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NIETZSCHE E OS MEIOS CONSENSUAIS DE SOLUÇÃO DE

CONFLITOS

Thiago Rodrigues-Pereira
Adir Freire Freitas

Sumário 1 Introdução. 2 Resolução Consensual de Conflitos. 2.1 Breve histórico da


mediação e conciliação. 2.2 Distinção entre mediação e conciliação. 3. Nietzche e o sujeito
moderno. 4 Nietzche e nós. 5. Considerações Finais

1 INTRODUÇÃO

CAPÍTULO
11
Ao estabelecer que o Estado deverá promover a solução consensual dos conflitos,
numa clara consonância com os princípios e valores da Constituição Federal, o Código de
Processo Civil Brasileiro (Lei 13.105/2015) chama a atenção para a cultura jurídica
predominante nas agências formadoras de profissionais do Direito, no cotidiano dos
tribunais e nas expressões do senso comum que parecem indicar a predominância da lógica
do litígio em que tudo que importa é vencer o oponente, reparar o dano ou obter do outro
até mais além do que se deve.
Parte da doutrina considera os equivalentes jurisdicionais como uma alternativa
eficiente e um avanço civilizatório que o Estado propõe aos seus jurisdicionados apontando
para um futuro em aberto que a todos conclama à sua construção.
Por outro lado, a ideia de um consenso durante um processo judicial parece ser, para
alguns, uma ideia romântica e incólume à dura realidade dos tribunais não só do Brasil,
mas também de vários países do mundo onde esse movimento de apoio aos meios
alternativos de controvérsias se verifica.
Seja como for, nunca é bastante ressaltar que o acesso à justiça assegurado pela
Constituição Federal no artigo 5º, inciso XXXV, vai além do mero exercício de demandar
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do Estado uma solução para os conflitos da vida material e concreta, mas aponta para o
direito a um devido processo legal, justo, efetivo, razoável ou, mais propriamente, aquele
direito que exprime o autêntico acontecer da Constituição pela máxima efetividade de suas
normas.
Neste sentido, a filosofia de Friedrich Nietzsche tem muito a nos ensinar. Sua
filosofia, na medida certa, pode lançar luz de modo a clarear as relações jurídicas entre os
sujeitos do processo por se tratar do pensamento de um dos mais importantes críticos da
modernidade e suas instituições.
Atualmente, o pensamento nietzschiano parece ser, mais uma vez, um martelo a
destruir a cultura do ódio com que os fracos pretendem dominar os fortes se valendo não
do pensamento e da reflexão, mas tão somente do ressentimento como justificação política
da própria desumanidade, tornando pertinente o uso da metáfora dos tempos sombrios
para designar esse momento de retrocesso cultural em direção à barbárie.
O presente artigo tem como escopo discutir a possibilidade de resolução consensual
de conflitos à luz do pensamento de Friedrich Nietzsche. O problema a ser analisado na
presente pesquisa diz respeito a analisar se a filosofia de Nietzsche poderia contribuir para
o aprimoramento das técnicas de mediação e conciliação bem como a uma visão mais
crítica acerca do papel do Estado no cumprimento do direito de acesso à justiça.
Sustenta-se, a título de hipótese, que a filosofia nietzschiana não apenas nos ensina a
litigância e a guerra, mas também a criar e conciliar, sendo um importante referencial
teórico para contribuir ao aperfeiçoamento das técnicas de conciliação e mediação hoje
existentes bem como para a formação crítica dos atores envolvidos no processo.
Para atingir o objetivo geral do estudo, que é justamente analisar a aplicabilidade do
pensamento nietzschiano para o fomento de uma cultura de conciliação e a sua
consequente contribuição no aperfeiçoamento das técnicas de conciliação e mediação, se
faz necessário traçar os seguintes objetivos específicos: (i) buscar a origem dos institutos da
conciliação e da mediação, definindo brevemente suas semelhanças e diferenças. Em
seguida, (ii) discutir a crítica nietzschiana ao dualismo socrático e platônico e outras falsas
dicotomias deles decorrentes; por fim, (iii) desvelar, em linhas gerais, como, para o filósofo
alemão, a afirmação de si depende inteiramente das relações que o indivíduo estabelece
com seus pares.
Com efeito, com a crise da modernidade e, consequentemente, do paradigma
iluminista de racionalidade, ganha maior relevância no cenário pós-moderno a figura do
juiz em detrimento do legislador e, sem dúvidas, a filosofia nietzschiana contribuiu para
esse cenário, o que nos remete ao problema desta pesquisa.

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Por meio da análise genealógica dos conceitos nietzschianos serão analisados os
conceitos de amizade, conflito e consenso como chave hermenêutico-metodológica para a
compreensão do objeto de estudo e o método fenomenológico para pensar a possibilidade
de contribuição da filosofia como um instrumental teórico que nos ajudará a entender
algumas especificidades dos meios alternativos ou consensuais de resolução de conflitos.
O atual contexto de polarizações ideológicas ao nível global confere relevância ao
tema e aponta para aspectos pouco enfatizados da filosofia nietzschiana, como a sua ética a
respeito da alteridade e da singularidade. Ela parece indicar ser possível um tipo de
subjetividade onde a solução consensual de conflitos não signifique, necessariamente, o
assujeitar-se de uma das partes em relação a outra e de ambas em relação ao juiz.
Não é de todo irrazoável supor que, de alguma forma, advogados podem ser
pressionados a “firmar acordo” contra a própria vontade da parte para não ver os seus
pedidos serem julgados improcedentes, sobretudo, em causas que tenham o Estado no polo
passivo, assunto a que voltaremos oportunamente.

2 RESOLUÇÃO CONSENSUAL DE CONFLITOS

A resolução consensual de conflitos é prevista e estimulada pelo Estado brasileiro,


trata-se de um conjunto de métodos alternativos àqueles tradicionalmente utilizados pelo
Estado-juiz para garantir a prestação jurisdicional aos demandantes, quer sejam pessoas
físicas ou jurídicas. A conciliação e a mediação, para alguns autores, são espécies de
intermediação, a qual difere de autocomposição, pois segundo Tavares1:

A autocomposição, menos estudada, ocorre quando as próprias partes, sem auxílio


de terceiro, resolvem suas controvérsias. A intermediação, também chamada de
mediação (lato sensu), por outro lado, ocorre sempre que houver um terceiro
interveniente, para facilitar o entendimento entre as partes na solução da
controvérsia. Divide-se, basicamente, em quatro espécies: arbitragem, mediação
(stricto sensu), negociação e conciliação.

