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Justiça Restaurativa

AULA 3
construção de espaços de
diálogo mais democráticos.
Fundamentos teóricos da Justiça Restaurativa: um
Justiça restaurativa arcabouço teórico para um
-A Justiça Restaurativa é um conjunto
paradigma de diálogo e não
ordenado e sistêmico de princípios,
métodos, técnicas e atividades próprias,
violência
que visa à conscientização sobre os -Brenda Morrison teoriza a Justiça

fatores relacionais, institucionais e Restaurativa a partir de um

sociais motivadores de conflitos e pressuposto teórico que é pedra

violência, e por meio do qual os conflitos angular para um novo paradigma de

que geram dano, concreto ou abstrato, sociabilidade e, consequentemente,

são solucionados de modo estruturado. de Justiça;

-Trabalha-se com a Justiça Restaurativa -O ato de fala, que, partindo de Kay Pranis,

como uma possibilidade de Justiça fala de diálogo, de contato, de (re)

calcada em valores e relações empoderar os indivíduos da capacidade

interpessoais (multiplicidade humana e discursiva reconhecida, da produção de

valorativa) onde se propõe a restauração saberes, de contar seus saberes; de sensos

da responsabilidade, da liberdade e da comuns, literários e científicos.

harmonia que existem nos grupamentos -Os indivíduos são imbuídos da premissa

sociais. principal que interessa à Justiça

-No passado, tanto a academia como o Restaurativa, são profundos

judiciário, como organizações, não conhecedores da própria vida, da

estavam preparados para esta comunidade em que se inserem, e, seus

possibilidade de justiça, pois estavam conhecimentos são, portanto, relevantes;

