Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
The new dimension of digital consumer protection before accessing personal data in cyber
space
Revista de Direito do Consumidor | vol. 134/2021 | p. 195 - 226 | Mar - Abr / 2021
DTR\2021\6892
_____________________________________________________________________________
Dennis Verbicaro
Doutor em Direito do Consumidor pela Universidade de Salamanca (Espanha). Mestre em
Direito do Consumidor pela Universidade Federal do Pará. Professor da Graduação e dos
Programas de Pós-Graduação Stricto Sensu da Universidade Federal do Pará-UFPA e do
Centro Universitário do Pará-CESUPA. Líder dos Grupos de Pesquisa (Cnpq) “Consumo e
Cidadania” e “Consumo Responsável e Globalização Econômica”. Procurador do Estado do
Pará, Advogado e Diretor do Brasilcon. dennis@verbicaro.adv.br
Janaína Vieira
Mestranda em Direito pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal do Pará –
UFPA. Especialista em Direito aplicado aos serviços de saúde – Estácio. MBA em Direito
Civil e Processo Civil – FGV Rio. Pesquisadora no Grupo de Pesquisa (CNPq) “Consumo e
Cidadania”. Advogada. janainanasvieira@gmail.com
Página 1
A nova dimensão da proteção do consumidor digital diante do
acesso a dados pessoais no ciberespaço
hypothetical-deductive method with national and foreign reference was used to elaborate
this research.
Para citar este artigo: VERBICARO, Dennis; VIEIRA, Janaína. A nova dimensão da
proteção do consumidor digital diante do acesso a dados pessoais no ciberespaço. Revista
de Direito do Consumidor. vol. 134. ano 30. p. 195-226. São Paulo: Ed. RT, mar./abr.
2021. inserir link consultado. Acesso em: DD.MM.AAAA.
Sumário:
1. Introdução - 2. Poder e controle: a assimetria relacional no capitalismo de vigilância - 3.
O novo ciclo mercadológico dos dados pessoais e atores da publicidade direcionada - 4.
Implicações jurídicas do acesso a dados pessoais nas relações de consumo: a
vulnerabilidade algorítmica do consumidor inserido nesse contexto - 5. A responsabilização
por uso indevido de dados pessoais: aspectos gerais da Lei Geral de Proteção de Dados
Pessoais - 6. Conclusão - 7. Referências
1. Introdução
O uso de dados pessoais é uma constante na vigilância e no controle coletivo exercidos por
governos e empresas. Mas é inegável que a crise gerada pela pandemia da COVID-19
intensificou a sua utilização, escancarou as políticas de monitoramento e a necessidade da
transparência nesse uso.
Página 2
A nova dimensão da proteção do consumidor digital diante do
acesso a dados pessoais no ciberespaço
O novo contexto, marcado pelo uso de plataformas eletrônicas para compras de produtos
e serviços, realização de reuniões por videoconferências, crescimento dos sites de
marketplace – inclusive com a disponibilização de espaço para pequenos empreendedores
venderem em meio à crise –, fomenta uma nova realidade pautada no isolamento dos
indivíduos, caracterizada pelo individualismo e segregação social e confiança excessiva nas
plataformas online, gerando uma nova espécie de vulnerabilidade: a algorítmica,
sobretudo agravada pela regulação técnico-normativa insuficiente desses novos
fenômenos.
Destarte, analisar-se-á o novo ciclo mercadológico dos dados pessoais dos atores da
publicidade direcionada, para examinar o agravamento da vulnerabilidade do consumidor,
a partir desse novo viés algorítmico, sem ignorar suas dimensões comportamental,
informacional e situacional. Por fim, estudam-se os aspectos gerais da Lei 13.709/2018
(LGL\2018\7222), com suas alterações por meio da Lei 13.853/2019 (LGL\2019\5777), e
das demais leis, em busca de mecanismos de maior proteção ao consumidor.
Segundo a teoria foucaultiana, na passagem do século XVIII para o século XIX, houve a
transição do poder soberano ao poder disciplinar. Por um lado, surgiram as clínicas
psiquiátricas; por outro, as prisões se tornaram mais humanizadas. O poder deixou de fixar
a lei e passou a focar a internalização subjetiva da norma, “através de mecanismos de
dominação do corpo social, que o mantinha atado por uma trama cerrada de coerções
disciplinares, de forma a garantir-lhe coesão”5. O poder disciplinar, portanto, usa como
instrumento uma hierarquia clara, uma série de atividades repetitivas, vigilância e
avaliação para formar corpos dóceis. São técnicas de controle dos corpos e dos produtos do
trabalho e rituais de obediência que realizam uma constante força a fim de garantir a
submissão.