Didier Jr.2, ao revés, sustenta que mediação e conciliação são métodos


autocompositivos, por envolver um terceiro a quem não cabe resolver o problema como
ocorre na arbitragem com a figura do árbitro, sendo heterocompositiva, portanto.
No próximo tópico será feita uma breve análise histórica dos institutos da mediação
e da conciliação e, depois, serão comparados esses institutos e sublinhadas suas principais
diferenças.

1 TAVARES, Fernando Horta. Mediação e conciliação. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002.


2 DIDIER JÚNIOR. Fredie. Curso de Direito Processual Civil: introdução ao direito processual civil, parte
geral e processo de conhecimento. Salvador: Jus Podivm, 2015. v. 1, p. 281. 203

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2.1 Breve histórico da mediação e conciliação


O objetivo deste tópico é fazer uma breve análise histórica dos institutos da
mediação e da conciliação para, em seguida, distingui-los em suas especificidades e
aplicações previstas no Código de Processo Civil brasileiro.
A existência de conflitos, ambiguidades e oposições nas relações sociais não
desapareceram com o surgimento das sociedades organizadas e das leis e normas
codificadas. A exsurgência de um Estado de direito contribuiu para o aumento das
demandas por vias alternativas de solução de conflitos no mundo contemporâneo e suas
sociedades hipercomplexas.
Para Grinover,3 os ditos métodos alternativos de solução de conflitos precederam ao
surgimento do Estado. Os riscos e os danos causados pela autotutela logo mostraram a
inviabilidade da justiça privada, levando os homens a perceberem as vantagens de atribuir
a terceiros que demonstravam possuir habilidades, competências ou poder suficiente, a
tarefa de solucionar os conflitos que surgiam entre eles. Por outro lado, quando o Estado se
tornou uma potestade poderosa o bastante, criou o processo judicial. Ao fazê-lo, no
entanto, revelou também suas fraquezas.
O Corpus Juris Civilis, compilado pelo imperador bizantino Justiniano (482-565), é
um exemplo da criação da figura de um mediador, o proxeta, que tinha a função de
formular acordos nas províncias onde atuava.4
Em sociedades orientais verifica-se o mesmo fenômeno. Os chineses, por exemplo,
utilizaram, já na antiguidade, a mediação e a conciliação por influência do confucionismo. 5
Os primeiros cristãos, seguindo os ensinos de Jesus, também ensinavam a solução
consensual de conflitos e consideravam vergonhoso levar o irmão aos tribunais, embora
não tenha sido essa a contribuição maior do cristianismo oficial ao Direito penal:

[...] Para vergonha vo-lo digo. Não há, porventura, nem ao menos um sábio entre
vós, que possa julgar no meio da irmandade?
6 Mas irá um irmão a juízo contra outro irmão, e isto perante incrédulos!
7 O só existir entre vós demandas já é completa derrota para vós outros. Por que
não sofreis, antes, a injustiça? Por que não sofreis, antes, o dano?
8 Mas vós mesmos fazeis a injustiça e fazeis o dano, e isto aos próprios irmãos!. 6

3 GRINOVER, Ada Pellegrini. O minissistema de justiça consensual: compatibilidades e incompatibilidades.


Publicações da escola da AGU, Brasília, v. 8, n. 1, p. 20, jan. /mar. 2016.
4 CRIBARI, Giovani. Um ângulo das relações contratuais: da mediação e corretagem. Revista trimestral de
jurisprudência, São Paulo, v. 09, n. 30, p. 27, jan./fev./1985.
5 SERPA, Maria de Nazareth. Teoria e prática da mediação de conflitos. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 1999.
p. 67.
6 BÍBLIA SAGRADA, 1 Co 5:6. 204

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Nas sociedades contemporâneas, o direito positivo da maioria das democracias
modernas, contam com os institutos da mediação e conciliação como meio de resolução de
conflitos entre os cidadãos, tanto em audiência judicial quanto extrajudicialmente.
Já na Constituição Política do Império do Brasil, de 25 de março de 1824, constava a
conciliação como obrigatória para a propositura de uma ação judicial, nos seguintes termos
do art. 161: “[...] Sem se fazer constar, que se tem intentado o meio da reconciliação, não se
começará Processo algum”.7
O art. 23, caput, do Decreto n. 737 de 25 de novembro de 1850, por sua vez,
dispunha que: “[...] Nenhuma causa comercial será proposta em Juízo contencioso, sem
que previamente se tenha tentado o meio da conciliação, ou por ato judicial, ou por
comparecimento voluntário das partes”.8
A Lei 8.952/94 também incluiu no artigo 331 do Código Processo Civil de 1973, a
audiência de conciliação a ser homologada pelo juiz por sentença.
Habermann9, observa que a inserção da audiência preliminar de conciliação ou
mediação no atual código se deu por influência do direito alemão e destaca ainda a data em
que foi sancionada a Lei Ordinária 13.105/2015 que criou o Código de Processo Civil
Brasileiro que passou a ser exigível em 17 de março de 2016, após um período de vacância
de um ano.
Tartuce10 afirma que nos Estados Unidos o movimento em defesa das alternativas
não-jurisdicionais de solução das controvérsias é muito forte, predominando a mediação
em suas modalidades avaliativa e facilitiativa.

2.2 Distinção entre mediação e conciliação


Para Didier Jr,11 a mediação e conciliação são semelhantes em alguns aspectos como
o fato de serem formas de soluções alternativas à jurisdição estatal, mas um tanto distintas
em outros.
Com efeito, a distinção entre mediação e conciliação está expressa no atual Código
de Processo Civil. Já na leitura do caput do art. 3º da Lei 13.105/2015 afirma-se o princípio

7 BRASIL. Carta Lei de 25 de março de 1824. Constituição Politica do Imperio do Brazil, de 25 de março de
1824 (sic).
8 BRASIL. Decreto nº 737, de 25 de novembro de 1850. Determina a ordem do Juizo no processo
Commercial.
9 HABERMANN, Raíra Tuckmantel. Mediação e conciliação no Novo CPC. São Paulo: 2016. p. 18.
10 TARTUCE, Fernanda. Conciliação em juízo: o que (não) é conciliar? In: SALLES, Carlos Alberto
de; LORENCINI, Marco; ALVES DA SILVA, Paulo Eduardo. (org.). Negociação, mediação e arbitragem -
Curso para programas de graduação em Direito. São Paulo, Rio de Janeiro: Método, Forense, 2012. v. 1, p.
146.
11 DIDIER JÚNIOR. Fredie. Curso de Direito Processual Civil: introdução ao direito processual civil, parte
geral e processo de conhecimento. Salvador: Jus Podivm, 2015. v. 1, p. 275. 205

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da inafastabilidade da jurisdição, mas logo em seguida determina-se que “o Estado
promoverá, sempre que possível, a solução consensual dos conflitos” e que “a conciliação, a
mediação e outros métodos de solução consensual de conflitos deverão ser estimulados por
juízes, advogados, defensores públicos e membros do Ministério Público, inclusive no curso
do processo judicial”.
Consequentemente, na Parte Geral do Código, cria-se as figuras dos conciliadores e
mediadores judiciais (Título IV, Capítulo III, Seção V) e o artigo 165, especificamente,
estabelece que os tribunais devem criar centros judiciários de solução consensual de
conflitos que serão construídos por meio de sessões e audiências de conciliação e mediação,
bem como por meio de programas que visam a auxiliar, orientar e estimular a
autocomposição.
Grinover12 sustenta que a mediação:

[...] é conceituada, no Brasil, como método consensual de solução de conflitos, pelo


qual um terceiro facilitador auxilia as partes em conflito no restabelecimento do
diálogo, investigando seus reais interesses, através de técnicas próprias, e fazendo
com que se criem opções, até a escolha da melhor, chegando as próprias partes à
solução do conflito.

