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Resumo
Neste artigo observamos as apropriações construídas a partir da
fala do presidente Jair Bolsonaro no episódio, aqui intitulado
como "coveiro", em que ele se refere ao número de mortes da
covid-19. O propósito é investigarmos como são construídos os
sentidos a partir da circulação do discurso do presidente e das
tensões sociais que emergem de sua fala. Para tanto, tomamos
como método o movimento de seguir os rastros da circulação a
partir de uma ênfase na semiologia discursiva. O corpus de
análise é composto por reportagens jornalísticas e publicações de
atores sociais em redes digitais. Nosso aporte teórico é
direcionado a reflexões sobre imagem, midiatização, apropriações
e circuitos, com o intuito de mostrar a dinâmica da circulação de
sentidos.
Palavras-chave
Bolsonaro; covid-19; comunicação; midiatização; imagem
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Intexto, Porto Alegre, UFRGS, n. 55, e-128582, 2023.
DOI: 10.19132/1807-8583. 55. 128582
Não sou coveiro: a circulação de sentidos a partir da fala de Jair Bolsonaro sobre as mortes de covid-19
1 Introdução
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Não sou coveiro: a circulação de sentidos a partir da fala de Jair Bolsonaro sobre as mortes de covid-19
sobre o número recorde de mortes que havia sido divulgado no mesmo dia pelo Ministério da
Saúde. O presidente Bolsonaro não deixou o jornalista finalizar a pergunta e respondeu que
não era coveiro para falar de mortes. A fala repercutiu entre veículos de comunicação e,
posteriormente, foi apropriada também por atores sociais.
Com esta breve introdução sobre o episódio, abordaremos as principais teorias que
serão trabalhadas neste artigo. Pensando na midiatização como conceito central para
entendermos o contexto em que nosso objeto emerge, podemos pontuar, a partir de Fausto
Neto (2018), que a midiatização complexifica as relações sociais e engendra diferentes
operações. Nesta perspectiva, a midiatização não se detém à incorporação das lógicas dos
meios dentro dos processos sociais. Ela diz respeito a uma reorganização social, que trabalha
diretamente com o surgimento de novas lógicas. E, com essas novas lógicas, os fazeres
comunicacionais são remodelados. Surgem processos tentativos, complexos e plurais
(BRAGA, 2015).
Neste sentido, abordamos também o conceito de circulação, ainda de acordo com
Fausto Neto (2018), que compreende a circulação para além de uma zona de passagem.
“Sendo o lugar de acoplamentos de dois conjuntos de relações – produção/reconhecimento –
que são colocados em contato segundo manifestações de feedbacks complexos, como
possibilidade de acesso às regras de materialização dos sentidos” (FAUSTO NETO, 2018, p.
31).
É neste movimento da circulação que buscamos captar os sentidos para os quais
olhamos nesta pesquisa. Para compreender a construção de sentidos, podemos acionar Rosa
(2016a), que nos explica que ela acontece dentro do processo de circulação, sendo a
circulação uma forma de atribuição de valor que se manifesta em circuitos.
A circulação não é um lugar, uma vez que não há formas de retenção, nem um espaço
físico ou fechado para circular objetos. A circulação consiste exatamente na disputa,
no embate pela produção de sentido que se realiza no âmbito dos dispositivos
midiáticos (ROSA, 2016a, p. 3).
Rosa (2016a) ainda contribui com este trabalho ao explicar que a circulação de
narrativas envolve os processos de apropriação e reapropriação. E, dentro disso, a autora nos
ajuda a esclarecer o que compreendemos como apropriação, considerando a existência de
diversos níveis de circulação das imagens. Os últimos níveis ou fluxos elencados pela autora
são os que mais nos interessam porque se referem a um intenso grau de mobilização das
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imagens. Aqui, Rosa pontua que os “atores sociais midiatizados passam a produzir imagens
novas com base em imagens já vistas a partir de lógicas da midiatização” (ROSA, 2016b, p.
72). Ou seja, os atores sociais realizam aqui produções pensadas justamente para serem
repercutidas midiaticamente, demonstrando domínio das lógicas midiatizadas.