Para Foucault, “a disciplina não é mais simplesmente uma arte de repartir os corpos, de
extrair e acumular o tempo deles, mas de compor forças para obter um aparelho
eficiente”6. O poder disciplinar não tem a função de apropriar-se, mas de adestrar, e a
vigilância se torna um operador econômico decisivo por ser peça interna no aparelho de
Página 3
A nova dimensão da proteção do consumidor digital diante do
acesso a dados pessoais no ciberespaço
Nesse sentido, o Panóptico é uma forma de assujeitamento dos presos, uma vez que,
entendendo que são observados, agem de forma pacífica, independentemente da
comprovação da vigilância. Assim, o controle é realizado de maneira subjetiva e individual;
cada pessoa vigiada respeita as normas estipuladas naquele estabelecimento pelo simples
temor da observação.
Ao demonstrar uma relação entre o poder disciplinar e a sociedade líquida, Bauman e Lyon 9
afirmam que se vive em um modelo pós-panóptico, ou seja, na mesma proporção da
pacificação e do assujeitamento estabelecidos no poder disciplinar, mas em um espaço
desterritorial: o ciberespaço. Graças ao acesso a dados pessoais disponíveis no
ciberespaço, todos são vigiados e controlados. Nesse sentido, quanto maior o acesso aos
dados pessoais, maior será o poder daquele que os detém diante daqueles que os expõem.
A consequência é similar ao poder disciplinar supramencionado, ou seja, o assujeitamento
e a subordinação.
Assim, nesse modelo pós-panóptico, o indivíduo tem papel ativo na sua própria vigilância.
A negativa dos ditames da sociedade confessional acarreta a morte social pela exclusão11.
O modelo é fundamental para a compreensão da autodisciplina, uma vez que a visibilidade
se torna a armadilha de sujeição. Quando se observa tal modelo em confronto com o
acesso a dados pessoais disponíveis na rede, é nítido que os conceitos de poder e de
controle caminham para uma nova designação, em razão da constante vigilância: os
algoritmos mostrarão aqueles que devem ser confinados, ou ainda controlados, e aqueles
que serão excluídos12 pela sua discriminação racional logarítmica.
Página 4
A nova dimensão da proteção do consumidor digital diante do
acesso a dados pessoais no ciberespaço
Para Cassino13, saiu-se da sociedade disciplinar, estabelecida por Foucault, que tinha por
base a força física, para a sociedade de controle, cuja ferramenta é a modulação 14 pela
tecnologia. Deleuze destaca que a mutação do capitalismo propiciou a modificação do
exercício do poder, o controle é executado de forma contínua e ilimitada; os “indivíduos
tornaram-se ‘dividuais’, divisíveis, e as massas tornaram-se amostras, dados, mercados
ou ‘bancos’”15, sendo o marketing instrumento da modulação social.
Para Zuboff18, o controle no ciberespaço é realizado pelo Big Other19 por meio do acesso a
dados pessoais. O Big Other classifica, identifica e diagnostica tendências e interesses pelo
constante monitoramento individual, mas recorrendo à modulação coletiva, seja por
interesse mercadológico, seja por interesses estatais.
Não é errado afirmar que o acesso a dados e sua utilização para a modulação brincam com
medos, instintos e raiva para criar polos sociais, facilitando, assim, a dominação. Podem-se
citar como exemplos diversos casos contemporâneos, como a investigação envolvendo a
Cambridge Analytica na eleição do presidente americano Donald Trump, sua influência no
Brexit20 ou ainda nas discussões sobre fake news. Independentemente da influência do uso
de dados para a manipulação democrática, é fato que a modulação algorítmica é realizada
em âmbito desterritorial e além das soberanias estatais.
Nesse cenário, o acesso a dados se tornou “um instrumento valioso, podendo potencializar
a esfera do dano a ser impingido e, ainda, tornar-se uma informação organizada,
percorrendo desde os atos mais banais aos mais íntimos de cada indivíduo”21. Assim, o
consumidor é a própria mercadoria ao dispor de seus dados; no entanto, como explicam
Verbicaro e Martins22, ele não reconhece a exata dimensão dada ao uso de suas
informações disponibilizadas.
