recurso Especial n. 1475759/DF e a prescrição na ação de petição de
herança cumulada com investigação de paternidade.............................. 269
Considerações Finais............................................................................. 275
Referências ........................................................................................... 277

9
ARTIGOS

10
PENSANDO A DOGMÁTICA PARA ALÉM DO POSITIVISMO
JURÍDICO

Lucas Costa de Oliveira1


Gustavo Magalhães Ribeiro Neves2

Resumo:
No contexto de uma suposta superação do positivismo jurídico,
tem-se observado a difusão de um pensamento contrário à
dogmática jurídica, entendida esta como uma abordagem
ultrapassada, pejorativa e negativa do Direito. Desse modo,
surge um problema: estaria a dogmática restrita a um modelo
exegético de positivismo jurídico, representando uma perspectiva
inadequada e insuficiente aos novos desafios teóricos e
pragmáticos? Este artigo tem como objetivo a investigação do
referido problema, analisando os contornos epistemológicos da
dogmática e a sua adequação a contextos para além do
positivismo jurídico. Para tanto, será realizado um breve percurso
histórico do desenvolvimento do conceito, passando por algumas
concepções contemporâneas, concluindo no sentido de sua
importância e relevância como um conhecimento dinâmico e
historicamente situado. Defende-se, portanto, a tese de que a
dogmática jurídica é um instrumento indispensável para a
cientificidade e aplicabilidade do Direito, mesmo em paradigmas
não positivistas.

Palavras-chave: Dogmática Jurídica. Positivismo Jurídico.


Teoria do Direito.

Introdução
No debate jurídico contemporâneo, ser chamado de
dogmático ou positivista é quase um insulto, indicando uma

1 Doutorando em Direito pela UFMG. Mestre em Direito Privado pela PUC


Minas. Bacharel em Direito pela UFOP. Professor de Direito Civil na UNIPAC
e UFOP. E-mail: lucascoliveira01@gmail.com.
2 Pós-graduando em Direito. Bacharel em Direito pela UFOP. Advogado. E-

mail: gustavomrneves@gmail.com
11
postura legalista, estritamente apegada ao texto normativo, nos
moldes da Escola de Exegese. Ora, vive-se um momento de
superação do positivismo jurídico, não poderia o hermeneuta
seguir padrões rígidos, comandos definitivos, dogmas impostos
por terceiros sem maiores preocupações axiológicas. Álvaro
Ricardo de Souza Cruz e Bernardo Augusto Ferreira Duarte
ilustram bem esse cenário em relação ao positivismo jurídico,
mas que poderia ser expandido ao debate sobre a dogmática:

Assim, para alguns, o Positivismo jurídico


estava associado ao passado, ligado ao “já
superado”, ao passo que, para outros, foi
vinculado a “algo insuficiente”, carente de
suporte científico capaz de dar conta das
novas aspirações que se ligavam a um
novo modo de produção de Direito,
assentado em concepções diferenciadas de
Estado Democrático de Direito. Sem
sombra de dúvida, tudo isso contribuiu
para a vinculação da palavra “positivismo”,
e também da expressão Positivismo
jurídico, às noções retrógradas e
formalistas, o que fez com que elas
adquirissem uma carga afetiva negativa.
Esta carga afetiva acabou por afastar
muitos de seus usuários da compreensão
dos inúmeros sentidos que elas poderiam
receber, dependendo do jogo de linguagem
dentro do qual se inserissem. (CRUZ;
DUARTE, 2013, p. 23-24, grifo no
original).

Todos esses apontamentos possuem fundamentos nas


mais respeitadas teorias jurídicas contemporâneas e
representam um caminhar para além do positivismo jurídico.
12
Não obstante, o questionamento que permanece latente é o
seguinte: pode o Direito abrir mão da dogmática jurídica? Ou,
por outro lado, trata-se de uma abordagem indispensável ao
jurista, em especial àquele que trabalha com problemas
práticos? A dogmática representa, de fato, um conhecimento
ultrapassado e inadequado aos novos tempos, conectando-se
irremediável e exclusivamente ao positivismo jurídico que se
pretende superar?
É em torno dessa questão que se desenvolve o presente
artigo. Defende-se a tese de que a dogmática jurídica deve ser
entendida como um conhecimento dinâmico e historicamente
construído, não se restringindo a um certo período temporal ou
a uma única corrente teórica do Direito. Pretende-se, dessa
maneira, defender que a dogmática jurídica é um conhecimento
indispensável para a Ciência Jurídica – seja diante do
positivismo jurídico, seja na superação deste.
Com o intuito de fundamentar esta posição, dividir-se-á o
artigo em três partes essenciais. A primeira tratará de um breve
desenvolvimento histórico sobre a dogmática jurídica,
identificando o percurso dessa abordagem por intermédio do
Direito Romano, Medieval e Moderno. A segunda, por sua vez,
tratará de algumas concepções atuais sobre a temática,
indicando novas possibilidades conceituais e pragmáticas para
o termo. Por fim, na terceira parte, será defendida a
importância da dogmática para a consolidação de um
conhecimento técnico e conectado com a decidibilidade e a
realidade social. Após essa breve travessia, a conclusão do

13
artigo caminha no sentido de reafirmar a relevância nevrálgica
da dogmática, mesmo em paradigmas para além do positivismo
jurídico.

2. Desenvolvimento histórico

Para a caracterização da dogmática jurídica como um


conhecimento dinâmico e historicamente construído, faz-se
necessário a análise do seu desenvolvimento histórico. Para
tanto, a análise será restrita a três períodos históricos: o Direito
Romano, o Direito Medieval e o Direito Moderno.

2.1 Direito Romano

É certo que o Direito Romano constitui ponto de


referência no estudo dos sistemas jurídico oriundos da tradição
romano-germânica. O Direito Romano “designa o conjunto de
regras jurídicas que vigoraram no império romano durante
cerca 12 séculos, ou seja, desde a fundação da Cidade, em 753
a.C., até a morte do imperador Justiniano, em 565 depois de
Cristo” (CRETELLA JÚNIOR, 1987, p. 8). Em razão do extenso
lapso temporal e da efervescência jurídica desse período,
impossível seria abranger todas suas nuances. Assim sendo,
este tópico abordará apenas algumas características que sejam
essenciais à evolução histórica da dogmática jurídica.
O Direito Romano é inicialmente marcado pela
jurisprudentia, sendo um direito casuístico em que a justiça era

14
averiguada de caso em caso. A solução de problemas exigia
criatividade e debate, uma vez que apenas algumas matérias
eram tratadas nas ações pretorianas (TOZO; SOLON, 2010, p.
284). Jurisprudentia, na lição do jurisconsulto Ulpiano, seria o
“conhecimento das coisas divinas e humanas, ciência do justo e
do injusto” (MATA-MACHADO, 1986, p. 46).
Desse modo, observa-se um conhecimento voltado para a
praxis e intimamente ligado à dialética, como ensina Tércio
Sampaio Ferraz Júnior (2007, p. 58):

O uso da técnica dialética no


desenvolvimento do pensamento
prudencial conduziu os romanos a um
saber considerado de natureza prática. No
desenvolvimento desse saber, os romanos
sem dúvida produziram definições
duradouras e critérios distintivos para as
diferentes situações em que se
manifestavam os conflitos jurídicos de sua
práxis.

Com o passar do tempo e das reiteradas soluções


casuísticas, foi possível alcançar certo grau de abstração com
base nos conceitos e definições utilizados pelos jurisconsultos
romanos, estabelecendo um pensamento com caráter mais
teórico, abstrato e conceitual. Esta evolução do pensamento
jurisprudencial romano

[...] permitiu que não se visse o direito


como assentado concretamente nos
eventos, mas em normas tomadas como
critério para posterior julgamento à vista
15
dos fatos. Isso significa que a
interpretação do direito, alvo máximo da
dogmática em desenvolvimento, destacava-
se do caso concreto, constituindo uma
discussão por si com critério próprios,
abstratos se comparados com a
experiência das disputas do dia-a-dia.
(FERRAZ JÚNIOR, 2007, p. 60).

Essa é a característica que mais se ressalta ao estudo do


desenvolvimento da dogmática no período romano. Destaca-se
que a evolução do Direito Romano caminha progressivamente
para uma maior abstração dogmática. Desta sorte, inicia-se
com um Direito intimamente ligado à religião, à família, ao
culto aos antepassados, passando pela jurisprudentia, com
traços pragmáticos e predominantemente não regulamentado,
até se chegar ao Corpus Juris Civilis de Justiniano, época em
que já havia uma maior normatização e abstração
(COULANGES, 2004; REALE, 2006).

2.2 Direito Medieval

Em relação à construção dogmática no Direito Medieval,


faz-se necessário destacar três importantes pontos que
permitiram a evolução desse conhecimento.
O primeiro diz respeito ao reaparecimento do Direito
Romano nas universidades medievais. O Direito Medieval era
composto inicialmente por normas aplicadas pelos senhores
feudais aos seus vassalos, possuindo um caráter
eminentemente consuetudinário e oral, bem como por um
16
Direito Canônico, regulado e aplicado pela Igreja Católica a
certas matérias relativas ao pecado. Dessa maneira, não havia
um direito comum ou unitário, até mesmo em virtude da
disposição geográfica, social e política do período.
Acontece que no século XI começaram a surgir as
primeiras universidades, como destaque àquela inaugurada em
Bolonha. Nas aulas se estudava o Trivium, composto pelo
aprendizado da gramática, retórica e dialética, além de ser
caracterizado pela glosa gramatical e filológica, donde surge a
expressão glosadores. Para que fosse possível o estudo dessas
matérias, eram realizadas resenhas críticas do digesto
Justiniano,3 operação que ficou conhecida como Littera
Boloniensis (FERRAZ JÚNIOR, 2007, p. 62). Nesse estudo, o
glosador

[...] cuidava de uma harmonização entre


todos eles, desenvolvendo uma atividade
eminentemente exegética, que se fazia
necessária porque os textos nem sempre
concordavam, dando lugar às
contrarietates, as quais, por sua vez,
levantavam as dubitationes, conduzindo o
jurista a sua discussão, controvérsia,
dissentio, ambiguitas, ao cabo da qual se
chegava a uma solutio. (FERRAZ JÚNIOR,
2007, p. 62, grifo no original).

Destarte, extrai-se que os glosadores, que não eram


juristas e nem buscavam o estudo de documentos jurídicos, ao

3 O Digesto, também conhecido como Pandectas, corresponde à reunião de


decisões e textos normativos de célebres jurisconsultos romanos de
períodos clássicos, promovida pelo Imperador Justiniano em 533.
17
estudarem o Digesto como decorrência do Trivium, acabaram
por desempenhar funções típicas da abordagem dogmática do
Direito, tais como harmonizar, classificar e sistematizar o
conhecimento.
Aliado a esse fato, destaca-se a expansão,
institucionalização e colonização moral implementada pela
Igreja Católica durante a Idade Média. Após o declínio do
Império Romano, toda a herança cultural e política passa para
a Igreja, o que gera uma situação de eminente poder sobre a
coletividade. Ao reintroduzir vários mitos gregos e traduzir a
metafísica socrática e platônica em crença, o dogma religioso se
impõe perante os demais. A sedimentação desses dogmas acaba
por influenciar fortemente o pensamento jurídico que incorpora
a noção de dogma como algo transcendente. Nesse ponto se
encontra uma das características fundamentais da dogmática
jurídica: o princípio da não-negação dos pontos de partida, ou
seja, o dogma é a priori, discute-se sempre a partir dele
(FERRAZ JÚNIOR, 2007, p. 64).
Por fim, outro ponto que favoreceu a evolução da
dogmática no sentido delineado, foi a situação do rei como
personagem central da sociedade, surgindo uma noção
insipiente de soberania. Assim, as normas rudimentares do
Direito Medieval e seus dogmas valiam e deveriam ser
cumpridas pois seriam originadas de um poder superior e
soberano (FERRAZ JÚNIOR, 2007, p. 65).

2.3 Direito Moderno

18
Com o advento do renascimento, o Direito começa a
perder o caráter sagrado e natural que mantinha desde o
Direito Romano. O mito e a religiosidade são substituídos pela
racionalidade – que, de certa maneira, também conserva
resquícios metafísicos da tradição em que estava inserida.
Basta pensar no jusracionalismo, nos ideais iluministas, na
crença absoluta na razão – uma racionalidade a priori, sem
interferência dos sentidos humanos.
Assim, em um primeiro momento a modernidade se
relaciona à Escola do Direito Natural, fundada “na ideia de
„natureza humana‟ eterna e imutável [de] caráter nitidamente
universalista” (TOZO; SOLON, 2010, p. 286). Segundo Mata-
Machado, uma das grandes contribuições do racionalismo
jurídico foi sua postura mental:

[...] a conformidade de um ato humano


com a razão devia significar que tal ato se
ajustava a um modelo já delineado e pré-
existente, que a Razão infalível aprendera
a traçar com a infalível Natureza, e que,
por consequência, deveria ser imutável e
universalmente reconhecida por todos os
lugares da terra e em todos os momentos
da história. (MATA-MACHADO, 1986, p.
72).

Devido à crescente racionalização operada na


modernidade foi possível o surgimento da codificação,
ocasionando o maior grau de abstração e sistematização já
alcançado até então. A teoria da codificação aponta que um
19
código deveria ser completo (abranger todo o direito de um
país), claro (representar fielmente a vontade do legislador),
acessível (conter uma linguagem que poderia ser alcançada por
todos os cidadãos) e rígido (aspirar à permanência). Com isso, a
positivação das normas jurídicas leva a dogmática ao seu ápice,
como pode se observar nas primeiras codificações: Código da
Prússia, de 1794; Código da Áustria, em 1786; e,
principalmente, o Código Francês, de 1804 (ROBERTO, 2011).
A partir do processo codificatório e da positivação das
leis, escolas surgiram para explicar tal fenômeno. Uma dessas
escola é a já mencionado Escola da Exegese, desenvolvida após
a vigência do Código de Napoleão e que buscava o mínimo de
interpretação na aplicação da lei – afinal o código já seria
completo, claro e acessível, devendo o juiz atuar como um mero
replicador do texto normativo.
Por outro lado, contra imutabilidade e universalidade do
pensamento jusnaturalista, surge a Escola Histórica do Direito,
cuja a principal figura é representada por Friedrich Karl Von
Savigny:

É com a Escola Histórica que surge a


primeira tentativa de enquadramento do
conhecimento jurídico como científico por
um método próprio de natureza histórica.
Estabelecida a ligação entre Direito e
História – em que o direito é reconhecido
por sua forma de aparição na vida social, é
dado positivo, é a objetivação do “espírito
do povo” plasmado na vida, instituições,
pertinente aos fatos empiricamente
verificáveis -, aproxima-se o estudo do
20
Direito do modelo do saber válido. O tema
da cientificidade do conhecimento jurídico
passa a ser intencionalmente tratado,
surge aí a expressão juris scientia. (TOZO,
SOLON, 2010, p.287, grifo no original).

Savigny entendia que o direito advinha do espírito do


povo (volkgeist). Assim, o jurista deveria ficar atento à realidade
e às suas alterações para que pudesse transformar faticidade
em direito subjetivo. Essa seria a tarefa da dogmática jurídica e,
no pensamento do pensdor alemão, caberia aos estudiosos do
Direito, em especial aos professores de Direito, identificar,
classificar e sistematizar as normas por meio dos institutos
jurídicos. Outra grandiosa contribuição da Escola Histórica, em
um momento posterior, com base no pandectismo, foi a criação
de uma parte geral para os códigos – como aquela encontrada
no Código Civil Alemão (BGB) de 1900. Ora, a parte geral indica
um alto grau de abstração, correspondendo ao local onde
criam-se institutos que devem ser utilizados como base nas
situações específicas seguintes.
Por fim, destaca-se a expansão do positivismo jurídico
em teorias como a de Hebert Hart e Hans Kelsen, aproximando
o Direito do tecnicismo e da cientificidade presentes em outras
áreas do conhecimento, como as ciências exatas. Por intermédio
da separação de tudo que não é jurídico da Ciência do Direito e
da elaboração de uma teoria pura do Direito, Kelsen buscou
esgotar e delimitar o conhecimento jurídico. Assim, o estudo
dogmático seria a atuação do jurista dentro da moldura da lei.

21
O desenvolvimento da dogmática jurídica no Direito
Moderno é bem sintetizado por Guilherme Soares na passagem
abaixo:

O surgimento da dogmática jurídica


combina com a perda de hegemonia da
escola do direito natural e a ascensão do
positivismo jurídico, mediada pelo
historicismo. [...] Este olhar histórico
permite demonstrar que o aspecto central
da dogmática no âmbito do positivismo
jurídico não é a primeira característica
historicamente consolidada deste tipo de
raciocínio. Já em Savigny, mas sobretudo
no contexto da jurisprudência dos
conceitos, a característica fundamental do
pensamento dogmático foi seu caráter
construtivo. Essa construção diz com a
elaboração de conceitos abstratos que não
se limitam apenas e tão-somente aos
conteúdos expressos no direito positivado.
Ele parte da análise dos elementos
presentes no direito posto para, a partir
daí abstrair seus princípios fundamentais,
que possibilitam a solução de questões
aparentemente não abarcadas pelo direito
positivado. Em outras palavras, a
construção combina com a elaboração
daqueles conceitos que não se acham
imediata e intuitivamente na lei, cuja
explicitação permite encarar com
autenticidade os casos da vida jurídica que
não estão claramente previstos na norma.
(SOARES, 2001, p. 77).

3. Concepções contemporâneas

22
Neste ponto serão abordadas algumas concepções
contemporâneas sobre a dogmática jurídica, tais como seu
enquadramento jurídico, a diferença entre zetética e dogmática,
bem como o modelo apresentado por Dreier e Alexy.

3.1 Dogmática jurídica: como enquadrá-la?

Em relação ao enquadramento jurídico-teórico da


dogmática, podem ser visualizadas quatro posições: a primeira
entende a dogmática como arte; a segunda aglutina o conceito
de Ciência Jurídica ao de dogmática; a terceira considera a
dogmática uma fase superada da Ciência do Direito; e a quarta
a compreende como o momento culminante da Ciência do
Direito. (TOZO; SOLON, 2010; REALE, 2006).
A vertente que considera a dogmática jurídica como arte
é encabeçada por Pedro Lessa, entendendo que “uma vez postos
os princípios e conhecidas as leis gerais que governam o
fenômeno social é que surge o trabalho secundário de
interpretação e aplicação das normas” (REALE, 2006, p. 322).
Dessa forma, o trabalho dogmático, seria meramente acessório,
puramente artístico, uma vez que dependeria das compreensões
e dos conhecimentos que cada estudioso faria do seu objeto de
estudo: as leis. Assim sendo, por faltar a precisão,
impessoalidade e certeza das ciências naturais, a dogmática
não poderia ser considerada ciência.

23
Interessante notar que essa nem sempre foi a posição de
Pedro Lessa. Em artigo publicado em 1896, indicava ser a
Dogmática Jurídica uma ciência:

O direito é, como a medicina, sciencia e


arte simultaneamente. Quando, no
exercicio de sua profissão, e aplicando os
conhecimentos médicos e cirúrgicos,
emprega os meios adequados para o fim de
conservar ou restabelecer a saúde, o
clinico é artista. Quando, observando,
comparando e generalisando, estuda as
leis das diversas sciencias que enfeixadas
formam a medicina, o clinico é homem de
sciencia. Egualmente o jurisconsulto que
de qualquer modo applica o direito,
desenvolve sua actividade no domínio da
arte. Mas, esse trabalho artistico carece
ser precedido do estudo das verdades
scientificas de que a arte é mera
applicação. Essas verdades scientificas
não estão unicamente nos principios
fundamentaes que constituem o objeto da
Philosophia do Direito, mas também nas
leis particulares, nos corollarios, nas
deducções ou desenvolvimentos desses
principios, que formam o conteúdoda
dogmática jurídica. A dogmática jurídica é,
pois, uma sciencia. (LESSA, 1896, p. 26-
27).

Sua posição somente se altera em 1912 com a publicação


de seu livro, onde passa a defender a dogmática como arte
(MAIA, 1954). Destarte, a partir do novo enquadramento, Lessa
entende que a “dogmática jurídica encerra um conjunto de
preceitos, formulados para a realização de fins determinados: é
24
a explanação de uma arte. Confundi-la com a ciência importa
desconhecer um dos mais vulgares elementos de lógica.”
(LESSA apud MAIA, 1954, p. 449-450).
Existem aqueles que defendem a coincidência entre o
conceito de dogmática jurídica e Ciência Jurídica, uma vez que
aquela é o estudo sistemático dos preceitos jurídicos. Assim “as
demais indagações sobre o Direito não seriam propriamente
jurídicas, mas sociológicas, morais, econômicas, e assim por
diante”. (REALE, 2006, p.322). São defensores desta posição “as
orientações da Escola Analítica distinguindo entre o ponto de
vista moral e o direito, e a distinção kelseniana entre o campo
„jurídico‟ e o „metajurídico‟” (TOZO; SOLON, 2010, p. 304).
A terceira corrente é defendida por aqueles que entendem
o pensamento jurídico a partir do problema. A posição
encabeçada por Theodor Viehweg analisa o pensamento jurídico
partindo da tópica, entendida esta como “a técnica do
pensamento problemático, ou seja, o tipo de pensamento que
pretende oferecer indicações de como se comportar diante de
um problema”. (ROBERTO, 2003, p.85). A tópica deriva do
pensamento de Aristóteles, indicando que o raciocínio pode ser
apodítico, quando parte de proposições primeiras ou deriva
destas, ou, ainda, dialético, quando é obtido por meio de
proposições conforme as opiniões aceitas. No primeiro, as
premissas são verdadeiras, no segundo, são apenas opiniões
verossímeis. (ROBERTO, 2003, p. 84). Dessa maneira, a tópica
tem espaço no pensamento dialético e não se enquadraria no

25
pensamento dogmático clássico, já que este não parte do
problema.
A última posição é defendida por Miguel Reale e será
retomada mais à frente. Afirma que a dogmática jurídica seria
correspondente “ao momento culminante da aplicação da
Ciência do Direito, quando o jurista se eleva ao plano teórico
dos princípios e conceitos gerais indispensáveis à interpretação,
construção e sistematização dos preceitos e institutos de que se
compõe o ordenamento jurídico”. (REALE, 2006, p. 322-323).

3.2 Zetética vs. Dogmática

O estudo do Direito pode se dar por intermédio de


diferentes perspectivas. Tércio Sampaio Ferraz Jr. (2007), a
partir dos ensinamentos de Theodor Viehweg, apresenta um dos
enfoques possíveis, qual seja, o zetético/dogmático. A análise
desta distinção é de grande importância, na medida em que
através dela é possível delimitar com maior exatidão o campo de
atuação da dogmática jurídica.
Zetética tem sua origem no vocábulo zetein, tendo como
significado perquirir, ao passo que dogmática tem sua origem
no vocábulo dokein, tendo como significado ensinar, doutrinar.
O estudo da etimologia destas palavras tem o condão de
apresentar a principal diferença entre os dois enfoques:
enquanto a zetética está voltada à pergunta, deixando os
conceitos básicos, as premissas e os princípios abertos à dúvida
e caracterizando-se por seu caráter hipotético e problemático, a

26
dogmática está voltada à resposta, tendo os conceitos básicos,
as premissas e os princípios postos de modo absoluto e
caracterizando-se por seu caráter voltado à decidibilidade. A
zetética desintegra opiniões, pondo-as em dúvida, enquanto a
dogmática releva o ato de opinar. O aspecto zetético tem função
especulativa explícita e são infinitas, ao passo que o aspecto
dogmático tem uma função diretiva (induz o espectador a
adotar certa conduta), e são finitas. Zetética é ser, dogmática
dever-ser. (FERRAZ JÚNIOR, 2007, p. 40-41).
Elucidativo é o exemplo dado pelo professor Tércio
Sampaio Jr. (2007, p. 40):

Sócrates estava sentado à porta de sua


casa. Nesse momento, passa um homem
correndo e atrás dele vem um grupo de
soldados. Um dos soldados então grita:
agarre esse sujeito, ele é um ladrão! Ao
que responde Sócrates: que você entende
por “ladrão”? Nota-se aqui dois enfoques: o
do soldado que parte da premissa de que o
significado de ladrão é uma questão já
definida, uma “solução já dada, sendo seu
problema agarrá-lo; e o de Sócrates, para
quem a premissa é duvidosa e merece um
questionamento prévio.

Assim, pode-se afirmar que o soldado partiu de um


pensamento dogmático, enquanto Sócrates partiu de um
pensamento zetético. O que deve ficar claro aqui, é que o
enfoque dogmático tem como características fundamentais a
inegabilidade dos pontos de partida e o compromisso com a

27
decidibilidade, devendo o jurista partir da premissa normativa
e, então, organizar, sistematizar e solucionar os problemas.

3.3 O modelo Dreier-Alexy de dogmática jurídica

O modelo tridimensional de dogmática jurídica proposto


pelos alemães Ralf Dreier e Robert Alexy tem como ponto
central a questão da decidibilidade. Ao lado das clássicas
funções dogmáticas – construção, interpretação e
sistematização –, haveria a função de orientar a ação do juiz.
Assim sendo, a “dogmática teria seu centro no ponto de vista do
juiz que decide os problemas concretos”. (SOARES, 2001, p.80).
Nesse modelo, a dogmática se apresentaria em três
dimensões, quais sejam, a analítica, a empírica e a normativa.
Guilherme Soares (2001, p.82) explica que “a dimensão
analítica trata da consideração sistemático-conceitual do direito
válido, estendendo-se desde a análise de conceitos
fundamentais, passando pela construção jurídica, até a
investigação da estrutura do sistema e da fundamentação das
normas”.
A dimensão empírica é aquela em que se conhece e identifica o
direito positivo válido, bem como se utiliza dessas premissas na
argumentação jurídica. Note-se que as dimensões analítica e
empírica tratam de funções típicas da dogmática clássica, não
apresentando inovação. A dimensão normativa, por sua vez,
pressupõe o rompimento de um dos pilares da dogmática
clássica, principalmente aquela proposta pelo positivismo
28
jurídico: a não aderência ao direito positivado. Isso não significa
o abandono do direito positivo, mas a não limitação a este:

Como ensina Alexy, a dimensão normativa


vai além da mera comunicação do Direito
positivo válido, “trata-se da orientação e
crítica da práxis jurídica, sobretudo da
práxis da jurisprudência judicial” (1997;
32). Contrastando com o modelo
kelseniano que limitava o papel da Ciência
jurídica à definição da moldura, dentro da
qual o juiz atuaria livremente em uma
dimensão normativa da dogmática, “é
constitutiva a questão de saber qual é, no
caso concreto e com base no Direito
positivo válido, a decisão correta” (1997;
32). Nesta face, a dogmática põe-se diante
do problema valorativo. Preocupa-se com
as opções axiológicas que orientam, às
vezes, de forma obscura, a decisão
judicial. Seu objetivo é, assim, criar
condições de fundamentabilidade racional
de juízos de valor1. (SOARES, 2001, p. 84).

Dessa maneira, pode-se afirmar que o conhecimento


jurídico tridimensional é aquele que não restringe “a adesão
dogmática ao direito positivo estatal, mas também não [nega] a
importância desse referencial normativo” (SOARES, 2001, p.
80-81). Interessante notar que Alexy, um jusfilósofo
frequentemente relacionado ao pós-positivismo, defende a
cientificidade e necessidade da dogmática jurídica, ainda que de
maneira distinta da concepção tradicional.

1 A referência bibliográfica mencionada na citação se refere à seguinte obra:


ALEXY, Robert. Teoría de los derechos fundamentales. Tradução de
ErnestoGarzón Valdés Madrid: CEC, 1997.
29
4. Importância e relevância

Com grande entusiasmo anuncia Miguel Reale (2006, p.


326): “Os senhores durante os cinco anos do curso não vão
fazer praticamente outra coisa senão Dogmática Jurídica, [...]
porquanto é a Dogmática o momento em que a Ciência Jurídica
atinge sua expressão culminante e própria”.
Não é a intenção deste artigo, de forma alguma,
desmerecer ou desvalorizar o pensamento zetético. Pelo
contrário, objetiva-se a confirmação da relevância do
conhecimento dogmático ao lado da zetética. Muito mais do que
abordagens antagônicas ou dicotômicas, zetética e dogmática
devem permanecer em constante tensão. Não há Direito sem a
problematização e a desconstrução promovida pela zetética,
como também não existe Direito sem a preocupação prática da
dogmática, sem mecanismos que possibilitem o exercício do
Direito como técnica para solução de conflitos. Todavia, da
mensagem apresentada por Miguel Reale já se extrai a
importância e a relevância da dogmática jurídica – algo que
parece ter sido esquecido nos debates contemporâneos. A
atividade dogmática é uma das poucas atividades exclusivas do
jurista, uma vez que somente este pode identificar, analisar,
qualificar, organizar, sistematizar as normas, dando significado
a elas.
A dogmática é voltada para a decidibilidade e, sem esse
conhecimento, torna-se impossível a resolução de problemas
práticos. Basta pensar em um simples caso de reintegração de

30
posse ou de inadimplemento contratual: como seria se não
houvesse a dogmática para pensar no instituto, delinear seus
contornos teóricos, organizar sua posição no ordenamento
jurídico e indicar as possibilidades de sua aplicação?
Certamente não haveria decisão, como bem pontuado por
Tércio Sampaio: “As questões dogmáticas são tipicamente
tecnológicas. Nesse sentido, elas têm uma função diretiva
explícita, pois a situação nelas captada é configurada como um
dever-ser. Questões desse tipo visam possibilitar uma decisão e
orientar a ação (FERRAZ JUNIOR, 2007, p.90).
Dessa maneira, é imprescindível que as teorias
contemporâneas retomem o estudo sobre a dogmática jurídica,
buscando adequá-la ao novo contexto que se faz presente –
afinal, trata-se de uma abordagem dinâmica. Sem sombra de
dúvidas, há espaço para a dogmática para além do positivismo
jurídico.

Conclusão

Como visto ao longo do texto, a dogmática começou de


maneira casuística, adquiriu certo grau de abstração e,
consequentemente, vieram concepções mais formalistas, como
aquelas previstas nas teorias da codificação ou no positivismo
normativista de Hans Kelsen.
Essa característica se firmou de maneira tão forte e
intensa que marcou a dogmática até o momento presente.
Entretanto esse estigma se tornou muito negativo por parte

31
considerável dos estudiosos, muito em razão de sua forte índole
legalista, que buscava encerrar toda a discussão no âmbito do
texto normativo, desconsiderando todos os demais aspectos da
situação no caso concreto.
Acontece que parte dos críticos estacionaram sua visão
nessa perspectiva, ignorando outras possíveis abordagens
decorrentes do caráter dinâmico e histórico da dogmática, tal
como aquela apresentada por Dreier e Alexy que apresentam
um modelo para o enfrentamento da questão valorativa e uma
análise crítica do Direito, quebrando a ideia de desconexão com
outras questões para além da norma positivada e do próprio
Direito.
Nessa linha, Miguel Reale ensina que “devemos evitar, na
Ciência Jurídica, tanto os males da formalização que se alheia
da experiência, como os do casuísmo que a pulveriza e estiola”.
(REALE, 2006, p.326). Assim, a disciplina dogmática

[...] não deve ser considerada uma prisão


para o espírito, mas um aumento da
liberdade no trato com a experiência
normativa. Isso porque, se com a
imposição de dogmas e regras de
interpretação, a sociedade espera uma
vinculação dos comportamentos, o
trabalho do teórico cria condições de
distanciamento daquelas vinculações. O
jurista, assim, ao se obrigar aos dogmas,
parte deles, mas dando-lhes um sentido, o
que lhe permite certa manipulação. Ou
seja, a dogmática jurídica não se exaure
na afirmação do dogma estabelecido, mas
interpreta sua própria vinculação, ao
32
mostrar que o vinculante sempre exige
interpretação, o que é a função da
dogmática. (FERRAZ JÚNIOR, 2007, p. 49,
grifo no original).

Desse modo, o que se pretendeu demonstrar nesse breve


artigo é o caráter polifacetado e histórico da dogmática jurídica.
Apenas entendendo essa característica é que torna possível
pensar a dogmática para além do positivismo jurídico e, ao
assim fazer, entendê-la e aplicá-la no contexto contemporâneo
de forma atualizada e de acordo com sua evolução ao longo das
escolas jurídicas, usando-a como base da atividade
interpretativa, mas não como limite da mesma.

Referências:

CRETELLA JÚNIOR, José. Curso de Direito Romano: o direito


romano e o direito civil brasileiro. 11. ed. Rio de Janeiro:
Forense, 1987. 486p.

FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Introdução ao estudo do


direito: técnica, decisão, dominação. 5. ed. São Paulo: Atlas,
2007. 385p.

FUSTEL DE COULANGES, Numa Denis. A cidade antiga. 5. ed.


São Paulo: Martins Fontes, 2004. 641p.

LESSA, Pedro. Methodologia Jurídica. Revista da Faculdade


de Direito da Universidade de São Paulo, São Paulo, v. 4, p.
5-35, 1896.

MAIA, Paulo Carneiro. Da dogmática jurídica. Revista da


Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, São
Paulo, v. 49, p. 445-464, 1954.

33
MATA-MACHADO, Edgar de Godoi. Elementos de Teoria Geral
do Direito: para os cursos de introdução ao estudo do direito.
3.ed. Belo Horizonte: UFMG, 1986. 370p.
REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. 27. ed. São
Paulo: Saraiva, 2006. 391p.

ROBERTO, Giordano Bruno Soares. Introdução à história do


Direito Privado e da Codificação. Belo Horizonte: Initia Via,
2011. 118p.

ROBERTO, Giordano Bruno Soares. Teoria do método jurídico:


a contribuição de Theodor Viehweg. In: FIUZA, César; NAVES,
Bruno Torquato de Oliveira; SÁ, Maria de Fátima Freire de;
(coord.). Direito Civil: Atualidades II, Belo Horizonte: Del Rey,
2003. 79 – 92p.

SILVA, Cláudio Henrique Ribeiro da. Teoria simplificada do


sujeito de direito. Tese de Doutorado. Belo Horizonte: PUC
Minas, 2012. 117p.

SOARES, Guilherme. Elementos para a caracterização


tridimensional da dogmática jurídica: o modelo Dreier-Alexy.
Revista Sequência, Florianópolis, v. 22, n. 43, p. 69-87, 2001.

TOZO, Lucas Suárez de Oliveira; SOLON, Ari Marcelo.


Dogmática jurídica: caracterização de um conhecimento
jurídico historicamente construído. Revista Estudos Jurídicos
UNESP, Franca, A. 14, n. 19, p. 281-308, 2010.

34
ARGUMENTAÇÃO E SISTEMA RETÓRICO: ANÁLISE DOS
FILMES NEGAÇÃO, SOB CUSTÓDIA E TEMPO DE MATAR

Magna Campos1
Mateus Fernandes Leão2
Vitor Junior3
Resumo:
Este texto se propôs a analisar alguns filmes com temáticas
jurídicas sob o aspecto da argumentação, mais precisamente das
provas retóricas do ethos, pathos e logos, tal como estudadas em
sua origem pelo grego Aristóteles ([384-322 a.C.] 2005) e
contemporaneamente por Chaim Perelman e Olbrechts-Tyteca
(1996), Olivier Reboul (2004), Ruth Amossy (2005) e Dominique
Maingueneau (2005). Os filmes escolhidos foram Negação (2016),
Sob Custódia (2017) e Tempo de Matar (1996).

Palavras-chave: cinema; direito; sistema retórico; ethos;


pathos; logos.

Introdução:

O estudo da argumentação ressurge nos cursos de


Direito como uma necessidade e não mais como um incremento
desejável. Neste sentido, o conhecimento tanto das fontes de
estudo da argumentação clássica, representada pelos estudos
greco-latinos, como é o caso de Aristóteles, e das fontes
contemporâneas que propiciaram expansão dos estudos e
aplicação aos mais diferentes contextos argumentativos ou
analíticos de nosso mundo atual, como é o caso dos estudos de
Perelman, Reboul, Amossy e Maingueneau trazem contribuição
de grande relevância para a formação jurídica, pois tão

1 Professora universitária, mestre em Letras e escritora.


2 Graduando do curso de Direito da FUPAC-Mariana.
3 Graduando do curso de Direito da FUPAC-Mariana.
35
importante quanto saber o direito é saber dizer o direito e
defendê-los nas mais variadas condições.
Nesta vertente, estudar o sistema retórico com suas três
provas técnicas, ethos, pathos e logos, propicia compreensão da
argumentação tanto de base objetiva quanto subjetiva em
campos mais passíveis de observação em toda e qualquer
argumentação realizada.
Uma atividade que propicia a compreensão, análise e
aplicação de tais conceitos e seus desdobramentos é a análise
de filmes, especialmente, aqueles que já trazem em sua
temática o desenvolvimento e a exposição de linhas
argumentativas sustentadas pelos mais distintos personagens,
como é o caso dos filmes com temáticas jurídicas.
Neste sentido, este texto objetiva tecer apontamentos
analíticos acerca do sistema retórico passível de percepção nos
filmes Negação (2016), Sob Custódia (2017) e Tempo de Matar
(1996). E para tal intento, o trabalho abordará suscintamente
as três provas retórica que compõem o sistema retórico e após
analisará cada um dos três filmes separadamente.

2. Sistema retórico: ethos, pathos e logos

Como apresentado em Campos (2015), o sistema retórico


pode ser definido, em uma versão preliminar, como sendo o
sistema discursivo empregado com o intuito de convencer ou de
persuadir uma pessoa ou um conjunto de pessoas a respeito de
alguma coisa.

36
Aristóteles ([384-322 a.C.], 2005), autor clássico
fundamental para o estudo da retórica e do sistema retórico,
propõe-no, no livro “Retórica”, como se referindo ao estudo dos
meios de provas persuasivas, não pertencentes somente à lógica
formal, que permitem obter ou aumentar a adesão do auditório
às teses/ideias que se lhe propõem ao assentimento, pelo
orador.
Entretanto, cabe ressaltar que o autor, em seus três
livros de a “Retórica”, não se preocupa com o mérito daquilo
que está sendo dito, mas como o fato de que aquilo que está
sendo dito ser ou não eficiente em termos de persuasão. Assim,
a retórica além de uma arte é também uma técnica, ou seja, um
meio de produzir discursos eficientes em termos de persuasão,
e que sejam eficazes quanto a seu intento de conseguir a
adesão da audiência em questões dialéticas – que comportam
posicionamentos distintos, como no caso dos discursos político
e judiciário, por exemplo (CITELLI, 2002).
Ainda, pode-se entender que tais questões se assentam
sobre raciocínios baseados em verossimilhanças e opiniões,
portanto, passíveis de verdade, razoáveis, ao contrário das
ciências [exatas] que está baseada na demonstração, na ideia
de verdade. Todavia, é importante considerar que o “verossímil
é, pois, aquilo que se constitui em verdade a partir de sua
própria lógica. Daí a necessidade, para se construir o “efeito de
verdade”, da existência de argumentos, provas, perorações,
exórdios [...]” (CITELLI, 2002, p.14).

37
Decorre daí que a demonstração e as inferências formais
são, portanto, corretas ou incorretas, já os argumentos, as
razões fornecidas a favor ou contra uma tese têm mais ou
menos força e fazem variar a intensidade de adesão do auditório
(PERELMAN, 1996). Assim, a argumentação não visa à adesão a
uma tese porque ela é exclusivamente verdadeira, “pode-se
preferir uma tese à outra por parecer mais equitativa, mais
oportuna, mais útil, mais razoável, mais bem adaptada à
situação” (PERELMAN, 1998, p.156).
A argumentação, como bem propõe Perelman (1998),
preocupa-se com o discurso dos valores e não com o discurso
do real, e explica que,

de fato, aquilo que se opõe ao verdadeiro


só pode ser falso, e o que é verdadeiro ou
falso para alguns deve sê-lo para todos:
não se tem de escolher entre o verdadeiro
e o falso. Mas aquilo que se opõe a um
valor não deixa de ser um valor, mesmo
que a importância que lhe concedamos, o
apego que lhe testemunhemos não
impeçam de sacrificá-lo eventualmente
para salvaguardar o primeiro. Não garante,
aliás, que a hierarquia de valores de um
será reconhecida por outro. (PERELMAN,
1998, p. 147)
Tal pauta valorativa é o que permite justificar o
argumento e o posicionamento assumido pelo auditório, sendo
este aquele ou o conjunto daqueles os quais o orador quer
influenciar por meio da argumentação.
Nesta perspectiva, Aristóteles entendia que a finalidade
maior do discurso retórico era o de persuadir. Não se trata de

38
discutir a verdade dos fatos, mas de uma verdade construída
para os fatos, a única possível (crer-ser), tratando-se da
verossimilhança no discurso que produz efeitos baseados na
razão, na emoção e na adesão. Para alcançar tal fim, o orador
deveria apresentar provas (písteis) capazes de fazer com que a
audiência adira à tese defendida.
No Direito, a valorização dos estudos da retórica renasce
contra o pressuposto cartesiano e positivista de que não haveria
espaço para outra coisa que não a demonstração, a evidência
dos fatos: “Contra fatos não há argumentos”, e com o
reconhecimento da dimensão subjetiva da argumentação e do
trabalho de linguagem realizado ou necessário para o sucesso
da argumentação. A verdade para os fatos versus a verdade dos
fatos. Assim, no Direito, o objetivo não é convencer ou
persuadir a parte contrária, adversária, mas o juiz ou os
jurados.
As provas de persuasão (provas técnicas) fornecidas pelo
discurso são de três espécies: umas residem no caráter moral/
imagem do orador (ethos); outras, no modo como se dispõe o
ouvinte (pathos); e outras, no próprio discurso, pelo que se
demonstra ou parece demonstrar (logos) (ARISTÓTELES, Livro
I, apud ALEXANDRE JUNIOR, 2005, p. 37; 96).
Essas três provas técnicas dividem a argumentação em
dois campos:

39
Essas três provas técnicas dividem a argumentação em dois campos:

ETHOS PATHOS
(Caráter/imagem) (Emoção/ paixão)

Subjetividade
--------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------

Objetividade

LOGOS
(Razão, raciocínio lógico)

Figura 01: Sistema retórico. Fonte: Elaboração própria com


base em Reboul

É a prova retórica associada ao caráter do orador


(portanto, ligada à imagem, à performance, à figura daquele que
locutor. Relacionada à apresentação de si no e pelo discurso de
modo a inspirar confiança, respeito, competência e
credibilidade junto ao auditório, para que este possa confiar em
seu juízo e aceitar o que se diz (digno de fé).
Reboul (2004, p. 48) afirma que “sejam quais forem os
argumentos lógicos, eles nada obtêm sem a confiança”
inspirada pelo ethos. É preciso, por exemplo, mostrar que se
acredita no próprio cliente, na causa – construir uma imagem
crível pelo discurso. O ethos é trabalhado quando o orador
deixa transparecer uma boa imagem de si mesmo, uma imagem
digna de fé, mesmo que isso não seja condizente com a verdade.
Amossy (2005) e Maingueneau (2005) detalham
investigam um pouco mais sobre o ethos e, com base nestes
estudos, pode-se chegar às seguintes bipartições do ethos:

40
Projetivo: aquela imagem que se imagina
estar constituindo.
Ethos
Efetivo: a imagem que de fato o auditório
está criando.

Prévio: pré-construído, pré-existente ao


discurso.
Ethos
Discursivo: construído à medida que se
fala.

de Si: imagem voltada par o orador.


Ethos
do Outro: imagem voltada para o outro.

Reboul (2004) também auxilia no entendimento da prova


retórica do pathos, ensinando que se trata do conjunto de
emoções, paixões e sentimentos que o orador deve suscitar no
auditório para conseguir a adesão à tese defendida. Trata-se de
fazer com que o auditório se sinta emocionalmente inclinado a
aceitar a ideia, como ensina Perelman (1996).
Enquanto o ethos constitui um conjunto de parâmetros
relacionados com o orador, o pathos é um conjunto de
parâmetros relacionados ao auditório com o intuito de
despertar os diversos tipos de sentimentos: empatia,
solidariedade, angústia, indignação, carinho, medo, calma,
misericórdia, asco e compaixão, por exemplo. Todavia, é preciso
sopesar bem o uso dessa prova retórica, pois ao se dar ao
pathos muita ênfase, pode-se cair na retórica da manipulação.
O pathos e ethos são associados ao lado subjetivo da
argumentação, portanto à persuasão, e têm papel ainda maior
41
quando a questão em jogo é duvidosa, sem critério de
resolução: aí a credibilidade do orador, a confiança no que diz e
no cliente, os sentimentos que ele suscita no auditório são
cruciais para as decisões. Neste sentido, saber as crenças e
valores socialmente compartilhados, para que os ouvintes se
engajem e solidarizem emocionalmente como vítimas ou
beneficiários no caso em julgo são de suma importância.
Já o logos, como ensinam Perelman (1996) e Reboul
(2004) é o lugar privilegiado da argumentação lógica, é o meio
de prova pelo qual se dá a colocação do problema, suas
premissas, as razões ou explicações lógicas ou factuais, para
uma determinada situação. Centrado na autoridade dos
argumentos selecionados, na disposição dedutiva e indutiva do
raciocínio, na apresentação de analogias, exemplos, ilustrações,
causas e consequências, dados factuais, dados numéricos que
tentam trazer objetividade à tese, na boa estruturação do ponto
de vista lógico-argumentativo. Nesta prova é que se encaixam o
papel da doutrina e da jurisprudência no Direito, por exemplo.
Associado ao convencimento, ao que o discurso busca
evidenciar e comprovar.
A prova retórica do logos integra a dimensão da
objetividade da argumentação e é, sem dúvida, muito valorizada
pelo Direito para tentar objetivá-lo, bem como os elementos que
parametrizam algumas questões argumentativas típicas da
área. Entretanto, não pode perder de vista que as duas outras
provas, ethos e pathos, atuam no fortalecimento do logos e na
preparação do contexto para adesão ao logos.