Neste processo de circulação de falas, de imagens e de conteúdos, são convocados
elementos do imaginário coletivo, tais como construções simbólicas que remetem a imagens e
textos anteriores que são reatualizados. Vilém Flusser interpreta a essência de uma imagem
como uma mensagem. “Uma imagem é, entre outras coisas, uma mensagem: ela tem um
emissor e procura por um receptor” (FLUSSER, 2007, p. 152). Ou seja, os conteúdos são
carregados de marcas e valores, que circulam em busca de novos receptores para que os
interpretem e os insiram novamente nos fluxos. Ao longo desse processo, são reiterados
significados ou até mesmo construídos novos.
O processo de produção de sentidos também é atravessado pela questão do
imaginário coletivo, que é compreendido por Flusser como um espaço interior onde são
criadas e armazenadas as imagens. “O termo “imaginar” significa a capacidade de concretizar
o abstrato, e que tal capacidade é nova; que foi apenas com a invenção de aparelhos
produtores de tecno-imagens que adquirimos tal capacidade” (FLUSSER, 2012, p. 55).
Nesta mesma linha, Mircea Eliade aponta que as imagens presentes no imaginário
envolvem as particularidades de cada pessoa, mas ao mesmo tempo possuem referências
comuns. “As imagens, os símbolos, os mitos, não são criações irresponsáveis da psiqué; eles
respondem a uma necessidade e preenchem uma função: pôr a nu as mais secretas
modalidades do ser” (ELIADE, 1979, p. 13).
A fala do presidente que aqui analisamos está diretamente conectada à morte,
acionando, assim, símbolos que fazem despertar diferentes sentidos. “Não podemos ignorar o
fato de que não é a própria morte que desperta temor e terror, mas a imagem antecipada da
morte” (ELIAS, 2001, p. 53).
Em conjunto com essas imagens que provocam os imaginários, dentro de narrativas
jornalísticas – que também serão analisadas aqui – acontecem jogos de sentido e usos de
palavras, que convocam imaginários armazenados (MOTTA, 2003). Quando uma reportagem
caracteriza algum sujeito com determinados atributos, se constroem impressões, ao mesmo
tempo em que também são resgatados imaginários coletivos para criar referências.
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3 Caminho metodológico
Antes de partirmos efetivamente para a análise das materialidades, é importante
apontar que construímos a nossa observação a partir da semiologia dos discursos,
empregada por Verón (2004). Conforme ele, a análise do discurso é sempre intertextual, ou
seja, ela envolve influência de outras referências textuais e inclui subjetividades do
pesquisador.
Tratando-se de publicações que envolvem elementos textuais e imagéticos, Verón
(2004) ainda acrescenta que as composições costumam se relacionar entre si. Para a
construção de sentidos, o autor nos indica como caminho metodológico ir além das
gramáticas de produção e de reconhecimento, focando assim no conjunto de ambos, que
resulta na circulação.
Aliado a isso, trazemos uma abordagem metodológica que vem sendo desenvolvida na
linha de pesquisa Midiatização e processos sociais e no grupo de pesquisa Laboratório de
circulação, imagem e midiatização (LACIM) do Programa de Pós-Graduação (PPG) em
Ciências da Comunicação da Universidade do Vale dos Sinos (Unisinos), que é a de seguir os
rastros da circulação. Esta abordagem se centra em um movimento duplo: estancar o fluxo
para extrair/observar um elemento acionador de circuitos para, depois, voltar a observar
este elemento (uma fotografia, um discurso, uma postagem etc) no fluxo a partir de suas
reverberações, inserções, transformações. Seguir os rastros ocorre tanto no sentido temporal
do passado, no que é possível escavar de condições e situações precedentes, como no futuro,
não perdendo de vista atualizações, desdobramentos, reinserções. Significa dizer que os
rastros são perseguidos em movimentos de retroação e de mapeamento com vistas a não
reduzir a complexidade dos objetos, pois numa ambiência de midiatização os próprios
fenômenos não podem ser observados de modo estanque ou a partir de um meio, mas sim na
sua articulação e imbricamento.
Para compreendermos esses rastros da circulação, fomos analisando os detalhes de
cada reportagem e publicação (textos, imagens, comentários) e verificando os pontos que se
conectam ou se diferenciam em cada materialidade, tomando a fala de Bolsonaro como
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é verdade. Estamos vendo que não é verdade. Lamentamos as mortes, e é a vida. Vai morrer”,
afirmou”. (GOMES, 2020).