Página 5
A nova dimensão da proteção do consumidor digital diante do
acesso a dados pessoais no ciberespaço
Os negócios que envolvem o acesso a dados pessoais são, aparentemente, gratuitos, o que
contraria a tradicional relação jurídica caracterizada pela contraprestação pecuniária
direta. No entanto, essa relação é suportada pelo financiamento da publicidade
direcionada. Quando se observa a economia de dados, constata-se que o consumidor é a
própria mercadoria, uma vez que são as suas informações que servem de insumo para essa
economia.
Segundo Konder e Souza23, para que um contrato seja considerado oneroso, é necessário
verificar as vantagens e os sacrifícios das partes, o que não implica um nexo de
reciprocidade obrigacional, sendo a onerosidade dependente da existência de qualquer
sacrifício, ainda que não esteja diretamente vinculada ao objeto contratual. Mesmo que
não haja a indicação clara de remuneração direta, existem os casos com “gratuidade
aparente”, em que o fornecedor, embora não exija diretamente do consumidor a
prestação, alcança vantagem em razão daquela relação, o que ocorre nitidamente na
economia de dados pessoais24.
“Traçando um paralelo com outras operações econômicas, cuja contraprestação pelo bem
de consumo é fixada pecuniariamente, sabe-se exatamente o custo de transação
caracterizado por um deslocamento patrimonial, enquanto na lógica da economia
informacional, é incerto como a disponibilização de uma informação pessoal poderá afetar
o seu titular e, por conseguinte, o ‘preço’ a ser pago pelo bem de consumo” 25. (grifos do
original)
Os anúncios publicitários não estão vinculados a websites, mas na navegação dos usuários.
Os players agem de forma cooperativa para direcionar a mensagem publicitária e criar
perfis de consumo. Conforme Bioni 27, na prática, é possível realizar o direcionamento
publicitário por redes (ad networks) conectadas por milhares de veículos (publishers) aos
anunciantes (advertisers). Os veiculadores publicitários (publishers) terceirizam a venda
dos seus espaços publicitários ao anunciante (advertiser) para a promoção de um produto
ou serviço, alcançando ainda outros inúmeros atores relacionados com a publicidade
direcionada na web.
Página 6
A nova dimensão da proteção do consumidor digital diante do
acesso a dados pessoais no ciberespaço
sobreposição das redes de publicidade pelo acúmulo de maior quantidade de dados gera o
data brokers28.
Data brokers são intermediários que coletam informações pessoais dos consumidores de
variadas fontes para vendê-las ou cedê-las a outras empresas. São empresas que
normalmente não participam da relação de consumo tradicional; muitas vezes, o
consumidor desconhece a sua existência e a sua prática. Para a Federal Trade
Commission29, os data brokers compilam informações dos consumidores com o principal
objetivo de traçar perfis a fim de direcionar a publicidade. Tal tratamento de informação
normalmente não é informado ao consumidor, que tem seus dados coletados, manipulados
e compartilhados sem seu conhecimento e, consequentemente, sem seu consentimento.
Trata-se de um ciclo informacional obscuro na relação, que influi, porém, diretamente no
êxito do negócio.
Com novos atores, é possível afirmar que a concepção de fornecedores na relação discutida
deve ser ampliada. O artigo 3º30 da Lei 8.078 – o Código de Defesa do Consumidor (CDC
(LGL\1990\40)) – enuncia um rol de fornecedores, e o termo “mediante remuneração”
deve ser interpretado de forma ampla para considerar ganhos indiretos. Assim,
exemplificativamente, equipara-se ao fornecedor aquele intermediário da relação de
consumo. Como exemplo, podem-se citar as plataformas virtuais na economia
colaborativa. São consideradas provedoras de aplicação, conforme o artigo 15 da Lei
12.965/2014 (LGL\2014\3339), e responsáveis em caso de vício ou defeito do produto
e/ou serviço31. Ainda, a Lei Geral de Proteção de Dados (Lei 13.709, de 14 de agosto de
2018 (LGL\2018\7222)) criou as figuras do controlador e do operador de dados pessoais,
que serão responsabilizados em caso de uso indevido ou ilícito.
