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RESTAURATIVA
NA PRÁTICA:
NO COMPASSO DO CIRANDA
Fernando Gonzaga Jayme
Mayara de Carvalho
Fernanda Valladares Andrade Neves
Flávia Vieira de Resende
Aline Ferreira Gomes de Almeida
Lívia Vilela Bernardes
Elisa Barroso Fernandes Tamantini
Rafaella Rodrigues Malta
Apresentação:
Danielle de Guimarães Germano Arlé
Produção: Del Rey Editora
Editoração: Alfstudio
ISBN: 978-85-384-0525-2
CDU(1976) 343.9
Ficha catalográfica elaborada pelo bibliotecário Junio Martins Lourenço CRB 6/3167.
Sumário
JUSTIÇA RESTAURATIVA:
UM OLHAR PARA ALÉM DO ATO INFRACIONAL
Fernanda Valladares Andrade Neves
Flávia Vieira de Resende..................................................................................83
UM CASO DE TRANSFORMAÇÃO
– A CASE OF TRANSFORMATION
Aline Ferreira Gomes de Almeida
Lívia Vilela Bernardes......................................................................................97
EXORTANDO O PRÓXIMO
Elisa Barroso Fernandes Tamantini
Rafaella Rodrigues Malta..............................................................................115
A JUSTIÇA RESTAURATIVA
JUVENIL NA COMARCA DE
BELO HORIZONTE-MINAS GERAIS
1 A autora é bacharel em Direito pela UERJ, formada em 1991; promotora de Justiça do Estado de Minas
Gerais desde 1992, titular da promotoria de justiça de defesa da infância e juventude da comarca de Belo
Horizonte-MG; mestranda em Sistema de Solução de Conflitos da Universidade Nacional de Lomas de
Zamora, na Argentina; Coordenadora da Comissão de Justiça Restaurativa do Fórum Permanente de
Atendimento Socioeducativo do município de Belo Horizonte-MG.
2 Comissão de Justiça Restaurativa do Fórum Permanente de Atendimento Socioeducativo do Município
de Belo Horizonte.
A JUSTIÇA RESTAURATIVA JUVENIL NA COMARCA DE BELO HORIZONTE-MINAS GERAIS
Danielle de Guimarães Germano Arlé 5
3 ZEHR, 2016.
4 HIGHTON; ÁLVAREZ; GREGORIO, 1998, p. 77. Tradução livre da autora.
5 CNJ, 2016, art.1º.
6 ONU, ECOSOC, 2002, Preâmbulo.
A JUSTIÇA RESTAURATIVA JUVENIL NA COMARCA DE BELO HORIZONTE-MINAS GERAIS
Danielle de Guimarães Germano Arlé 6
Quando pensamos em justiça como um valor, notamos que se trata de um valor sub-
jetivo, que varia no tempo e no espaço. Ainda que variável, contudo, a ideia de justiça
está sempre associada à satisfação dos envolvidos num conflito e a Justiça Restaurativa
tem o foco, justamente, na satisfação das necessidades de todos os envolvidos no confli-
to penal ou infracional, e não apenas no ofensor. Ela visa à satisfação das necessidades
da vítima, do infrator e da comunidade à qual pertencem.
Programa de Justiça Restaurativa é qualquer programa que utilize processos res-
taurativos para atingir os objetivos da Justiça Restaurativa. Esta é a definição dada pela
Resolução 12 de 2002 do Conselho Econômico e Social da ONU7.
Conforme Carlucci8, em 2004 existiam no mundo mais de 1.300 programas de Justiça
Restaurativa.
Processo restaurativo (ou, conforme chamado pelo CNJ, procedimento restaura-
tivo9) é toda forma de processo, como conjunto ordenado de atos, no qual a vítima e
o ofensor, e, quando apropriado, quaisquer outros indivíduos ou membros da comu-
nidade afetados por um crime ou ato infracional, participam ativamente na resolução
das questões oriundas do crime ou do ato infracional, com a ajuda de um facilitador.
Conforme a Resolução 12 de 2002 do Conselho Econômico e Social da ONU, os pro-
cessos restaurativos podem incluir a mediação (no caso da Justiça Restaurativa, a me-
diação será a mediação vítima-ofensor- MVO), a conciliação, a reunião familiar ou
comunitária (conferencing) e os círculos decisórios (sentencing circles)10.
O resultado restaurativo buscado pelo processo restaurativo é atender às necessidades
individuais e coletivas, levar responsabilidade às partes do conflito penal ou infracional-
que, de maneira mais profunda, são a vítima, o ofensor e quaisquer outros indivíduos
ou membros da comunidade afetados por um crime ou ato infracional- e promover a
reintegração da vítima e do ofensor na comunidade, corresponsável pela existência e pela
manutenção de laços sadios entre todos os seus integrantes.
3. DESFAZENDO MITOS
Hodiernamente, experimentamos, nas nossas vidas, altos índices de criminalidade e
infracionalidade. Tais índices geram, em grande parte da sociedade, uma reação linear
de expectativa de maior rigor retributivo, ou seja, é comum que, numa sociedade com
elevados índices de violência, estes sejam atribuídos à falta de punição dos infratores,
por parte do Estado.
Para ilustrar o alto índice de criminalidade e de infracionalidade violentas, vale men-
cionar a notícia divulgada no dia 21.08.2017, no site Época Negócios13, que informa o
aumento, no Brasil, do número de mortes decorrentes de homicídios, lesões corporais
seguidas de morte e de latrocínios. De acordo com referida notícia, este número é 6,79%
maior do que no mesmo período do ano de 2016.
Como asseverado por Márcio Elias Rosa, Secretário de Justiça e diretor da Fundação
Casa, do Estado de São Paulo, há, na sociedade, “um sentimento de vingança travestido
na ideia de justiça” e todas as vezes em que alguém grita “justiça, justiça, justiça”, frente
a um crime ou ato infracional grave que foi cometido, pode-se ler “vingança, vingança,
vingança”14.
Nessa linha de raciocínio, como a maioria das pessoas costuma associar a Justiça
Restaurativa à ideia de não punir o infrator, de não “prendê-lo” e de que ela beneficia
unicamente o infrator, a Justiça Restaurativa acaba por ser mal recebida na sociedade
que clama por menos violência.
Desta forma, a fim de proporcionar uma clara compreensão do que é a Justiça
Restaurativa, é relevante ressaltar que:
3.2 A Justiça Restaurativa não é uma alternativa ao Direito Penal, e sim uma alter-
nativa a mais, dentro do Direito Penal e do Direito Juvenil Infracional16.
A esse respeito, são dignos de menção os itens 5 e 6 da Declaração de Brasília, que
contém as conclusões do III Seminário Internacional de Soluções Alternativas no Processo
Penal, promovido pelo Conselho Nacional do Ministério Público em 19 e 20 de junho
de 2017, com o seguinte teor:
3.3 A Justiça Restaurativa é benéfica não só para o infrator, mas também para a ví-
tima e para a comunidade como um todo.
Ao operar com processos tradicionais e processos restaurativos, o sistema de justiça
abre o leque de opções para o tratamento adequado do conflito penal ou infracional.
Quando for adequada a aplicação de processos restaurativos, a vítima será brindada
com o fato de poder ver satisfeitas suas necessidades, sejam elas de reparação do dano
sofrido, sejam de restabelecimento de um equilíbrio rompido pela prática delitiva ou
infracional.
A ideia de que as vítimas desejam a apenação pura e simples do infrator não corres-
ponde à real vontade delas. Quando as vítimas se preocupam com a pena do infrator,
costumam fazê-lo por falta de opção, pois esta é a única forma que a maioria delas
conhece de ver o infrator ser responsabilizado por seu ato. O que as vítimas parecem
querer, obviamente com exceções, não é vingança, e sim terem voz, serem escutadas,
reparadas e verem o infrator assumir, ativamente, sua responsabilidade.
O infrator terá a oportunidade de se responsabilizar ativamente pelas consequências
de seu ato e de encontrar novas formas de agir diferente, dali em diante, com o apoio
fundamental da sua comunidade.
Em um processo restaurativo, o infrator pode diminuir o mal que ele causou frente à
vítima, podendo, também, restaurar sua imagem e passar a agir de outra forma, o que
tem relevância singular nas infrações juvenis. Transformar as ações dos adolescentes
17 http://www.cnmp.mp.br/portal/images/Carta_Seminário.pdf
18 ONU, ECOSOC, 2002.
A JUSTIÇA RESTAURATIVA JUVENIL NA COMARCA DE BELO HORIZONTE-MINAS GERAIS
Danielle de Guimarães Germano Arlé 10
em ações mais construtivas de um futuro melhor para eles é essencial, quando se trata
de pessoas em formação.
A comunidade, como um todo, será beneficiada pelo fato de um infrator ter, efetiva-
mente, se responsabilizado por seus atos e poder, com o processo restaurativo, construir
maneiras de produzir novos resultados. O simples sancionar não significa que aquele
que recebeu a sanção poderá, após passado o tempo da punição, agir de maneira dife-
rente. Daí o valor da Justiça Restaurativa para qualificar a necessária convivência social
entre todas as pessoas da comunidade, tenham elas ou não, algum dia, praticado atos
contrários à lei.
O envolvimento de membros da comunidade em processos restaurativos capacita
aquela comunidade a solucionar os conflitos penais e infracionais nela ocorrentes, a re-
fletir sobre o contexto em que ocorreram e a promover mudanças, que serão vantajosas
para a comunidade inteira.
Como exposto por Paul McCold e Ted Wachtel19, considerando os fatores controle
(punição) e apoio (cuidado, encorajamento, proteção e assistência), e colocando-os em
interação, é possível construir uma janela onde se apresentam quatro quadros de abor-
dagem: a abordagem punitiva, que consiste no alto controle e baixo apoio aos envolvi-
dos na infração, também chamada de “retributiva”, tende a estigmatizar os infratores; a
abordagem permissiva, com baixo controle e alto apoio, conhecida como “reabilitadora”,
tende a proteger as pessoas das consequências de suas ações erradas; a abordagem negli-
gente consiste no baixo controle e baixo apoio; já a abordagem restaurativa, que consiste
na coexistência de alto controle e alto apoio, ao mesmo tempo em que confronta e de-
saprova as transgressões, procura enfatizar e focar no valor intrínseco de cada infrator
e na capacidade de solucionar aquele problema de forma colaborativa. Para os aludidos
autores, a abordagem restaurativa é a mais benéfica das quatro.
Há que se considerar que, quanto mais conectados estejam os membros de uma co-
munidade, mais eficazmente poderão limitar atitudes que aquela mesma comunidade
desaprova. Assim, conexões fracas entre os membros de uma comunidade geram mais
dificuldade de controle e conexões mais fortes permitem um controle social mais eficaz.
Além disso, econômica e financeiramente, reintegrar uma pessoa que praticou uma
infração penal ou ato infracional, quando possível, é muito menos custoso do que ex-
cluí-la da sociedade, como conclui Carlucci20.
3.4 A Justiça Restaurativa não se opõe à lei penal sancionatória e ao sistema de me-
didas socioeducativas.
A sanção penal e as medidas socioeducativas, dentre elas as medidas socioeducati-
vas de internação e de semiliberdade, continuam a ser aplicadas pelo juiz de direito,
como deve ser, quando se mostrarem necessárias e adequadas.
A Justiça Restaurativa, como complementar à justiça tradicional, permite, inclusive,
que a medida socioeducativa seja aplicada e que, além dela, se instaure um processo
restaurativo que, de alguma forma, poderá fazer com que os eixos da medida socioe-
ducativa sejam cumpridos de maneira muito mais eficaz e satisfatória.
A Justiça Restaurativa é aplicável todas as vezes em que seja identificado um po-
tencial restaurativo no caso concreto em análise. Assim, mesmo que seja necessária
uma medida socioeducativa em meio fechado (internação ou semiliberdade de um
adolescente que praticou ato infracional), ainda assim pode ser instaurado um proces-
so restaurativo, paralelo e complementar ao cumprimento da medida socioeducativa.
Nesse sentido, a Lei 12.594, de 2012, é um importante marco legislativo que prevê a
prioridade, na execução da medida socioeducativa, das práticas ou medidas que sejam
restaurativas21.
3.5 A Justiça Restaurativa não é dissonante e nem está acima ou abaixo da lei pe-
nal e infracional. Ela se encontra dentro do mesmo sistema de acesso à justiça.
O direito de acesso à justiça não garante o acesso apenas ao processo judicial, mas sim
a um amplo sistema em que cada conflito, com suas singularidades, deve ser tratado da
maneira mais adequada. Assim, quando se fala em acesso à justiça, não se pode usar a o
pensamento restritivo de acesso ao Poder Judiciário e à sentença com caráter de decisão
heterocompositiva.
Nesse sentido, a Justiça Restaurativa, ao apresentar sua nova visão sobre o conflito pe-
nal ou infracional, é um novo olhar sobre o próprio valor de justiça e se insere, é claro,
no sistema de amplo acesso à justiça, enquanto valor de satisfação de todos.
3.6 A Justiça Restaurativa não fere o princípio da legalidade. Ao contrário, ela vem sen-
do cada vez mais prevista em leis e atos normativos nacionais e internacionais.
A Constituição Federal da República Federativa do Brasil22, lei maior do nosso país,
prevê vários princípios e garantias nos quais se fundamenta a Justiça Restaurativa.
O preâmbulo da Constituição Federal, que, ainda que não tenha eficácia normativa,
serve de vetor interpretativo de toda a carta, prevê a solução pacífica de conflitos. Já no
texto constitucional com eficácia normativa se incluem vários princípios que embasam
a Justiça Restaurativa, dentre eles o princípio democrático- art.1º; o princípio da digni-
dade da pessoa humana- art.1º; o princípio do amplo acesso à justiça- princípio implí-
cito que não se confunde com o acesso ao Poder Judiciário do art.5º, XXXV; o princípio
da proporcionalidade- princípio implícito; o princípio da não exclusão dos tratados-
art.5º, parágrafo 2º; e o princípio da eficiência da Administração, art.37.
Não bastasse a carta fundamental a guiar a legalidade da Justiça Restaurativa, a Infância
e Juventude foi a área em que surgiu uma das primeiras referências expressas à Justiça
Restaurativa, quando, em 2012, a Lei 12.594, conhecida como lei do Sinase, estabeleceu que
Art. 35. A execução das medidas socioeducativas reger-se-á pelos seguintes
princípios:
...
III - prioridade a práticas ou medidas que sejam restaurativas e, sempre que
possível, atendam às necessidades das vítimas23.
Os atos normativos que se destacam e nos quais se apoia, também, a Justiça Restaurativa
são a Resolução CNJ n.125/201024, a Resolução CNMP n.118/201425 e a Resolução CNJ
n.225/201626.
22 BRASIL, 1988.
23 BRASIL, 2012, art.35, III.
24 CNJ, 2010.
25 CNMP, 2014.
26 CNJ, 2016.
A JUSTIÇA RESTAURATIVA JUVENIL NA COMARCA DE BELO HORIZONTE-MINAS GERAIS
Danielle de Guimarães Germano Arlé 13
empoderada nos seus sentimentos e na sua forma de conduzir sua própria vida a partir
do crime ou do ato infracional que a atingiu.
A algumas vítimas não bastam o processo penal ou o processo infracional judicial,
tradicional, onde costumam ser os “convidados de pedra”, como referidos por Highton,
Álvarez e Gregorio30.
3.10 A Justiça Restaurativa não tem por finalidade reduzir a reincidência (embora
a redução da reincidência em regra ocorra, ela não é a razão de ser da Justiça
Restaurativa).
Como ressaltado por Howard Zehr35, a redução do recidivismo pode ser um produto
consequente da Justiça Restaurativa e os resultados até agora obtidos nos programas
existentes no mundo demonstram isso. Contudo, a Justiça Restaurativa é feita tendo em
vista outras finalidades, que serão melhor analisadas no item 4, abaixo.
3.12 A Justiça Restaurativa não é a panaceia e não poderá ser aplicada em todo e
qualquer caso.
Para que um caso decorrente de um conflito penal ou infracional seja encaminha-
do à Justiça Restaurativa, é preciso que seu potencial restaurativo seja identificado; que
seja checado o prévio reconhecimento da prática prevista como infração penal ou ato
infracional (para que o processo restaurativo possa ser instaurado e seja eficaz, é neces-
sário que o ofensor seja identificado como sendo o infrator e reconheça sua responsa-
bilidade sobre o resultado produzido. Para que este pressuposto possa ser observado, é
preciso que algum tipo de procedimento já tenha ocorrido, no qual tenha sido apurada
a suposta autoria de uma infração penal ou juvenil); e que haja a livre adesão de todos
os envolvidos (infrator, vítima e comunidade), que devem ser bem esclarecidos sobre o
que é o processo restaurativo, quais os seus propósitos e quais as consequências que o
processo restaurativo poderá ter sobre o processo judicial tradicional, seja de conheci-
mento, seja de execução de pena ou de medida socioeducativa.
Como asseverado por Elías Neuman37, muitos conflitos penais podem ser resolvidos
com processos restaurativos, mas a condição inescusável de todo processo restaurativo
é que ele conte com a aquiescência e a vontade de quem dele irá participar. Na seara
da Justiça Restaurativa, nada pode ser forçado e a anuência ou o pedido das partes dos
processos restaurativos é sua pedra fundamental.
39 Uma das características dos processos restaurativos é sua flexibilidade, pois é necessário que os processos
ou práticas vão se adaptando às condições de cada país e lugar em que são aplicados e às circunstâncias
de cada conflito penal.
40 Trata-se de processo restaurativo que, na legislação brasileira, tem expressa previsão na Lei n. 9.099/1995,
art.73.
41 CRUZ, 2016, p.123.
A JUSTIÇA RESTAURATIVA JUVENIL NA COMARCA DE BELO HORIZONTE-MINAS GERAIS
Danielle de Guimarães Germano Arlé 19
jovem, com absoluta prioridade, os seus direitos fundamentais, foi criado o Fórum
Permanente do Sistema de Atendimento Socioeducativo do município de Belo Horizonte44.
O aludido fórum é um espaço criado para debater questões do sistema de atendimen-
to socioeducativo em Belo Horizonte, que busca promover uma política de atendimen-
to socioeducativo humana e transparente, reunindo instituições governamentais e não
governamentais envolvidas no trabalho com adolescentes autores de ato infracional.