Uma vez que os citados agentes recebem a autoridade para exercer seus ofícios da
própria legislação não cabe a eles outra opção senão buscar, estimular e promover a
solução consensual dos conflitos, deixando para os fóruns adequados, as discussões
doutrinárias a favor ou contra o que prescreve a lei.
A conciliação é preferencialmente indicada para os casos em que não houver vínculo
anterior entre as partes, podendo sugerir soluções para o fim do conflito entre elas, ao
passo que o mediador atuará naqueles casos em que há um vínculo desfeito entre as partes,
com o fim de que elas restabeleçam a comunicação, construindo soluções consensuais.13

Note-se que o Estado pretende, através da legislação processual, sobretudo, no caso


da mediação, pacificar as relações através da solução dos conflitos, mas permitindo a
participação daqueles que produziram o conflito a fim de que sejam responsáveis, em
alguma medida, pelo fim das controvérsias.
Vale ressaltar que no modelo tradicional positivista, o Estado é o grande responsável
pela pacificação social mediante a imposição de prévias soluções normativas em uma

12 GRINOVER, Ada Pellegrini. O minissistema de justiça consensual: compatibilidades e incompatibilidades.


Publicações da escola da AGU, Brasília, v. 8, n. 1, p. 15-36, jan. /mar. 2016, p. 20.
13 CALMON, Rafael. Direito das famílias e Processo Civil: interação, técnicas e procedimentos sob o enfoque
do Novo CPC. São Paulo: Saraiva, 2017. p. 65. 206

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estrutura escalonada e hierarquizada de normas válidas como previa Hans Kelsen. 14 In
verbis:

[...] As normas de uma ordem jurídica cujo fundamento de validade comum é esta
norma fundamental não são – como o mostra a recondução à norma fundamental
anteriormente descrita – um complexo de normas válidas colocadas uma ao lado
das outras, mas uma construção escalonada de normas supra-infra ordenadas umas
às outras.

Em tal paradigma, as partes litigantes se limitam a apresentar suas pretensões ao


Judiciário para que este decida quem tem o direito e imponha sua decisão. Atualmente,
porém, não há como excluir as partes do processo de resolução do conflito que eles
criaram.

[...] São outros os valores subjacentes à política pública de tratamento adequado


dos conflitos jurídicos: o incentivo à participação do indivíduo na elaboração da
norma jurídica que regulará o seu caso e o respeito a sua liberdade, concretizada no
direito ao autorregramento. É perigosa e ilícita a postura de alguns juízes que
constrangem as partes à realização de acordos judiciais. Não é recomendável, aliás,
que o juiz da causa exerça as funções de mediador ou conciliador.15

O caráter litigante do processo decorrente de interesses antagônicos certamente não


pode ser desfigurado por força de lei; pois como diria Carlos Drummond de Andrade 16 no
belíssimo poema Nosso Tempo: “[...] as leis não bastam, os lírios não nascem das leis”. O
devido processo legal e a ampla defesa tendem a se impor a qualquer esforço romântico de
fazer as partes abstrair toda a sua subjetividade e suas reações fortes ao oponente e
também impede que o juiz, como um dos sujeitos do processo, passe a agir de forma
arbitrária quanto ao direito das partes litigantes de, efetivamente, litigar; como já
denunciado e criticado pela doutrina, no tocante ao magistrado que faz uma “apropriação
moralista” do dever de cooperação.17

Esta, aliás, é uma observação importante, pois, não se pode olvidar do poder e o
dever do juiz de “estimular” a conciliação, o acordo e o fim da controvérsia quando, na
verdade, uma das partes não deseja fazê-lo. Nesse caso, é possível que a parte resistente a
fazer o acordo, certa de seu direito, pressinta a improcedência dos pedidos, antes mesmo

14 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Trad. João Baptista Machado. 8. ed. São Paulo: Editora WMF
Martins Fontes, 2009. p. 224.
15 DIDIER JÚNIOR. Fredie. Curso de Direito Processual Civil: introdução ao direito processual civil, parte
geral e processo de conhecimento. Salvador: Jus Podivm, 2015. v. 1, p. 280.
16 ANDRADE, Carlos Drummond. Antologia poética. 12. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1978. p. 109.
17 STRECK, Luiz Lenio. O “bom litigante” – Riscos da moralização do processo pelo dever de
cooperação do novo CPC. Revista Brasileira de Direito Processual –RBDPro, Belo Horizonte, ano 23, n. 90,
p. 339-354, abr. /jun. 2015. p. 339. 207

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dela chegar. Note que, em agindo assim, o juiz usa de suas prerrogativas para decidir
conforme sua vontade, independentemente do que lhe prescreve as normas do direito.
A busca, portanto, de uma resposta adequada à constituição nos termos postulados
pela Crítica Hermenêutica do Direito, por exemplo, para aqueles que buscam a prestação
jurisdicional do Estado não tem nada a ver com o que Nietzsche chama de “vontade de
poder”, mas o mero esforço laboral daquele que aceitou o ofício e a autoridade conferida
pelo Estado para julgar as demandas conforme o Direito, segundo determinados critérios
estabelecidos tanto na Constituição quanto em normas infraconstitucionais.
A seguir, será analisada e discutida o tema do presente estudo sob a perspectiva
nietzschiana a fim de compreender melhor essa problemática em torno da possibilidade de
lidar com as lógicas aparentemente inconciliáveis do contencioso e da lógica consensual
que coexistem no direito brasileiro.

3 NIETZSCHE E O SUJEITO MODERNO

Friedrich Wilhelm Nietzsche (1844-1900) está para a Modernidade e suas


instituições assim como o Sol está para a Terra, que dele não pode aproximar-se demais e
nem demais afastar-se.
Nietzsche se insere no âmbito de uma matriz encampada por Karl Marx (1818-1883)
e depois por Sigmund Freud (1856-1939) e que se caracteriza por ser uma matriz crítica de
uma outra matriz que os antecedeu, encampada por Immanuel Kant (1724-1804) e Georg
Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831).