Nesse sentido, é fato que o zero-price advertisement business model é uma complexa
forma de realização de negócio por intermédio de novos atores, por vezes desconhecidos
pelo consumidor, tendo em vista a criação de perfis com a finalidade de direcionar a
publicidade, e, com base no perfil comportamental, a persuasão ao consumo de bens e/ou
serviços. Afirmar que a ausência de onerosidade desqualifica a relação de consumo é uma
grande falácia. Nessa relação, o consumidor, além da participar de todo o ciclo
mercadológico como destinatário final do bem de consumo por meio da publicidade
direcionada, torna-se a própria mercadoria, quando disponibiliza seus dados pessoais para
ter acesso à plataforma.
Página 7
A nova dimensão da proteção do consumidor digital diante do
acesso a dados pessoais no ciberespaço
Assim, os dados dizem respeito a uma nova espécie de definição de identidade e, por isso,
devem ser protegidos de forma fidedigna. Além da novel categoria da vulnerabilidade
algorítmica, convêm destacar outras dimensões correlatas dessa característica intrínseca
do consumidor, que podem coexistir numa mesma situação concreta, como se verá a
seguir.
No ambiente virtual, o dever de informar faz parte do rol de deveres mais relevantes para
a relação de consumo. Pelas próprias características do ciberespaço, em razão de sua
natureza despersonalizada, a informação é o principal instrumento para a realização do
negócio. As ofertas em sites são globais, amplas e a distância. São “ofertas sem diálogo”,
desumanizadas, sem cara37. Daí a necessidade da informação, sem a qual a livre escolha
Página 8
A nova dimensão da proteção do consumidor digital diante do
acesso a dados pessoais no ciberespaço
Página 9
A nova dimensão da proteção do consumidor digital diante do
acesso a dados pessoais no ciberespaço
Diante de uma sociedade dinâmica com inúmeras opções, o ato de fazer escolhas
autênticas se torna incômodo, pois traz responsabilidades, razão pela qual uma informação
excessiva e eminentemente técnica leva o consumidor a decidir por impulso, em ato de
hiperconfiança, o que pode trazer consequências negativas, que não apenas o mero
arrependimento.
A proposta de uma vida “presentista” sugere decisões rápidas e não refletidas, que alienam
o consumidor. É o fenômeno definido por Byung-Chul Han como “cansaço da
informação”48. como” A totalização do consumo suprime toda formação de contração
imunológica. Uma defesa imunológica intensa sufoca a comunicação. Quanto menor a
barreira imunológica, mais rápida se torna a circulação da informação” 49.
Página 10
A nova dimensão da proteção do consumidor digital diante do
acesso a dados pessoais no ciberespaço
No país, o Projeto de Lei (PL) 281/2012, atual PL 3514/2015 56, e o PL 283/2012, atual PL
3515/201557, combatem diretamente o assédio de consumo. O PL 3515/2015, no seu
artigo 54-C, veda o assédio de consumo na oferta de crédito, principalmente aos
considerados hipervulneráveis. Já o PL 3514/2015 se propõe a ampliar o rol de direitos
básicos do consumidor, ao dispor que, no artigo 6º do CDC (LGL\1990\40), deve constar o
inciso XII, assegurando “a liberdade de escolha, em especial frente a novas tecnologias e
Página 11
A nova dimensão da proteção do consumidor digital diante do
acesso a dados pessoais no ciberespaço
Para Baker59, a vulnerabilidade pode ser rotulada como abordagem situacional. Estudiosos,
usando essa abordagem, tratam a vulnerabilidade como um conceito multidimensional e
como um processo dinâmico. A vulnerabilidade é considerada como uma questão empírica
a ser determinada com base na natureza da situação real e na realidade do cotidiano.
Assim, a vulnerabilidade situacional é fluida e construída socialmente dependendo do
contexto.
Baker60 ainda afirma que a perspectiva situacional fornece uma ferramenta teórica mais
sensível para a análise da impotência e da dependência das pessoas ante uma dada
situação. A vulnerabilidade algorítmica pode ser entendida como um aprimoramento da
vulnerabilidade situacional, especificada para um contexto de tratamento dos dados
pessoais do consumidor.
Pode-se destacar ainda que, mesmo com a negativa de utilização de aplicativos e serviços
coletores de dados, o acesso à rede de transmissão possibilita o acesso aos dados. Nesse
sentido, o contexto em que o consumidor está inserido é decisivo para disponibilizar
informações pessoais, o que indica sua vulnerabilidade situacional.