42
3. Análise do sistema retórico dos filmes: Negação, Sob
Custódia e Tempo de Matar

3.1 Filme Negação

O filme Negação (2016), dirigido por Mick Jackson, conta


a luta judicial da escritora Deborah Lipstadt para provar uma
verdade histórica contra David Irving, um biógrafo de Hitler, na
qual David a acusa de difamação por declarar que ele não
acredita na existência do holocausto na Alemanha. O filme é
baseado em uma história real, que retrata
cinematograficamente a luta da pesquisadora americana contra
um defensor da inexistência do holocausto, após a publicação
do livro Negando o Holocausto da autora, no qual debate a
questão.
Durante uma aula, a escritora expõe um ethos prévio dos
negadores do holocausto, quando afirma que tal negação, feita
pelos seus negadores, repousa sobre quatro afirmativas: (i) que
é um enorme exagero afirmar sobre assassinato de
aproximadamente seis milhões de judeus durante a Segunda
Guerra Mundial, porque isso nunca ocorreu; (ii) que não havia
nenhuma política oficial dos nazistas e intenção de exterminar
os judeus; (iii) que as câmaras de gás no campo de extermínio
de Auschwitz nunca existiram e que as pessoas quando
morriam eram de doença (iv) e que o único intuito dos judeus
buscarem a justiça pelos acontecimentos é o interesse em obter
recompensas financeiras e a promoção do Estado de Israel.

43
No filme, em uma das cenas iniciais, Deborah ministra
uma palestra no lançamento de seu livro, Negando o
Holocausto, e uma mulher da plateia cria o ethos do outro da
escritora como sendo uma covarde, uma vez que se negar a
discutir com pessoas que insistem em dizer que o holocausto
não existe é a negação da discussão com pessoas de opiniões
diferentes o que não é democrático. Outro senhor do público
também cria um ethos do outro sobre David Irving como uma
vítima da opinião da escritora, sendo o autor um estudioso, que
descobriu diversas fontes primárias que ninguém mais tinha
conhecimento.
Na mesma palestra, o próprio Irving, que aparece para
assistir, cria seu próprio ethos como uma vítima para com o
qual a professora tem sido rude, injusta, e que não poderia ser
atacado assim por ela, pois tem 30 anos de experiência nos
arquivos sobre a Segunda Guerra e ela desconsidera que ele
possui livros publicados pelas maiores editoras do mundo
tratando da questão. E aproveita-se da situação para criar o
ethos da escritora como uma pessoa que não tem capacidade
científica e não fica a par dos fatos reais e completos, e, por
essa razão, ela não discute com pessoas com opiniões
diferentes, pois lhe faltam argumentos sólidos e não
higienizados pela visão ingênua construída para o holocausto.
Dias após a palestra, Deborah recebe uma carta
informando um processo na Suprema Corte de Londres, aberto
por Irving, por difamação. Assustada, Deborah entra em
contato com um funcionário da Penguin Books de Londres e

44
fica sabendo que na acusação David alega que a Sra. Lipstadt
faz parte de uma conspiração organizada em nível mundial para
lhe roubar a reputação como historiador profissional e
prestigiado em seu meio de vida, criando assim um ethos
negativo para ela.
Durante um almoço com Deborah, sua amiga catedrática
a questiona sobre o que ela escreveu sobre David e ela lhe diz
que colocou em seu livro que o Sr. Irving é um partidário de
Hitler que distorceu evidências, a fim de chegar a conclusões
historicamente insustentáveis, criando assim o ethos do
historiador como um defensor do nazismo e de Hitler. E, com
isso, a amiga da escritora constrói um logos explicando-lhe que
essa causa, afirmação sobre Irving, geraria consequências
perigosas, como o tal processo, e indica-lhe, na sequência, um
advogado, uma vez que com o que ela disse precisaria de um
bom advogado para defendê-la.
Deborah escuta a amiga e busca o tal advogado,
encontrando-se com o Dr. Julius, advogado americano. Para o
advogado, o ethos do David consiste em ser um dissidente
brilhante, o provocador que reinventa a Segunda Guerra
Mundial, mas que busca, principalmente, o respeito dos
colegas, e que com a acusação contra ela, será visto pelos
colegas como um historiador sério que passa a ver as coisas do
ponto de vista de Hitler. Já para Lisptadt, ele é um mentiroso e
falsificador da história (ethos do outro). A escritora cria ainda
um pathos ao apresentar ao Dr. o significado de seu nome como
líder, defensora de seu povo e que sua mãe dizia que ela foi

45
escolhida, demonstrando o sentimento de esperança a todos
para descobrir a verdadeira história por trás do holocausto.
Mas a autora também fica sabendo que na Suprema Corte
inglesa o ônus da prova seria dela e não do acusado, uma vez
que no sistema judicial inglês o ônus da prova é o contrário do
americano. Além disso, precisará de um advogado inglês como
preposto do representante americano para atuar na Suprema
Corte.
Aconselhada pelo advogado, Deborah vai procurar a
comunidade judaica, para pedir o apoio financeiro deles para a
causa que envolvia o interesse comum. Durante o jantar com os
líderes da comunidade judaica, no qual o objetivo de Deborah
era buscar financiamento para o julgamento, os anfitriões
montaram o ethos do Dr. Julius como um homem que leva as
mulheres a sucumbirem ao seu intelecto, colocando-as em seu
bolso, e que faz as coisas para sua própria glória. Na mesma
situação, a Sr. Lipstadt constrói o ethos dos judeus britânicos
como mesquinhos que não abrem os bolsos para financiá-la.
Na busca por provas do holocausto, já que Deborah teria
que provar que o Holocausto realmente existiu e que os campos
de concentração funcionaram como campos de extermínio, ela e
o advogado visitam ao campo de concentração de Auschwitz. A
própria visita cria um pathos em todos presentes,
principalmente, na Sra. Lipstadt, com sentimentos como a
tristeza, desapontamento, angústia e aflição, que são trazidos à
tona ao caminharem onde milhares de judeus morreram

46
durante o holocausto. Deborah ainda cria a imagem do campo
como um local onde se deve mostrar respeito (ethos).
Quando a Sra. Lipstadt e o Dr. Richard, advogado inglês,
estão conversando no bar e a escritora é informada que, na
opinião da defesa, ela não deve testemunhar, cria-se um pathos
em Deborah ligado à raiva, além disso, constrói-se um logos de
causa de consequência, quando a escritora diz que as pessoas
dirão que ela foi uma covarde e que teve medo de perder para
Irving, por isso não deu seu depoimento e Richard diz que esse
é o preço que ela terá que pagar para ganhar.
No primeiro dia de julgamento, David Irving inicia seu
discurso criando um ethos de si como um não negador do
holocausto, mas sim como um homem que tem chamado a
atenção para os principais aspectos do holocausto, os erros das
análises que se dizem científica, mas que não consideram os
fatos em sua totalidade, além de construir o ethos da ré como
agressora da sua existência profissional, interessada apenas em
lhe manchar a renomada reputação mundial, e que ao taxá-lo
rudimente como um negador fez com que várias editoras
virassem as costas para ele. Ainda, durante o discurso, constrói
um logos de analogia ao fazer comparar que ser chamado de
negador é o mesmo que ser chamado de espancador de
mulheres e de pedófilo. Outro logos criado é o de causa e
consequência, quando afirma que ser etiquetado como negador
o faz ser considerado como uma pária, um proscrito da
sociedade normal. Todo seu discurso, entretanto, tem como

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objetivo único formar o pathos, sentimento projetivo para que o
juiz venha a percebê-lo como um injustiçado e difamado.
Já Richard inicia seu discurso elaborando um logos de
oposição, já que desconstrói o que David Irving construiu
durante seu discurso inicial. E forma perante o juiz o ethos do
historiador não como um historiador de fato, mas sim um
falsificador de história e um mentiroso. E, para reforçar seu
posicionamento, utiliza-se de um logos de autoridade, ao
utilizar a própria obra de David para o desmentir, evidenciando
que a sua visão sobre o holocausto mudou radicalmente entre
as edições de 1977 e a 1991, do livro A Guerra de Hitler, e
utiliza ainda de logos de provas concretas, quando usa o
relatório de um pesquisado renomado, Leuchter, para explicar o
porquê da mudança radical de opinião.
Ao sair do julgamento, Deborah é parada por uma das
sobreviventes do holocausto que lhe pede que eles, os judeus
sobreviventes, sejam ouvidos no tribunal. Após isso, a escritora
tenta convencer Anthony em deixá-los testemunhar, utilizando-
se de pathos para comover e mudar a opinião do advogado,
dizendo que eles não querem testemunhar por si, que na
verdade querem dar voz aos que não sobreviveram, no entanto,
o Dr. Julius não concorda com o pedido da Sra. Lipstadt.
Momentos depois, em meio a uma discussão, Deborah coloca os
advogados contra a parede e diz que os sobreviventes vão à
tribuna sim e que deve isso a eles, para convencê-la do
contrário, Anthony utiliza um logos de prova concreta
mostrando-lhe um vídeo no qual Irving humilha e ridiculariza

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uma sobrevivente do holocausto, afirmando que sua marca no
braço, do campo de concentração, era forjada para ganhar
atenção da mídia e do governo.
Em outro dia de audiência, Richard constrói um logos de
autoridade, quando utiliza as palavras de Karl Bischoff,
arquiteto-chefe do campo de Auschiwitz, que ao se referir ao
necrotério 1 como um vergasungskeller, ou seja, um porão de
gaseamento. Durante todo o discurso, Richard cria um pathos
com o intuito de levar ao auditório a ter um sentimento de
insegurança com todas as palavras ditas por Irving, fazendo o
historiador se contradizer sobre qual realmente era a finalidade
do necrotério, hora sendo para gaseificação de cadáveres e hora
sendo um abrigo antibombas.
Dando um salto nas cenas analisadas, no vigésimo
segundo dia de julgamento, uma testemunha explica o contexto
escrito por Irving em seu livro. A testemunha utiliza de logos de
provas concretas para criar um logos de raciocínio lógico, ao
usar anotações de Heinrich Himmler, o chefe da SS,
(esquadrilha de proteção de Hitler e do partido nazista), tudo
isso para mostrar que David, em seu livro, A Guerra de Hitler,
escreveu algo completamente diferente, traduzindo
erroneamente os escritos.
Logo depois, Richard, enquanto colhe o depoimento de
David, constrói um logos de raciocínio lógico associado ao logos
de provas concretas, mostrando vídeos de palestras feitas por
Irving que o mostram menosprezando o trabalho de mulheres,
negros e judeus, e, por fim, a defesa cria o ethos do historiador

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como um racista e pervertido, que não respeita judeus, negros
ou mulheres. O intuito de Richard é mostrar a todo o auditório
que David abriu um processo dizendo que tinha sido chamado
de racista e extremista, mas que prega o que diz não ser.
No trigésimo segundo dia de julgamento, Richard utiliza
de logos de analogia ao comparar Irving a um garçom, mas um
garçom desonesto, em que todos os equívocos são para
favorecer a si mesmo.
A decisão do juiz constrói o ethos do Sr. Irving como um
homem que apresenta eventos de forma consistente com suas
crenças ideológicas, distorcendo e manipulando evidências
históricas, dando ganho de causa a Deborah. Após o
julgamento Deborah Lisptadt, encaminha-se para a coletiva de
impressa e a todo momento cria pathos com sentimentos de
justiça para todos os sobreviventes e vítimas do holocausto.

3.2 Filme Sob Custódia

O filme Sob Custódia (2017), dirigido por James Lapine,


conta a história de uma mãe solteira (Sara Diaz) que corre o
risco de perder seus dois filhos (David Diaz e Tia Diaz) que são
mantidos sobre custódia protetiva, e, devido a isso, tem uma
recém-graduada em direito (Ally Fisher) designada para
trabalhar em seu caso de custódia. O caso é decidido por uma
emblemática juíza (Martha Schulman) do tribunal de família de
Nova York, que tem um casamento conturbado.

50
Ao chegar em casa, Sara não encontra um de seus filhos
e corre para a casa do vizinho Anthony, acreditando que o filho
esteja lá, ao chegar, encontra jovens bebendo e usando drogas e
ao perguntar onde se encontra David recebe uma negativa como
resposta restando-lhe ameaçá-los de chamar a polícia, criando
em todos ali presentes um sentimento (pathos) de medo, temor
e apreensão. Após encontrar o filho, ela começa uma discussão
e acaba ocorrendo um acidente, no qual seu filho, David,
cortou-se. Ao chegar na escola com o ferimento do acidente, a
professora acionou a justiça.
Após serem pegos pela justiça, Luís Sanjuro,
investigador, vai até o emprego de Sara para conversar com ela
sobre o acontecido e gera visivelmente na mãe um sentimento
(pathos) de constrangimento no trabalho em virtude de ela
tentar disciplinar o próprio filho. Após o fim da conversa, Luís
sai falando ao telefone construindo o ethos da Sra. Diaz como
sendo uma pessoa “problemática”, uma pessoa que se irrita
facilmente e que pode culpar o filho por tudo que está
acontecendo. No entanto, a imagem (ethos) que colhe dos
companheiros de trabalho dela é de ser uma pessoa tranquila.
Ao chegar na Corte judicial, Martha se depara com os
colegas conversando sobre o caso Martinez, caso de uma
menina que morreu ao ser devolvida para a mãe e não ter os
devidos cuidados. E um dos colegas de trabalho diz que foi ele
quem decidiu devolver a guarda para a mãe depois de constatar
que ela estava limpa de substâncias ilícitas, demonstrando um
sentimento (pathos) de culpa, remorso e arrependimento pela

51
decisão tomada e para aliviar os sentimentos (pathos) do juiz,
Martha tenta consolá-lo dizendo-lhe que ele fez a coisa certa
naquele caso e que não era culpa dele e sim da ASC –
Administração de Serviços para Crianças – que tem a função
de monitorar essas famílias.
Com os inícios dos trabalhos da Corte, o primeiro caso a
ser discutido é o de Sara, e, no fim da audiência, Keith Denholz,
representando o Conselho da Corporação, solicita à juíza um
teste de drogas para a Sra. Diaz. Na audiência posterior, o Sr.
Sanjuro utiliza como prova lógica (logos) provas concretas tais
como o relatório do teste toxicológico, que acusaram a
utilização de maconha e PCP, além disso, utilizam ainda o
registro criminal de tráfico de drogas da acusada, tudo isso com
o intuito de criar para a acusada Sara um ethos de usuária de
drogas e de pessoa irresponsável e para gerar na juíza um
sentimento (pathos) de relutância em devolver a custódia das
crianças, sentimento que se intensifica com o surgimento do
caso Martinez, uma vez que a morte da criança ocorreu depois
de uma decisão tomada por um juiz da mesma corte, como
quem a atual juíza tinha conversado a respeito. No entanto,
Sara cria para si um ethos de vítima, uma vez que foi presa,
quando jovem, por fazer uma coisa idiota e que fora tudo
armado, que é uma boa mãe e tem um emprego fixo, que não
depende da assistência social para viver, e por ser uma boa
mãe, só teve a discussão com o filho por medo de que ele
tivesse usando drogas e estivesse andando com pessoas erradas
e perigosas, além disso, alega que só estava tentando educá-lo.

52
Todo o discurso dela foi com o intuito de comover (pathos) a
juíza com a luta de uma mãe solteira, do subúrbio, em criar
seus filhos de forma digna e no caminho do bem. Ao saírem da
audiência, a advogada e sua cliente se encaminham para o
escritório, momento em que Sara constrói, durante a conversa a
advogada, o ethos do outro de Ally como uma péssima
advogada, que não diz todas as informações, que não passa de
uma menininha rica e incapaz conhecê-la realmente.
Ao sair do tribunal, Martha vai ao encontro de seu
melhor amigo Drew e descobre que seu marido, Jason, está
tendo o caso com a esposa desse amigo, Nancy. Jason, ao
chegar em casa, depara-se com Martha o esperando, a juíza o
coloca para fora de casa e constrói o ethos de seu marido como
sendo um idiota, que transou com a mulher do seu melhor
amigo, um nojento, mentiroso e covarde. Já o ethos de Nancy é
construído por ela como uma vadia branca, que sempre foi mais
ousada que inteligente. O ato de rasgar as roupas de Jason
demostra o sentimento (pathos) de raiva, frustração e ódio com
a traição do marido.
Na terceira audiência, o Sr. Keith utiliza mais um logos
de prova concreta, anexando ao processo um documento que
mostra que o pai das crianças está vivo e preso na Penitenciaria
Estadual de Buffalo, faz isso nitidamente com o intuito de
desacreditar a ré, Sara, que afirmou em audiências anteriores
que o pai estava morto. E, em um momento de raiva, Sara
constrói o ethos de Shawn como um criminoso que nunca se

53
interessou pelos filhos e que se ela mentira foi para proteger os
filhos do pai ausente.
Nesse entremeio, em outra cena, Ally confronta a avó,
Beatrice, por não ter feito nada quando ela, ainda criança,
contou sobre as brincadeiras que seu Tio Frank fazia e que foi
ignorada por ela e a avó se defende dizendo que crianças
sempre costumam exagerar e, além disso, a memória joga com
as pessoas. Ally cria o ethos de seu tio como um homem que a
tocou de maneira imprópria, que tentou abusar dela, um
homem doente. E para provar isso para a avó, ela utiliza de
logos de prova concreta, mostrando-a duas citações judiciais
que seu tio sofreu por rondar escolas. Já Beatrice, constrói o
ethos de seu filho como um homem que tem problemas, mas
que nunca parou de procurar ajuda e que está se medicando.
Na quinta audiência, o pai das crianças é levado para
depor e pede para se encontrar com os filhos para ouvir da boca
dele que Sara é uma boa mãe. Após todos concordarem, as
crianças são levadas para o tal encontro, mas estão relutantes
já que o pai está preso e não queriam ver ele, entretanto, a mãe
tenta criar nas crianças o sentimento (pathos) de segurança e
de que tudo iria ficar bem.
No último dia de audiência, Sara ganha de volta a
custódia de seus filhos e, em sua última fala com a juíza,
mostra o sentimento (pathos) de injustiça, desrespeito e a
desigualdade em que as classes sociais são tratadas, uma vez
que muitos ricos que bebem demais, ignoram seus filhos, não
tentam educá-los e estes não são denunciados por serem maus

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pais. A personagem evidencia que, por mais feliz que esteja em
ter seus filhos de volta, seu sofrimento não acabou já que terá
de compensar as horas de trabalho perdidas para apoiar os
filhos, além de fazer os filhos entenderem que não serão mais
tirados dela e que não foi culpa de nenhum deles o que
aconteceu. Já a juíza demonstra o pathos por meio do
sentimento de preocupação e zelo com a vida das crianças que
passam pelo tribunal e que não tem a mesma sorte que David e
Tia. Também constrói o ethos dos funcionários da Corte, como
pessoas que trabalham com muita consciência, “dando duro”, e
que tudo que passam e ouvem no tribunal os assombraram
todos os dias, mas que estão lá por acreditarem que podem
ajudar e não pelo dinheiro.
Essa breve análise evidencia o uso das três provas
retóricas na argumentação das partes tanto no processo de
custódia, quanto em outras cenas paralelas do filme.

3.3 Filme Tempo de Matar

O filme Tempo de Matar (1996), dirigido por Joel


Schumacher, conta o drama vivenciado por Tonya Stewart,
uma garota negra, que aos 10 anos de idade foi estuprada por
dois homens brancos e racistas, Freddie Lee Cobb e Billy Ray
Cobb. O enredo se passa em uma pequena cidade do estado do
Mississipi, nos Estados Unidos, na década de 1990.
Após o acontecido, os estupradores foram detidos e
quando teriam o valor da fiança decretada pelo juiz, o pai de

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Tonya, inconformado com a possível absolvição dos acusados,
decide fazer justiça com as próprias mãos, matando os dois
homens a tiros, no momento que estavam sendo conduzidos ao
fórum.
Levado a julgamento, Carl Lee (o pai de Tonya) corre
grande risco de ser condenado pelo duplo assassinato, em
circunstâncias não favoráveis, injustas e com notável tendência
de ser considerado apenas como mais um criminoso, que a
sangue frio, ceifou a vida de dois seres humanos.
Para o seu julgamento, Carl Lee conta com o trabalho de
Jake Brigance, um advogado que se mostra um excepcional
orador ao defender seu cliente, desde o início até o fim do
julgamento, apesar de tudo indicar que o resultado seria a
condenação de seu cliente, uma vez que o crime de assassinato
foi praticado por um negro contra dois brancos, em uma cidade
cuja população branca dominava, tanto em número, quanto em
cargos de poderes. Sem contar que o racismo naquela cidade
também era predominante, contando inclusive, com
manifestações da Ku Klux Klan - Organização racista branca
estadunidense.
Para defender Carl Lee, Jake passa a introduzir na mente
dos jurados todo o processo que levou o seu cliente a cometer o
assassinato daquelas pessoas, mesmo sendo advertido para não
mencionar o estupro que aconteceu com Tonya, uma vez que
não estavam julgando o caso de estupro, e sim, o de
assassinato.

56
Mesmo com a dificuldade de defender Carl Lee sem poder
mencionar diretamente o motivo do crime, o advogado encontra
brechas em alguns momentos, e com isso, consegue apresentar
os fatos e as circunstâncias que culminaram no assassinato
dos jovens, apresentando aos jurados a motivação do crime.
Fica explicitamente visível que o julgamento não tinha
pretensão de ser justo, tanto pelo que já foi dito, quanto pela
atitude do advogado de acusação, Rufus Buckley, já que este
estava buscando ser promovido à custa daquele caso, assim
sendo, poderia até não ter motivos particulares, como o
preconceito, por exemplo, mas ainda assim tentaria, a todo
custo, ganhar a causa, nem que para isso fosse necessário usar
impropriamente as armas da manipulação ou da persuasão
forçada, coisa que ele fez em algumas passagens do filme.
Duas cenas marcaram o julgamento, sendo a primeira o
diálogo entre o advogado de defesa Jake Brigance e o acusado,
Carl Lee; e a segunda, na argumentação final.
Na primeira cena, o acusado e advogado estão
conversando nos minutos precedentes ao início do julgamento,
e nesse momento, vemos Carl Lee perguntando a Jake o que
seria preciso fazer para que ele o libertasse, caso fosse ele um
dos jurados. Esse foi o momento em que o advogado
compreende o que deve ser feito, já que sendo branco igual a
todos membros do júri, precisaria então fazer com que eles se
colocassem no lugar do homicida, e, de certo modo, de sentirem
o que aquele pai sentiu, quando teve sua filha barbaramente

57
violentada e devastada pela brutalidade dos dois jovens
bêbados.
A segunda cena se trata da argumentação final de Jake,
na qual ele expõe detalhadamente o que aconteceu e o porquê
de seu cliente encontrar-se ali, na condição de réu.
Mas antes de analisarmos essa segunda cena, é
importante frisar que todo o julgamento acontece com
argumentos muito bem preparados, estrategicamente
utilizados, tanto pela defesa quanto pela acusação, o que faz
termos a sensação que hora a acusação está obtendo progresso,
hora a defesa.
Dito isto, analisaremos portanto, algumas falas dos
advogados e passaremos, na sequência, a demonstrar como o
ethos, pathos e logos foram empregados em algumas cenas do
filme.
Como já foi mencionado, Rufus buscava além da
condenação do réu, uma promoção, promoção essa que a
queria obter através do sucesso de sua tese contra Carl Lee,
caso este não fosse absolvido. Portanto, Rufus tinha, com
certeza, motivos muito além daqueles que qualquer um dos
profissionais ali presentes teria.
Tomemos a primeira cena, na qual o phatos foi utilizado
pelo advogado de acusação quando pressiona o acusado,
perguntando-lhe insistentemente o que os violentadores de sua
filha mereciam, até que ele, Carl Lee, levado pela condução
persuasiva e manipuladora de Rufus responde que mereciam
morrer, descaracterizando assim a tese da defesa, de que o réu

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se tratava de uma pessoa que realizou o crime sem pensar, sem
planejar, estando transtornado pelo acontecido a Tonya.
Já com relação ao logos, a acusação desqualifica a
imagem (ethos) do médico que atestava a insanidade do
acusado, o apresentando como criminoso para o júri, com
provas que o vinculava a um crime no passado. Dessa forma, a
acusação rebaixa o médico, de testemunha para uma pessoa
que não merecia ser ouvida, muito menos alguém confiável,
para estar ali, como testemunha.
Quanto à defesa, há um momento do filme em que Jake
Brigance utiliza o ethos, ou seja, tenta criar um imagem
desfavorável ao perguntar a mãe de um dos estupradores de
Tonya quantas crianças o seu filho havia violentado antes e
quantas crianças eles haviam estuprado antes, colocando,
assim, a indagação para os jurados, se não teria sido justo a
morte daquelas pessoas.
Em todo o tempo, o advogado de defesa se mostra seguro
de si, permanecendo sempre sereno e apresentando um sorriso
vencedor ao longo do julgamento, fazendo assim o uso do ethos,
tentando criar uma imagem de credibilidade para si.
Como foi dito anteriormente, existe nesse filme duas
cenas muito marcantes, uma vez que a primeira cena já foi
analisada, passaremos agora para a segunda: a da
argumentação final. Nesta cena, sabiamente, Jake consegue,
por meio do uso do pathos e do ethos, que o seu cliente seja
visto como um pai que teve sua filha estuprada, e não como um

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simples assassino, como a acusação estava tentando
apresentar aos jurados.
Na cena, podemos observar o uso do pathos, quando o
advogado transfere os sentimentos de revolta de Carl Lee para o
júri. Jake abandona o lado jurídico do caso e passa a narrar
com detalhes que levaram Carl Lee a cometer o crime do qual
estava sendo julgado.
Para isso, o advogado pede que todos fechem os olhos e a
partir desse momento, começa a contar a história, desde a
criança ter saído de casa para fazer compras em um mercado,
até ser violentada na volta para casa, de ser usada como alvo
para arremesso de latas de cerveja, de ser enforcada, e,
posteriormente, ser jogada em um rio, de ter sobrevivido,
passado por um procedimento cirúrgico, de ter o útero
removido devido à violência do ataque sofrido. Leiamos o
próprio discurso de Jake Brigance, na cena final de Tempo de
Matar:
Eu preparei um belo sumário...cheio de
manhas de advogado, mas não vou lê-lo.
Estou aqui para pedir desculpas. Sou
jovem e inexperiente...mas vocês não
podem... responsabilizar Carl Lee...pelas
minhas deficiências.
Em todas essas manobras jurídicas, algo
se perdeu... a verdade.
É nosso dever, como advogados, não
apenas falar da verdade... mas buscá-la,
encontrá-la e vivê-la. Meu professor me
ensinou isso.
Tomemos o Dr. Bass, por exemplo. Espero
que acreditem que eu não sabia daquela
condenação. Espero que acreditem.
60
Mas qual é a verdade? Ele é um mentiroso
desgraçado? E se eu contasse que... a
moça que estava com ele tinha 17 anos ele
tinha 23, e que depois eles se casaram,
tiveram um filho... e continuam casados
até hoje?
Isso muda o testemunho dele? Que parte
nossa busca a verdade? Nossa mente... ou
nosso coração?
Eu quis provar que um negro podia ser
julgado com justiça no Sul... que somos
todos iguais aos olhos da lei.
Não é verdade, porque os olhos da lei são
humanos. Os de vocês e os meus. E até
podermos nos ver como iguais... a justiça
nunca será imparcial.
Ela continuará sendo uma reflexão de
nossos preconceitos. Até lá, temos o dever,
perante Deus, de buscar a verdade.
Não com nossos olhos e mentes... porque o
medo e o ódio fazem surgir preconceitos do
convívio... mas com nossos corações, onde
a razão não manda.
Quero contar uma história. Vou pedir para
que fechem os olhos... enquanto eu a
conto.
Quero que me ouçam e que ouçam a si
mesmos. Vamos, fechem os olhos, por
favor.
É a história de uma garotinha... que
voltava do armazém numa tarde
ensolarada.
Quero que imaginem a garotinha. De
repente, surge uma picape. Dois homens
saem e a agarram. Eles a levam para uma
clareira... amarram-na... arrancam-lhe as
roupas do corpo... e montam nela...
primeiro um, depois o outro... estuprando-
a... despedaçando tudo o que há de
inocente... com suas arremetidas... numa
névoa de hálito ébrio e suor.
61
E, ao acabarem... depois de...matarem
aquele pequeno útero... tirando-lhe a
possibilidade de ter filhos... de perpetuar...
a sua vida...eles começam a usá-la como
alvo...jogando latas de cerveja cheias nela.
Jogam com tanta força... que cortam sua
carne até o osso.
Aí eles urinam sobre ela. Agora vem o
enforcamento. Eles pegam uma corda... e
fazem um laço.
Imaginem o laço apertando, e com um
puxão repentino... ela é suspensa no ar,
esperneia... e não encontra o chão.
O galho onde a penduram... não é forte.
Ele quebra, e ela cai... de novo no chão.
Eles a levantam e... a jogam na picape...
dirigem-se para a ponte de Foggy Creek...
e a jogam por cima da mureta.
Ela cai de 10 m de altura... até o fundo do
córrego. Conseguem vê-la? Seu corpo
estuprado, espancado, massacrado...
molhado da urina e do sêmen deles... e do
próprio sangue... abandonado para
morrer.
Conseguem vê-la? Quero que façam uma
imagem... dessa garotinha. Agora
imaginem que ela é branca.
A defesa terminou, meritíssimo. (TEMPO
DE MATAR, 1996, 2H13MIN-2H20MIN.)

Por fim, como lido no trecho do filme, Brigance pede para


que os jurados imaginassem que Tonya fosse branca, em vez de
uma criança negra, trabalhando aí tanto a questão do ethos
quanto do pathos, causando assim, a comoção de todos e
liberação do preconceito, resultando na absolvição de Carl Lee.

Considerações finais:
62
A análise realizada não esgota o sistema retórico possível
de percepção nos filmes, mas ainda assim, evidencia sua
aplicação e o poder instrumental dessa chave de análise
argumentativa. E mais importante, todavia, é evidenciar o papel
importante do pathos e do ethos para o resultado
argumentativos, ou seja, para a adesão do auditório, pois
durante anos tal dimensão subjetiva, embora largamente
utilizada pelos bons argumentadores, era relegada pela teoria
ou pelo “imaginário social” a um papel menor na argumentação
ou sequer era estudada. Entretanto hoje, com os estudos,
dentre esses os dos autores contemporâneos aqui selecionados,
deu não apenas à prova do logos, mas também ao ethos e ao
pathos importância teórica e prática.

Referências:

ALEXANDRE JÚNIOR, Manuel. Aristóteles: retórica. Lisboa:


Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2005. 2005. Disponível em:
http://www.obrasdearistoteles.net/files/volumes/0000000030.
PDF. Acesso em: 15 set. 2015.

AMOSSY, Ruth (org.). Imagens de si no discurso: a


construção do ethos. São Paulo: Contexto, 2005.

CITELLI, Adilson. Linguagem e persuasão. 15.ed. São Paulo:


Ática, 2002.

CAMPOS, Magna; JORGE, Alan de Matos. O sistema retórico


(ethos, pathos e logos): contribuições para a argumentação
jurídica. In: CAMPOS, Magna. Letramento acadêmico e
argumentação: incursões teóricas e práticas. Disponível em:
63
https://www.academia.edu/18454850/livro_letramento_ac
ad%c3%8amico_e_argumenta%c3%87%c3%83o_incurs%c3
%95es_te%c3%93ricas_e_pr%c3%81ticasAcesso em: 19 nov.
2017.

MAINGUENEAU, D. Ethos, cenografia, incorporação. In:


Imagens de si no discurso: a construção do ethos. In:
AMOSSY, Ruth (org.). São Paulo: Contexto, 2005. p. 69-92.

PERELMAN, Chaïm; OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Tratado da


aargumentação: a nova retórica. São Paulo: Martins Fontes,
1996.
REBOUL, Olivier. Introdução à retórica. São Paulo: Martins
Fontes, 2004.

Filmes:

NEGAÇÃO. Direção de Mick Jackson. Produção de Celia Duval.


Estados Unidos da América/Reino Unido da Grã-bretanha e
Irlanda do Norte: Sony Pictures, 2016. 1 DVD (109 min.), color.

SOB CUSTÓDIA. Direção James Lapine. Produção de Viola


Davis, Lauren Versel, Katie Mustard. Estados Unidos da
América: Sony Pictures, 2016. 1 DVD (104 min.), color.

TEMPO DE MATAR. Direção de Joel Schumacher. Produção de


John Grisham, Arnon Milchan. Estados Unidos da América:
Warner Bros., 1996. 1 DVD (149 min.), color.

64
INCLUSÃO DE CRIANÇAS COM NECESSIDADES
EDUCATIVAS ESPECIAIS NO ENSINO FUNDAMENTAL: UMA
ANÁLISE DO CONTEXTO E DA LEGISLAÇÃO BRASILEIRA

Patrícia Dias1
Michele Aparecida G. Guimarães2
Magna Campos3

Resumo:
Neste artigo, explora-se a questão legislacional brasileira
referente à inclusão de crianças e adolescentes com
necessidades educativas especiais, como meio garantidor do
direito à educação. Todavia, observa-se um descompasso entre o
legislado e a formação de profissionais aptos para exercer tais
funções nas escolas públicas brasileiras, além de questões
administrativas mal resolvidas que emperram o acesso a tal
direito, de forma efetiva e capaz de transformar vidas.

Palavras-chave: Inclusão de pessoas com deficiência;


Legislação Nacional, Ensino Fundamental.

Introdução:

Procurar inserir a discussão sobre os desafios da


educação contemporânea, dos seus problemas e das
responsabilidades ao atendimento específico das crianças com
necessidades educativas especiais, é sempre preocupação por
parte da maioria dos professores, notadamente dos que
lecionam nas séries iniciais do ensino fundamental.

1 Especialista em Práticas Pedagógicas, professora, pedagoga e graduanda em


Direito
2 Mestre em Direito, professora universitária, tutora à distância, advogada e

consultora jurídica.
3 Mestre em Letras, professora universitária e escritora.
65
A questão motivadora deste texto centra-se em verificar
até que ponto a legislação brasileira tem contribuído para que
esta inclusão se dê de fato, indo além de uma simples matrícula
no ensino regular de escolas públicas e privadas. Além disso,
analisará se a inclusão de crianças com necessidades
educativas especiais tem sido apenas uma inclusão social,
esquecendo-se das potencialidades que podem ser
desenvolvidas pelo aluno, respeitadas suas limitações
individuais.
O tema da educação especial está no contexto da
instalação de vários processos de profundas transformações no
sistema educacional brasileiro, assim como das mudanças na
legislação e nas diretrizes nacionais que norteiam a educação
inclusiva. Para tanto, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional (LDB), Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996,
nacionalmente conhecida como LDB 9394/96, em seu artigo 58
ressalta:
Entende-se por educação especial, para os
efeitos desta lei, a modalidade de educação
escolar, oferecida preferencialmente na
rede regular de ensino, para educandos
portadores de necessidades especiais.
(BRASIL, LDB, 1996).

Entretanto, a Lei nº 12.796, de 4 de abril de 2013,


altera a Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996,
estabelecendo uma nova proposta para a educação inclusiva:

Art. 58. Entende-se por educação


especial, para os efeitos desta Lei, a
modalidade de educação escolar oferecida
66
preferencialmente na rede regular de
ensino, para educandos com deficiência,
transtornos globais do desenvolvimento e
altas habilidades ou superdotação.
(BRASIL, Lei 12.796, 2013).
.
Esta e outras alterações que serão mostradas ao longo
do texto reforçam o reconhecimento do direito à educação e a
valorização da criança como pessoa humana, adotando a
necessidade de conferir-lhe ampla proteção, assegurando que a
criança portadora de deficiência física, sensorial e mental tenha
o direito de estudar em classes comuns regulares.
A breve consideração visa mostrar que a educação
inclusiva e a educação especial andam na mesma direção, num
processo de mobilização para inserção de educandos com
necessidades especiais. Importante lembrar que incluir não se
limita a matricular a criança dentro da escola nem tão pouco
criar leis que não atendam o contexto do sistema educacional
brasileiro.
É fundamental que essa criança tenha condições e
esteja propicia a práticas pedagógicas que a façam interagir de
acordo com suas potencialidades para a construção de
conhecimentos, propiciando-lhe a oportunidade de desenvolver
habilidades e características inerentes ao convívio e interação
social sem restrições/limitações condicionadas à sua
capacidade psíquica, motora, visual. Ou seja, garantir seu
direito de acesso e inclusão institucional na perspectiva de
formação de um novo cidadão focado na condição humana que
este representa.
67
2. Educação especial na perspectiva da educação inclusiva

Quando se fala de inclusão, faz-se referência a uma


nova postura da sociedade, na qual se espera que as diferenças
sejam a mudança de paradigma. A educação inclusiva pertence
a um paradigma educacional fundamentado na concepção de
direitos humanos, na qual os marcos históricos e normativos
decorrem de um movimento mundial pela inclusão, como uma
ação política, cultural, social e pedagógica, em defesa do direito
de todos os alunos pertencerem a uma mesma escola.
Considerando os dados do Censo Escolar de 2016,
apresentados no gráfico 1, 82% dos alunos com deficiência,
transtornos globais do desenvolvimento ou altas habilidades
estão incluídos em classes comuns.

Gráfico 1: Educação Especial - Número de matrículas de


educação infantil - Brasil - 2008 – 2016. Fonte: Censo Escolar
2016.
68
O Censo aponta no gráfico 2, que 57, 8% das escolas
brasileiras têm alunos com deficiência incluídos em turmas
regulares. Em 2008, esse percentual era de apenas 31%.

Gráfico 2: Educação Especial - Número de Matrículas no


ensino fundamental - Brasil - 2008 – 2016. Fonte: Censo
Escolar 2016.

Os dados apontados nos dois gráficos evidenciam


que houve um crescimento no número de matrículas de alunos
com algum tipo de deficiência no Brasil, sendo que este
aumento de matriculados não é fruto do acaso, mas do reflexo
de um movimento social que busca a inclusão
educacional.(BRAGA, 2016, p. 245).
Contudo, a educação inclusiva pode ser vista como
uma ação em defesa do direito de todos os alunos estarem
juntos, isso quer dizer, de aprenderem e participarem, sem
69
nenhuma discriminação. A educação especial, nessa
perspectiva de educação inclusiva, é uma modalidade de ensino
que realiza o atendimento educacional especializado,
disponibiliza os recursos e serviços necessários, bem como
orienta quanto à sua utilização no processo de ensino e
aprendizagem nas turmas comuns do ensino regular.
Portanto, implica na garantia de acesso a educação em
âmbito democrático, ético-social conferindo aos portadores de
necessidades especiais a oportunidade de desenvolver
habilidades e características inerentes ao convívio e interação
social sem restrições/limitações condicionadas à sua
capacidade psíquica, motora, visual, dentre outras. Permitindo
que o indivíduo seja respeitado, tenha seu direito de acesso e
inclusão institucional na perspectiva de formação de um novo
cidadão focado na condição humana que o mesmo representa.

3. O direito à educação

O Direito à Educação é previsto na Constituição Federal


(CF) do Brasil, de 1988, concebendo importantes instrumentos
jurídicos para a sua garantia. De modo mais explícito, o artigo
6º aponta a declaração dos Direitos Sociais, destacando, com
primazia, a educação: “são direitos sociais a educação, a saúde,
o trabalho, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção
à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na
forma desta Constituição” (BRASIL, 2016, p. 11).

70
Considerando a redação do artigo citado, não se pode
tratar do direito à educação desassociando-o dos fundamentos
previstos no art. 1º e dos objetivos fundamentais previstos no
art. 3º da CF de 1988. O disposto no art. 1º prevê como
princípios fundamentais, no inciso II, a cidadania, e no inciso
III, a dignidade da pessoa humana (BRASIL, Constituição
Federal, 1988). Verifica-se desta forma que a efetiva aplicação
destes fundamentos se dará a partir da educação, pois, através
dela, pode-se preparar um indivíduo para o exercício da
cidadania, assim como a concretização da dignidade da pessoa
humana será garantida com o acesso à educação.
A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 205,
consagra a educação como direito de todos e dever do Estado e
da família. Verifica-se, com isso, que é dever do Estado ofertá-
la, sendo a família co-responsável pela tarefa de educar seus
filhos, além de promover e incentivar o processo educativo.
Vejamos o que expõe, neste sentido, o artigo 206 da
Constituição Federal:

Art. 206. O ensino será ministrado com


base nos seguintes princípios:
I - igualdade de condições para o acesso e
permanência na escola;
II - liberdade de aprender, ensinar,
pesquisar e divulgar o pensamento a arte e
o saber;
III - pluralismo de ideias e de concepções
pedagógicas, e coexistência
de instituições públicas e privadas de
ensino;
IV - gratuidade do ensino público em
estabelecimentos oficiais;
71
V - valorização dos profissionais da
educação escolar, garantidos, na forma da
lei, planos de carreira, com ingresso
exclusivamente por concurso público de
provas e títulos, aos das redes públicas;
VI - gestão democrática do ensino
público, na forma da lei;
VII - garantia de padrão de qualidade;
VIII - piso salarial profissional nacional
para os profissionais da educação escolar
pública, nos termos de lei federal.
Parágrafo único. A lei disporá sobre as
categorias de trabalhadores considerados
profissionais da educação básica e sobre a
fixação de prazo para a elaboração ou
adequação de seus planos de carreira, no
âmbito da União, dos Estados, do Distrito
Federal e dos Municípios. (BRASIL,
Constituição Federal, 2016).

Analisando os princípios apresentados no artigo, vale à


pena notar que estes são enunciados básicos, que abrangem e
consideram uma série de situações e demandas no âmbito
educacional, ou seja, serve como uma “base” para a estrutura
normativa educacional.
Na sequência, o detalhamento ao Direito à Educação foi
postulado no artigo 208. O dever do Estado com a educação
será efetivado mediante a garantia de:

I - educação básica obrigatória e gratuita


dos 4 (quatro) aos 17 (dezessete) anos de
idade, assegurada inclusive sua oferta
gratuita para todos os que a ela não
tiveram acesso na idade própria;
II - progressiva universalização do ensino
médio gratuito;
72
III - atendimento educacional
especializado aos portadores de
deficiência, preferencialmente na rede
regular de ensino;
IV - educação infantil, em creche e pré-
escola, às crianças até 5 (cinco) anos de
idade;
V - acesso aos níveis mais elevados do
ensino, da pesquisa e da criação
artística, segundo a capacidade de cada
um;
VI - oferta de ensino noturno regular,
adequado às condições do educando;
VII - atendimento ao educando, em todas
as etapas da educação básica, por meio de
programas suplementares de material
didático-escolar, transporte, alimentação e
assistência à saúde.
§ 1º O acesso ao ensino obrigatório e
gratuito é direito público subjetivo.
§ 2º O não-oferecimento do ensino
obrigatório pelo poder público, ou sua
oferta irregular, importa responsabilidade
da autoridade competente.
§ 3º Compete ao poder público recensear
os educandos no ensino fundamental,
fazer-lhes a chamada e zelar, junto aos
pais ou responsáveis, pela freqüência à
escola. (BRASIL, 2016, p. 63).

