Você está na página 1de 6

Fake News não, buchicho: A Literatura Brasileira Digital Pós

Pandemia.

Bianca Francischini Lisita

É possível que há alguns anos atrás uma grande parcela da população


tivesse duvidado, com razão, que uma pandemia global pudesse colocar em risco a
civilização moderna. Apesar de todos nós sermos atraídos pela temática de fim do
mundo e apocalipse, vide o sucesso de bilheteria do filme 2012 1, o interesse surge a
partir da premissa de que estamos apenas fabulando uma fantasia que nunca
chegaria a tornar-se realidade. Contudo, o faz-de-conta do onicídio teve seu início
no dia 31 de dezembro de 2019 quando a Organização Mundial da Saúde (OMS) foi
avisada pela primeira vez sobre diversos casos de pneumonia na cidade de Wuhan,
na República Popular da China, o que mais tarde descobrimos tratar-se de uma
nova cepa de coronavírus que não tinha sido identificada anteriormente em seres
humanos.

Uma vez identificada a cepa, no dia 30 de janeiro de 2020 a OMS declarou


Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional (ESPII), sendo o mais
alto nível de alerda da Organização. A rapidez e facilidade com que o vírus se
espalhou mundialmente levou a caracterização da COVID-19, em 11 de março de
2020, como pandemia, termo que se refere à distribuição geográfica de uma doença.
Atualmente, três anos após o início da pandemia, apenas no Brasil somam-se
707.286 pessoas que perderam suas vidas e mais de 38 milhões de casos
confirmados da doença2. Os números são alarmantes, o que de certa forma já era
esperado tendo em vista a gravidade do vírus, contudo, o Brasil foi um dos países
mais afetados não pela COVID-19, mas pela reificação3, fake News e principalmente
o período de desgoverno que, assim como os brasileiros puderam acompanhar
durante o ano de 2019 na CPI da Pandemia4, trabalhou em detrimento da população
brasileira nesse período tão conturbado da história. Portanto, grande parte do
número de mortes que tivemos no Brasil não foi somente por conta da COVID-19,

1 https://www.terra.com.br/diversao/entre-telas/2012-supera-estimativas-de-bilheteria-em-us-5-
milhoes,ddb884ce6888a310VgnCLD200000bbcceb0aRCRD.html
2 Dados obtidos em 05/11/2023 às 13:46 em https://covid.saude.gov.br/
3 LUKÁCS, Gyorgy. História e consciência de classe. Tradução de Rodnei Nascimento. São Paulo:
Martins Fontes, 2003.
4 https://legis.senado.leg.br/comissoes/comissao?codcol=2441
mas também por conta de despolíticas públicas e ações desgovernamentais que
não só foram capazes de desinformar a população contra o vírus, mas também
levou a óbito grande parte de sua própria gente.

Diante de tanta dor e sofrimento, nos vemos vivendo na pele as fabulações


que uma vez julgamos ser inofensivas. Desde o final de 2019, cada vez mais nos
vemos revisitando Asimov em Escolha a Catástrofe pensando em qual será a
próxima que teremos de sobreviver, se é que nós mesmos não vamos causá-la,
assim como coloca Asimov, “se a espécie humana está para ser completamente
dizimada numa catástrofe do quarto grau, é a própria humanidade que pode fazê-lo.”
Em meio a tudo isso, ainda existe algum laço de esperança? O que restou de
humano daquilo que foi feito de nós? Adorno vai um pouco além dessa questão em
Crítica Cultural e Sociedade quando afirma que talvez não seja mais possível
escrever um poema após Auschwitz. Claro que de maneira alguma neste trabalho
existe a intenção de comparar os horrores que aconteceram na Alemanha com os
acontecimentos durante a pandemia no Brasil, busca-se apenas fazer um paralelo
onde, perante tanta barbaridade entre humanos, onde um não reconhece mais si
mesmo no outro, é possível ainda existir arte? Que obras são feitas em tempos tão
politicamente, socialmente nefastos?

O presente trabalho é resultado dos estudos na disciplina Literaturas e


Políticas, regidas pelas professoras doutoras Rejane Cristina Rocha e Juliana
Santini e será entregue como requisito para a conclusão da disciplina. Para fins de
recorte temático exigido no trabalho final, o objeto a ser analisado será Punhos de
Repúdio (2022) considerando-o enquanto objeto pertencente ao campo da literatura
digital, sendo encarada a partir da definição dada por Gainza:

(…) literatura digital pressupõe uma experimentação que pode utilizar


tanto a linguagem de programação quanto os meios digitais. A
experimentação com a linguagem do código se refere a uma escrita
que transforma diferentes formatos em um mesmo código numérico
e, portanto, permite aliar matéria verbal, imagens, vídeos e sons, o
que, na grande maioria dos casos, resulta em textos não lineares. A
experimentação com o meio se refere à utilização dos recursos da
web e de suas plataformas para construir textos transmídias,
multimídias ou intermídias (GAINZA apud RIBEIRO, CABRAL, 2018,
p. 83).
Punhos de Repúdio.