É possível também notar que a reportagem do G1 é composta por diversas citações de
Bolsonaro. Grande parte delas evidencia que ele procura desviar de sua responsabilidade
enquanto gestor. Além do destaque da manchete, o presidente fala que 70% da população
será contaminada pela covid-19 e “não adianta querer correr disso”. Além disso, coloca que é
preciso “[...] enfrentar como homem, porra. Não como um moleque”, tentando justificar que,
diante desta postura, teríamos melhores soluções para a covid-19. (GOMES, 2020).
Isso nos mostra que as notícias vão além do papel de apenas informar e estabelecem
“dimensões cognitivas e simbólicas formadoras de crenças, definidoras de valores morais,
estéticos e ideológicos, independente da vontade explícita de parte dos atores do jogo
comunicativo jornalístico” (MOTTA, 2003, p. 27). Essa compreensão nos faz refletir sobre
como determinadas palavras ou expressões também são carregadas por bagagens de cunho
ideológico. Esta visão é trabalhada por Verón (2004) ao pensar a circulação midiática como
um conjunto de textos que se referem a outros.
Na manchete abaixo (fig. 3), diferente da anterior, temos a fala do presidente seguida
do questionamento se há um número aceitável de mortos. Aqui é notável que há um destaque
para a problemática da fala de Bolsonaro, nos levando a compreender que não é aceitável
tantas mortes.
Dando continuidade à análise de sentidos que podem ser identificados nas
reportagens, ressalta-se que as matérias indicam que Bolsonaro defende o fim do isolamento
social e o retorno de todas as atividades econômicas. Isso também pode gerar uma impressão
de dualidade, dando a entender que as medidas preventivas impedem a retomada da
economia. Aqui vale apontar que, no momento em que Bolsonaro proferia seu discurso, este
estava cercado por apoiadores que esperavam este posicionamento de abertura do comércio.
Este contexto é importante de ser destacado por nos fazer compreender melhor a postura do
jornalismo de muitas vezes capturar os primeiros minutos de uma fala. Ou seja, temos aqui
operações jornalísticas em jogo.
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composta por essa mesma imagem, que identificamos estar presente em diversos outros
tweets.
Há também publicações que estão preocupadas em defender a dignidade da profissão
de coveiro e apontar Bolsonaro como genocida. Nestes casos, muitas envolvem a questão
política do passado de Bolsonaro, apontando que políticos costumam não trabalhar tanto
quanto os coveiros, por exemplo (fig. 4).
1 Neste artigo optamos por manter o nome do ator social conforme nas redes sociais, em especial para referenciar o tweet. Além
disso, entendemos que o conteúdo estava/está disponível em um perfil aberto da rede social (Twitter). Isso significa que o
ator social produziu seu comentário com vistas à circulação, sendo esta impossível de ser restringida. É de se observar,
porém, que a análise não procede um juízo de valor sobre o comentarista, mas focaliza-se nos desdobramentos e
tensionamentos que marcam a autorização social, característica central da midiatização hoje.
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Podemos ver exemplos disso em uma publicação (fig. 5) que faz utilização de
ilustrações. Nela, podemos ver a simulação do que seria o Palácio do Planalto, rodeado por
infinitos caixões. A fala de Bolsonaro ecoa de dentro do Palácio, enquanto as mortes parecem
ser resultado de sua fala. A ilustração passa uma ideia de privilégio e de poder por parte de
Bolsonaro, enquanto milhares de mortes, insignificantes na ótica do presidente, representam
o próprio povo brasileiro vítima de diferentes formas das ações governamentais.
Aqui podemos acionar Elias (2001), que fala sobre a necessidade de ilustrarmos a
morte para entendermos sua dimensão. Mesmo com a evolução da medicina e da ciência, as
imagens são importantes para reforçar nos imaginários a questão de que ainda não temos
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Diante dessa imagem, podemos notar a força do simbólico, trazendo a figura clássica
da morte – a foice, o fantasma da morte com o manto preto –, fazendo conexão com a
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problemática apresenta por Elias (2001), em que a imagem da morte tem o papel de nos
trazer o sentimento de terror e medo. Aqui podemos considerar não apenas o medo da morte,
mas da fala do presidente.
