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CONFLITOS
Thiago Rodrigues-Pereira
Adir Freire Freitas
1 INTRODUÇÃO
CAPÍTULO
11
Ao estabelecer que o Estado deverá promover a solução consensual dos conflitos,
numa clara consonância com os princípios e valores da Constituição Federal, o Código de
Processo Civil Brasileiro (Lei 13.105/2015) chama a atenção para a cultura jurídica
predominante nas agências formadoras de profissionais do Direito, no cotidiano dos
tribunais e nas expressões do senso comum que parecem indicar a predominância da lógica
do litígio em que tudo que importa é vencer o oponente, reparar o dano ou obter do outro
até mais além do que se deve.
Parte da doutrina considera os equivalentes jurisdicionais como uma alternativa
eficiente e um avanço civilizatório que o Estado propõe aos seus jurisdicionados apontando
para um futuro em aberto que a todos conclama à sua construção.
Por outro lado, a ideia de um consenso durante um processo judicial parece ser, para
alguns, uma ideia romântica e incólume à dura realidade dos tribunais não só do Brasil,
mas também de vários países do mundo onde esse movimento de apoio aos meios
alternativos de controvérsias se verifica.
Seja como for, nunca é bastante ressaltar que o acesso à justiça assegurado pela
Constituição Federal no artigo 5º, inciso XXXV, vai além do mero exercício de demandar
201
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[...] Para vergonha vo-lo digo. Não há, porventura, nem ao menos um sábio entre
vós, que possa julgar no meio da irmandade?
6 Mas irá um irmão a juízo contra outro irmão, e isto perante incrédulos!
7 O só existir entre vós demandas já é completa derrota para vós outros. Por que
não sofreis, antes, a injustiça? Por que não sofreis, antes, o dano?
8 Mas vós mesmos fazeis a injustiça e fazeis o dano, e isto aos próprios irmãos!. 6
7 BRASIL. Carta Lei de 25 de março de 1824. Constituição Politica do Imperio do Brazil, de 25 de março de
1824 (sic).
8 BRASIL. Decreto nº 737, de 25 de novembro de 1850. Determina a ordem do Juizo no processo
Commercial.
9 HABERMANN, Raíra Tuckmantel. Mediação e conciliação no Novo CPC. São Paulo: 2016. p. 18.
10 TARTUCE, Fernanda. Conciliação em juízo: o que (não) é conciliar? In: SALLES, Carlos Alberto
de; LORENCINI, Marco; ALVES DA SILVA, Paulo Eduardo. (org.). Negociação, mediação e arbitragem -
Curso para programas de graduação em Direito. São Paulo, Rio de Janeiro: Método, Forense, 2012. v. 1, p.
146.
11 DIDIER JÚNIOR. Fredie. Curso de Direito Processual Civil: introdução ao direito processual civil, parte
geral e processo de conhecimento. Salvador: Jus Podivm, 2015. v. 1, p. 275. 205
Uma vez que os citados agentes recebem a autoridade para exercer seus ofícios da
própria legislação não cabe a eles outra opção senão buscar, estimular e promover a
solução consensual dos conflitos, deixando para os fóruns adequados, as discussões
doutrinárias a favor ou contra o que prescreve a lei.
A conciliação é preferencialmente indicada para os casos em que não houver vínculo
anterior entre as partes, podendo sugerir soluções para o fim do conflito entre elas, ao
passo que o mediador atuará naqueles casos em que há um vínculo desfeito entre as partes,
com o fim de que elas restabeleçam a comunicação, construindo soluções consensuais.13
[...] As normas de uma ordem jurídica cujo fundamento de validade comum é esta
norma fundamental não são – como o mostra a recondução à norma fundamental
anteriormente descrita – um complexo de normas válidas colocadas uma ao lado
das outras, mas uma construção escalonada de normas supra-infra ordenadas umas
às outras.
Esta, aliás, é uma observação importante, pois, não se pode olvidar do poder e o
dever do juiz de “estimular” a conciliação, o acordo e o fim da controvérsia quando, na
verdade, uma das partes não deseja fazê-lo. Nesse caso, é possível que a parte resistente a
fazer o acordo, certa de seu direito, pressinta a improcedência dos pedidos, antes mesmo
14 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Trad. João Baptista Machado. 8. ed. São Paulo: Editora WMF
Martins Fontes, 2009. p. 224.
15 DIDIER JÚNIOR. Fredie. Curso de Direito Processual Civil: introdução ao direito processual civil, parte
geral e processo de conhecimento. Salvador: Jus Podivm, 2015. v. 1, p. 280.