organizados de maneira a servir a uma -Ouvir e contar histórias, elementos


fundamentais dos processos restaurativos, é
justiça formal, legalista e punitiva, com importante para conferir poder e para
estabelecer relações saudáveis. Nós
muito pouco espaço para outras ganhamos em senso de respeito e
possibilidades. relacionamento ao contarmos nossas
histórias e temos outros para escutá-las.
-Pode-se dizer que existe uma Quando os indivíduos são poderosos, as
pessoas escutam as suas histórias
preocupação em transformar os respeitosamente, assim; escutar as histórias
espaços decisórios em cenários dos outros é um modo de fortalecê-los.
(PRANIS);
menos burocráticos – na
-O público nunca tem a oportunidade de de solução de conflitos com a produção de
conhecer os infratores e as vítimas como dor adicional.
indivíduos multidimensionais, com histórias
pessoais e experiências únicas. Uma vez que -Christie sugere o abolicionismo dos termos
essa distância social foi criada, somos e a linguagem rotulante (crime, criminoso,
capazes de fazer a eles coisas que não justiça criminal, etc.); diria ele que, para se
seríamos capazes de fazer se começar a pensar um espaço democrático,
percebêssemos suas individualidades. Como para a prática da justiça restaurativa, é
Christie (1982) ressaltou, essa sensação de preciso uma linguagem verbal, corporal e
distanciamento social é o que nos permite acima de tudo institucional, menos
punir os infratores e ignorar e/ou culpar as ameaçadora e coercitiva (CHRISTIE, 1977).
vítimas. (PRANIS); -Na Justiça Restaurativa, a autoridade passa
-Na mesma esteira, Howard Zehr e Barb a ser normativa e discursiva/dialogal
Towes (2006) trabalham no sentido de (retórica) e não mais coercitiva e prescritiva.
subverter um dos principais monopólios que (SALM, 2009).
tem possibilitado a manutenção da Justiça -Reduz-se ao nada a possibilidade de uma
como figura burocrática e opressora, Justiça Restaurativa a partir de pressupostos
meramente como ferramenta legitimadora ambivalentes (que dividem em bom e mau)
de um suposto Estado de Direito – o ato de de atribuição de culpa (e a necessidade de
fala. retribuição).
-O que estamos aprendendo com a justiça -Como sugere Boaventura de Sousa Santos
restaurativa é que um elemento (1990, p. 180), para que as práticas
fundamental da justiça está relacionado democráticas ocorram, é preciso que as
com a criação de sentido: a vítima, o infrator organizações também sejam democráticas.
e talvez os membros da comunidade. A
justiça é feita quando o sentido do crime é -A JR parte do pressuposto de ser
construído a partir das perspectivas e construída pelos próprios envolvidos e fora
experiências daqueles que foram mais dos espaços estatais oficias, constituindo-
afetados por ele...é necessário que a voz das se, assim, em uma juridicidade alternativa.
vítimas, bem como a dos infratores, seja
-Morrison (2005) propõe uma produção de
ouvida diretamente. Requer-se, para isso,
uma reorganização completa de papéis e respostas (múltiplas) complexas de acordo
com o caso a que se dirige, e, coproduzidas
valores. Os profissionais do campo da
pelos próprios envolvidos, maiores
justiça e os membros da comunidade
passam a assumir a função de facilitadores, conhecedores do contexto da relação
ao passo que as vítimas e infratores passam conflituosa.
a ser os atores principais. (ZEHR; TOWES, -Trabalha-se sempre em uma perspectiva de
2006, p. 419) (grifamos). microjustiça para abarcar as complexidades
que cada caso encerra em si mesmo, e que
-Permeia-se as práticas restaurativas e
comunitárias de falas profanas, humanas, demandam tempo, paciência e
comuns; saindo-se da seara eruditamente intencionalidade de resolver e restaurar a
tecnicista, burocratizada e comunidade que também é afetada, não
descompromissada da ciência, que tem pura e simplesmente determinando culpa de
operacionalizado o direito até a um e outorgando o papel de vítima a outro.
modernidade, e, assim, legitimado as -Proposta de medidas restaurativas
atrocidades a partir de uma discursividade trabalhadas por Morrison (2005) em três
de (pseudo) neutralidade. níveis diferentes de atuação e graus de
-Assim, o (re)empoderamento do ato de complexidade:
fala, do diálogo, pode ser talvez o grande -O primeiro nível é mais abrangente, pois se
rompimento com a sociedade moderna e dirige a desavenças, que ainda não
sua juridicidade de dinâmicas judiciosas, constituem um conflito propriamente dito,
hierarquizadas e cerradas ao monopólio da mas que existe possibilidade de se tornarem
fala aos detentores de poder-saber oficial. um.
-O (re)empoderamento da fala constitui-se -Neste nível, pretende-se uma participação
em um verdadeiro ato de quebra ao mais alargada dos indivíduos da
paradigma de juridicidade, para romper com comunidade, em um sentido de possibilitar
as suas procedimentalidades castradoras e o diálogo, restaurar os laços e desfazer as
desavenças (pré-conflitos) de forma que apoiam a manutenção de relações
dialogal e participativa, não apenas dos saudáveis como, a construção da
envolvidos diretamente, mas da comunidade, a resolução de conflitos, a
comunidade circundante. inteligência emocional [...] (MORRISON,
2005, p. 306).
-Neste nível, o objetivo primordial é a
prevenção do conflito e a coprodução de -Uma sucessão de práticas que propõem a
sociabilidade harmônica a partir de uma procedimentalidade de princípios como
intervenção proativa, não necessitando que respeito, consideração e participação e
ocorra o rompimento para que se ingresse ainda instigam práticas restaurativas como:
na esfera de relevância, pois, visa a reparar o dano; esperar o melhor (num
manutenção social e suas relações. sentido de fomentar a esperança);
reconhecer o mal; cuidar dos outros;
-Já no segundo e terceiro níveis, a atuação é assumir responsabilidade.
reativa, pois acontece após o rompimento
comunitário dos laços inter-relacionais. -Em nível secundário, a autora traz os
seguintes programas como propostas
-Em um segundo nível, no caso de conflito colocadas em prática: (i) mediação de iguais
instaurado, ainda sem grande gravidade, – como propõe a autora, tem sido definida
mas já tendo sido rompidos laços sociais, como [...] um método estruturado de
requer-se a atuação da comunidade e dos resolução de conflitos no qual indivíduos
envolvidos ligados pelo conflito e seus treinados ajudam as pessoas em litígio
afetados indiretamente, para que se possa escutando suas preocupações e ajudando-
reatar o diálogo e os laços sociais desfeitos. as a negociar [...] (MORRISON, 2005, p.
-No terceiro nível, além de estar instaurado 309).
o conflito, ele atinge maior gravidade e -O terceiro que ingressa nesta relação
intensidade. Necessita-se de uma conflituosa com a função de contribuir com
intervenção (não violenta) sobre os o diálogo, não é um terceiro acima, nem
envolvidos, seus indivíduos indiretamente melhor, nem detentor de conhecimentos
afetados, e, eventualmente, contribuições alheios aos envolvidos, mas um indivíduo
externas ao conflito, não em um sentido de pertencente à comunidade que também é
forçar ou impor um saber alienígena, mas afetada pelo conflito.
no sentido de contribuir e permitir que
exista uma relação de diálogo e que possa se -A segunda proposta é a do (ii) círculo de
reconstruir a relação desfeita e os laços resolução de conflitos – a autora o coloca
sociais e comunitários. como reuniões (circulares como o nome