Desenvolvido pela BrainDead Broccoli e lançado em 2022, Punhos de


Repúdio é um jogo satírico no estilo beat’em up em 2D que conta a história fictícia
de uma pandemia que se espalhou pelo mundo e está sendo ignorada por maníacos
que não acreditam que a doença é real, com isso 4 protagonistas, garotas comuns,
porém adequadamente protegidas com luvas e máscaras, saem em busca desses
fanáticos a fim de resolver a situação com a força dos próprios punhos.

Por conta de seu estilo de jogo, Punhos de Repúdio não apresenta uma
narrativa textual linear, apenas um prelúdio é exibido no início do jogo
contextualizando de maneira geral sua história, o restante será apresentado durante
a jogatina de forma intrínseca ao jogo, seja nas habilidades das personagens, nos
personagens não jogáveis ou na ambientação. Nesse caso, a narrativa satírica de
Punhos de Repúdio é construída muito mais através das referências imagéticas do
que naquilo que tradicionalmente buscamos, o texto escrito. Contudo, ainda existem
momentos dentro do jogo em que o texto será importante para o jogador, como por
exemplo nas situações onde personagens não jogáveis (NPC) conversam com o
jogador sobre o que está acontecendo no jogo, que sempre acaba fazendo pontes
diretas com ocasiões que aconteceram durante a pandemia de COVID-19 no Brasil.

O nome do jogo já é uma sátira feita a partir das “Notas de Repúdio” que foi o
gênero textual mais popular do Brasil durante a pandemia 5, que gerava na
população a revolta de saber que de nada adiantaria aqueles papéis pois vidas
continuariam sendo perdidas. Sendo assim, de certa forma o jogo traz à tona a
vontade que muitos jogadores já tinham, a de poder verdadeiramente repudiar os
atos grotescos que estavam sendo feitos no Brasil. Para poder finalmente colocar
para fora seus sentimentos, o jogador pode escolher entre duas dificuldades dentro
do game que é caracterizada como “tipos de Estado”. A dificuldade Bem-estar social
faz com que mais “proteção contra o vírus apareça durante a jogatina por conta de
resquícios de políticas públicas do passado” enquanto na dificuldade Mínimo o
jogador “terá sorte se encontrar álcool gel na rua. Máscara, então? Nem pensar.”

Cada uma das personagens, sendo elas Laura, Nina, Olga e Lola tem um
ataque especial que está diretamente relacionado ao nível de repúdio de cada
5 ELY, Luiz Augusto. Pandemias como acontecimento histórico-discursivo: um olhar sobre notas de repúdio
acerca do combate à COVID-19 no Brasil. Revista Porto das Letras, Vol. 07, Nº 02. 2021.
personagem. Os ataques especiais também são diferentes para cada uma delas,
sendo eles Distanciamento Social, Home Office, Doação de Máscaras e Trabalhador
Essencial. Os especiais recebem esses nomes pois são baseados em ações ou
agentes importantes na manutenção e garantia do controle da pandemia fictícia (e a
real na qual é baseada), sendo que dentro do jogo os ataques têm suas ilustrações
e mecânicas voltadas para ressaltar essas características.

Os inimigos presentes no game são representados com camisetas verde e


amarelas, lembrando aquelas usadas nas manifestações antivacina de 2020,
contando com diversos chefões que fazem referência a figuras que fizeram parte do
contexto sociopolítico do Brasil no período pandêmico. Contudo, talvez o mais
importante seja o inimigo final que recebe o nome de “O Presidente”, figura que é
recorrente durante a gameplay e que a todo tempo busca frustrar a empreitada das
personagens de livrar o mundo dos negacionistas.

A ambientação de Punhos de Repúdio se passa em ruas brasileiras com


referências à cultura local, incluindo os itens espalhados pelos estágios, como por
exemplo os kits de saúde do SOS (Sistema Ótimo de Saúde) e panfletos da
Campanha de Queima de Livros: Ministério da Educação.

Interatividade e multimidialidade são características chaves presentes nos


jogos eletrônicos e, portanto, são também os atributos mais ressaltados no game
aqui apresentado, com isso, a narrativa satírica de Punhos de Repúdio não está
presente em sua totalidade nos segmentos discursivos que os personagens não
jogáveis exprimem ao jogador, mas sim na variedade de interações e composições
textuais (visuais, sonoras, implícitas e mecânicas de jogo) existente na jogatina.