Ainda olhando para a mesma publicação, é possível encontrar, além das simbologias
da morte, outros elementos importantes que despertam diferentes sentidos. Além da cor do
luto, o preto, temos em destaques as cores da bandeira do Brasil, verde e amarelo. O uso delas
trabalha com a identidade da nação, despertando imaginários relacionados ao patriotismo.
Esses mesmos imaginários também estão presentes nos próprios discursos de Bolsonaro que
pauta seus pronunciamentos com promessas de salvar a pátria, de defender a nação e de
preservar os ideais nacionalistas.
A utilização desta cor carrega uma crítica à apropriação do símbolo nacional pelo
presidente. E, com isso, podemos conectar essa inferência com a reflexão de Flusser (2007),
que aponta que as apropriações são carregadas de marcas que auxiliam em novas
interpretações.
Outra relação que podemos fazer a partir do que Braga (2012) nos afirma sobre os
circuitos é sobre o valor não estar presente no objeto em si, mas nos acionamentos que se
fazem a partir dele na circulação das narrativas. Isso fica evidente quando são resgatados
imaginários neste jogo de elaboração e construção de sentidos por parte dos atores sociais,
como feito na imagem acima.
Prosseguindo a observação, notamos que o episódio do coveiro também foi muito
retomado por atores sociais após alguns meses do ocorrido. Muitas dessas apropriações
foram feitas como forma de enfrentamento ao presidente em momentos de vulnerabilidade
dele, como quando ele adoeceu com covid-19 ou quando foi internado por conta de
complicações de saúde. Nestes casos, o discurso é reapropriado e utilizado contra o
presidente, como podemos ver na postagem a seguir (fig. 7).
Mais uma vez, nos deparamos com símbolos relacionados à morte. Neste caso, com o
caixão. Apesar de se tratar de imagem extraída de um desenho animado, ela é reapropriada e
lançada sob um novo contexto. Aqui, os personagens da animação são usados de forma
cômica para desejar a morte de Jair Bolsonaro.
A utilização do coveiro em novas pautas acontece, como percebemos no exemplo
acima, mas alguns elementos de seu contexto original ainda se fazem presentes a fim de
contribuir para que haja um fácil reconhecimento do episódio. Podemos identificar que todas
as novas publicações são relacionadas a Bolsonaro ou à covid-19, que são os dois focos do
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discurso original. Então, por mais que a apropriação aconteça para se referir a novos fatos,
alguns assuntos e elementos precisam permanecer na circulação do acontecimento para
conferir a referencialidade.
Figura 7 - Tweet @oieusouvick
Além disso, a utilização de elementos cômicos (fig.7) é significativa para uma maior
repercussão das apropriações. Como podemos observar, a figura com os personagens de um
desenho animado obteve 207 retweets, diferente das outras apropriações que tiveram
ilustrações menos humorísticas. Das publicações analisadas nesse artigo, a apropriação
cômica, em questão de interatividade, só fica abaixo do tweet com a imagem das covas, que
acaba ganhando um maior número de retweets (520) pelo fato de trazer uma fotografia
chocante, que por sua vez traduz o número de mortos pela covid-19.
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Além disso, a urna é usada popularmente como uma expressão para se falar do caixão,
de onde se guardam cinzas das cremações, onde se depositam votos. Se por um lado a urna é
o depósito da esperança, é também a marca da vida findada. Aqui tem-se o caixão e a
contagem de corpos, de mortos, de votos.
Além da associação dos símbolos, há também uma analogia da fala do presidente com
a imagem. Bolsonaro se posiciona dizendo que não é coveiro, porém, na apropriação é
colocado como um contador de mortos por meio de uma urna/caixão. Podemos compreender
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que a imagem leva à reflexão de que, por mais que o político busque se esquivar da culpa dos
milhares números de mortes, este possui sim responsabilidade sobre as medidas de proteção
contra o vírus.