determina) com o intuito de colocar os
-Morrison traz ainda, no que diz respeito ao problemas coletivos ou inter-relacionais em
primeiro nível de atuação, os programas: (i) discussão, sem qualquer intencionalidade
programa criativo de resolução de conflitos de punição, simplesmente de possibilitar o
(PCRC) – que resumidamente consiste, nas diálogo e empoderar o indivíduo no ato de
palavras da autora, [apoiar] no falar sobre as suas experiências e vivências
desenvolvimento de habilidades sociais e das situações desagradáveis ou não,
emocionais, necessárias para solucionar trazendo-se e que tem ópticas diversas
conflitos, diminuir violência e preconceito acerca das sensações sobre um mesmo fato.
[...] visa desenvolver as habilidades de
escutar de forma ativa, de criar empatia e -Considerando-se que trata-se de um
compreender [...] (MORRISON, 2005, p. processo de compartilhamento de
307). sentimentos e discursos, que serve para
partilhar o saber/sentimento individual em
-Isso se desenvolve congregando e relação às situações vividas em
empoderando toda a comunidade, em um comunidade, assim como também receber o
sentido de coprodução de sociabilidade a saber/sentimento dos demais, podendo sair
partir de dinâmicas de participação todos mudados do círculo, a comunidade
democrática, de igualdade e de aceitação mais coesa, posto que cada indivíduo
das diferenças. fortalece ou reconstrói o seu sentimento de
-O segundo (ii) programa é o de cidadania pertença, por ter sido ouvido ou ter influído
responsável (PCR) – que, segundo a autora na construção da percepção de outro
tratase de [...] uma gama de processos indivíduo.
relacionados -Em um último nível, terciário, apresenta o
programa: (i) reunião de Justiça
Restaurativa – estratégia ou prática utilizada consequências isoladas daí advindas,
em casos de conflito mais grave, com apontando para as relações comunitárias
incidentes mais sérios no seio na que foram quebradas e as consequências da
comunidade, e, portanto, um laço rompido ação (tida como delituosa) para a
de forma mais agressiva. comunidade. Além disso, perscruta as
causas de tal conduta, o que levou tal
-Nessa linha, conforme postula Morrison indivíduo a romper com a comunidade;
(2005), os envolvidos direta e indiretamente salientando que se objetiva, diferentemente
são chamados a falar sobre o que da Justiça Criminal Oficial, a reconstrução
aconteceu, de como foram afetados pelo dos laços e a coconstrução de soluções para
acontecido, e em como consertar e estas vidas que tiveram as suas histórias
recuperar o laço desfeito. separadas pela ação ofensiva.
-Em uma clara intencionalidade voltada d) A responsabilidade holística representa a
para o presente e, sobretudo para o futuro, assunção de responsabilidade do indivíduo
objetiva-se reatar as relações e a assunção pelo fato que cometeu, não em face do
de responsabilidade pelos atos. Estado ou da norma, mas em face das
relações comunitárias incluindo seres
-Não se quer dizer manutenção da eterna diretamente e também os indiretamente
dicotomia em culpado e vítima, mas pelo envolvidos, afetados material ou
contrário, se fala em assumir
simbolicamente; assim como também a
responsabilidades entre todas as partes
assunção da parcela de responsabilidade da
envolvidas, pelo ocorrido e pelo que se
própria comunidade para com o fato
pretende que passe a ocorrer dali em diante,
ocorrido – uma troca que imbrica a
ou seja, pela reconstrução das vidas
sociedade como um todo. O ato (ou
individuais e da vida comunitária.
multiplicidade de atos) lesivo seria
-A justiça restaurativa não se resume à coproduzido em uma cadeia de
resolução de conflitos, sendo também uma responsabilidades, assim como também
prática que se propõe a reconstruir a vida deve ser a coprodução da cura destes atos e
em comunidade, sendo uma ética da solução desses.
comunitária e emancipatória.
e) Como último elemento, a construção da
-Salm e Stout (2011) apontam como sendo comunidade, que remete a diversos outros
cinco principais pontos nodais para princípios acima. Remonta a importância da
processos restaurativos: acepção comunitária da vida em sociedade
e, portanto, a sua coprodução a partir da
a) O conflito como uma oportunidade mútua aprendizagem, como também a
criativa: há a possibilidade de integração e coresponsabilidade pelos rompimentos e
aprendizagem com a dessemelhança, não pelas suas soluções. Frisa-se neste ponto a
havendo a intencionalidade de acabar com importância do potencial construtivo e
o conflito (o que já se tornou pacífico nos transformativo que surge da participação
estudos criminológicos), já que são social a partir da multidimensionalidade
inerentes à estrutura social, sendo uma humana calcada no diálogo; ainda, que
questão crucial o modo como se vai permite um processo crescente de
trabalhar e encarar estes conflitos e estas sentimento de pertença e que redunda em
dessemelhanças, que podem ser elementos diminuição dos estranhamentos, ou, pelo
de inter-relação calcados na aprendizagem menos, em formas diferentes e alternativas
mútua. de trabalhar com esses estranhamentos e
b) A Justiça como processo criativo: remete essas diferenças.
ao rompimento com o monopólio de dizer o -Este modelo de justiça leva em
direito e abrir a possibilidade de decisões e consideração a multidimensionalidade
construções de soluções dialogadas a partir humana (RAMOS, 1981; ROSS, 1996; SALM,
da coaprendizagem frisada no princípio 2009). Isto significa que o ser humano deixa
anterior. Assim, é um processo de de ser um ser unidimensional (o ofensor, a
coprodução de soluções e construção de vítima, a ladra, a assassina, o bêbado, o
síntese entre as dessemelhanças e conflitos viciado, o traficante, o estuprador) e passa a
inerentes a elas. ter várias faces (vítima, ofensor, pai, mãe,
c) O princípio atinente à ação curativa, filho, filha, católico, protestante, judeu,
altera o foco de atuação e preocupação, preto, branco, heterossexual, homossexual,
saindo da esfera individualista do autor do mulher, homem, trabalhador,
fato e as desempregado, líder comunitário, deputado,
professor, médico, carpinteiro, músico, 2006. p. 36)
artista, pessoa feliz, rancorosa, odiosa,
triste, ansiosa, tranquila, teimosa, bondosa, -A JR ganha visibilidade e se torna uma
caridosa, etc...) alternativa real e mais eficiente, além de
menos custosa (em termos econômicos,
-E, reconhecendo esta temporais e pessoais);
multidimensionalidade humana é que o ser -Embora não sejam especialistas em serviço
humano, na Justiça Restaurativa, por meio social, psicologia, nem direito – campos
das fortes relações interpessoais e da ética tradicionais em que a resolução de conflitos
coletiva, pode contemplar a sua plenitude, é uma competência profissional – os
sem ser rotulado de uma coisa ou outra. residentes da comunidade são especialistas
nos problemas cotidianos e na realidade em
Mas e o Estado? Qual o seu que esses problemas se situam e, portanto,
tem o conhecimento relevante necessário
Papel Nestas Organizações e para sua solução. (SLAKMON; OXHORN,
2006. p.35)
Abordagens Criativas?
-Pretende-se, assim, a transformação do
-A resolução de conflitos se pauta em Estado soberano da violência institucional,
em convidado de honra das práticas
algumas questões que passam restaurativas e comunitárias alternativas, de
despercebidas pelo Estado. desjudicialização e desburocratização.

