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Onde o Estado de Direito nunca chegou

Por Gabrielle Nascimento

Eu demorei pra publicizar esse texto porque ainda me traz muita dor. Dor por eu
ser preta e periférica e dor por eu cursar Direito e todos os dias ter que lidar com essa
série de contradições. Mas, em face das atuais discussões, acredito que precisamos ser
lembrados do que realmente significa ausência de Estado Democrático de Direito. Nada
disso começa com um golpe de estado mas sim com um projeto político de extermínio
hoje manifestado no encarceramento em massa e genocídio do povo negro.

Não há inovação.

O Estado torturou e matou Leandro.

O mesmo Estado que impõe sua ausência na Favela do Moinho e em diversas


áreas periféricas no país negando educação, saneamento básico, habitação, saúde de
qualidade, e tantos outros direitos consagrados na Constituição. Esse mesmo Estado
ontem entrou na favela e matou o Leandro. A invisibilidade de repente se rompe quando
é para instaurar o que chamam de Lei e Ordem. A desculpa? A legitimação da barbárie?
Evidente: a guerra às drogas. A mesma que mantém Rafael Braga encarcerado. A mesma
que mantém um em cada três encarcerados na cadeia. A mesma que não atinge nossos
ministros e parlamentares entre helicópteros e aviões.

Quando entrei no Moinho sabia exatamente onde estava pisando: onde o Estado
só entra com truculência. A vulnerabilidade social era palpável. Dava para ler as palavras
"bem estar social" no chão de terra. Dava pra ler a redução da desigualdade social, um
dos objetivos da Federação, escrito nos madeirites em contraste com o vidro e o concreto
dos prédios imponentes logo ao lado da comunidade. Era bem possível ver a presunção
da inocência estampada no rosto de cada morador que convivia com aquela dor sabendo
que poderiam ser os próximos a chorar por seus filhos ou morrer dentro de um barraco,
sem ter quem diga que é ilegal entrar na residência sem uma autorização judicial. Dava
pra ver também o devido processo legal no rosto da testemunha, que ficara desaparecida
das 11h às 17h, pois estava sendo levada de delegacia em delegacia sem que ninguém
pudesse acompanhá-la e quando sua irmã se dirigiu até a 77dp, lugar pra onde fora levada,
disseram que não haviam mulheres detidas na operação. Dava pra ler também no rosto do
presidente da associação dos moradores o princípio da isonomia quando ele relatou que
a ROTA já havia avisado que as mortes viriam. A proporcionalidade eu vi quando este
mesmo senhor mostrou os resquícios da truculência utilizada contra os moradores que
recolheu pelo chão, sobretudo restos das balas de borracha.

Todos esses conceitos jurídicos certamente não protegem as pessoas que vivem
em lugares como a Favela do Moinho justamente porque foram criados para proteger os
interesses que se opõem à própria existência dessas pessoas. Cada brecha disposta para
nos exterminar, nos torturar e nos encarcerar será utilizada, pois este é o projeto político
reservado a nós que não financiamos campanhas e tampouco detemos os meios de
comunicação.

O que eu não vi foi a dignidade da pessoa humana.1

Texto de 13 de Julho de 2017

1
Texto extraído do link: https://medium.com/@gabriellerib_/eu-demorei-pra-publicizar-esse-texto-
porque-ainda-me-traz-muita-dor-ebe71c85b8d

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