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Resumo:
O artigo teve como objetivo visibilizar a situação de opressão decorrente do trabalho precário realizado por trabalhadoras
domésticas durante a pandemia. O estudo se concretizou a partir de um caso dramático, resultado da cultura escravocrata,
a morte de uma criança ao acompanhar a sua mãe ao trabalho durante a pandemia. Tratou-se de uma pesquisa qualitativa,
elaborada no diálogo entre a epistemologia feminista, a interseccionalidade e os diferentes saberes. Fez-se uso de
fontes documentais, decretos, notícias de jornais e dados estatísticos. Os resultados apontaram as desigualdades de
gênero, raça e classe social, e que a categoria profissional de empregada doméstica, com maior representatividade
feminina do Brasil, foi diretamente afetada pela pandemia, pelo risco de contaminação durante deslocamentos, nas
residências em que trabalham, ou pela dispensa dos seus trabalhos, sem cobertura salarial.
Palavras-chave: Trabalho doméstico; Pandemia; Interseccionalidade; Desigualdade social; Mulheres.
Resumen:
El objetivo del artículo es visibilizar la situación de opresión resultante del trabajo precario realizado por las
trabajadoras del hogar durante la pandemia. El estudio se realizó a partir de un caso dramático, fruto de la cultura
esclavista, la muerte de un niño cuando acompañaba a su madre al trabajo durante la pandemia. Fue una investigación
cualitativa, elaborada en el diálogo entre epistemología feminista, interseccionalidad y saberes diferentes. Se utilizaron
fuentes documentales, decretos, noticias periodísticas y datos estadísticos. Los resultados señalaron las desigualdades
de género, raza y clase social, y que la categoría profesional de empleada doméstica, con mayor representación
femenina en Brasil, fue directamente afectada por la pandemia, por el riesgo de contaminación durante los
desplazamientos, en los hogares donde trabaja, o por despido de sus puestos de trabajo, sin cobertura salarial.
Palabras clave: Trabajo em el hogar; Pandemia; Interseccionalidad; Desigualdad social; Mujeres.
1
Doutora em Estudios Iberoamericanos - Universidad Complutense de Madrid (1998), mestre em Desenvolvimento Urbano - Universidade
Federal de Pernambuco (1988) graduação em Arquitetura pela Universidade Federal de Pernambuco (1981). Pós-doutorado na UFSC ,
Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas (2011-2012), Investigadora Visitante no Instituto de Ciências Sociais da
Universidade de Lisboa (2014). Professora Titular da Universidade Federal Rural de Pernambuco atua na Pós-Graduação em Extensão Rural e
Desenvolvimento Local.
2
Doutora em Educação em Ciências pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Desenvolve pesquisa e tem publicado com foco nas
Mulheres na Ciência e Mulheres nas Academias de Ciências. Tem publicado nas áreas mencionadas. É membro das Academias Brasileira e
Pernambucana de Ciência Agronômica.
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Graduada em Ciências Sociais (UFRPE). Mestre em Extensão Rural e Desenvolvimento local da Universidade Federal Rural de Pernambuco.
Secretária da da Mulher do Recife/Prefeitura da Cidade do Recife em 2020.
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TRABALHO DOMÉSTICO, garantiu romper a informalidade, trata-se de uma
CUIDADO E DESIGUALDADE SOCIAL atividade em que é difícil a fiscalização.