O trabalho do fórum foi dividido em comissões temáticas45, sendo uma delas a
Comissão de Justiça e Praticas Restaurativas, conhecida simplesmente por Comissão de
Justiça Restaurativa, que, desde a data de sua instituição até a data do presente trabalho,
vem sendo coordenada pelo Ministério Público do Estado de Minas Gerais. A Comissão
de Justiça Restaurativa conta com aproximadamente 90 integrantes46, pessoas físicas e
instituições, dentre elas a UFMG, que dela participa ativamente através de seu Projeto
Ciranda.
A aplicação da Justiça Restaurativa na Justiça Juvenil Infracional da comarca de Belo
Horizonte e sua realidade estão, assim, intimamente relacionadas à aludida comissão,
que, de maneira articulada e em rede, vem tecendo o atingimento dos objetivos da
Justiça Restaurativa no município.
44 http://simasebh.org.
45 Inicialmente em número de 11, as comissões temáticas passaram a ser 12 e voltaram, recentemente, a ser
11.
46 Conforme consulta feita em 24.08.2017.
A JUSTIÇA RESTAURATIVA JUVENIL NA COMARCA DE BELO HORIZONTE-MINAS GERAIS
Danielle de Guimarães Germano Arlé 21
Tais ramos de trabalho podem ser agrupados em 6, sendo eles: Justiça Restaurativa
no CIA, Justiça Restaurativa nas unidades de internação e de semiliberdade, Justiça
Restaurativa nas medidas socioeducativas de meio aberto, Justiça Restaurativa nas uni-
dades de acolhimento, Justiça Restaurativa na Polícia Civil e Justiça Restaurativa nas
escolas, a seguir detalhados.
48 TJMG, 2011.
A JUSTIÇA RESTAURATIVA JUVENIL NA COMARCA DE BELO HORIZONTE-MINAS GERAIS
Danielle de Guimarães Germano Arlé 23
49 Conforme dado obtidos perante a Vara da Infância e Juventude Infracional de Belo Horizonte, em
05.09.2017.
A JUSTIÇA RESTAURATIVA JUVENIL NA COMARCA DE BELO HORIZONTE-MINAS GERAIS
Danielle de Guimarães Germano Arlé 24
O reflexo de tal formação já é sentido por aqueles que atuam no CIA, onde, em sede
de execução de medidas socioeducativas em meio fechado, têm sido identificados ca-
sos com potencial restaurativo e relatados ao Ministério Público, para análise e for-
mulação de pedido de encaminhamento a algum parceiro do protocolo de cooperacão
interinstitucional.
Além disso, práticas restaurativas vêm sendo adotadas pelas próprias equipes das
unidades no dia a dia da administração de conflitos com os socioeducandos.
maneira construtiva. Marinés Suares lembra que quanto antes se comece a operar para
deter a carreira destrutiva de um conflito, mais fácil será lograr êxito neste objetivo51.
A escola, como segunda comunidade que, após a família, é integrada por grande par-
te das pessoas, é, assim, um importante espaço de socialização e de convivência. Sendo
um espaço de convivência, é um espaço onde inevitável e naturalmente haverá conflitos.
De inigualável importância torna-se, desta forma, a função da escola na administração
dos conflitos nela surgidos.
Atualmente, a realidade demonstra que, no município de Belo Horizonte, a maioria
dos conflitos escolares é tratado da seguinte maneira: a Guarda Municipal ou a Polícia
Militar é acionada, é lavrado um boletim de intervenção (no caso da Guarda Municipal)
ou de ocorrência (no caso da Polícia Militar), o adolescente é encaminhado ao CIA e o
conflito escolar se torna, assim, judicializado.
Com a judicialização, pode ocorrer de o adolescente receber remissão simples, remissão
com advertência ou remissão cumulada com outras medidas, conforme a natureza do ato
e os registros de atos anteriores do envolvido no conflito escolar. O adolescente envolvido
em um conflito escolar acaba sendo tratado como autor de ato infracional, já que, em tese,
a maior parte dos atos que decorrem do conflito escolar pode ser enquadrada, também,
em algum tipo penal.
Conclui-se, dessa forma, que, uma vez tendo dado entrada no sistema judicial juvenil,
o conflito escolar não mais será solucionado diretamente pelos que nele estão envolvi-
dos (partes e comunidades escolar), pois aqueles com poder legítimo de iniciar, excluir,
suspender ou extinguir um processo judicial são o promotor de Justiça e o juiz de direi-
to, que, por garantia legal, são imparciais e estranhos ao conflito que chega até o CIA.
O conflito escolar, por sua natureza, costuma surgir entre pessoas que mantêm rela-
ção continuada, bem como afetar toda a comunidade escolar. Por essa mesma razão, em
grande parte das vezes, a decisão heterocompositiva (aquela que é dada por alguém de
fora do conflito), como a decisão de um juiz ou promotor, não é satisfatória para manter
construtivamente a relação ou para restaurar a comunidade escolar atingida.
Mesmo que o conflito escolar possa, em tese, caracterizar um ato infracional, ele tem
características próprias que indicam a necessidade de soluções mais complexas, tecidas
em conjunto e construídas por todos os envolvidos.
O atual modo costumeiro de agir quando da ocorrência de um conflito escolar (po-
licialização e judicialização) tem gerado resultados que não são satisfatórios para os
adolescentes, suas famílias, as eventuais vítimas, suas famílias e a comunidade escolar.
Ao constatar este fenômeno, a Comissão de Justiça Restaurativa formulou o Programa
JR nas Escolas de Belo Horizonte, para implementar o tratamento adequado e satisfató-
rio do conflito escolar, permitindo que, antes de ser levado ao CIA e ao sistema
judicial juvenil, o caso possa ser abordado, de maneira técnica, no âmbito da própria
escola e que haja oportunidade de ser encontrada uma solução mais eficaz para todos.
O objetivo deste programa é estabelecer, nas escolas municipais e estaduais da rede pú-
blica de ensino de Belo Horizonte que a ele aderirem, Núcleos de Orientação e Solução
de Conflitos Escolares (Nós), que funcionarão sob coordenação da escola e sob orien-
tação de um comitê gestor interinstitucional, coordenado pelo Ministério Público do
Estado de Minas Gerais.
No momento em que este capítulo foi escrito, o Programa Nós está em fase de implan-
tação e de construção, entre os parceiros, de calendário que capacitará agentes de Justiça
Restaurativa das escolas municipais e estaduais com sede na capital de Belo Horizonte.
somadas ações e essas vontades e ações individuais, que, por sua vez, foram se encon-
trando e construindo, no encontro, uma vontade coletiva, que hoje move os trabalhos
da Comissão de Justiça Restaurativa.
Movida pela vontade e pelo saber coletivo, a Justiça Restaurativa Juvenil na comar-
ca de Belo Horizonte quer chegar em resultados cada vez mais restitutivos da dignida-
de dos adolescentes que infracionam, das vítimas atingidas pelas consequências desses
atos e da comunidade como um todo.
Quer, a Justiça Restaurativa Juvenil da capital mineira, comprovar que é possível
construir mais belos horizontes para todos os envolvidos num conflito infracional e
resgatar necessários entremeios que sustentam a vida em sociedade.
Os primeiros povos dos quais se tem notícia praticavam a coletividade e a responsa-
bilidade comungada. Desde mesmo os antecessores do homosapiens, como o homona-
lendi, até as sobreviventes comunidades tradicionais canadenses, sabe-se que o valor
que permitiu a sobrevivência do homem sobre o planeta foi o da comunhão, ou vida
baseada no real sentido de comunidade. Esta necessidade de restaurarmos a colabora-
ção e de vivermos em comunidade é cada vez mais reconhecida por todos os campos da
ciência, inclusive da Física, cujo representante exponencial, Fritjop Capra alerta para a
mudança do foco da evolução para a co-evolução52.
O que quer a Justiça Restaurativa Juvenil de Belo Horizonte é poder contribuir na
construção do caminho da co-evolução da sociedade.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 05 de outubro de 1988. Disponível
em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/ConstituicaoCompilado.htm>.
Acessado em: 22.08.2017.
BRASIL. Lei 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente
e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8069.htm.
Acessado em 22.08.1990>. Acessado em: 25.08.2017.
INTRODUÇÃO:
A CONSTRUÇÃO DO PROJETO CIRANDA
A justiça restaurativa assumiu há pouco mais de uma década incorporou-se à minha
vida pessoal, profissional e acadêmica. Em 2006 iniciei meu percurso em práticas res-
taurativas ao participar do Curso Perdão e Reconciliação oferecido pelo Centro Loyola.
A ética do cuidado e o poder da empatia produziram, em mim, um efeito transfor-
mador com repercussões comportamentais sensivelmente benéficas para melhora dos
meus relacionamentos interpessoais.
No ano seguinte, em 2007, realizou-se em Belo Horizonte o Seminário Internacional
de Justiça Restaurativa - Análise Das Perspectivas de implantação no Brasil, ocasião em
que me aproximei dos fundamentos teóricos da Justiça Restaurativa e iniciei estudos
sobre o tema. À medida em que aprofundava meus conhecimentos e observava a apli-
cação concreta de práticas restaurativas em países estrangeiros com significativos resul-
tados, a Justiça Restaurativa também se tornou objeto de meus estudos. Nessa época,
a comunidade acadêmica engajada no tema ainda era diminuta e muito difusa. Com
efeito, instalou-se um estado letárgico do qual despertei cinco anos mais tarde.
A partir de 2012, a Justiça Restaurativa incorporou-se de forma contínua em minha
vida após os cursos de Justiça Restaurativa ministrados pela psicóloga Mônica Mumme,
uma das precursoras do tema no Brasil.
1 Fernando Gonzaga Jayme é Mestre e Doutor em Direito pela UFMG. Advogado. Professor Associado e
Diretor da Faculdade de Direito da UFMG. Coordenador do Projeto Ciranda.
HISTÓRIA DO PROJETO CIRANDA: UM ANO CONSTRUINDO JUSTIÇA RESTAURATIVA NO SISTEMA SOCIOEDUCATIVO EM BELO HORIZONTE
Fernando Gonzaga Jayme 33
No mesmo ano, foi celebrado Termo de Cooperação Técnica entre o Estado de Minas
Gerais, o Tribunal de Justiça, o Ministério Público, a Defensoria Pública e o Município
de Belo Horizonte para implantar a metodologia da Justiça Restaurativa. A convite do
Juiz de Direito Carlos Frederico Braga da Silva integrei a comissão constituída para a
implementação da Justiça Restaurativa em Belo Horizonte. Mais uma vez, tive a opor-
tunidade de estar junto com Mônica Mumme, que foi a consultora e instrutora de im-
plementação do projeto teórico e técnico da Justiça Restaurativa.
No ano de 2015, sob a minha coordenação foi aprovado o Projeto de Extensão
JUSTIÇA RESTAURATIVA: Paz Social, Prevenção à Violência e Promoção de Direitos
da Juventude. Trata-se de um projeto de pesquisa-ação, na medida em que atua nas
vertentes da prática e da pesquisa, assumindo características tanto da prática rotineira
quanto da pesquisa científica. As ações previstas no Projeto compreendiam atendimen-
to de adolescentes, formação de grupos de estudo, trabalho de campo, elaboração de
artigos e desenvolvimento de pesquisas.
O Projeto objetivava garantir os direitos da criança, do adolescente e do jovem, atra-
vés da instalação de ciclos de justiça restaurativa nos processos que tramitam junto ao
Centro Integrado de Atendimento ao Adolescente Autor de Ato Infracional CIA/BH. A
ideia é a de construir um modelo, para expansão dos ciclos de justiça restaurativa nas
varas de infância e juventude de outras comarcas, escolas da rede pública de ensino e
outras instituições para que estrategicamente utilizem essa importante ferramenta de
efetiva prevenção da violência juvenil.
O conceito de Justiça Restaurativa adotado é o de que se trata de proposta metodoló-
gica, por intermédio da qual se busca, por adequadas intervenções técnicas, a reparação
moral e material do dano, por meio de comunicações efetivas entre vítimas, ofensores
e representantes da comunidade voltadas a estimular: I) a adequada responsabilização
por atos lesivos; II) a assistência material e moral de vitimas; III) a inclusão de ofensores
na comunidade; IV) o empoderamento das partes; V) a solidariedade; VI) o respeito
mútuo entre vítima e ofensor; VII) a humanização das relações processuais em lides
penais; e VIII) a manutenção ou restauração das relações sociais subjacentes eventual-
mente preexistentes ao conflito
HISTÓRIA DO PROJETO CIRANDA: UM ANO CONSTRUINDO JUSTIÇA RESTAURATIVA NO SISTEMA SOCIOEDUCATIVO EM BELO HORIZONTE
Fernando Gonzaga Jayme 34
Levantamento feito pelo Instituto Avante Brasil, com dados do InfoPen, do Ministério
da Justiça, apontou um crescimento de 508,8% na população carcerária brasileira no
período de 1990 a 2012, registrando 548.003 presos em 2012, uma taxa de 287,31 para
cada 100 mil habitantes.
Esses dados demonstram que a criminalidade e a mortalidade, em especial dos jo-
vens, tem aumentado consideravelmente nas ultimas décadas. Os investimentos em
repressão e punição implicaram aumentos dos gastos com segurança pública e da po-
pulação carcerária, sem contudo, repercutir na redução dos indicadores de violência.
Percebe-se, assim, de forma muito clara o esgotamento do atual sistema jurídico.
A justiça restaurativa, ainda que não seja panaceia para todos os males, pode ser
um instrumento paradigmático de tratamento dos conflitos conforme se pode infe-
rir das experiências positivas que acontecem nos Estados Unidos, Canadá, Alemanha,
Finlândia, Noruega, França, Inglaterra, Áustria, Bélgica, Portugal, Escócia, Austrália. É
importante ressaltar que as práticas restaurativas são recomendadas pela ONU, confor-
me expressão as Resoluções números 1999/26, de 28.09.1999, 2000/14, de 27.07.2000,
2002/12, de 24.07.2002.
Existem muitas diferenças entre o processo judicial tradicional e a justiça restaurati-
va, como o tempo, o dispêndio de recursos, o treinamento dos envolvidos, os ritos e até
mesmo a linguagem utilizada. Mas a maior diferença entre ambos é de enfoque, trata-se
na verdade de concepções diametralmente opostas. A criminologia tradicional possui
seu foco no réu, todo o procedimento penal, princípios e a própria hermenêutica crimi-
nalista orbitam está figura, a fim de evitar quaisquer abusos e violações a seus direitos
e garantias fundamentais. Interessa ao processo penal apurar a existência do elemento
subjetivo da conduta do réu, se este agiu com dolo direto, ou com dolo eventual, ou com
culpa consciente, ou inconsciente. A justiça restaurativa, por sua vez, foca na vitima e
nos danos por ela sofridos. Busca-se o retorno ao status quoi ante, isso é, a restauração
do efetivo dano (material e moral) causado pelo ofensor e não o mero acionamento
normativo de um determinado tipo penal. Uma consequência imediata deste enfoque é
a incompatibilidade da justiça restaurativa com uma decisão imposta por um terceiro.
O juiz pode dirigir um processo respeitando os princípios e garantias do réu, valorar as
HISTÓRIA DO PROJETO CIRANDA: UM ANO CONSTRUINDO JUSTIÇA RESTAURATIVA NO SISTEMA SOCIOEDUCATIVO EM BELO HORIZONTE
Fernando Gonzaga Jayme 36
provas, estabelecer uma dosimetria de pena de acordo com os limites estabelecidos pela
legislação vigente; mas é incapaz de efetivamente restaurar o dano causado pelo delito,
visto que esse dano pertence à comunidade e às partes, em especial, à vitima. Todavia,
a justiça restaurativa tem capacidade de restaurar as relações afetadas pelo ato danoso e
reparar os danos dele decorrentes ao reconhecer o seguinte:
a) o delito constitui, em primeiro lugar, uma ofensa contra as relações humanas; em
segundo, uma violação à lei;
b) o delito é pernicioso e não deve ocorrer; porém, admite também que, depois de
ocorrido, existem não somente riscos, como também oportunidades;
f) a justiça restaurativa dá preferência a que a maioria dos atos delituosos sejam tra-
tados com uma estrutura cooperativa que inclua os mais impactados pelo delito
como grupo que provê apoio e faça assumir responsabilidades;
Ainda foi possível encontrar com alguma frequência nas sentenças que apli-
caram internação argumentos que apresentam o adolescente como alguém
inadequado ao convívio social, inapto a gozar a liberdade, o que permite,
tendo em vista as situações de risco que ele imprime a si e à sociedade, im-
por-lhe a medida mais gravosa.
O representado não está apto a gozar da plena liberdade, posta a
gravidade dos atos praticados e o risco que demonstra oferecer a si
mesmo e à sociedade, por meio desse tipo de conduta.
A reiteração em ações típicas e antijurídicas já nos dá a dimensão da
sua completa inadequação para o convívio em família e sociedade.
Considerando a gravidade da conduta, o insucesso das providências
levadas a efeito até então junto ao representado e sua incapacidade
de gozar da plena liberdade sem trazer riscos a terceiros, entendo
adequada a aplicação da medida de Semiliberdade2.
3 JACCOUD, Mylène. Princípios, Tendências e Procedimentos que Cercam a Justiça Restaurativa. In,
Justiça Restaurativa. Brasília: Ministério da Justiça, 2004. p. 165.
HISTÓRIA DO PROJETO CIRANDA: UM ANO CONSTRUINDO JUSTIÇA RESTAURATIVA NO SISTEMA SOCIOEDUCATIVO EM BELO HORIZONTE
Fernando Gonzaga Jayme 41
Outro aspecto a ser destacado é o das práticas restaurativas como poderoso instru-
mento para contribuir para a cultura de paz, o que, naturalmente, permite inferir que sua
apropriação pela comunidade é um processo natural de empoderamento da cidadania.
Tem-se, pois, em resumo, a justificativa ético-filosófica para o proceder segundo a
justiça restaurativa em face do proceder pelo sistema acusatório da tradição retribu-
tiva. Justifica-se o proceder pela Justiça Restaurativa porque forma de procefder em
que se inaugura, na simplicidade do encontro, a responsabilidade por outrem, uma
responsabilidade ativa, pela não-indiferença ao Outro, modalidade de positivação da
diferença, modo primeiro para a instalação do justo na convivência entre humanos.
Responsabilidade por outrem com o sentido de responsabilidade ética4.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Esta obra é o meio pelo qual o Projeto Ciranda escolheu para celebrar um ano de prá-
tica de Justiça Restaurativa no âmbito do CIA de Belo Horizonte por ser a melhor forma
de demonstrar sua atuação e prestar contas à sociedade das atividades desenvolvidas.
Esse registro temporal é apenas para demarcar o início de uma trajetória que per-
mite prenunciar voos mais distantes tendo em vista o comprometimento, o esforço, a
dedicação, a identidade de valores e princípios e a fraternidade que congregam toda a
equipe do Projeto Ciranda.