Pode-se verificar que o reconhecimento do direito à


educação trouxe as devidas obrigações para o Estado, para a
sociedade e os indivíduos. Por esta razão, é válido ressaltar que
reconhecer não resulta em uma mera positivação, mas de se
exigir e estabelecer políticas públicas e ações afirmativas para
propiciar e assegurar como cidadãos de direitos em igualdade
de oportunidades.
73
Percebe-se com isso que a efetivação do ensino exige
entre outros aspectos de profissionais, famílias, insumos e de
uma sociedade que cumpra as diretrizes educacionais. O direito
à educação é condição principal para o desenvolvimento das
habilidades, competências e construção de conhecimentos.
Considerando as últimas décadas, é notório, conforme
dados apresentados do Censo Escolar de 2016, que houve no
Brasil um significativo avanço na universalização do acesso a
criança com algum tipo de deficiência e necessidade
educacional especial à escola regular e de sua permanência
nela.
Marcando o contexto da historicidade na educação
brasileira, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional
9394, em 1996, passou a garantir que a criança com deficiência
física, sensorial e mental pudesse estudar em classes comuns.
O fato é que seu art. 58, a LDB dispõe que a educação
escolar deve situar-se na rede regular de ensino e determina a
existência, quando necessário, de serviços de apoio
especializado. De modo a complementar o exposto anterior, o
art. 59 contempla a adequada organização do trabalho
pedagógico, sendo que os sistemas de ensino devem conter
professores preparados para o atendimento especializado ou
para o ensino regular, capacitados para integrar os educando
portadores de necessidades especiais nas classes comuns.
É relevante destacar que tanto a LDB 9394/96 quanto
o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA – Lei 8069 de
1990), afirmam que é incumbência dos docentes zelar pela

74
aprendizagem do aluno com necessidades especiais na
modalidade de educação escolar, oferecida preferencialmente na
rede regular de ensino.
Nesta linha, o ECA cita em seu artigo 53 que a criança
e o adolescente têm direito à educação, visando ao pleno
desenvolvimento de sua pessoa, preparo para o exercício da
cidadania e qualificação para o trabalho, assegurando-lhes:

I - igualdade de condições para o acesso e


permanência na escola;
II - direito de ser respeitado por seus
educadores;
III - direito de contestar critérios
avaliativos, podendo recorrer às instâncias
escolares superiores;
IV - direito de organização e participação
em entidades estudantis;
V - acesso à escola pública e gratuita
próxima de sua residência. (BRASIL, Lei
8069, 1990)

O mesmo diploma legal prevê ainda que “é direito dos


pais ou responsáveis ter ciência do processo pedagógico, bem
como participar da definição das propostas educacionais”
(BRASIL, Lei 8069, 1990).
Outra legislação que merece destaque é a Lei Brasileira
de Inclusão (Lei nº 13.146/2015), que entrou em vigor em 2 de
janeiro de 2016 e representa um grande avanço na inclusão de
pessoas com deficiência na sociedade. Esta lei propõe a
cidadania das pessoas com deficiência ao tratar de questões

75
relacionadas à acessibilidade, educação e trabalho e ao
combate ao preconceito e à discriminação.

4. Lei 13.146 – Estatuto da pessoa com deficiência

Traçando algumas notas sobre a legislação pertinente ao


assunto, nesse ponto, cumpre discorrer sobre alguns aspectos
da Lei n° 13.146, de 06 de julho de 2015, que instituiu a Lei
Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência, também
chamada de Estatuto da Pessoa com Deficiência.
Calha mencionara que a Lei n° 13.146/2015 ficou
conhecida no meio acadêmico principalmente por, dentre
outros, ter ocasionado uma revisão da teoria das incapacidades
ao alterar os arts. 3° e 4° do Código Civil de 2002, de modo a
que os absolutamente incapazes passaram a ser tão somente os
menores de 16 (dezesseis) anos, sendo certo que aqueles que,
por causa transitória ou permanente, não puderem exprimir
sua vontade foram alçados à condição de incapazes,
relativamente a certos atos ou à maneira de os exercer (art. 3 e
4° do Código Civil de 2002).
Comentando a inovação no ordenamento jurídico
brasileiro Hermanny Filho (2016, p. 195-196) ensina:

abrangeu-se o rol de forma a incluir


inúmeras formas de deficiências que não
eram tratadas como incapacidades pelo
Código Civil em sua versão original, por
exemplo, cadeirantes, surdos, mudos,
apenas para citar alguns casos.(...) Por
76
sua vez, toda e qualquer pessoa submetida
a curatela passa a ser considerada
relativamente incapaz. Isso porque se
considera a curatela uma causa transitória
que o impede de exprimir a vontade em
relação a questões específicas. Assim, com
exceção do critério cronológico, em
hipótese alguma, uma pessoa maior de
idade, mesmo que inválida, será
classificada como absolutamente incapaz,
não havendo que se falar em
representação por parte do seu curador,
mas tão somente assistência para os atos
da vida civil, o que em alguns casos é
tarefa impossível.

De fato, a referida alteração demonstra uma mudança


paradigmática no Direito ao deixar de considerar o deficiente
como absolutamente incapaz, todavia, o foco do presente
trabalho é pontuar alterações voltadas para a educação
inclusiva, como doravante passa a discorrer.
Nesse compasso, não se pode olvidar que o Estatuto da
Pessoa com Deficiência é considerado um marco no
ordenamento jurídico nacional, sendo certo que o mesmo
destina-se a “assegurar e a promover, em condições de
igualdade, o exercício dos direitos e das liberdades
fundamentais por pessoa com deficiência, visando à sua
inclusão social e cidadania”, consoante assentando no art. 1°
da referida lei.
Mister se torna asseverar que o próprio legislador já
apresentou em seu art. 2° a definição de pessoa com deficiência
como sendo as que possuem algum tipo de impedimento a
longo prazo que possa prejudicar “sua participação plena e
77
efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais
pessoas”.
De fato, o Estatuto da Pessoa com deficiência, do ponto
de vista legislativo, garantiu o direito à igualdade de
oportunidades às pessoas com deficiência com relação às
demais, bem como veda qualquer espécie de discriminação,
havendo uma proteção às pessoas com deficiência de modo a
garantir a dignidade das mesmas ao longo de toda a vida.
Ainda no que pertine à tal Estatuto, importante se faz
destacar que, dentre os direitos fundamentais assegurados,
vislumbra-se o direito à educação explicitado a partir do art. 27,
que apresenta a seguinte redação:

Art. 27. A educação constitui direito da


pessoa com deficiência, assegurados
sistema educacional inclusivo em todos os
níveis e aprendizado ao longo de toda a
vida, de forma a alcançar o máximo
desenvolvimento possível de seus talentos
e habilidades físicas, sensoriais,
intelectuais e sociais, segundo suas
características, interesses e necessidades
de aprendizagem.

Desta feita, pela exegese da norma supra colacionada,


depreende-se que a pessoa com deficiência tem direito a um
sistema educacional inclusivo em todos os níveis de
aprendizado em conformidade com suas necessidades
individuais. Nesse ponto, vale observar que a educação
inclusiva deve levar em conta as dificuldades e desafios de cada
educando.
78
De mais a mais, o dever de garantir à pessoa com
deficiência uma educação de qualidade é solidário, cabendo não
só ao Estado, como também à família, à comunidade escolar e à
sociedade, malgrado caber ao Poder Público: assegurar, criar,
desenvolver, implementar, incentivar, acompanhar e avaliar,
dentre outros, sistema educacional inclusivo; desenvolver
projeto pedagógico que institucionalize o atendimento
educacional especializado; ofertar educação bilíngue, em Libras
como primeira língua e na modalidade escrita da língua
portuguesa como segunda língua; adoção de medidas
individualizadas e coletivas; promover pesquisas voltadas para
o desenvolvimento de novos métodos e técnicas pedagógicas, de
materiais didáticos, de equipamentos e de recursos de
tecnologia assistiva; adotar práticas pedagógicas inclusivas
pelos programas de formação inicial e continuada de
professores e ofertar formação continuada para o atendimento
educacional especializado (art. 28 da Lei n° 13.146/2015).
Outrossim, o Poder Público tem o dever de: proporcionar a
formação e disponibilização de professores para o atendimento
educacional especializado, assim como dos profissionais de
apoio; propiciar o acesso da pessoa com deficiência, em
igualdade de condições, a jogos e a atividades recreativas,
esportivas e de lazer, no sistema escolar; garantir acessibilidade
para todos os estudantes e trabalhar na articulação
intersetorial na implementação de políticas públicas.
A partir das explanações deste tópico, conclui-se que o
Estatuto do Deficiente representa uma verdadeira reforma

79
ampliando a proteção dada aos deficientes, primando pela
dignidade, inclusão social e não discriminação. Apesar do
avanço legislativo proporcionado pelo Estatuto do Deficiente,
garantido a educação inclusiva, na prática, ainda existem
muitos desafios a serem superados, o será abordado na
sequência.

5. A escola inclusiva

Nesta breve incursão pela legislação nacional, é possível


depreender que um dos maiores obstáculos foi o
reconhecimento de que as pessoas com deficiência tivessem
direito de estarem integrados à sociedade, e, portanto, à escola
regular.
A percepção do efetivo conceito de inclusão na escola
brasileira foi a promulgação da Resolução CNE/CEB n. 2 de
2001, quando o Conselho Nacional de Educação, estabelece a
LDB para Educação Especial na Educação Básica,
regulamentando a educação inclusiva ao estabelecer que “os
sistemas de ensino devem matricular todos os alunos, cabendo
às escolas organizarem-se para o atendimento aos educandos
com necessidades educacionais especiais, assegurando as
condições necessárias para uma educação de qualidade para
todos”. (BRASIL, CNE/CEB, n.2, 2001)
Um paradigma importante foi alterado com a resolução
mencionada, pois em lugar de colocar a origem do problema ou
responsabilidade de adaptação sobre o aluno, inverte-se o polo,

80
coloca-se para os sistemas de ensino e para as escolas a
responsabilidade de encontrar ações, estratégias educacionais e
recursos para incluir tais alunos. Ações que perpassam por
questões política, técnicas, estruturais, científica, pedagógicas e
administrativas.
Neste sentido, não se trata mais de dar atendimento em
salas separadas aos alunos com deficiências, apenas para dizer
que estão na escola regular. Trata-se de esse aluno estar na
sala de aula regular, contando com o apoio, para
complementação ou suplementação, se necessário, de outros
profissionais nesta seara. A educação especial passa, portanto,
a ser reconhecida como uma modalidade de educação escolar e
não mais como uma categoria distinta desta.
Essa resolução, traz os parâmetros para previsão e
provimento de tal atendimento, em seu artigo 8, disposto a
seguir, que tratam da organização das salas, da capacitação de
professores, da distribuição de aluno, da flexibilização e
adaptações curriculares, do apoio pedagógico especializado, dos
projetos de sustentabilidade da educação inclusiva, da
temporalidade curricular. Observe-se na letra da lei o que
dispõe tal artigo:

I - professores das classes comuns e da


educação especial capacitados e
especializados, respectivamente, para o
atendimento às necessidades educacionais
dos alunos;
II - distribuição dos alunos com
necessidades educacionais especiais pelas
várias classes do ano escolar em que forem
81
classificados, de modo que essas classes
comuns se beneficiem das diferenças e
ampliem positivamente as experiências de
todos os alunos, dentro do princípio de
educar para a diversidade;
III – flexibilizações e adaptações
curriculares que considerem o significado
prático e instrumental dos conteúdos
básicos, metodologias de ensino e recursos
didáticos diferenciados e processos de
avaliação adequados ao desenvolvimento
dos alunos que apresentam necessidades
educacionais especiais, em consonância
com o projeto pedagógico da escola,
respeitada a frequência obrigatória;
IV – serviços de apoio pedagógico
especializado, realizado, nas classes
comuns, mediante: a) atuação colaborativa
de professor especializado em educação
especial; b) atuação de professores-
intérpretes das linguagens e códigos
aplicáveis; c) atuação de professores e
outros profissionais itinerantes intra e
interinstitucionalmente; d)
disponibilização de outros apoios
necessários à aprendizagem, à locomoção
e à comunicação.
V – serviços de apoio pedagógico
especializado em salas de recursos, nas
quais o professor especializado em
educação especial realize a
complementação ou suplementação
curricular, utilizando procedimentos,
equipamentos e materiais específicos;
VI – condições para reflexão e elaboração
teórica da educação inclusiva, com
protagonismo dos professores, articulando
experiência e conhecimento com as
necessidades/possibilidades surgidas na
relação pedagógica, inclusive por meio de

82
colaboração com instituições de ensino
superior e de pesquisa;
VII – sustentabilidade do processo
inclusivo, mediante aprendizagem
cooperativa em sala de aula, trabalho de
equipe na escola e constituição de redes de
apoio, com a participação da família no
processo educativo, bem como de outros
agentes e recursos da comunidade;
VIII – temporalidade flexível do ano letivo,
para atender às necessidades educacionais
especiais de alunos com deficiência mental
ou com graves deficiências múltiplas, de
forma que possam concluir em tempo
maior o currículo previsto para a
série/etapa escolar, principalmente nos
anos finais do ensino fundamental,
conforme estabelecido por normas dos
sistemas de ensino, procurando-se evitar
grande defasagem idade/série;
IX – atividades que favoreçam, ao aluno
que apresente altas
habilidades/superdotação, o
aprofundamento e enriquecimento de
aspectos curriculares, mediante desafios
suplementares nas classes comuns, em
sala de recursos ou em outros espaços
definidos pelos sistemas de ensino,
inclusive para conclusão, em menor
tempo, da série ou etapa escolar, nos
termos do Artigo 24, V, “c”, da Lei
9.394/96. (BRASIL, Resolução 2. 2,
CNE/CBE, 2001)

O dever de adaptação e de não discriminação, portanto,


permeiam também essa legislação a exemplo de outras aqui
mencionadas.

83
Mas alguns elementos neste artigo chamam atenção,
especialmente os que se referem à sala de recursos, ao serviço
de apoio ofertado por profissionais especializados em Educação
Especial, a flexibilidade e adaptabilidade do currículo para os
alunos que necessitarem de mais ou menos tempo para
aprendizagem, além da reflexão sobre a inclusão escolar e
social.
O artigo menciona a sala de recursos, um importante
dispositivo pedagógico para a inclusão do aluno com
deficiência. O inciso V mencionado trata especificamente da
sala de recursos que deve atuar em apoio complementar ou
suplementar ao professor do ensino regular, para propiciar
procedimentos, materiais e equipamentos específicos para o
trabalho com os alunos com deficiência. O inciso mencionado
não faz distinção quanto ao tipo de deficiência a ser atendida
pela sala de recursos, portanto, podendo ser deficiência
intelectual ou física.
Mas para se saber mais sobre tais salas, é preciso
recorrer-se à publicação da nova Política da Educação Especial
na perspectiva da Educação Inclusiva pela Secretaria de
Educação Especial – Ministério da Educação (SEESP/MEC),
ocorrida em 20084.
Tal política prevê que os alunos com deficiência visual,
auditiva, física, intelectual, com altas habilidades/superdotação

4 Disponível em:

http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman&view=download&ali
as=16690-politica-nacional-de-educacao-especial-na-perspectiva-da-
educacao-inclusiva-05122014&Itemid=30192
84
e transtornos globais de desenvolvimento devam frequentar as
salas de aula regulares com os demais alunos e receber o
Atendimento Educacional Especializado (AEE), no turno oposto
a seu horário escolar, nas Salas de Recursos Multifuncionais.
De acordo com o documento, “as atividades desenvolvidas no
atendimento educacional especializado diferenciam-se daquelas
realizadas na sala de aula comum, não sendo substitutivas à
escolarização” (BRASIL, Política Nacional de Educação Especial
na Perspectiva da Educação Inclusiva, 2008, p. 12). De corre
daí seu caráter complementar ou suplementar à sala de aula
comum. E, “dentre as atividades de atendimento educacional
especializado são disponibilizados programas de
enriquecimento curricular, o ensino de linguagens e códigos
específicos de comunicação e sinalização e tecnologia assistiva”.
(BRASIL, Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva
da Educação Inclusiva, 2008, p. 12).
Neste sentido, o Ministério da Educação tem fornecido
às escolas materiais específicos, para montagem destas salas de
recursos, a fim de fornecerem atendimento especializado aos
alunos incluídos. Todavia, além dos materiais, há a necessidade
do profissional especializado em Educação Especial para o
trabalho nestes espaços. O que tem se mostrado um entrave
para o funcionamento destas salas pelos municípios brasileiros,
ainda que o MEC tenha tentado suprir a carência de
profissionais com tal especializada, por meio de programa de
Formação Continuada ou de Especializações a Distância
ofertadas em projetos das universidades públicas.

85
6. Direitos da criança na sala de aula

O trabalho pedagógico voltado para o aluno com


necessidades especiais nos primeiros anos do ensino
fundamental requer preparo do docente para conhecer o tipo de
deficiência, a história de vida do aluno, suas relações com seus
familiares, assim como do conjunto dos direitos e deveres que
cabem à criança, para que ela construa competências,
habilidades, valores e atitudes relacionados ao exercício de sua
cidadania.
Quando a escola acolhe pela primeira vez uma criança
com necessidades educacionais especiais é natural que
algumas ações sejam tomadas, como verificar em que turma
será matriculada, se essa criança tem Plano de
Desenvolvimento Individual do Aluno (PDI) com laudo médico,
atestando suas condições cognitivas e motoras, se tem direito a
um monitor de ensino especial, se o professor se encontra
preparado para melhor atender o aluno.
Não se pode negar que, em várias situações, inclusive,,
o professor se sinta temeroso diante da nova situação para a
qual não se encontrava preparado, já que este será um desafio
que implica na adoção de novas metodologias de ensino e de
avaliação e de mudanças nas práticas pedagógicas já adotadas
por ele.
Além dessas questões, para que a inclusão se
concretize, torna-se fundamental a elaboração por parte de toda
comunidade escolar de um Projeto Político Pedagógico (PPP) que

86
envolva as necessidades especiais desses educandos. Dessa
forma, considera-se relevante que haja envolvimento dos
gestores e de investimentos educacionais na formação dos
educadores envolvidos neste processo educacional.
No tocante à adaptação, geralmente estes alunos
sentem-se bem aceitos, compreendidos e felizes por estarem
participando da realidade escolar e das possibilidades de
convivência com seus pares.
Ressalte-se, entretanto, que, para se tornarem os
princípios inclusivos efetivos e eficazes, são fundamentais que
sejam elaboradas adaptações e complementações curriculares
que se fizerem necessárias.

7. A política de inclusão e a prática no ensino regular

É importante destacar que para que se tenham avanços


significativos na prática educacional inclusiva, faz-se necessário
repensar-se alguns paradigmas, dentre eles, o de compreender
a educação inclusiva como um processo que não se limita à
relação professor-aluno, mas que envolve toda a comunidade
escolar. Para tanto, os monitores de ensino especial são “peças”
fundamentais no processo educacional, pois esses contribuem
na aplicação das atividades práticas, nos cuidados como o de
deslocar no ambiente escolar.
Quanto a salas de recursos multifuncionais, devem ser
instaladas seguindo-se várias orientações legais, tendo em vista
o disposto no art. 208, inciso III, da Constituição, arts. 58 a 60

87
da Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, art. 9o, § 2o, da Lei
no 11.494, de 20 de junho de 2007, art. 24 da Convenção sobre
os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo
Facultativo, aprovados por meio do Decreto Legislativo n º 186,
de 9 de julho de 2008, com status de emenda constitucional, e
promulgados pelo Decreto no 6.949, de 25 de agosto de 2009, o
Decreto nº 7.611, de 17 de novembro de 2011 em seu art.5º, §
2º, inciso 2º que dispõe sobre a implantação de salas de
recursos multifuncionais.
As salas de recursos multifuncionais são ambientes
compostos de equipamentos, mobiliários, materiais didáticos e
pedagógicos para a oferta do atendimento educacional
especializado. É relevante mencionar que incluem livros em
Braille, áudio e Língua Brasileira de Sinais - LIBRAS, laptops
com sintetizador de voz, softwares para comunicação
alternativa e outras ajudas técnicas que possibilitam o acesso
ao currículo escolar e ao desenvolvimento da criança.
No atendimento das salas de recursos
multifuncionais, observa-se um trabalho pedagógico que leva
em consideração a especificidade de cada aluno com atividades
diversificadas, estratégias diferenciadas, porém não ocorre uma
efetiva troca entre professor especialista com o professor
regente, já que o aluno é atendido em horário contra-turnos, em
dias específicos e pré-agendados. Dessa forma, depende-se da
coordenação pedagógica para agendar momentos com estes
sujeitos.

88
Por isso, ressalva-se que o sucesso de uma política
inclusiva esta atrelada a uma série de ações que sustentarão as
interações entre os profissionais envolvidos; quer seja da
educação, da saúde e da assistência social.
Examinando o contexto educacional, vê-se ainda o
quanto é primordial as ações da família no processo de ensino e
aprendizagem do educando, contribuindo tanto nos aspectos
cognitivos quanto nos de cunho emocional e intelectual.
Convém destacar do ponto de vista “concreto”, que incluir trata-
se de envolver, inserir, socializar e remover as barreiras que
impedem destes educandos de aprenderem juntos. Parece
utópico, mas é nada mais do que promover uma integração.

Considerações Finais

O processo de inclusão é uma realidade atual, sua


viabilização e aplicação são fundamentais para o
desenvolvimento da criança com necessidades especiais para
torná-la sujeito de direitos. Sem dúvida, os esforços para
assegurar a implantação dos direitos previstos na legislação
exigem compromisso dos governos, sociedades, profissionais da
educação e das famílias. Por isso, é essencial que esse processo
se dê de maneira gradativa, contínua, sistemática e planejada.
Vê-se que não basta assegurar o direito de inclusão, é
preciso que a inserção ocorra de fato. Que tanto o ensino
regular, quanto o ensino especializado

89
( AEE) caminhem sem desviar dos princípios básicos da
educação.
Que o professor regente tenha um olhar diferenciado,
que este esteja capacitado, assim como o monitor de ensino
especial. É essencial que estes profissionais estejam preparados
para propiciar e oferecer condições de aprendizagem e do
desenvolvimento das habilidades e competências necessárias
para a formação cidadã dos alunos. Que a escola esteja
adaptada tanto nos aspectos físicos quanto curriculares.
Não se pretende aqui estabelecer critérios para o
ensino escolar de crianças com necessidades educativas
especiais, o que se espera é uma reflexão sobre a realidade,
sobre as propostas vigentes e que possam ser discutidas,
aprofundadas, adequadas.

Referências:

BRAGA, Fernanda Soares. Da obrigatoriedade do


fornecimento de educação inclusiva de qualidade versus a
possibilidade de cobranças de valores adicionais por parte
da rede privada de ensino. XXV ENCONTRO NACIONAL DO
CONPEDI - CONPEDI/UnB/UCB/IDP/UDF; p. 244 a 260,
2016: BRASÍLIA, DF.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República


Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal, 2016.

BRASIL. Constituição da República de 1988. Disponível em:


<
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao
compilado.htm Acesso em 23 maio. 2017.

90
BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente. Disponível
em: < http://www.conselhodacrianca.al.gov.br/sala-de-
imprensa/publicacoes/ECA%20ATUALIZADO.pdf/view> Acesso
em 23 maio. 2017.

BRASIL. Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com


Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência). Disponível
em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-
2018/2015/lei/l13146.htm> Acesso em 23 maio. 2017.

BRASIL. Ministério da Educação. Censo Escolar 2016. Notas


estatísticas. Disponível em: <
http://abed.org.br/arquivos/apresentacao_censo_escolar_da_e
ducacao_basica_2016.pdf> Acesso em: 17 set 2017.

BRASIL. Casa Civil


Subchefia para Assuntos Jurídicos. Decreto nº 7.611, de 17
de novembro de 2011. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-
2014/2011/decreto/d7611.htm> Acesso em: 17 set 2017.

BRASIL. Casa Civil


Subchefia para Assuntos Jurídicos. Lei nº 12.796, de 4 de
abril de 2013 Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-
2014/2013/lei/l12796.htm> Acesso em: 09 set 2017.

BRASIL. Política Nacional de Educação Especial na


Perspectiva da Educação Inclusiva. Brasília: MEC/ SECADI,
2008. Disponível em:
http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman&view
=download&alias=16690-politica-nacional-de-educacao-
especial-na-perspectiva-da-educacao-inclusiva-
05122014&Itemid=30192. Acesso em: 04 nov. 2017.

BRASIL. Resolução CNE/CEB nº 2, de 11 de setembro de


2001: institui Diretrizes Nacionais para a Educação Especial na
Educação Básica. Disponível em:
http://portal.mec.gov.br/cne/arquivos/pdf/CEB0201.pdf
Acesso: 31 out. 2017.

91
HERMANNY Filho, Flávio. Os impactos do estatuto da pessoa
com deficiência no regime das incapacidades. Disponível em:
https://www.conpedi.org.br/publicacoes/02q8agmu/8v3pu3u
q/NYDAj0p1T4e5J0fN.pdf Acesso: 12 dez. 2017.

MIRANDA, Arlete Aparecida Bertoldo. História, Deficiência e


Educação Especial. Disponível em:
<http://www.moodle.ufop.br/course/view.php?id=337> Acesso
em: 09 maio 2016.

MOURA, Giovanna Paola Batista de Britto Lyra; TORRES,


Raissa Brindeiro de Araújo. A importância no
reconhecimento dos direitos das minorias como tema de
direitos humanos: educação inclusiva para pessoas com
deficiência. XXIV Congresso Nacional do CONPEDI –
UFMG/FUMEC/Dom Helder Câmara. P. 527 a 546, 2016:
Brasília, DF.

92
SUCESSÃO E CONFLITOS DENTRO DAS EMPRESAS
FAMILIAR

Bruno Luís Faria Araújo1


Henrique Geraldo de Brito Moreira2
Aparecido José dos Santos Ferreira3

Resumo

Este trabalho tem como objetivo mostrar todos os pontos em que


uma empresa familiar passa, apresentando o que é uma
empresa familiar e seu desenvolvimento até chegar na sucessão
ou nos conflitos. O trabalho apresentado passa todos esses
conteúdos de forma simples, informando todos os passos a
serem seguidos para se ter êxito nas empresas familiares e
assim evitar possíveis conflitos e erros que possam vir na gestão
e prejudicar seu desenvolvimento e estabilidade.

Palavras-chave: Empresa Familiar, Sucessão e Conflito.

Introdução

Neste trabalho serão apresentados conceitos e


inferências na sucessão numa empresa familiar, para que ela
possa continuar seu legado e garantir sua perpetuidade. Haverá
também enfoque dos conflitos que cercam a empresa familiar e
os conflitos que ocorrem mais comumente ocorrem durante a

1Graduando
2Graduando
3 Mestre em Direito Empresarial pela Universidade de Itaúna – UIT.

Especialista em Direito de Empresa pela Universidade Gama Filho/RJ – UGF.


Formado pelo Centro Universitário de Sete Lagoas – UNIFEMM. Professor da
FUPAC- Mariana. Professor do Curso Educar Virtual, Approbare e outros .
Advogado.

93
sucessão. Finalmente, serão mostrados três exemplos de
empresas que obteviram sucesso durante sua sucessão.
O trabalho terá como fonte de estudo, a revisão
bibliográfica. Sendo pesquisados estudos e autores com o
intuito de auxiliar a apresentação de dados referentes a
Administração de Empresas Familiar e seus conflitos.

2. O que é uma empresa familiar

Para começarmos a tratar do assunto a que nos


dispusemos, é importante conceituar empresa familiar.
Podemos definir empresa familiar

“[…] como aquela em que um - ou mais -


membros de uma família exerce
considerável controle administrativo sobre
a empresa, por possuir parcela expressiva
da propriedade do capital.
Em algumas empresas desse gênero, a
relação entre propriedade e controle é
estreita, sendo que o controle é exercido
justamente com base na propriedade do
capital.” (SOUZA, 2001, p. 10)

Nesse panorama, as empresas familiares, aquelas cujos


membros de uma família detém o controle, também passam por
problemas de toda a ordem, dos mais simples aos mais graves,
como qualquer outra empresa. Não há nada de especial numa
empresa familiar, sob o prisma de sua organização jurídica.
Contudo,
94
“Apesar de muitos acreditarem que a
família e empresa, quando reunidas,
tendem a reduzir reciprocamente a sua
eficiência, a história das empresas
familiares bem-sucedidas mostra que isso
não precisa acontecer necessariamente.
Não é a família em si que atrapalha a
empresa, ou vice-versa, mas a ignorância
dos problemas desse relacionamento e a
falta de um código de relações. A empresa
familiar precisa definir com objetividade
com os parentes estão contribuídos para o
sucesso do empreendimento, o que implica
num programa sistemático de avaliação
dos diretores e gerentes. A empresa
familiar precisa também identificar as
suas forças e fraquezas, para construir
sobre as primeiras e neutralizar as
últimas.” (BOSCO, 1993. p. 3).

Baseado nisto acreditamos que a Empresa Familiar é


muito mais que somente uma família a frente de uma empresa,
se um modelo de gestão onde podemos extrair vários
ensinamentos sejam eles na administração, na gestão de
pessoas e também no papel que cada um tem para que a
empresa funcione e gere resultados a fim de poder continuar a
sustentar aquela família que dedica todos seus esforços e tempo
para que dê certo.

3. Sucessão e conflitos na empresa familiar

95
Os maiores problemas surgem, de fato, é na
administração da empresa familiar, seja na fase de instalação,
no seu desenvolvimento ou noutros pontos.
Bosco (1993) já criticava a empresa familiar, se seria ela
um bem perecível ou até mesmo um projeto temporário, em face
do capitalismo nacional que ainda estaria em crescimento.
Segundo o mencionado autor, conceitos de administração,
como o de ciclo de vida do produto poderia ser aplicado
perfeitamente às empresas familiares, atentemos à sua lição
que consegue identificar um dos grandes obstáculos á
perpetuação empresarial, verbis:

“Será a empresa familiar um bem


perecível, um projeto temporário, devido a
fraqueza do capitalismo nacional, a
inospitalidade do ambiente tropical, a
resistência da sociedade?O conceito de
Ciclo de Vida do Produto (CPV) aplicado a
empresa familiar oferece grande poder
explicativo pois permite desdobrar em
quatro fases a parábola da vida do
fundador: fundação, crescimento, apogeu
e declínio. Na fase de fundação temos na
força e vocação do fundador a gênese da
empresa. Os fundadores, na maioria dos
casos, vieram da pobreza e encontraram
no empreendimento um meio de expressão
pessoal e uma terapia de suas carências
de menino. Há uma forte interação entre a
firma e a pessoa a ponto de serem
inseparáveis. O fundador impregna a
empresa a ponto de dificultar a
profissionalização. Suas relações com
a família e filhos são sacrificadas pela
96
carreira de sucesso e pela absorção do
trabalho até o ponto de gerar
insuficiências psicológicas nos que o
cercam. Eis porque algumas empresas
não sobrevivem ao fundador (BOSCO,
1993. p. 3).” (grifado)

Continua o autor, ensinando sobre as fases da empresa


familiar, observemos, litteris:

“A fase do crescimento depende do talento


do executivo principal e do acerto na
escolha de um produto permanece, por
muitos anos, o gerador de riqueza. O
sucesso é, na realidade, fazer o cliente que
vai sustentar o crescimento da empresa. A
velocidade de crescimento esconde os
problemas estruturais e também retarda a
adoção de medidas corretivas.Na fase do
apogeu ou de maturidade a firma navega
quase pelo poder da inércia. Os anos de
ouro já se passaram mais é agora que a
empresa recebe o reconhecimento social,
honra e glória. O tamanho ou a
diversificação dos negócios estão pedindo
uma definição estratégica, que não vem
porque a fonte criativa do negócio --- o
empresário --- começa o seu declínio
pessoal. A título de profissionalizar, a
empresa se torna pesada e burocratizada,
as decisões lentas, a comunicação difícil
entre os diversos níveis, os objetivos
obscuros e a desmotivação entra
sutilmente no negócio. É nesse critico
momento que se situa o início do processo
de sucessão. A transferência de poder será
então conduzida sobre um negócio em
começo de crise, um fundador
97
transtornado pelo conflito existencial do
envelhecimento e os sucessores
despreparados. Na fase do declínio encerra
a parábola da vida do fundador. A
capacidade de retornar o crescimento está
na relação direta de quem foi escolhido
como próximo presidente, quem são os
seus colaboradores, qual o diagnóstico da
situação da empresa. Algumas vezes
coincide com o declínio da empresa uma
situação de conflito entre pretendentes,
que alimenta a centrifugação dos partidos
e a luta pelo poder da diretoria. A
liderança deve ser exercida pelo mais
capaz com amplo respaldo dos demais
acionistas, diretores ou não, pois é raro
que o sucessor tenha maioria acionária. O
mais provável é a pulverização do poder
acionário dentre e fora da família. Por se
tratar de questão tão delicada, a sucessão
deveria ser conduzida com muita
habilidade pelo fundador enquanto ainda
detém o poder e está em plena saúde
mental e física. Sucessão empresarial não
é para ser decidida na partilha do
inventário. Sem dúvida a empresa familiar
precisa ser profissionalizada ainda sob a
gestão do fundador. Mas profissionalização
não é termo contrário a sucessão familiar.
São conceitos complementares. Uma boa
profissionalização consolida-se com uma
sucessão bem-feita e vice-versa. Porém
uma profissionalização não é duradoura
se, por cima dos profissionais, a família
não tiver conseguido equacionar a sua
crise de liderança, com o envelhecimento
do fundador. A sucessão com êxito não é
só um complemento é o feliz acabamento
do processo de profissionalização.”
(BOSCO, 1983. p. 4).

98
Sob o panorama de empresas familiares no país,
identifica o autor retromencionado que,

“Calcula-se que 20% de nossas empresas


enfrentam, neste momento, problemas de
sucessão, que demorarão entre três e
cinco anos para ser resolvidos, conforme
mostram os exemplos históricos. As
demais companhias já passaram ou ainda
vão passar por esta fase. O meio mais
seguro de evitar que a continuidade de
uma companhia familiar fique totalmente
ao sabor das sucessões familiares é a
profissionalizar a sua administração. Isto
significa ter bem claro a distinção entre
propriedade e gestão. Mas não há uma
receita única: cada empresa comporta
uma combinação específica entre medidas
de profissionalização e participação na
família na administração.” (BOSCO, 1983.
p. 102).

Podemos destacar que o autor descreveu de forma bem


simples e completa as quatro fases porque passa uma empresa
familiar, sendo elas Fundação, Crescimento, Apogeu e Declínio.
A fundação é a premissa muito importante onde será o
alicerce de todo o empreendimento, pois nesta fase é a mais
difícil pelo fato que ser algo novo e muitas das vezes o
conhecimento vai se ganhado ao longo do tempo sendo que os
erros cometidos são transformados em aprendizado para que no
futuro não possa vir a ser repetidos, também podemos destacar
que é nessa fase o Fundador dedica todo o seu tempo e esforço

99
e com isso passa menos tempo com a família e isso pode gerar
muitas das vezes conflitos entre eles.
O Crescimento é a oportunidade que a gestão tem, de
fazer um trabalho bem feito para se ter um excelente retorno,
mais para isso é preciso ter um produto que seja duradouro
que possa gerar riqueza por vários anos, também é preciso ter
cuidado pois a sobra de recurso pode esconder problemas
estruturais da empresa familiar.
Já o período de Apogeu ou Maturidade, é o momento
onde a empresa fica numa situação onde que não a mais
crescimento, podemos até dizer que ela fica num momento de
inércia, é nesse momento que a empresa tem que começar o
momento sucessório, para que ela possa voltar aos seus
momentos de ouro, com novos produtos ou serviços no
mercado, com uma gestão com novas ideias com objetivos bem
definidos, mais para que isso ocorra é preciso interação entre as
partes interessadas tanto o fundador quanto o sucessor e assim
evitando conflitos desnecessários a fim de melhorar a situação e
fazer com que cresça de novo.
O período de Declínio é a continuidade do período de
Maturidade, pois é com essa nova gestão que tem que ser
abortados as metas e estratégicas que irão colocar a empresa
no topo novamente e esse sucessor tem que ser escolhido por
ser o mais apto tanto de conhecimento quando de experiência
pois é de suma importância que essa nova liderança será a
força que irar despertar nos colaboradores envolvidos a fim de

100
unir e buscar resultados com a cooperação e participação de
todos nessa nova etapa.

4. Desenvolvimento dos sucessores

Como visto no capítulo anterior problema maior surge é


na transição entre o fundador e aqueles que vão continuar a
empresa, ou seja, seus sucessores.
Para alguns,

“[...], a sucessão é um processo de


transferência do poder que leva um a dois
anos de importantes mudanças na cúpula
da empresa. Na realidade, a sucessão
começa muitos anos antes, quando os
filhos ainda estão pequenos. Ao longo
desde extenso caminho, que separa a
infância do momento da transferência,
muitas medidas devem ser
tomadas.Podemos enumerar três grupos
de medidas que antecedem a fase
propriamente sucessória:
A formação de base dos sucessores.
O seu plano de desenvolvimento.
As medidas de caráter organizacional e
jurídico.
A primeira fase de medidas será aqui
chamada de berço. Ela se distingue por
cinco principais componentes. A base do
futuro sucessor é a educação que ele
recebeu de sua família, a vocação desperta
pelo legado de seus pais, o próprio
comprometimento ético da família com a
educação de seus filhos. O caráter da
família é, pois, o primeiro marco na viagem
101
do futuro sucessor. Nessa transmissão da
vocação da família, os filhos adquirem
também uma metodologia de vida,
aprendem a gerir os grandes momentos, as
fases de transição: o respeito pelas
pessoas, a devoção ao estudo, a cultivo
dos mestres, as grandes amizades, o
compromisso do amor, a atitude diante
dos conflitos interpessoais, o valor do
trabalho, o respeito (BOSCO, 1987. p. 9).

Ainda neste contexto, continua o autor,

“Pelos valores democráticos, o amor pela


pátria, o compromisso com a verdade.
Junto com a influência familiar e a visão
do mundo é muito importante uma boa
formação universitária. A grande
universidade, nos coloca diante de
descobertas humanas e desenvolve a
nossa capacidade de pensar e sentir, dá-
nos colegas que serão companheiros de
toda a vida, privilegia-nos com alguns
grandes mestres, enfim nos introduz na
história.
Nesta primeira fase de formação do
sucessor é importante ainda destacar a
experiência de um trabalho fora da
empresa familiar por um período de três a
cinco anos. Trabalhar fora ajuda o jovem a
encontrar sua identidade, ou seja, o seu, o
seu valor sem a proteção do sobrenome, a
encontrar um repertório de experiências
que terão, no futuro, valor comparativo
com as decisões da empresa. O trabalho
fora é útil até para que os erros de
aprendizado sejam feitos longe da empresa
102
e não prejudiquem a imagem profissional.
Os filhos deveriam trabalhar fora, até a
aquisição de uma personalidade que os
habite a entrar na empresa familiar como
verdadeiros profissionais maduros.
A segunda fase das medidas consiste no
desenvolvimento dos sucessores e pode ser
dividida em seis comportamentos básicos.
O primeiro componente do sucessor é o
seu conhecimento dos negócios que requer
iniciar na empresa através de operações,
começando pelo balcão, pelo depósito,
pelas compras e vendas e pelo processo
produtivo. O futuro presidente precisa
começar o mais cedo possível pelas
operações, para depois subir pela
hierarquia. O segundo componente é a
educação continuada, ou seja, manter o
contato com uma faculdade considerada
como alma manter, onde continuará
fazendo cursos e para cujos bancos voltará
periodicamente para a reciclagem. Outro
aspecto importante do futuro presidente é
a pessoa com viverá. A formação e o
convívio do jovem casal é uma base
importante para o desenvolvimento do
caráter e a atitude diante a vida. Há três
componentes importantes no
desenvolvimento do sucessor fora do
trabalho: o seu ambiente social (as
pessoas com quem se vive), o
desenvolvimento cultural e o político. Os
jovens precisam de modelos de vida, ou
seja, conhecer gente realizada em várias
profissões, saber como desenvolveram o
seu metier e sua ética profissional e como
obtiveram sucesso. A educação
humorística é importante para uma
adequada visão de vida: as leituras, as
viagens, o debate das grandes ideias, o
103
gosto pela arte, a educação através da
música, a arte de ver as artes plásticas, o
convívio com artistas, intelectuais,
jornalistas. O terceiro componente
importante é a educação política, a
experiência comas relações de governo, as
atividades nas associações de classe, a
representatividade dos interesses através
de um lobby profissional e ético (BOSCO,
1987. p. 10).
“A terceira fase das medidas diz respeitos
a modificações estruturais da empresa
para preparar a carreira do sucessor e
para facilitar o seu poder sobre a
organização. Refere-se a diversas medidas
de caráter societário que fortalecerão a
posição dos sucessores no vértice da
empresa: a criação da holding para
controle do grupo, a transferência de ações
dos pais para os filhos, o entendimento
entre os grupos acionários através de
acordos de acionistas visando a tranquila
sucessão. Estas medidas podem exigir
alterações societárias tais como:
afastamento de acionistas por aquisição de
parcelas acionarias, cisão de empresas,
fusões, aquisições de partes acionarias,
fortalecimento da posição volante. Neste
momento é importante assegurar que o
sucessor terá o respaldo acionário
suficiente para exercer o poder sem
disputa, que os irmãos e parentes
conflitantes tenha sido afastado e tenham
levado um compensador patrimônio para
não entrarem em novos conflitos de
sucessão. Esta fase final de sucessão
precisa ter um bom aconselhamento
jurídico e contábil de que modo a casa
esteja pronta para o sucessor assumir sem
contestação. Nada pior de que uma
104
sucessão decidida sobre o inventário,
quando o conflito familiar acentua as
forças centrífugas dos interesses pessoais
imediatistas, os ódios e a luta pelo poder.”
(BOSCO, 1987. p. 11)

Entendemos que o processo de sucessão é uma


transferência de poder entre o atual presidente por sucessor
seguinte, e que pode levar vários anos para que possa ser
maturado e concluído.
Podemos dizer que para formar um sucessor de sucesso
é algo que se tem que ter uma preparação desde muito novo, o
autor fala que esse processo pode ser começado na infância
época em que a criança na sua fase de crescimento vai
adquirindo conhecimentos e valores sendo eles, Educação,
Vocação caráter, seu modo de vida e assim por adiante.
Após todo esse processo inicial que começou na infância,
passa pra o próximo nível que é conhecimento através de
estudos em faculdades ou universidades, onde o sucessor terá
adquirido conhecimentos em áreas específicas seja, em
finanças, gestão de pessoas, processos, para que após sua
formação buscar um emprego em outra instituição para que
possa aplicar todos esses conhecimentos e também obter
experiência e caso venha cometer algum erro, isso não vai
manchar a imagem da empresa a qual assumirá em breve.
Para ter entendimento melhor da organização é
recomendado pelo autor que o Sucessor assuma várias funções
dentro da organização, como por exemplo: tem que saber como
que funciona o atendimento no balcão, o almoxarifado, os
105
processos e tudo que envolve atividades fins da empresa, pois
com esses conhecimentos adquiridos será mais fácil cobrar e
gerenciar resultados e atividades necessárias para obter bons
resultados, com isso subindo na hierarquia da empresa por
conta de seus resultados obtidos.
Uma das partes finais desse processo são medidas, diz
respeito a modificações estruturais que a empresa precisar
mudar para a chegada do novo presidente. Refere-se às
medidas de caráter societário que facilitará e fortalecerá a
posição do sucessor. Uma medida interessante é, por exemplo,
a de se criar uma holding para o controle do grupo, ou até
algumas transferências de ações, entendimento entre os grupos
acionários com acordos entres os acionistas visando uma
tranquila sucessão. Vale lembrar que todas essas mudanças
precisam ser feitas com aconselhamentos com o jurídico e
contábil para evitar qualquer tido de contestação. Não há nada
pior que uma sucessão decidida pelo inventário ou pelo
Judiciário, dadas às consequências diversas que do processo
judicial se originam, dentre elas a lentidão, o excesso de
recursos e, principalmente, a possibilidade de engessamento da
empresa.
Uma outra saída para pode ser a sucessão profissional.
Autores sustentam este posicionamento como melhor opção, já
que

“A sucessão familiar é a que tem recebido


maior ênfase nas empresas familiares, mas
deve-se considerar a sucessão profissional
106
como em significativa evolução nas
referidas empresas. É importante que a
análise para o processo sucessório seja
real porque, muitas vezes, o executivo
força a barra em sua avaliação e procura
auto enganar, por exemplo, afirmando que
seus herdeiros naturais são melhores
executivos que a empresa poderá ter em
seu quadro de comando (BOSCO, 1983. p.
11)
Não se está querendo afirmar que os
herdeiros naturais são incompetentes, mas
que a análise e a avaliação do processo
sucessório devem ser efetivamente
realísticas. Se o herdeiro for realmente
competente ou tiver condições de vir a ser
competente, está tudo bem. Caso
contrário, deve pular direto para a
situação de sucessão profissional (BOSCO,
1983. p. 12)

Ilustrativamente, podemos ver como empresas familiares


agiram para garantir o sucesso de suas empresas familiares,
observe-se.