Sintetizando todo o próprio projeto moderno em termos filosóficos, Kant em sua


defesa do Esclarecimento, considerava este como o momento do sujeito autônomo, daquele
que ousa pensar por si próprio, mas o fez em termos muito abstratos e formais.
Ocorre que para compreender a transição desse contexto histórico sintetizado por
Kant na sua problematização das condições de possibilidade do pensamento científico do
homem moderno até essa segunda matriz da qual faz parte Nietzsche, é preciso fazer
algumas breves considerações a respeito de Hegel.
De fato, a filosofia hegeliana funcionou como porta de entrada para essa segunda
matriz do pensamento moderno. Isso porque a grande construção hegeliana, inclusive no
campo da reflexão filosófica sobre o direito, dado o seu idealismo ou holismo, revelou sua
conexão com o criticismo kantiano.

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Por outro lado, a partir de Hegel chegamos à segunda matriz crítica, por meio do
pensamento marxiano, que subverte a dialética hegeliana, ao afirmar que a razão de ser do
conhecimento filosófico e científico não pode ser apenas produzir conceitos, mas sobretudo
em intervir e transformar a realidade.
Note-se, pois, que com Kant e Hegel estamos refletindo no campo de uma matriz de
pensamento voltada para a abstração conceitual e com Marx, ainda que de forma
rudimentar e problemática, destaca-se esta outra via crítica da qual Nietzsche vai se
integrar em alguma medida.
Portanto, a primeira matriz na qual Kant e Hegel se encontram, está ligada à
filosofia tradicional, aos pensadores clássicos, como Platão e Aristóteles; Marx, todavia,
dela se afasta iniciando uma filosofia social de cunho crítico, voltada para a análise das
condições concretas de existência, sob uma perspectiva materialista, portanto.
Nietzsche foi um filósofo cujo pensamento interessa também à filosofia do direito e à
teoria do direito, haja vista a sua ênfase na filosofia pré-socrática, e não mais nos
pensadores clássicos, sendo um dos maiores críticos da Modernidade.
A partir da retomada dos pré-socráticos, portanto, Nietzsche vai chegar a conclusões
radicais, sofisticadas e muito consistentes que implicam uma crítica veemente ao projeto
moderno, no sentido de mostrar que o conhecimento não decorre de um estágio de pureza
devido a uma construção metodológica isenta, pois a própria ideia de “conhecimento
verdadeiro” é, ela própria, uma vontade de poder, vinculando de forma insuspeitada o
saber e o poder.
Nietzsche, através de seu procedimento genealógico, vai tecer análises que mostram
que o que o homem moderno chama de “verdade” não passa de um relação bem-sucedida
de poder por ter se tornado hegemônica e pouco questionada.
A crítica radical ao projeto moderno por Nietzsche pode iluminar e nortear o homem
pós-moderno ou contemporâneo tanto quanto pode desnorteá-lo, fulminando suas mais
caras incertezas, posto que sua filosofia não tem o condão de alimentar ideologias,
ortodoxias ou mesmo anti-cosmovisões.
O filósofo alemão, no aforismo 12 de A gaia ciência, faz uma exortação que não
deixa de ser inspiradora: “[...] A um amigo da luz: se não queres cansar os olhos e os
sentidos, segue o sol pela sombra”!18
Assim, para compreender o que Nietzsche tem a dizer sobre a possibilidade de os
homens evitarem os conflitos construindo consensualmente a solução deles, faz-se
necessário aproximar-se um tanto mais da radicalidade de sua filosofia acerca das noções
de metafísica e de sujeito. Há uma passagem muito reveladora, neste sentido:

18 NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. A gaia ciência [1882]. Trad. Jean Melville. São Paulo: 2011. p. 23. 209

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[...] Toda filosofia que coloca a paz mais alta do que a guerra, toda ética que conceba
negativamente o conceito de felicidade, toda metafísica e física que conhece um
final, um estado definitivo, todo anseio, sobretudo estético ou religioso, possuindo
um lado para um além, um de fora, um acima, que procure saber se não foi a
doença que inspirou o filósofo. Dissimulam-se inconscientemente as necessidades
fisiológicas do homem sob o manto da objetividade, do ideal, da ideia, da pura
espiritualidade.19

Em primeiro lugar, é preciso considerar que toda a realidade é pensada por


Nietzsche sob o ponto de vista de Heráclito, por assim dizer; o qual se contrapõe ao ponto
de vista da perenidade, estabilidade ou substancialidade, defendida por Parmênides e por
quase toda a filosofia tradicional.
Para Nietzsche, todas as coisas que existem são transitórias, mutáveis e estão em
tensão e interação a maior parte do tempo umas com as outras. Diante dessa profusão de
forças explosivas que não podem ser refreadas por nenhuma lei da razão, o homem precisa
escolher: assumir a atitude dos fracos (moral do rebanho) ou a atitude dos fortes (a ética do
“além-do-homem”).
Para Nietzsche, como forma de negação da realidade como ela é, o homem cria a
ideia de sujeito que passa a ser o princípio do qual decorre a ideia de substância, de
identidade, unidade e causalidade. É a crença na ideia de sujeito que permite a
substancialização do mundo, sua explicabilidade pelo sujeito que é a origem do
conhecimento e o lugar da razão.
Este sujeito, separado ele mesmo do mundo que o rodeia, pode interpretá-lo e julgá-
lo inferior a um mundo superior, de valor mais elevado; o mundo do ser, do intransitório,
da “coisa em si”. Nietzsche apud Marcondes20 afirma que:

[...] este modo de julgar constitui o típico preconceito pelo qual podem ser
reconhecidos os metafísicos de todos os tempos; tal espécie de valoração está por
trás de todos os seus procedimentos lógicos; é a partir desta sua “crença” que eles
procuram alcançar seu “saber”, alcançar algo que no fim é batizado solenemente de
“verdade”.