A consciência de que podemos, nos limites das possibilidades de cada um, contri-
buirmos para formar cidadãos responsáveis parceiros na construção de uma sociedade
justa, fraterna, solidária, liberta de discriminação e pacífica é a centelha que mantém
aceso o entusiasmo, alimenta nossa alma e nos fortalece para seguirmos adiante.
Muito há por fazer, mas os frutos do nosso trabalho já começam a ser compartilha-
dos; a Justiça Restaurativa já integra a realidade do sistema de ensino público, dos pro-
fissionais do sistema socioeducativo.
4 KONZEN, Afonso Armando. Justiça restaurativa e ato infracional: desvelando sentidos no itinerário da
Alteridade. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p.144.
HISTÓRIA DO PROJETO CIRANDA: UM ANO CONSTRUINDO JUSTIÇA RESTAURATIVA NO SISTEMA SOCIOEDUCATIVO EM BELO HORIZONTE
Fernando Gonzaga Jayme 42
Gostaria de registrar minha gratidão a vocês que fazem o Projeto Ciranda realidade,
sigamos sonhando juntos.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
TAMANTINI, Elisa Barroso Fernandes. O discurso normatização e da proteção nos dispositivos
de sentenças que restringem ou privam a liberdade de adolescentes. Monografia de Conclusão de
Curso. Belo Horizonte: Faculdade de Direito da UFMG, 2017, p. 17.
JACCOUD, Mylène. Princípios, Tendências e Procedimentos que Cercam a Justiça Restaurativa.
In, Justiça Restaurativa. Brasília: Ministério da Justiça, 2004. p. 165.
KONZEN, Afonso Armando. Justiça restaurativa e ato infracional: desvelando sentidos no itinerá-
rio da Alteridade. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p.144.
JUSTIÇA RESTAURATIVA JUVENIL EM
BELO HORIZONTE: RELATO DE EXPERIÊNCIA
DO PRIMEIRO ANO DE ATUAÇÃO DO
CIRANDA-UFMG COM PROCEDIMENTOS
RESTAURATIVOS NO SISTEMA SOCIOEDUCATIVO
Mayara de Carvalho1
1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Os Estados Liberal e Social tentaram, cada qual a seu modo, regular a sociedade a par-
tir da figura do Estado (AGUIRRE, [20--], p. 116). O Estado Democrático de Direito,
em contraponto, exige que as noções de democracia e cidadania sejam pensadas a par-
tir da sociedade, e não mais sob o paradigma da estadania2 (CARVALHO, 2004).
Por essa razão, desde o Estado Democrático de Direito, todas as instituições estatais
passaram a sustentar certo ônus de dialogicidade (HABERMAS, 2012). Contudo, mes-
mo no modelo democrático de processo como exercício de procedimento em contra-
ditório ampliado (FAZZALARI, 1966; FAZZALARI, 2006), os conflitos são compreen-
didos a partir de recortes de complexidade e é necessário aguardar e operar dentro dos
limites de toda uma estrutura burocrática previamente imposta, que não condiz com a
dinamicidade social.
O Estado Democrático de Direito demanda a garantia de espaços de protagonismo
cidadão, o que, no acesso à justiça, reflete a necessidade de uma nova compreensão
de jurisdição (CARVALHO; SILVA, 2013), que passa a abranger um sem número de
métodos adequados para a satisfação dos interessados na solução e transformação dos
conflitos.
É próprio do viver democrático que se assegure experiências de diálogo, alteridade e
diversidade (MATURANA; VERDEN-ZOLLER, 2004). Nesse contexto, a Constituição
processual surge como garantia de espaços de atuação autônoma e respeitosa dos in-
divíduos nas conversações constitucionais. Isso porque “na constituição processual, o
diálogo é constante, os consensos, todavia, são temporários, construídos no presen-
te, frutos do viver democrático, visando atender a necessidades e interesses diversos”
(CARVALHO; CRUZ, 2017, pp. 291-292).
Nesse espaço diferenciado, os métodos adequados de solução de conflitos despontam
como meios possíveis para constituir consensos provisórios que possam transformar e
construir (CHASE, 2014) novas possibilidades democráticas.
Nesse movimento, o potencial transformador da justiça restaurativa desponta em ra-
zão da característica narratividade e do protagonismo dos participantes no procedi-
mento. Isso se torna ainda mais significativo em casos envolvendo direitos de crianças
e adolescentes, enquanto sujeitos de direitos em condição peculiar de desenvolvimento
(arts. 6o e 100, parágrafo único, I, Lei 8.069/1990) que gozam de direito à socioedução
(arts. 18-A e 18-B, Lei 8.069/1990; arts. 1o e 60, Lei 12.594/2012; art. 227, CRFB/1988),
à proteção integral (arts. 1o, 3o, 100, parágrafo único, II, Lei 8.069/1990) e de garantia de
prioridade absoluta (art. 227, CRFB/1988, art. 100, parágrafo único, II, Lei 8.069/1990)
(CARVALHO; SILVA, 2015).
“Eu sei que ler, ouvir, dizer poesia hoje, neste tempo de tanto desapego, tan-
ta correria, é uma tarefa ‘quixotesca’. É como provocar o mundo, ofender o
mundo, pois vivemos como se não coubesse mais o silencio as delicadezas,
mas cabem e isso me comove e me atrai” (VELOSO, 2011).
JUSTIÇA RESTAURATIVA JUVENIL EM BELO HORIZONTE: RELATO DE EXPERIÊNCIA DO PRIMEIRO ANO DE
ATUAÇÃO DO CIRANDA-UFMG COM PROCEDIMENTOS RESTAURATIVOS NO SISTEMA SOCIOEDUCATIVO 45
Mayara de Carvalho
3 As instituições parceiras que firmaram o protocolo foram o Centro de Defesa Zilah Spósito, o Centro
Universitário de Belo Horizonte (UniBH), o Centro Universitário Newton Paiva, a Faculdade Batista de
Minas Gerais, a Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais e a Universidade Salgado
de Oliveira (Universo/BH).
4 O Centro Integrado de Atendimento ao Adolescente Autor de Ato Infracional (CIA/BH) foi instituído
pela Resolução-Conjunta nº 68/2008 com vistas a cumprir a determinação do Estatuto da Criança e do
Adolescente (art. 88, V, Lei 8.069/1990) de pronto e efetivo atendimento ao adolescente autor de ato
infracional. O CIA-BH dispõe, no mesmo espaço físico, de equipe interinstitucional da qual fazem parte
Juízes de Direito, Promotores de Justiça, Defensores Públicos, Delegados de Polícia, Polícia Militar e
funcionários da Subsecretaria de Estado de Atendimento as Medidas Socioeducativas e da Prefeitura
Municipal. Para mais informações, cf. TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE MINAS GERAIS. Centro de
Atendimento Integrado ao Adolescente Autor de Ato Infracional. Disponível em: < http://ftp.tjmg.jus.
br/ciabh/cartilha_cia.pdf>. Acesso em 3 ago. 2016.
5 O Ciranda é um projeto de extensão e pesquisa vinculado à Faculdade de Direito da Universidade Federal
de Minas Gerais. Teve início em 2015, à época apenas como projeto de extensão, sob coordenação do
professor doutor Fernando Gonzaga Jayme e da doutoranda Mayara de Carvalho Araújo. Registrado no
Sistema de Informação da Extensão (SIEX-UFMG) como “Justiça Restaurativa: Paz Social, Prevenção à
Violência e Promoção de Direitos da Juventude” (Projeto 402467), o Ciranda estendeu sua atuação em
abril de 2017 e passou a ser também grupo de pesquisa. Atualmente, conta com oito membros, além dos
dois coordenadores, são eles: Aline Ferreira, Ana Carolina Jorge, Elisa Tamanti, Fernanda Valladares,
Flavia Resende, Gabriel Rodrigues, Lívia Vilela e Rafaella Malta.
JUSTIÇA RESTAURATIVA JUVENIL EM BELO HORIZONTE: RELATO DE EXPERIÊNCIA DO PRIMEIRO ANO DE
ATUAÇÃO DO CIRANDA-UFMG COM PROCEDIMENTOS RESTAURATIVOS NO SISTEMA SOCIOEDUCATIVO 46
Mayara de Carvalho
Além disso, também foi definido que os atos infracionais que deram origem ao pro-
cedimento deveriam ser análogos a contravenções penais ou crimes de menor potencial
ofensivo6. Todavia, com poucos meses de atuação, surgiu a demanda por ampliação dos
casos, que passaram a abarcar qualquer ato infracional7.
Essa segunda etapa foi essencial, uma vez que foi a partir dos pré-círculos com
um adolescente cumprindo medida socioeducativa de internação que se deu início à
6 A opção por atos infracionais análogos a delitos considerados mais leves adveio mais da necessidade de se
começar por algum lugar do que propriamente de um critério que indicasse a maior viabilidade da justiça
restaurativa nesses casos. Foi uma opção política do CIA-BH que talvez indicasse, inclusive, alguma
desconfiança ou desconforto com o procedimento restaurativo. Como se verá adiante, a delimitação,
contudo, atinge somente a lide, o recorte cognoscível mais iminente do conflito reconhecido pelo processo
judicial. Isso porque mesmo nos casos tidos como “mais simples”, em que o ato infracional era análogo
a crime de menor potencial ofensivo, a situação conflitiva costuma expor tamanha vulnerabilidade e
violação de direitos que acaba por compreender outros crimes ou atos infracionais que escapam do
recorte apresentado na lide. Basta dizer que quase todos os casos atendidos pelo Ciranda tinham por base
alguma forma de violência doméstica ou discriminação de gênero. Além disso, elementos característicos
de situações de vulnerabilidade costumam permear narrativas de quase todos os participantes dos
procedimentos restaurativos realizados pelo Projeto, a exemplo de passagens por instituições de
acolhimento. Não só, a situação de vulnerabilidade tem sido tão extrema que as pessoas atendidas pelo
Ciranda costumam narrar a dificuldade ou mesmo impossibilidade de comparecer à Faculdade de Direito
por impossibilidade de pagar pelo bilhete de ônibus. Em alguns casos, inclusive, adolescentes relataram
querer tanto participar do procedimento que haviam ido à Faculdade usando o vale social recebido
para comparecer ao Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS), em detrimento
de seu acompanhamento pelo serviço de assistência social. Recentemente, o Ciranda adquiriu cerca de
1000 bilhetes de ônibus para disponibilizar aos participantes dos procedimentos restaurativos que se
encontrem em condição de vulnerabilidade econômica.
7 Aqui, é importante frisar o papel e a confiança da Promotora Danielle Arlé que, ao ouvir a mãe de uma
vítima fatal narrar que gostaria de ouvir de quem tirou a vida de seu filho o porquê de ter agido dessa
maneira, entrou em contato com o adolescente autor do ato, que à época cumpria medida socioeducativa
de internação, explicou os valores e finalidades da justiça restaurativa e perguntou se gostaria de participar
de procedimento restaurativo. O caso foi encaminhado ao Ciranda no primeiro semestre de 2017.
JUSTIÇA RESTAURATIVA JUVENIL EM BELO HORIZONTE: RELATO DE EXPERIÊNCIA DO PRIMEIRO ANO DE
ATUAÇÃO DO CIRANDA-UFMG COM PROCEDIMENTOS RESTAURATIVOS NO SISTEMA SOCIOEDUCATIVO 47
Mayara de Carvalho
8 No decorrer deste trabalho, será utilizado alternadamente feminino e masculino quando os substantivos
estiverem no plural ou indicarem um coletivo que admite flexão de gênero. Embora a língua portuguesa
padronize a opção pela flexão no gênero masculino sempre que o substantivo compreender homens e
mulheres, entende-se que o exercício da língua é também uma demarcação de posição política. Diante
da histórica invisibilidade de mulheres em nossa cultura, optou-se por falar ora no feminino, ora no
masculino, sem que isso corresponda necessariamente a uma totalidade de mulheres e homens nesses
grupos.
9 A necessidade de ordem judicial para encaminhamento dos casos de adolescentes autores de atos
infracionais, seja em fase pré-processual, seja em cumprimento de medida socioeducativa, tem sido um
ponto sensível do protocolo interinstitucional. A concentração da decisão no Judiciário afasta a autonomia
e a celeridade para a condução de práticas restaurativas pelas instituições parceiras em situações de
conflitos nas unidades socioeducativas, por exemplo. As dificuldades de comunicação direta e ágil entre
esses centros e o Judiciário ou mesmo os setores de acompanhamento das medidas socioeducativas
foram pontuadas por alguns dos técnicos dessas instituições. Por vezes, profissionais das unidades
socioeducativas também relataram desconhecimento sobre a parceria e desconsideração dos conflitos
internos quando dos encaminhamentos dos casos. Recentemente, a Comissão de Justiça Restaurativa, na
pessoa de sua presidente, a Promotora Danielle Arlé, atendeu a demanda do Ciranda para aproximação do
contato entre as unidades socioeducativas e o CIA-BH. Em oficio recente, as unidades foram estimuladas
a identificar e apresentar casos de conflitos internos nos quais identificavam potencial restaurativo.
JUSTIÇA RESTAURATIVA JUVENIL EM BELO HORIZONTE: RELATO DE EXPERIÊNCIA DO PRIMEIRO ANO DE
ATUAÇÃO DO CIRANDA-UFMG COM PROCEDIMENTOS RESTAURATIVOS NO SISTEMA SOCIOEDUCATIVO 48
Mayara de Carvalho
CIA-BH Ciranda
A maioria dos casos recebidos eram de atos infracionais contra a liberdade de auto-
determinação (sete casos envolvendo ameaça), contrários à incolumidade pessoal (três
casos de vias de fato e dois de agressão) ou contra a integridade corporal (dois casos
com lesões corporais). Além desses, o Projeto recebeu um caso de ato infracional aná-
logo a homicídio.
Dos casos encaminhados pelo CIA-BH às instituições parceiras, 14 eram de meninos
autores de atos infracionais (53,85%), enquanto 12 eram referentes a meninas que in-
fracionaram (46,15%). Desse total, só um caso envolvia adolescente transexual, no caso,
uma adolescente do gênero feminino que nasceu homem (3,85%). A distribuição de
gênero dos casos recebidos pelo Ciranda foi de nove garotos (64,29%) e cinco garotas
(35,71%), incluindo a adolescente transexual.
Isso contrasta com os dados do CIA-BH, que indicam que 84,4% dos atos infracionais
do ano de 2010 foram cometidos por adolescentes do sexo masculino (TRIBUNAL DE
JUSTIÇA DE MINAS GERAIS, 2010).
Nesse aspecto, tem-se algumas hipóteses como possíveis: se a presença propor-
cionamente mais substancial das adolescentes advém do fato dos atos infracionais
JUSTIÇA RESTAURATIVA JUVENIL EM BELO HORIZONTE: RELATO DE EXPERIÊNCIA DO PRIMEIRO ANO DE
ATUAÇÃO DO CIRANDA-UFMG COM PROCEDIMENTOS RESTAURATIVOS NO SISTEMA SOCIOEDUCATIVO 51
Mayara de Carvalho
10 Nos casos recebidos pelo Projeto, as adolescentes do sexo feminino estavam envolvidas em atos infracionais
análogos a ameaça (duas), vias de fato, lesão corporal e furto.
11 Segundo o Índice de Homicídios na Adolescência (IHA) referente ao ano de 2014, nos 300 municípios
com população acima de 100 mil habitantes, a cada 1.000 adolescentes que completaram 12 anos, 3,65
morrem vítimas de homicídio antes de completarem os 19. Numa sociedade sem guerra, é de se supor que
esse número não seja muito distante de zero, devendo ser inferior a um. Segundo o IHA, a distribuição da
violência não é homogênea. Ao analisar o impacto de dimensões como sexo, cor de pele e idade, observou-
se que pessoas do sexo masculino têm um risco 13,52 vezes maior de serem vítimas de homicídio em
relação às do sexo masculino. Os negros, por sua vez, sofrem 2,88 vezes mais homicídios. Além disso,
mais violência tem sido perpetrada contra adolescentes, tendo se agravado tanto em números absolutos,
quanto em termos relativos. (OBSERVATÓRIO DAS FAVELAS, 2017, p. 13).
JUSTIÇA RESTAURATIVA JUVENIL EM BELO HORIZONTE: RELATO DE EXPERIÊNCIA DO PRIMEIRO ANO DE
ATUAÇÃO DO CIRANDA-UFMG COM PROCEDIMENTOS RESTAURATIVOS NO SISTEMA SOCIOEDUCATIVO 52
Mayara de Carvalho
12 Embora no Brasil se utilize os termos criança e adolescente para diferenciar pessoas com até doze anos de
idade e dos doze aos dezoito anos incompletos, respectivamente (art. 2o, Lei Federal 8.069/90), por vezes
esse trabalho usa indistintamente o termo criança, no sentido atribuído em normativas internacionais,
que chamam de criança os seres humanos de até 18 anos (art. 1, Convenção sobre os Direitos da Criança).
JUSTIÇA RESTAURATIVA JUVENIL EM BELO HORIZONTE: RELATO DE EXPERIÊNCIA DO PRIMEIRO ANO DE
ATUAÇÃO DO CIRANDA-UFMG COM PROCEDIMENTOS RESTAURATIVOS NO SISTEMA SOCIOEDUCATIVO 53
Mayara de Carvalho
13 Como a homofobia não é conduta penal típica no Brasil, nem há legislação específica que trate do
homicídio de pessoas transexuais, os dados e estatísticas a respeito são escassos, colhidos por
organizações da sociedade civil, sendo reconhecido o papel do Grupo Gay da Bahia nesse sentido.
Cf. PROFISSAO REPORTER. Brasil é o país que mais mata travestis e transexuais no mundo, diz
pesquisa. Disponível em: <http://g1.globo.com/profissao-reporter/noticia/2017/04/brasil-e-o-pais-
que-mais-mata-travestis-e-transexuais-no-mundo-diz-pesquisa.html>. Acesso em: 15 jul. 2017.;
GRUPO GAY DA BAHIA. Direitos humanos para todos e todas! Disponível em: <http://www.ggb.
org.br/direitos.html>. Acesso em 19 jul. 2017.