“JR DIESEL

A JR Diesel é uma empresa especializada


em reciclagem de caminhões, também
conhecido como desmanche legal. A
empresa é uma das precursoras do Brasil
neste segmento e ajudou o governo a
regulamentar as empresas e a atuação no
setor. O negócio foi fundador por Geral
Rufino, que entregou a expansão do
negócio aos filhos e, hoje, Arthur Rufino é
CEO da companhia comandando a
107
empresa. Pra quem ainda não viu o
Estudo de Caso da JR Diesel vale a pena,
ainda mais para entender e aprender com
um negócio de família e a gestão
diferenciada realizada pelos empresários.
Arthur Rufino compartilhou com a nossa
equipe algumas dicas para fazer uma
sucessão bem-sucedida. Veja:

RESPEITE O LEGADO

Anos de erros, acertos e melhorias da


empresa familiar não podem ser
desconsiderados por conta de alguns
pontos negativos que você enxerga na
atual gestão. Todo esse legado foi
responsável pela construção da cultura
que trouxe a empresa até o presente
momento, por isso respeitar esse legado
não é apenas uma questão de facilitar a
sucessão, mas de inteligência em
aproveitar todo o alicerce e preocupar-se
apenas em construir inovação e
aprimoramentos.

RECUE, RESPIRE, REPITA

Não será fácil implantar suas idéias, aceite


isso. São anos de uma cultura moldada no
perfil da atual gestão, mas existe um
caminho para acelerar esse processo e
torná-lo menos doloroso. Quando uma
idéia for vetada, em primeiro lugar recue e
avalie se ela realmente é boa ou se seus
argumentos são fracos. Em seguida,
respire para se livrar da idéia de que
houve cisma preconceito ou qualquer
outro motivo irracional para o veto. Por
último, repita a abordagem com melhores
argumentos e considerando os pontos

108
levantados no último veto. Deu errado?
Comece de novo!

PREPARE-SE

Seja você um sucessor com perfil idêntico


ou totalmente oposto ao do atual gestor, é
sua obrigação ter em sua caixa uma
variedade adicional de ferramentas em
relação ao que já há na empresa. O ideal é
que o sucessor venha para dar
continuidade e agregar, não para
substituir. Seja com faculdade ou vivência
em outras empresas ou culturas, entregue
mais do que a empresa já tem e você será
indispensável para a perpetuidade dela.

LIVRE-SE DA VAIDADE

Não queira ser o dono da idéia ou daquilo


que deu certo. Se você trouxe inovação e
ficou chateado porque o gestor levou a
fama, saiba que você está com mais foco
na sua vaidade do que no sucesso da
empresa. Se no final todas as suas idéias
forem implementadas com sucesso e a
empresa saltar aos olhos do mercado, você
terá perdido a chance de ser a cabeça da
sardinha, mas estará sendo o rabo da
baleia. Quer vaidade melhor do que bons
resultados?

PACIÊNCIA

A sucessão não é um evento, mas um


processo. Planeje seus passos rumo à
gestão e dê suporte ao atual gestor sobre
seu futuro pós sucessão. Já parou para
pensar que toda a sua ansiedade pelo
momento em que você sentará na ponta da
mesa também pode estar passando pela
109
cabeça do atual dono da cadeira? Uma
forma muito amigável de criar um
ambiente de sucessão é a criação de um
conselho consultivo, onde o atual gestor
pode sentir não apenas o gostinho de
participar da gestão na posição de
conselheiro, mas também de ouvir outros
conselheiros externos convidados que
trarão diferentes experiências para o
negócio, aumentando a segurança de que
o sucessor terá mais apoio do que recebe
hoje.

GRUPO ALGAR

A Algar, próxima empresa a ser analisada


em nosso Estudo de Caso, é um exemplo
de um negócio familiar que prosperou
durante os anos ganhando proporções
gigantescas, expandindo-se e chegando
hoje aos 23 mil associados para atender
mais de 2 milhões de clientes oferecendo
soluções para empresas e pessoas por
meio da atuação nos setores de
Telecomunicação, Agro, Serviços e
Turismo. Hoje, a empresa já está na
terceira geração e passou de pai para filho
e, consequentemente, para o neto – que
hoje é o CEO do negócio. Tudo começou a
mais de 80 anos, quando em 1919
chegava ao país um imigrante
português. Ele trabalhou como servente
de pedreiro, ferreiro e mecânico. Muitos
anos se passaram e na década de 30, esse
senhor, de nome Alexandrino Garcia,
começou seu primeiro empreendimento
que posteriormente, durante as décadas,
tomaria proporções gigantescas quando
seu filho, Luiz Alberto Garcia, assumiu e
deu continuidade ao negócio do pai,
expandindo e sendo responsável por um
110
crescimento agressivo. A Algar passou a
atuar em diversas frentes e iniciou o
investimento em gado e terras. Hoje, a
empresa é produtora de soja, milho, entre
outros produtos. Oferece soluções de
tecnologia para empresas e pessoas,
atuando também no turismo com o Grupo
Rio Quente. Hoje, a empresa é comandada
por Luiz Alexandre Garcia, que tem missão
de levar o legado do avô e do pai a outros
patamares, como também manter a
cultura de inovação que foi enraizada em
todo o Grupo.” Disponível em
https://meusucesso.com/noticias/3-
empresas-que-foram-bem-sucedidas-no-
processo-de-sucessao-1312/. Acesso em
28 de nov. 2017.

Baseado nestes três exemplos que foram pesquisados,


podemos concluir que para se ter sucesso no processo de
sucessão é preciso de muito planejamento tanto da parte da
empresa quando quem deseja ser o sucesso. O conhecimento
técnico é a chave de várias portas que se podem abrir nas
empresas, um sucessor que não tem capacidade técnica ou
formação, certamente não conseguira obter êxito em sua
gestão. Então ao se pensar em comandar uma empresa familiar
pense muito bem e se isso for o que se quer, então trabalhe,
lute e estude para que se possa ter todas as ferramentas e
informações necessárias para que posar tocar um
empreendimento.

5. Postura diante do conflito de poder

111
Finalmente, resta um último ponto a ser discutido que é
a importância da postura diante do conflito de poder em face da
sucessão numa empresa familiar, porque

“Empresas familiares em fase de sucessão


do fundador constituem desafios,
especialmente aquelas onde a sucessão é
disputada por dois filhos ou dois partidos
numa situação de impasse. Por alguns
anos um bom produto ou o efeito residual
da obra do fundador conseguem carregar a
empresa nas costas, apesar da ineficiência
desse impasse administrativo, até que
num dado dia a história se repete mais
uma vez, e um sucessor toma o poder.
Quem sobrevive não é necessariamente o
mais inteligente, nem o mais simpático,
mas o mais apto para a tarefa empresarial.
A empresa familiar é uma instituição
secularmente anterior a qual formulação
administrativa racional, dotada de
estruturas e padrões que permanecem
dissimulados sob roupagens
administrativas modernas. Não há que
criar muitas fantasias quanto a sua
profissionalização. No cruzamento de
caminhos entre profissionalizar, estatizar,
multinacionalizar e ir à falência, uma boa
parte das empresas familiares escolhe a
última alternativa. Quando chamado, o
consultor deve definir um nicho dentro do
qual a sua contribuição é necessitada. O
cliente precisa estar passando muito mal
para procurar esse médico. A carência
precisa estar passando muito mal para
procurar esse médico. A carência e a dor
são as únicas forças que impelem certos
familiares a aceitarem, “malgré elles
mêmes”, o trabalho de reorganização. Na
112
fase transição entre o fundador e a
segunda geração, enquanto persistir o
dilema do poder, não há condições
objetivas para a profissionalização. O
consultor deve atuar como político,
visando consolidar o poder. Só depois de
consolidado este, surge a possibilidade da
administração. A mudança proporcionada
pela consultoria visa apenas tomar e
manter o poder, desmanchar uma
estrutura que reduzia a força do executivo
escolhido como sucessor e eliminar os
últimos focos de resistência. A política
precede a administração. Nessa fase de
incertezas que precede a consolidação do
herdeiro do poder, a única alternativa para
o consultor é procurar acertar na escolha
(BOSCO, 1987. p. 79), do candidato que
vai ganhar e fazer a sua política partidária.
Feita a escolha o importante é engajar-se
na práxis política, com as armas que tem,
mantendo uma linha coerente. Quando
surgir uma revolta palaciana é preciso
tomar o partido do rei. Salvo
probabilidades menores, você sempre
ganhará. Não aposte em adversários do
herdeiro, mesmo que eles tenham feito
boas coisas no passado; eles não são o
futuro. Aposte no rei, mesmo que ele esteja
fazendo pequenas coisas abomináveis. A
questão da eficácia política de um
consultor pode ser colocada nas perguntas
seguintes: pode um consultor
desestabilizar um velho presidente para
ajudar o acesso de seu sucessor? Pode
conseguir remover um acionista poderoso
que está só prejudicando a empresa?
Minha resposta é que não se pode esperar
uma tal eficácia do consultor. Ele não terá
legitimidade em sua ação e nem foi
treinado para isso. O consultor age
113
apoiado no sistema de poder interno ou
numa personalidade vigorosa com
respaldo acionário. Somente se a força da
empresa estiver de seu lado, ele
conseguirá eficácia política em sua
consultaria. Não foi de outro modo que o
pai dos consultores políticos, Nicolau
Maquiavel, precedeu em Florença com
Lourenço Medici. O consultor chega até a
aconselhar, a armar estratégica, talvez a
educar o príncipe, mas certamente não
atinge o poder se o príncipe não
corresponder a assessoria recebida. Tiro
algumas conclusões dessas reflexões:
1. O consultor não é um
desestabilizador de poderosos. A atuação
do consultor, mesmo agindo politicamente,
é sempre administrativa e organizacional.
A organização da empresa é posterior a
tomada de poder, a administração vem
depois da política.
2. O consultor não pode se ligar
aos perdedores mesmo que eles sejam o
lado certo da organização. Neste caso é
melhor ficar do lado de fora e não aceitar o
trabalho.
3. Quando a cúpula de uma
empresa está em conflito é preciso deixar
passar esta fase até que se esclareça quem
detém o poder. Do contrário o consultor
será usado pelas duas facções enquanto
tiver valia, será estraçalhado entre as
engrenagens e jogado fora com desdém.
4. A demora para entrar pode ser
um recurso do consultor. Contrariamente
ao médico que precisa evitar a expansão
da doença, ajuda ao consultor deixar que
os problemas se agravem em pouco mais
até o limiar do insuportável.
O consultor tem mais força quando
o cliente se sente mal e está disposto a
114
pagar um bom preço (isto é, aceitar
mudanças radicais) para sair do
desconforto.
5. Antes de entrar, o consultor
precisa responder alguns quesitos chaves
de sua própria sobrevivência: Quem
manda de fato nessa empresa? O que ele
quer? Quem o apoia? Que grau de força
ele tem? O que acorrerá com o partido
contrário? Qual o custo político se quem
manda decidir se unir com a oposição.”
(BOSCO, 1987. p. 80).

Entendemos que na fase de sucessão do fundador é um


dos momentos que pode ter vários conflitos de poder entre os
possíveis sucessores, seja eles filhos, enteados e outros.
E recomenda que esse processo seja feito com muito
cuidado e cautela para evitar erro na escolha de uma má gestão
ou até mesmo conflitos entre as partes interessadas,
recomenda-se que a escolha seja feita pela escolha do mais apto
a realizar as tarefas, pois não basta somente ser o mais
inteligente ou até mesmo o mais simpático. Também e
recomendado que se tenha um consultor a fim de ajudar neste
processo de transição onde ele fica responsável pela transição
de poder mantendo o foco e evitando resistências, pois a política
precede a administração.
É como nessa fase várias incertezas durante o seu
período de transição, e a medida que se vai passando o tempo
sua ação e poder vai se consolidando suas ações perante a
empresa.
Caso surge uma resistência por parte de algum
individuo, o consultor é preciso apoiar o sucessor a fim de
115
ajudar a lidar com essas resistências, e recomendado pelo autor
em não apoiar os adversários do herdeiro mesmo que a ação ou
atitude passa parecer boa, pois é correto e apostar e confiar no
herdeiro mesmo que seja desagradável.
Tem que ser ter bem claro que o papel do consultar é
somente em apoiar no sistema do poder interno a fim de
conseguir eficácia em sua consultoria, um exemplo interessante
é no passado recente em que o consultor do príncipe da
Florença, Nicolau Maquiavel, em que ele aconselha, arma
estratégicas, podendo até educar o príncipe, mais a tomada de
decisão o somente do Príncipe.
Podemos tirar algumas conclusões dessas reflexões
acima, que o consultar não desestabiliza poderes de alguém,
também podemos citar a questão que o consultor não pode se
afiliar de perdedores no contrário é preferível ficar de fora, é
preciso também que o consultor não aceite ordens de duas ou
mais pessoas, caso isso acontece ele pode se perder e não irar
conseguir desenvolver um trabalhado de qualidade. Ao
contrário dos médicos o consultar tem a possibilidade de
escolha em intervir no começo ou esperar que os problemas se
agravem até o ponto em que se torna insuportável e com isso
ele possa ganhar mais força no aconselhamento das ações a
serem feitas.

Considerações finais
Ao longo desde trabalhado podemos notar dificuldade na
gestão de uma empresa familiar, mas ao mesmo tempo é uma

116
grande oportunidade em desvendar e solucionar esta magia que
está por traz dessa gestão.
Também vimos o que é uma empresa familiar e através
dela o passo a passo da sucessão familiar onde foi demonstrado
de forma resumida, porém de fácil entendimento os conceitos
que facilita essa transição de poder. Baseado nisto, vimos
também os conflitos que cercam essa sucessão e as melhores
maneiras de resolver e evitar estes tipos de transtorno para o
sucessor e principalmente da organização.
Foi destacado o sucesso de três grandes empresas
brasileiras, onde foi seguido de forma correta os trâmites da
sucessão familiar, onde foi passado várias dicas e experiências
desde grandes gestores que serem de exemplo e reflexão para
quem queira seguir seus passos.
E a conclusão foi única, é necessário que se tenha
conhecimento técnico e objetividade no trato empresarial, sem
permitir que relações familiares preponderem, sob pena de
prejudicar a perpetuidade da empresa e a falência do
empreendimento.

Referências:

Lodi, João Bosco. Sucessão e conflitos na empresa familiar.


São Paulo: Pioneira, 1987.

______. O fortalecimento da empresa familiar. 3. ed. – São


Paulo: Pioneira, 1989.

117
______. A empresa familiar. 4. ed. – São Paulo: Pioneira,
1993.

Oliveira, Djalma de Pinho Rebouços de. Empresa Familiar:


como fortalecer o empreendimento e otimizar o processo
sucessório / Djalma de Pinho Rebouços de Oliveira, – 2. ed. –
São Paulo: Atlas, 2006.

SOUZA, Robson Carlos de. Cultura da empresa familiar x


Gestão empresarial. Dissertação de mestrado. FGV, 2001,
disponível em
http://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/bitstream/handle/10438
/8707/000313819.pdf?sequence=1, acessado em 28/02/18.

Sucesso, Meu. 3 empresas que foram bem-sucedidas no


processo de sucessão. Disponível em
https://meusucesso.com/noticias/3-empresas-que-foram-bem-
sucedidas-no-processo-de-sucessao-1312/. Acessado em
Novembro de 2017.

118
PODER JUDICIÁRIO E A POPULAÇÃO PRISIONAL: O
COLAPSO DA JUSTIÇA CRIMINAL E OS CUSTODIADOS DA
UNIDADE PRISIONAL DA COMARCA DE MARIANA-MG

Márcia Machado Bento1

Resumo

A proposta do presente ensaio é verificar os mecanismos do


Poder Judiciário, assim como a aplicação da Lei de Execução
Penal LEI Nº 7.210, DE 11 DE JULHO DE 1984 (LEP) na Comarca
de Mariana/MG, com visitas in loco à Unidade Prisional (UP) da
comarca. Trazendo viés informativo acerca da estrutura do
judiciário e da Execução Penal. Demonstrando através de dados
divulgados pelo Ministério da Justiça, que o aumento da
população apenada não reduz a criminalidade a nível Brasil. Por
fim, que a ressocialização continua sendo um sonho a ser
alcançado.

Palavras-chave: Direito humanos; poder judiciários; população


prisional.

Introdução

O Presente trabalho tem como objetivo verificar os


mecanismos utilizados pelo Poder Judiciário frente o aumento
constante da população carcerária, assim como, a
aplicabilidade da Lei de Execução Penal no alcance do principal
objetivo que é reeducar e ressocializar o agente que praticou
conduta tipificada como crime no ordenamento penal brasileiro,

1Concluinte do Curso de Direito pela Faculdade Presidente Antônio Carlos-


Mariana.
119
direcionando o olhar para os custodiados da Unidade Prisional
da Comarca de Mariana.
A LEP, em seu artigo 1º dispõe sobre o objetivo, qual
seja: “ efetivar as disposições de sentença ou decisão criminal e
proporcionar condições para a harmônica integração social do
condenado e do internado”. Infelizmente o estado não consegue
cumprir com eficiência a ressocialização do preso, sendo um
dos pontos mais criticados atualmente. Neste sentido, o
cumprimento da pena acaba por realçar muito mais o efeito
punitivo, deixando como desafio a se alcançar o efeito
ressocializador.
O próximo tópico abordado será sobre os direitos
humanos e a atuação da Comissão Interamericana de Direitos
Humanos junto à população penitenciária brasileira, acerca das
denúncias de tratamento desumano da população carcerária
Brasileira.
Ao longo do desenvolvimento será possível vislumbrar
os dados divulgados pelo Ministério da Justiça, demonstrando o
colapso que existe na justiça criminal, que o aumento da
população penitenciária não diminui a criminalidade conforme
aponta dados de pesquisa realizada pelo próprio órgão de
Justiça e Defesa.
Mais adiante, compartilhar a experiência de ter visto in
loco as condições a que vivem os custodiados na unidade
prisional de Mariana, assim como do tratamento lhe são dados.
Em momento oportuno a entrevista concedida pelo diretor geral
da unidade, Antônio de Pádua Pataro Dutra Júnior.

120
Alguns pontos de crítica e sugestões no que tange a
rotina do judiciário, vislumbrando uma justiça mais célere e
eficiente.
Por fim, algumas melhorias que estão sendo
implantadas pelo Conselho Nacional de Justiça de Minas Gerais
(CNJ) dentre outras expectativas, tendo como conclusão a
ressocialização como um sonho a ser alcançado.

2. Direitos Humanos

Não é novidade para ninguém que o Brasil atravessa


uma crise que vem se arrastando ano a ano em vários setores,
econômico, político, moral, o que inevitavelmente culmina
numa crise institucional do Sistema Penitenciário.
No que tange a violação dos Direitos Humanos, o Brasil
foi alvo de denúncia na Comissão Interamericana de Direitos
Humanos (CIDH) da Organização de Estados Americanos (OEA),
decorrentes dos episódios de violação ocorridos nos presídios do
Acre e Amazonas (em 2015), tendo sido confrontado com
informações de tortura, maus tratos, condições intoleráveis de
higiene e saúde, principalmente devido à superlotação de
algumas unidades prisionais, estando desta forma, em
desencontro ao que prevê a Declaração Universal dos Direitos
Humanos, dispõe em seu Artigo 5º:

Ninguém será submetido a tortura nem a


penas ou tratamentos cruéis, desumanos
ou degradantes. (DECLARAÇÃO
121
UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS,
1948)

Nesta linha, a Constituição Federal de 1988, em seu


artigo 5º:

Todos são iguais perante a lei, sem


distinção de qualquer natureza,
garantindo-se aos brasileiros e aos
estrangeiros residentes no País a
inviolabilidade do direito à vida, à
liberdade, à igualdade, à segurança e à
propriedade, nos termos seguintes: [...]
XLIX - é assegurado aos presos o respeito
à integridade física e moral (BRASIL, 1988,
não paginado).
Alicerçado por inúmeros direitos fundamentais, prima
pelo Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, logo, as
torturas e maus tratos a que submetiam os condenados
“antigamente”, são totalmente vedados.
Por fim, no Art. 3º da LEP, diz:

Que ao condenado e ao internado serão


assegurados todos os direitos não
atingidos pela sentença, de forma que a
execução da pena deve atender aos
ditames legais estipulados previamente
pela lei e designados na sentença
condenatória. Corrobora-se, assim, o
entendimento que o apenado só deverá
estar sujeito aos tolhimentos expressos em
lei. Desta forma, são suspensos somente
alguns direitos dos mesmos, dentro do
limite estabelecido pela sentença (BRASIL,
1984).

122
O Conselho de Direitos Humanos da ONU, cobrou
recentemente do Brasil, consolidação na evolução de políticas
quantos aos Direitos Humanos no sistema prisional.
Neste sentido, conforme entrevista realizada com o
diretor geral da Unidade Prisional de Mariana, Antônio de
Pádua, responde que “ A Secretaria de Estado de Administração
Prisional, criou uma subsecretaria, institucionalizada, com a
missão precípua de humanizar os atendimentos aos presos do
sistema prisional mineiro. Com base nesta política carcerária, o
presídio de Mariana evoluiu o atendimento ao preso, com
rotinas diárias de atendimento técnico e atenção da direção
quanto as demandas dos reclusos. ”

3. O colapso da justiça criminal e o encarceramento


brasileiro

Segundo estudo feito pelo Ministério da Justiça e


Segurança Pública, o relatório de dezembro de 2014 foi
realizado pelo DEPEN em parceria com o Fórum Brasileiro de
Segurança Pública, por meio do termo de parceria
817052/2015 “somos a quarta maior população penitenciária
do mundo, ficando atrás apenas de Estados Unidos, China e
Rússia.
Entre os detentos brasileiros, 40% são provisórios, ou
seja, não tiveram condenação em primeiro grau de jurisdição.
O perfil socioeconômico geral dos detentos mostra que
55% têm de 18 a 29 anos, 61,6% são negros e 75,08% têm até o

123
ensino fundamental completo. Sobre a natureza dos crimes
pelos quais estavam presos, 28% dos detentos respondiam ou
foram condenados por crime de tráfico de drogas, 25% por
roubo, 13% por furto e 10% por homicídio.
O diretor geral do DEPEN, Renato De Vitto, ressaltou
que o crescimento da população penitenciária brasileira nos
últimos anos não significou redução nos índices de violência.
“Pelo contrário, mesmo com o aumento dos encarceramentos, a
sensação de insegurança não diminuiu. Isso significa que é
preciso se repensar a prisão como instrumento de política
pública para combater a criminalidade”.
“É importante ressaltar os danos que a prisão acarreta
não apenas para as pessoas encarceradas, como também para
seu círculo familiar. Acreditamos que é preciso se investir em
soluções penais mais sofisticadas, como alternativas penais,
programas de trabalho e educação, entre outras, que promovam
uma real reinserção desse indivíduo à sociedade”, afirmou De
Vitto.
Segundo dados do Ministério da Saúde, pessoas
privadas de liberdade têm, em média, chance 28 vezes maior do
que a população em geral de contrair tuberculose. A taxa de
prevalência de HIV/Aids entre a população prisional era de
1,3% em 2014, enquanto entre a população em geral era de
0,4%.
A pesquisa aponta que o aumento da massa carcerária
não tem diminuído a criminalidade.

124
Vale destacar, que aconteceria um colapso imediato,
caso houvesse o cumprimento de todos os mandados de prisão
que se encontram em aberto.
Um dos dados mais frequentes referidos como de efetiva
demonstração do fracasso da prisão são os altos índices de
reincidência, não obstante a presunção de que durante a
reclusão os internos são submetidos a um tratamento
reabilitador. (BITTENCOURT, 2006.p.149)
De acordo com o Informe Nacional de Desarrollo
Humano[16], o índice de reincidência no Brasil para o ano de
2013 foi de 47,4 %. Portanto, quase a metade daqueles que
cometem crimes voltam a delinquir, mesmo após terem passado
pela experiência cárcere.
Em seu trabalho intitulado “Execução Penal”, o
professor Júlio Fabrine Mirabete comenta que a criminologia
crítica defende sobre a provável reinserção do preso na
sociedade:

A ressocialização não pode ser conseguida


numa instituição como a prisão. Os
centros de execução penal, as
penitenciárias, tendem a converter-se num
microcosmo no qual se produzem e se
agravam as contradições que existem no
sistema social exterior (...). A pena
privativa de liberdade não ressocializa, ao
contrário, estigmatiza o recluso, impedindo
sua plena reincorporarão ao meio social. A
prisão não cumpre uma função
ressocializadora. Serve como instrumento
para a manutenção de estrutura social de
dominação. (MIRABETTE, 2000, p.24.)

125
4. Unidade Prisional de Mariana/MG

Em visita realizada à Unidade Prisional de Mariana em


julho/2017, acompanhada pelo diretor geral, tive a
oportunidade de “in loco” conhecer cada setor da unidade e
entender um pouco da rotina, observando por oportuno, que a
maioria dos agentes penitenciários, exercem seus deveres de
forma profissional.
Primeiramente, classificaria como um choque de
realidade, como nunca tinha estado antes em qualquer unidade
prisional, estar de frente para um corredor contendo 11 celas
masculinas, sendo 03 para os sentenciados que cumprem pena
no regime fechado, 02 para os condenados no semiaberto; 04
para os presos provisórios, 01 cela destinada a
observação/sanção disciplinar, bloqueadas por vigas de ferro,
ocupadas por detentos de maior ou menor periculosidade,
enclausurados, “pagando pelo crime que cometeu” como assim
o determina nossa Lei Penal Brasileira e a Lei Execução da
Pena.
A unidade também conta com 01 cela feminina,
possibilitando com isso, a cooperação em receber detentas dos
presídios das Comarcas vizinhas como de Itabirito e Ouro Preto
de acordo com a necessidade destas. Sem dúvidas, ver vários
homens trancados em celas, foi tanto quanto estarrecedor.
Num segundo momento, pude observar, contudo, que
há um compromisso com o cumprimento a LEP, como por
exemplo:

126
Art. 84. Caput “O preso provisório ficará
separado do condenado por sentença
transitada em julgado”
§ 4o O preso que tiver sua integridade
física, moral ou psicológica ameaçada pela
convivência com os demais presos ficará
segregado em local próprio.
Em consonância com o parágrafo 4ª, a unidade possui
01 cela para os “presos de seguro” garantindo desta forma a
segurança do apenado. Os presos provisórios são alocados em
celas separadas dos condenados. Os condenados possuem
atividades culturais e laborais e aos semiabertos são ofertadas
vagas de trabalho junto à empresa da Prefeitura conveniada
com o presídio.

4.1 Presos no regime semiaberto e aberto

A LEP dispões em seus artigos 91 caput que “A Colônia


Agrícola, Industrial ou Similar destina-se ao cumprimento da
pena em regime semiaberto”.
Porém, na Comarca de Mariana, não existe Colônia
Agrícola ou similar, razão pela qual, os condenados que
cumprem sua pena no regime semiaberto, receberem
autorização judicial para trabalho externo em empresa
conveniada, e pernoitam no presídio.
Quanto aos que cumprem pena no regime aberto, a LEP
dispõe em seus artigos 93, 94 e 95 sobre a “ Casa do
Albergado”:
Art. 93. A Casa do Albergado destina-se ao
cumprimento de pena privativa de

127
liberdade, em regime aberto, e da pena de
limitação de fim de semana.
Art. 94. O prédio deverá situar-se em
centro urbano, separado dos demais
estabelecimentos, e caracterizar-se pela
ausência de obstáculos físicos contra a
fuga.
Art. 95. Em cada região haverá, pelo
menos, uma Casa do Albergado, a qual
deverá conter, além dos aposentos para
acomodar os presos, local adequado para
cursos e palestras.
Parágrafo único. O estabelecimento terá
instalações para os serviços de fiscalização
e orientação dos condenados.

A comarca também não possui “Casa de Albergado”, os


condenados que cumprem sua pena no regime aberto, acabam
recebendo o benefício e condições de cumprir sua pena na sua
própria residência, em respeito ao Princípio da Dignidade da
Pessoa Humana e para que o apenado não tenha prejuízo no
cumprimento da pena, por mera insuficiência do Estado. Neste
caso, são fixadas condições como não se ausentar da Comarca
sem prévia autorização; comparecer à secretaria do Juízo de
Execução Penal para informar ocupação lícita dentro de prazo
razoável estabelecido; se recolher à sua residência nos horários
estabelecidos, sob pena de sofrer regressão do regime em caso
de descumprimento.
Desta feita, a UP de Mariana, é responsável pela
custodia de apenas três classes de detentos: Os presos
provisórios que aguardam absolvição ou sentença penal

128
condenatória; os presos no regime fechado e os do regime
semiaberto, não possuindo vínculo com os sentenciados do
regime aberto.
Questionado sobre a capacidade de vagas da unidade e
o panorama atual, o diretor geral explica, “ A capacidade do
presídio de Mariana é de 119 vagas. Contudo, não diferente da
realidade nacional, o presídio está com sua capacidade esgota e
há excesso de lotação. Contudo, não há superlotação.
Atualmente a massa carcerária gira em torno de 150 presos”
Ainda, se a estrutura da unidade atende aos requisitos
necessários para o cumprimento da pena, “Como quase todas
as unidades estaduais, a estrutura física está aquém do
comando normativo delineado pela LEP. Entretanto, nossa cela
de custódia, dentro desse quadro, não se enquadra como locais
desumanos, apesar de estarem fora do padrão legal”.
Por fim, sobre como é lidar com a missão de estar na
direção geral da UP, Antônio de Pádua ressalta, “Que lida de
forma muito natural, que está na área de segurança pública a
10 anos, quase 3 anos como agente penitenciário sendo que a 2
anos na função de diretor”, acrescenta “Que a responsabilidade
obviamente é diferente de outras, pois são vidas e vidas com
certo grau de periculosidade. Mas que se você ama o que faz e
tanta fazer da maneira correta, as coisas fluem naturalmente. É
uma relação tensa, mas que vontade de melhorar o sistema se
torna mais amena”, conclui.
A experiência na área, que o diretor do presídio possui,
sem dúvidas contribui para o bom funcionamento da unidade.

129
Reafirmou o que já tinha observado, sobre a competência,
profissionalismo e humanidade.

4.2. Assistência, educação, trabalho...

A LEP em seu artigo 83 caput, dispõe que “o


estabelecimento penal, conforme a sua natureza, deverá contar
em suas dependências com áreas e serviços destinados a dar
assistência, educação, trabalho...”
Atualmente a unidade dispõe de um espaço escolar,
onde também são dadas oficinas de artesanatos, culturais etc.
O espaço contém duas salas, uma onde funciona o ensino de 1ª
a 4ª do Ensino Fundamental e outra o ensino de 5º ao 9º do
Ensino Fundamental, encontram-se à disposição dos
reeducados diversos livros e materiais pedagógicos, artes etc.
Os trabalhos de artes expostos de forma organizada nas
paredes, além de tornar o ambiente decorado, mostra a
capacidade criativa dos reeducando.
A Unidade conta com o apoio jurídico da Dra Ana
Márcia Laurestein, para acompanhamento de progressões,
benefícios como remição de pena, saídas temporárias,
levantamento de pena e demais solicitações do reeducando.
Neste sentido, a administração do presídio, mesmo que
insuficientes investimentos financeiros por parte do Estado,
empenha em alcançar o ensejo reeducador e ressocializador,
dando um tratamento humanizado aos detentos, bem como,
proporcionando acesso à educação, a trabalho e oficinas

130
culturais, o que reflete diretamente nos benefícios das remições
da pena.

4.3. Melhorias

Dentre algumas melhorias na estrutura da unidade,


como aumento dos muros, alterações na mobilidade interna, foi
inaugurado recentemente (30/08/2017), o parlatório,
considerado o mais moderno das unidades prisionais de Minas
Gerais. O espaço foi construído pelos próprios detentos que
cumprem pena na unidade, possuindo duas cabines com um
computador cada, ligados em rede a uma impressora, o
ambiente é climatizado e possui banheiro, acessibilidade para
atender os clientes quanto os advogados com deficiência física.
O parlatório recebeu o nome de Celso Arinos Mota, advogado
com forte atuação na área criminal em Mariana.
O ambiente certamente contribuirá para efetivação de
direitos conferidos pela legislação, realçando ainda mais a
unidade como referência no cenário prisional de Minas Gerais.

4.4. Sugestões

Implantação de projeto ou programa dentro da unidade,


que abarque Direitos Humanos visando a boa manutenção do
exercício da custódia dos detentos e melhoria contínua na
relação ao tratamento entre os agentes x custodiados, assim
como, programa relacionado à Saúde Mental do Agente

131
Penitenciário, algo que auxilie e/ou apoie os profissionais. Por
se tratar de profissão extremamente estressante, com alta
responsabilidade e periculosidade, somado ao fato, de uma
escala de trabalho cansativa. Acredito que a médio e longo
prazo poderá acarretar prejuízo à saúde do profissional, assim
como, risco de ineficiência em suas respectivas atribuições
dentro da UP.

5. Das Varas Criminais e Execução Penal da Comarca de


Mariana

Atualmente a Comarca de Mariana, possui duas Varas


Cível/Crime, sendo que é na 2ª Vara que o Juízo de Execução
Penal está vinculado. O setor conta a colaboração da servidora
Luciana Santiago, pessoa a quem tenho profunda admiração, e
orgulho em apoia-la como estagiária.
É também no setor de execução que são dados
andamentos aos processos criminais, distribuídos para 2ª Vara,
de pessoas que se encontram em custódia provisória, ficando
conosco até o momento em que são colocados em liberdade,
após a soltura, a secretaria fica responsável pelo andamento da
ação penal, retornando para o setor de execução, somente se
houver a condenação.
O processo ainda é por meio físico, até então contamos
com o sistema SISCOM VEP, que é onde lançamos todo o
histórico de condenação, cumprimento da pena, benefícios,
acompanhamento de falta disciplinar ou progressão de regimes,

132
assim como do recebimento ou transferência da guia de
execução quando o sentenciado é transferido para outra
Unidade Prisional.
Uma das grandes novidades é a automatização da
Execução Penal, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG)
já está implantando em várias comarcas do Estado o Sistema
Eletrônico de Execução Unificado (SEEU), que é o sistema que
elimina os autos físicos e automatiza as tarefas como emissão
de alertas para notificar que o sentenciado já tem direito a
benefícios como, comutação de pena, livramento condicional,
indulto e progressão de regime, bem como cálculos da pena.
O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) ainda não
divulgou a previsão de automatização da Execução Penal da
Comarca de Mariana, porém as expectativas é que seja em
breve. O SEEU já está inteiramente implantado nas Comarcas
de Betim, Juiz de Fora, Ipatinga, Uberaba, Caratinga, e
recentemente em Ponte Nova.
Em discurso proferido durante a cerimônia de
implantação do SEEU na nossa Comarca vizinha Ponte Nova, o
Juiz, da 2ª Vara Criminal e de Execuções Penais, Jose Afonso
Neto, ressaltou “que tudo na vida é sobre o tempo, que há um
tempo para tudo”, relembrou o massacre no sistema prisional
que ocorreu há dez anos, que o tempo de hoje é rumo ao
aprimoramento da execução penal no estado. Ainda, que “ o
tempo do preso é um tempo entre parênteses – horas que se
sucedem, porem tempo que não flui. Para ser justo, portanto, é
preciso analisar os pedidos de forma oportuna, para que a

133
reprimenda seja cumprida no tempo exato, sem dilação que
distanciem as pessoas da esperança de uma vida nova”.
Neste sentido, tenho esperança que com a chegada do
SEEU, aconteça de fato um aprimoramento tal no sistema de
execução que coopere para que se tenha o cumprimento de
pena no tempo justo.

5.1. Críticas e sugestões

Dentre alguns pontos, a escassez de mão de obra


concursada do Tribunal é o mais caótico, considerando a
demanda processual da Comarca, logo, conta com o apoio em
sua grande maioria, de estagiários (transitórios) de graduação
em Direito, e servidores cedidos da Prefeitura, que ali exercem
atividade diferente da qual são vinculados junto a Prefeitura.
Naturalmente há um desequilíbrio na produção; no
compromisso, na frequência; nos vencimentos/salários, na
qualificação, entre servidores do Tribunal e cedidos da
Prefeitura, o que sob o meu ponto de vista, coloca em questão a
qualidade e eficiência da prestação jurisdicional, assim como a
insatisfação dos profissionais que ali acabam absorvendo a
pressão de alcançar metas estabelecidas ou cobranças da
própria Corregedoria do Tribunal.
A sugestão óbvia para esta crítica é que o Tribunal de
Justiça contrate por meio de concurso mais servidores.
Outro ponto que não poderia de forma alguma deixar de
mencionar, é o procedimento que gira em torno dos alvarás de

134
soltura, diga-se de passagem, deveriam ser ágeis, direciono
minha crítica ao excesso de tempo gasto pela Delegacia de
Polícia Civil desta Comarca em realizar a consulta no SETARIM,
consulta esta que informa impedimento ou não para que o
preso seja posto em liberdade, em algumas ocasiões o tempo de
resposta foi de pelo menos 48 horas, gerando uma situação de
extrema demora para o cumprimento da decisão judicial.
A Resolução Nº 108 de 06/04/2010 é bem clara, dispõe
sobre o cumprimento de alvarás de soltura e sobre a
movimentação de presos do sistema carcerário, e dá outras
providências, resolve:

Art. 1º O juízo competente para decidir a


respeito da liberdade ao preso provisório
ou condenado será também responsável
pela expedição e cumprimento do
respectivo alvará de soltura, no prazo
máximo de vinte e quatro horas.
§ 1º O Tribunal poderá delegar ao juízo de
primeiro grau o cumprimento de decisão
determinando a soltura, caso em que a
comunicação será feita imediatamente
após a decisão, a fim de possibilitar a
observância do prazo previsto no caput.
§ 2º O cumprimento de alvará de soltura
de preso custodiado em Estado diverso
deverá ser feito pelo meio mais expedito,
com observância do disposto no artigo 2º,
caput e parágrafo 1º.
§ 3º O preso em favor do qual for expedido
o alvará de soltura será colocado
imediatamente em liberdade, salvo se
estiver preso em flagrante por outro crime
135
ou houver mandado de prisão expedido em
seu desfavor, após consulta ao sistema de
informação criminal do respectivo tribunal
e ao sistema nacional.
§ 4º Ainda que outros motivos justifiquem
a manutenção da prisão, conforme
disposto no parágrafo anterior, o alvará de
soltura deverá ser expedido e apresentado
pelo oficial de justiça diretamente à
autoridade administrativa responsável pela
custódia, para baixa nos registros
competentes em relação ao processo ou
inquérito a que se refere o alvará.

Minha sugestão é que a consulta no SETARIM possa ser


realizada pela própria autoridade administrativa responsável
pela custódia do preso, visando a agilidade na soltura do
mesmo. Tendo em vista que já existe um acordo de cooperação
entre a Polícia Civil do Estado de Minas Gerais e a
Superintendência de Gestão de Vagas, iria apenas estender a
incumbência à autoridade prisional local, possibilitando com
isso, agilidade na liberação do custodiado.

Considerações finais

O sistema prisional Brasileiro mostra-se ineficiente. Não


atende a sua finalidade, a não ser a de excluir o condenado da
sociedade. Necessário uma revisão da legislação criminal, assim
como afirmou De Vitto, acredito que é preciso investir em
soluções penais mais sofisticadas, como alternativas penais,
programas de trabalho e educação, entre outras, que promovam
uma real reinserção desse indivíduo à sociedade.
136
O Estado após ser omisso e negligente com os direitos
básicos dos cidadãos, por meio da legislação criminal, sustenta
uma rotina de convivência e clausura “ dos que cometeram
algum tipo de crime” e esperam que isso os ressocialize. A crise
e falência do Sistema Penitenciário Brasileiro é mais um reflexo
de um caos social causada pela má administração política
brasileira.
Ademais, com relação à unidade prisional de Mariana,
apesar do esforço da administração do estabelecimento em
resguardar os direitos dos internos assim como a efetiva
aplicação da LEP, a ausência de recurso financeiro por parte do
Estado limita a em parte a aplicação, no entanto, a direção
empenha com melhorias constantes, através de parcerias e
doações, sendo referência no sistema prisional de Minas Gerais.
Existe um projeto em discussão para criação de uma
APAC (Associação de Proteção e Assistência ao Condenado) em
Mariana, com objetivo de humanização e valorização do preso,
criando assim condições efetivas de recuperação, acredito ser a
via mais eficiente, somado à importância da participação da
sociedade. Logo, o presídio continuaria com os programas e
tratamento humanizado que já existem, como forma de
preparação para aqueles que possuem perfil para APAC.
É necessário que o Estado cumpra seu papel. Mais
envolvimento e comprometimento em políticas públicas mais
eficientes, garantindo no mínimo a oportunidade de uma vida
digna, sem tanta desigualdade, mais educação e trabalho,
prevenção efetiva à criminalidade.

137
Estar em contato com a execução penal, me
proporcionou aprendizados não só técnicos, mas humanos. É
preciso acreditar na ressocialização e então nos posicionarmos
de forma a contribuir para esse fim e nós como operadores do
direito temos por obrigação não nos acomodarmos.
Mesmo com as mazelas do Poder Público, cada um de
nós podemos contribuir de alguma forma na construção de
uma sociedade melhor.

Referências:

BRASIL. Constituição. Constituição da República Federativa


do Brasil. Brasília, DF: Senado, 1988. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br>. Acesso em: julho 2017.

BRASIL. Lei nº 7.210 - DE 11 DE JULHO DE 1984. (Lei de


Execução Penal - LEP).

BRASIL. Resolução nº 108 - DE 06 DE ABRIL DE 2010.


Deliberado pelo CNJ na 102º Sessão Ordinária, realizada em 06
de abril de 2010. Acesso em outubro de 2017
http://www.cnj.jus.br/images/stories/docs_cnj/resolucao/resc
nj_108.pdf

CNJ. Relatório de 2014 sobre a população carcerária:


http://www.justica.gov.br/radio/mj-divulga-novo-relatorio-
sobre-populacao-carceraria-brasileira. Acesso em: ago.2017

DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS.


Disponível em:
http://www.ohchr.org/EN/UDHR/Documents/UDHR_Translati
ons/por.pdf Acesso em: set. 2016.

138
BITTENCOURT, César Roberto. Falência da Pena de Prisão.
Causas e Alternativas. 3º Edição. São Paulo. Editora Saraiva,
2006.

MIRABETE, Júlio Fabbrini. Manual de Direito Penal. 16°


Edição. São Paulo: Atlas, 2000.

BECCARIA, Cesare. 2ª Ed. (Tradução de Torrieri Guimarães).


Dos Delitos e Das Penas. São Paulo: Editora Martin Claret,
2000.

Livro em PDF: Vigiar e Punir de Michel Foucaut. Disponível


em: http://escolanomade.org/wp-
content/downloads/foucault_vigiar_punir.pdf Acesso em:
jul.2017

139
A EVOLUÇÃO DAS ESTRUTURAS FAMILIARES NO BRASIL E
A NECESSIDADE DO RECONHECIMENTO JURÍDICO DAS
UNIÕES POLIAFETIVAS

Wanise Silva Prado1

“O ser humano, antes de um ser pensante ou


volitivo, é um ser amante.” (Max Scheler).

Resumo
O presente artigo pretende trazer à reflexão a evolução social das
entidades familiares e a consequente necessidade de evolução
do direito positivo para acompanhar essas novas formulações
familiares que se encontram à margem do ordenamento jurídico.
Há muito não se concebe como família apenas aquela tradicional
formação de pai, mãe e seus filhos, muitas são hoje as formas de
configuração de família na sociedade moderna, e essas novas
famílias clamam pela regulamentação de seus direitos, pelo seu
reconhecimento como uma entidade familiar. O ordenamento
jurídico já demonstrou a evolução do conceito de família na
interpretação do artigo 226, §3º da Constituição Federal, entendo
o Supremo Tribunal Federal pelo conceito aberto do referido
diploma legal, que permite o reconhecimento de novas entidades
familiares. Atualmente vivemos uma questão polêmica
concernente a necessidade de reconhecimento pelo direito das
uniões poliafetivas, uniões entre três ou mais pessoas que
convivem habitualmente, dividindo um mesmo teto e ideais de
vida, verdadeiras unidades familiares que devem ser
reconhecidas pelo ordenamento jurídico brasileiro, visando a
mesma proteção, guardadas as devidas peculiaridades,
dispensadas às demais entidades familiares.

Palavras-chave: Direito de família. Constitucionalização do


direito. Entidades familiares. União poliafetiva.

1Advogada. Especialista em direito processual pela Pontifícia Universidade


Católica de Minas Gerais. Especialista em direito público pela Universidade
Cândido Mendes.
140
Introdução

A família, expressamente reconhecida pela


Constituição da República Federativa do Brasil como base da
sociedade, é nitidamente produto do meio cultural e por isso
está em constante transformação, sendo certo que a
Constituição Federal prevê que é dever do Estado promover
especial proteção a essa.
A velocidade com que a sociedade evolui e constitui
dinamicamente novas formas de unidades pessoais de inter-
relacionamento infelizmente não é acompanhada pela evolução
do ordenamento jurídico.
As diversas formas de se constituir uma família não
encontram correspondência na legislação, de forma que o
conceito de família deve ser entendido como um conceito amplo
e aberto, afim de não se permitir discriminações jurídicas e
repetir injustiças históricas, como até pouco tempo se
observava com relação às famílias homoafetivas, hoje
regulamentadas em decorrência do julgamento pelo Supremo
Tribunal Federal da ADPF n. 132 e da ADI n.4.277.
Recentemente uma forma de constituição de unidade
familiar vem gerando discussões na esfera jurídica, as
chamadas uniões poliafetivas ou poliamorosas, que são aquelas
uniões que se constituem por mais de duas pessoas, os
denominados incialmente de “trisais”.
Estamos aqui por falar não em relações simultâneas, a
exemplo do concubinato, mas sim de uma única relação

141
familiar, instituída por mais de duas pessoas. Não se trata
igualmente de uniões paralelas, mas de uma única união
celebrada por três ou mais pessoas, que vivem conjuntamente,
de forma pública, continua e duradoura, com verdadeiro
intuito de constituição de uma família.