Página 12
A nova dimensão da proteção do consumidor digital diante do
acesso a dados pessoais no ciberespaço
A finalidade, por exemplo, foi citada em diversos momentos na lei em discussão, como nos
artigos 5º, XII, 6º, 7º, § 3º, 8º, § 4º, 9º, I e V, § 2º, 10º, § 1º, 11º, I, 15, I, 33, VIII, e 60,
II. A principal premissa é vincular o tratamento de dados pessoais ao fim que motivou e
justificou a sua coleta, destacando-se que a utilização dos dados pessoais de maneira
diversa da finalidade informada ao consumidor será justificativa para amparar a nulidade
do consentimento e a responsabilização do agente.
Página 13
A nova dimensão da proteção do consumidor digital diante do
acesso a dados pessoais no ciberespaço
Por outro lado, considerando ainda o estabelecido nos artigos 20, 21 e 22 da LGPD, o
consentimento não deve ser uma maneira de onerar o titular dos dados, em nenhuma
hipótese, inclusive quando houver uma relação com decisões sobre a criação dos perfis de
consumo, de crédito e de aspectos da personalidade, tanto de forma coletiva quanto
individual.
Vale ainda observar que a irregularidade no uso dos dados está vinculada à segurança da
proteção informacional. A adoção de medida de segurança para evitar acessos não
autorizados é de essencial importância no trabalho dos agentes. A LGPD estabelece
medidas de proteção contra o tratamento inadequado e ilícito dos dados, tendo os agentes
o dever de zelar pelos dados, desde a sua concepção até o término do tratamento e sua
exclusão, “podendo a autoridade nacional dispor sobre padrões técnicos mínimos,
considerando a natureza das informações, as características específicas do tratamento e o
estado atual da tecnologia, especialmente no caso de dados pessoais sensíveis”72. Em caso
de incidente de segurança que afete os dados processados, o agente de dados deve
informar a autoridade nacional no prazo razoável 73.
Uma das maiores críticas à Lei 13.709/2018 (LGL\2018\7222) foi o veto ao artigo 55, cuja
principal consequência foi a retirada da Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD),
que seria responsável pela elaboração e pela fiscalização de diretrizes para a instauração
da Política Nacional de Proteção de Dados.
É fato que tal veto representou uma inequívoca incerteza sobre a efetividade da aplicação
da lei pela supressão da autoridade de fiscalização. Nesse sentido, em virtude do vasto
clamor social e das severas críticas, a Presidência da República, em 27 de dezembro de
2018, criou, por meio da Medida Provisória (MP) 869, a Autoridade Nacional de Proteção de
Página 14
A nova dimensão da proteção do consumidor digital diante do
acesso a dados pessoais no ciberespaço
Dados. A MP foi aprovada em maio de 2019 pela Câmara e pelo Senado, e sancionada em
julho de 2019 pelo presidente da República por meio da Lei 13.853/2019
(LGL\2019\5777). Vale destacar ainda que em 26 de agosto de 2020, por meio do Decreto
10.474/2020 (LGL\2020\11365) foi aprovada a estrutura regimental e o quadro dos cargos
e funções em comissão que irão compor a ANPD.
Nesse sentido, apesar de reconhecer o diálogo entre as legislações e os órgãos que fazem
parte de ambas as políticas, a primazia da ANPD quanto às matérias que envolvem
relações consumeristas pode causar insegurança jurídica e inexecução das medidas
indicadas pelos órgãos integrantes da Política Nacional das Relações de Consumo quando o
assunto envolver dados pessoais.
Página 15
A nova dimensão da proteção do consumidor digital diante do
acesso a dados pessoais no ciberespaço
Vale destacar a criação da Lei Federal 13.979/2020 (LGL\2020\1068), conhecida como “Lei
da Quarentena”, que impôs critérios para cumprimento de medidas de isolamento e
quarentena. Tal lei limitou direitos constitucionais básicos, como o de locomoção e de
liberdade econômica78. Ademais, foi inserido no ordenamento jurídico brasileiro, por meio
do Decreto 10.212/2020 (LGL\2020\835), o Regulamento Sanitário Internacional
produzido pela Organização Mundial da Saúde (OMS), que dedica especial atenção à
proteção de dados pessoais, especialmente no seu artigo 45 79, ao admitir o seu tratamento
pelos Estados quando for essencial para os fins de avaliação e de manejo de um risco para
a saúde pública80. Por outro lado, a Medida Provisória 954, de 17 de abril de 2020
(LGL\2020\4849), admitiu o compartilhamento de dados pessoais entre as empresas de
telefonia e o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) para fins de suporte à
produção estatística oficial durante uma situação de emergência de saúde pública 81.