JUSTIÇA RESTAURATIVA JUVENIL EM BELO HORIZONTE: RELATO DE EXPERIÊNCIA DO PRIMEIRO ANO DE
ATUAÇÃO DO CIRANDA-UFMG COM PROCEDIMENTOS RESTAURATIVOS NO SISTEMA SOCIOEDUCATIVO 54
Mayara de Carvalho
Outro ponto a ser considerado sobre a trajetória escolar dos adolescentes atendidos
é que, não raro, mesmo os matriculados em instituição de ensino formal são analfabe-
tos funcionais. Em alguns casos, inclusive, notou-se desinteresse e histórico de evasão
da sala de aula associados à incompreensão e incapacidade para realizar as atividades
propostas na classe. Nessas situações, uma saída possível é assumir a postura de “durão”
para evitar o constrangimento do analfabetismo.
Assim, mais uma vez o ato infracional pode ser associado à condição de vulnerabili-
dade e de sistemática negação de direitos dessas crianças, em claro desrespeito ao prin-
cípio da prioridade absoluta do direito da criança e do adolescente que estabelece que,
em razão da situação de desenvolvimento dessas pessoas, crianças e adolescentes devem
ter primazia de atendimento nos serviços públicos, bem como destinação privilegiada
de recursos para a sua proteção (art. 4o, Lei 8.069/1990; art. 3, Convenção Internacional
Sobre os Direitos da Criança).
Mesmo nesse cenário de extrema vulnerabilidade, é importante frisar que em ape-
nas três dos 14 casos recebidos pelo Projeto foi aplicada alguma medida protetiva aos
participantes (21,43%). Segundo as informações repassadas pelo SAASE, a dois adoles-
centes foi requisitado tratamento médico, psicológico ou psiquiátrico (art. 101, V, Lei
8.069/1990) e a outro foi determinado o mesmo tratamento somado à matrícula e fre-
quência em estabelecimento oficial de ensino fundamental (art. 101, III, Lei 8.069/1990).
Quando analisado o panorama de todos os casos encaminhados para processos res-
taurativos pelo CIA-BR, o número de adolescentes que receberam medida protetiva
cresce em apenas mais dois casos, totalizando cinco das 26 crianças (19,23%).
Embora o rol das medidas protetivas do artigo 101 do Estatuto da Criança e do
Adolescente seja meramente exemplificativo, o SAASE não informou sobre a aplicação
de qualquer outra medida não prevista no dispositivo.
Ao considerar as relações entre vulnerabilidade e autoria de ato infracional supra
mencionadas, é relevante questionar a atuação do Estado que não só descumpre seu
dever de garantir direitos às crianças, como aparece apenas para aplicação de medidas
socioeducativas e o faz frequentemente segundo o paradigma punitivo.
JUSTIÇA RESTAURATIVA JUVENIL EM BELO HORIZONTE: RELATO DE EXPERIÊNCIA DO PRIMEIRO ANO DE
ATUAÇÃO DO CIRANDA-UFMG COM PROCEDIMENTOS RESTAURATIVOS NO SISTEMA SOCIOEDUCATIVO 56
Mayara de Carvalho
14 O selo de escola transformadora é conferido por uma organização global de empreendedores sociais de
diferentes países, a Ashoka. Desde 2009, 280 instituições de ensino compõe a rede de escolas pautadas no
poder transformador de cada participante da sociedade. Atualmente, há 18 escolas transformadoras no
Brasil, a maioria delas da rede privada de ensino. Belo Horizonte conta com duas escolas transformadoras,
ambas da rede pública municipal. “[...] o programa enxerga a escola como espaço privilegiado para
proporcionar experiências capazes de formar sujeitos com senso de responsabilidade pelo mundo:
crianças e jovens aptos a assumir papel ativo diante das mudanças necessárias, em diferentes realidades
sociais e amparados por valores e ferramentas como a empatia, o trabalho em equipe, a criatividade e o
protagonismo”. O programa vincula-se ao direito à socioeducação à medida em que relaciona estudantes
e comunidade ativadora, que compreende a criança e o adolescente segundo “uma perspectiva integral
do desenvolvimento, em que corpo, emoção e razão não se separam e todos são essenciais para a
constituição de pessoas livres, independentes e capazes de se relacionar e agir sobre o mundo de maneira
mais empática. As experiências e trajetórias das escolas e dos demais integrantes da comunidade do
programa Escolas Transformadoras inspiram e ajudam a ampliar a demanda social por esse tipo de
educação”. Cf. ASHOKA BRASIL; ALANA. Escolas transformadoras: Sobre. Disponível em: <http://
escolastransformadoras.com.br/o-programa/sobre/>. Acesso em: 10 set. 2017.
JUSTIÇA RESTAURATIVA JUVENIL EM BELO HORIZONTE: RELATO DE EXPERIÊNCIA DO PRIMEIRO ANO DE
ATUAÇÃO DO CIRANDA-UFMG COM PROCEDIMENTOS RESTAURATIVOS NO SISTEMA SOCIOEDUCATIVO 57
Mayara de Carvalho
Até então, todas as oficinas foram oferecidas ao corpo técnico e à equipe de segurança
dessas unidades, mas há o interesse de, num segundo momento, estender a abrangência
aos adolescentes que estão cumprindo medida socioeducativa.
Com essas oficinas, o Ciranda pretende contribuir para a transformação de conflitos
interpessoais, para o desenvolvimento do diálogo nas relações de trabalho e para a ga-
rantia da proteção integral.
No mesmo sentido, foi firmado termo de cooperação com a Prefeitura de Contagem-
MG para oferecimento gratuito de oficinas de CNV para cerca de 250 servidores mu-
nicipais vinculados a saúde, educação e assistência. A proposta é de apresentar a CNV
como forma de prevenir a violência no ambiente de trabalho (interpessoal) e também
com o público atendido pela rede de programas e serviços públicos municipais. Essas
oficinas foram estruturadas em oito encontros, conforme a distribuição de regionais do
município.
O Ciranda tem participado das reuniões do Fórum Permanente do Sistema
Socioeducativo de Belo Horizonte, assim como das reuniões mensais da sua Comissão
de Justiça Restaurativa. Como membro da Comissão, participou da formulação do pla-
no pedagógico do curso de capacitação em Justiça Restaurativa no ambiente escolar
para os educadores de escolas públicas localizadas em Belo Horizonte.
Com isso, foi um dos criadores do Programa Justiça Restaurativa na Escola para im-
plementação dos Núcleos para Orientação e Solução de Conflitos Escolares (NÓS) nas
escolas públicas municipais e estaduais com base territorial em Belo Horizonte.
Para esse Programa, assumiu o papel de conteudista, tendo os seus co-coordenado-
res elaborado um livreto sobre justiça restaurativa na escola, bem como todo o mate-
rial de apoio para os cursos de capacitação de educadores e estudantes que atuarão no
NÓS. Atualmente, os conteudistas estão produzindo um manual de justiça restaurati-
va17. Os livros produzidos serão distribuídos nas 411 escolas públicas sediadas em Belo
Horizonte.
Para esse mesmo projeto, os co-coordenadores do Ciranda se comprometeram a ofe-
recer um curso de 20 horas para alinhamento de todos os tutores que capacitarão os
17 O presente capítulo foi escrito em setembro de 2017.
JUSTIÇA RESTAURATIVA JUVENIL EM BELO HORIZONTE: RELATO DE EXPERIÊNCIA DO PRIMEIRO ANO DE
ATUAÇÃO DO CIRANDA-UFMG COM PROCEDIMENTOS RESTAURATIVOS NO SISTEMA SOCIOEDUCATIVO 60
Mayara de Carvalho
multiplicadores de justiça restaurativa que atuarão no NÓS. Essa formação está marca-
da para novembro de 2017.
Parte dos membros do Projeto comporá o grupo de tutores que capacitarão os mul-
tiplicadores e supervisionarão a implementação do NÓS nas escolas municipais e es-
taduais localizadas em Belo Horizonte. Cada escola interessada terá direito a cinco va-
gas para seus membros. Por enquanto, 160 escolas já aderiram ao Programa, sendo 40
delas municipais e 120 da rede estadual, totalizando a previsão de formação de 800
multiplicadores.
Em paralelo, o Ciranda auxiliou a criação e passou a compor o Comitê Gestor do
Programa Justiça Restaurativa nas Escolas de Belo Horizonte, com o intuito de contri-
buir para seu planejamento e implementação.
Desde 2015, o Ciranda tem mantido grupo de estudos em Justiça Restaurativa e Processos
Circulares, vinculado à Faculdade de Direito da UFMG, mas aberto ao público interno
e externo à Universidade. O grupo tem encontros quinzenais, aos sábados. A participa-
ção nos encontros não demanda inscrição prévia ou seleção. Com ele, o Projeto pretende
difundir noções críticas de justiça restaurativa para a maior quantidade e o mais variado
perfil de interessados.
Por fim, o Ciranda criou uma disciplina optativa de 30 horas em Justiça Restaurativa
para estudantes de graduação. O componente curricular “Tópicos em Direito Processual
Civil C – Justiça Restaurativa”, vinculado ao Departamento de Direito e Processo Civil e
Comercial da Faculdade de Direito da UFMG, apresenta a justiça restaurativa enquanto
método adequado de resolução/transformação de conflitos.
A condução da disciplina é estruturada em círculos, com abordagem teórico-prática,
e contempla as seguintes unidades de ensino:
1. Paradigma retributivo, punição e violência
a. O perigo da história única
b. Comparação entre modelos restaurativo e retributivo de justiça
2. Trocando as lentes: introdução à justiça restaurativa
a. Práticas restaurativas: breve histórico
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ATUAÇÃO DO CIRANDA-UFMG COM PROCEDIMENTOS RESTAURATIVOS NO SISTEMA SOCIOEDUCATIVO 61
Mayara de Carvalho
b. Mudança paradigmática
c. Conceitos fundamentais
d. Princípios básicos
e. Procedimentos para execução
f. Pressupostos materiais
g. Extensão e aplicabilidade
h. Transformação de conflitos
3. Elementos fundamentais da comunicação não-violenta
a. Expressão
b. Escuta empática
4. Processos circulares
a. Elementos essenciais
b. Procedimento
c. Hipóteses de utilização
d. Espécies de círculos restaurativos
e. Perguntas norteadoras
Para a matéria, foi feita parceira com a Secretaria Estadual de Segurança Pública,
sendo ofertadas 13 vagas para profissionais do sistema socioeducativo. Além disso, pro-
fissionais vinculados à Secretaria Municipal de Educação de Belo Horizonte também
participam da primeira turma da disciplina.
Com o componente curricular optativo, espera-se difundir a justiça restaurativa na
Faculdade de Direito da UFMG e proporcionar interações e construção coletiva de co-
nhecimento no tema pelos estudantes de graduação e os profissionais da educação e
segurança pública matriculados, de forma a unir a necessidade de densidade teórica aos
desafios práticos no tema.
JUSTIÇA RESTAURATIVA JUVENIL EM BELO HORIZONTE: RELATO DE EXPERIÊNCIA DO PRIMEIRO ANO DE
ATUAÇÃO DO CIRANDA-UFMG COM PROCEDIMENTOS RESTAURATIVOS NO SISTEMA SOCIOEDUCATIVO 62
Mayara de Carvalho
autorizado a falar. Todos os demais devem exercer seu direito de escuta. Ordenada e
sequencialmente, o bastão passa de uma pessoa para a outra, dando voltas pelo círculo.
Dessa maneira, garante que todas as pessoas terão, em momento oportuno, a possibi-
lidade de se expressarem sobre os temas propostos. O facilitador, que é um participante
como qualquer outro, também pode falar de si ao receber o bastão. É importante frisar
que ninguém deve ficar constrangido a falar: o bastão oferece a oportunidade de se ex-
pressar, não a obrigação de fazê-lo. O círculo restaurativo também valoriza e acolhe os
silêncios, que por vezes falam tanto ou mais que as palavras verbalizadas.
Assim, ao receber o bastão, o participante pode falar, segurá-lo sem nada dizer até
que entenda que seu silêncio foi devidamente expressado ou simplesmente passar para
a pessoa seguinte. Quando não está segurando o bastão, a pessoa tem o direito de es-
cutar ativamente o que está sendo dito. Se alguém interrompe a fala, cabe ao facilitador
retomar as regras de conduta. Caso haja insistência nesse comportamento, o círculo
deve ser interrompido ou suspenso. Isso se justifica pelo fato de que todos terão opor-
tunidade de fala sobre cada um dos temas, basta aguardar o bastão circular.
Como cada um inventa uma vida. Como cada um cria sentido para os dias, quase nu
e com tão pouco. Como cada um se arranca do silêncio para virar narrativa. Como cada
um habita-se. (BRUM, 2015).
A orientação do círculo pelo objeto é importante para que todos possam se escutar,
controlar suas ansiedades de resposta imediata e aprender com o conhecimento que
tem sido construído a partir das falas antecedentes. Ouvir e compreender as várias nar-
rativas sobre a mesma história é fundamental para que se possa identificar maneiras
criativas e adequadas capazes de transformar a situação. O uso do bastão pressupõe que
todos têm algo a contribuir para o grupo (PRANIS, 2010).
Independentemente do método adotado, as práticas são conduzidas necessariamente
por uma dupla de facilitadores. O mapeamento do conflito acompanha todos os encon-
tros, havendo reuniões ordinárias quinzenais para supervisão e discussão coletiva das
intervenções em cada um dos casos.
Participam da reunião ordinária os dez facilitadores do projeto, o que garante tanto
o envolvimento e acompanhamento dos extensionistas em todos os casos conduzidos
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ATUAÇÃO DO CIRANDA-UFMG COM PROCEDIMENTOS RESTAURATIVOS NO SISTEMA SOCIOEDUCATIVO 65
Mayara de Carvalho
pelo Ciranda; quanto a discussão cuidadosa sobre aspectos centrais de cada um dos
casos, pautando as intervenções e a definição de perguntas norteadoras a partir do co-
nhecimento coletivo.
Nessas reuniões, são feitos autoquestionamentos para definir qual o procedimento
mais adequado ao caso. É imprescindível que a opção metodológica seja suficiente para
trabalhar os danos, as necessidades e os valores dos participantes; incluir a vítima; en-
corajar os autores do ato a assumir responsabilidades; envolver todos os interessados;
oportunizar o diálogo e, eventualmente, o processo de decisão participativo (ZEHR,
2014). Além disso, o método escolhido deve ser respeitoso com todos os participantes.
Há também as reuniões extraordinárias, das quais participam, ao menos, os co-coor-
denadores do projeto e a dupla de facilitadoras que demandar por supervisão antes do
encontro quinzenal.
Além do espaço das reuniões, o grupo de estudo funciona como espaço qualificado
para discussão de aparato teórico e técnicas para os casos atendidos. Embora o crono-
grama, os textos e temas sejam previamente calendarizados, a condução dos encontros
é flexível, podendo ser adaptada para contemplar demanda de formação e debate de
temas centrais para os casos que estão sendo facilitados.
O fato do grupo de estudos ser um espaço aberto para pessoas de diferentes forma-
ções, inclusive, faz desses encontros excelentes oportunidades para oxigenação da atua-
ção do Projeto.
O Ciranda só admite que participe do círculo restaurativo quem anteriormente foi
escutado em pré-círculo. Isso porque compreende que a presença de alguém que não
entende o procedimento ou que não teve a oportunidade de falar sobre seus danos, sen-
timentos, responsabilidades e de exercitar empatia pode levar a revitimização, trauma e
escalada do conflito.
Os pré-círculos são sempre individuais. Embora não haja uma duração precisa, a prá-
tica do Projeto tem sido de que cada pré-círculo se estende de 40 minutos a uma hora.
Por vezes, o primeiro pré-círculo com cada um dos participantes demanda mais tempo,
durando cerca de uma hora e trinta minutos. Em situações pontuais, as facilitadoras já
chegaram a passar três horas num mesmo pré-círculo.
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ATUAÇÃO DO CIRANDA-UFMG COM PROCEDIMENTOS RESTAURATIVOS NO SISTEMA SOCIOEDUCATIVO 66
Mayara de Carvalho
Não há uma quantidade definida de pré-círculos para cada pessoa. Inclusive, esse
número varia de caso a caso e, ainda no mesmo caso, de indivíduo a indivíduo. Aqui,
novamente, vale a máxima de que é o procedimento que deve ser adequado às necessi-
dades dos participantes.
De uma forma geral, o Ciranda tem feito de dois a quatro pré-círculos com cada
uma das pessoas diretamente envolvidas no conflito, e de um ou dois com cada um dos
membros da rede de apoiadores dessas pessoas.
O Projeto optou por manter um intervalo máximo de quinze dias entre os encontros
com a mesma pessoa. Um período maior poderia causar prejuízos como perda da con-
fiança, interferência de terceiros ou escalada do conflito.
Ao final de cada pré-círculo com quem praticou o ato ou com quem sofreu seus da-
nos, as facilitadoras agendam o encontro seguinte, oferecendo ao menos três opções de
datas disponíveis.
Mesmo não havendo um número máximo de pré-círculos estabelecido, é impor-
tante tomar cuidado quanto a extensão do procedimento. Ainda que possa configurar
uma prática terapêutica, o processo restaurativo não se confunde com terapia. Por isso,
um bom mapeamento garante o foco nos elementos centrais do conflito, sem que a con-
dução do caso se perca nas várias relações e conflitos da microcomunidade. Se é certo
que a justiça restaurativa não se prende à lide, é também relevante ter em mente que
nem por isso ela deixa de ter um foco preciso.
No caso dos apoiadores, o Projeto tenta identifica-los no primeiro pré-círculo com
cada um dos diretamente envolvidos no conflito e tem o hábito de contata-los imedia-
tamente após o atendimento para agendar o pré-círculo com brevidade.
É possível que as pessoas de referência passem mais de 15 dias sem pré-círculo.
Nessas situações, retoma-se os elementos principais em um último pré-círculo na se-
mana anterior ao círculo restaurativo.
Caso entenda positivo, o indivíduo pode participar parcialmente, até o momento que
entendem ser conveniente. Também é possível que sua presença no círculo restaurati-
vo não seja física. Embora isso deva ser excepcional, pode acontecer quando um dos
participantes não se sentir à vontade na presença dos demais, como em alguns casos de
vítimas de crimes violentos.
JUSTIÇA RESTAURATIVA JUVENIL EM BELO HORIZONTE: RELATO DE EXPERIÊNCIA DO PRIMEIRO ANO DE
ATUAÇÃO DO CIRANDA-UFMG COM PROCEDIMENTOS RESTAURATIVOS NO SISTEMA SOCIOEDUCATIVO 67
Mayara de Carvalho
A voluntariedade é essencial, devendo ser aferida a cada novo encontro. Outro ele-
mento fundamental é o sigilo: ao menos que expressamente autorizado, o facilitador
não pode comentar algo que foi falado em pré-círculo com outros participantes. Os fa-
cilitadores que conduzem o círculo devem ser os mesmos que estiveram presentes nos
pré-círculos. Isso garante a manutenção do elo de confiança e a segurança no processo.