2. O conceito de família no ordenamento brasileiro

A família é a célula básica da sociedade e como tal está


em constante mutação, adquirindo a expressão “família”
diferentes contornos ao longo do tempo, na sua forma de
conceituação e de instituição, refletindo, por conseguinte, no
âmbito do Direito de Família.
Partindo dessa reflexão, é de suma importância a
compreensão e breve análise das transformações que a família
sofreu durante algumas etapas da história.
A família, como fenômeno cultural que é, está em
constante transformação, se formando das formas mais
variadas ao longo dos anos, e da evolução da cultura social, o
que afeta diretamente a sua conceituação. Passamos, portanto,
a análise de algumas de suas definições no contexto brasileiro.
O Código Civil de 1916 não apresentou nenhuma
definição de família. Este “limitava-se a identifica-la como
casamento” (DIAS, 2010, p. 43). Daí a ideia de família
tradicional, constituída apenas pelo enlace matrimonial,
formada por um homem e uma mulher e seus filhos. Percebe-
se, pela simples leitura da antiga lei civil, que a família

142
brasileira naquele tempo, preocupava-se apenas com as
relações patrimoniais e com as relações voltadas para si,
possuindo a família um caráter de instituição e não de
instrumento garantidor do bem estar e felicidade de seus
membros.
Com o advento da Constituição da República Federativa
do Brasil, em 1988, ampliou-se o conceito de família, adotando-
se a expressão “entidade familiar” para designar as uniões
estáveis entre homem e mulher e a comunidade formada por
qualquer dos pais e seus descendentes, a chamada família
monoparental (VADE MECUM, Constituição da República
Federativa do Brasil de 1988, art. 226, 2012, p.136).
A Declaração Universal dos Direitos Humanos
conceituou, em seu artigo XVI, 3, a família como um “núcleo
natural e fundamental da sociedade” garantindo-lhe proteção
da sociedade e do Estado (VADE MECUM, Declaração Universal
dos Direitos Humanos, art. XVI, 3, 2012, p.1544).
Na mesma esteira, a Convenção Americana sobre os
Direitos Humanos, conhecida como Pacto de São José da Costa
Rica, estabelece em seu artigo 17 que “a família é o elemento
natural e fundamental da sociedade e deve ser protegida pela
sociedade e pelo Estado” (VADE MECUM, Decreto nº 678, de 6
de novembro de 1992. Convenção Americana sobre os Direitos
Humanos, art. 17, 1, 2012, p. 2200).
Para Venosa (2010), há duas formas de conceituar o
instituto da família: em sentido amplo, compreende-se por
família o conjunto de pessoas unidas por um vínculo jurídico de

143
natureza familiar; em sentido restrito, trata-se a família de uma
comunidade composta por pais e filhos que vivem sob o poder
familiar.
Venosa (2010, p. 9) define, ainda, a família como “um
fenômeno fundado em dados biológicos, psicológicos e
sociológicos regulados pelo direito”.
Biologicamente falando, Caio Mário da Silva Pereira
(2010) considera a família como um conjunto de pessoas que
descendem de um mesmo tronco ancestral, incluindo ainda,
neste plano, o cônjuge, os enteados, os genros e as noras e os
cunhados.
Seguindo este raciocínio, Diniz (2010, p. 17) conceitua a
família como sendo “um grupo fechado de pessoas, composto
dos pais e filhos, e, para efeitos limitados, de outros parentes,
unidos pela convivência e afeto numa mesma economia e sob a
mesma direção”.
Porém, estes conceitos nos parecem um pouco
limitados, visto que a Constituição da República de 1988 elevou
a família ao patamar de entidade familiar, tornando o afeto o
ponto principal que une os seus membros.
Destarte, Paulo Luiz Netto Lôbo, entende que “A família
é um grupo social fundado essencialmente nos laços de
afetividade após o desaparecimento da família patriarcal, que
desempenhava funções procriativas, econômicas, religiosas e
políticas” (LÔBO apud DIAS, 2010, p.43).
Maria Berenice Dias assim discorre sobre o conceito de
família:

144
Nos dias de hoje, o que identifica a família
não é nem a celebração do casamento nem
a diferença de sexo do par ou o
envolvimento de caráter sexual. O
elemento distintivo da família, que a coloca
sob o manto da juridicidade, é a presença
de um vínculo afetivo a unir as pessoas
com identidade de projetos de vida e
propósitos comuns, gerando
comprometimento mútuo. Cada vez mais a
ideia de família afasta-se da estrutura do
casamento. A família de hoje já não se
condiciona aos paradigmas originários:
casamento, sexo e procriação. (DIAS,
2010, p. 42)

A legislação brasileira infraconstitucional também


tratou de definir este instituto. A Lei nº 11.340/2006 (Lei Maria
da Penha) apresenta, em seu artigo 5º, inciso II, um conceito
amplo de família, compreendida por indivíduos que se unem
“por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa”
(VADE MECUM, Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006.
Violência doméstica e familiar contra a mulher, art.5º, II, 2012,
p. 2551-2552), abolindo assim o estigma da família unicamente
formada pelo casamento.
Desta feita, podemos observar que há uma alteração
significativa no conceito de família. Esta modificação ocorreu
devido à evolução da estrutura da própria sociedade, que, na
atualidade, tem o afeto como principal elemento motivador da
união entre as pessoas, que buscam compartilhar seus
objetivos de vida, sem haver mais a necessidade do casamento
145
para a sua constituição.
Este novo conceito de família permite abranger vários
arranjos familiares, embora não expressamente descritos em
lei, ante o princípio da afetividade e outros princípios correlatos.

3. Formas de constituição da família

Ante o conceito e a evolução histórica da família,


percebe-se claramente a existência de várias formas de
constituição deste instituto.
Segundo Pontes de Miranda, consideram-se formas de
família:

[...] o critério pelo qual se estabelecem as


relações entre cônjuges e entre esses e os
filhos. A estruturação familial ou concerne
a laços sexuais denominados pelos lógicos
„um-um‟, „um-dois (ou mais)‟, „dois (ou
mais)-um‟, „dois (ou mais)- dois (ou mais)‟,
ou a laços de relação parentais „pai-filhos‟,
„mãe-filhos‟, „pai e mãe-filos‟. (MIRANDA,
2000, p.206).

Muitas são as formas de constituição de família já


retratadas por doutrinadores desse ramo do direito, dentre
essas, apontamos brevemente algumas a seguir.

3.1. A formação da família através do matrimônio

146
O casamento é uma das primeiras formas de união
entre homem e mulher, sendo a primeira forma de constituição
familiar prevista pelo ordenamento.
No Código Civil de 2002, o casamento é regido nos
artigos 1.511 a 1.590, no Subtítulo I, do Título I (Do Direito
Pessoal), do Livro IV (Do Direito de Família), na parte especial
desta legislação.
A Lei Civil não traz a definição de casamento, apenas
estabelece a sua finalidade, qual seja, “comunhão plena de
vida, com base na igualdade de direitos e deveres dos cônjuges”
(VADE MECUM, Código Civil Brasileiro de 2002, art. 1.511, p.
461). Tratou a doutrina, portanto, de conceituar este instituto.
Assim, vejamos.
Para Caio Mário da Silva Pereira (2010, p.65) o
casamento é a “união entre duas pessoas de sexo diferente,
realizando uma integração físiopsíquica permanente”.
Como já analisado anteriormente, até a promulgação da
Constituição da República, em 1988, o matrimônio era a única
forma reconhecida em lei de se constituir uma família. Hoje,
conforme disposto no art. 226, da CRFB/88, há outras
entidades familiares merecedoras de igual proteção estatal.

3.2 A união estável

A inserção do instituto da união estável no rol das


entidades familiares, na CRFB/88, provocou grandes alterações
no ramo do Direito de Família, uma vez que essa, segundo a

147
nossa Carta Magna, passou a ter especial proteção do Estado,
devendo ser facilitada a sua conversão em casamento (VADE
MECUM, Constituição da República Federativa do Brasil de
1988, art. 226, § 3º, p. 137).
Após o reconhecimento da união estável como entidade
familiar, cuidou a legislação especial de regular a matéria.
Neste ínterim, temos a Lei nº 8.971/1994 que
regulamentou o direito dos companheiros, definindo o instituto
da união estável como união comprovada entre homem e
mulher solteiros, separados judicialmente, divorciados ou
viúvos, por mais de cinco anos, ou que dele tenha prole (VADE
MECUM, Lei nº 8.971, de 29 de dezembro de 1994. Direito dos
companheiros, art. 1º, 2012, p. 2307).
Posteriormente foi promulgada a Lei nº 9.278/1996 que
modificou este conceito para entidade familiar fundada na
“convivência duradoura, pública e contínua entre um homem e
uma mulher, estabelecida com objetivo de constituição de
família” (VADE MECUM, Lei nº 9.278, de 10 de maio de 1996.
União Estável, art. 1º, 2012, p. 2325). Tratou por bem o
legislador revogar a menção de prazo para a sua constituição,
ficando a cargo do julgador, observada a legislação e o caso
concreto, o reconhecimento desta união.
Por fim, com a instituição do Código Civil em 2002, toda
a matéria fora inclusa no Livro de Família, nos artigos 1.723 a
1.727, amoldando-se a este as normas contidas nas Leis nº
8.971/1994 e 9.278/1996, mantendo, contudo, o seu conceito,
qual seja, de entidade familiar formada pela “união estável

148
entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública,
contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de
constituição de família” (VADE MECUM, Código Civil Brasileiro
de 2002, art. 1.723, 2012, p. 491).

3.3 Família monoparental

Este arranjo familiar encontra respaldo na Constituição


da República, mais precisamente no § 4º, do art. 226, que
elencou no rol de entidades familiares a comunidade formada
por qualquer dos pais e seus descendentes.
Conceitua Diniz: “é formada por um dos pais e seus
descendentes. A monoparentalidade pode decorrer da vontade
unilateral de assumir sozinho a maternidade ou a paternidade;
da morte; da separação judicial ou do divórcio” (DINIZ, 2005, v.
2, p. 593).
Rosana Broglio Garbin salienta que o fenômeno da
monoparentalidade decorre da “decisão de um dos membros da
família, quer na ruptura da vida matrimonial, quer na opção
por uma forma de união livre, quer na decisão de ter um filho
sozinho” (GARBIN apud DIAS, 2010, p.212).
A família monoparental pode originar-se pela morte de
um dos genitores, pela separação ou divórcio dos pais, pela
adoção ou inseminação artificial por pessoa solteira, por
fecundação homóloga após a morte do marido, pela chefia de
um parente, que não os genitores, ou pelo instituto da guarda
em que o responsável não seja parente da criança ou do

149
adolescente (DIAS, 2010).
Dias (2010, p.213) ressalta, ainda, que “para se
configurar uma família monoparental, basta haver diferenças
de gerações entre um de seus membros e os demais e desde que
não haja relacionamento de ordem sexual entre eles”.

3.4 Família eudemonista

A Constituição Brasileira ao ampliar o conceito de


família, reconheceu como entidade familiar a união estável e a
família monoparental, deixando de mencionar expressamente,
porém, os diversos arranjos familiares já existentes na
sociedade. Disto depreendemos que não se tata o artigo 226 da
CRFB/88 de um rol taxativo, devendo o Estado desempenhar
igual proteção às outras conformações de família existentes,
acompanhado, desta forma, o direito a realidade fática das
estruturas de famílias, que hoje se fundam no afeto e na
assistência mútua. Uma vez que, conforme preceitua Dias
(2008, p.76), “o silencio do legislador não pode significar
inexistência de direto”.
Para Lôbo (apud DIAS, 2010, p. 55), “a família
identifica-se pela comunhão de vida, de amor e de afeto no
plano da igualdade, da solidariedade e da responsabilidade
recíproca”.
Esta nova concepção traz à família um caráter
instrumental. Isto significa que este instituto não é mais um fim
em si mesmo, mas sim um instrumento pelo qual o ser humano

150
desenvolve a sua personalidade (DIAS, 2010).
É neste sentido que se caracteriza a família
eudemonista, como um instrumento pelo qual o indivíduo
busca a sua felicidade e a realização plena de seus membros,
ou seja, é uma união que se origina pelos laços do afeto, do
respeito e do amor recíprocos em busca da felicidade comum.
Nesta esteira encontram-se, igualmente, as famílias
anaparentais, as famílias pluriparentais, as famílias
homoafetivas e as famílias paralelas.

3.5 União homoafetiva

A união homoafetiva é, segundo Mônica Cristina


Moreira Pinto:

[...] relação duradoura entre pessoas do


mesmo sexo que, em caso de dissolução,
gera divisão do patrimônio, por ser
sociedade de fato, mediante aferição do
quantum da contribuição de cada um dos
sócios, procedendo-se a partilha, que dará
a cada um o que lhe for devido, na
proporção do esforço que fez. (PINTO apud
DINIZ, 2005, v.4, p.795)

A existência das famílias homoafetivas é uma realidade


social, entende-se, deste modo, descabida a sua exclusão da
proteção constitucional destinadas às famílias.
A fim de sanar esta omissão, em 05 de maio de 2011, o
STF, em sede de julgamento da ADPF nº 132 e da ADI nº 4277,
151
reconheceu, por unanimidade, à união homoafetiva como
entidade familiar (CHAVES, 2011).
Tal decisão, em linhas gerais, fundamentou-se “pelos
princípios constitucionais da dignidade pessoa humana, da
liberdade (incluindo-se a do livre exercício da sexualidade), da
igualdade, da vedação da discriminação em razão de sexo ou
qualquer outra natureza, do pluralismo” (CHAVES, 2011, p. 1).
E é neste sentido, segundo Chaves (2011), que tem
procedido a ordem jurídica brasileira, com a realização de
casamentos entre pessoas do mesmo sexo, seja pela conversão
da união, seja pelo casamento direto.

4. A interpretação ampla do conceito de família trazido pela


constituição

A promulgação da Constituição da República Federativa


do Brasil de 1988 provocou diversas transformações no direito
de família, consagrou as relações familiares como base da
sociedade, conferindo-lhe especial proteção do estado.
A família passou a ser analisada não só na esfera do
direito privado, representado pelo Código Civil, mas,
principalmente, sob a ótica constitucional. É o que Manassés
(2012) define como Constitucionalização do Direito Civil.
A Magna Carta estabelece como princípio basilar do
Estado Democrático de Direito, a dignidade da pessoa humana
(VADE MECUM, Constituição da República Federativa do Brasil
de 1988, art. 1º, inciso III, 2012, p.13). Este princípio orienta

152
toda a constituição e, por conseguinte, deve permear também
as relações no âmbito do direito de família.
A família tornou-se, assim, um meio garantidor do
exercício e promoção da dignidade da pessoa humana, ganhou
aspecto instrumental e passou a preocupar-se apenas com a
realização pessoal de seus membros (FERRARINI, 2010).
A Carta Política, ao conceber a família o status de
entidade familiar, ampliou o leque de modalidades de sua
constituição, tratando como família não só aquela formada pelo
casamento, mas também aquela formada pela união estável
entre homem e mulher e a comunidade estabelecida por
qualquer dos pais e seus descendentes (família monoparental),
declarando, assim, o pluralismo familiar, conforme expõe
Ferrarini (2010).
Todavia, como aduz Dias (2010), os tipos de entidades
familiares expressos nos parágrafos do art. 226, da CRFB/88,
são meramente exemplificativos – estão ali elencados por serem
os mais comuns. Há outras conformações de família na
sociedade brasileira (como as abordadas no capítulo anterior),
igualmente fundadas no afeto e no comprometimento mútuo,
carecedoras de reconhecimento e tutela estatal.
A Lei Maior estabeleceu, ainda, a igualdade entre os
cônjuges, bem como dos filhos, havidos ou não do casamento,
ou por adoção (VADE MECUM, Constituição da República
Federativa do Brasil de 1988, art. 226, 2012, p.136).
Analisando o direito de família sob a ótica
Constitucional, verificamos que vários são os princípios

153
aplicáveis ao instituto, podendo citar a seguir os mais
importantes.
O princípio da Dignidade da Pessoa Humana,
denominado por muitos doutrinadores como princípio de
eficácia radiante, é um dos fundamentos da República
Federativa do Brasil, sendo princípio basilar do Estado
Democrático de Direito.
Podemos dizer que referido princípio seria o norteador
base do reconhecimento da união poliafetiva como uma
entidade familiar.
O princípio da igualdade previsto no caput do artigo 5º,
da CRFB/88 e está, por essência, vinculado ao macroprincípio
da dignidade da pessoa humana, uma vez que a igualdade,
como avalia Rodrigo da Cunha Pereira (2012b), é pressuposto
do exercício da cidadania.
Além de prever a isonomia como um direito
fundamental, a Constituição da República reiterou este
princípio nas relações familiares ao proclamar, em seu artigo
226, § 5º, igualdade entre os cônjuges no exercício de direitos e
deveres.
O princípio da liberdade, intimamente relacionado com
o princípio da igualdade, salvaguarda o princípio maior da
dignidade da pessoa humana (DIAS, 2010).
O princípio da autonomia e da menor intervenção do
Estado, no que tange ao direito de família, é verificado pelo
disposto no § 7º, do art. 226, da CRFB/88, que prevê a
liberdade do casal no planejamento familiar, e no art. 1.513, do

154
CC/02, que proclama a vedação da interferência nas relações
de família por qualquer pessoa de direito público ou privado
(PEREIRA, R. C., 2012b).
Com base neste princípio podemos deduzir que o
Estado não poderá determinar a forma na qual o indivíduo
constituirá a suas relações familiares, muito menos delimitar as
entidades de família que estarão sob o seu manto protetor. Pois,
se assim o fizer, estará ferindo os princípios da autonomia, da
igualdade, da liberdade e da dignidade humana, norteadores do
direito geral e do direito de família.
O princípio da pluralidade de formas de família encontra-
se consagrado pelo art. 226, da Constituição da República de
1988, que ao reconhecer a união estável e a família
monoparental o status de entidade familiar, eliminou de vez do
plano jurídico a concepção de casamento como única forma de
constituição de família.
Desta feita, este princípio deve ser compreendido como
o reconhecimento pelo Estado da existência de várias
possibilidades de “arranjos familiares” (ALBUQUERQUE FILHO
apud DIAS, 2010, p. 67).
Ao prever novas formas de constituição da família, a
Carta Magna demonstra que as relações familiares se originam
pelos laços do afeto, do desejo, não mais pela imposição social
da antiga sociedade patriarcal (PEREIRA, R.C., 2012b).
Podemos então afirmar que pelos princípios aqui apresentados,
não teria motivos para que a união poliafetiva não fosse
reconhecida como entidade familiar.

155
5. União poliafetiva x poligamia

Consubstanciado em todos os princípios que se aplicam


ao direito de família, assim como à interpretação do instituto
da família a partir da Constituição Federal, e da afirmação de
que a família é nitidamente produto do meio cultural,
passamos a pensar na constituição das famílias poliafetivas.
Ao contrário do que possam pensar alguns, essa forma
de constituição familiar não surgiu recentemente, de forma
que conseguimos reconhecer casos, porém em sua maioria não
públicos, em que três ou mais pessoas convivem de forma
habitual, sob o mesmo teto e com intuito de família, seguindos
os princípios e características que regem essa instituição.
Com a publicidade das uniões poliafetivas, passou-se a
uma discussão no meio jurídico sobre essa forma de
instituição de família, defendida por alguns doutrinadores
como Maria Berenice Dias como entidade familiar, e rechaçada
por outros, que entendem que a união poliafetiva busca
legitimar a poligamia no Brasil.
O nosso ordenamento jurídico tem como um dos
princípios que se aplica ao instituto do casamento o princípio
da monogamia, que pode ser extraído do artigo 1.521, VI, do
CC/02, que dispõe que não podem casar as pessoas já
casadas.
Além da disposição de impedimento para o casamento
de pessoas já casadas, o Código Penal brasileiro
expressamente tipifica como delito o crime de bigamia,

156
disposto no artigo 225, que prescreve;

235 - Contrair alguém, sendo casado,


novo casamento: Pena - reclusão, de dois a
seis anos.
§ 1º - Aquele que, não sendo casado,
contrai casamento com pessoa casada,
conhecendo essa circunstância, é punido
com reclusão ou detenção, de um a três
anos.
§ 2º - Anulado por qualquer motivo o
primeiro casamento, ou o outro por motivo
que não a bigamia, considera-se
inexistente o crime. (VADE MECUM,
Código Penal, 2017.p.472).

Porém, o princípio da bigamia não se aplica às uniões


estáveis, assim como a constituição de mais de uma união
estável não configura o crime de bigamia, posto que a lei penal
não admite o uso de analogia “in malam partem”, que é a
analogia em malefício do réu, se aplicando apenas a
literalidade da lei penal.
No ano de 2012, mais precisamente no mês de
setembro, foi amplamente noticiado pela mídia a lavratura de
uma escritura pública de união poliafetiva pelo cartório de
notas da cidade de Tupã, interior de São Paulo, pela Oficiala
de Cartório Cláudia do Nascimento Domingues.
A referida união foi constituída por um homem e duas
mulheres, e foi apenas a primeira de outras noticiadas em
outros estados brasileiros, o que levou à discussão da validade
dessas escrituras, e à discussão quanto ao reconhecimento
157
dessa união como entidade familiar.

6. As escrituras públicas de união poliafetiva

Recente discussão acerca da existência para o direito da


união poliafetiva como entidade familiar, foi questionada em
pedido de providência apresentado ao Conselho Nacional de
Justiça - CNJ, por intermédio da ASSOCIAÇÃO DE DIREITO
DE FAMÍLIA E DAS SUCESSÕES – ADFAS, que pediu
providências ao CNJ em relação à lavratura de escrituras
públicas de união estável estabelecida entre três ou mais
pessoas, por Cartórios de Ofícios extrajudiciais nos estados do
Rio de Janeiro e São Paulo.
A polêmica questão tem dois lados de entendimento, a
ADFAS afirma ser inconstitucional a lavratura de escrituras
públicas de uniões estáveis entre três ou mais pessoas, bem
como que essa forma de convivência não está amparada pelo
ordenamento jurídico, e afronta os princípios constitucionais e
do direito de família.
De forma contrária, o Instituto Brasileiro de Direto de
Família – IBDFAM, chamado a se manifestar sobre o pedido de
providência em tramitação no CNJ sob o nº 0001459-
08.2016.2.00.0000, defende que não se pode obstar o
reconhecimento jurídico das uniões poliafetivas, sob pena de
afrontar os princípios da igualdade, liberdade, não intervenção
estatal na vida privada, não hierarquização das formas
constituídas de família e pluralidade das formas constituídas de

158
família.
O modelo de unidade familiar não é mais aquele
estabelecido unicamente entre um homem e uma mulher, de
forma que as diferentes modalidades de unidades familiares
devem ser reconhecidas pelo ordenamento jurídico,
propiciando a necessária proteção do Estado a todas as formas
de constituição de família.
Para a vice-presidente do Instituto Brasileiro de Família
(Ibdfam), Maria Berenice Dias, a sociedade deve se preparar
para os diversos tipos de relacionamento que existem hoje em
dia. Por meio de nota no Ibdfam, Maria Berenice diz que é
preciso "respeitar a natureza privada dos relacionamentos e
aprender a viver nesta sociedade plural, reconhecendo os
diferentes desejos". "O princípio da monogamia não está na
Constituição, é cultural. O Código Civil proíbe apenas
casamento entre pessoas casadas, o que não é o caso. Essas
pessoas trabalham, contribuem e devem ter seus direitos
garantidos. A Justiça não pode chancelar a injustiça."
Na petição apresentada pelo IBDFAM no pedido de
providência em tramitação no CNJ, assim afirmou o presidente
do instituto, Rodrigo da Cunha Pereira:

Estabelece o artigo 1.513 do CCB/2002


que: É defeso a qualquer pessoa, de direito
público ou privado, interferir na comunhão
de vida instituída pela família. In casu, o
registro das uniões poliafetivas não pode
ficar na invisibilidade jurídica, ou seja,
merece a proteção e os efeitos jurídicos,
159
sob pena de afrontar a liberdade,
igualdade, não intervenção estatal, não
hierarquização das formas constituídas de
família e pluralidade das formas
constituídas de família. (PEREIRA, CNJ,
0001459-08.2016.2.00.0000).

A questão merece uma atenção especial não só do


Conselho Nacional de Justiça, mas por parte de nossa Corte
Suprema, uma vez que o tema possui enorme relevância para o
ordenamento jurídico, na medida em que essa forma de
constituição de família, que faticamente já existe há algum
tempo, e com certeza continuará existindo, inevitavelmente
levará ao judiciário questões decorrentes dessa tipo de união e
que deverão por esse serem decidias, independentemente de se
possuir ou não um norma legal que regulamente a questão.

Conclusão

Pelas reflexões aqui propostas, podemos verificar que o


conceito de família no ordenamento jurídico brasileiro é um
conceito aberto, e que o artigo 226, §3º da Constituição Federal
não é uma norma taxativa quanto ao conceito de família e a
referência de forma de unidade familiar a ser protegida pelo
Estado.
Em que pese a discordância de alguns juristas quanto à
questão aqui apresentada, podemos observar que a lavratura de
escrituras públicas de união estáveis poliafetivas não parece
contrariar a Constituição, assim como já não podemos mais
160
conceber a ideia de que a família deve ser entendida como uma
união monogâmica heterossexual ou homossexual.
O ordenamento jurídico deve buscar acompanhar a
evolução da sociedade, e poder resguardar os interesses dos
indivíduos nela inseridos, permitindo uma maior liberdade das
escolhas de formas de relações afetivas, pela liberdade dos
indivíduos de se fazerem plenamente felizes e realizados sem se
ater a particularidades que muitas vezes fogem das normas
positivadas, mas que merecem um devido reconhecido jurídico
dos direitos dos autores dessas novas relações familiares, com a
devida proteção pelo Estado.

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FERRARINI, Letícia. Famílias simultâneas e seus efeitos


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163
164
ENSAIO

165
ZYGMUNT BAUMAN: CARTAS DO MUNDO LIQUIDO
MODERNO

Altair Marchetti1
Gabriela Camêllo2
Marisa Quintão3
Monica Santos4
Saulo Camêllo5
Vitor Lopes6
René Dentz7

Resumo:

O presente trabalho tem o objetivo de analisar temas


contemporâneos diversos tais como insegurança, tecnologia,
relacionamentos, privacidade, redes sociais, educação,
padronização de beleza onde a fluidez das relações e as
consequências da rápida e múltipla troca de informações
provocam alterações no mundo moderno.

Introdução

Vivemos em uma época de constante evolução tanto no


campo tecnológico quanto social, e somos bombardeados de
informações por todos os lados, sendo um tempo de liquidez,
fluidez, volatilidade, incerteza e de insegurança, que chamamos
de modernidade líquida, que substitui a época de toda a rigidez
e todos os referenciais morais anteriores, que denominamos de

1Graduando do curso de Direito da FUPAC-MARIANA,


2Graduanda do curso de Direito da FUPAC-MARIANA,
3Graduanda do curso de Direito da FUPAC-MARIANA,
4Graduanda do curso de Direito da FUPAC-MARIANA,
5Graduando do curso de Direito da FUPAC-MARIANA,
6Graduando do curso de Direito da FUPAC-MARIANA.
7 Professor Titular da FUPAC-Mariana; Psicanalista; Membro do International

Institute for Hermeneutics/Alemanha.


166
modernidade sólida, dando espaço à lógica do mundo atual: o
mundo do consumo, do gozo e da artificialidade.
Marx e Engels caracterizavam a modernidade como o
instrumento que desconstruía instituições e referências de
outras épocas, tais como a família, a comunidade tradicional e
a religião, retirando raízes do velho e enraizando novas relações
na sociedade. Bauman cria então o conceito de modernidade
líquida. Na modernidade líquida, considerado como o momento
em que os referenciais que possibilitam o desenraizamento e o
reenraizamento do velho no novo são liquefeitos e assim
perdidos. Estamos atualmente nesse estado, onde a questão de
identidade é algo descartável; somos vistos como consumidores
e nada dura tempo suficiente para chegar ao estado sólido.
Com isso, Zygmunt foi convidado pela Revista italiana
direcionada ao público feminino Repubblica delle donne, para
escrever quinzenalmente sobre assuntos julgados relevantes
sobre o que ele chamava de Modernidade Líquida, o que mais
tarde foi transformado em um livro nomeado de “44 Cartas do
Mundo Líquido Moderno”. Bauman nos artigos escritos busca
muito mais do que utilizar críticas estereotipadas e repetir
chavões acadêmicos e políticos; ele traz exemplos históricos e
fontes atuais que nos levam a refletir sobre o assunto, fazendo
com que seus escritos se transformem em um resumo sucinto
dos tempos pós-modernos.

2. Estrangeiros são perigosos. Será?

167
A trigésima nona carta que compõe o livro “44 Cartas do
Mundo Líquido Moderno”, trabalha sobre o tema do
desconhecido, no caso, considerando o estrangeiro como aquele
que introduz uma dose de incerteza, ansiedade e temores do
desconhecido na vida dos moradores das cidades.
Expulsar esses agentes causadores não mudam nossas
vidas líquidas-modernas, continuamos nos sentindo inseguros,
pois a vida continua incerta. Mesmo quando eles não se
comportam de maneira agressiva, os estrangeiros causam
desconforto, apenas por estarem presentes.

“Um estrangeiro é, afinal, um “estranho”,


um ser bizarro cujas intenções e reações
podem ser completamente diferentes do
comportamento das pessoas normais
(comuns, familiares). ” (BAUMAN, 2011,
p.126.)

No entanto, é praticamente impossível não dividir os


espaços e viver longe dos estrangeiros. Para isso é preciso criar
um modo de viver a fim de facilitar a vida, dividindo espaços.

“Fazemos escolhas todos os dias: por


obrigação ou omissão, de propósito ou por
falta de opção; por uma decisão consciente
ou por seguir cega e mecanicamente os
costumes; por deliberação e demoradas
discussões, ou apenas seguindo padrões
confiáveis porque estão na moda. ”
(BAUMAN, 2011, p.127.)

168
Os estrangeiros são considerados “estranhos”, seres
bizarros cuja intenção e reação podem ser completamente
diferentes do comportamento das pessoas normais (comuns,
familiares).
A mixofobia surge de um impulso nosso de construir
ilhas de similaridade e identidade em meio a um oceano de
diversidade e diferença. É uma escolha para viver dividindo o
espaço com estrangeiros. Isso porque conversar com pessoas
parecidas conosco é fácil, elas estão preparadas para aceitar
tudo o que iremos dizer e antes mesmo de conversarmos com
elas já entendem nossos pensamentos, porém discutirmos
assuntos com pessoas que possuem pontos de vistas diferentes
é complicado, e para isso devemos construir uma habilidade
para convivermos. A mixofobia traz a promessa do conforto
espiritual que pode ser traduzido no sentimento de grupo para
compreender, negociar e conciliar.
Quanto mais fugimos da diversidade e passamos mais
tempos com nossos iguais, interagindo de modo superficial e
casual, evitamos o risco de incompreensão e perdemos a prática
da negociação de um meio de convivência entre todos. O
impulso em direção à “comunidade de similaridade” é sinal de
recuo não só da alteridade externa como também de um
compromisso com a interação interna, cheia de vida.
Esse medo do desconhecido, faz com que pessoas com
condições financeiras favoráveis busquem um meio alternativo
para fugir da diversidade, utilizando sua influência e condição

169
para instalar-se em comunidades muradas, e em conjuntos
habitacionais, rodeados de guardas e circuitos de alarmes
contra invasores. Isto começou nos EUA e na maioria dos
países europeus onde a tendência dos moradores urbanos com
melhores condições financeiras fogem das ruas apinhadas das
cidades para comunidades muradas.
Essas comunidades muradas são conjuntos
habitacionais cercados, com entrada controlada, guarda,
circuitos internos de TV, alarmes. Gastam-se fortunas com
“serviços de segurança” para banir qualquer mistura.
As ruas desses condomínios fechados sempre estão
vazias. Portanto, caso haja um desconhecido transitando pelas
ruas, logo será percebido como um evento fora do comum.
Qualquer um que não conhecemos e que rodeia nossas
residências pode se enquadrar como um estrangeiro com más
intenções. Após a evolução das tecnologias que permitem-nos
avisar se pretendemos ou não realizar uma visita a um amigo,
já que quase uma vez que todos podem ser encontrados on-line,
quando alguém toca a campainha de nossa casa sem ser
avisado isso pode ser caracterizado como uma situação de
potencial risco.
Por isso, em condomínios as ruas são mantidas vazias,
como forma de perceber situações de perigo, além do que não
há um interesse de contato entre os moradores do condomínio,
já que gastam exorbitantes quantias para viverem em uma
sociedade isolada. Para se libertarem de companhias
desagradáveis, selecionam quem pode ou não participar do

170
círculo de amizade, e isso os faz se sentirem à salvo dos perigos
que os estrangeiros causam. Porém, o que percebemos é que
apesar de todos esses cuidados, o medo permanece. Existe o
medo da parafernália da segurança falhar. Isto vem mostrar as
contradições do mundo pós-moderno onde a insegurança reina
em todos apesar dos meios de proteção contra os estrangeiros,
e também vem mostrar a dificuldade do homem atual de
entrosamento físico principalmente quando considera o outro
portador de perigo e ameaça. É a grande dificuldade de se
relacionar no mundo pós-moderno.

3. Tribos e céus

A carta – pequeno conto alegórico de Ítalo Calvino “A


tribo com os olhos para o céu” é um relato de uma tribo de
apanhadores de coco que têm o hábito de contemplar o céu de
forma obsessiva e intensa. A paisagem contemplada aparece
cheia de “novos corpos celestes”, como aviões a jato, discos
voadores, foguetes e mísseis atômicos teleguiados.
Na tribo, enquanto os membros observam o céu, os
bruxos com autoridade explicam o que a tribo vê. Dizem que as
coisas que acontecem no céu são sinais claros da proximidade
do dia em que a servidão e a pobreza que há séculos
atormentam a tribo irão terminar. Isto para eles é uma profecia.
Na tribo, diariamente os integrantes saíam à procura de
cocos e voltavam diariamente terminando o dia comercializando
os cocos com comerciantes que os procuravam. Porém, com o

171
tempo, algumas coisas foram mudando. Comerciantes que
antes vinham comprar cocos agora ficam sumidos. Em lugar
deles, a empresa Nicer Nut Corporation, agora compra toda a
colheita, em bloco. Com isso, o preço do produto fica fixado de
antemão, é pegar ou largar. Os agentes da Nicer Nut
Corporation concordam com os bruxos da tribo que falam sobre
os mísseis no céu e sobre notícias que pressagiam. Os agentes,
como os bruxos, insistem em dizer que, é na potência dos
bólidos celestiais que reside todo o nosso destino. Isso, leva a
tribo a vender cocos abaixo do preço devido à confiança nos
bólidos celestiais.
Outro conto presente, está no modo como vemos nossos
líderes. Antes, figuras distantes que ficavam em cima de
palanques ou nos retratos, assumindo uma altivez
convencional, agora, com a televisão, podem ser observados na
minúcia de suas feições e expressões.

“Entre as coisas que a televisão realmente


mudou, afirma Ítalo Calvino, está o modo
como vemos nossos líderes (“nossos
líderes”, aqui, designa uma grande coleção
de pessoas que antigamente nos eram
distantes e que costumávamos ouvir sem
ver, muito menos observar: ídolos, astros,
celebridades, toda essa gente que vemos
todo dia, e agora mais de perto, à espera
de entretenimento, diversão, toda a nossa
luz e guia, a quem a televisão oferece
tratamento igual ao dos “nossos líderes”). ”
(BAUMAN, 2011, p.131.)

172
Em outras palavras, ficaram tão próximos de nós,
invadiram nossas salas de estar, nossos quartos de dormir, e se
tornaram muito comuns, como qualquer um de nós, tendo
apenas como diferencial uma morte pública.
Assim, as razões pelas quais os olhos se fixam nas
estrelas não mudam muito de uma tribo para outra. Só muda o
equipamento a serviço da atividade/passividade, os nomes das
tribos e das estrelas que as tribos contemplam bem como as
histórias que os bruxos contam. Não mudam a mensagem
dessas histórias nem as intenções e objetivos de seus
narradores. No nosso mundo pós-moderno, observa-se muito o
caráter enganoso das relações humanas, baseado no
capitalismo, na exploração do trabalho e aplicação do preço
menos justo.

4. Estabelecendo limites

A cultura começou com a imposição de limites onde


antes não havia nenhum, isso em 1949 quando Claude Lévi-
Strauss definiu como ato fundador a proibição do incesto
(relação sexual humana que pode ser praticada, mas não deve,
que é factível e plausível, mas proibida para os seres humanos).
A cultura, o modo de ser específica e exclusivamente humano
começou com a imposição de um limite onde antes não havia
limite algum. Ao vetar a determinadas mulheres o acesso à
relação sexual, dividiu-as, “com a cultura”, entre as quais era
proibido copular e aquelas com as quais era permitido fazê-lo.

173
Em cima de diferenças e semelhanças dadas pela natureza;
impuseram-se divisões e distinções artificiais imaginadas e
estabelecidas pelos seres humanos.
Os limites são impostos para criar diferenças, podendo
ser essas diferenças entre um lugar e outro, entre uma
extensão de tempo e o resto do tempo. A criação dessas
diferenças recai sobre a aplicação de diversos padrões
comportamentais, o que torna possível manipular
probabilidades e com isso, alguns eventos poderão ser
prováveis, outros menos prováveis e outros inclusive
impossíveis. Isso porque o estabelecimento de limites e
fronteiras, cria uma estrutura, que nos permite estar cientes de
onde estamos, do que fazermos e quando agir, pois, as
fronteiras nos proporcionam confiança, mas para cumprir essa
função elas (fronteiras) devem ser demarcadas, para garantir a
ordem. Essas fronteiras de sua casa e da casa de outras
pessoas criam e simbolizam a divisão entre “os de dentro” e “os
de fora” levando ao mundo ordenado.
A ordem é explicada por Mary Douglas em seu estudo
Pureza e Perigo (1966) como:

“coisas certas nos lugares certos e em


nenhum outro lugar. É o limite que
determina quais coisas em quais lugares
estão “certas” (isto é, têm o direito de
estar) e quais coisas estão “fora do lugar” e
onde”. Coisas que estão fora do lugar são
sujas e devem ser transferidas para outro
lugar que lhes seja apropriado. A limpeza é
a eliminação das coisas indesejáveis. ”
174
Traçamos limites no espaço para criar e conservar uma
ordem espacial. A presença de guardas à entrada de centros
comerciais, restaurantes, prédios, condomínios fechados,
teatros ou estádios buscam dar passagem a certas pessoas e
impedir o acesso de outras. Cada modelo de ordem espacial
divide os seres humanos em “desejáveis” e “indesejáveis”.
A principal função dos limites ou fronteiras é dividir.
Porém, os limites estão subordinados a pressões opostas e
contraditórias, o que transforma em lugares de tensão e em
objetos potenciais de disputa, antagonismo, permanente
fervilhar de conflitos e hostilidades.
Os muros são desprovidos de portões, portas. No caso
extremo, de penitenciárias, campos de concentração e guetos
um grupo de guardas armados controla a passagem nas duas
direções. Nas “zonas perigosas” de certas cidades tendem a se
aproximar do padrão extremo, porque existe a atitude de “não
podemos entrar” dos que estão de fora à situação de “não
podemos sair” dos que estão dentro.
Atualmente existem fronteiras não demarcadas de base
popular que estão fora da atenção oficial e da intervenção
governamental. São efeitos secundários de natureza
multicultural da convivência humana. Elas têm a função de
separação, instigada pelo medo do desconhecido e pelo desejo
de segurança, elas têm um papel de encontro, intercâmbio e de
fusão e práticas cotidianas.

175
Nesse plano microssocial, diferentes tradições, crenças,
motivações culturais e estilos de vida supervisionados e
administradas por governos compartilham o dia a dia
inevitavelmente e dialogam entre si, numa conversa pacífica e
benevolente, tormentosa e antagônica, que leva a familiarização
e não ao estranhamento, contribuindo para o respeito, a
solidariedade e o entendimento mútuo.
Esse modelo líquido moderno, com a missão de construir
condições para se chegar a um modo agradável e
reciprocamente benéfico de coexistência de forma de vida
diferente tem sido despejado em pequenas áreas localizadas
com muitos problemas. Isso transforma essas áreas em
laboratórios para a descoberta de modos de convivência
humana num planeta globalizado.
Fronteiras intercomunitárias se tornam às vezes campos
de batalha onde se despejam receios e frustrações de várias
origens, mas constituem oficinas de arte para convivência,
locais onde sementes de humanidade são cultivadas.
Na história, nada é pré-determinado, é um traço deixado
no tempo por escolhas humanas múltiplas raramente
coordenadas. A sociedade pós-moderna tem se apresentado
sem limites desejáveis. Quando se estabelece o limite é para nos
separar, proporcionando uma divisa

5. Como pessoas boas se tornam pessoas más

176
Temos um contexto histórico de conflitos e massacres e
de tantas mortes impiedosas realizada por pessoas
caracterizadas como aparentemente normais, que após se
depararem com algum estimulo seja ele por força de um
discurso legitimador ou seja pelas características inerentes a
condição do ser humano.
Não há uma linha divisória que divide os sujeitos em
bons e maus, certos e errados, amáveis e odiáveis, cultos e
imorais, santos e perversos, anjos e demônios, estamos em
constante fluxo entre essas linhas, pois o fator situacional, ou
seja, a circunstância e o ambiente são capazes de ocasionar
essa transição que separa o bem do mal.
Qualquer ambiente ou circunstância, com determinadas
características tem o poder de acarretar mudanças nos
comportamentos, sobretudo, em pessoas que naturalmente
apresentam uma conduta influenciável.
Situações envolvendo ambientes que, de certa forma,
está desde sempre impregnado com arbitrariedades, sempre
criam basicamente dois tipos de indivíduos: aqueles que
mandam e aqueles que apenas obedecem às ordens, que
quando desobedecidas geram sansões extremas.
Qualquer ato que tenha sido cometido por um ser
humano, não importa o quão terrível, pode ser cometido por
qualquer um de nós, isso por que a natureza humana não é
imutável, permanente e definitiva, onde nosso caráter está
continuamente em formação.

177
“[...] é fácil incitar pessoas que não têm
índole má a perpetrar atos de maldade. ”
(BAUMAN, 2011, p.139.)

Em nossa vida cotidiana mudanças comportamentais


são pouco observadas, já que nos moldamos de acordo com
uma realidade conhecida, reagimos as situações habituais,
sendo copias daquilo que constantemente fazemos. Essa
condição do comportamento muda completamente de acordo
com o ambiente, a situação e a circunstância a que somos
expostos.

“Se tantas pessoas podem cometer atos


desumanos, não é difícil que eu me
tornasse vítimas deles. Eles podem fazer
essas coisas. Só que também não é difícil
que eu acabe mostrando que sou um
“deles”, uma “outra pessoa normal” capaz
de fazer aquelas coisas com outras
pessoas. ” (BAUMAN, 2011, p.139.)

Um dos caracterizadores consideráveis da mudança de


comportamentos se remete a desumanização do outro,
esquecendo que os outros indivíduos são providos de
sentimentos, vontades, desejos, amor, o que transforma uma
relação “Eu-Vós” em “Eu-Isto”, vendo o outro como um animal,
um objeto, uma coisa ou algo irrelevante. O sentimento de
poder e dominação que nasce com essa descrença em relação a
outro ser humano, talvez seja o fator determinante para a
legitimação pelo próprio agressor de suas atitudes arbitrarias.

178
Portanto, o mal não se encontra em determinadas
pessoas como característica intrínseca, os comportamentos são
moldáveis e o ambiente apresenta grande influência nessas
modificações, possuindo um papel fundamental na formação do
caráter
Porem assim como o mal pode surgir inesperadamente de
alguém que jamais imaginamos que pudessem cometer
qualquer ato ilegal, cruel ou violento a bondade pode ser
encontrada até mesmo em ambientes e circunstancias
insalubres, sendo possível efetivamente resistir ao mal que
neles habita.