Nos dias 6 e 7 de maio, a decisão monocrática foi confirmada pela Corte do STF, que
reconheceu a proteção dos dados pessoais como direito fundamental autônomo. Essa
decisão, segundo Mendes82, é um marco histórico para a proteção dos dados pessoais por
reconhecer a proteção de dados pessoais como direito fundamental, por impor deveres
negativos e positivos ao Estado quanto a sua proteção e por indicar que a prorrogação da
Página 16
A nova dimensão da proteção do consumidor digital diante do
acesso a dados pessoais no ciberespaço
6. Conclusão
O Código de Defesa do Consumidor, por sua natureza analítica, traz regras, princípios
positivados e vai além, ao conceituar seus institutos, como as noções de consumidor
(individual e coletivo) e fornecedor. Em relação a este último, estabeleceu um rol aberto e
exemplificativo no artigo 3º, abrangendo várias atividades e segmentos econômicos.
É fato que a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais apresenta regras específicas que
devem ser analisadas em conjunto com o Código de Defesa do Consumidor, em virtude da
aderência ao diálogo das fontes e da crescente mercantilização dos dados pessoais. Não se
pode discutir sobre proteção de dados sem observar como o seu uso indevido interfere na
fruição plena de alguns direitos básicos do consumidor, como privacidade, intimidade,
liberdade de escolha e acesso à informação qualificada.
Como foi visto no tópico 4, o uso e o tratamento abusivo dos dados pessoais do consumidor
favoreceu o surgimento de uma nova espécie de vulnerabilidade: a algorítmica, que
atrelada às suas congêneres informacional, comportamental e situacional, demonstram a
importância da regulação tecno-normativa do ciclo mercadológico nessa nova esfera
Página 17
A nova dimensão da proteção do consumidor digital diante do
acesso a dados pessoais no ciberespaço
Na verdade, não se tem a real dimensão dos riscos avindos da confiança excessiva do
consumidor nas plataformas eletrônicas, em especial quanto à colheita e destinação de
suas informações pessoais, daí porque se revela ingênuo acreditar em autonomia plena da
vontade do consumidor ao, inconscientemente, transigir e dispor acerca de sua intimidade
e privacidade.
Por fim, fica a seguinte indagação: como se dará a efetiva responsabilização administrativa
no âmbito da ANPD, na hipótese do uso indevido de dados em uma relação de consumo em
que o consentimento foi viciado em razão da vulnerabilidade em quaisquer de suas
dimensões (algorítmica, informacional, comportamental e situacional) sem que haja a
atuação conjunta dos órgãos? Vale ressaltar que o tema é instável diante dos constantes
novos quadros relacionados à proteção de dados pessoais e à composição da ANPD.
Apenas com uma maior maturidade dos novos institutos jurídicos, com a participação
política qualificada de todos os agentes envolvidos em um diálogo racional permanente,
em especial pelo exercício da cidadania instrumental do consumidor, será possível avaliar
os níveis de eficácia social e de efetividade da nova dimensão da proteção jurídica dos
dados pessoais e, consequentemente, da privacidade virtual do consumidor.
7. Referências
ALECRIM, Emerson. Polícia dos EUA diz usar rastreamento de contato contra
manifestantes. Tecnoblog, 02.06.2020. Disponível em:
[https://tecnoblog.net/343157/rastreamento-contato-policia-estados-unidos-manifestant
es/]. Acesso em: 15.06.2020.
BAKER, Stacey Menzel. Vulnerability and Resilience in Natural Disasters: A Marketing and
Public Policy Perspective. Journal of Public Policy & Marketing, [s.l.], v. 28, n. 1,
Página 18
A nova dimensão da proteção do consumidor digital diante do
acesso a dados pessoais no ciberespaço
BAUMAN, Zygmunt; LYON, David. Vigilância líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2013.