16 ANDRADE, Carlos Drummond. Antologia poética. 12. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1978. p. 109.
17 STRECK, Luiz Lenio. O “bom litigante” – Riscos da moralização do processo pelo dever de
cooperação do novo CPC. Revista Brasileira de Direito Processual –RBDPro, Belo Horizonte, ano 23, n. 90,
p. 339-354, abr. /jun. 2015. p. 339. 207
208
18 NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. A gaia ciência [1882]. Trad. Jean Melville. São Paulo: 2011. p. 23. 209
[...] Toda filosofia que coloca a paz mais alta do que a guerra, toda ética que conceba
negativamente o conceito de felicidade, toda metafísica e física que conhece um
final, um estado definitivo, todo anseio, sobretudo estético ou religioso, possuindo
um lado para um além, um de fora, um acima, que procure saber se não foi a
doença que inspirou o filósofo. Dissimulam-se inconscientemente as necessidades
fisiológicas do homem sob o manto da objetividade, do ideal, da ideia, da pura
espiritualidade.19
[...] este modo de julgar constitui o típico preconceito pelo qual podem ser
reconhecidos os metafísicos de todos os tempos; tal espécie de valoração está por
trás de todos os seus procedimentos lógicos; é a partir desta sua “crença” que eles
procuram alcançar seu “saber”, alcançar algo que no fim é batizado solenemente de
“verdade”.
19 Ibid., p. 15.
20 MARCONDES, Danilo. Textos básicos de Ética: de Platão a Foucault. Rio de Janeiro: Zahar, 2007. p. 103.
21 SOUSA, Mauro Araujo. Nietzsche: viver intensamente, tornar-se o que se é. São Paulo: Paulus, 2009. 210
Ora, tal digressão ilustrativa não tem o propósito apenas de mostrar a origem do
niilismo condenado por Nietzsche nas expressões da linguagem, da literatura e da cultura
grega desde o início de sua história, mas também de tornar mais clara a crítica de Nietzsche
em relação a Platão por criar um mundo perfeito por sobre o mundo real, histórico e
concreto dos homens, este muito mais difícil de ser compreendido para ser controlado.
Sousa22 sustenta que tanto Sócrates quanto Platão criticaram os sofistas porque estes
não estavam tão preocupados com o mundo perfeito que eles criaram. Se o nome dos
sofistas está hoje ligado à mentira e ao engano, é porque o dualismo de Platão prosperou.
A crítica nietzschiana perseguiu a metafísica platônica que se imiscuiu ao
cristianismo helenizado e atingiu a Modernidade e a filosofia moderna de Descartes, o qual
se dispôs a criar um método filosófico capaz de fazer frente a incerteza quanto à realidade
do mundo objetivo criando o “eu” como causa dos pensamentos.
Para Nietzsche, a noção de vontade liga-se à de consciência e à de sujeito de
conhecimento, de René Descartes, que a desenvolve como substrato do pensamento do
qual seria produto; e por isso mesmo nem o sujeito ou o eu e nem o pensamento são mais
que crenças, ilusões:
Por trás das ficções criadas por Descartes estão os instintos e as paixões, portanto,
não há um sujeito que pensa, porque o pensamento é mera tradução de forças instintivas
que estão em guerra permanente. Neste sentido, pensar seria uma simplificação de uma
explosão constante de forças instintivas no corpo e para além dele.
No entanto, o sujeito cartesiano tem o propósito de ser o sujeito de conhecimentos
enquanto causa da verdade, lugar antes ocupado pelo Ser de Parmênides e por “Deus”. O
socratismo e o dualismo platônico que venerava a ideia de Ser, depois substituída em
importância pelo cristianismo pelo Ser supremo Deus, são abandonados pelo sujeito de
conhecimentos da Modernidade, porque este tem os atributos da unidade, da
substancialidade, da verdade e da identidade, da negação, portanto, do devir, da vida como
ela é.
4 NIETZSCHE E NÓS
creemos tanto en nuestra creencia que por su causa imaginamos la «verdad», la «realidad», la
«substancialidad (NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Fragmentos póstumos (1885-1889). 2. ed. Trad. Juan
Luis Vermal; Joan B. Linnares. Madrid: Editorial Tecnos, 2008. v. 4, 10, [19]. p. 304, tradução nossa).
24 GARCIA ROZA, Luiz Alfredo. Freud e o inconsciente. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1985. p. 15.
25 OLIVEIRA, Jelson. Para uma ética da amizade em Friedrich Nietzsche. Rio de Janeiro: 7Letras, 2011. p.
104. 212
Por essa razão, serão apresentados alguns aspectos da filosofia nietzschiana não pelo
viés da teoria de forças – talvez mais apropriada para atingir o objetivo geral deste estudo
na opinião de alguns – mas por um outro viés, o de um Nietzsche que considerava o amigo,
o melhor dos inimigos.27
A teoria de forças presente na filosofia nietzschiana foi devidamente sistematizada
na tese de doutoramento na qual se baseia a obra Nietzsche: das forças cósmicas aos
valores humanos, publicada pela professora Scarlet Marton,27 contada entre os mais
importantes comentadores da obra nietzschiana em todo o mundo.