6. Destino e caráter

Que tal escolher o momento que iremos nascer? Ou


melhor, quem serão nossos pais e nossos irmãos? Mas o
destino não nos permite tal escolha, o destino é aquela
dimensão da vida que nenhum indivíduo tem controle. Não há o
que fazemos diante do destino, a não ser aceita-lo de braços
abertos e escolher entre as alternativas que ele nos dá, já que
ele é dinâmico e está sempre nos oferecendo novas
possibilidades e eliminando velhas.
O destino nos oferece alternativas que nem sempre são
as ideais ou as mais agradáveis, isso porque a realidade se
modifica constantemente e com isso o nosso destino, não
distinguindo o pobre do rico, o branco do preto, o belo do feio,
com o destino não a preconceito.

179
O caráter, por seu lado, é a dimensão que temos algum
controle. Em alguns casos conseguimos moldar e trabalhar
sobre a construção do nosso caráter, isso irá depender da nossa
força de vontade, do tempo que desprendemos e dos recursos
que possuímos, seja eles materiais ou imateriais. E é esse
caráter que nos irá guiar nas escolhas entre as alternativas
oferecidas pelo destino, criando uma relação única e exclusiva
para cada indivíduo com seu próprio destino e sua própria
existência.
As pessoas acreditam que a uma receita infalível sobre a
felicidade a partir das escolhas feitas pelo caráter acerca da
vasta gama de opções que o destino nos dá, mas na realidade
não a uma formula para sintetizar tal conceito, visto que a
diversos tipos de caráter. Os que tentam fazer isso enganam
apenas os ingênuos. Utilizam a vida de Sócrates como a mais
perfeita possível para seguirem. Mas o próprio filosofo
considerava que o segredo de sua felicidade era a forma como
ele buscou viver a vida.

“O modelo de vida que Sócrates escolheu


para si, que construiu com esmero e
cultivou, apesar de todas as dificuldades
(chegando a pôr a morte por
envenenamento acima da perspectiva de
render-se), era perfeito para o tipo de
pessoa que ele era, mas não servirá
necessariamente para todos os que
insistem em “ser como Sócrates”. ”
(BAUMAN, 2011, p.142.)

180
As pessoas que imitam a forma de vida de outras
pessoas, o modo de felicidades delas, não são verdadeiras,
traem e enganam a si mesmas, não passam de copias malfeitas
que não terão visibilidade no mundo. Para cada ser humano
existe uma forma perfeita de ser, é aí que está uma das
maneiras para ser feliz, cabe a cada um buscar a sua.

“O que importava era a auto definição e a


autoafirmação, a disposição de aceitar que
a vida é e deve ser uma obra de arte por
cujos méritos e falhas seu “autor-ator” é
plenamente responsável. “ (BAUMAN,
2011, p.142.)

7. Albert Camus Ou: Eu me revolto, logo, nós existimos...

Na última carta do livro “44 Cartas do mundo liquido


moderno”, Bauman discuti sobre Albert Camus, escritor e
filosofo francês, que define a revolta como um movimento
contra a condição humana e contra a criação, sendo assim é a
assunção consciente de uma posição diante desse estado de
coisas na medida em que ele constitui a própria condição
humana.

“Eu me revolto, logo nós existimos”,


Camus poderia concluir. É como se o
homem tivesse inventado lógica,
harmonia, ordem e Eindeutigkeit (não
ambiguidade) como ideais só para ser
induzido, por sua condição e escolha, a

181
desafiá-las com suas práticas. (BAUMAN,
2011, p.146.)

A revolta é o movimento do homem que se volta contra as


condições em que vivem e contra sua criação, ou contra as
circunstancias de sua criação, que logo justificariam as
condições ao seu redor, ou em outras palavras, revolta consiste
na declaração do homem que se vê frustrado com as condições
da sua criação, portanto, é um NÃO dito, em alto e bom som,
contra sua situação no mundo.
A revolta por parte dos homens possui um caráter
negativo, ou melhor um caráter do não. Mas para que haja a
possibilidade de um lado negativo da revolta, tende sempre
haver um lado positivo, tem de haver um lado afirmativo. Isso
porque o homem que se revolta contra as condições em que se
encontra, se revolta em nome de algo, havendo sempre uma
carga de valor em nome do que a revolta se efetua, valor esse
que não mais permite aceitar passivamente a situação na qual
os homens estão a ser encontrados no momento.
Para que a revolta seja bem-sucedida tem de haver entre
os homens algo em comum entre si, de modo que possam
reivindicar algo, tendo um objeto em comum, para possam se
revoltar contra. Caso não haja um objeto de revolta em comum
a todos os homens, essa revolta seria infrutífera, pois não se faz
compreender entre si, portanto, os homens devem se conhecer
como iguais para poderem se revoltar.
Este reconhecimento entre si se vê necessário pela
linguagem, pois a revolta deve ser pronunciada, difundida e
182
tornada pública. Esse valor de reconhecimento entre os
homens, para Camus é passível de respeito, pois para ele pode
ser um reflexo da natureza humana, pois a revolta é uma
reivindicação motivada de uma unidade feliz contra o
sofrimento de viver e morrer.

Considerações finais

Os estudos sociológicos de Bauman permitem refletir


sobre a angustia que reina nos nossos sentimentos, angustia
essa que foi exposta pelo estudioso em seu livro: 44 Cartas do
Mundo Líquido Moderno.
O livro aborda temas do cotidiano em que estamos
inseridos, tais como relacionamentos familiares, moda,
relacionamentos sociais, economia, atitudes boas e más e
personalidade. Temas que nos surpreende devido as situações
que são geradas no mundo moderno em nossa volta.

Referências:

BAUMAN, Zygmunt. 44 Cartas do mundo líquido moderno.


Tradução de Vera Pereira. Rio de Janeiro: Zahar, 2011. 228 p.

SIQUEIRA, Vinicius. Modernidade liquida, o que é?. 2013.


Disponível em:
http://colunastortas.com.br/2013/07/22/modernidade-
liquida-o-que-e/. Acesso em: 10 de jun. 2017.

TOBLER, Giseli Caroline. O efeito Lúcifer: como pessoas boas


se tornam más. 2016. Disponível em:
http://emporiododireito.com.br/o-efeito-lucifer/. Acesso em: 11
de jun. 2017.
183
PAIOTTI, Shirley. 44 Cartas do mundo líquido moderno.
2012. Disponível em:
http://seer.uscs.edu.br/index.php/revista_comunicacao_inova
cao/article/download/1735/1275. Acesso em: 18 de jun. 2017.

184
A EUTANÁSIA: UMA REFLEXÃO SOBRE ASPECTO MORAL E
JURÍDICA, COM FUNDAMENTAÇÃO NAS TEORIAS
FILOSÓFICAS DE KANT, STUART MILL E A TEORIA DO
LIBERTARISMO

Alessandra Gomes Machado1


Adriana Pereira Casais2
Fabricio de Jesus Oliveira de Souza3
Flaviana Oliveira de Souza4
Matheus Fernandes Leão5
Vinicius José Sousa Ferreira6
René Dentz7
Resumo
O presente ensaio tem por objetivo fazer uma reflexão sobre a
eutanásia à luz da filosofia do direito. Usaremos, para isso, a
Filosofia Moral de Immanuel Kant versus o Utilitarismo de Stuart
Mill, o Liberalismo clássico e ainda o Código de Ética Médica,
como base para nossa reflexão. A eutanásia se mostra como uma
das questões mais difíceis do campo bioético, por isso mesmo
exige uma discussão filosófica de fôlego. Na filosofia moderna,
tal discussão foi proposta a partir da abordagem utilitarista e
suas concepções afins.

Introdução
A eutanásia é um tema polêmico que gera discussões e
reflexões diversas acerca de sua legalidade, de sua moralidade e

1 Graduanda em Direito na Universidade Presidente Antônio Carlos - UNIPAC-


Mariana/MG
2 Graduanda em Direito na Universidade Presidente Antônio Carlos - UNIPAC-

Mariana/MG
3 Graduando em Direito na Universidade Presidente Antônio Carlos - UNIPAC-

Mariana/MG
4 Graduanda em Direito na Universidade Presidente Antônio Carlos - UNIPAC-

Mariana/MG
5 Graduando em Direito na Universidade Presidente Antônio Carlos - UNIPAC-

Mariana/MG
6 Graduando em Direito na Universidade Presidente Antônio Carlos - UNIPAC-

Mariana/MG
7 Professor Titular da UNIPAC- Mariana/MG; Psicanalista; Membro do

International Institute for Hermeneutics/Alemanha.


185
até mesmo de sua real necessidade para o indivíduo em estado
de hipossuficiência em relação aos demais, devido a uma
provável fatalidade ocorrida com o mesmo, quer seja no
decorrer de sua vida ou até mesmo algo que ocorra antes de
nascer, como o caso das doenças congênitas.
O tema gera questionamentos como: “será que posso ter
o direito de pôr fim em minha própria vida caso me ocorra algo
que não permita que eu continue a viver com dignidade?” Outro
questionamento é: “outro indivíduo tem direito a tirar a vida de
alguém que está em estado vegetativo, só porque o mesmo
deixou autorização tácita ou até mesmo expressa?”
A luz do Direito a prática da eutanásia sem
consentimento da própria pessoa é tido como assassinato,
mesmo que o praticante deste ato pense que o ser sofrente teria
esse desejo se estivesse consciente. A justificativa de terminar
com o sofrimento alheio não serve para atenuar a gravidade do
ato. No Brasil não há norma positivada que verse sobre a
eutanásia (MASCARENHAS, 2009).
Para tratarmos do assunto, apresentaremos como forma
de informação a etimologia da palavra e também suas variadas
definições e principais diferenças como: a ortotanásia, a
mistanásia e a distanásia. Por conseguinte, discutiremos o
tema sob três pontos plausíveis, que consideramos ser os
principais argumentos a serem avaliados diante da eutanásia.
O primeiro é a interpretação filosófica e a ótica dos filósofos
sobre o tema, o eles que pensavam e afirmam diante de tal
situação. O segundo, está relacionado a perspectiva jurídica, ou

186
seja, o que juridicamente seria aceito, e qual a perspectiva do
ordenamento jurídico brasileiro sobre a eutanásia e quais
países aceitam esse tipo de tratamento. E por fim, o terceiro é a
visão do código de ética médica. No que a ética médica se
fundamenta? Será tal fundamentação suficiente em termos
argumentativos?
Não será discutida aqui a perspectiva religiosa, pois o
que se busca com este ensaio é algo mais concreto, devido ao
fato de que a ótica religiosa traz consigo alguns pré-conceitos e
dificulta o diálogo e a discussão do mesmo. Além do mais, a
abordagem religiosa toma como ponto de partida elementos
metafísicos, que são em si mesmos, enormes entraves às
discussões e impossibilitam um debate democrático, pois são
visões de grupos específicos na sociedade.

2. Etimologia e classificações

Eutanásia origina-se do grego “euthanatos”, onde “eu”


significando bom, e “thanatos” morte, conclui-se, portanto, que
seria uma boa morte, morte calma, morte serena8
Entretanto o contrário de eutanásia seria a distanásia
que corresponde a uma morte vagarosa, com sofrimento. “Tal
prática somente se assemelha a eutanásia em seu conteúdo
moral, onde ambas são eticamente inadequadas”
(CUNHA,2014).

8BARSA, Nova Enciclopédia. São Paulo: Barsa Planeta Internacional Ltda.,


2002, vol.v6.
187
A ortotanásia é quando há interrupção de recursos
médicos, com o propósito de que a natureza siga o curso
evolutivo de uma vida normal, ou seja, sem nenhum tipo de
intervenção médica (DINIZ, 2009).
Logo, para Cunha (2014, p.3) a mistanásia ou eutanásia
social, aprofunda-se em uma definição de morte miserável fora
e antes da hora, seriam aqueles pacientes que não ingressam
no sistema de saúde por ser ausente ou precário, vítimas de
erros médicos e pacientes que acabam sendo vítimas de má-
prática por motivos econômicos, científicos ou sociopolíticos.
Tal situação é incompatível com o ordenamento jurídico
brasileiro, em conformidade com o princípio da inviolabilidade
do direito à vida conforme a Constituição Federal Brasileira de
1988, no artigo 1º em seu inciso III.
“Art.1º A República Federativa do Brasil,
formada pela união indissolúvel dos
Estados e Municípios e do Distrito Federal,
constitui-se em Estado Democrático de
Direito e tem como fundamentos: (...) III -a
dignidade da pessoa humana” (BRASIL,
Constituição Federal,1988).

3. A eutanásia

A eutanásia pode ser classificada e diferenciada de várias


formas, sendo: ativa, passiva, duplo sentido, voluntária,
involuntária e também não-voluntária. Apesar das
diferenciações entre si, todas têm uma única finalidade, a de
cessar o sofrimento sentido do paciente que se encontra em
estado grave.
188
Ativa, quando provoca a morte sem
angústia do paciente, por fins
misericordiosos; passiva, conhecida como
indireta, é quando a morte do paciente
terminal, não é realizada nenhuma
intervenção médica para reanimação ou
quando se interrompe as medidas para
minorar o sofrimento; duplo efeito, dar-se
a antecipação da morte como uma
consequência indireta das práticas
médicas que são executadas visando a
atenuação do sofrimento de um paciente
terminal; voluntária, verifica-se tal prática
quando a morte é provocada em
conformidade com a vontade do paciente;
involuntária, dá-se quando a morte é
provocada contra a vontade do paciente;
eutanásia não-voluntária, provoca-se a
morte do paciente sem que o mesmo tenha
manifestado sua vontade sobre tal ato
(GOLDIM, 2003 APUD CUNHA, 2014, p.
3).

O direito à vida sendo um direito fundamental é


irrenunciável, inalienável e universal, ficando submetido a
questões éticas da vida humana e ainda ligado a problemáticas
religiosas, mas este ponto como foi dito inicialmente não
discutiremos por que o intuito do ensaio é ser mais concreto.
Sabe-se que em várias partes do mundo a eutanásia é
praticada gerando controvérsias sobre o direito a morte e o
direito à vida, devido ao fato de que todos possuem
pensamentos diversos acerca do assunto. Na teoria de Francis
Bacon em sua obra “Tratado da vida e da morte”, o autor fala
pela primeira vez na história sobre eutanásia. Essas discussões
189
sobre o tema levou um país como a Holanda a se tornar o
primeiro do mundo a adotar a eutanásia como prática legal,
isso no ano de 2001, essa discussão teve início na década de 70
pelo senado holandês.
A Bélgica em 2002, também legalizou a eutanásia,
tornando-se o segundo país no mundo a realizar a cessação da
vida por meio da eutanásia.
A eutanásia continua até hoje sem reconhecimento legal
em vários países, inclusive no Brasil e levando a eterna
discussão sobre o direito a uma morte digna versus o direito
irrenunciável à vida (CUNHA, 2014, p. 4)

4. Visão dos filósofos, código de ética médica e eutanásia

Filósofos como David Hume em sua obra On suicide,


Karl Marx em Medical Euthanasia e Schopenhauer se
posicionaram com pensamentos favoráveis à eutanásia e
suicídio assistido (CUNHA,2014, p.4).
Segundo Mascarenhas (2009), Kant define o suicídio
como sendo a intenção de autodestruição por parte do
indivíduo, ou seja, é um assassinato. Relata ainda que Kant
desconsidera os casos de morte acidental como ingestão de
uma bebida mortal, mas pensando que era algo inofensivo,
para ele isso não é suicídio e ainda os casos das pessoas que
cometem excessos e acabam por morrer em decorrência de
doenças causadas por esse excesso, como abuso de álcool
causando cirrose hepática.

190
Constata-se ainda que para Kant, para ser
considerado suicídio seria necessário obedecer a dois
critérios fundamentais que são: a morte produzida de forma
intencional e o seu resultado tem que ser obtido de forma
imediata e o ato deve ser da própria pessoa, excluindo
participação de terceiros (MASCARENHAS, 2009 APUD
WITTWER, 2001, p. 53 - 54).
Alguns filósofos dizem que a autonomia e liberdade de
escolha implica na pose sobre a vida e a ética da autonomia que
parte de muitas tradições religiosas torna a discussão abstrata,
ou seja, nada concreta. O que vai de encontro com as teorias
dos fundadores da filosofia política liberal, Jhon Locke e Kant
que se opõem à ideia de moralidade do suicídio assistido e
ainda rejeitam a ideia de que nossas vidas sejam bens para
dispormos como quisermos (CUNHA, 2014, p. 7).
Sandel9 define que o libertarismo traz a ideia contraria as
de Kant e Locke, pois são contra as leis que protegem as
pessoas contra si mesmas, afinal viola o direito do indivíduo
escolher os riscos que querem correr, como por exemplo, a
automutilação e o próprio suicídio.” Os libertários são contra o
uso da força coerciva da lei para promover noções de virtude ou
para expressar as convicções morais da maioria” (CUNHA,2014
APUD SANDEL, 2012, p.8).
Essa teoria defende que o indivíduo pode dispor do seu
próprio corpo como bem quiser, sendo assim fica subentendido

9 SANDEL, Michael. Justiça: o que é fazer a coisa certa. Rio de Janeiro:


Civilização Brasileira, 2012, p. 79

191
que a eutanásia é permitida, sendo necessária apenas a
autorização do paciente. Conforme já foi exposto sobre a teoria
entende-se que por ser dono de si mesmo, a vida do ser
humano pertence a ele mesmo, com isso não é permitido se
apoderar da vida do outro e decidir sobre ela, como por exemplo
por fim na vida de alguém, mas também traz a ideia de já que o
ser pode dispor do seu corpo como quiser, pode também vender
seus órgãos, como por exemplo um rim. Defende-se ainda o
suicídio assistido, pois se é dono da sua vida pode terminar
com a mesma a qualquer momento que ache necessário e tudo
isso sem interferência do Estado e este por sua vez não possui
direito de intervir nesses casos.
Quando analisamos sob a ótica de Stuart Mill, em sua
obra Utilitarismo, que estabelece o princípio da felicidade maior
que por sua vez é um princípio moral. Com isso considerasse
que as ações que possuem caráter moral são corretas somente
se levarem à felicidade. Estas ações baseadas na felicidade são
corretas de acordo com os meios aplicados para se chegar a um
fim útil para todos.
O fato de Mill relacionar a felicidade com prazer e a
infelicidade com a ausência do prazer, nos leva a crer que se
alguém se encontra em sofrimento intenso por uma fatalidade
que lhe ocorreu ou por uma doença que lhe acometeu, não será
moral cessar este sofrimento com o ato de findar sua vida, de
forma assistida, segura e digna? Afinal o sofrimento é o
antagonismo do utilitarismo.

192
Diante de todas as correntes filosóficas relatadas acima,
podemos pensar em eutanásia, não como o suicídio assistido
afirmado por Kant e sim por um conceito de conceder ao ser um
último prazer, que é o de morrer com dignidade e sem
sofrimento (CUNHA, 2009, p. 8).
A medicina preconiza salvar vidas ou dar aos pacientes
condições dignas para viver ou até mesmo morrer, é ato
criminoso por parte de o médico negar assistência em qualquer
situação que se encontre o paciente, sendo assim como dizer
“não” a alguém que está em agonia extrema ou até mesmo com
morte cerebral confirmada?
Embora o Código de Ética Médica (2009) dispõe em cap.
I, art. 6º, o médico deve respeito à vida humana, em benefício
do paciente, “Jamais utilizará seus conhecimentos para causar
sofrimento físico ou moral, para o extermínio do ser humano ou
para permitir e acobertar tentativa contra sua dignidade e
integridade”. Kipper10 fala que os próprios médicos reconhecem
o uso abusivo de recursos terapêuticos, sem que haja benefício
para o paciente. E lembrando que isso é punível pelo Código
Penal. Tal dispositivo é carregado de preconceitos estabelecidos
pela religião, que são transferidos de gerações a gerações
(CUNHA, 2014, p.5).
De acordo com Loch (2008, p.1) os critérios que devem
ser considerados sobre a vontade do paciente são: Critério
objetivo: aceitar o desejo do paciente. Critérios subjetivos:

10KIPPER et al., 2000 apud PITHAN, Lívia Haygert. A Dignidade humana


como fundamento jurídico das “ordens de não-ressuscitação” hospitalares.
Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004.
193
considerar os valores da vida, a qualidade de vida que o
paciente considera adequada para si, suas crenças religiosas,
argumentos morais que o indivíduo usa para justificar sua
vontade; O equilíbrio entre os critérios objetivos e subjetivos,
analisado assim qual seria a alternativa mais adequada, do
ponto de vista do paciente, para proporcionar o melhor
benefício.
A bioética surge como preocupação pelas ocorrências de
intervenção da tecnologia no ambiente natural do ser humano.
Tal campo de estudo precisa “de um paradigma de referências
antropológico moral que implica no valor supremo da pessoa,
da sua vida, liberdade e autonomia” (LOCH, 2008, p.156). No
entanto, a filosofia é a ciência que melhor pode pensar e
elaborar ideias acerca do tema.

5. Visão jurídica

De acordo com Albuquerque; Damacena (2008) pela ótica


jurídica, principalmente a brasileira, o direito à liberdade é um
direito fundamental, previsto pela Constituição Federal de
1988, dentro do título “Dos direitos e garantias fundamentais”,
onde versa sobre o direito à vida, que é inalienável e
intransferível, esse último usamos no sentido de indivíduo ter o
poder de decidir sobre o fim da vida do outro. Dessa forma
entende-se que a Carta Magna não aprova a interrupção da
vida de um indivíduo, seja por qual motivo for.
Ninguém poderá ser privado da vida em
virtude de mero alvedrio de outrem, pois o
194
direito à vida engloba tanto o direito de
permanecer vivo como também o de ter
condições mínimas de sobrevivência, além
de ter tratamento, por parte do Estado,
compatível com tal preceito
(ALBUQUERQUE; DAMACENA APUD
CHIMETI et al.2008, p.6).

A eutanásia ainda não é admitida no ordenamento


jurídico brasileiro, porque essa prática leva a colocar fim na
vida de indivíduo, impedindo que esta siga seu curso natural.
Essa prática foi considerada por muito tempo como homicídio,
mesmo que feito por compaixão para sanar as dores de um
paciente terminal, onde não existe um bom prognóstico, onde a
ciência não apresenta hipótese de reversão ou recuperação da
doença (ALBUQUERQUE; DAMACENA, 2008).
Nos dias de hoje, ainda existe ilicitude nessa prática, não
mais considerado homicídio por falta de tipificação legal
condizente, com tudo o Novo Código Penal, a eutanásia passa
ser tipificada como crime contra a vida, onde há possibilidade
de perdão judicial ou até mesmo anistia da pena.
O projeto de lei 125/96, do senador
Gilvam Borges, é o único que tramita no
Congresso Nacional para legalizar a
eutanásia, porém, jamais foi colocado em
votação. Essa lei se aprovada permite a
eutanásia, desde que uma junta de cinco
médicos ateste a inutilidade do sofrimento
físico ou psíquico do doente. O próprio
paciente teria que requisitar a eutanásia.
Se não estiver consciente, a decisão
caberia a seus parentes próximos
(OLIVEIRA FILHO, 2011).

195
A lei 125/96, traz pontos em seus artigos como: a
eutanásia será permitida em caso de morte cerebral, com
devida manifestação de vontade do paciente; a vontade deve ser
expressa como última vontade do paciente; a citada lei versa
também sobre a forma de constatar a morte cerebral; como se
faz quando a autorização é dada pela família, pré definido por
lei quem seria considerado família, prevê a possibilidade do
paciente não ter família o que levaria a necessidade de
autorização por parte do juiz, onde essa autorização é pedida
pelo médico assistente e muitos outros detalhes minuciosos
para que não haja ocorrência de prática errada, ou ainda, não
indicada.
Devido ao fato de não haver uma norma positivada sobre
o tema, a eutanásia gera divergência de opiniões dentro do meio
jurídico, dependendo assim do “entendimento” do juiz acerca do
caso julgado (OLIVEIRA FILHO, 2011).

6. Reflexão sobre a prática da eutanásia

Vamos começar supondo um caso concreto como por


exemplo o de um jovem chamado João, idade de 21 anos, que
sofreu um acidente automobilístico e ficou em estado
vegetativo, com prognóstico de piora do quadro a cada dia.
João não tem mais nenhuma esperança de recuperação
ou reversão do quadro, somente sobrevive, sim porque ele não
vive, apenas sobrevive ao fatídico acidente e seus familiares
relatam que ele em conversa informal durante um churrasco da

196
família, deixou claro que se algo semelhante lhe acontecesse
não queria ficar “vivendo a poder de aparelhos”, diante dessa
lembrança de vários familiares, seus pais resolvem pedir aos
médicos que desligassem os aparelhos, contudo o médico chefe
da equipe, informa a eles que é necessário uma autorização
judicial para tal procedimento e começa uma saga em busca da
mesma.
O primeiro julgamento o juiz indeferiu o pedido, mas a
família recorre a ajuda de órgão defensores da causa de “morrer
com dignidade” e a batalha continua e João ali, em sofrimento
intenso, para manter um corpo que já não tem mais autonomia.
Diante do caso, fomos levados a refletir sobre o que Kant
afirma, “que o ser não pode dispor de sua vida, nem de outrem
por qualquer motivo, tendo que seguir o curso natural da vida”
(MASCARENHAS, 2009). Quando analisamos a teoria
utilitarista de Mill, João naquele momento está em condição de
infelicidade pelo seu quadro de saúde e o fato de sua vontade
previamente expressada à família não está sendo respeitada, o
filósofo afirma que temos que primar pela “Felicidade Maior” é
nosso ordenamento jurídico como já foi dito anteriormente não
há norma positivada para legalizar tal ato.
Mas temos a inclinação para corroborar com a ideia de
Mill, que seria proporcionar a “Felicidade Maior” a João,
colocando fim não em sua vida, mas sim em seu sofrimento,
considerando também o direito à dignidade humana (AÑEZ,
2015).

197
Considerações finais

Durante a elaboração deste ensaio, foi possível fazer


considerações que nos levaram a concluir que a eutanásia é um
tema realmente gerador de opiniões divergentes dentro das
correntes filosóficas, no âmbito jurídico e até mesmo no meio
médico, que é ordenado pelo código de ética médica e esse por
sua vez visa resguardar a vida humana, mas não de qualquer
forma e sim com segurança e dignidade. Podemos perceber
então que tudo isso é acompanhado da opinião do grande
filósofo Kant, que afirma o dever de manter a vida. Em
contrapartida, é necessário levar em conta que a pessoa tem o
direito de escolha, podendo dispor de seu corpo como bem
entender, sem necessidade de interferência do Estado o que
vimos com a teoria do libertarismo.
O Libertarismo afirma que a pessoa deve ser livre para
desistir de sua vida, não se justifica como foi dado por exemplo
o caso do paciente João, onde o ele passa sofrimento intenso e
os recursos médicos apenas prolongaram sua a dor.
Para nós o Estado deve apenas garantir os direitos
fundamentais do cidadão sem ferir o princípio da dignidade
humana.
O direito à vida é irrenunciável na proporcionalidade de
que não comprometa o direito à dignidade, sendo assim quando
a própria pessoa abre mão desse direito de inviolabilidade, nada
mais justo que respeitar sua vontade, ou ainda em caso de
constatação por uma junta médica que a possibilidade de

198
reversão do quadro clínico ou cura é nula, podemos sim pensar
em conceder este último alívio ao ser sofrente.

Referências

ALBUQUERQUE, Luênea Leite de; DAMACENA, Francisca


Edineusa Pamplona. EUTANÁSIA E O DIREITO À LIBERDADE
SOB A PERSPECTIVA JURÍDICA E FILOSÓFICA NO ESTADO
DEMOCRÁTICO DE DIREITO. 2008. Disponível em:
<www.pucrs.br/bioetica/cont/jussara/metodologiadeanalise.pd
f>. Acesso em: 16 out. 2017.

AÑEZ, Camila. EUTANÁSIA ATIVA VOLUNTÁRIA: UMA


DEFESA UTILITARISTA. 2015. Disponível em:
<https://www.marilia.unesp.br/Home/RevistasEletronicas/Kin
esis/15_camilaanez1.pdf>. Acesso em: 16 out. 2017.

CUNHA, Maria Carolina Santini Pereira da. EUTANÁSIA:


DILEMA MORAL EM PERSPECTIVA FILOSÓFICA. 2014.
Disponível em: <https://www.univali.br/graduacao/direito-
itajai/publicacoes/revista-filosofia-do-direito-e-
intersubjetividade/edicoes/Lists/Artigos/Attachments/136/3.0
2 - EUTANÁSIA DILEMA MORAL EM PERSPECTIVA.pdf>.
Acesso em: 15 out. 2017.

DINIZ, Maria Helena. O Estado Atual do Biodireito. 6. ed. São


Paulo: Saraiva, 2009.
LOCH JA, Gauer GJC, Casado M. Bioética,
interdisciplinaridade e prática clínica. Porto Alegre:
EDIPUCRS, 2008; p. 303-317.
MASCARENHAS, Camila Pinheiro. KANT E A EUTANÁSIA:
COMO UM CLÁSSICO DA FILOSOFIA RESPONDERIA A UM
PROBLEMA COLOCADO PELA MEDICINA
CONTEMPORÂNEA? 2009. Disponível em:
<http://www.pgcl.uenf.br/2018/pdf/COGNICAO_6587_130823
5910.pdf>. Acesso em: 15 out. 2017.

OLIVEIRA FILHO, Jorge Águedo de Jesus Peres de. Eutanásia é


199
uma afronta à lei vigente e às leis da vida. 2016. Disponível
em: <https://www.conjur.com.br/2011-nov-12/eutanasia-
afronta-lei-vigente-leis-vida>. Acesso em: 16 out. 2017.

OLIVEIRA FILHO, Jorge Águedo de Jesua Peres de. Eutanásia:


aspectos jurídicos e bioéticos. 2011. Disponível em:
<http://www.ambitojuridico.com.br/site/index.php/Ricardo
Antonio?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=10834&revist
a_caderno=15>. Acesso em: 16 out. 2017.

200
IMPORTÂNCIA DA ARGUMENTAÇÃO NO ÂMBITO DO
DIREITO CONTEMPORÂNEO
Raquel Araújo1,
Magna Campos2

Resumo:

Este ensaio escrito a duas mãos, aluna e professora, objetiva


abordar a questão da argumentação dentro do âmbito jurídico,
discutindo sua importância e as contribuições da nova retórica
para o avanço dos estudos da lógica como uma das técnicas
argumentativas, distinguindo a demonstração da argumentação,
a verdade da validade e apresentando alguns dos principais
argumentos lógicos.

Introdução

Nascida na Idade Antiga, especialmente na Grécia, local


em que surgiu o estudo da argumentação de forma sistemática
e produtiva, os estudiosos do assunto têm buscado desde
então, mas de forma mais acentuada, nas últimas décadas, um
aprimoramento da desenvoltura na arte-técnica da
argumentação. Especialmente, no que diz respeito ao Direito,
em uma sociedade democrática, chegamos à
contemporaneidade com a sugestão dos pensamentos filosóficos
e a determinação de que um argumento de qualidade gera um
referencial de melhor envergadura e respeitabilidade nas
questões dialéticas colocadas sobre apreciação do judiciário.
Por meio da argumentação objetiva podemos vislumbrar um

1 Graduanda em Direito, FUPAC- Mariana


2 Mestre em Letras, professora universitária e escritora.
201
horizonte ampliado, porque acompanha o surgimento de uma
nova retórica, com características de lógica, racionalidade e
organização, nada simplistas ou acríticas no entendimento de
sua objetividade tensionada.
Em termos etimológicos, “a palavra argumentação vem
do latim argumentum, de arguere, que significa tornar claro,
demonstrar, de uma base Indo-Europeia ARG, “brilhar, ser
claro”, sendo assim, “um argumento adequado brilha como
prata polida numa conversa”3. Já a palavra retórica tem origem
“no termo grego rhetorike, que significa a arte de falar bem, de
se comunicar de forma clara e conseguir transmitir ideias com
convicção”4.
Podemos considerar, em um primeiro momento, que os
argumentos na seara jurídica nada mais são que formas de se
manifestar para uma plateia sentimentos, motivos, ideias,
razões, raciocínios lógicos e imagens, partindo-se de um ponto
inicial e chegando-se a um ponto conclusivo, com permeios
através de uma retórica dialética. Esse conjunto de elementos
tanto racionais quanto emocionais forma o objeto de estudo da
Retórica, e, este ensaio tratará de alguns destes elementos.

2. A argumentação no Direito: importância

Antes, porém, é preciso reforçar que é importantíssimo


que os profissionais do Direito dominem a técnica do

3 Site de consulta etimológica Origem das Palavras. Disponível em:


http://origemdapalavra.com.br/site/palavras/argumento/
4 Site de consulta de significados. Disponível em:
https://www.significados.com.br/retorica/
202
convencimento e da persuasão, porque não é à toa que ela vem
se desenrolando e evoluindo juntamente com a humanidade,
acompanhando a globalização e a tecnologia de ponta, nunca
sendo dispensada, pelo contrário, cada vez mais empregada. O
bom nível de desempenho argumentativo do profissional
contribui para a adesão do juiz e dos demais componentes
envolvidos num processo defendido à luz do século XXI, onde o
que paira não são as luzes do iluminismo, mas sim a urgência
do andamento de processos e a qualidade do serviço de
atendimento ao público, pois, em todos os critérios, o bom
atendimento está atrelado ao compromisso do bom desempenho
e à satisfação do cliente, independente de sua situação
econômica ou raça ou origem, pelo menos em tese esse é o ideal
ético da profissão. .
Como ressaltam alguns dos mais renomados estudiosos
da argumentação jurídica no Brasil, pode-se compreender que
ninguém
duvida que a prática do Direito consista,
fundamentalmente, em argumentar, e
todos costumamos convir em que a
qualidade que melhor define o que se
entende por um „bom jurista‟ talvez seja a
sua capacidade de construir argumentos e
manejá-los com habilidade. (ATIENZA,
2003, p. 17 apud OLIVEIRA; CAMPOS,
2016, p. 73).

E, ainda que
A argumentação é tão imprescindível ao
operador do Direito quanto o
conhecimento jurídico. [...] Sem
203
argumentação, o Direito é inerte e
inoperante, pois fica paralisado nas letras
da lei, no papel. [Isso porque] os
argumentos são também a própria
essência do raciocínio jurídico. [...]
[Portanto,] quem mais argumenta, melhor
opera o Direito, melhor o aplica.
(RODRIGUEZ, 2005, p. 5-6 apud
OLIVEIRA; CAMPOS, 2016, p. 73)

A temática, além da importância sabida, vem recebendo


ainda mais atenção após a entrada em vigor do Novo Código de
Processo Civil (NCPC), tendo em vista que o documento traz
em seu artigo 489, no parágrafo 1º, o dever de o juiz
fundamentar de forma substantiva as decisões judiciais, nas
quais se deve primar pelo ônus da dialeticidade5 e pelo ônus
argumentativo6. De acordo com o disposto no artigo
mencionado:

§ 1o Não se considera fundamentada


qualquer decisão judicial, seja ela
interlocutória, sentença ou acórdão, que:
I - se limitar à indicação, à reprodução ou
à paráfrase de ato normativo, sem explicar
sua relação com a causa ou a questão
decidida;
II - empregar conceitos jurídicos
indeterminados, sem explicar o motivo
concreto de sua incidência no caso;
III - invocar motivos que se prestariam a
justificar qualquer outra decisão;

5 De cotejar as principais argumentações das partes e não apenas a que tem


mais a ver com sua decisão.
6 Não apenas dizer a decisão, mas fundamentá-la e defendê-la, mostrar a

relação entre causa e decisão.


204
IV - não enfrentar todos os argumentos
deduzidos no processo capazes de, em
tese, infirmar a conclusão adotada pelo
julgador;
V - se limitar a invocar precedente ou
enunciado de súmula, sem identificar seus
fundamentos determinantes nem
demonstrar que o caso sob julgamento se
ajusta àqueles fundamentos;
VI - deixar de seguir enunciado de súmula,
jurisprudência ou precedente invocado
pela parte, sem demonstrar a existência de
distinção no caso em julgamento ou a
superação do entendimento. (BRASIL, Lei
13.105, 2015)7

A decisão judicial quer seja interlocutória, sentença ou


acórdão que violar as obrigações acima dispostas, será
impugnável. Desta forma, o NCPC enfatiza a garantia
constitucional de a parte obter uma decisão fundamentada
substancialmente. O que, de certa forma, leva a entender que,
se o juiz precisa realizar a fundamentação analítica, as partes
assim também o devem proceder, portanto, o advogado do autor
não pode limitar a pretensão em juízo a apenas fazer a
indicação, a reprodução ou a paráfrase da lei, da jurisprudência
ou da doutrina, sem explicar e/ou argumentar sua relação de
causa com o caso concreto. Estabelecendo-se, desta forma o
ônus argumentativo, entretanto, alguns autores, como é o caso
Sivolella (2016) explicam que esse ônus refere-se aos

7 BRASIL. Lei 13.105 de 16 de março de 2015: dispõe sobre o Novo Código


de Processo Civil. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm
.Acesso em: 03 jun. 2017.
205
argumentos relevantes à lide, mas não a todo e qualquer
argumento apresentado.

Assim,
A „tridimensionalidade‟ do contraditório
busca elevar o papel do Juiz que concede a
oportunidade de manifestação, ao Juiz que
efetivamente considera as razões
expendidas pelas partes na sua convicção,
como meio de construção participativa da
fundamentação das decisões judiciais, que
remete, volto a dizer, à fundamentação
ampla dos argumentos relevantes à
resolução da lide, e não de „todo e
qualquer‟ argumento apresentado. Essa é
a compreensão „segundo a Constituição‟
que deve permear a fundamentação
substantiva da sentença. (SIVOLELLA,
2016, 161)8

Se aprender sobre argumentação e a argumentar


adequadamente já era desejável aos estudantes e necessário
aos profissionais do direito, pós NCPC, isso se torna pré-
requisito indispensável.

O conhecimento jurídico propriamente dito


representa, então, uma série de
informações que se encontram à
disposição do argumentante, mas elas por
si mesmas não garantem a capacidade de
persuasão. Informações puras não se
combinam, não fazem ninguém chegar a
conclusão alguma, a não ser que sejam

8SIVOLELLA, Roberta Ferme. A sentença e a fundamentação substantiva no


novo CPC. Revista Fórum Trabalhista, Belo Horizonte, ano 5, n. 20, p. 153-
163, jan./mar. 2016.
206
intencionalmente dirigidas, articuladas
para convencer alguém a respeito de algo.
(RODRÍGUEZ, 2005, p. 6)9

Neste sentido, o estudo da argumentação via lógica


clássica, além de outros elementos pertencentes à teoria e
prática argumentativa10, tem muito a contribuir para a
formação do profissional da área.

3. Nova Retórica: argumentação versus demonstração

Nos fins dos anos 50 e princípio dos anos 60 do séc. XX,


surgiu uma nova corrente que deu uma renovada na retórica,
uma nova retórica, com discurso mais objetivo, com técnicas
eficazes, tanto para plateia de pessoas simples e do povo quanto
para plateia especializada (auditório leigo e auditório
especialista). Um dos grandes responsáveis pela nova retórica é
o autor belga Chaim Perelman.
A proposta da Nova Retórica de Perelman é capaz de
reformular o pensamento jurídico contemporâneo e o
desvinculá-lo do pensamento positivista e, ainda, trazer à tona
o juízo de valor (devendo pensar nos fatos a ponto de dar-lhes
valor).
Um dos grandes ensinamentos deste estudioso e também
ratificado por Rodriguez (2005); Valverde, Fetzner e Tavares

9 RODRÍGUEZ, Víctor Gabriel. Argumentação jurídica: técnicas de persuasão


e lógica informal. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
10 Convencer, persuadir, manipular, argumentação falaciosa, argumentação

não falaciosa, sistema retórico dentre outros, por exemplo.


207
Junior (2013) refere-se à distinção entre argumentação e
demonstração.
Perelman (1998) demonstra uma teoria da argumentação
ou da retórica contra o racionalismo (Descartes) e o positivismo
(Auguste Comte), nela os autores desenvolvem a sua teoria
(contra o racionalismo) esforçando-se por valorizar o verossímil
relativamente ao necessário e por destacar a importância das
opiniões por comparação com os fatos.
Neste sentido Valverde, Fetzner e Tavares Junior (2013,
p. 9-10) ressaltam que
Enquanto a demonstração busca a
verdade, a argumentação preocupa-se com
a adesão do auditório [...], a demonstração
opera-se por axiomas – premissas
consideradas evidentes e que, por isso,
não precisam ser comprovadas; a
argumentação não recorre a axiomas, mas
às teses – proposições que precisam ser
sustentadas pelo orador e cuja aceitação
dependerá de sua maior capacidade de
persuasão [...] a demonstração [independe]
do momento histórico e do lugar em que
for empregado. De maneira distinta, o
argumentador, para alcançar a adesão
Ciências Humanas e Sociais | Aracaju | v.
3 | n.3 | p. 69-86 | Outubro 2016 |
periodicos.set.edu.br Cadernos de
Graduação | 73 de seu auditório, não
pode desconsiderar a historicidade e a
temporalidade em que se inserem seus
destinatários [...] O que se pretende
mostrar é que o argumentador, para
sustentar sua tese, inúmeras vezes,
necessita de um conjunto de informações
prévias (base probatória mínima), a partir
do qual produzirá seus argumentos. Ou
208
seja, a demonstração poderá ser utilizada
a serviço da argumentação.

Assim, as premissas no raciocínio jurídico não são


propriamente dadas, mas escolhidas. O orador que as elege
(advogado, promotor, juiz) deve, de início, buscar compartilhá-
las com seu auditório (juiz, júri, tribunal, opinião pública etc.).
Desta forma, por exemplo, o promotor, no júri, descreve
detalhadamente a cena do crime, com o intuito de despertar
nos jurados a certeza da culpa do acusado. Se conseguir, essa
terá sido a versão dos fatos que a prevalecer, mesmo que a
realidade tenha sido eventualmente outra.

A argumentação não visa à adesão a uma


tese exclusivamente pelo fato de ser
verdadeira. Pode-se preferir uma tese à
outra por parecer mais equitativa, mais
oportuna, mais útil, mais razoável, mais
bem adaptada à situação. (PERELMAN,
1998, p. 156)

A argumentação preocupa-se, portanto, com o verossímil,


ou seja, com o passível de verdade. Verossímil, segundo Citelli
(1988, p. 14), "é, pois, aquilo que se constitui em verdade a
partir de sua própria lógica”, ou seja, aquilo que é razoável,
plausível e coerente.
Mesmo o argumento demonstrativo, porém, no que
concerne à discussão sobre verdade/verossimilhança, permite
esta última porque a verdade material/real dos fatos é difícil de
ser alcançada, mesmo com a utilização de argumentos ou

209
raciocínios demonstrativos. E a argumentação pode relativizar
essa verdade.

4. O papel da lógica como técnica argumentativa:

Victor Gabriel Rodriguez (2005) ensina que a lógica vem


da Filosofia, que a todo tempo questiona e estuda problemas
fundamentais, assume uma característica de análise crítica e se
baseia na razão e no pensamento racional como forma de
determinar conclusões a partir de premissas e argumentos de
uma verdade universal.
Assim sendo, quando o profissional está gerenciando
uma boa argumentação lógica, o raciocínio está no sentido
lógico, pois trabalha para não contradizer a apresentação
quanto à ideia central e usa a versão de verdade defendida
como fundamento objetivo, a fim de amparar a tese e de
convencer a todos de sua autenticidade como fundamentação.
Para o direito é importante ter bons argumentos, saber
argumentar é essencial, com conhecimento da causa, com
explanações objetivas e poder de convencimento dentro da
verdade observada e dos argumentos válidos para obtenção de
uma lógica com princípio, meio e fim.
Neste âmbito, os profissionais do Direito utilizam
premissas legais em devida coerência com a Lei, com a
jurisprudência, com a versão dos fatos para concluírem
silogismos jurídicos para conquistar o convencimento do
auditório, com extrema noção de conduta em prol da

210
organização, a isso chamamos de utilização da premissa maior
(afirmação de caráter sustentar e geral). Quando não há
concordância da lei no contexto do caso, o orador emprega
também mecanismos pertinentes à lógica, para sustentar a
tese, com verossimilhança no exposto ao coletivo.
Seguindo a lógica, apresenta os fatos através da
premissa menor (afirmação de caráter mais restrito), com
intuito de mostrar todos os meios de provas e dentro das
normas legais e presunções cabíveis para incorporar a realidade
e os possíveis pontos para análise da sentença. Na sequência,
torna-se indispensável a conclusão do raciocínio lógico,
levando-se em conta a lei e o delito, para adesão com interesses
e valores dos interlocutores que primam pelo critério de
exposição para consequente julgamento. Mas é preciso
considerar-se que

A argumentação não visa à adesão a uma


tese exclusivamente pelo fato de ser
verdadeira. Pode-se preferir uma tese à
outra por parecer mais equitativa, mais
oportuna, mais útil, mais razoável, mais
bem adaptada à situação. (PERELMAN,
1998, p. 156)11

Em termos lógicos, o orador pode se se basear em


provas, em sustentações conceituais, em depoimentos entre
outros, pois só assim terá como demonstrar que seus
argumentos são consistentes. Alguns dos principais tipos de
argumento são os seguintes:

11 PERELMAN, Chaim. Lógica jurídica. São Paulo: Martins Fontes, 1998.


211
Argumento de autoridade: une-se à credibilidade,
compreensão e segurança, à facilidade de construção dos
discursos em texto no qual o orador cita um especialista
renomado. O argumento de autoridade possui uma
falácia correspondente, tratando-se de mau uso da
autoridade, que é a ad verecundiam, chamada também
de argumentum magister dixit (RODRIGUEZ, 2005).