CATALAN, Marcos; PITOL, Yasmine Uequed. Primeiras linhas acerca do tratamento jurídico
do assédio de consumidor no Brasil. Revista Luso-Brasileira de Direito do Consumo, [s.l.],
v. 7, n. 25, p. 173-190, mar. 2017.
FEDERAL TRADE COMMISSION. Data Brokers: Call for Transparence and Accountability.
Washington, DC, May 2014, p. i. Disponível em:
[www.ftc.gov/reports/data-brokers-call-transparency-accountability-report-federal-trade
-commission-may-2014]. Acesso em: 30.05.2020.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: o nascimento da prisão. 20. ed. Trad. Raquel
Ramalhete. Petrópolis: Vozes, 1999.
GOMES, Márcia Letícia; SPAREMBERGER, Raquel Fabiana; BRUM, Amanda Netto. Pelo
direito de estar só: o direito à intimidade na era da internet. In: CONGRESSO
INTERNACIONAL DE DIREITO E CONTEMPORANEIDADE, 3, 2015, Santa Maria. Anais [...].
Página 19
A nova dimensão da proteção do consumidor digital diante do
acesso a dados pessoais no ciberespaço
KONDER, Carlos Nelson de Paula; SOUZA, Amanda Guimarães Cordeiro de. Onerosidade
do acesso às redes sociais. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, ano 28, v. 121,
p. 185-212, jan.-fev. 2019.
LACE, Susane. The glass consumer: life in a surveillance society. Bristol: Policy Press,
2005.
NUNES, Rizzatto. Curso de direito do consumidor. 11. ed., rev. e atual. São Paulo: Saraiva,
2017.
Página 20
A nova dimensão da proteção do consumidor digital diante do
acesso a dados pessoais no ciberespaço
SILVA, Joseane Suzart Lopes da. A proteção de dados pessoais dos consumidores e a Lei
13.709/2018 (LGL\2018\7222): em busca da efetividade dos direitos a privacidade,
intimidade e autodeterminação. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, ano 28,
v. 121, p. 367-418, jan.-fev. 2019.
TADEU, Silney Alves. Um novo direito fundamental: algumas reflexões sobre a proteção da
pessoa e o uso informatizado de seus dados. Revista Direito do Consumidor, v. 79,
p. 83-99, 2011.
VERBICARO, Dennis; ATAÍDE, Camille da Silva Azevedo. O crédito como objeto de tensão
qualificada na relação de consumo e a necessidade de prevenção ao superendividamento.
Revista da Faculdade de Direito da UFRGS, Porto Alegre, v. esp., n. 36, p. 73-89, out.
2017.
WARREN, Samuel D.; BRANDEIS, Louis D. The Right to Privacy. Harvard Law Review,
Cambridge, MA, v. 4, n. 5, p. 193-220, Dec. 1890.
Página 21
A nova dimensão da proteção do consumidor digital diante do
acesso a dados pessoais no ciberespaço
Legislação
1 .NA CHINA, aplicativos de rastreamento do coronavírus estão em toda parte. G1. Matéria
difundida pela Agência France-Presse. 13 maio 2020. Disponível em:[
https://g1.globo.com/mundo/noticia/2020/05/13/na-china-aplicativos-de-rastreamento-
do-coronavirus-estao-em-toda-parte.ghtml]. Acesso em: 10.06.2020.
2 .ALECRIM, Emerson. Polícia dos EUA diz usar rastreamento de contato contra
Página 22
A nova dimensão da proteção do consumidor digital diante do
acesso a dados pessoais no ciberespaço
9 .BAUMAN, Zygmunt; LYON, David. Vigilância líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2013.
p. 55-74.
10 .BAUMAN, Zygmunt; LYON, David. Vigilância líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2013.
p. 61.
Página 23
A nova dimensão da proteção do consumidor digital diante do
acesso a dados pessoais no ciberespaço
11 .Para Enriquez, “desde que não nos esqueçamos de que o que antes era invisível à cota
de intimidade – a vida interior de cada um – agora deve ser obrigatoriamente exposto no
público (sobretudo nas telas de TV, mas também no palco literário), devemos entender que
aqueles que prezam sua invisibilidade tendem a ser rejeitados, postos de lado ou
transformados em suspeitos de um crime. A nudez física, social e psicológica está na
ordem do dia” (ENRIQUEZ, Eugène. L’idéal type de l’individu hypermoderne: l’individu
pervers? In: AUBERT, Nicole (org.). L’individu hypermoderne. Toulouse: Érès, 2004. p. 49,
tradução nossa).