A crença em um sujeito separado do mundo é o que possibilita colocar em campos


opostos o ideal e o nada, por exemplo; criando assim as oposições fracas que embasam as
certezas do senso comum, o que mostra que, historicamente, nem sempre é fácil separar a
convicção da má-fé.
Sousa21afirma que Sócrates e Platão foram duramente criticados pelo filósofo alemão
porque aqueles são os principais responsáveis pela inversão de valores que vigora até hoje

19 Ibid., p. 15.
20 MARCONDES, Danilo. Textos básicos de Ética: de Platão a Foucault. Rio de Janeiro: Zahar, 2007. p. 103.
21 SOUSA, Mauro Araujo. Nietzsche: viver intensamente, tornar-se o que se é. São Paulo: Paulus, 2009. 210

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na nossa cultura, referindo-se a uma série de dicotomias que perduram na cultura
ocidental, como entre corpo e alma, teoria e prática, etc.
Além disso, é o sujeito que permite a crença em uma essência no mundo, nas coisas
e nos objetos que poderia ser conhecido por este sujeito que possui vontade, consciência.
Este sujeito, este “eu” é a causa de toda ação e de toda tentativa de compreensão do mundo.
Assim, quando, na tragédia de Sófocles (406-496 a.C.), a jovem Antígona decide
conforme sua consciência, desobedecendo o decreto de Creonte, o faz porque realmente
acredita que há um direito natural que precede não apenas cronologicamente, mas também
axiologicamente ao direito positivo.
Friedrich Nietzsche diria que Antígona pretendia guardar e manter vivo tudo aquilo
que foi condenado pela história, aquele que perdeu a batalha no mundo dos fatos, deveria
ir para um mundo melhor, um mundo onde as leis têm validade universal e que também é
o seu mundo interior, que a leva a agir. Os seus valores são os motivos, as causas de sua
ação.

Ora, tal digressão ilustrativa não tem o propósito apenas de mostrar a origem do
niilismo condenado por Nietzsche nas expressões da linguagem, da literatura e da cultura
grega desde o início de sua história, mas também de tornar mais clara a crítica de Nietzsche
em relação a Platão por criar um mundo perfeito por sobre o mundo real, histórico e
concreto dos homens, este muito mais difícil de ser compreendido para ser controlado.
Sousa22 sustenta que tanto Sócrates quanto Platão criticaram os sofistas porque estes
não estavam tão preocupados com o mundo perfeito que eles criaram. Se o nome dos
sofistas está hoje ligado à mentira e ao engano, é porque o dualismo de Platão prosperou.
A crítica nietzschiana perseguiu a metafísica platônica que se imiscuiu ao
cristianismo helenizado e atingiu a Modernidade e a filosofia moderna de Descartes, o qual
se dispôs a criar um método filosófico capaz de fazer frente a incerteza quanto à realidade
do mundo objetivo criando o “eu” como causa dos pensamentos.
Para Nietzsche, a noção de vontade liga-se à de consciência e à de sujeito de
conhecimento, de René Descartes, que a desenvolve como substrato do pensamento do
qual seria produto; e por isso mesmo nem o sujeito ou o eu e nem o pensamento são mais
que crenças, ilusões:

Sujeito: tal é a terminologia de nossa crença em uma unidade subjacente a todos os


diferentes momentos de maior sentimento de realidade: entendemos essa crença
como o efeito de uma causa - acreditamos muito em nossa crença de que para sua
causa imaginamos a “verdade” a “Realidade”, a “substancialidade”.23
22 SOUSA, Mauro Araujo. Nietzsche: viver intensamente, tornar-se o que se é. São Paulo: Paulus, 2009. p. 6-
7.
23 Sujeto: es la terminología de nuestra creencia en una unidad por debajo de todos los diferentes
momentos de mayor sentimiento de realidad: comprende-mos esta creencia como el efecto de una causa, 211—

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Por trás das ficções criadas por Descartes estão os instintos e as paixões, portanto,
não há um sujeito que pensa, porque o pensamento é mera tradução de forças instintivas
que estão em guerra permanente. Neste sentido, pensar seria uma simplificação de uma
explosão constante de forças instintivas no corpo e para além dele.
No entanto, o sujeito cartesiano tem o propósito de ser o sujeito de conhecimentos
enquanto causa da verdade, lugar antes ocupado pelo Ser de Parmênides e por “Deus”. O
socratismo e o dualismo platônico que venerava a ideia de Ser, depois substituída em
importância pelo cristianismo pelo Ser supremo Deus, são abandonados pelo sujeito de
conhecimentos da Modernidade, porque este tem os atributos da unidade, da
substancialidade, da verdade e da identidade, da negação, portanto, do devir, da vida como
ela é.

4 NIETZSCHE E NÓS

Neste tópico, pretende-se mostrar que a compreensão da possibilidade de haver


consenso entre aqueles que duelam ou litigam à luz da filosofia nietzschiana passa por
compreender a sofisticada visão do filósofo acerca da amizade, em que espíritos livres
aprendem a superação de si mesmo pelo exercício da filosofia como forma de viver.
De acordo com Garcia-Roza,24 ao homem moderno escapou o fato de que o “eu”
cartesiano ameaçaria o pensamento se ficasse restrito a um sujeito individual solipsista.
O solipsismo prescinde do outro e, portanto, do pensamento, produzido na
intersubjetividade que deve ter a Razão como grande mediadora entre as subjetividades
individuais. Por isso Descartes coloca Deus como garantia para o “nós”.
Oliveira25 sustenta que a questão do “nós” é crucial na filosofia nietzschiana para a
crítica ao atomismo metafísico do eu e do outro, sem negar a necessidade de comunicação
que possibilita a amizade como partilha da alegria e como estratégia para a prática da
filosofia.
Nietzsche, sendo filólogo, estabeleceu a diferença entre a mitfreude (alegrar-se com)
e a mitleiden (compaixão, partilha da dor). E sem colocá-las em oposição, afirma que a
amizade como compaixão deve evoluir para uma amizade como partilha da alegria.

creemos tanto en nuestra creencia que por su causa imaginamos la «verdad», la «realidad», la
«substancialidad (NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Fragmentos póstumos (1885-1889). 2. ed. Trad. Juan
Luis Vermal; Joan B. Linnares. Madrid: Editorial Tecnos, 2008. v. 4, 10, [19]. p. 304, tradução nossa).
24 GARCIA ROZA, Luiz Alfredo. Freud e o inconsciente. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1985. p. 15.
25 OLIVEIRA, Jelson. Para uma ética da amizade em Friedrich Nietzsche. Rio de Janeiro: 7Letras, 2011. p.
104. 212

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Uma filosofia que os chamados “pós-modernos”, avessos às metanarrativas, às
teorias e já céticos quanto aos poderes autossuficientes da Razão; só aparentemente são
aqueles aos quais o filósofo extemporâneo poderia se referir como amigos leitores do
porvir.

Rouanet,26 na sua crítica à juventude pós-moderna, afirma que “[...] no Brasil, há o


fenômeno do ‘novo irracionalismo brasileiro’ que tem natureza comportamental,
oportunista e parasitária, consistente na negação de toda teoria e fetichização da prática”.
Ele sustenta que “os jovens não contestam a razão em nome de Nietzsche ou de Bergson,
como fizeram os irracionalistas do período entreguerras, pelo excelente motivo de que
ninguém lhes ensinou que esses autores existem”.