Política, Jogos Eletrônicos e a Literatura Digital

Enquanto produto do sistema dos jogos eletrônicos, Punhos de Repúdio não


deixa passar desapercebida sua narrativa, pois nos jogos dessa categoria (Beat’em
Up) além de não ser comum existir uma estrutura narrativa bem definida, é muito
raro que jogos tenham em seu conteúdo discussões políticas. Apesar de ter uma
estrutura gamificada que segue os padrões do sistema dos jogos, o game acaba
ficando deslocado em meio a outros jogos a partir do momento em que seu
desenvolvimento é focado em outra coisa que não é a jogabilidade pura, sem outros
fatores serem mais importantes. Observando o jogo enquanto um produto do
cruzamento entre a Literatura Digital e os Jogos Eletrônicos podemos explicar e
analisar de forma mais concreta as decisões tomadas pelo time de desenvolvimento
que tornaram o jogo quase um estranho em seu próprio sistema.

Nem mesmo em uma análise superficial conseguimos desvincular a


importância da temática política em Punhos de Repúdio, afinal, desde sua
concepção o jogo foi desenvolvido enquanto um produto artístico que se volta para o
contexto político da época em que foi produzido. Os caminhos que levaram o game
a tornar-se o objeto que é aqui discutido passam, primeiramente, pela ideia de
historicizar, de maneira satírica, as horríveis decisões políticas, principalmente do
Presidente vigente na época, que levaram o Brasil a ter grande parte de sua
população morta, colocando como única saída, tanto fictícia (game) quanto real, a
luta da própria população contra essa tentativa horrenda de desinformar e extinguir
pessoas.

Durante todo o período o qual o jogo faz alusão, muitos brasileiros se viram
tomados por um sentimento de total incapacidade. Incapazes de ter acesso a
vacinas, meios para se protegerem e, inclusive, incapazes de se defenderem de
pessoas desinformadas que acabaram auxiliando no contágio da doença. A
proposta de Punhos de Repúdio, portanto, culmina em transformar e ressignificar
esse sentimento na forma de alívio cômico, colocando o jogador-leitor no papel de
personagens comuns que, ao fazerem sua parte na prevenção da doença e na
reeducação de seus pares, salvam seu país da catástrofe total.

O cruzamento entre os sistemas se dá a partir do momento em que, durante a


escolha de como produzir o game, o time de desenvolvimento optou por ultrapassar
aquilo que se é esperado nesse tipo de produção, dando ênfase na narrativa
subjetivada nas diversas mecânicas e ambientações que o jogo traz, tornando-o um
produto que excede o conjunto canonizado de repertórios dos jogos eletrônicos,
trazendo para dentro desse sistema traços vindos do sistema da Literatura Digital,
tanto na utilização de recursos audiovisuais interativos para veicular a narrativa
quanto na própria escolha da temática para o jogo, que por sua vez, nos mostra que
é possível sim existir literatura pós-pandemia e, isso posto, é possível sim haver
esperança.
Conclusão

As produções da Literatura Digital Brasileira e dos Jogos Eletrônicos


Brasileiros no período pós pandemia da COVID-19 demonstram antes de tudo a
diversidade com que a sociedade e principalmente os artistas passam a encarar a
nova realidade que se forma a partir de acontecimentos catastróficos não naturais,
mas que foram causados pela própria falta de empatia com o próximo e a
desumanização do ser. Mesmo que seja de maneira satírica como em Punhos de
Repúdio, talvez não seja tão bárbaro assim, já dialogando novamente com Adorno,
fazer arte após Auschwitz. Talvez essa seja uma das únicas saídas que temos para
dar vazão a esse turbilhão de sentimentos que surgem perante tanta tristeza e
desolação.

Bibliografia

ADORNO, T. Prismas: crítica cultural e sociedade. Tradução de Augustin


Wernet e Jorge Almeida. São Paulo: Ática, 1998.

CABRAL, Cleber Araújo. RIBEIRO, Ana Elisa. Tarefas da edição: pequena


mediapédia / Alexandre José Amaro e Castro... [et al.]; organizado por Ana Elisa
Ribeiro, Cleber Araújo Cabral. - Belo Horizonte: Impressões de Minas, 2020.

ELY, Luiz Augusto. Pandemias como acontecimento histórico-discursivo:


um olhar sobre notas de repúdio acerca do combate à COVID-19 no Brasil. Revista
Porto das Letras, Vol. 07, Nº 02. 2021.

LUKÁCS, Gyorgy. História e consciência de classe. Tradução de Rodnei


Nascimento. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

GRUPO REALIDADES. InMemoriam. Disponível em:


http://www2.eca.usp.br/realidades/inmemoriam/. 2021.

BrainDead Broccoli. Punhos de Repúdio. Disponível em:


https://store.steampowered.com/app/1425760/Punhos_de_Repdio/?l=brazilian.
2022.

Você também pode gostar