O Ciranda realiza os encontros restaurativos em espaço próprio, na Sala 509 do Edifício
Villas-Boas, na Faculdade de Direito da UFMG, no centro de Belo Horizonte. O local
é de fácil acesso, interligado a outros pontos da cidade por várias linhas de transporte
público. Na sala, tem-se privacidade para a condução dos casos. O ambiente conta com
cadeiras, mesa circular18, computador, impressora e armário. Além disso, mesmo com
as limitações de uma universidade pública, as extensionistas têm garantido elementos
importantes para o atendimento, como lenços de papel, água, café e lanche.
Embora já tenha realizado pré-círculos fora da Sala 509, o Ciranda entende que essa
deve ser uma prática excepcional. Isso aconteceu diante da impossibilidade de desloca-
mento por doença grave, mas foi constatado prejuízo na condução do caso, principal-
mente pelo sigilo e segurança que a justiça restaurativa exige.
O círculo restaurativo pode ser fragmentado em mais de um encontro, conforme ne-
cessidade do caso. Nele, as pessoas são convidadas a assumir co-responsabilidade para
melhorar as relações e a situação conflituosa, o que podem fazer por meio da elabora-
ção de um plano de ação.
No modelo dos processos circulares, o círculo restaurativo conta com os seguintes
momentos: cerimônia de abertura, elaboração dos valores que conduzirão o encontro,
contação de histórias, discussão dos pontos centrais do conflito, eventual elaboração de
plano de ação e cerimonia de encerramento (PRANIS, 2010).
Nas reuniões restaurativas, por sua vez, há um rol estabelecido de perguntas para
cada um dos participantes. O círculo começa com as perguntas dirigidas a quem co-
meteu o ato danoso, seguidas das voltadas às pessoas que sofreram os danos e de sua
rede de apoiadores (do relacionamento mais próximo ao mais distante). Após, são feitas
18 Embora os círculos restaurativos sejam conduzidos sem o uso da mesa, para que as pessoas possam
enxergar totalmente umas às outras, a mesa é utilizada nos pré-círculos e nas reuniões de supervisão.
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ATUAÇÃO DO CIRANDA-UFMG COM PROCEDIMENTOS RESTAURATIVOS NO SISTEMA SOCIOEDUCATIVO 68
Mayara de Carvalho
Em qualquer dos casos, o Ciranda opta por não conduzir os encontros, seja de pré-
-círculo, seja de círculo restaurativo ou de pós-círculo, quando está diante de alguma
alteração física ou emocional dos participantes, como doença ou uso de alguma subs-
tância psicotrópica. A prática do projeto releva que, nesses casos, ainda que a pessoa
insista em participar, não há total envolvimento.
Essa diretriz é, por vezes, relativizada em caso de pré-círculo, quando a alteração
emocional se dá em virtude de conflito interpessoal recente entre os envolvidos, o que
se justifica em função do atendimento ser individual. Nesses casos, falar sobre senti-
mentos, necessidades, responsabilidades e danos pode ser uma forma importante de
evitar novos traumas e escalonar o conflito.
Os encontros da justiça restaurativa são guiados por perguntas abertas, que devem
ser respondidas na primeira pessoa do singular, com as pessoas assumindo responsabi-
lidade direta sobre os sentimentos e necessidades.
Cerca de 30 dias após o último círculo, acontece pós-círculo para acompanhamento.
Nessa oportunidade, verifica-se eventual cumprimento do plano de ação, assunção de
responsabilidade, reparação dos danos e relacionamento respeitoso entre os participan-
tes. Quando alguma das ações estipuladas exigir prazo superior, o pós-círculo pode ser
feito outro momento que não 30 dias após o círculo restaurativo. Todos os encontros
são presenciais.
O Ciranda tolera 15 minutos de atraso dos participantes. Se não há o comparecimento
após esse prazo, as facilitadoras ligam para a pessoa ausente para confirmar a desistên-
cia. Não conseguindo manter contato, aguardam por mais 15 minutos. Em caso de não
comparecimento, sem contato prévio ou posterior, presume-se perda da voluntariedade
após uma semana, sendo o caso devolvido ao CIA/BH. O mesmo acontece quando a
pessoa tem falta injustificada por três vezes consecutivas.
Desde o segundo semestre de 2017, o Ciranda tem coletado dados dos casos em que
tem atuado. Por isso, a cada primeiro pré-círculo com algum dos participantes, além de
apresentar as orientações para os atendimentos (Anexo II), solicita o preenchimento de
questionário socioeconômico com questões de múltipla escolha (Anexo III).
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ATUAÇÃO DO CIRANDA-UFMG COM PROCEDIMENTOS RESTAURATIVOS NO SISTEMA SOCIOEDUCATIVO 70
Mayara de Carvalho
No último encontro com cada um dos interessados, seja por desistência, seja pela
finalização do caso, solicita o preenchimento de questionário avaliativo com questões
subjetivas (Anexo IV).
Nos casos encaminhados pelo CIA-BH, o Projeto compromete-se a peticionar no
processo no intervalo máximo de 30 dias. Encerrado os casos, é produzido relatório da
prática restaurativa, destinado à Vara de Atos Infracionais da Infância e da Juventude
de Belo Horizonte.
Embora o protocolo interinstitucional não tenha definido os elementos básicos que
devem estar presentes no relatório, o Ciranda-UFMG adotou a prática de relatar, ao
menos: a quantidade de pré-círculos, de círculos restaurativos e de pós-círculos, acom-
panhada da especificação de suas datas, da duração de cada encontro e de seus partici-
pantes; elementos identificados no mapeamento do conflito, preservado o sigilo ineren-
te ao espaço de segurança da justiça restaurativa19; qual o método adotado no processo
restaurativo e porquê foi feita essa opção; o conteúdo do plano de ação, quando for o
caso20; a impressão qualitativa das facilitadoras sobre o envolvimento e a co-responsabi-
lização de cada um dos participantes; a impressão fundamentada das facilitadoras sobre
o atingimento dos fins do processo restaurativo no caso concreto.
19 Como o processo restaurativo é sigiloso, as facilitadoras relatam apenas os elementos essenciais para
identificação dos elementos e tipologias do conflito, sem comprometimento do espaço de segurança
construído no círculo restaurativo. O mapeamento dos conflitos se presta a perceber casuisticamente
como os elementos do conflito estão conformados para definir a intervenção e estabelecer uma melhor
compreensão do conflito e de como ele se apresenta para cada uma das partes. O mapeamento inclui uma
série de reflexões, descrições e reconstruções a partir das quais o facilitador pode planejar sua atuação e
as perguntas norteadoras. Com ele, é possível entender melhor o que fazer, além de pautar a intervenção
do facilitador sobre o por quê de fazê-lo, para que fazer, como e quando. (CALVO, 2014)
20 O sucesso do processo restaurativo não está diretamente relacionado à existência ou não de plano de ação.
Inclusive, é possível alcançar a finalidade da justiça restaurativa sem que sequer tenha havido círculo.
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ATUAÇÃO DO CIRANDA-UFMG COM PROCEDIMENTOS RESTAURATIVOS NO SISTEMA SOCIOEDUCATIVO 71
Mayara de Carvalho
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Eu preparo uma canção
Em que minha mãe se reconheça,
Todas as mães se reconheçam,
e que fale como dois olhos
Eu distribuo um segredo
como quem ama ou sorri.
No jeito mais natural
dois carinhos se procuram.
Minha vida, nossas vidas
Forma um só diamante
Aprendi novas palavras
E tornei outras mais belas
olhar as pessoas e relações com novas lentes. O Ciranda acredita na justiça juvenil res-
taurativa como uma lente possível para garantir a socioeducação e a proteção integral
das nossas crianças.
O poema é ser: de outra forma é impossível.
(TSVETÁIEVA apud CASTRO, 2010)
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2017.
JUSTIÇA RESTAURATIVA JUVENIL EM BELO HORIZONTE: RELATO DE EXPERIÊNCIA DO PRIMEIRO ANO DE
ATUAÇÃO DO CIRANDA-UFMG COM PROCEDIMENTOS RESTAURATIVOS NO SISTEMA SOCIOEDUCATIVO 74
Mayara de Carvalho
ANEXO&I&
TERMO&DE&COMPROMISSO!
INQUÉRITO/PROCESSO:!
ADOLESCENTE:!
!
Eu,! ________________________________________________,! aceito! o! convite! para!
participar! de! procedimento! restaurativo! perante! a! Vara! Infracional! da! Infância! e!
Juventude!de!Belo!Horizonte,!conduzido!de!acordo!com!o!projeto!de!Justiça!Restaurativa!
da!Universidade!Federal!de!Minas!Gerais!(UFMG)!e!firmo!o!presente!termo!para!fazer!
constar!o!seguinte:!
!
1)! Toda! e! qualquer! informação! compartilhada! no! curso! do! procedimento! será!
confidencial,!não!podendo!ser!revelada!em!nenhuma!situação,!nem!mesmo!em!
processo!judicial,!salvo!se!os!participantes!expressamente!decidirem!renunciar!
ao! sigilo,! ou! quando! sua! divulgação! for! exigida! por! lei! ou! necessária! para! o!
cumprimento!de!acordo!obtido!pela!prática!restaurativa;!
!
2)! O! procedimento! é! voluntário! e,! por! isso,! depende! do! livre! consentimento! de!
todas!as!partes!diretamente!envolvidas!no!conflito,!respeitando]lhes!o!direito!de!
desistir!a!qualquer!momento;!
!
3)! Todos!os!participantes!serão!tratados!de!forma!justa!e!digna,!sendo!assegurado!
o!mútuo!respeito!entre!as!partes,!as!quais!serão!auxiliadas!a!construir,!a!partir!
da!reflexão!e!da!assunção!de!responsabilidades,!uma!solução!adequada!e!eficaz!
visando!sempre!o!futuro;!
!
4)! Os! facilitadores! têm! o! dever! de! resguardar! o! ambiente! dialógico,! mantendo!
sempre!a!imparcialidade!e!o!respeito;!
!
!
Belo!Horizonte,!_____!de!__________________!de!2017!
!
!
Participante:!
!
________________________________________________!
!
!
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Mayara de Carvalho
ANEXO&II&
ORIENTAÇÕES&SOBRE&O&PROCEDIMENTO&
Facilitadoras/es:!___________________________!
! ! !!___________________________!
Telefones!para!contato:!340988682!(sala!do!projeto)!
! ! !!!!!!!!!!!!!!!_______________________!
! ! !!!!!!!!!!!!!!!_______________________!
•! Os!encontros!são!realizados!na!sala!do!Projeto!Ciranda,!que!fica!localizada!na!Av.!João!
Pinheiro,!nº!100,!Centro,!Ed.!Vilas!Boas,!Sala!509;!!
!
•! A!tolerância!de!atraso!é!de!15!minutos,!tanto!para!os!encontros!individuais,!como!para!
os!encontros!conjuntos;!!
!
•! Em!caso!de!imprevistos,!avisar!sobre!o!cancelamento!do!encontro!com!antecedência!
mínima! de! 1! hora,! para! evitar! deslocamentos! desnecessários! por! parte! das/os!
facilitadoras/es;!!
!
•! Em!caso!de!não!comparecimento,!sem!contato!prévio!ou!posterior,!presume8se!perda!
da!voluntariedade!após!1!semana,!sendo!o!caso!devolvido!ao!CIA/BH;!!
!
•! Após! três! faltas,! injustificadas,! presume8se! desistência,! sendo! o! caso! devolvido! ao!
CIA/BH.!!
!
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Mayara de Carvalho
ANEXO III
QUESTIONÁRIO SOCIOECONÔMICO
(F) Não estudou 9) Seu percurso escolar é regular? (Se aplica apenas ao/à
(G) Não sei adolescente)
(A) Sim
6) Qual é o nível de escolaridade da sua mãe?
(B) Não, por evasão.
(A) Da 1ª à 4ª série do Ensino Fundamental (C) Não, por reprovação.
(B) Da 5ª à 8ª série do Ensino Fundamental
(C) Ensino Médio 10) Somando a sua renda com a renda das pessoas que moram
(D) Ensino Superior com você, quanto é, aproximadamente, a renda familiar mensal?
(E) Pós-graduação
(F) Não estudou
(A) Nenhuma renda
(G) Não sei
(B) Até 1 salário mínimo
(C) De 1 a 3 salários mínimos
7) Você está estudando?
(D) De 3 a 6 salários mínimos
(A) Sim (E) De 6 a 9 salários mínimos
(B) Não (F) De 9 a 12 salários mínimos
(G) De 12 a 15 salários mínimos
8) Qual sua escolaridade? (H) Mais de 15 salários mínimos
(A) Ensino Fundamental incompleto
(B) Ensino Fundamental completo 11) Você trabalha ou já trabalhou?
(C) Ensino Médio incompleto (A) Sim
(D) Ensino Médio completo Ocupação:
(E) Ensino Superior incompleto _______________________________________________________
(F) Ensino Superior completo
(B) Não
(G) Pós-graduação
!
!
!
ANEXO&IV&
QUESTIONÁRIO&AVALIATIVO&&
Este&questionário&pretende&nos&ajudar&a&melhorar&o&procedimento&restaurativo.&
Não&é&necessário&informar&seu&nome,&mas&gostaríamos&de&saber&um&pouco&sobre&você.&
Te&pedimos¶&responder&da&forma&mais&sincera&e&completa&possível.&
&
Nome!(caso!queira!especificar):!
!
Como!você!avalia!o!procedimento?!Nota!de!1!a!10!e!comente.!
Notas!1!–!péssimo!/!Notas!2!e!3!–!ruim!/!Notas!4!e!5!–!regular!/!Notas!6!e!7!–!bom!/!Notas!8!e!9!J!muito!
bom!/!Nota!10!J!ótimo!
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Como!você!avalia!a!atuação!das!facilitadoras?!Nota!de!1!a!10!!
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Como! você! avalia! seu! nível! de! participação! e! envolvimento! no! procedimento!
restaurativo?!Nota!de!1!a!10!!
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JUSTIÇA RESTAURATIVA JUVENIL EM BELO HORIZONTE: RELATO DE EXPERIÊNCIA DO PRIMEIRO ANO DE
ATUAÇÃO DO CIRANDA-UFMG COM PROCEDIMENTOS RESTAURATIVOS NO SISTEMA SOCIOEDUCATIVO 81
Mayara de Carvalho
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Como!você!avalia!o!espaço!onde!são!realizados!os!encontros?!Nota!de!1!a!10!!
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O!que!foi!bom!?!
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O!que!faltou?!
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O!que!pode!melhorar?!
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Este!procedimento!trouxe!mudanças!(repercussões)!na!sua!vida?!
JUSTIÇA RESTAURATIVA JUVENIL EM BELO HORIZONTE: RELATO DE EXPERIÊNCIA DO PRIMEIRO ANO DE
ATUAÇÃO DO CIRANDA-UFMG COM PROCEDIMENTOS RESTAURATIVOS NO SISTEMA SOCIOEDUCATIVO 82
Mayara de Carvalho
(!)!Sim!(!)Não!
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Se!sim,!como!esse!procedimento!modificou!sua!vida?!
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_______________________________________________________________________!
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Você!já!conhecia!ou!tinha!ouvido!falar!da!Justiça!Restaurativa?!
(!!)!Sim!!!!!(!!)!Não!
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O!que!você!pensa!que!é!Justiça!Restaurativa?!
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Você!indicaria!o!procedimento!para!que!pessoas!trabalhem!conflitos?!
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_______________________________________________________________________!
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Obrigado!por!compartilhar!suas!impressões!conosco!e!nos!ajudar!a!melhorar!!
Sua!opinião!é!importante!para!nós!!
!
!
JUSTIÇA RESTAURATIVA:
UM OLHAR PARA ALÉM DO ATO INFRACIONAL
1. INTRODUÇÃO
Este artigo pretende estudar um caso encaminhado ao Projeto Ciranda, no dia 29
de junho de 2016, pelo Setor de Atendimento ao Adolescente em Situação Especial –
SAASE – do Centro Integrado de Atendimento ao Adolescente Autor de Ato Infracional
– CIA. O desfecho do caso objeto de estudo foi considerado exitoso pelas facilitadoras
e por todas as partes envolvidas, motivo pelo qual este foi escolhido para compor o pre-
sente livro.
O conflito envolvia um adolescente e seu pai. O jovem de nome Juliano3 foi conduzido
ao CIA devido a uma agressão física cometida contra seu genitor Nelson que chamou a
polícia militar no momento do ato infracional, esse tipificado como vias de fato4. O pai,
conforme narrado no Boletim de Ocorrência, alegou que o rapaz não seguia suas orien-
tações e que, quando tentava colocar limites no filho, esse reagia de forma agressiva:
Em contato com o solicitante, sr: Nelson segundo sua versão toda vez que
seu filho faz algo errado, o corrigi (sic) orientando explicando o certo e o
1 A autora é graduada em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), formada em 2016,
advogada e facilitadora no Projeto de Pesquisa e Extensão Ciranda de Justiça Restaurativa da UFMG.
2 A autora é graduada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MINAS),
formada em 1999; Comunicação Social pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), formada em
1999; e Filosofia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), formada em 2008. Possui Mestrado
em Filosofia, em que pesquisou a ideia de justiça através do diálogo por esta mesma Universidade (2014).
É advogada, mediadora de conflitos e facilitadora no Projeto de Pesquisa e Extensão Ciranda de Justiça
Restaurativa da UFMG.
3 Os nomes presentes neste artigo são todos fictícios para a preservação da identidade das partes.
4 Conceitua-se vias de fato como contravenção penal que ameaça a integridade física através da prática
de atos de ataque ou violência contra pessoa, desde que não resulte em lesões corporais. Está prevista no
artigo 21 da Lei de Contravenções Penais- Decreto-Lei nº3688.
JUSTIÇA RESTAURATIVA: UM OLHAR PARA ALÉM DO ATO INFRACIONAL
Fernanda Valladares Andrade Neves | Flávia Vieira de Resende 84
errado, mas quando acontece isso o seu filho de nome Juliano não aceita, e
que no dia de hoje não foi diferente ao corrigir seu filho, o mesmo não gos-
tou começou a xingar com várias palavras de baixo calão e ainda foi para
cima dele dando chutes e socos, e ele só se defendendo e logo depois o seu
filho não satisfeito estava pegando qualquer coisa no lote para fazer o arre-
messo contra ele. E segundo informação do menor é o pai que agride e não
ele, e nega os fatos narrado (sic) pelo pai, o menor e o seu pai não quis ser
medicado (sic) por que não sofreu nenhuma lesão aparente, registro para o
vosso conhecimento.