Por essa razão, serão apresentados alguns aspectos da filosofia nietzschiana não pelo
viés da teoria de forças – talvez mais apropriada para atingir o objetivo geral deste estudo
na opinião de alguns – mas por um outro viés, o de um Nietzsche que considerava o amigo,
o melhor dos inimigos.27
A teoria de forças presente na filosofia nietzschiana foi devidamente sistematizada
na tese de doutoramento na qual se baseia a obra Nietzsche: das forças cósmicas aos
valores humanos, publicada pela professora Scarlet Marton,27 contada entre os mais
importantes comentadores da obra nietzschiana em todo o mundo.
Todavia, por uma perspectiva menos comum, por assim dizer, encontrar-se-á os
elementos necessários e suficientes para uma compreensão da resolução consensual do
conflito proposta pelo nosso Código de Processo Civil a partir do que significa o
amigo/inimigo de Nietzsche:

[...] Sê ao menos meu inimigo’! Assim fala o verdadeiro respeito, que não se atreve
a solicitar a amizade. Se quisermos ter um amigo, é preciso também lutar por ele. E
para lutar é preciso poder ser inimigo. É preciso honrar no amigo o próprio
inimigo. Podes aproximar-te de teu amigo, sem passar para seu lado? No amigo
deve-se vislumbrar o melhor inimigo. Quando lhe resistes, é então que mais te
aproximas de seu coração.28

Giacoia Júnior prefaciando a obra de Oliveira 29 após sublinhar a relevância dos


amigos presentes na vida e obra do filósofo alemão, faz a seguinte observação: “Daí porque
o tema da amizade é fundamental: o amigo é a ponte que nos conduz para nós mesmos – e
26 ROUANET, Sérgio Paulo. As razões do iluminismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. p.
124. 27 NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Assim falava Zaratustra: um livro para todos e para ninguém. Trad.
Ciro Marianza. São Paulo: Editora Escala, 2007. p. 56.
27 MARTON, Scarlett. Nietzsche das forças cósmicas aos valores humanos. 2. ed. Belo Horizonte, MG: Ed.
UFMG, 2000.
28 NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Assim falava Zaratustra: um livro para todos e para ninguém. Trad.
Ciro Marianza. São Paulo: Editora Escala, 2007. p.56-57.
29 Jelson. Para uma ética da amizade em Friedrich Nietzsche. Rio de Janeiro: 7Letras, 2011. 213

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esse ‘nós mesmos’ não é jamais um estado permanente e inalterável, mas permanente
processo de autossuperação”. Senão vejamos:

[...] O filósofo alemão se insere na tradição do pensamento ético por afiançar como
primeira virtude justamente a criação ou afirmação de si-próprio, através das ações
que o indivíduo opera sobre si mesmo – ainda que não vise à realização de nenhum
fim ou bem último; é também possível asseverar que essa autoafirmação não se
efetiva a não ser pelas relações que cada indivíduo mantém com seus pares. 30

A relação entre o si mesmo e a alteridade em Nietzsche é fundamental para todo


aquele que pretende compreender sua filosofia e a sua obra. Oliveira propõe que a partir
de três figurações para o amigo que há na obra nietzschiana (o espírito livre, o andarilho e o
inimigo) estão associadas respectivamente três virtudes (a coragem, a simplicidade e a
resistência) por meio das quais pode-se experimentar o que significa ter maturidade
psicológica, saúde e sabedoria suficiente para compreender quando a vida exige um “nós”
que pressupõe o diálogo e a intersubjetividade: “Para o solitário o amigo é sempre um
terceiro. O terceiro é a boia que impede o diálogo de se afundar nas profundezas”.31
Trata-se de um tipo superior de amizade, um sentimento supremo de liberdade que
supõe um dar de si sem nada perder porque está pleno e rico de uma exuberância advinda
da afirmação de si, o contrário da mera abnegação.
Para o filósofo do martelo, por inveja também se entabulam amizades e conflitos se
formam para que o ataque ao inimigo seja apenas um modo de ocultar a vulnerabilidade do
mais fraco, mas nem sempre é assim.
A sociedade contemporânea apresenta as mesmas características que fizeram
Nietzsche criticar a sociedade de seu tempo, a saber, a metafísica dualista de Sócrates e
Platão que atravessou por séculos a civilização ocidental e nela se imiscuiu de forma a
produzir um certo tipo de “homem” que precisa ser superado, porque trata-se de um tipo
de subjetividade que valoriza o “ideal” em detrimento do real, ou a “alma” em detrimento
do corpo, ou a “teoria” em desfavor da prática.
Assim, em nossa sociedade é possível que alguém que seja extremamente injusto ou
cujo comportamento seja antiético em suas relações públicas, continue a ser prestigiado
como um homem piedoso ou de reputação ilibada, pois há uma “verdade absoluta” na
cultura que afirma ser a justiça incompatível com a vingança ou a amizade
inconciliavelmente oposta a inimizade.

30 OLIVEIRA, Jelson. Para uma ética da amizade em Friedrich Nietzsche. Rio de Janeiro: 7Letras, 2011. p.
23.
31 NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Assim falava Zaratustra: um livro para todos e para ninguém. Trad. Ciro
Marianza. São Paulo: Editora Escala, 2007. p. 56. 214

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Nietzsche recusa-se a reproduzir essas falsas dicotomias e essa “verdade absoluta”
porque ela mesma é mentira, no sentido de que o ideal moral sobrevive de sua própria
impossibilidade de concretização no plano da história, dada a relatividade de tudo que é
humano.
Portanto, o ideal de justiça, ou o “ter-de-ser” kantiano, são grandes mentiras porque
criam uma distância em relação à realidade e isto é para Nietzsche um movimento niilista,
já que despreza e nega aquilo de que se afasta, mesmo quando a respeito dela faz algum
julgamento positivo.
Desse modo, um cristão, por exemplo, poderia passar a vida inteira sem amar seu
próximo ou ao seu inimigo porque para ele o amor é apenas um mandamento, um valor,
algo que está em um mundo abstrato e perfeito, puro e santo, algo que merece todos os
elogios, mas em relação ao qual não está disposto a assumir as consequências da rendição à
ideia, ao passo que, se, de fato, amasse, o amor não lhe seria algo distante, mas apenas um
modo de agir/pensar/sentir que lhe aumentaria a potência de agir.
Seria Nietzsche um apologista do poder, do darwinismo social, das arbitrariedades?
Seria ele uma espécie de profeta pós-moderno da mais abjeta submissão ao mais forte, ao
prevaricador, ao explorador dos fracos, aos violentos e bárbaros?
De modo nenhum!
Para Nietzsche, a grande questão é que o governo do mundo não está nas mãos dos
mais fortes e sim dos mais fracos, dos que tiranizam as massas e arregimentam manadas,
dos mais niilistas e mais impotentes, dos que esquecem que a vida é movimento, é
mudança, é devir e diferença, por isso mesmo, é necessário um tipo humano que não tenha
medo das instabilidades perenes da vida.32
Nesse contexto, o conflito é inevitavelmente onipresente, daí ser necessário aprender
a lidar com ele, sendo o Direito e, em particular, os métodos alternativos de resolução de
conflitos, formas mais refinadas de lidar com velhos sentimentos e crenças antigas a
respeito da relação entre dano e reparação, e que os homens criaram para impor um limite
para a própria agressividade que pode ser excessiva. 33 Assim sendo, num contexto tal, ao
invés de niilismo, Nietzsche propõe interpretação autoconsciente e criatividade para
interpretar os fatos da vida e, portanto, também as relações jurídicas, os textos normativos,
as decisões judiciais. Para Nietzsche, não existem fatos em relação aos quais pode-se
contrapor uma variedade de intepretações para escolher a “interpretação correta”, por isso,
a tarefa de atribuir sentidos aos textos jurídicos, aos processos judiciais e ao próprio