Ao direcionarmos o olhar para as hashtags que compõem as publicações, notamos que
em todas temos a palavra “Presidente” ou “Bolsonaro”, mostrando que essas operações são
utilizadas como indexadores e vocalizadores no posicionamento dos fatos. A partir dessas
operações, podemos conectar com as reflexões de Rosa (2016b), em que a autora coloca a
questão de disputa, ou seja, quando acionadas as hashtags essas permitem uma maior
circulação das apropriações, gerando assim novos sentidos.
Fora isso, as produções feitas pelos atores sociais nos possibilitam refletir acerca dos
fluxos contínuos pensados por Braga (2012; 2018). Com a ideia de um fluxo adiante, o autor
sinaliza que há um esforço de produzir e de colocar os materiais em circulação já prevendo
sua reverberação/reinscrição em novos fluxos. Ou seja, os sujeitos utilizam diferentes
estratégias para engajar suas produções com a intenção de que elas permaneçam em
circulação. A utilização de ilustrações marcantes ou de hashtags em tom de convocação, como
a #ForaBolsonaro, aparentam nos indicar esta tentativa de antever a circulação
Percebemos ainda que os sentidos são construídos não só a partir da fala do
presidente Bolsonaro, mas também das apropriações dos atores sociais. A fala de Bolsonaro
não apenas aciona a problemática do vírus, do número de mortos pela covid-19, mas também
os problemas políticos, do sistema de saúde pública, do colapso do sistema funerário. A partir
do momento em que os atores sociais acessam as hashtags, novos sentidos são acionados.
Desta forma, notamos que essa operação é um dos fatores que auxiliam na construção dos
sentidos.
5 Considerações finais
Iniciamos este tópico de considerações finais com nossas percepções sobre as
operações de midiatização em jogo, tanto por parte do jornalismo, quanto pelos atores
sociais. A estratégia jornalística nos parece ser a de pinçar a fala, reelaborar a partir de um
enquadramento do número de mortes, reforçar um uníssono, criar uma imagem (não
figurativa) para Bolsonaro, tensionando seu fazer a partir de seu dizer. Esta operação de
pinçar e deslocar uma frase ou uma imagem não apenas dá a ver a interrelação entre os
discursos mencionada por Verón (2004), mas aponta para uma operação da mídia ancorada
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em lógicas de midiatização (BRAGA, 2018), fruto de uma apropriação primeira, que passa por
um manejo jornalístico, sua inserção em espaços outros sob novos contextos para irromper
na circulação marcada pela intensificação das defasagens (FAUSTO NETO, 2013).
Neste sentido, os atores se apropriam do jornalismo, inserem em seus espaços as
frases pinçadas, mas a partir de elaborações criativas, associações, analogias e colagens.
Apesar da criatividade e da disrupção, os atores reiteram e reforçam as críticas ao presidente,
que já aparecem de maneira mais discreta nas produções jornalísticas. Percebemos que o
jornalismo não pretende fechar o sentido, mas estimular os embates, visto que não podem
tudo dizer em virtude das normas profissionais e editoriais. Este trabalho de levar o sentido
adiante é feito pelos atores sociais que ascendem ao espaço discursivo.
Além das apropriações por meio de imagens/ilustrações, os atores utilizam hashtags
como vocalizadores de protestos e de ações que transcendem as redes, isso nos permite
pensar sobre como neste episódio a construção de sentidos se dá em contatos e
acoplamentos entre diferentes atores discursivos (presidente, jornalismo, atores sociais) e
que a dimensão cronológica e temporal dos fatos pouco adquire valor, visto que o pinçamento
pode ser retomado hoje, mas também pode ser acionado meses após o início circuito, visto
que a circulação se prolonga e atualiza.
Mesmo apresentando apropriações com símbolos já tidos como imagens totens
(ROSA, 2018) que representam a morte, notamos que os sentidos construídos acerca do
episódio não são únicos, nem são produzidos de forma linear (SILVA, 2023). Ocorrem picos
na circulação (MICHAELSEN, 2023) e, consequentemente, algumas relações que são
utilizadas com maior frequência do que outras. São essas constantes referências que auxiliam
no processo de consolidação de usos de expressões.