Argumento de prova: uma pessoa só pode ser


considerada culpada se for provado (art.5° da CF/88)
(isso pelo menos até o julgamento do Habeas Corpus
126.292/SP, de 17 de fevereiro de 2016), neste contexto,
o uso de provas como testemunhos, perícias, laudos,
documentação, vídeo, áudio, fotografias etc. podem
auxiliar bastante na argumentação.

Argumento de fuga: é aquele que é empregado para se


desviar da realidade, mostrando que o indivíduo não é
culpado, mas sim vítima do meio em que vive, pois
possui qualidades. Este argumento mexe com o
emocional do auditório e leva à piedade e um sentimento
que foge para a subjetividade da verdade.

Argumento pelo absurdo: “esse tipo de argumento


consiste em considerar, momentaneamente, a tese
contrária, após isso, o orador começa a analisar cada
parte da tal tese a fim de desconstruí-la até constatar
seu absurdo” (VALVERDE; FETZNER; TAVARES
JÚNIOR, 2013 apud OLIVEIRA; CAMPOS, 2016, p.79 ).
212
Serve de exemplo quando o orador faz analogia a outro
crime e ao desfeixo do final em que o acusado sai livre
por estar incluído moralmente na mesma lista. Conclui-
se que o réu deve ser liberto porque milhares de pessoas,
as quais praticam o mesmo delito não estão presas e os
presídios não comportariam tantos indivíduos.

Argumento contrario sensu: está relacionado à não


produção de provas contra o réu, tudo o que a lei não
proíbe é permitido (art. 29 do CP). Está fundamentado no
artigo 5º da Constituição Federal de 1988, o qual no seu
inciso II diz: “Ninguém será obrigado a fazer ou deixar de
fazer alguma coisa senão em virtude de lei”. (BRASIL,
1988 apud OLIVEIRA, CAMPOS, 2016, p. 80)

Argumento por analogia: se existem dois argumentos


semelhantes deve haver, também, decisões iguais nos
mesmos termos a posteriori. No âmbito jurídico a
analogia remete ao uso de jurisprudência.

Argumento de sensu comum: é o que leva em conta a


capacidade natural de crenças e conhecimentos em
relações sociais tradicionalmente. Está relacionado com
o saber popularizado que advém da experiência.

Argumento a fortiori: é o argumento baseado na razão


mais forte ou com muito mais razão. Nele se estabelece
uma relação hierarquizada entre duas premissas. Como
exemplo, Oliveira e Campos (2016, p. 81) citam a

213
seguinte situação “se quem comete furto merece punição,
com maior razão, deve ser punido aquele que praticou
roubo”.

Argumento Naturalista: é o argumento que demonstra


que o indivíduo cometeu o delito sem intenção de lesar
terceiros, mas sim para salvar a si e a outrem. Exemplos
do estado aludido são: “violação de domicílio para acudir
vítima de crime ou desastre”; “subtração de alimentos
para salvar alguém de morte por inanição” e “aborto
praticado por médico quando não há outro meio de
salvar a vida da gestante” (PERELMAN, 2004, p. 415
apud OLIVEIRA, CAMPOS, 2016, p. 82).

Argumento Silogístico: com base na lei, é o que tem


premissa maior (a lei ou correspondente), premissa
menor (fato/caso) e uma conclusão lógica inferida da
relação entre a lei e o fato, o que determina o silogismo
da sentença.

Esses são alguns dos argumentos possíveis, mas há


muitos outros que podem ser empregados no Direito, que
poderão ser abordados em ensaio futuro.

Considerações finais:
A argumentação depende em primeiro lugar da condição
do profissional do Direito de conhecer as leis e ter pleno
desenvolvimento do conhecimento jurídico, de posse desses
conhecimentos, o profissional pode se valer dos inúmeros

214
recursos da argumentação para conquistar a adesão do
auditório a sua tese. Neste sentido, a nova retórica pode
fornecer ampla possibilidade para o orador no emprego do
argumento mais adequado para cada ocasião.
Deve-se lembrar também que todo argumento é passível
de contestação, de problematização e contraposição com a
realidade.
Referência:

OLIVEIRA, Monique Andrade; CAMPOS, Cláudia Lais Costa da


Silva. Um Estudo Acerca da Importância da Argumentação no
Âmbito Jurídico, Aracaju, Caderno de graduação Ciências
Humanas e Sociais, v. 3, n.3, p. 69-86, 2016, out. 2016.
Disponível
em:https://periodicos.set.edu.br/index.php/cadernohumanas/
article/viewFile/3337/1962 Acesso em: 14 set. 2017.

PERELMAN, Chaim. Lógica jurídica. São Paulo: Martins


Fontes, 1998.NUNES, Alvaro .Crítica, 2015 . Lógica

RODRÍGUEZ, Víctor Gabriel. Argumentação jurídica: técnicas


de persuasão e lógica informal. 4. ed. São Paulo: Martins
Fontes, 2005.

SOUZA, Paulo Rogério Areis de. A importância da lógica e da


argumentação para os profissionais do direito. InRio Grande,
Revista: Âmbito Jurídico, Rio Grande , XII, n.61, fev. 2009.
Disponível em: http://www.ambito-
juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&
artigo_id=5992. Acesso em: 14 set. 2017.

VALVERDE, Alda da Graça Marques; FETZNER, Néli Luiza


Cavalieri; TAVARES JUNIOR, Nelson Carlos. Lições de
Argumentação jurídica: da teoria à prática. 2.ed. rev. e ampl.
Rio de Janeiro: Forense, 2013.

215
UMA ABORDAGEM JURÍDICO-ANTROPOLÓGICA A PARTIR
DE PAUL RICOEUR

Patrícia Magalhães1
Alisson Machado2
René Dentz3

Resumo:
Neste ensaio analisamos quem é o sujeito de direito a partir da
concepção de Paul Ricoeur e buscamos identificar os agentes
responsáveis pela constituição do sujeito capaz de direitos e
deveres. A base de toda investigação a partir de Ricoeur,
consiste na constituição do juízo que implica no reconhecimento
do sujeito capaz, este que emerge da dimensão ética e moral. O
conceito de capacidade afirma a condição que o indivíduo tem de
ser autor de suas ações. A capacidade de se narrar, de fazer, de
se designar, de se assumir responsavelmente e da linguagem,
mostram a afirmação de um sujeito capaz de dizer algo e ser
reconhecido por isso. O sujeito de direito é o sujeito capaz
inserido em um contexto político e comunitário, tendo como base
a relação “eu-tu” que envolve o caráter do indivíduo e a
fidelidade do sujeito como forma de promessa. A capacidade de
agir do sujeito levando em conta a intenção, cria contratos que se
estendem para o futuro.

Introdução

A personalidade e a capacidade constituem o marco


teórico central para a compreensão da formação do homem. A
personalidade é o conjunto de características marcantes de

1Graduanda em Direito, 2º período pela FUPAC Mariana.


2Graduando em Direito, 2º período pela FUPAC Mariana.
3 Professor Titular da FUPAC Mariana; Psicanalista; Membro da Ricoeur

Society/EUA; Membro do International Institute for Hermeneutics/Alemanha.


216
uma pessoa, é baseada em sua individualidade pessoal e social,
referente ao pensar e agir, mas também é aplicada ao sujeito de
direito e está associada à qualidade para ser este sujeito. A
capacidade é a forma de exercitar a personalidade através das
relações jurídicas.
Sabemos que todas as pessoas possuem capacidade de
direito, sendo assim, adquirem direitos e deveres, e mesmo que
por algum motivo sejam qualificados como incapazes no âmbito
civil4, ainda assim, terão seus direitos resguardados.
O indivíduo se compreende quando narra suas próprias
experiências, a ação humana pode ser considerada um texto
passível de interpretação. A interpretação é o método que gera
uma verdade para si mesmo, com ela é possível se imaginar em
cada situação e compreender as ações na singularidade de cada
um.
Partindo dessas definições nos perguntamos: Quem é o
sujeito de direito? Propomos neste ensaio buscar entender a
constituição do sujeito consciente de seus direitos e deveres a
partir do pensamento de Paul Ricoeur.
O conceito de sujeito de direito em Ricoeur constrói-se a
partir da capacidade, esta, pressupõe a condição de o indivíduo
ser o autor de suas ações, permitindo-se a faculdade de agir
livre e conscientemente segundo seu juízo.

2. Do sujeito capaz ao sujeito de direito

4 BRASIL. Novo Código Civil Brasileiro. Lei nº 10.406 de 10 de janeiro de


2002.
217
Os estudos de Ricoeur, partem da investigação das
condições que definem o sujeito como capaz, buscando esta
resposta a partir do questionamento de quem é o sujeito de
direito.
Ricoeur em seu texto “Quem é o sujeito de direito?” dá
ênfase para a pergunta “Quem?” (quem fala?, quem faz?, quem é
responsável por seus atos?, quem narra?), sendo esta pergunta a
responsável por criar questões e dúvidas em relação a
identificação do sujeito de direito.
Separando o binômio “sujeito capaz” podemos identificar
o que ele representa. Dessa forma, podemos observar o sujeito
como indivíduo inserido em um contexto, e o capaz nos remete
ao discernimento de alguém nos seus atos provindos de direitos
e deveres na consciência de responsabilidade.
Com isto, tomamos como sujeito capaz, aquele indivíduo
inserido num certo contexto e tendo a capacidade de agir
segundo sua faculdade e consciente das consequências de seus
atos, como vemos de acordo com Bentes e Salles (2011, p. 108):

O conceito de capacidade pressupõe a


condição de o indivíduo ser o autor de
suas ações, sobre quais direitos e deveres
advindos desse “poder-fazer” serão
depositados, ou seja, permitindo-se a
faculdade de agir livre e conscientemente
segundo o seu juízo.

Ricoeur ressalta a pergunta “Quem?”, e dessa forma,


destaca a possibilidade de o homem denominar-se responsável
218
por seus atos. Há uma relação essencial entre a pergunta
Quem? e a locução verbal “Eu posso”, segundo Bentes e Salles
(2011, p. 108) “o ponto axial da interrogação é a identificação
do sujeito da fala, da ação e da narrativa.” Sendo assim, o
homem é capaz de construir a sua identidade pessoal a partir
da sua capacidade de manifestar-se oralmente ou a partir da
escrita e da sua capacidade da linguagem narrativa.
Contudo, apenas o conceito de capacidade, não é por si
só capaz de construir o direito, dando apenas certa noção sobre
este. Deve-se também considerar o chamado homem falante,
que pode ser compreendido pelo indivíduo capaz de expressar
por meio de código, criando assim uma relação entre as partes,
gerando a capacidade de falar algo e ser ouvido, de reconhecer e
respeitar o outro e de atribuir a alguém uma ação. Esta relação
estabelecida através da comunicação deve partir do princípio da
reciprocidade, uma vez que a visão do outro como seu
semelhante reforça as relações de justiça a partir da eticidade.
Desta forma, tendo linguagem como forma de interação num
contexto de reciprocidade, considera-se também as relações
interpessoais na criação de uma relação tríade do ethos da qual
fazem parte solicitude, instituições justas e estima de si,
conforme diz Bentes e Salles (2011, p. 110):

O sujeito capaz fala, dirige-se ao outro


seguindo a regra da reciprocidade,
mediante um código linguístico – a
linguagem –, em instituições justas,
ancorado em códigos éticos (ideia de bem)
e morais (obrigações), formando uma base

219
fiduciária da qual irá decorrer a noção de
autoestima e autorrespeito.

Segundo Tarrega (2012), o sujeito capaz é aquele que


pode ser avaliado, suas ações são boas ou más e ele pode ser
digno ou não da admiração e respeito do outro e essa
possibilidade de atribuir valor aos atos do sujeito capaz é para
Ricoeur essencial para se chegar ao sujeito de direito.

É aqui que a noção de sujeito capaz atinge


seu mais elevado significado. Nós mesmos
somos dignos de estima ou respeito desde
que capazes de considerar boas ou más,
declarar permitidas ou proibidas as ações
alheias ou nossas. (RICOEUR, 2008 apud
TARREGA, 2012)

Para que o indivíduo possa ser considerado sujeito de


direito, além de ser um sujeito capaz, deve também fazer parte
de um meio comunitário e político.
Ao agir o sujeito cria uma relação “eu-tu”. Usaremos
como exemplo a ação da fala que é a primeira manifestação do
agir e a partir dela pode-se determinar todas as outras formas
de ação. Ao falar direcionamos esta fala a alguém, e do ato
desse diálogo, criam-se sujeitos de direito quando um é capaz
de se reconhecer no outro por acreditar na sinceridade deste.
No entanto, apenas essa relação ainda não é o suficiente para a
formação completa do sujeito de direito, é necessária a
materialização do eu mesmo como o outro e essa materialização

220
acontece a partir da promessa, que é a palavra mantida, a
fidelidade ao que foi prometido. O caráter é importante, mas
apenas pelo caráter dos indivíduos não existe a possibilidade de
se construir a fidelidade que é marcada pela promessa.

Essa promessa vai além do si, mas deve sempre andar


junto com o caráter. Percebemos então que a identidade do
sujeito de direito só pode ser mantida quando se é fiel a aquilo
que se promete, é a partir da promessa feita ao outro que a
fidelidade nasce.

O si é, portanto, o sujeito que assume a


dialética de sua identidade, na
perpetuação de seu caráter (idem) e na
manutenção de sua palavra e promessa
(ipse). É aquele que acompanha a história
de suas transformações, para por a
experiência da alteridade; é o sujeito que é
agente de suas ações, e paciente, no gozo
ou na dor dos outros (GARRIDO, 2002, p.
130).

A capacidade de agir do sujeito levando em conta a


intenção cria contratos que se estendem para o futuro.
Após expor a consciência da promessa no instante inicial
em relação a qual o mal vem em contraste, estudaremos a
maneira pela qual a consciência do culpado estará na medida
de expressar sua confissão diante dos homens. Para aquilo que
concerne o culpado, seguiremos o percurso proposto por
Ricoeur no epílogo de La mémoire, l´histoire, l´oubli nos seus
parágrafos intitulados “L´odyssée de l´esprit du pardon”. A ação

221
se distingue da obra e do trabalho pela sua temporalidade
própria, o trabalho se consuma em sua consumação, a obra
pretende durar indefinidamente, a ação quer simplesmente
continuar. Ela se distingue ainda pela sua inscrição direta na
pluralidade, que expõe sua fragilidade: irreversibilidade que
impacta a pretensão de tornar o ato absoluto, ao qual replica o
perdão, a imprevisibilidade que toca as consequências da ação,
a que responde a promessa. Essas faculdades simétricas são
aquelas do homem que age na pluralidade. Do lado do perdão,
a liberdade e seu complemento jurídico, a sanção, um e outro
interrompem o ciclo da violência. Dessa forma, é reencontrado o
caminho de ligação da reciprocidade entre perdoar e punir.

Ricoeur aborda de forma precisa essa simetria entre


promessa e perdão, a promessa tendo uma inscrição política
direta que não tem o perdão. A promessa é como a “memória da
vontade”. Ela é a força vital com a qual o homem renova, para
além da força do esquecimento que o tinha neutralizado em
uma ordem determinada. Ela aparece como uma memória,
memória da vida, memória de um si vivo, que permite ao
homem prometer e responder a partir dele mesmo como
promessa. Dessa maneira, podemos afirmar com Ricoeur que
não há uma política do perdão se ele significa a pretensão de
uma instituição concordar com o perdão, sem para tanto ver na
referida instituição uma prova fundante do pedido de perdão.
Como compreender então a posição de Arendt, que nosso
filósofo toma como inspiração, que inclui o perdão na política,
em simetria à promessa? Ricoeur propõe uma interpretação
222
bastante singular: ela distingue a esfera do amor da esfera
política e os religa pelo respeito, correspondente do amor na
política. Reaproximamos, dessa forma, daquilo que nomeamos
de consideração ou reconhecimento. É esse reconhecimento que
se revela temporalmente na promessa e no perdão.
Nesse momento, chegaremos a um ponto crucial da
nossa argumentação. Ricoeur procura aquilo que abriria, em
Hannah Arendt, o perdão em sua dimensão não política, em
sua relação com o amor. Nosso filósofo o descobre em sua
temática da gratuidade, milagre que não cessa de se opor à lei
interna da dimensão humana, que os conduzem à destruição.
Se as ações podem contradizer essa lei inexorável, o que se
coloca pela gratuidade, que os homens aí descobrem o sentido
de inovação de sua existência. A ação é, em sua relação com a
gratuidade, um milagre permanente sobre o curso mortal do
mundo. O perdão é o que salva o mundo de sua ruína natural,
de sua condição determinista.
O perdão quando é recebido, pode mudar o homem a
partir dele mesmo? A mudança que o perdão implica é
representada na passagem de uma capacidade de engajamento
que tinha sido diminuída quando estava preso às formas de
agir antigas, não exercendo sua liberdade plena. O perdão,
nesse momento, se situa como condição da promessa,
aparecendo como figura de um ato de fé quanto à possibilidade
de renovar com a fonte do si além do que tinha sido obstruído.
É sua primeira aparição efetiva, mas não ainda plena: trata-se
do perdão como ato de fé na dimensão da promessa.

223
A relação “eu-tu” é importante para a composição da
justiça, mas é a promessa que fundamenta essa justiça, dessa
forma, para que o justo possa sempre prevalecer, deve-se levar
em conta a relação de responsabilidade, de dever e também os
imperativos universais5.

Considerações finais

Os indivíduos são marcados pela personalidade, sendo


ela o conjunto de características de uma pessoa. Essa
personalidade se baseia na individualidade pessoal e social,
referente ao pensar e agir. O conceito de capacidade afirma a
condição que o indivíduo tem de ser criador de suas ações. A
capacidade é a forma de exercitar a personalidade através das
relações.
O homem definido como sujeito capaz tem identificadas
algumas capacidades que o constitui, a capacidade de fazer,
narrar, assumir responsabilidades, a capacidade de falar e
compreender. Existe a possibilidade de suas ações serem
avaliadas e também de serem valoradas e este é o ponto
fundamental da noção do sujeito capaz. A definição de sujeito
de direito em Ricoeur constrói-se a partir dessas capacidades e
também da relação “eu-tu” e da promessa, que é marcada pela
lealdade e fidelidade, baseado nessa promessa, o sujeito é capaz

5Aja apenas segundo a máxima que você gostaria de ver transformada em lei
universal."
Immanuel Kant, A Metafísica da Moral (1797)
224
de agir intencionalmente, assim, criando contratos que são
estabelecidos para o futuro.
Então, o sujeito de direito para Ricoeur é aquele que está
inserido em um contexto de sociedade, ele tem capacidades e a
partir do ato da fala é capaz de originar várias outras ações,
este sujeito se origina do sujeito capaz que é o dono de direitos
e deveres, este é o cidadão real, é o sujeito digno de estima e
respeito.

Referências:
TERREGA, Maria Cristina Vidotte Blanco. O Conceito de
Sujeito de direito em Paul Ricoeur. Disponível em
<https://www.diritto.it/o-conceito-de-sujeito-de-direito-em-
paul-ricoeur/>. Acesso em: 06 out. 2017.

BENTES, Hilda; SALLES, Sergio. Paul Ricoeur e o humanismo


jurídico moderno: O reconhecimento do sujeito de direito. Rio
de Janeiro: ERRS, 2011.

GARRIDO, S. V. A hermenêutica do si e sua dimensão ética.


In: CESAR, C. M. (org.). A Hermenêutica Francesa: Paul
Ricoeur. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2002.

Outras leituras

PIVA, Edgar Antonio. A questão do sujeito em Paul Ricoeur.


Síntese Revista de filosofia. Disponível em
<http://faje.edu.br/periodicos/index.php/Sintese/article/view
/6 83> Acesso em: 06 out. 2017.

BENTES, Hilda Helena Soares. O sujeito do direito no


conceito de justo de Paul Ricoeur e sua importância para os
direitos humanos. Disponível em

225
<http://www.cifmp.ufpel.edu.br/anais/1/cdrom/mesas/mesa3
/01.pdf> Acesso em: 06 out. 2017.

RICOEUR, P. O si-mesmo como um outro. Tradução de Lucy


Moreira Cesar. Campinas: Papirus, 1991.

226
FILOSOFIA DO DIREITO DE RONALD DWORKIN: DIREITO
COMO INTEGRIDADE COMO FORMA DE SUPERAR O
CONVENCIONALISMO E O PRAGMATISMO JURÍDICO

Altair Marchetti1
Gabriella Camêllo2
Marisa Marchetti3
Monica Santos4
Saulo Camêllo5
Vitor Lopes6
René Dentz7

Resumo:

O presente trabalho tem o objetivo de analisar os principais


aspectos referentes à teoria desenvolvida por Ronald Dworkin,
jurista norte-americano que teve forte influência no
reconhecimento da importância dos princípios para o direito,
apontando as críticas feitas pelo filósofo para a formulação de
sua teoria.

Introdução

Ronald Dworkin foi um filósofo do Direito norte-


americano, que viveu entre 11 de dezembro de 1931 e 14 de
fevereiro de 2014. Dworkin estudou na Universidade de
Harvard e no Magdalen College da Universidade de Oxford.
Profissionalmente ele atuou como assistente do renomado juiz

1 Graduando do curso de Direito, 2º Período, FUPAC Mariana.


2 Graduanda do curso de Direito, 2º Período, FUPAC Mariana.
3 Graduanda do curso de Direito, 2º Período, FUPAC Mariana.
4 Graduanda do curso de Direito, 2º Período, FUPAC Mariana.
5 Graduando do curso de Direito, 2º Período, FUPAC Mariana.
6 Graduando do curso de Direito, 2º Período, FUPAC Mariana.
7Professor Titular da FUPAC-Mariana; Psicanalista; Membro do International

Institute for Hermeneutics/Alemanha.


227
Learned Hand da Corte de Apelo dos Estados Unidos, trabalhou
em Sullivan and Cromwell em um importante escritório de
advocacia de Nova York, exerceu ainda a profissão de professor
de cursos jurídicos, ministrando aulas de Teoria Geral do
Direito e Filosofia do Direito.
Dworkin constrói sua teoria a partir de críticas feitas ao
positivismo jurídico, uma vez que o modelo positivista
tradicional não provê uma teoria capaz de lidar com as
inconformidades existentes, isso porque, de acordo com a
disposição kelseniana, o direito é composto por regras cuja
validade necessita da relação entre elas. Assim, para lidar com
as contradições, o positivismo indica a erradicação de uma
regra contraditória no ordenamento jurídico e a utilização de
parâmetros como a cronologia, hierarquia e especialidade.
Em casos onde inexista regra conclusiva, não há outra
escolha senão a elaboração de uma nova regra, no entanto, o
desejo de certeza e segurança do direito fica prejudicado,
circunstância que leva o legislador, por sua vez, no ato de
concepção das normas jurídicas, buscar a positivação de
princípios e juízos abertos e vagos. Tal ato permitiria, em tese,
uma segurança do direito na medida em que fosse capaz de
minorar os riscos e contradições e dizimar as lacunas. Contudo,
essa segurança é inconsistente, pois permite um acréscimo do
poder discricionário dos magistrados sobre as sentenças
judiciais.
Segundo a sua noção de integridade do Direito, Dworkin,
crê que os juízes ao defrontar-se com casos classificados como

228
complexos precisam utilizar moldes determinados, a fim de que
seja alcançada a previsibilidade e a justiça no caso concreto,
verificando-se uma ruptura com a teoria da discricionariedade
oferecida pelo positivismo jurídico.

2. Distinção entre regras, princípios e diretrizes políticas

Dworkin utiliza-se da questão da interpretação para a


estruturação de sua teoria. Assim sendo, o jurista elabora,
inicialmente, uma diferenciação entre regras, princípios e
diretrizes políticas.
As regras seriam empregadas sob o ideal do tudo ou
nada, ou seja, sob o critério de validade ou invalidade, segundo
o seu conteúdo. Nas palavras do autor:

As regras são aplicáveis à maneira tudo-


ou-nada. Dados os fatos que uma regra
estipula, então ou a regra é válida, e neste
caso a resposta que ela fornece deve ser
aceita, ou não é válida, e neste caso em
nada contribui para a decisão (DWORKIN,
2002 apud MOREIRA e MAYRINK, 2014,
p. 4).

Se duas regras entrarem em embate, apenas uma delas


se enquadrará ao caso concreto, não tendo as normas a
dimensão de peso e importância, sendo o modo clássico de
antinomias do positivismo aplicado para compreender qual
delas será adotada e qual delas será rejeitada. O primeiro
critério empregado é o cronológico, onde a norma posterior
predomina sobre a anterior; o segundo critério baseia-se na
229
hierarquia da norma, no qual a norma de grau superior triunfa
sobre a norma de grau inferior; e por fim o critério de
especialidade, em que a norma especial impera sobre a norma
geral. Logo, uma regra não é consagrada mais relevante que
outra.
Os princípios distinguem-se das regras por não expor os
mesmos resultados jurídicos derivados de sua aplicação ou de
seu desrespeito. Pode-se afirmar que as regras situam-se no
plano da validade, enquanto os princípios localizam-se no plano
da adequabilidade, onde há uma ponderação e ajustamento de
sua utilização ao caso concreto. Segundo as palavras do
filósofo:

Os princípios jurídicos, diferentemente das


regras, não apresentam as consequências
jurídicas que seguem quando as condições
de aplicação são dadas. Eles não
pretendem, nem mesmo, estabelecer as
condições que tornam a sua aplicação
necessária. Ao contrário, enunciam uma
razão que conduz a um argumento e a
uma determinada direção. É por isso que,
com relação aos princípios, não há
exceções, pois elas não são, nem mesmo
em teoria, suscetíveis de enumeração. Os
princípios, então, possuem a dimensão de
importância relativa ao caso concreto que
é parte integrante do seu conceito; assim,
quando os princípios estão em conflito, o
juiz deve ponderar, levando em conta a
força relativa de cada um deles, devendo-
se aplicar aquele que for mais adequado ao
caso concreto, como se fosse uma razão
que se inclinasse para um posicionamento

230
e não para outro (DWORKIN, 2002 apud
MOREIRA e MAYRINK, 2014, p. 4).

As diretrizes políticas constituem um objetivo a ser


atingido, estabelecendo metas coletivas associadas com o bem-
estar de uma parcela da sociedade, mas nunca com a sua
totalidade, uma vez que existem variadas perspectivas de boa
vida em uma sociedade com diferentes culturas. Observa-se
assim, a existência de diferenças entre processo legal e diretriz
política:

Um princípio prescreve um direito e, por


isso, contém uma exigência de justiça,
equanimidade, devido processo legal, ou
qualquer outra dimensão de moralidade;
ao passo que uma diretriz política
estabelece um objetivo a ser alcançado,
que, geralmente consiste na melhoria de
algum aspecto econômico, político ou
social da comunidade, buscando promover
ou assegurar uma situação econômica,
política ou social considerada desejável
(DWORKIN, 2002 apud MOREIRA e
MAYRINK, 2014, p. 5).

Logo, para Dworkin é inválida a noção do positivismo


jurídico segundo a qual os juízes na presença de casos difíceis
possuem um poder discricionário para decidir, isso porque
quando um juiz decide um caso difícil, ele legisla novos direitos
jurídicos e os emprega retroativamente o que causa
vulnerabilidade jurídica e possíveis decisões injustas.

3. Método interpretativo proposto por Dworkin

231
Ronald Dworkin (1999) sugere que o direito é um
conceito interpretativo e que os textos por si só não possuem
significados por si mesmos. É preciso uma perspectiva
determinada que os positivistas não têm considerado. O autor
desaprova as teorias semânticas de direito adotadas por Hart,
que são caracterizadas por acolher o ponto de vista conforme o
qual são os fatos que indicam os elementos do direito.
Dworkin aspira que ao se adotar o método interpretativo
proposto por ele, possamos conferir à norma jurídica um
sentido mais lógico com a nossa prática jurídica apreciada em
uma perspectiva ampla. Assim, a interpretação construtiva
institui um propósito a uma prática a fim de torná-lo o melhor
possível em face de sua finalidade.
Para uma melhor elaboração de uma ferramenta
adequada ao estudo do direito enquanto prática social, Dworkin
faz uma fragmentação analítica em três etapas interpretativas
de modo a aprimorar a interpretação construtiva: a etapa pré-
interpretativa que trata do obstáculo da identificação do direito;
a etapa interpretativa que busca um significado, um
esclarecimento para o direito; e a etapa pós-interpretativa, a
qual busca a melhor interpretação, o melhor ajuste de acordo
com o que a prática requer. Passemos a tratar melhor do
assunto.

4. Etapas da interpretação

232
Na etapa pré-interpretativa é executado o
reconhecimento e a qualificação do objeto a ser interpretado
apontando assim, as regras e normas que viabiliza o conteúdo
da prática. Dworkin, atenta que mesmo nessa etapa é
indispensável algum tipo de interpretação, mesmo sendo
denominada como pré-interpretação.
Para o êxito desse processo interpretativo é fundamental
um alto grau de concordância na identificação, por isso, as
regras sociais não possuem estereótipos de identificação.
Na etapa interpretativa o intérprete vai buscar uma
motivação de valores e objetivos que acredita que a prática
persegue, limitando-se numa justificativa geral para os
elementos da prática identificada na etapa anterior (pré-
interpretativa). Nas palavras do filósofo:

A justificativa não precisa ajustar-se a


todos os aspectos ou características da
pratica estabelecida, mas deve ajustar-se o
suficiente para que o intérprete possa ver-
se como alguém que interpreta essa
prática, não como alguém que inventa
uma nova prática. (DWORKIN, 2003 apud
SENS, 2013, p. 8)

Na última etapa nomeada pós-interpretativa, o propósito


é definir o que a prática efetivamente necessita para alcançar
uma máxima promoção dos princípios, adaptando a ideia onde
a prática será usada para melhor servir à razão da etapa
interpretativa.
Nesta terceira etapa pode dar-se o abandono, reparo ou
inclusão das regras verificadas na primeira etapa (pré-
233
interpretativa), pois interferem valores de convicção, visando
alcançar uma aplicação harmoniosa da melhor justificativa
prática, isso porque essa fase pretende organizar a prática à luz
de seus objetivos. São os juízos morais que vão ser empregados
para disponibilizar a melhor interpretação da prática social,
assim como os juízos estéticos são utilizados para analisar as
obras de arte. Nessa etapa, se determina uma relação entre o
direito e a moral, onde os juízos valorativos são expressados ao
máximo, de maneira que passe a ser a melhor prática possível
dentre as diversas interpretações que considere os elementos
identificados nas etapas anteriores.
O direito é um processo abstrato, e deve se transformar
em uma teoria geral do direito:

Sua finalidade é interpretar o ponto


essencial e a estrutura da jurisdição, não
uma parte ou seção especifica dessa
última. Contudo, apesar de sua abstração,
trata-se de interpretações construtivas:
tentar apresentar o conjunto da jurisdição
em sua luz, para alcançar o equilíbrio
entre a jurisdição tal como a encontram e
a melhor justificativa dessa prática
(DWORKIN, 2003 apud SENS, 2013, p. 9).

Para Dworkin, o juiz move-se interpretando todos os


princípios morais e legais de uma comunidade, conduzindo-os
para o caso concreto e realizando a devida interpretação
construtiva, oferecendo à lei a melhor interpretação plausível
dentro do caso concreto. Porém, Vidal (1999) faz a crítica de que
Dworkin, ao apoiar que a interpretação construtiva leva a uma

234
única e melhor interpretação da prática social e não crê que o
Direito como um fenômeno complexo muitas vezes ajusta-se a
vários valores. Assim, não é viável dizer que apenas uma dessas
interpretações seria exata. Deste modo:

O juiz dworkiniano deve se situar


precisamente na etapa pós-interpretativa e
sua tarefa consiste em resolver os casos
concretos através da elaboração da melhor
teoria que reconstrua todo o sistema
jurídico. É neste sentido em que pode
dizer-se que Dworkin adota uma visão
holística ou integradora a respeito do
fenômeno jurídico (VIDAL, 1999 apud
SENS, 2013, p. 9).

Dworkin descarta a perspectiva e assegura que sempre é


possível descobrir uma interpretação que seja melhor, a única
solução que seja correta dentro de vários valores, mas para que
isso ocorra de fato é necessário cumprir a atividade exposta na
etapa pós-interpretativa na qual é essencial recorrer aos juízos
morais.
A chave para o entendimento da argumentação jurídica
de Dworkin encontra-se na sua interpretação construtiva:

A sofisticação de Dworkin está no fato de


que a chave para a compreensão da sua
proposta de uma filosofia liberal do direito
está na compreensão da argumentação
jurídica enquanto exercício de
interpretação construtiva, no qual o direito
consiste na melhor justificação das
práticas jurídicas como um todo, na
história narrativa que faz dessas práticas o

235
melhor possível (CHUEIRI, 1995 apud
SENS, 2013, p. 10).

Dworkin desaprova em suas obras as correntes filosófico-


jurídicas como o convencionalismo, o pragmatismo,
sustentando que tais correntes são falhas pois não apresentam
a justificação básica para o preenchimento da jurisdição. Para
ele, a prática jurídica deve ser coerente, devotado a princípios
como equidade, justiça, legalidade e integridade. É sobre o
princípio da integridade que repousa a filosofia de Ronald
Dworkin, que emprega uma referência ideal de sociedade
democrática, considerando a comunidade como um agente
moral. Passemos a tratar sobre a crítica de Dworkin sobre tais
correntes.
A teoria do juiz Hércules é uma das propostas mais
conhecidos do nosso filósofo. A partir dela, Dworkin busca
superar o positivismo jurídico, através da separação entre
moral e direito. O direito não pode ser visto em sua suposta
cientificidade e sua neutralidade. Afinal, elas são ilusórias. No
entanto, não é permitido no Estado Democrático de Direito,
afirmações fundamentadas a partir de outras racionalidades
que não são democráticas e jurídicas, ao mesmo tempo.

5. Convencionalismo

Diversos filósofos evidenciam que o conceito de


convencionalismo é bastante contestado e dúbio, isso porque
apresenta significados técnicos distintos no campo de diversas
236
disciplinas, como a economia, filosofia, sociologia e teoria do
direito. Segundo Postema (2011) as “convenções são normas
sociais praticadas cujo funcionamento como normas depende
de elas serem praticadas”.
O convencionalismo jurídico baseia-se na tese segundo a
qual a natureza do direito e a sua força normativa estão
instituídas numa prática social, tese essa defendida na teoria
hartiana de direito:

Um juiz consciente de seu


convencionalismo estrito perderia o
interesse pela legislação e pelo precedente
exatamente quando ficasse claro que a
extensão explicita dessas supostas
convenções tivesse chegado ao fim. Ele
então entenderia que não existe direito, e
deixaria de preocupar-se com a coerência
com o passado; passaria a elaborar um
novo direito, indagando qual lei
estabeleceria a legislatura em vigor, qual é
a vontade popular ou o que seria melhor
para os interesses da comunidade do
futuro (DWORKIN, 1999 apud PRADO,
2012).

Dworkin frisa que para Hart a existência e o conteúdo do


direito podem ser designados por alusão às fontes sociais do
direito sem menção a moralidade, salvo onde o direito assim
identificado tiver ele mesmo acrescentado critérios morais para
a identificação do direito.
Para Dworkin, muitas das discordâncias que
encontramos nas práticas argumentativas típicas de nossos
tribunais abrange o que ele intitula de desacordos teóricos, isto

237
é, desavenças entre proposições jurídicas cujo valor de verdade
necessita do significado concedido ao direito.
A crítica do filósofo ao convencionalismo é ligada a
diversas condições que foram expressadas no seio da filosofia
da lógica e da filosofia da linguagem contemporânea, com sua
análise sobre o funcionamento da linguagem moral, o conceito
da bipolaridade, a crítica ao representacionismo e demais
fatores. Além disso, o convencionalismo jurídico fracassou por
não disponibilizar uma teoria estabelecida as práticas
interpretativas, não podendo explicar o motivo pelo qual os
juízes permanecem buscando as melhores justificações, mesmo
quando elas não são evidentes. Também fracassa por não
apontar uma teoria eloquente sobre os fundamentos da
admissão do uso da coerção e sobre o modo como se
constituem e de que tipo são os encargos dos juízes diante do
direito. Tais fatos fazem com que o convencionalismo jurídico
não responda adequadamente ao desafio dworkiniano.

6. Pragmatismo jurídico

A compreensão de direito como integridade e a noção de


leitura moral da constituição observada por ele, o faz afastar
dos paradigmas do pragmatismo e do positivismo. Dworkin traz
estreitamente em si que a ideia de integridade, de certa forma,
necessita da moral e da história.
O ponto decisório do pragmatismo é a marca da política,
tendo sempre suas decisões judiciais no cenário político. Na

238
ação de julgar, os juízes pragmatistas não estão preocupados
com a moral e muito menos com a história. Tal consideração é
inconcebível para Dworkin cujo pensamento teórico molda-se
justamente na preservação da história e da moral em sua teoria
do direito.
Uma das maiores distinções de Dworkin e o pragmatismo
jurídico é o amparo ao passado, à história ou a tradição. O
filósofo refere-se ao pragmatismo como sendo aquela teoria do
direito que despreza a importância das decisões passadas. O
juiz pragmatista deve estar exclusivamente vigilante às
demandas sociais de seu tempo, aqueles pertinentes ao
momento de seu julgamento.
Assim, Dworkin olha para trás e para baixo enquanto os
pragmatistas olham para frente e para cima. Dworkin olha para
o passado, em contrapartida, os pragmatistas olham para o
futuro. Para o jurista é necessário olhar para trás, para então
olhar para frente.
O pragmatismo jurídico e o convencionalismo possuem
diferenças, nas palavras do filósofo:

A diferença prática entre duas teorias da


jurisdição é, portanto, a seguinte: em um
regime convencionalista, os juízes não se
consideram livre para alterar regras
adotadas conforme as convenções
jurídicas correntes, exatamente porque,
após o exame de todos os aspectos da
questão, uma regra diferente seria mais
justa ou eficiente. Em um regime
pragmático, nenhuma convenção desse
tipo seria reconhecida, e ainda que os
juízes normalmente ordenassem o
239
cumprimento de decisões tomadas por
outras instituições políticas no passado,
eles não reconheceriam nenhum dever
geral de fazê-lo (DWORKIN, 1999 apud
PRADO, 2012).

O jurista crê que o pragmatismo é um forte adversário de


sua teoria, por ter pensamentos próximos ao pragmatismo.

7. Direito como integridade

Como maneira de subjugar o convencionalismo e o


pragmatismo jurídico, Dworkin defende a proposição do direito
como integridade.
A integridade é uma quarta virtude política ao lado da
equidade, da justiça e do devido processo legal, a que se atribui
a atuar de modo coerente e sustentado em princípios, a fim de
expandir a cada um os modelos fundamentais da justiça e da
equidade. Isso faz parte de nossa moral política coletiva na qual
não somente as autoridades devem agir de acordo com os
princípios. Assim na visão de direito como integridade:

As proposições jurídicas são verdadeiras


se constam, ou se derivam, dos princípios
da justiça, equidade e devido processo
legal que oferecem a melhor interpretação
construtiva da pratica jurídica da
comunidade (DWORKIN, 1999 apud
PRADO, 2012).

É interessante salientar o significado de justiça, equidade


e devido processo legal:

240
A justiça diz respeito ao resultado correto
do sistema político: a distribuição correta
de bens, oportunidades e outros recursos.
A equidade é uma questão de estrutura
correta para esse sistema, a estrutura que
distribui a influência sobre as decisões
políticas de maneira adequada. O devido
processo legal adjetivo é uma questão dos
procedimentos corretos para a aplicação
de regras e regulamentos que o sistema
produziu. A supremacia legislativa que
obriga Hercules a aplicar as leis, mesmo
quando produz uma incoerência
substantiva, é uma questão de equidade
porque protege o poder da maioria de fazer
o direito que quer. As doutrinas rigorosas
do precedente, as práticas da história
legislativa e a prioridade local são em
grande parte, embora de maneiras
distintas, questões de processo legal
adjetivo, porque estimulam os cidadãos a
confiar em suposições e pronunciamentos
doutrinários que seria errado trair ao
julgá-los depois do fato (DWORKIN, 2007
apud MARINHO, 2015, p. 8).

Com a concepção do direito como integridade Dworkin


busca trabalhar dois pontos significativos, sendo eles: moldar a
conduta do intérprete de maneira a eliminar o recurso à
discricionariedade e apresentar uma maneira de legitimar a
decisão judicial observando adequadamente os princípios
legais, morais e políticos – justiça, equidade e devido processo
legal.
O autor aponta vantagens na transformação da
sociedade que considera a integridade como virtude política:

241
Uma sociedade política que aceita a
integridade como virtude política se
transforma, desse modo, em uma forma
especial de comunidade, especial num
sentindo de que promove sua autoridade
moral para assumir e mobilizar monopólio
de força coercitiva. Este não é o único
argumento em favor da integridade, ou a
única consequência de reconhecê-la que
poderia ser valorizada pelos cidadãos. A
integridade protege contra a parcialidade,
a fraude ou outras formas de corrupção
oficial (DWORKIN, 2007 apud MARINHO,
2015, p. 4).

Dworkin destaca como efeito da integridade a sua


colaboração para a ampliação do direito uma vez que quando a
sociedade é dirigida por princípios há menos imposições de
regras explícitas, e assim o direito pode se expandir e contrair
na medida em que se verifique o que eles exigem em novos
acontecimentos.
O direito como integridade presume que os juízes se
encontrem em circunstancias diferentes dos legisladores assim,
eles necessitam se valer de princípios para tomarem as decisões
e não em política como o legislador, eles devem apontar
argumentos que mostre por que as partes efetivamente teriam
direitos e deveres, observando todas as questões fáticos,
normativos e morais pertinentes para a resolução do caso.
Para esclarecer isso, Dworkin cria a metáfora do romance
em cadeias na qual o juiz figura o autor, pressupondo a
seguinte ideia: Um projeto, em que um grupo de romancistas
compõem um romance em série. Cada romancista da cadeia
242
interpreta os capítulos que recebeu para escrever um novo
capítulo. Este novo capítulo é anexado aos demais e entregue
ao romancista seguinte, e assim por diante. Cada autor deve
escrever seu capítulo como se fosse o único autor da obra. A
dificuldade dessa tarefa descreve a complexidade de solucionar
um caso difícil de direito como integridade. Para Dworkin
(2007), o direito acompanha a mesma lógica onde o que se
chama de direito nada mais é do que um produto coletivo de
uma determinada sociedade em continuada construção. Cada
juiz é um romancista, tendo de ler tudo o que os outros juízes
escreveram, não para descobrir como pensavam, mas para
chegar a uma conclusão do que esses juízes fizeram
coletivamente. Tal ideia exige do julgador um empenho hercúleo
para produzir uma decisão que integre materiais vastos.
Dworkin cria ainda um juiz imaginário como uma espécie
de modelo a ser seguido pelos juízes8 na tarefa de decidir
questões jurídicas, inspirado na mitologia do Hércules. Em sua
teoria, Dworkin apresenta Hércules como um juiz que na tarefa
de realizar a interpretação construtiva do direito é guiado pelo
princípio da integridade e da equidade cuja tradição e
historicidade serão notas presentes para a decisão no direito
vigente, na forma de um modelo hermenêutico, isto é, que
reconstrói e critica a forma de decisão judicial,
retroalimentando-a, sem transformar o direito em aplicação de

8 Modelo a ser seguido no sistema common law, cuja aplicação de normas e


regras não estão escritas, mas sancionadas pelo costume ou pela
jurisprudência.
243
um método ou técnica (BITENCOURT e SOBRINHO, 2011 apud
MARINHO, 2015, p. 8).