32 MORRISON, Wayne. Filosofia do direito: dos gregos ao pós-modernismo. Trad. Jefferson Luiz Camargo.
2. ed. São Paulo: Editora WMF, 2012. p. 350-352.
33 NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Genealogia da moral: uma polêmica. [1886]. Trad. Paulo César de
Sousa. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. § 5, p. 71. 215

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sistema jurídico diz respeito somente a imposição de certas regras metodológicas que se
deve seguir em determinado momento e em outro não mais. 34 Isto significa que se o
homem pode moldar a realidade, como propõe Nietzsche, e esculpir a si mesmo, isto vale
também para instituições como o direito que deverá servir aos propósitos do homem, que
impõe ordem à multiplicidade do eu e do mundo, através de seus conhecimentos, a fim de
torná-los compreensíveis e, portanto, mais fáceis de serem controlados.

Neste sentido, está disposto a litigar não é melhor ou pior do que conciliar,
estabelecer formas prévias de resolução de conflitos, tantas quantas forem necessárias, pois
o Além-do-homem é egoísta o bastante para não querer mau aos outros, tomando para si
seus próprios desafios.
Aquele que goza de boa saúde não deve guerrear com quem não a tem. O forte não
lutará com o rebanho, mas com quem toca o rebanho, com o Estado e com o Direito, toda
vez que se tornar obstáculo para que o homem consiga superar a si mesmo e alcançar o
“além-do-homem”. Nietzsche,35 então, aconselha o combate, mas também a paz:

[...] Zaratustra proclama: “Amai a paz como um meio para novas guerras e amai
mais a breve paz que a prolongada. Não vos aconselho o trabalho, mas o combate.
Não vos aconselho a paz, mas a vitória. Seja vosso trabalho uma batalha! Seja a
vossa paz uma vitória!”

Portanto, à medida que a sociedade e o Estado vão se tornando mais fortes em


relação aos indivíduos e as suas transgressões, tanto mais se mostram capazes de oferecer
modos e formas mais atenuados de lidar com os conflitos e litígios que surgem
incessantemente. Na segunda dissertação, seção 10, da Genealogia da moral, Nietzsche
oferece uma sofisticada chave hermenêutico-genealógica a respeito desse longo processo
pelo qual os seres humanos vão tecendo formas variadas de lidar ou de lutar contra suas
próprias forças instintuais, ambivalências e contradições. Ele afirma:

[...] A justiça que começou afirmando que “tudo é pagável”, tudo deve ser pago”,
termina por fazer vista grossa e deixar o inadimplente em liberdade – ela termina,
como todas as coisas boas na Terra, por suprimir a si mesma. Essa autossupressão
da justiça: sabe-se com que belo nome ela se denomina – graça; ela permanece
sendo, como é óbvio, a prerrogativa do mais poderoso, melhor ainda, o seu além do
direito.36

34 MORRISON, Wayne. Filosofia do direito: dos gregos ao pós-modernismo. Trad. Jefferson Luiz Camargo.
2. ed. São Paulo: Editora WMF, 2012. p. 348.
35 NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Assim falava Zaratustra: um livro para todos e para ninguém. Trad.
Ciro Marianza. São Paulo: Editora Escala, 2007. p. 49. 216

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Nietzsche, sendo filólogo, observou que a palavra “culpa” [schuld] é sinônimo de
“dívida” e que, desde tempos remotos, os homens creram que os danos causados a uns por
outros podem ser pagos, de alguma forma, assim como ocorria em suas relações
comerciais.
Essa lógica de barganha (para cada pecado deve haver uma danação; para cada erro,
um castigo!) aplicada às questões morais chega até o Direito contemporâneo, em que a
sociedade se encontra relativamente mais forte comparada ao indivíduo e, por isso,
dificilmente se sentirá realmente ameaçada por suas eventuais transgressões, de modo que
pode se dar ao luxo de oferecer formas mais refinadas de solucionar conflitos entre os
indivíduos.
As formas jurisdicionais e não-jurisdicionais de resolver conflitos não excluem,
todavia, a possibilidade sempre existente de que a sociedade se fortaleça e se eleve a tal
ponto que já não precise viver escrava de seus próprios ressentimentos ou nas próprias
palavras de Nietzsche, não precisem justificar a sua própria desumanidade expressa no
velho desejo de punir, de “fazer sofrer”, de se vingar. É preciso, no entanto, ir além da
justiça em direção a um estágio superior de humanidade!
Ditas estas coisas, torna-se necessário relacioná-las de modo mais explícito como a
filosofia nietzschiana poderia contribuir de forma efetiva em audiência de conciliação e
mediação e também no aprimoramento das técnicas de mediação de conflitos.
Em primeiro lugar, saber se a filosofia nietzschiana pode se constituir um
instrumental teórico capaz de aprimorar, em alguma medida, as técnicas de mediação de
conflitos parece-nos inequivocamente ligada ao problema e a hipótese de trabalho, já que o
mediador ou conciliador há de ter uma formação crítica acerca de seu papel no âmbito
dessa relação conflituosa, de interesses antagônicos, daí porque se torna também
importante refletir até que ponto a filosofia nietzschiana realmente contribui para uma
compreensão das possibilidades e limites oferecidos pelos meios consensuais de resolução
de conflitos e, em segunda perspectiva, como a filosofia pode contribuir não só para a
formação do mediador judicial, mas também para a compreensão das partes acerca do que
ocorre numa audiência de mediação e/ou conciliação.
Dizer isto significa que a filosofia aqui não tem um caráter meramente ornamental,
ou seja, de fato, parte-se do pressuposto de que a filosofia nietzschiana pode contribuir
para o aprimoramento sofisticado desses meios consensuais de acesso à justiça, das
técnicas utilizadas e da formação dos conciliadores e mediadores que buscam êxito em
suas atuações, de um modo que não seja sorrateiramente possível assujeitar os indivíduos