Por fim, compreendemos que o episódio em questão sintetiza os complexos processos
que atravessam uma sociedade midiatizada. Por mais que nossas observações neste artigo se
limitem em termos de espaço, é possível visualizar a diversidade de operações colocadas em
jogo no processo de circulação da fala do presidente. Circuitos interacionais, lógicas de
midiatização e diversas apropriações constituem este episódio, tornando-o complexo em
termos de análise e acompanhamento, mas ao mesmo tempo um fenômeno interessante para
pensarmos sobre a forma como assuntos repercutem na sociedade e como diferentes campos
sociais se cruzam em processos de produção de sentidos. Isto é, o que este trabalho evidencia
é que o papel da circulação na comunicação, hoje, não é o de passagem ou de atravessamento
(FAUSTO NETO, 2013), pois as disputas por sentido, seja sobre a morte, seja sobre questões
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Não sou coveiro: a circulação de sentidos a partir da fala de Jair Bolsonaro sobre as mortes de covid-19
políticas e de saúde pública passam a ser tecidas na esfera da comunicação. O circuito “eu não
sou coveiro” nos permite pensar tanto sobre o que é dito e inscrito em pronunciamentos,
postagens e entrevistas, como naquilo que é sentido na pele, na vida cotidiana de sujeitos
para quem a pandemia foi e tem sido mais do que um discurso.
Referências
#BRASILCONSCIENTE, Regina. É coveiro sim. Coveiro e covarde. O que Bolsonaro faz com
os brasileiros é de uma covardia sem tamanho. Brasil, 4 mar. 2021. Twitter:
@Regina_Goiana.
BEHNKE, Emilly. ‘Não sou coveiro, tá?’, diz Bolsonaro sobre mortos por coronavírus. O
Estado de S.Paulo, São Paulo, 20 abr.2020.
BRAGA, José Luiz. Instituições & midiatização: um olhar comunicacional. In: FERREIRA, Jairo
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FACOS/UFSM, 2018. p. 221-311.
BRAGA, José Luiz. Lógicas da mídia, lógicas da midiatização? In: FAUSTO NETO,
Antônio; ANSELMINO, Natalia Raimondo; GINDIN, Irene Lins (orgs.). CIM -relatos
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BRAGA, José Luiz et al. Matrizes interacionais: a comunicação constrói a sociedade. Campina
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JUNIOR, Jeder; JACKS, Nilda Aparecida (orgs.). Mediação e midiatização. Salvador: UFBA,
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CARLOS, Antonio. Bolsonaro nega, mas ele é o coveiro do povo brasileiro. Brasil, 21 abr.
2020. Twitter: @AntonioBrabo.
CRESTANI FILHO. “Não sou coveiro” disse Jair. Claro, em um dia os coveiros de Manaus
trabalharam mais do que Bolsonaro em 28 anos como deputado. Brasil, 22 abr. 2020.
Twitter: @CrestaniFilho.
ELIAS, Norbert. A solidão dos moribundos, seguido de, envelhecer e morrer. Rio de
Janeiro: Zahar, 2001.
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Abstract
In this article, we observe the appropriations constructed from
President Jair Bolsonaro's speech in the episode, here titled
"Gravedigger", in which he refers to the number of deaths from
covid-19. The purpose is to investigate how meanings are
constructed from the circulation of the president's speech and
the social tensions that emerge from his speech. To do so, we
adopted as a method the movement of following the traces of
circulation based on an emphasis on discursive semiology. The
corpus of analysis is composed of journalistic reports and
publications by social actors in digital networks. Our theoretical
contribution is directed to reflections on image, mediatization,
appropriations, and circuits, with the aim of showing the
dynamics of the circulation of meanings.
Keywords
Bolsonaro; covid-19; communication; mediatization; image
Como citar
SILVA, Graziele Iaronka; MICHAELSEN, Martina Belotto; ROSA, Ana Paula da. Não sou coveiro: a circulação
de sentidos a partir da fala de Jair Bolsonaro sobre as mortes de covid-19. Intexto, Porto Alegre, n. 55, e-
128582, 2023. DOI: 10.19132/1807-8583. 55.128582
Recebido: 21/11/2022
Aceito: 02/05/2023
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Intexto, Porto Alegre, UFRGS, n. 55, e-128582, 2023.
DOI: 10.19132/1807-8583. 55. 128582