Considerações finais

A partir dos estudos sobre a teoria do direito como


integridade formulada por Ronald Dworkin, conclui-se que suas
ideias surgiram com críticas feitas ao positivismo jurídico que
não dispunha de respostas para os conflitos existentes. Outro
ponto utilizado na formulação é a questão de interpretação e
para tal, o jurista trabalha com distinções entre regras,
princípios e diretrizes políticas.
Para o filósofo, o direito é um conceito interpretativo, e
para isso é necessário um enfoque determinado, assim, critica
teorias semânticas defendidas por Hant. Ainda acredita que a
interpretação construtiva impõe um propósito a uma prática
afim de torná-lo o melhor possível em face de sua finalidade. E
para tal, Dworkin, faz uma separação analítica em três etapas
interpretativas, de modo a refinar a interpretação construtiva.
Tais etapas consiste em: pré-interpretativa, interpretativa e pós-
interpretativa.
Dworkin como forma de superar o convencionalismo e o
pragmatismo jurídico que defendem, respectivamente, que a
natureza do direito e a sua força normativa estão fundadas na
prática social e as decisões jurídicas no contexto político.
Assim, critica o convencionalismo por não oferecer uma teoria
ajustada às práticas interpretativas. Já o pragmatismo jurídico

244
é criticado pelo filósofo por não se ater a moral, e muito menos
com a história. Por isso, Dworkin defende o direito como
integridade como uma quarta virtude, ao lado da equidade, da
justiça e do devido processo legal, tal pensamento se refere a
agir de modo coerente e fundamentado em princípios. Na
concepção do jurista as sociedades que aderem tal teoria se
transformam em uma comunidade especial que promove sua
autoridade moral para assumir e mobilizar monopólio de força
coercitiva.
A integridade contribui na expansão do direito uma vez
que sendo a sociedade governada por princípios há menos
necessidade de regras explícitas, podendo o direito se adequar
as novas circunstâncias. Assim, os juízes devem se valer de
princípios para tomarem as decisões, considerando todos os
aspectos fáticos, normativos e morais relevantes para a solução
do caso. Para exemplificar tal pensamento Dworkin cria a
metáfora do romance em cadeias e um juiz imaginário, como
espécie de modelo a ser seguido pelos juízes.

Referências:

MOREIRA, Leandro de Assis; MAYRINK, Raquel Ribeiro. Breves


apontamentos sobre a filosofia de Ronald Dworkin e sua
aplicabilidade no ordenamento jurídico brasileiro. 2014.
Disponível em:
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Acesso em: 22 de set. 2017.

PRADO, Esther Regina Corrêa Leite. Os métodos


interpretativos de Ronald Dworkin e o direito como
integridade. 2012. Disponível em: http://www.ambito-
245
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12446. Acesso em: 22 de set. 2017.

JUNG, Luã Nogueira. Levando Dworkin a sério: uma revisão


(critica) da teoria do direito de Ronald Dworkin. 2014.
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2017.

NEITSCH, Joana. Ronald Dworkin: um legado para o direito e


para a sociedade. 2013. Disponível em:
http://www.gazetadopovo.com.br/vida-publica/justica-
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set. 2017

SENS, Sheila Catarina da Silva. A teoria interpretativa de


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http://periodicos.pucminas.br/index.php/Direito/article/view/
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2017.

MACEDO JR., Ronaldo Porto. A Crítica de Dworkin ao


Convencionalismo e sua Relevância: um Esquema de Crítica
Conceitual. 2015. Disponível em: http://www.jur.puc-
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FERRI, Caroline Feliz Sarraf. Teoria da integridade: Uma


abordagem da sistematização de Ronald Dworkin. 2013.
Disponível em: http://www.ambito-
juridico.com.br/site/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=
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246
MARINHO, Jefferson Luiz Alves. Teoria da integridade de
Ronald Dworkin: Um olhar matemático para a tese da resposta
correta. 2015. Disponível em:
https://online.unisc.br/acadnet/anais/index.php/snpp/article
/download/14242/2684. Acesso em: 30 de set. 2017.

247
SCHOPENHAUER: METAFÍSICA DA VONTADE E JUSTIÇA

Júnio C. de Abreu Lima1


Magna Campos2

Resumo:
Este ensaio explora a teoria da vontade em Arthur Schopenhauer
e suas implicações com a questão da justiça. A perspectiva do
filósofo sobre a submissão da razão à vontade e sobre o papel
coercitivo do Estado na tentativa de suprimir as vontades que
extrapolem os limites entre a vontade de um indivíduo e do outro,
originando assim um conceito de justiça negativo, ou seja, o
Estado legislador existe para coibir a injustiça e não para fazer a
justiça, são perspectivas que não se pode ignorar para a
compressão do Direito em suas bases filosóficas e críticas.

Introdução

Ao lermos os textos “Sobre a Necessidade Metafísica da


Humanidade (edição de 1938)” e “O Mundo como vontade e
representação (edição de 2005)”, de Arthur Schopenhauer, nos
deparamos com as diversas questões levantadas a respeito da
própria existência humana e, também, podemos refletir a
respeito de como esse detalhe, complexo e grandioso, serviu
para o surgimento da necessidade de filosofar e para a própria
necessidade da metafísica. Esse trabalho consiste em procurar
explanar de forma exploratória sobre como a efemeridade da
vida e a necessidade de uma justificativa sobre ela, que pode ou
não nos confortar, se fazem essencial para que possamos lidar

1 Graduando em Museologia pela UFOP.


2 Professora universitária, mestre em Letras e escritora.
248
com o destino próprio e certo de todos: a própria morte; ou,
como os gregos antigos acreditavam, em sua encarnação,
Thanatos.
Portanto, pautado no tema da vontade e da necessidade,
buscamos adentrar às necessidades indissociáveis presentes
em todos os momentos da obra do filósofo, assim como à
necessidade metafísica e sua relação entre filosofia e religião,
decorrentes dessa suposta necessidade. Estamos cientes que
esse nosso debate será apenas exploratório, perante a
complexidade de tais assuntos por circunscrevermos nossa
leitura a apenas dois textos do autor e a alguns comentadores
nacionais, como (RAMOS, 2012; DURANTE, 2012; CARDOSO,
2008).
A ideia principal nesse trabalho é pensar os limiares
entre a necessidade e vontade de viver, de todos, e as formas
pelas quais a humanidade se vale, do ponto de vista de
Schopenhauer, para gerir certo conforto e alento às misérias da
vida. Uma destas formas é o direito e a ideia de Estado
Legislador, bem com a de justiça e injustiça aí decorrente.

2. Breves apontamentos sobre a filosofia de Schopenhauer e


a problemática da vontade

2.1 A questão da morte e origem da filosofia

Desde os mais primordiais dos tempos e as mais


primordiais civilizações, a morte sempre esteve presente, seja já

249
definida como Morte ou, simplesmente, como um fenômeno ao
qual algum ser vivo, ao longo do tempo, deixaria de existir. E, é
fato, que sempre tal inquietação foi motivo de incontáveis
perguntas e mistificações, assim como o próprio medo gerado
por tal evento.
Logo no começo de seu texto, Schopenhauer deixa claro
algo que pode ser usado para refletir sobre a capacidade de
consciência da espécie humana:

Dentre todos os seres, apenas o homem se


surpreende com a sua própria existência
[Dasein]. Todos os outros consideram essa
uma condição que se compreende por si
mesma, e que não os assombra. A
sabedoria da natureza fala no olhar
pacífico dos animais, pois neles a vontade
e o intelecto não estão separados de modo
amplo ou suficiente para que cada um
deles seja capaz de se surpreender com o
outro quando se encontram novamente.
(SCHOPENHAUER, 1938, p. 249)

É de suma importância parar e analisar essa citação,


pois, é nessa capacidade inerente ao homem, de se surpreender
com sua própria existência, de apresentar consciência em si,
que podemos encontrar, segundo explicação de Schopenhauer,
a origem da filosofia, assim como a necessidade metafísica e a
apelação para uma justificativa religiosa e, muitas vezes,
mitológica. Ou seja, o homem é o único ser vivo que tem plena
consciência de sua morte.

250
A vida é um fato que independe de sua própria
explicação ou desejo, ela acontece mesmo que você não queira
ou não a entenda. Somos, de certo modo, obrigados a percorrer
nossa jornada nesse mundo e, não há nada mais doloroso que
nos lembrarmos do fim de nossa existência, e, até os atos mais
egoístas de suicídio são, na verdade, ocasionados por uma
vontade de viver, mas que, de certo modo, não aconteceu como
planejado ou simplesmente aumentou ainda mais a angústia de
sua própria existência.
Neste sentido, o filósofo deixa claro que o que importa
para todos nós, sejam os seres humanos ou uma simples pedra,
é a vontade de continuar existindo e, para alcançar essa
condição, somos capazes de fazermos de tudo, até mesmo,
jogarmos nossas esperanças em algo que pode não existir, como
os próprios dogmas religiosos pregam.
A necessidade de uma metafísica transfigurada em
religião é o que pode proporcionar tal alento à nossa trágica e
simples existência. Todavia, como o próprio Schopenhauer
coloca, se nos fosse possível alcançar a imortalidade de outra
forma, que não fosse à crença em uma vida pós-morte, pregada
pelas religiões, esses próprios crentes3 seriam capazes de
sacrificar seus deuses para ficarem com sua imortalidade e,
dessa forma, eles pregariam o ateísmo, pois, como já dito,
fazemos de tudo para continuarmos existindo e o maior alento
para nossa trágica existência seria a chance de superarmos
nossa efemeridade perante o mundo. É nessa necessidade

3 Crentes no sentido mais amplo da palavra, aqueles que creem em algo.


251
indissociável de sobrevivência, presente a todos os seres e a
capacidade de ter consciência de tal fator, presente apenas aos
seres humanos, que se faz o ímpeto do filosofar, que a própria
filosofia é capaz de surgir e se perpetuar.
Entretanto, o filosofar também é trágico, em sua gênese,
pois jamais será capaz de alcançar de fato a verdade única e
propriamente dita, e, de certa forma, nem se faz necessário que
se alcance. Porém, o alento necessário para tal detalhe da vida,
a morte, não pode encontrar seu real solo de justificativa. Dessa
forma, outro meio de tentar explicar e acalmar as misérias da
vida, envolto de crenças e de promessas, ou falsas promessas,
também embasado em uma ideia filosófica deturpada surge – a
religião – transformando a metafísica, ou melhor, a “falsa”
metafísica, em seu mais forte aliado. E, é sobre ela que vamos
debater no tópico seguinte deste ensaio.

2.2. Metafísica, religião e filosofia

Um cuidado interessante é saber o que o autor toma por


metafísica e qual escopo dá para esse termo. Desta forma,
vejam-se as palavras do próprio autor:

Por metafísica eu entendo todo suposto


conhecimento que vai além da
possibilidade da experiência, e, portanto,
para além da natureza ou da aparência
das coisas dadas, a fim de dar informações
sobre a razão pela qual, em um sentido ou
outro, esta experiência ou natureza é
condicionada, ou em linguagem popular,
252
sobre o que está escondido por trás da
natureza, e torna possível a natureza.
(SCHOPENHAUER, 1938, p. 254)

A metafísica se dá a partir de uma admiração “do nós”


perante o mundo, porém, essa necessidade metafísica da
humanidade se origina em frente a um desespero e angústia
perante a dor da existência humana. Somos como o próprio
Schopenhauer afirma, escravos da vontade, a vida está o tempo
todo nos mostrando que não possuímos autonomia, que sempre
queremos satisfazer nossas vontades e desejos antes de tudo.
Isto, para Schopenhauer, é a maior justificativa de o “porquê”
não podemos ser felizes de fato e o “porquê” nossa existência é
tão triste.
Em sua obra, o autor não mede esforços para distinguir
duas formas da necessidade metafísica, formas essas que se
distanciam de acordo com suas concepções. A necessidade
metafísica autofundante, ou seja, que se fundamenta em si
mesmo, perpetuada por meio de pensamentos e argumentos,
uma doutrina de persuasão, que é a própria Filosofia e a
necessidade metafísica que busca uma fundamentação fora de
si, em meio a crenças e autoridade, uma doutrina de fé, a
religião.
Esses dois sistemas não possuem necessariamente uma
ligação, eles seguem caminhos opostos. Todavia, o segundo
sistema se fundamenta em uma metafísica pautada na pura e
simples crença e, ao longo da história, não mediu esforços nem

253
guerras para tentar fundar-se, basta lembrar as cruzadas nos
século XI e XIII, para entendermos o “porquê” dessa afirmação.
Perante a necessidade metafísica da humanidade, a
religião utiliza dessa metafísica, como o próprio autor coloca,
para dogmatizar pessoas, principalmente crianças, para que
dessa forma possa continuar se perpetuando no decorrer do
tempo. Essa metafísica se torna deturpada e carregada de
intenções pessoais no intuito de alienar todos aqueles que a
procuram.
A filosofia se origina no intuito de buscar formas para
acalentar nossa pobre existência. Ela é essencialmente uma
sabedoria sobre o mundo, gira em torno de si própria, da vida e
seu único, e complexo problema, é o próprio mundo em si.
Dessa forma surge a metafísica atada à existência humana e a
capacidade metafísica atada à filosofia, que não pode ser
alcançada por todos. Entretanto, nesse limiar, surge também a
religião, que de certa forma tenta possuir uma capacidade
metafísica por si própria, todavia, tal tentativa é em vão, pois
religião jamais será de fato uma filosofia e jamais será capaz de
percorrer os mesmos caminhos de sua concorrente.
Em toda uma trajetória temporal, o sistema de segundo
tipo (religião), como já falado acima, não poupou esforços para
dominar o primeiro sistema, sempre se manifestando como
certa “filosofia de vida”, na tentativa de se fundamentar a partir
do exterior e do interior; necessidade essa considerada perigosa
para Schopenhauer, “pois se o segundo sistema fosse capaz de
buscar a sua própria autenticação, ele não teria necessidade de

254
buscar uma externa.” (SCHOPENHAUER, 1938, p. 256).
Continuando o seu pensamento, o autor, de forma genuína,
expõe que é a religião, a qual está sempre em conflito com a
verdade pura e simples, que procura ser aceita pelos filósofos; é
esse sistema que precisa da aceitação daqueles que buscam a
verdade além das crenças propriamente ditas.
Entretanto, o detalhe que não deve passar despercebido
nesse momento é que, no entender do estudioso, as grandes
massas necessitam de algo que, a priori, acalente seu
desespero, porém, elas não podem e não são capazes de lidar
com a verdade tal como ela é. Dessa forma, criam-se falsas
verdades acerca do mundo, “verdades” essas que ao cumprirem
seu simples papel em deixar mais suportável à vida, são
abraçadas e espalhadas com toda a suposta força da vontade
por essas mesmas pessoas. O restante pouco importa, pois
como já foi falado anteriormente, fazemos de tudo para
continuarmos existindo e somos capazes de crer em qualquer
coisa que possa nos dar o conforto momentâneo da vida.
É assim que podemos entender a capacidade metafísica
da humanidade, pois todos possuem certa necessidade
metafísica, somos finitos, mortais e queremos continuar
existindo, seja aqui ou em outro suposto local. A vontade reina
sobre tudo. Entretanto, não são todos os que possuem a
capacidade metafísica da vida, não são todos que podem
alcançar o entendimento dessa dor, as pessoas em geral não
estão preparadas, ou não querem estar, para adentrar além da
simples necessidade e aprofundar no gene da própria vontade

255
de viver, nas profundezas da filosofia e, dessa forma, deixarem
de crer em simples doutrinas que suspendem
momentaneamente e de forma ilusória esse sofrimento, assim
como uma anestesia cirúrgica. Desta forma, o próprio filósofo é
elucidativo ao explicar que:

Um sistema de primeira espécie – ou seja,


uma filosofia – faz afirmações, e, portanto,
tem a obrigação de ser verdadeiro sensu
stricto et proprio em tudo o que diz, pois
apela ao pensamento e à convicção. A
religião, por outro lado, tem apenas a
obrigação de ser verdade sensu allegorico,
uma vez que é destinada à multidão
inumerável que, sendo incapaz de
investigar e pensar, nunca compreenderá
as mais profundas e mais difíceis verdades
sensu proprio. A verdade não pode
aparecer nua e crua diante do povo.
(SCHOPENHAUER, 1938, p. 257)

Avancemos, portanto, para a questão da vontade e da


justiça tratada por Schopenhauer com base neste escopo
teórico exposto até aqui.

2.3 Vontade e justiça

Na compreensão de Schopenhauer (1938), o mundo pode


ser explicado por seus componentes relacionados à vontade e à
representação, ficando a vontade como um querer viver, um
querer realizar-se, que não é independente ao tempo e ao
espaço. O filósofo desloca a questão da vontade, e assim, da
256
liberdade, do atrelamento a Deus como a religião pressupõe,
substituindo-o pela vontade universal, irredutível e que dá
origem ao mundo e as coisas.
A razão, na concepção schopenhaueriana, é secundária,
uma vez que ela é espectadora da Vontade, neste sentido, a
vontade é soberana e o intelecto está a seu serviço. Tal
entendimento atrela-se à ideia de liberdade do querer, à
vontade livre, pois, como explicita o autor, se há a vontade
acima da razão, “podemos obviamente fazer o que queremos,
mas será possível também, por sua vez, querer o que queremos”
(CARDOSO, 2008, p. 85).
Neste campo da liberdade, Schopenhauer (1938) estipula
três tipos de liberdade: a física (ausência de impedimento de
ordem material), a intelectual (que se refere ao voluntário e ao
involuntário, é aqui que entra a ideia de representação) e a
moral (que constitui o livre-arbítrio, ou seja, a possibilidade de
um indivíduo escolher a forma de agir).
Conforme o autor, se existe livre-arbítrio é apenas no
campo da vontade, mas nunca no campo da razão, pois este
está para o mundo da representação e nele inexiste liberdade.
Neste sentido, os homens estão sujeitos às relações de causa e
consequência e não ao livre-arbítrio.

A Vontade é o primário e originário; o


conhecimento é meramente adicionado
como instrumento pertencente ao
fenômeno da Vontade. Conseguintemente,
cada homem é o que é mediante sua
vontade. Seu caráter é originário, pois
querer é a base de seu ser. Pelo
257
conhecimento adicionado ele aprende no
decorrer da experiência o QUÊ ele é, ou
seja, chega a conhecer seu caráter.
(SCHOPENHAUER apud DURANTE, 2012,
p. 21)

É neste contexto, que surge a noção de justiça para


Schopenhauer, pois, conforme expõe Ramos, analisando o
pensamento do filósofo, a

justiça se estabelece então de forma


negativa: a noção de algo injusto (Unrecht)
é primitiva e positiva, e a de justiça é
secundária e negativa. A injustiça é a
invasão no domínio onde se afirma a
vontade do outro: uma ação injusta é
aquela que consiste na destruição ou
ferimento do corpo do outro, ou então na
redução das forças desse corpo ao seu
próprio serviço; assim o injusto aumenta
as forças ao seu serviço e ultrapassa essa
soma de recursos que é seu próprio corpo,
ele afirma a sua própria vontade para além
dos seus próprios limites e o faz negando a
vontade manifestada num corpo estranho.
As ações justas são aquelas que não
ultrapassam os limites traçados pela
vontade do agente, limites estes que
apaziguam seu egoísmo. (RAMOS, 2012, p.
175).

E é para controlar a injustiça é que existe a legislação,


não para fazer justiça, não fosse a reconhecida injustiça típica
do homem, não haveria sequer a necessidade do Estado
legislador. Não haveria porque se falar em direito se não fosse a
injustiça, sendo assim, a doutrina do direito serve para
258
determinar o limite até onde a afirmação da vontade de um
indivíduo pode ir sem prejudicar o outro. Neste sentido, a teoria
da justiça nos escritos do filósofo se direciona para a supressão
da vontade. Os conceitos de justo e de injusto são, portanto,
têm valor moral e refere-se ao reconhecimento de que cada um
possui uma vontade de reside em si.
Por isso,

somente se a legislação positiva for


determinada essencialmente a partir da
pura doutrina do direito, e a razão para
cada uma de suas leis puder ser indicada
por ela, somente então poderá a legislação
constituir um verdadeiro direito positivo, e
o Estado uma associação legal e justa, um
Estado no sentido próprio do termo, uma
instituição admissível moralmente, não
imoralmente. Caso contrário, a legislação
positiva seria apenas o estabelecimento de
uma injustiça positiva, apenas uma
injustiça imposta e publicamente
admitida. (SCHOPENHAUER, 2005 apud
RAMOS, 2012, 178)

Sendo assim, “o Estado será concebido apenas como


uma instituição protetora, necessária devido aos ataques
múltiplos aos quais o homem é exposto e dos quais ele não
pode se defender senão por uma aliança com os outros”
(RAMOS, 2012, p. 177). Nas palavras de Schopenhauer:

Em minha obra principal (vol. 2, capítulo


47) mostrei que o Estado é essencialmente
uma mera instituição de proteção de todos
contra ataques externos e dos indivíduos
259
entre si. Disso se segue que a necessidade
do Estado repousa, em última instância,
na reconhecida injustiça do gênero
humano, sem o que não se teria pensado
em nenhum Estado, pois ninguém temeria
prejuízo a seu direito e uma mera reunião
contra os ataques de animais selvagens ou
dos elementos naturais teria uma fraca
semelhança com um Estado. Desse ponto
de vista vê-se claramente a trivialidade e a
platitude dos filosofastros que, em
discursos pomposos, apresentam o Estado
como o fim supremo e a flor da existência
humana, com o que oferecem uma
apoteose do filisteísmo. (SCHOPENHAUER,
1972 apud RAMOS, 2012, p. 182)
Portanto, um Estado coercitivo e não educativo, como
acreditam alguns filósofos.

Considerações finais

Podemos afirmar que a vontade é aquilo que sempre irá


reinar no mundo, que jamais poderemos quebrar sua corrente,
viver é ser vítima e cúmplice da vontade, como o próprio
Schopenhauer coloca. Jamais encontraremos o acalento para
nossa efemeridade, porém, podemos mudar certas condições e
pensar de forma mais aprofundada em meios de lidar com esse
fator tão decisivo para o filósofo. Não temos que encontrar uma
forma de justificar e superar essa “vontade”, e sim, devemos
encontrar meios de conviver com ela e fazer ao máximo para
não ceder completamente a seus desejos.
A vida é o momento do erro e da imperfeição, todos, como
acreditam os empiristas, nascem como uma tela em branco e,
260
sobre ela, nós mesmos pintamos e preenchemos os espaços de
nosso próprio todo, no caso, da existência. Nós aprendemos e
vivemos no decorrer em que vamos adentrando nesse mundo.
Portanto, compreendemos que devemos aceitar o que nos é
inerente, a morte e a vontade, e vivermos da melhor forma
possível lidando com esses detalhes da vida, pois, exceto que
ganhemos o dom da imortalidade ou a certeza de sermos felizes,
a vontade irá continuar escravizando a todos nós, sem
exceções. Viver da forma que vivemos é se fazer vítima da
vontade e possuir a morte sempre em nosso alcance, sem que
jamais possamos ignorá-la ou esquecê-la.
E mesmo o Estado legislador ou o conceito de justiça
sofre o imperativo da vontade, pois a mesma vontade se
apresenta naquele que faz o mal e no que o sofre. E o Estado
existe para exercer coerção sobre aquelas vontades que
extrapolam os limites entre a vontade de um e a do outro.

Referências:

DURANTE, Felipe dos Santos. Virtude, direito, moralidade e


justiça em Schopenhauer. f.134. Dissertação. Programa de
Mestrado do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da
UNICAMP. 2012.

FONTES, André. A necessidade metafísica segundo


Schopenhauer. Faculdade de Letras – Universidade de Lisboa,
2015.

MIRANDA, Daniel Carreiro. A retomada do problema acerca


da Liberdade da Vontade: de Santo Agostinho à
Schopenhauer. Disponível em: http://www.ambito-
juridico.com.br/site/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=
261
13053juridico.com.br/site/?n_link=revista_artigos_leitura&arti
go_id=13053. Acesso em: 16 nov. 2017.

RAMOS, Flamarion Caldeira. A teoria da justiça em


Schopenhauer. 2012. Disponível em:
https://periodicos.ufsc.br/index.php/ethic/article/viewFile/16
77-2954.2012v11nesp1p173/22996. Acesso em: 15 nov. 2017.

SCHOPENHAUER, A., Da necessidade metafísica. Lisboa:


Ed.Inquérito, 1938.

262
ANÁLISE DO RECURSO ESPECIAL N. 1475759/DF: DA
PRESCRIÇÃO NA AÇÃO DE PETIÇÃO DE HERANÇA
CUMULADA COM INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE

Alexandre Guilherme dos Santos1


Raphael Furtado Carminate2
Resumo:

O presente ensaio acadêmico se dedica a analisar a decisão


proferida pelo Superior Tribunal de Justiça no Recurso Especial
n. 1475759/DF, que versava sobre a prescrição da pretensão
formulada na ação de petição de herança cumulada com
investigação de paternidade. Trata-se de um relevante julgado,
na medida em que apresenta solução razoável para eventuais
dúvidas acerca do termo inicial do aludido prazo prescricional.
Quando se trata de mera ação de petição de herança, o prazo
tem início com o óbito do autor da herança. Contudo, caso esta
ação seja cumulada com a investigação de paternidade, é
válido repensar o termo inicial do curso da prescrição,
considerando-se que a pretensão de reivindicar a herança
dependerá do reconhecimento do estado de filho.

Introdução

A ação de petição de herança é o procedimento cabível na


hipótese em que, como resultado do processo de inventário
relativo aos bens deixados por uma pessoa falecida, tenha sido
concluída a partilha sem contemplar herdeiro com direito sobre
o monte partível. Antes da efetivação da partilha, os herdeiros
preteridos podem solicitar, no próprio processo de inventário, a

1 Graduando em Direito pela Faculdade Presidente Antônio Carlos de Mariana


(FUPAC).
2 Doutorando e Mestre em Direito Privado pela Pontifícia Universidade

Católica de Minas Gerais (PUC Minas).

263
sua inclusão; contudo, uma vez partilhados os bens, caso haja
herdeiro não considerado na divisão, por ser desconhecido pelo
inventariante, por exemplo, far-se-á necessário o ajuizamento
de uma nova ação, peticionando pela parte que lhe cabe.

Assim, uma hipótese deveras comum que dá ensejo ao


ajuizamento da ação de petição de herança se consubstancia
quando o autor da herança deixa de reconhecer a paternidade
de um filho antes de falecer. Este herdeiro então precisa
comprovar que é descendente do falecido para, como tal, poder
reivindicar seu direito à herança que fora partilhada sem a sua
habilitação. Nesse diapasão, o peticionário cumula uma ação
de investigação de paternidade com a ação de petição de
herança.
No que tange à prescrição da pretensão de ter
reconhecido o direito à herança, devemos considerar que,
quando se trata de mera ação de petição de herança, o termo
inicial para contagem do prazo prescricional é a data de
abertura da sucessão, ou seja, o dia de óbito do de cujus,
consoante entendimentos doutrinários e jurisprudenciais
majoritários. Entretanto, quando há a cumulação desta ação
com o procedimento de reconhecimento da paternidade, eis que
surge um questionamento: o termo inicial do aludido prazo
continua sendo a data de abertura da sucessão, ou seria a data
do trânsito em julgado da sentença proferida na ação que versa
sobre o estado de filho?

264
Para dirimir a dúvida, o Superior Tribunal de Justiça
proferiu uma decisão no Recurso Especial n. 1475759/DF, cuja
controvérsia se referia justamente ao termo inicial de contagem
da prescrição nas hipóteses de cumulação das ações de petição
de herança com a investigação de paternidade. Este importante
julgado será o objeto da nossa análise, na medida em que
trouxe um entendimento muito relevante para o Direito das
Sucessões.

2. Sobre a ação de petição de herança

Nas palavras de Carlos Roberto Gonçalves, a petição de


herança é “a ação pela qual o herdeiro procura o
reconhecimento judicial de sua qualidade, com vistas a
recuperar todo ou parte do patrimônio sucessório,
indevidamente em poder de outrem” (GONÇALVES, 2010,
p.143).
Quanto à natureza de tal ação, segundo a lição de Caio
Mário da Silva Pereira, a ação de petição de herança é uma
“ação real universal, quer o promovente postule a totalidade da
herança, se for o único da sua classe, quer uma parte dela, se a
sua pretensão é restrita a ser incluído como sucessor, entre os
demais herdeiros” (PEREIRA, 1998, p. 39). Com efeito, a
doutrina majoritária percebe a referida ação como de natureza
real, pois não visa somente ao reconhecimento da condição de
herdeiro; a finalidade de seu ajuizamento é obter o direito à
265
herança. Ainda que cumulada com uma ação de estado, como a
ação de investigação de paternidade, a petição de herança não
perde sua natureza real.
Na Legislação, a ação de petição de herança encontra-se
prevista no artigo 1.824 de nosso Código Civil, senão vejamos:

Art. 1.824. O herdeiro pode, em ação de


petição de herança, demandar o
reconhecimento de seu direito sucessório,
para obter a restituição da herança, ou de
parte dela, contra quem, na qualidade de
herdeiro, ou mesmo sem título, a possua
(BRASIL, 2002).

Por conseguinte, como consequência lógica da sentença


proferida na ação de petição de herança, tem-se a declaração de
ineficácia da partilha anterior que preteriu o herdeiro
peticionário, o reconhecimento de sua condição de herdeiro e a
condenação à restituição da herança por parte daqueles que se
favoreceram na partilha concluída e estão na posse dos bens.
Trata-se de procedimento hábil a reparar uma injustiça,
entregando ao herdeiro ignorado o que lhe é de direito, ainda
que não tenha havido má-fé na realização da partilha que o
desconsiderou, como ocorre quando sua existência é, de fato,
desconhecida.
Sobre a referida ação, também é necessário salientar
que o prazo prescricional de sua respectiva pretensão é o prazo
geral de 10 anos, pois como não existe expressa previsão legal

266
determinando um prazo diferenciado, aplica-se a regra geral
insculpida no artigo 205 do Código Civil. Destarte, este
dispositivo é extensível à pretensão formulada na ação de
petição de herança, uma vez que a Lei não lhe designa um
prazo próprio.
É mister pontuarmos que a prescrição da ação de petição
de herança se dá em 10 anos contados da abertura da sucessão,
o que, de acordo com o princípio da saisine, que norteia também
o Direito Sucessório brasileiro, ocorre no exato instante da
morte. Esse entendimento é compartilhado pela doutrina e
jurisprudência majoritárias, conforme o seguinte julgado
proferido pelo Superior Tribunal de Justiça:

CIVIL - AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO DE


PATERNIDADE, CUMULADA COM PEDIDO
DE HERANÇA - PRESCRIÇÃO - SUMULA
N. 149, DO STF - ARTIGOS 5., I; 169, I;
177; E 1572, DO CC. I- O prazo
prescricional da ação de petição de
herança flui a partir da abertura da
sucessão do pretendido pai, eis que é ela o
fato gerador; o momento em que o autor
completa dezesseis anos de idade é o limite
da interrupção da prescrição prevista no
art. 169, I, do Código Civil, por força do
disposto no art. 5º, I, do mesmo diploma
legal. II - Consoante entendimento
afirmado pela doutrina, "se o titular do
direito deixa de exercer a ação, revelando
desse modo seu desinteresse, não merece
proteção do ordenamento jurídico". III -
Recurso conhecido e provido (BRASIL,
1992).

267
Entretanto, como já salientado, há casos de filhos que não
foram reconhecidos pelo autor da herança antes de falecer e
que, por isso, para fazerem jus ao direito sucessório, precisam
ajuizar ação de investigação de paternidade juntamente com a
petição de herança. Afinal, o direito a herdar, sabemos, depende
da posse do estado de herdeiro. Essa hipótese suscitou dúvidas
quanto ao termo inicial da prescrição da pretensão formulada
na ação de petição de herança, já que esta dependeria do
resultado obtido na investigação de paternidade.
Por um lado, sabemos que o reconhecimento de
paternidade é imprescritível; todavia, a pretensão de obter os
direitos sobre a herança se submete ao prazo prescricional geral
de 10 anos informado pelo Código Civil. Tal entendimento foi
inclusive pacificado pela súmula 149 Supremo Tribunal
Federal, que preconiza que “é imprescritível a ação de
investigação de paternidade, mas não o é a de petição de
herança” (BRASIL, 1993). Ou seja: se há a cumulação das duas
ações, a despeito da imprescritibilidade do estado de filho,
mesmo que a paternidade seja afirmada, o herdeiro pode perder
a pretensão de obter para si a herança com o decurso do lapso
temporal supramencionado.
Isto posto, é razoável supor que, quando há a cumulação
dessas duas espécies de ação, ocorra a alteração do termo
inicial da prescrição, a fim de não prejudicar os direitos do
herdeiro não contemplado na partilha ultimada. Mas afinal,

268
como se dá a prescrição quando ambas as ações são
cumuladas? A resposta foi apresentada pelo Superior Tribunal
de Justiça ao apreciar o Recurso Especial n. 1475759/DF, que
ora analisaremos.

3. Recurso Especial n. 1475759/DF e a prescrição na ação


de petição de herança cumulada com investigação de
paternidade

O Recurso Especial n. 1475759/DF foi julgado pela


Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça e teve como
relator o Ministro João Otávio de Noronha. O processamento
se deu mediante segredo de justiça e o julgamento ocorreu em
17 de maio de 2016. Trata-se, portanto, de julgado
relativamente recente, que apresentou um paradigma para a
contagem do prazo prescricional da pretensão formulada na
ação de petição de herança cumulada com investigação de
paternidade.
A referida Turma do STJ levou em conta o fato de que a
petição de herança, oportunizada àquele que possui a
condição de herdeiro, depende, quando há a necessidade de
comprovação da paternidade, da sentença proferida na ação
de investigação. Sem o reconhecimento do estado de filho, não
há o reconhecimento do direito à herança, uma vez que o
peticionário não ostentaria a qualidade de herdeiro.

269
O entendimento do Tribunal, então, foi no sentido de
vincular a prescrição da pretensão formulada na petição de
herança ao trânsito em julgado da sentença proferida no
procedimento de investigação de paternidade, que representa o
termo inicial de contagem do prazo de 10 anos, haja vista a
ementa do julgado:

PROCESSO CIVIL. RECURSO ESPECIAL.


INTERPOSIÇÃO SOB A ÉGIDE DO
CPC/1973. DIREITO SUCESSÓRIO. AÇÃO
DE PETIÇÃO DE HERANÇA. ANTERIOR
AJUIZAMENTO DE AÇÃO DE
INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE.
PRESCRIÇÃO. TERMO INICIAL. FALTA DE
PREQUESTIONAMENTO. DEFICIÊNCIA
DE FUNDAMENTAÇÃO.
A petição de herança objeto dos arts.
1.824 a 1.828 do Código Civil é ação a ser
proposta por herdeiro para o
reconhecimento de direito sucessório ou a
restituição da universalidade de bens ou
de quota ideal da herança da qual não
participou. A teor do art. 189 do Código
Civil, o termo inicial para o ajuizamento da
ação de petição de herança é a data do
trânsito em julgado da ação de
investigação de paternidade, quando, em
síntese, confirma-se a condição de
herdeiro. Aplicam-se as Súmulas n.
211/STJ e 282/STF quando a questão
suscitada no recurso especial não tenha
sido apreciada pela Corte de origem. Incide
o óbice previsto na Súmula n. 284/STF na
hipótese em que a deficiência da
fundamentação do recurso não permite a
exata compreensão da controvérsia.
270
Recurso especial parcialmente conhecido e
desprovido (BRASIL, 2016).

Sendo a comprovação da paternidade um pressuposto


para o ajuizamento da ação de petição de herança por parte do
filho que tenha sido excluído da partilha, o STJ entendeu que,
na incidência conjunta de ambas as ações, o prazo
prescricional deve ter início com o trânsito em julgado da
sentença proferida no processo de investigação, de modo que o
direito à herança torna-se cristalino a partir do momento em
que resta incontroversa a condição de herdeiro. É relevante
destacar que a decisão proferida pela Terceira Turma foi
unânime.
Em síntese, conforme consta do relatório, o processo de
origem foi uma ação de petição de herança cumulada com
nulidade de partilha, julgada improcedente sob a alegação de
que havia ocorrido a prescrição da pretensão formulada pela
parte autora. Esta, por sua vez, interpôs apelação perante o
Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios, que
proveu o recurso, ponderando ser problemática a ausência de
fixação do prazo prescricional na Legislação.
Posteriormente, a parte ré, diante da apelação provida,
interpôs o Recurso Especial n. 1475759, sustentando a
prescrição da pretensão do autor, apontando em sua tese o
trânsito em julgado da sentença proferida no processo de
inventário dos bens como termo inicial para contagem do prazo.
A questão então foi submetida ao crivo do STJ.
271
O relator do recurso, Ministro João Otávio de Noronha,
expõe em seu voto a controvérsia até então existente:
Assim, conforme exposto, a controvérsia
em debate cinge-se, especificamente, à
fixação do termo inicial do prazo
prescricional da ação de petição de
herança: se deve ser a data do trânsito em
julgado do inventário, como defende a
parte recorrente, ou a data do trânsito em
julgado da ação de investigação de
paternidade, como consta do julgado de
origem (BRASIL, 2016).

O Ministro então acompanha a decisão proferida em sede


de apelação pelo Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos
Territórios, reconhecendo a pretensão formulada pela parte
autora na ação de petição de herança e afastando a alegação de
prescrição feita pela ré, considerando que o termo inicial do
prazo deve ser o trânsito em julgado da sentença na ação de
investigação de paternidade:

No trecho transcrito, entre as hipóteses de


incidência inclui-se a presente, em que a
ação somente foi proposta após findo o
inventário, porquanto, anteriormente, a
parte ajuizara ação de investigação de
paternidade, na qual foi reconhecida sua
condição de filho natural do investigado e,
consequentemente, de herdeiro dos bens
por ele deixados. A teor do que dispõe o
art. 189 do Código Civil, a fluência do
prazo prescricional, mais propriamente no
tocante ao direito de ação, somente surge
quando há violação do direito subjetivo
alegado. Assim, não há falar em petição de
herança enquanto não se der a
272
confirmação da paternidade (BRASIL,
2016).

O relator fundamenta o seu voto nas lições de eminentes


doutrinadores do Direito Civil, dentre eles Carlos Roberto
Gonçalves, transcrevendo a seguinte lição do autor civilista:

(...) Todavia, se a legitimação depender do


prévio reconhecimento da paternidade, o
dies a quo do prazo prescricional será a
data em que o direito puder ser exercido,
ou seja, o momento em que for
reconhecida a paternidade, e não o da
abertura da sucessão. Cumpre lembrar
que o ponto de partida da prescrição,
segundo o melhor entendimento, é o dia
em que se patentear o conflito de direitos,
pois é a partir daí que o possuidor assume
a postura de sucessor universal.1

Portanto, o julgado proferido no Recurso Especial n.


1475759/DF acompanha posicionamento já sustentado por
parte da doutrina. Reforçando a sua fundamentação, o relator
também cita a seguinte lição de Luiz Paulo Vieira de Carvalho:

Não obstante, para aqueles que entendem


(opinião majoritária), que as ações de
petição de herança sujeitam-se aos prazos
de prescrição extintiva, é de se dar
destaque que, quando forem cumuladas
com a investigatória de paternidade, o
prazo prescricional somente se iniciará
após o trânsito em julgado da sentença que
reconhecer a filiação, e não da data da
abertura da sucessão, pois, nos termos do

1 GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro: direito das


sucessões. 10ª ed., v. 7. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 154-155 apud BRASIL,
2016.
273
art. 189 do Código Civil, o termo inicial do
lapso prescricional só começa quando o
direito subjetivo alheio for lesado e não há
de se falar em violação se ainda não houve
o reconhecimento. Nessa direção, podemos
citar a profícua opinião de Mario Moacyr
ratificada e reproduzida na obra do
respeitado autor Carlos Roberto Gonçalves:
'Parece-nos assim, que, antes do
julgamento favorável da ação de
investigação de paternidade ilegítima, o
filho natural, não reconhecido pelo pai,
jamais poderá propor ação de petição de
herança para o fim de lhe ser reconhecida
a qualidade de herdeiro, com direito à
herança do seu indigitado pai. A ação de
investigação de paternidade, na hipótese
em causa, é um inafastável pressuposto,
uma prejudicial incontornável, para que o
filho possa intentar a ação de petição de
herança' [...] 'Conclui-se que não corre
contra o filho natural não reconhecido a
prescrição da ação de petição de herança.
'Action non natae non praescribitur '.2

Após a fundamentação, o Ministro relator conhece em


parte o recurso, negando-lhe provimento. Finaliza o seu
posicionamento com a seguinte síntese acerca do
questionamento inicialmente levantado, no que tange à
contagem do prazo prescricional:

Não procede, portanto, a alegação de que


o termo inicial é a data do trânsito em
julgado da ação de inventário, pois, à
época, não tinha ainda sido reconhecida a
condição de herdeira da parte recorrida e,
consequentemente, seu direito à herança.
Não podia, assim, exercer seu legítimo
direito de voltar-se contra os termos do

2CARVALHO, Luiz Paulo Vieira de. Direito das Sucessões. São Paulo: Atlas,
2014, p. 283 apud BRASIL, 2016.
274
inventário. Dessa forma, conclui-se que, a
teor do art. 189 do Código Civil, o termo
inicial para o ajuizamento da ação de
petição de herança é a data do trânsito em
julgado da ação de investigação de
paternidade, quando, em síntese,
confirma-se a condição de herdeiro
(BRASIL, 2016).
Com efeito, caso se considerasse que o termo inicial para
contagem do prazo é a data do trânsito em julgado da ação de
inventário, nas hipóteses de ajuizamento de ação de
investigação de paternidade post mortem, não seriam raros os
casos deprescrição da pretensão formulada na petição de
herança, em virtude de eventual morosidade no reconhecimento
do estado de filho, essencial ao procedimento de obtenção do
direito à herança.
Nesse diapasão, os demais ministros da Terceira Turma
do STJ acompanharam o voto do Ministro relator. Os Ministros
Paulo de Tarso Sanseverino, Ricardo Villas Bôas Cueva, Marco
Aurélio Bellizze e Moura Ribeiro também conheceram do
recurso especial, negando-lhe provimento e, assim,
reconheceram o direito pleiteado pela parte autora, a despeito
da rechaçada alegação de prescrição.

Considerações Finais

No nosso entendimento, é correto vincular o termo inicial


da prescrição da pretensão formulada na ação de petição de
herança cumulada com investigação de paternidade ao trânsito

275
em julgado da sentença proferida no procedimento de
investigação, uma vez que somente com o reconhecimento da
condição de herdeiro (no caso, a posse do estado de filho) nasce
a pretensão para reivindicar os direitos sobre a herança. Trata-
se de medida de lídima justiça, posto que apta a assegurar que
o herdeiro preterido em partilha na qual não foi beneficiado
disponha de lapso temporal razoável para manifestar-se acerca
do inventário e requerer o que lhe é de direito, ou seja, a
entrega dos bens da herança.
Deve ser observado, na fixação do termo inicial do prazo,
o princípio da actio nata, segundo o qual a prescrição tem início
com o nascimento da pretensão. Enquanto não é atestada a
paternidade e a consequente condição de herdeiro, não há que
se considerar existente a pretensão de reivindicar a herança.
Esta pretensão depende da confirmação do estado de filho.
Em suma: via de regra, tratando-se de ação de petição de
herança, o prazo prescricional de 10 anos terá início com a
abertura da sucessão, ou seja, com o falecimento do autor da
herança. Excepcionalmente, nas hipóteses em que o
reconhecimento da paternidade é ulterior ao seu óbito, justifica-
se a designação da data do trânsito em julgado da ação de
investigação como termo inicial do lapso prescricional. Assim,
comungamos do entendimento trazido na decisão proferida pela
Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, quando do
julgamento do Recurso Especial n. 1475759/DF, na qual é

276
apresentada, em seu dispositivo, sólida fundamentação, o que
evidencia que a doutrina tende a corroborar esse
posicionamento. O referido julgado é deveras importante,
porque constitui um precedente apto a nortear outras futuras
decisões, e apresenta a solução mais razoável acerca do início
da contagem do prazo prescricional quando há ação de petição
de herança cumulada com investigação de paternidade.
Como sabemos, é notório que filhos não reconhecidos em
vida pelo autor da herança enfrentem obstáculos ao reivindicar
o que lhes é de direito, sendo comumente recebidos com
hostilidade pelos herdeiros que se beneficiaram com a partilha.
O STJ, em decisão justa, levou em consideração os direitos do
herdeiro excluído da partilha, salvaguardando que a prescrição
não lhe afaste a possibilidade de pleitear a herança. Não por
acaso, a unanimidade nos votos dos julgadores que apreciaram
o Recurso Especial em comento.

Referências

BRASIL. Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o


Código Civil. Brasília, 2002. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10406.htm>.
Acesso em: 15 dez. 2017.

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17556/MG. Rel. Min. Waldemar Zveiter. DJ 17/11/1992.
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro, volume
7: direito das sucessões. 4ª ed., São Paulo: Saraiva, 2010.

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1475759/DF. Rel. Min. João Otávio de Noronha. DJe
20/05/2016.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Súmula 149: É


imprescritível a ação de investigação de paternidade, mas
não o é a de petição de herança. Data de Aprovação:
13/12/1963.
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. V.
6. Direito das sucessões. 12 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1998.

278
Magna Campos
Mariana,
2018.
279

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