36 NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Genealogia da moral: uma polêmica. [1886]. Trad. Paulo César de
Sousa. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. § 10, p. 62. 217

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mediante formas rigidificadas de poder estatal que parecem, todavia, conferir às partes o
poder de criar soluções consensuais.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao longo do presente estudo, buscou-se apresentar e problematizar a possibilidade


de construção de um consenso em situações de conflito tendo como base da reflexão o
pensamento do filósofo alemão Friedrich Nietzsche.
À luz do seu pensamento, o conflito é inevitavelmente onipresente, daí ser
necessário aprender a lidar com ele, sendo o Direito e, em particular, os métodos
alternativos de resolução de conflitos, formas mais refinadas do que as antigas crenças
sobre a equivalência entre dano e reparação e que os homens criaram para impor sobre si
um limite à própria agressividade natural a fim de alçá-la ao status de legítima defesa.
Assim sendo, num contexto tal, ao invés de niilismo, Nietzsche propõe interpretação
autoconsciente e criatividade para interpretar os fatos da vida e, portanto, também as
relações jurídicas, os textos normativos, as decisões judiciais.
A proposta de Nietzsche é a de que a filosofia seja uma forma de viver e não apenas
de pensar, o que não exclui a coexistência com o diferente e a amizade como um campo de
experiências e vivências onde cada um pode tornar-se quem é, expressando-se sem medo
de ser contrariado ou de contrariar.
Por isso, as três virtudes presentes no verdadeiro amigo é a coragem, a simplicidade
e a resistência, o que depende de uma ética da autodeterminação radical sob pena de se
continuar a ser apenas uma unidade do rebanho.
Assim, a ética do “além-do-homem” sugere que aquele que busca a autossuperação
não condena o consenso ou o conflito, pois aprendeu tanto a dizer sim quanto a dizer não.
Nessa quadra da história, essa advertência de Nietzsche soa fundamental, pois
quando uma sociedade inteira decide se entregar a uma produção de subjetividade que
transforma “animais mansos em bestas selvagens” como diz Nietzsche em sua segunda
dissertação sobre a genealogia da moral, torna-se bem provável o pensamento nietzschiano
seja distorcido ao ponto de se tornar doutrina oficial e programa de governo.
Em outras palavras, se cada um se arvora herdeiro do espírito de Antígona por mera
obediência servil ao espírito da época, de desobediência cega a todo “não”, então esta é a
moral do rebanho que Nietzsche reputaria como niilista.

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Se esta desobediência cega se dá por parte dos agentes estatais relativamente aos
limites impostos pelo Direito à vontade de verdade dos intérpretes/aplicadores da lei, por
exemplo, significa uma perigosa ameaça à liberdade e à ética do Super-homem.
Neste sentido, a hipótese de trabalho proposta ao início do estudo se comprova, a
saber, que a filosofia nietzschiana não apenas nos ensina a luta, a litigância e a destruição
do outro, mas também contribui para a compreensão dos métodos consensuais de solução
de conflitos como formas mais refinadas pelas quais os homens criaram para impor um
limite aos seus impulsos agressivos. Ela nos ajuda a criar e conciliar!
A criação é observada por meio do aperfeiçoamento das técnicas de mediação e
conciliação aplicadas e que são viabilizadoras de um consenso não só entre as partes em
conflito, mas no sentido maior em que as motivações de todos os envolvidos não passam
despercebidas, é dizer, a “pureza” das técnicas, dos princípios e procedimentos, não podem
ser um subterfúgio para encobrir as impurezas das discricionariedades, das arbitrariedades
e dos interesses conflitantes e sempre presentes nas relações.
Assim, a esta altura, parece possível inferir que a filosofia nietzschiana e sua ética da
amizade podem se constituir em mais um instrumental teórico que nos ajudará a entender
algumas especificidades deste novo paradigma de solução de conflitos por meios
consensuais.
Entre essas especificidades está a questão da mediação e da conciliação que supõem
um alto nível de controle das emoções por parte dos sujeitos.
Os tribunais são, efetivamente e de muitas maneiras, a expressão de um campo de
batalha, onde o reconhecimento da alteridade e sua valorização não exige assentimento
moral e intelectual ao outro, mas pede que se honre o inimigo até no amigo, que é aquele
que tem as virtudes necessárias para tornar-se quem é, alguém que busca viver
intensamente e autenticamente a vida aqui e agora, sem temer os seus embates.
Neste sentido, a contribuição dos estudos de Nietzsche sobre a possibilidade de
solução consensual de conflitos se dá no sentido de mostrar que as técnicas aplicadas para
o estabelecimento desse consenso ou acordo a ser homologado e, portanto, validado pelo
Estado-juiz não pode obnubilar o senso crítico daqueles que são sujeitos nesse processo,
sobretudo as partes, posto que o mediador e o conciliador estão ali para mediar e conciliar,
portanto, para obter êxito em seu intento laboral.
De qualquer modo, sendo inequívoca a impossibilidade de afastar o conflito das
relações sociais, o mesmo não se pode dizer acerca da formação de consensos, os quais
dependem do desejo. É preciso, às vezes, enxergar na paz, a chance da vitória. Parece pouco

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razoável esperar que as velhas práticas culturais resistam ad eternu à busca humana - ao
menos por parte de alguns - por um futuro do qual se possa ter orgulho.
Nesse caso, um futuro em que o Direito brasileiro já tenha se libertado tanto da
discricionariedade judicial decorrente do velho paradigma juspositivista, quanto dos
efeitos dos atos decisórios solipsistas e inconsequentes que desconsideram que o texto é
sempre maior que o seu intérprete.
Por fim, cumpre mais uma vez destacar a sofisticação do pensamento de Nietzsche
acerca das arraigadas marcas no psiquismo humano e em sua cultura consistente na crença
de que toda dívida deve ser paga de alguma maneira e que a história do direito e da
filosofia do direito ocorreram no sentido de justificar e aplicar essas diferentes maneiras de
compensar a lesão a uma “lei” por mais abstrata que tenha sido.
No entanto, Nietzsche também nos mostra que há condições de possibilidade que
estão para além dessa lógica de barganha, de prêmio e castigo; onde o superior é aquele
que podendo cobrar a dívida, vencer a luta sobre o mais fraco, é também o único digno de
renunciar o seu direito se assim desejar. Ele nos diz de uma autosupressão da justiça, de
uma solução criativa que existe para além da justiça e do direito e que é prerrogativa do
mais poderoso e não do mais violento ou mais justo aos seus próprios olhos: é o caminho
para uma humanidade realmente superior.

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