Apesar de o adolescente ter negado os fatos narrados pelo pai no relato do Boletim
de Ocorrência, durante os pré-círculos de justiça restaurativa, não houve divergências
na narrativa de ambos ao caracterizar a ofensa, tendo o filho assumido a sua autoria,
como veremos no decorrer do artigo. As partes ratificaram o interesse em participar do
procedimento restaurativo.
Inicialmente, o caso foi atendido nas sessões individuais, também chamadas de pré-
-círculos restaurativos. Na data de 06/07, foram ouvidos separadamente o adolescente
e o pai, tendo sido esse o marco da suspensão processual. Para entender a dinâmica fa-
miliar, a equipe achou necessário ouvir a mãe do rapaz, que compareceu para o pré-cír-
culo no dia 13/07. A partir dos relatos trazidos pela mãe do adolescente, as facilitadoras
marcaram, na data de 03/08, mais um pré-círculo com o pai e o jovem, separadamente.
Cada pré-círculo teve duração média de uma hora.
Nas datas de 10/08 e 25/08, foram realizados dois círculos restaurativos, com média
de três horas de duração cada, contando com a presença dos três membros da famí-
lia. Posteriormente, foram realizados mais dois pós-círculos para o acompanhamento
do Plano de Ação construído pelas partes, esses acontecidos nas datas de 06/10/16 e
27/10/16, conforme a disponibilidade da família. Assim, contabilizaram-se nove aten-
dimentos, incluindo todas as sessões facilitadas.
consegue colocar limite no seu comportamento. Completou dizendo que mora sozinho
com Juliano e mais dois outros filhos adolescentes, tendo a ex-esposa, mãe dos jovens,
saído de casa há algum tempo, possuindo, atualmente, nova família. Após a separação,
o pai ficou com a guarda dos três filhos menores de idade, sendo responsável também
pelo sustento da casa. Sr. Nelson é padeiro e produz pães em sua própria residência para
vendê-los no bairro posteriormente.
A vida de responsável pela casa e provedor da família o faz necessitar da ajuda dos
filhos nas tarefas domésticas e na fabricação do pão. Segundo ele, os outros dois filhos
adolescentes não colocam problemas na divisão das tarefas do lar e da fábrica, sendo
mais colaborativos. O mesmo não acontece em relação a Juliano, que apesar de ser o
mais tímido dos irmãos, “não dando trabalho fora de casa”, de acordo com suas pala-
vras, não ajuda a família em nada. Conforme o pai, Juliano passa a tarde inteira jogando
vídeo-game, saindo somente por um curto período de tempo para estudar durante a
noite. Ao chegar da escola, no fim da noite, novamente o jovem retorna aos jogos, que
lhe consumem por toda a madrugada. Assim, o rapaz acaba acordando muito tarde, não
conseguindo colaborar com a produção de pães e com os afazeres domésticos, de forma
que o pai fica extremamente sobrecarregado, segundo o seu relato.
De acordo com o Sr. Nelson, Juliano não lhe obedece quando tenta colocar limite nos
horários de jogos, sendo fortemente rechaçado pelo filho, que inclusive o agride fisica-
mente. Suas preocupações também giram em torno dos estudos do rapaz, que, apesar
de comparecer às aulas, freqüentando a escola na modalidade da Educação de Jovens e
Adultos – EJA5, já foi reprovado anteriormente.
No segundo pré-círculo, foi ouvido o adolescente, que relatou a sua versão dos fa-
tos. Juliano compareceu de forma muito tímida, com dificuldade de se expressar e de
construir um relacionamento de confiança com as facilitadoras. No entanto, ao longo
5 A Educação de Jovens e Adultos (EJA) é uma modalidade de ensino que nasceu da clara necessidade
de oferecer uma melhor chance para pessoas que, por qualquer motivo, não concluíram o ensino
fundamental e/ou o médio na idade apropriada. Surge como uma ação de estímulo aos jovens e adultos,
proporcionando seu regresso à sala de aula. Esta modalidade respeita às características desse alunado,
dando oportunidades educacionais adequadas em relação a seus interesses, condições de vida e de
trabalho, mediante cursos e exames próprios. Disponível em: http://ejabrasil.com.br/?page_id=98. Acesso
em: 19 de setembro de 2017.
JUSTIÇA RESTAURATIVA: UM OLHAR PARA ALÉM DO ATO INFRACIONAL
Fernanda Valladares Andrade Neves | Flávia Vieira de Resende 86
atrás”, “que o correto seria ficar com o ex-marido”. As facilitadoras investigaram o senti-
mento de culpa que ela trouxe e perguntaram sobre a sua relação com o atual compa-
nheiro. Cássia contou que ele é um ótimo parceiro, que conversa com ela, ao contrário
do ex-marido, que, nas suas palavras, era “extremamente focado no trabalhado e muito
fechado”. Relatou, ainda, que o atual companheiro compartilha das obrigações da casa,
do trabalho e assume a sua responsabilidade de pai.
Em relação aos seus filhos do primeiro casamento, Cássia disse que, por se sentir mui-
to culpada durante a separação, achou melhor respeitar a vontade do Sr. Nelson de ficar
com a guarda dos filhos, alegando que “seria muita sacanagem sair de casa e ainda levar
os meninos embora, deixando ele sozinho”. Afirmou ter sentido muita falta dos filhos e
sofrido demais, mas que hoje, felizmente, as coisas estão mais tranqüilas, de forma que
os filhos, muitas vezes, vão passar as férias na sua casa e existe um bom diálogo com o
ex-marido.
Ao longo do pré-círculo com a mãe, as facilitadoras perceberam que ela foi se abrin-
do à medida em que se despia do peso da culpa que carregava e passou a demons-
trar claramente a sua preocupação, amor e zelo em relação a Juliano. Perguntada sobre
o vídeo-game, presente que ela havia dado ao filho, ela disse que ele gostava muito.
Acrescentou, ainda, que possui personalidade muito parecida com a de Juliano, que
sempre foi extremamente tímida e que, na infância e adolescência, sua atividade prefe-
rida era jogar fliperama.
Diante dos relatos da mãe, as facilitadoras perceberam que, a despeito da separação
dos genitores, havia uma relação próxima, de conexão e identificação entre mãe e filho,
de forma que a mãe poderia atuar como apoiadora do jovem no seu dissenso vivido
com o pai. A presença de Cássia no procedimento também seria fundamental, porque
ela reconheceu e disse compartilhar a demanda trazida por Nelson, preocupando-se
com o número excessivo de horas que Juliano passa no vídeo-game e com a sua agres-
sividade quando contrariado em relação aos seus desejos.
Mais um pré-círculo foi realizado, separadamente, com Juliano e Nelson, oportuni-
dade em que foram trabalhadas técnicas para mostrar os pontos positivos do sistema
familiar, pois, apesar de existirem conflitos e dificuldade de diálogo entre as partes,
JUSTIÇA RESTAURATIVA: UM OLHAR PARA ALÉM DO ATO INFRACIONAL
Fernanda Valladares Andrade Neves | Flávia Vieira de Resende 88
as facilitadoras perceberam que havia forte cooperação dos pais na criação dos filhos.
Ambos os genitores mostraram-se dedicados e preocupados com a formação e o futuro
do adolescente, o que foi bastante ressaltado, principalmente, no atendimento para com
o jovem.
Nesse atendimento de Juliano, as facilitadoras falaram sobre a presença da mãe no
procedimento e em seu interesse de colaborar para a resolução do conflito familiar,
tendo essa se mostrado disposta a participar do Círculo Restaurativo para apoiar o ado-
lescente, bem como para auxiliar pai e filho na construção e implementação de novos
caminhos. Assim, foi mostrado para o adolescente, que, embora separados, ambos os
pais estavam, de fato, presentes para ele.
As facilitadoras trabalharam ainda a responsabilização do adolescente pelo fato ocor-
rido, fazendo-o “trocar de lugar” com o seu pai. O jovem reconheceu o excesso de tem-
po que fica no vídeo-game, compreendeu a preocupação do pai com o seu futuro e se
mostrou arrependido por agir de forma agressiva com o Sr. Nelson, repensando como
poderia lidar de maneira mais benéfica com a raiva que sente em alguns momentos.
Em relação ao atendimento do pai, foi trabalhada a sua co-responsabilização no con-
flito vivido. A partir do que foi trazido pelo jovem e a mãe, as facilitadoras o questiona-
ram sobre a função do vídeo-game na vida do rapaz, vez que Juliano não gosta de so-
cializar fora de casa como os demais irmãos; perguntaram se Nelson sabia quem havia
dado o aparelho para o jovem e em que momento, e se ele já havia pensado na função/
significado desse na vida de Juliano.
Além disso, foi questionada a forma com que Nelson se dirige ao jovem, tendo aquele
reconhecido que fica muito nervoso com o filho quando é contrariado pelos excessos
dele e que, na maioria das vezes, o xinga e conversa de maneira rude. Nesse senti-
do, as facilitadoras trabalharam pontos da comunicação não violenta,6 explicando ao
6 A comunicação não violenta (CNV) é uma metodologia, desenvolvida por Marshall Rosenberg, que
apoia o estabelecimento de relações de parceria e cooperação, em que predomina a comunicação eficaz e
com empatia. Nessa metodologia, as pessoas devem se expressar sem a utilização de julgamentos, críticas
e juízos de valor, mas exprimindo os seus reais sentimentos e necessidades não atendidas. Busca-se a
satisfação das necessidades dos indivíduos através da empatia, do “dar natural” que cada ser humano
possui, e não pelo uso do medo, da vergonha, da acusação ou das ameaças.
JUSTIÇA RESTAURATIVA: UM OLHAR PARA ALÉM DO ATO INFRACIONAL
Fernanda Valladares Andrade Neves | Flávia Vieira de Resende 89
7 PRANIS, Kay. Teoria e prática. Processos Circulares. Tradução de Tânia Van Acker. São Paulo: Editora
Palas Atena. 2010, p.55.
JUSTIÇA RESTAURATIVA: UM OLHAR PARA ALÉM DO ATO INFRACIONAL
Fernanda Valladares Andrade Neves | Flávia Vieira de Resende 91
de ter a idade de 44 anos) e exausto por ter que dormir apenas quatro horas por noite
para dar conta de todas as suas responsabilidades. Nesse contexto, reclamou da falta de
apoio do Juliano, dos excessos do jovem em relação ao vídeo-game e de sua dificuldade
em lidar com o estabelecimento de limites.
Em contrapartida, Juliano afirmou que o seu pai é muito rígido e que, por ele, o jovem
apenas estudaria e trabalharia. As facilitadoras perceberam que a questão do limite,
tanto o de trabalhar, no caso de Sr. Nelson, quanto o de se divertir, no caso de Juliano,
era ponto chave do conflito. Havia como a família se equilibrar em relação a isso? Será
que o Sr. Nelson não tinha direito a algum momento de lazer e descanso? E o rapaz,
será que ele precisava ser como o pai? Ou o jovem poderia ter momentos de descanso
no vídeo-game, desde que isso não o impedisse de cumprir com as suas obrigações em
casa e na escola? E a mãe, como ela poderia contribuir para com o núcleo familiar?
Ao longo das rodadas de conversa, trabalhou-se a questão do limite na família, ten-
do os participantes sido questionados, inclusive, em relação a quais limites possuem
quando lidam com emoções como a raiva. Todos eles disseram ser tomados por esse
sentimento, em alguma medida, quando são contrariados, de forma que o jovem ad-
mitiu a sua agressividade verbal/física e o pai reconheceu sua dureza com as palavras.
As facilitadoras promoveram um momento de reflexão quanto às questões trazidas e
encerraram o círculo restaurativo, problematizando a questão dos limites em relação às
emoções e às necessidades da família de trabalho e de descanso.
No segundo círculo restaurativo, as partes trouxeram as reflexões que haviam feito,
no sentido de que era preciso equilibrar, entre pai e filho, o binômio trabalho/descanso,
e de que cada um possuía a sua parcela de responsabilidade em relação ao fato ocorri-
do. Isto é, pai e filho se responsabilizaram e viram a necessidade de alterar o modo de
conversar e de agir um com o outro.
Assim, foram construídas coletivamente as seguintes propostas para contribuir para
a melhoria das relações no ambiente familiar:
O Sr. Nelson se compromete a não falar de forma agressiva quando Juliano
estiver passando dos limites no vídeo game ou na não realização de alguma
tarefa em casa ou da escola. Que irá falar uma vez e permanecer em silên-
JUSTIÇA RESTAURATIVA: UM OLHAR PARA ALÉM DO ATO INFRACIONAL
Fernanda Valladares Andrade Neves | Flávia Vieira de Resende 92
cio, com o objetivo de permitir a reflexão do filho, acerca das suas ações. O
mesmo tipo de ação se estenderá para os outros filhos.
A Sra. Cássia se compromete a colaborar com o estabelecimento de limites
para Juliano, tendo as mesmas leis acordadas pelo pai e filho, nas residências
maternas e paternas, estendendo o acordo para os outros filhos.
Juliano propôs jogar vídeo-game, principal motivo do conflito entre ele e o
pai, durante 4 horas por dia. O horário estabelecido pelo adolescente é de
15h às 17h, e de 22h às 00h, quando ele chegar da escola. No caso de des-
cumprimento dos horários acordados pelo adolescente, esse reconhece que
será advertido pelo pai, de forma não agressiva.
Se por acaso houver alguma agressividade por parte do pai no estabeleci-
mento dos limites, Juliano se compromete a lembrá-lo do combinado nos
ciclos, que é o de prestar atenção na forma de falar nas conversas em famí-
lia, que devem seguir os seguintes princípios: serem respeitosos, terem obe-
diência aos combinados, ter entendimento, compreensão uns com os outros
e tentarem sentir no lugar dos outros.
Nos finais de semana, Juliano se compromete a jogar o vídeo-game duran-
te seis horas livres, por dia. Os acordos envolvem jogos e tempo no celular
também.
disposição para ajudá-lo no que fosse preciso. No entanto, ficou evidente que, apesar
das dificuldades de convivência com o pai, essa não era a vontade do adolescente. A
residência do pai, a despeito dos conflitos, era um ambiente positivo, onde o adolescen-
te conseguia suprir todas as suas necessidades, inclusive a de receber uma retribuição
financeira em troca dos serviços realizados em casa e na padaria (o que fora contado
somente neste atendimento), frequentar a escola e, após os círculos restaurativos, ver-se
respeitado na sua necessidade de lazer, algo antes pouco percebido e/ou valorizado pela
família por causa do histórico de vida dos pais - de poucas oportunidades de descanso
e divertimento.
O jovem não recorreu mais à violência física nos momentos de raiva, tendo sido real-
mente compreendido por ele, durante os círculos, que este não era um recurso legítimo
e aceitável socialmente e por nenhum dos membros da família.
Foi agendado novo pós-círculo com o pai e o jovem, sem a presença da mãe, com o
objetivo de ser melhor trabalhada a comunicação de necessidades entre pai e filho du-
rante a rotina familiar. Embora Nelson e Juliano tenham reconhecido o apoio da mãe,
ambos entenderam que ela não precisaria comparecer neste encontro, pois a dificulda-
de de comunicação se dava entre eles.
Percebeu-se que ambos estavam cientes das necessidades de descanso/trabalho um
do outro. Houve o reconhecimento de que Juliano e Nelson deveriam se respeitar na
maneira de falar; que o lazer deveria ser assegurado para os dois, não somente para o
filho, mas também para o pai, que trabalha desde muito cedo no comércio da padaria
e não tem muitas horas de descanso; bem como foi reconhecida a necessidade da cons-
trução de limites na rotina do filho, para que esse pudesse auxiliar o pai.
O Plano de Ação, portanto, foi reformulado para acrescentar que Juliano, fora do
horário da escola e do período pactuado para o seu lazer, iria ajudar o Sr. Nelson nos
serviços da padaria e nos afazeres da casa, recebendo uma remuneração semanal em
troca desses serviços. Como foi dito, essa retribuição já existia, mas por causa dos con-
flitos, o pai não tinha regularidade em lhe passar o dinheiro, o que causava muita raiva
no adolescente, pois essa era a única fonte de recursos que possuía, contribuindo esse
ponto também, para as discordâncias entre filho e genitor.
JUSTIÇA RESTAURATIVA: UM OLHAR PARA ALÉM DO ATO INFRACIONAL
Fernanda Valladares Andrade Neves | Flávia Vieira de Resende 94
3. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Acreditamos que os círculos proporcionaram a reflexão e a responsabilização de to-
dos os envolvidos no conflito vivido e que os ideais da Justiça Restaurativa, como por
exemplo: o de dar às pessoas uma chance para contar a sua versão da história; falar de
suas experiências; expressar seus sentimentos; entender melhor como a situação acon-
teceu; compreender como novos conflitos podem ser evitados no futuro; sentir que
foram entendidas pelos demais envolvidos; reconhecer que houve um dano; sentir o
impacto que o comportamento causou no outro; criar um meio de reparar o dano; sa-
ber que um pedido de desculpas sincero pode aliviar a situação; encontrar um modo de
seguir em frente e sentir-se melhores consigo mesmas; dentre outros, foram atingidos.
Para as facilitadoras, ficou evidenciado que, para além do ato infracional – vias de
fato – havia uma situação complexa, ou seja, uma família que precisava trabalhar inú-
meras questões, como a separação conflituosa dos pais, a aceitação da nova vida esco-
lhida pela mãe, a inclusão dela no seio familiar, a noção de interdependência entre as
JUSTIÇA RESTAURATIVA: UM OLHAR PARA ALÉM DO ATO INFRACIONAL
Fernanda Valladares Andrade Neves | Flávia Vieira de Resende 95
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BOYES-WATSON, Carolyn; PRANIS, Kay. No Coração da Esperança: Guia de Práticas Circulares.
Tradução por Fátima de Bastiani. Porto Alegre: AJURIS, 2011.
BRASIL, Decreto-Lei nº 3688, de 03 de outubro de 1941. Institui a Lei das Contravenções Penais.
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del3688.htm. Acesso em: 22 de
setembro de 2017.
O’CONNELL, Terry; WACHTEL, Ben; WACHTEL, Ted. Reuniones de Justicia Restaurativa:
Manual de Reuniones Restaurativas. Tradução por Vera Winkelried e María F. Torres. Pipersville:
Piper’s Press, 2010.
PETRONELLA, Maria Boonen. Apostila de Curso. Formação em Práticas de Justiça Restaurativa:
Desenvolver a inteligência emocional, promover a integração, construir relações saudáveis, res-
ponsáveis e justas. Centro de Direitos Humanos e Educação Popular de Campo Limpo. 2017.