12 .BAUMAN, Zygmunt; LYON, David. Vigilância líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2013.
p. 68-69.
Página 24
A nova dimensão da proteção do consumidor digital diante do
acesso a dados pessoais no ciberespaço
Página 25
A nova dimensão da proteção do consumidor digital diante do
acesso a dados pessoais no ciberespaço
29 .Para a Federal Trade Comission, “data brokers collect personal information about
consumers from a wide range of sources and provide it for a variety of purposes, including
verifying an individual’s identity, marketing products, and detecting fraud. Because these
companies generally never interact with consumers, consumers are often unaware of their
existence, much less the variety of practices in which they engage” (FEDERAL TRADE
COMMISSION. Data Brokers: Call for Transparence and Accountability. Washington, DC,
May 2014, p. i. Disponível em:
[www.ftc.gov/reports/data-brokers-call-transparency-accountability-report-
federal-trade-commission-may-2014]. Acesso em: 30.05.2020).
32 .Conceito utilizado por Susane Lace para caracterizar o consumidor que dispõe de seus
dados e, consequentemente, mune o Big Data com suas informações, facilitando o
direcionamento publicitário (LACE, Susane. The glass consumer: life in a surveillance
society. Bristol: Policy Press, 2005).
Página 26
A nova dimensão da proteção do consumidor digital diante do
acesso a dados pessoais no ciberespaço
34 .WARREN, Samuel D.; BRANDEIS, Louis D. The Right to Privacy. Harvard Law Review,
Cambridge, MA, v. 4, n. 5, p. 193-220, Dec. 1890.
35 .GOMES, Márcia Letícia; SPAREMBERGER, Raquel Fabiana; BRUM, Amanda Netto. Pelo
direito de estar só: o direito à intimidade na era da internet. In: CONGRESSO
INTERNACIONAL DE DIREITO E CONTEMPORANEIDADE, 3, 2015, Santa Maria. Anais [...].
Santa Maria: Universidade Federal de Santa Maria, 2015, p. 7. Disponível em:
[http://coral.ufsm.br/congressodireito/anais/2015/6-13.pdf]. Acesso em: 05.01.2020.
36 .NUNES, Rizzatto. Curso de direito do consumidor. 11. ed., rev. e atual. São Paulo:
Saraiva, 2017. p. 120.
Página 27
A nova dimensão da proteção do consumidor digital diante do
acesso a dados pessoais no ciberespaço
Página 28
A nova dimensão da proteção do consumidor digital diante do
acesso a dados pessoais no ciberespaço
Página 29
A nova dimensão da proteção do consumidor digital diante do
acesso a dados pessoais no ciberespaço
Página 30
A nova dimensão da proteção do consumidor digital diante do
acesso a dados pessoais no ciberespaço
70 .SILVA, Joseane Suzart Lopes da. A proteção de dados pessoais dos consumidores e a
Lei 13.709/2018 (LGL\2018\7222): em busca da efetividade dos direitos a privacidade,
intimidade e autodeterminação. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, ano 28,
v. 121, jan.-fev. 2019, p. 383.
72 .SILVA, Joseane Suzart Lopes da. A proteção de dados pessoais dos consumidores e a
Lei 13.709/2018 (LGL\2018\7222): em busca da efetividade dos direitos a privacidade,
intimidade e autodeterminação. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, ano 28,
v. 121, jan.-fev. 2019, p. 388.
73 .Não houve definição de prazo na lei em discussão. Para Silva, “a multicitada Lei não
dispõe sobre o prazo para que a dita informação seja prestada, mencionando apenas que
será em lapsus temporis razoável, a ser fixado pela referida autoridade, mas se considera
que deverá ser concretizada com o máximo de urgência possível” (SILVA, Joseane Suzart
Lopes da. A proteção de dados pessoais dos consumidores e a Lei 13.709/2018
(LGL\2018\7222): em busca da efetividade dos direitos a privacidade, intimidade e
autodeterminação. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, ano 28, v. 121, jan.-fev.
2019, p. 389).
Página 31
A nova dimensão da proteção do consumidor digital diante do
acesso a dados pessoais no ciberespaço
Página 32
A nova dimensão da proteção do consumidor digital diante do
acesso a dados pessoais no ciberespaço
Página 33