-Questões como possibilitar e instigar o


diálogo entre os envolvidos, inclusive
rompendo com a dinâmica de atribuir
papéis de agressor e agredido; para que com
esse diálogo se viabilize a reconstrução do
laço rompido pelo conflito.
-Possibilita-se, também, que cada indivíduo
tome conhecimento das razões do outro e
do impacto sofrido com o conflito e suas
causas, o que proporciona uma retomada da
ideia de uma relação que preconiza a
solidariedade pelos sofrimentos, razões e
consequências, que são mútuos.
-A Justiça Comunitária, como se pode
claramente perceber, propugna por um
processo alternativo e sem qualquer regra
ou receita predefinida, e que se desenvolve
de acordo com o avanço dos diálogos, dos
discursos e pretensões apresentadas.
-E, assim, preocupa-se com o futuro da
comunidade e das relações que a envolvem,
e não em reconstituir o status quo ante ou
produzir uma verdade artificial, como
pretende a processualidade ordinária
estatal, com vistas a culpar um, ou
(re)vitimizar o outro – ou ainda ambos ao
mesmo tempo e independente da decisão
final. (LEAL; MACHADO, 2011)
-[...] se o Estado não detém o monopólio da
violência e da justiça e é visto como
reforçador e criador de mais insegurança e
injustiça, então quais são as alternativas ao
sistema judiciário formal e aos órgãos de
repressão tradicionais para a obtenção de
justiça e segurança? (SLAKMON; OXHORN,

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