PRANIS, Kay. Teoria e prática. Processos Circulares. Tradução de Tânia Van Acker. São Paulo:
Editora Palas Atena. 2010.
REDE RESIDÊNCIA. EJA BRASIL. Disponível em: <http://ejabrasil.com.br/?page_id=98>.
Acesso em: 19 de setembro de 2017.
JUSTIÇA RESTAURATIVA: UM OLHAR PARA ALÉM DO ATO INFRACIONAL
Fernanda Valladares Andrade Neves | Flávia Vieira de Resende 96
Resumo:
Aborda-se analitica e criticamente um atendimento restaurativo rea-
lizado pelas autoras, facilitadoras no Projeto de Extensão Ciranda da
UFMG, em um caso de conflito entre dois alunos. Apresentam-se
os fatos, o mapeamento do conflito e as técnicas utilizadas ao longo
do procedimento. Esmiúça-se o encontro vítima-ofensor e, por fim,
analisam-se os resultados obtidos no procedimento e seu desfecho
transformador.
Palavras chave: Justiça Restaurativa; Conflito; Encontro Vítima-
Ofensor; Projeto Ciranda.
Abstract:
It is analytically and critically approached by the authors, facilita-
tors in the Ciranda Extension Project of UFMG, in a case of conflict
between two students. It presents the facts, the conflict mapping and
the techniques used throughout the procedure. The victim-offender
encounter is moderated and, finally, the results obtained in the pro-
cedure and its transforming outcome are analyzed.
Key-words: Restorative Justice; Conflict; Victim-Offender Meeting;
Ciranda Project.
1 A autora é bacharela em Direito pela UFMG, formada em 2015; advogada no escritório Almeida Mourão
Marra Malta sociedade de advogadas; advogada-orientadora na Divisão de Assistência Judiciária da
UFMG; Facilitadora no Projeto de Extensão Ciranda de Justiça Restaurativa da UFMG; Mediadora.
2 A autora é bacharela em Direito pela UFMG, formada em 2017; advogada no escritório Marina Pimenta
e Advogados Associados; Facilitadora no Projeto de Extensão Ciranda de Justiça Restaurativa da UFMG.
UM CASO DE TRANSFORMAÇÃO – A CASE OF TRANSFORMATION
Aline Ferreira Gomes de Almeida | Lívia Vilela Bernardes 98
1. O CONFLITO
O caso foi encaminhado ao projeto Ciranda pela diretoria de uma instituição de en-
sino superior para realização de procedimento restaurativo com dois alunos que se en-
volveram em um conflito.
Diante do encaminhamento e após a definição das facilitadoras3 que atuariam no
caso, foram agendados dois pré círculos restaurativos com os alunos individualmente,
para que fosse possível compreender os fatos, mapear o conflito, avaliar a possibilidade
de realização do procedimento e verificar a adesão dos envolvidos para a participação.
Em síntese, o conflito ocorreu nas dependências da instituição de ensino, ao final de
uma festa universitária. O aluno agressor estava alcoolizado e enrolou algumas bandei-
ras usadas na decoração do evento no pescoço de seu colega. Este se assustou e pediu
para que aquela ação cessasse e afirmou que ele não poderia agir daquela forma, mas o
pedido não foi atendido. Alguns amigos tentaram intervir, mas o agressor, que estava
segurando uma garrafa de água, despejou todo o seu conteúdo no outro e, após, jogou
também a garrafa em sua direção. O agredido reagiu dizendo que chamaria a polícia.
Neste momento, o agressor disparou uma cusparada em seu rosto. O agredido saiu da
universidade e se deslocou em direção a um posto policial próximo. Um dos amigos do
agressor, e ele próprio, tentaram impedir o registro, mas o agredido realizou um bole-
tim de ocorrência relatando os fatos e formalmente imputando a ocorrência de contra-
venção penal prevista no art. 21 da Lei 3.688/44.
Diante do conflito, o agredido protocolou um requerimento para instauração de pro-
cesso administrativo perante a diretoria da instituição de ensino em desfavor do agres-
sor, sob a alegação de que teria sido vítima de agressão física e verbal. Após ambos
3 Kay Pranis (2010, p. 26-27) define o facilitador nos seguintes termos: “o facilitador, muitas vezes chamado
guardião, ajuda o grupo a criar e manter um espaço coletivo no qual cada participante se sente seguro para
falar aberta e francamente sem desrespeitar ninguém. Ele supervisiona a qualidade do espaço coletivo e
estimula as reflexões do grupo através de perguntas ou pautas.”
4 Art. 21. Praticar vias de fato contra alguém:
Pena – prisão simples, de quinze dias a três meses, ou multa, de cem mil réis a um conto de réis, se o fato
não constitue crime.
Parágrafo único. Aumenta-se a pena de 1/3 (um terço) até a metade se a vítima é maior de 60 (sessenta)
anos. (BRASIL, 1941).
UM CASO DE TRANSFORMAÇÃO – A CASE OF TRANSFORMATION
Aline Ferreira Gomes de Almeida | Lívia Vilela Bernardes 99
5 A voluntariedade é um dos princípios que norteiam os procedimentos restaurativos, por isso, a realização
do procedimento depende do livre consentimento de todas as partes diretamente envolvidas no conflito,
respeitando-lhes o direito de desistir a qualquer momento. Assim, todas as pessoas envolvidas e convidadas
a participar devem manifestar expressamente seu interesse em ingressar e continuar no procedimento.
No projeto Ciranda, no primeiro encontro, os envolvidos assinam um termo de compromisso, no qual
ratificam a adesão ao convite para participar de procedimento restaurativo e, além disso, firmam os
seguintes termos: 1) o procedimento será confidencial (outro princípio deste procedimento); 2) Todos os
participantes serão tratados de forma justa e digna, sendo assegurado o mútuo respeito entre as partes, as
quais serão auxiliadas a construir, a partir da reflexão e da assunção de responsabilidades, uma solução
adequada e eficaz visando sempre o futuro; 3) a imparcialidade dos facilitadores, que têm o dever de
resguardar o ambiente dialógico e o respeito.
Além do termo de compromisso, no primeiro encontro os atendidos preenchem um questionário
socioeconômico - para avaliação estatística do perfil das pessoas que são encaminhadas - e recebem
um termo com orientações sobre o procedimento, no qual há identificação das facilitadoras e telefone
para contato, a localização da sala do Ciranda, e algumas regras para o atendimento, quais sejam: 1) a
tolerância de atraso é de 15 minutos; 2) em caso de imprevistos, as facilitadoras devem ser avisadas sobre o
cancelamento do encontro com antecedência mínima de 1 hora; 3) o não comparecimento, sem contrato
prévio ou posterior, presume-se a perda da voluntariedade após 1 semana, sendo o caso devolvido; 4)
após três faltas injustificadas presume desistência, sendo o caso devolvido.
No último encontro, os envolvidos preenchem um questionário avaliativo, podendo ser mantido o sigilo
quanto ao declarante, no qual avaliam o procedimento, a atuação das facilitadoras, a sua participação e
envolvimento no procedimento, o espaço do atendimento, dentre outras questões.
UM CASO DE TRANSFORMAÇÃO – A CASE OF TRANSFORMATION
Aline Ferreira Gomes de Almeida | Lívia Vilela Bernardes 100
Ele demonstrou necessidade de entender os motivos pelos quais a vítima fez o bole-
tim de ocorrência, pois entendia que esta teria sido uma atitude desproporcional ao que
ocorreu. Esclareceu que sua incompreensão decorria do fato de que sabia que a vítima
defendia o abolicionismo penal7, o que era incompatível com sua conduta de buscar
respaldo policial. Observa-se que o agressor relatou que possui trauma e profundo des-
conforto ante policiais, pois um de seus irmãos foi morto por um e os outros dois es-
tavam presos. Portanto, relatou que quando ouviu que a vítima buscaria ajuda policial,
sentiu-se preocupado e com raiva.
Por fim, deixou claro que, se possível, desejaria restabelecer o vínculo de amizade
existente anterior ao episódio narrado. Durante todos os atendimentos ele mostrou-se
participativo e disposto a auxiliar na construção de uma solução compositiva.
Quanto ao apoiador (pessoa da comunidade de referência), ele indicou uma amiga.
Contudo, o agredido apresentou resistência a sua participação, inclusive porque ela não
residia na cidade, o que inviabilizaria sua participação. Não foi apontado ou identifica-
da outra pessoa como apoiadora.
Em relação ao agredido, no primeiro encontro ele relatou os fatos relacionados com
o conflito e com seu vínculo anterior com o outro envolvido. O sentimento que prevale-
cia em sua narrativa era de raiva e de incompreensão e o que remetia ao dia do ocorrido
era o sentimento de humilhação. Em decorrência disso, apresentava necessidade de ser
reparado pela agressão sofrida.
Inicialmente, seu posicionamento pautava-se na necessidade de punição, que poderia
ser atendida por diversas formas, dentre elas através da expulsão ou da suspensão do
aluno agressor. A sua intenção era, em suas palavras, “devolver aquela cusparada, mas
de outra forma”.
7 Segundo Raúl Zaffaroni (2014, p. 89): “O abolicionismo nega a legitimidade do sistema penal tal como
atua na realidade social contemporânea e, como princípio geral, nega a legitimação de qualquer outro
sistema penal que se possa imaginar no futuro como alternativa a modelos formais e abstratos de solução
de conflitos, postulando a abolição radical dos sistemas penais e a solução dos conflitos por instâncias ou
mecanismos informais.”
UM CASO DE TRANSFORMAÇÃO – A CASE OF TRANSFORMATION
Aline Ferreira Gomes de Almeida | Lívia Vilela Bernardes 104
Além disso, indicou um amigo como seu apoiador, que também era amigo do agres-
sor. Todavia, foi impossibilitada a participação no procedimento deste terceiro, pois
este viajaria ao exterior.
Durante os seis atendimentos individuais, as facilitadoras trabalharam com o refe-
rencial de justiça restaurativa em contraponto à justiça retributiva, bem como as possí-
veis formas de reparação, buscando demarcar objetivamente quais as necessidades dos
atendidos, o que estavam dispostos a oferecer e o que precisava ser reparado.
Ao longo dos atendimentos, foi possível perceber uma ressignificação relacionada ao
lugar de ambos frente ao conflito, a percepção do que é justiça, punição, reparação e
responsabilização.
Em relação ao ofendido, percebeu-se uma profunda transformação acerca da sua ideia
inicial de justiça e de punição retributiva, a qual antes era vista como reservada a ação
de terceiro superior, no caso o diretor, que poderia aplicar uma sanção frente a toda a
comunidade, pautada em um viés impositivo, coercitivo e de punição.
Contudo, percebeu que a mera imposição de uma sanção administrativa poderia re-
presentar apenas uma forma de causar dor ao agressor, sem possibilitar a sua responsa-
bilização e oportunizar uma transformação positiva em sua vida. Compreendeu que era
possível a resolução consensual, colaborativa e participativa, em que o agressor pudesse
compreender a dimensão de seus atos, a dor que causou, reconhecer que não deve ser
violento e que, portanto, poderia ter a escolha de não mais agredir outras pessoas ao
compreender as consequências de seus atos.
Foi alcançada a alteridade e uma postura compassiva de ambos, em que se propu-
seram a se colocar no lugar do outro e compreender o conflito a partir de uma nova
perspectiva.
Foi trabalhada a ideia desenvolvida por Howard Zehr em seus livros “Trocando as
Lentes” e “Justiça Restaurativa”, no sentido de que não há justiça se continuarmos man-
tendo o foco exclusivamente na perspectiva punitiva e formal de “combate” à crimina-
lidade. Nesse sentido, o autor assevera que:
O argumento que apresento aqui é bem simples: não haverá justiça enquan-
to mantivermos nosso foco exclusivamente nas questões que têm orientado
UM CASO DE TRANSFORMAÇÃO – A CASE OF TRANSFORMATION
Aline Ferreira Gomes de Almeida | Lívia Vilela Bernardes 105
o atual sistema judicial: Que leis foram infringidas? Quem fez isso? O que
merecem em troca?
Para que haja verdadeira justiça é preciso que façamos a nós mesmos as
perguntas: Quem foi prejudicado? Quais suas necessidades? Quem tem
obrigação e quem é responsável por atender tais necessidades? Quem tem
interesse legítimo na situação? Que processo conseguirá envolver os in-
teressados a fim de encontrar uma solução? A Justiça Restaurativa requer
que troquemos não apenas nossas lentes, mas também nossas perguntas.
Acima de tudo, a Justiça Restaurativa é um convite ao diálogo, para que pos-
samos apoiar um ao outro e aprender uns com os outros. É um lembrete de
que estamos todos interligados de fato. (ZEHR, 2012, p. 76)
que será feito para corrigir a situação, e depois incentivados a tomar as me-
didas para reparar os danos. (ZEHR, 2012, p. 41)
Assim, após os seis encontros individuais, foi possível perceber que os atendidos es-
tavam preparados para se encontrar, pois além dos elementos trabalhados supracitados,
foi possível delinear os fatos, os sentimentos, as necessidades e o que poderia ser cons-
truído na prática para atender estas.
Em relação ao ofensor, este chegou à conclusão de que precisava retomar o sentimen-
to de pertencimento, de rever suas escolhas e ter mais autocontrole com as pessoas do
seu círculo social. Informou que tinha necessidade de reparar o dano causado por meio
de um pedido de desculpas e que estava disposto a oferecer o que a vítima lhe pedisse
para reconstruírem os laços rompidos.
Por sua vez, a vítima concluiu que, após entender melhor o contexto do agressor, os
motivos que o levaram a agir de forma violenta e ao saber que ele estava assumindo seus
atos e se responsabilizando racionalmente por eles, percebeu que não precisava mais de
punição. Informou que seu objetivo havia sido atendido, pois o conflito não o afetava
mais e que nenhum sentimento negativo estava sendo alimentado. Ponderou, ao final,
que gostaria que o ofensor se comprometesse a se cuidar e a se controlar mais para não
causar o mesmo sofrimento que suportou para outras pessoas.
Ante esta situação de demarcação do conflito, foi agendada a data para realizar o en-
contro vítima-ofensor.
3. O ENCONTRO VÍTIMA-OFENSOR
Na sessão conjunta, foi realizado um encontro vítima-ofensor, considerado um dos
métodos de justiça restaurativa, em virtude da impossibilidade de concretizar tecni-
camente o círculo restaurativo, sobretudo em decorrência da ausência de apoiadores.
Todavia, foram utilizados elementos de um círculo, pois as facilitadoras entenderam
que a sua metodologia contribuiria para criar um ambiente de alteridade, de escuta ati-
va e possibilitar o entendimento recíproco.
Por ser um método que privilegia a participação ativa e isonômica de quem prati-
cou o ato e de quem sofreu seus danos, preferiu-se a condução do caso por processos
UM CASO DE TRANSFORMAÇÃO – A CASE OF TRANSFORMATION
Aline Ferreira Gomes de Almeida | Lívia Vilela Bernardes 107
No caso em análise, o atendimento conjunto foi iniciado com uma cerimônia de aber-
tura, para o centramento dos envolvidos naquele momento que demandava um esta-
do de relaxamento e de empatia. Para isso, foi realizado um exercício de respiração e,
posteriormente, foi feita a leitura do texto “Nem tudo é fácil”, de Cecília Meireles, que
possuía elementos pertinentes à solução do conflito.
Foi utilizado o bastão de fala9 para ordenar as falas, tendo sido escolhido um canudo
de diploma, que era um objeto que simbolicamente estabelecia um vínculo entre todos
os presentes. Basicamente representava a ideia de que o conflito ocorreu no ambiente
universitário, no espaço em que ambos se preparavam para a obtenção da tão sonhada
graduação, representada pelo diploma.
No centro do círculo foram colocados lenços coloridos e um vaso de plantas, com a
simbologia das suas raízes, que nutre aquele organismo. Essa referência relaciona-se ao
lugar de fala de cada um e de onde vem cada um de nós, com forte laço com a família e
as referências pessoais, temas trabalhados com os dois alunos nos pré círculos. Buscou-
se, com isso, resgatar as origens, os valores aprendidos com os pais e o sentimento de
amor que nutre as relações, ainda que, às vezes, conflituosas.
Posteriormente, foram apresentados espontaneamente por todos os participantes as
diretrizes10 que norteariam o encontro: sinceridade, confiança, compromisso e empatia;
8 No original: “Las conferencias víctima-ofensor involucran principalmente a las víctimas y a los ofensores.
Después de remitido el caso, se trabaja individualmente con cada una de las partes. Luego, una vez
obtenido su consentimiento, se reúnen en una conferencia. Un facilitador capacitado organiza y dirige la
reunión y guía el proceso de manera equitativa.”
9 O bastão de fala é um objeto escolhido pelas facilitadoras com o intuito de promover a conexão entre
os envolvidos, algo que represente o objetivo de estarem neste espaço ou que tenha uma simbologia
representativa. Este objeto passa por todo o círculo, dando a todos oportunidade de fala. Somente a
pessoa que segura o bastão tem a vez de fala, podendo optar por não falar, passando para frente, ou
segurá-lo em silêncio. A única exceção é para o facilitador, que poderá falar caso seja necessário para o
desenvolvimento do círculo.
10 Diretriz compreende o que cada participante precisa para se sentir seguro. Essas são as bases para o diálogo.
São as promessas que os participantes fazem mutuamente de como vão se comportar (PETRONELA,
2017, p. 38).
UM CASO DE TRANSFORMAÇÃO – A CASE OF TRANSFORMATION
Aline Ferreira Gomes de Almeida | Lívia Vilela Bernardes 109
11 Os valores trazidos são os que importam para cada um e que querem trazer para o diálogo. Em que cada
um apresenta o seu “eu verdadeiro”, que consiste nos valores que representam quem eles são quando
estão no melhor de si. (PETRONELA, 2017, p. 38).
UM CASO DE TRANSFORMAÇÃO – A CASE OF TRANSFORMATION
Aline Ferreira Gomes de Almeida | Lívia Vilela Bernardes 110
12 As facilitadoras, mesmo após prévia autorização dos atendidos, decidiram ocultar algumas informações
pertinentes ao conflito, visando resguardar o sigilo, a segurança e a identidade dos envolvidos.
UM CASO DE TRANSFORMAÇÃO – A CASE OF TRANSFORMATION
Aline Ferreira Gomes de Almeida | Lívia Vilela Bernardes 112
4. O DESFECHO DO CASO
A percepção das facilitadoras foi de que o procedimento conseguiu promover trans-
formações positivas em ambos os atendidos, bem como solucionar o conflito existente.