Para compreender as desigualdades
Historicamente, segundo Silva (2015), o sociais existentes nas relações de trabalho
trabalho doméstico no Brasil originou-se na doméstico remunerado, dados do Dieese apontam
escravidão, sendo exercido por crianças, homens e que a “demanda por trabalho doméstico é bastante
mulheres negros, em geral, escravos oriundos da concentrada: somente 19,5% das famílias
África. O trabalho era realizado em longas brasileiras são contratantes do serviço” no Brasil
jornadas, pouco descanso e raras folgas. No ano (Dieese, 2020).
de 1830, surgiu a primeira norma para o exercício Nesse contexto, a compreensão sobre as
desse tipo de trabalho. Contudo, ela se atinha ao especificidades de quem emprega e de quem
contrato escrito sobre a prestação de serviços trabalha no serviço doméstico, especialmente no
realizados por brasileiros ou estrangeiros, dentro Nordeste do Brasil, nos territórios marcados pelo
ou fora do Império. latifúndio da cana de açúcar, pelos senhores de
A partir da abolição da escravatura, em engenho, pela escravidão, pelas casas grandes e
1888, os ex-escravos passaram a ter direitos e pelas senzalas há que considerar as
deveres como cidadãos comuns, assim como interseccionalidades de gênero, raça e classe,
direito à remuneração pelo trabalho realizado. Os especialmente, as desigualdades geradas pelo
ex-escravos, que desempenhavam trabalhos trabalho precário em suas complexidades.
domésticos nas casas dos “senhores”, passaram a Por isso, escrever sobre o trabalho
ser denominados empregados domésticos. doméstico remunerado no Brasil inclui o debate
Passaram a ter direitos, mas a situação em quase sobre a relação de exploração do trabalho, as
nada mudou. Dessa forma, extinta a escravidão, hierarquias social e historicamente construídas
iniciava-se um outro tipo de desigualdade, as que envolvem as desigualdades de raça e gênero.
exclusões e disparidade de acesso aos direitos Tais interseccionalidades são aqui
sociais, em especial, os países que utilizaram o definidas a partir de Crenshaw (2002), que as
trabalho escravo, identificam com o exercício de múltiplos sistemas
de subordinações e discriminações para com as
Depois de uma longa luta, os empregados mulheres. Dessa forma, envolve o sexismo, o
domésticos conseguiram a tão sonhada racismo, o patriarcado, a opressão de classe,
equiparação aos empregados rurais e urbanos,
ainda que com algumas diferenças em razão geração e outros conjuntos de estigmatizações e
das particularidades de seus contratos de hierarquias que redundam em desigualdades.
trabalho (SILVA, 2015). O gráfico 2, publicado em um
documento para discussão do IPEA, elaborado por
Nesse contexto, a Constituição de 1988 Pinheiro et al (2019, p. 11) explicita o percentual
garantiu as/aos trabalhadoras/es domésticos: de mulheres brancas e negras que atuam no
salário-mínimo, 13º salário, repouso semanal trabalho doméstico remunerado. As autoras
remunerado, férias anuais remuneradas com chamam a atenção para os dados que apontam a
gratificação, licença maternidade e paternidade, proporção de 2/3 dos trabalhadores domésticos no
aviso prévio, aposentadoria por idade, tempo de Brasil, um contingente de 4 milhões de pessoas
contribuição e invalidez. Posteriormente, em negras, das quais a maioria quase absoluta (3,9
2001, poderia receber o FGTS e o seguro- milhões) são de mulheres negras. Para as autoras,
desemprego, e foi vetada a possibilidade de
descontos por alimentação, higiene, fardamento e do ponto de vista do discurso, as mulheres
moradia pelo empregador. Tudo isso não negras ‘podem estar onde quiserem’; na
prática, porém, a realidade as direciona, de
maneira desproporcional, a trabalhos como o
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serviço doméstico remunerado, com toda a mulheres na família e as provisões públicas
precariedade e exploração que lhe são de educação infantil.
característicos.
A autora conclui o texto acima citado ao
Gráfico 2 argumentar que algumas alternativas para o
cuidado, referindo-se ao trabalho doméstico,
consistem na “mercantilização, serviços públicos,
trabalho não pago, práticas cooperativas e
coletivas, redes de parentes, amigos e vizinhos”, o
que faltou à criança ao acompanhar a mãe,
empregada doméstica, ao trabalho durante a
pandemia.
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