Todavia, por uma perspectiva menos comum, por assim dizer, encontrar-se-á os
elementos necessários e suficientes para uma compreensão da resolução consensual do
conflito proposta pelo nosso Código de Processo Civil a partir do que significa o
amigo/inimigo de Nietzsche:
[...] Sê ao menos meu inimigo’! Assim fala o verdadeiro respeito, que não se atreve
a solicitar a amizade. Se quisermos ter um amigo, é preciso também lutar por ele. E
para lutar é preciso poder ser inimigo. É preciso honrar no amigo o próprio
inimigo. Podes aproximar-te de teu amigo, sem passar para seu lado? No amigo
deve-se vislumbrar o melhor inimigo. Quando lhe resistes, é então que mais te
aproximas de seu coração.28
[...] O filósofo alemão se insere na tradição do pensamento ético por afiançar como
primeira virtude justamente a criação ou afirmação de si-próprio, através das ações
que o indivíduo opera sobre si mesmo – ainda que não vise à realização de nenhum
fim ou bem último; é também possível asseverar que essa autoafirmação não se
efetiva a não ser pelas relações que cada indivíduo mantém com seus pares. 30
30 OLIVEIRA, Jelson. Para uma ética da amizade em Friedrich Nietzsche. Rio de Janeiro: 7Letras, 2011. p.
23.
31 NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Assim falava Zaratustra: um livro para todos e para ninguém. Trad. Ciro
Marianza. São Paulo: Editora Escala, 2007. p. 56. 214
32 MORRISON, Wayne. Filosofia do direito: dos gregos ao pós-modernismo. Trad. Jefferson Luiz Camargo.
2. ed. São Paulo: Editora WMF, 2012. p. 350-352.
33 NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Genealogia da moral: uma polêmica. [1886]. Trad. Paulo César de
Sousa. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. § 5, p. 71. 215
Neste sentido, está disposto a litigar não é melhor ou pior do que conciliar,
estabelecer formas prévias de resolução de conflitos, tantas quantas forem necessárias, pois
o Além-do-homem é egoísta o bastante para não querer mau aos outros, tomando para si
seus próprios desafios.
Aquele que goza de boa saúde não deve guerrear com quem não a tem. O forte não
lutará com o rebanho, mas com quem toca o rebanho, com o Estado e com o Direito, toda
vez que se tornar obstáculo para que o homem consiga superar a si mesmo e alcançar o
“além-do-homem”. Nietzsche,35 então, aconselha o combate, mas também a paz:
[...] Zaratustra proclama: “Amai a paz como um meio para novas guerras e amai
mais a breve paz que a prolongada. Não vos aconselho o trabalho, mas o combate.
Não vos aconselho a paz, mas a vitória. Seja vosso trabalho uma batalha! Seja a
vossa paz uma vitória!”
[...] A justiça que começou afirmando que “tudo é pagável”, tudo deve ser pago”,
termina por fazer vista grossa e deixar o inadimplente em liberdade – ela termina,
como todas as coisas boas na Terra, por suprimir a si mesma. Essa autossupressão
da justiça: sabe-se com que belo nome ela se denomina – graça; ela permanece
sendo, como é óbvio, a prerrogativa do mais poderoso, melhor ainda, o seu além do
direito.36
34 MORRISON, Wayne. Filosofia do direito: dos gregos ao pós-modernismo. Trad. Jefferson Luiz Camargo.
2. ed. São Paulo: Editora WMF, 2012. p. 348.
35 NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Assim falava Zaratustra: um livro para todos e para ninguém. Trad.
Ciro Marianza. São Paulo: Editora Escala, 2007. p. 49. 216
36 NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Genealogia da moral: uma polêmica. [1886]. Trad. Paulo César de
Sousa. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. § 10, p. 62. 217
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
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REFERÊNCIAS
ALVES, Luís Filipe Araújo. A ideia de justiça em Nietzsche. 2016. Tese (Doutorado em
Direito) – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Belo Horizonte, 2016.
Disponível em:
http://www.bibliotecadigital.ufmg.br/dspace/handle/1843/BUOSAPCQT4. Acesso em: 30
maio 2019.
ANDRADE, Carlos Drummond. Antologia poética. 12. ed. Rio de Janeiro: José Olympio,
1978.
GARCIA ROZA, Luiz Alfredo. Freud e o inconsciente. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.
HABERMANN, Raíra Tuckmantel. Mediação e conciliação no Novo CPC. São Paulo: 2016.
KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Trad. João Baptista Machado. 8. ed. São Paulo:
Editora WMF Martins Fontes, 2009.
MARTON, Scarlett. Nietzsche das forças cósmicas aos valores humanos. 2. ed. Belo
Horizonte, MG: Ed. UFMG, 2000.
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. A gaia ciência [1882]. Trad. Jean Melville. São Paulo:
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