Contudo, alguns ponderamentos precisam fer feitos.
O fato de agressor não ter contado previamente para as facilitadoras sobre sua viagem
demonstra que ele não confiou plenamente no procedimento. Apesar de ser informado
sobre o dever de confiabilidade e de sigilo, não partilhou sobre sua viagem, um dado
relevante para a continuidade dos atendimentos. Por conseguinte, esta insegurança e
ausência de confiança repercutiu no comportamento dele no encontro conjunto, pois
não demonstrou muita conexão no encontro com a vítima ante uma profunda ansieda-
de claramente percebida. As facilitadoras supõem que é possível esse comportamento
em razão de sua viagem, mas não há elementos suficientes para se concluir isto. Dessa
forma, apesar de o ofensor ter se responsabilizado racional e formalmente pelos fatos
narrados, restou a dúvida se de fato para ele o procedimento promoveu transformações
relevantes que possam repercutir positivamente em sua vida.
Em relação ao agredido, foi possível perceber que ele foi bastante sincero e autêntico
em seus posicionamentos. Em relação a ele os objetivos restaurativos foram alcançados.
Foi possível perceber uma profunda transformação no seu posicionamento frente ao
conflito, ao seu desejo de vingança e no fato de que suas necessidades foram atendidas
por intermédio da alteração da sua posição do que seria punição e reparação. Ele com-
partilhou a transformação de seus sentimentos, mostrando-se satisfeito com o desfecho
do procedimento.
Assim, diante do conflito que gerou danos buscou-se olhar para frente, para o que
ainda pudesse ser construído, de forma a superar a ideia de impor castigo e causar so-
frimento no outro, conforme estabelece o paradigma de justiça retributiva. Buscou-se
uma responsabilização para além da culpa individual, promovente da dor, do sofri-
mento, por entender que a ameaça de castigo não altera condutas e não coíbe práticas
ilícitas.
UM CASO DE TRANSFORMAÇÃO – A CASE OF TRANSFORMATION
Aline Ferreira Gomes de Almeida | Lívia Vilela Bernardes 113
5. BIBLIOGRAFIA
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ZEHR, Howard. El Pequeño Libro de la Justicia Restaurativa. Tradução por Vernon E. Jantzi.
Paraguay: Good Books, 2010.
EXORTANDO O PRÓXIMO
1. O PONTO DE PARTIDA
Desde junho de 2016, o Projeto Ciranda de Justiça Restaurativa vem recebendo casos
encaminhados pelo Centro Integrado de Atendimento ao Adolescente Autor de Ato
Infracional de Belo Horizonte - CIA/BH, integrado pela Vara da Infracional da Infância
e da Juventude da Comarca da capital mineira.
No entanto, a preparação para nossa atuação enquanto facilitadoras de diálogo é an-
terior; data de abril de 2015, quando ingressamos no Projeto. De lá para cá frequen-
tamos o Grupo de Estudos de Justiça Restaurativa e Processos Circulares, promovido
pelo Ciranda, para refletirmos criticamente sobre a Justiça Restaurativa, suas diversas
práticas, seus limites e sua inserção em estruturas de poder hegemônicas que permeiam
a realidade brasileira.
Além disso, realizamos diversos cursos de capacitação em Justiça Restaurativa, nos ter-
mos regulamentado pelas Resoluções nº 125 e 225 do Conselho Nacional de Justiça -
CNJ, ministrados pelo Programa de Acesso à Justiça e Solução de Conflitos da Faculdade
de Direito da UFMG - RECAJ (2015, presencial, CH 40h), pelo Centro de Estudos e
Aperfeiçoamento Funcional do Ministério Público do Estado de Minas Gerais - CEAF
(2016, virtual, CH 40h), pela Escola Judicial Desembargador Edésio Fernandes do Tribunal
de Justiça de Minas Gerais - EJEF (2017, presencial, CH 32h) e pelo Centro de Direitos
Humanos e Educação Popular de Campo Limpo - CDHEP (2017, presencial, CH 40h).
1 Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais e facilitadora no Projeto de Pesquisa e
Extensão Ciranda de Justiça Restaurativa da UFMG.
2 Mestranda em Direito na Universidade Federal de Minas Gerais, monitora do Projeto de Pesquisa e
Extensão Ciranda de Justiça Restaurativa da UFMG, pesquisadora voluntária do Programa Interfaces -
Programa Interdisciplinar de Psicanálise e Direito que integra o PSILACS (Núcleo de Psicanálise e Laço
Social no Contemporâneo) da UFMG.rafaellarm@ufmg.br
EXORTANDO O PRÓXIMO
Elisa Barroso Fernandes Tamantini | Rafaella Rodrigues Malta 116
Esclarecemos que a escolha do caso em questão deu-se pelo fato de ser um caso com-
plexo que traz violência de gênero, medicalização e religiosidade e porque ao longo do
procedimento nos sentirmos pesarosas pela falta de interesse de alguns envolvidos no
conflito.
Com isso, passamos a nos indagar: o que seria êxito no procedimento restaurativo?
Seria possível tê-lo mesmo quando o ‘ofensor’ não demonstra interesse em permanecer
no procedimento? Em que grau?
A partir da análise do Caso Mórmon, ainda em fase de atendimento por nós, obje-
tivamos expor neste texto uma compreensão acerca do êxito e das potencialidades da
prática restaurativa, enquanto transformação. Para tanto, utiliza-se como marco teórico
a definição proposta por Lederach (2012, p. 35) de que a
Transformação dos conflitos é visualizar e reagir às enchentes e vazantes do
conflito social como oportunidades vivificantes de criar processos de mu-
dança construtivos, que reduzam a violência e aumentem a justiça nas in-
terações diretas e nas estruturas sociais, e que respondam aos problemas da
vida real dos relacionamentos humanos.
2. O CASO MÓRMON
O Caso foi encaminhado ao Ciranda pelo Setor de Atendimento ao Adolescente em
Situação Especial – SAASE no dia 18/07/2017 em razão do adolescente Carlos ter agre-
dido fisicamente sua mãe Patrícia em 16/07/2017. Constavam dos documentos de en-
caminhamento a cópia do termo de audiência preliminar, em que o Ministério Público
propôs a suspensão do feito e o encaminhamento do adolescente e de seu responsável
legal a um dos núcleos de Ciclo Restaurativo; a Certidão de Antecedentes Infracionais
- CAI de Carlos, na qual havia anotação de um episódio anterior, de 05/10/2016, em
que foi concedida remissão extintiva ao jovem; e um relatório do caso elaborado pelo
SAASE após o atendimento da vítima e do ofensor.
Carlos tem 16 anos, reside com os pais, Patrícia e Alexandre, e o irmão caçula,
Alexandre, em um bairro da regional norte da capital mineira. Carlos estuda o primei-
ro ano do Ensino Médio em uma escola da rede estadual de Belo Horizonte no turno
EXORTANDO O PRÓXIMO
Elisa Barroso Fernandes Tamantini | Rafaella Rodrigues Malta 118
Patrícia e Alexandre fazem uso regular de antidepressivo há dez anos, pois, segun-
do eles, ambos têm depressão profunda. Alexandre faz uso ainda de medicamento an-
tipsicótico (Risperidona), para controle da raiva. Logo após o episódio do dia 16/07,
Carlos passou a tomar também antipsicótico (Risperidona) e um ansiolítico para aca-
bar com a dependência por nicotina. Ao longo dos atendimentos, o adolescente foi
diagnosticado com Transtorno de Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDH) e
iniciou o uso de Ritalina.
Para a mãe, Carlos de certa forma reflete o que viu na infância, de modo que ela tem
“vivenciado as mesmas agressões”, o que a faz sentir-se desrespeitada. Ela se queixa que
“queria uma vida normal”, mas que o adolescente não permite isso, pois ele “provoca
as pessoas, trata os outros de modo desrespeitoso, quando fala, por exemplo, que essa
família é uma bosta”.
Carlos se queixa das cobranças da mãe em relação aos caminhos que ele deve seguir
em sua vida, dizendo que “ela deposita os sonhos dela em mim”. Ele relatou ainda que
seus pais “acham que são Deuses e se intrometem” na sua vida, de modo que ele acaba
“perdendo o controle”.
Ao longo dos atendimentos, Carlos mudou-se da casa dos pais, passando a morar em
um quarto alugado, em um bairro próximo, cujas despesas são todas pagas pelo próprio
adolescente com salário de jovem aprendiz. Anteriormente, o adolescente ficou algu-
mas semanas na casa de sua tia Cíntia, irmã de Patrícia. Para os pais, a saída de casa foi
tida como a melhor opção, pois “uma hora alguém iria morrer”, tendo em vista que os
conflitos eram diários e envolviam muita violência física.
2º pré-círculo 1º pré-círculo
(adolescente) (irmão)
16/08 previsto 26/09
2º pré-círculo
Agressão (mãe) e 3º pré-círculo círculo
em 16/07 1º pré-círculo 1º pré-círculo (adolescente) previsto
(adolescente e mãe) (pai) 25/08 13/09 05/10
12/08
Atendimentos Faltas
frustrados em injustificadas
26/07; 28/07; (adolescente) em
05/09 e 11/09;
Audiência Inícios prazo de justificadas Fim prazo de
Preliminar 17/07 e suspensão (adolescente) suspensão
Encaminhamento processual 08/09 processual
Cancelamento Prorrogação 11/10
SAASE 18/07 (30 dias) 12/08 injustificado
prazo de
(avô) suspensão
processual
Há, não obstante, previsões de que essas sessões ocorram, respeitando o limite do
prazo estabelecido no art. 2º, item 7, do Protocolo de Cooperação Interinstitucional no
Âmbito do Sistema de Atendimento Socioeducativo de Belo Horizonte3.
importante questionar a essa família o que eles estavam fazendo além do consumo de
remédios, para lidar com o mal-estar. Patrícia respondeu que nada, justificando-se em
razão da falta de recursos financeiros para atividades de lazer, mas lembrou que no iní-
cio do casamento fazia aulas de muay thai e gostava muito.
Como facilitadoras, consideramos que para continuidade do procedimento restau-
rativo seria crucial encaminhar a família para atendimento psicológico, desejo que eles
mesmos expressaram. A partir disso, o Projeto Ciranda estabeleceu um encaminha-
mento de rede para o Programa Já É, membro do Núcleo PSILACS (Psicanálise e Laço
Social Contemporâneo) da UFMG, coordenado pela Professora Dra. Andréa Máres
Campos Guerra, que atua por meio do SPA (Serviço de Psicologia Aplicada da UFMG).
Assim, o Já É, que atua com adolescentes no sistema socioeducativo, prestará atendi-
mento clínico individual ao adolescente e, ainda, atendimento conjunto aos genitores,
tendo sido requerido em juízo a homologação desse encaminhamento como forma de
medida protetiva, nos termos do artigo 101, IV do Estatuto da Criança e do Adolescente.
Notamos também que Carlos é um adolescente bem articulado que passa por um
processo de autodescoberta, de ressignificações, de modo que busca novos códigos mo-
rais. Relatou que enquanto ainda era da igreja, ele sabia o que seria da sua vida (“eu faria
seminário, namoraria uma menina da igreja, casaria e teria uma vida feliz”), mas que
hoje ele perdeu seu “modelo de felicidade”, por isso diz que tem que “reaprender a ser
filho, irmão”.
O adolescente demonstra necessidade de autodeterminação, de independência, natu-
ral para a idade, porém aguçada pela sensação de controle que ele relata derivar da rela-
ção com os pais. A queixa de Carlos permeia ainda o fato de que a casa onde habita sua
família não tem nenhuma porta, sequer no banheiro, o que priva os membros daquele
lar de qualquer privacidade.
Como facilitadoras, notamos que a saída de Carlos de casa acabou levando à perda de
interesse dele em relação ao procedimento restaurativo, ao mesmo tempo em que sus-
citou novos sentimentos e necessidades nesse jovem. Conforme ele nos disse nos dois
primeiros encontros, ele não vislumbrava nenhuma outra medida tão necessária quan-
to o afastamento do lar, indicando que tinha interesse e que estava à procura de lugares
para morar sozinho ou com sua namorada, Bruna.
EXORTANDO O PRÓXIMO
Elisa Barroso Fernandes Tamantini | Rafaella Rodrigues Malta 124
4 O verbo exortar, utilizado biblicamente, corresponde à palavra grega ‘parakaleo’, cuja etimologia
corresponde para, ‘ao lado’ e kaleo, ‘chamar’.
EXORTANDO O PRÓXIMO
Elisa Barroso Fernandes Tamantini | Rafaella Rodrigues Malta 126
Explicou o jovem que o conflito se teve origem quando Patrícia mexeu na mochila
de Carlos, sem a sua autorização, e encontrou tabaco, que acreditou ser com maconha.
Iniciada as agressões verbais entre mãe e filho, este começou a intimidá-la corporalmen-
te. Alexandre, vendo essa situação, se apossou de um facão. Conforme Carlos narrou,
ele estava se dirigindo à saída da casa, quando viu que seu pai tinha a arma em mãos,
logo pensou que este iria lhe matar e que deveria, então, desarmá-lo. Ao tentar fazê-lo,
o jovem acabou se ferindo.
Lado outro, o pai relata que sentiu receio do que o filho fosse capaz e que necessitava
defender sua família. Havia pegado o facão para se resguardar, tendo em vista a sua de-
bilidade física devido ao acidente que lhe acarretou a inserção de quatro pinos na coluna.
Relatou que quando Carlos foi ao embate mesmo ele estando de posse da arma, pensou que
o filho é que queria matá-lo; tirar-lhe a arma para com ela matá-lo. Nessa luta, Alexandre
admite ter desferido golpes contra seu filho. Demonstrou-se aflito e preocupado sobre ter
machucado seu filho dizendo “a sorte foi que pegou na mochila do Carlos”.
No embate, o facão caiu no chão, e Alexandre conseguiu imobilizar Carlos. O adoles-
cente narra que o pai, ainda, teria falado ao filho caçula, ‘Alezinho’ - que presenciou toda
a cena - para pegar o facão, entregá-lo a ele, pois ele disse que iria esquartejar Carlos.
Alexandre, ainda, nos mostrou no dia do atendimento, levantando a camisa as mar-
cas das mordidas de Carlos feitas quando este tentava se desvencilhar do pai. O geni-
tor contou que nesse momento, enquanto Carlos estava no chão sendo imobilizado,
Patrícia chutou e deu socos no filho. Segundo o pai, “na hora da raiva ela solta as coisas”.
Nesse dia a família optou por não chamar a polícia.
Montando um mosaico de narrativas desse episódio, percebe-se o quanto a violência
e animosidade pode ser insuflada em razão do ponto a partir do qual se tem em mente
uma história. Para a mãe a história começa quando encontra ‘maconha’ na mochila do
filho; para o pai, quanto vê o filho intimidando agressivamente a esposa; para o ado-
lescente, quando a mãe resolve mexer na sua mochila, sem a sua autorização, mesmo
depois dele já ter pedido diversas vezes para ela não fazer isso.
Por este motivo, trabalhar a corresponsabilização ativa pelas ofensas nesses episódios
é algo complexo e difícil. No caso questão, em razão da tamanha animosidade entre
EXORTANDO O PRÓXIMO
Elisa Barroso Fernandes Tamantini | Rafaella Rodrigues Malta 127
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Sempre que trabalhamos no socioeducativo é importante nos apoiar na rede que com-
põe o sistema de proteção e de garantia dos direitos das(dos) jovens que atendemos. O
Projeto Ciranda, como membro da rede, não só tem a função de fortalecê-la como tam-
bém de ampliá-la, quando houver a necessidade e a possibilidade de assim fazer. No caso
do adolescente Carlos, o encaminhamento do jovem e de seus pais para atendimento
psicológico significou um ganho para a estrutura socioeducativa, permitindo inclusive o
desafogamento dos Centros de Referência Especializado da Assistência Social (CREAS).
EXORTANDO O PRÓXIMO
Elisa Barroso Fernandes Tamantini | Rafaella Rodrigues Malta 128
Além disso, por meio dessa parceria intraUFMG, realizada entre o Projeto Ciranda
de Justiça Restaurativa, do Direito, e o Projeto Já É, da Psicologia, é possível trabalhar
paralelamente o procedimento restaurativo e o atendimento psicológico das partes, que
é a base para nossa atuação nesse conflito.
Outro ponto interessante que este caso suscita é a dificuldade de mantermos o
comprometimento com o procedimento por parte do jovem. Uma forma de incluir o
adolescente no processo é reforçar, a todo tempo, que na Justiça Restaurativa o proce-
dimento, e, por conseguinte, um eventual acordo, não é imposto, é construído com as
partes, a partir da manifestação de voluntariedade.
Assim, quando Carlos deixou de demonstrar interesse no procedimento, buscamos
compreender as causas de uma mudança de postura tão significativa entre o segun-
do encontro, no qual o jovem manifestou desejo de prosseguir, e o terceiro encontro,
momento em que o adolescente, após sucessivas faltas, disse não ter mais interesse em
continuar. A partir disso, é sempre importante ter em mente que o tempo da adoles-
cência é um tempo mais veloz, e que para que haja responsabilização efetiva é essen-
cial aproveitar a oportunidade e o momento certo, não distanciando o ato da efetiva
responsabilização.
O tempo da vida não é - e nem deve ser - o tempo do processo, de modo que cabe a nós
compreender e respeitar sempre que uma das partes deixa de expressar a voluntarieda-
de. Mas mesmo que o interesse em participar do círculo restaurativo se perca, é válido se
atentar para quais os ganhos foram possíveis durante a participação daquela parte.
No caso, consideramos que Carlos demonstrou uma boa percepção do conflito e teve
compreensão da importância que seria se afastar do ambiente familiar momentanea-
mente, de modo a evitar maiores conflitos. Além disso, o adolescente foi receptivo ao
convite de encaminhamento ao Programa Já É, dizendo que seria interessante “dar uma
chance à psicanálise”, o que permite que ele faça uma ressignificação desse conflito.
Ainda, a decisão por manter o procedimento restaurativo, com a realização do Círculo
de Conexões Familiares, mesmo sem a presença do ‘ofensor’, se pauta na percepção de
que os processos circulares permitem que voltemos nosso olhar para as necessidades da
‘vítima’. Patrícia, após ter sido vítima de tantas violações, quer “ter harmonia” e expressa
EXORTANDO O PRÓXIMO
Elisa Barroso Fernandes Tamantini | Rafaella Rodrigues Malta 129
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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EXORTANDO O PRÓXIMO
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