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Sugestão (Dalízia): Representações sociais de internautas sobre o Coronavírus no Brasil:

primeiros meses da pandemia

Resumo: Este estudo objetivou analisar as representações sociais de internautas, a partir de

comentários a reportagens sobre o Coronavírus no Brasil. A pesquisa tem caráter analítico-

exploratório, com abordagem quanti-qualitativa. Os dados foram processados por software de

análise textual, para posterior análise de conteúdo. Dos discursos selecionados, emergiram

três classes - Coronavírus: política, saúde e sociedade, Desconfiança das estatísticas e

Desprestígio do presidente. Os resultados ressaltam diferentes sentidos de ancoragem dessas

representações sociais e sugerem a vitalidade de um paradigma teórico classificatório que

confere valor a objetos, pessoas ou fenômenos, hierarquizando-os em ordem de importância.

Neste estudo, as representações sociais foram assentadas em valores negativos, convergindo

seus sentidos para uma imagem única de descrédito em instituições, governantes e mídia. Esse

cenário se mostra, especialmente, preocupante em razão da gravidade da crise decorrente da

pandemia no Brasil e diz muito sobre o passado e o futuro do país.

Palavras-chave: Representação Social; Vírus; Brasil.

Social representations of internet users about the Coronavirus in Brazil: first months of

the pandemic

Abstract: This study aimed to analyze the social representations of internet users, from their

comments to reports about Coronavirus in Brazil. The research has an analytical-exploratory

character, with a quantitative and qualitative approach. The data were processed by textual

analysis software, for later content analysis. From the analyzed content, three classes emerged

- Coronavirus: politics, health and society, Distrust of statistics and Disrepute of the president.

The results highlight different meanings of anchoring these representations and suggest the vi-

tality of a classificatory theoretical paradigm that gives value to objects, people or phenom-

ena, ranking them in order of importance. In this study, social representations were based on

negative values, converging their senses to a single image of discredit in institutions, govern-
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ment and the media. This scenario is especially worrying due to the seriousness of the crisis

resulting from the pandemic in Brazil and says a lot about the country's past and future.

Keywords: Social Representations; Virus; Brazil.

Representaciones sociales de usuarios de internet sobre el Coronavirus en Brasil: prime-

ros meses de la pandemia

Resumen: El objetivo del estudio fue analizar las representaciones sociales de los usuarios de

internet, desde sus comentarios acerca de informes sobre Coronavirus en Brasil. La investiga-

ción tiene un carácter analítico-exploratorio, con enfoque cuantitativo y cualitativo. Los datos

fueron procesados por software de análisis textual, para su posterior análisis de contenido. De

los discursos, surgieron tres clases - Coronavirus: política, salud y sociedad, Desconfianza en

las estadísticas y Descrédito del presidente. Los resultados destacan diferentes significados de

anclaje de estas representaciones y sugieren la vitalidad de un paradigma teórico clasificatorio

que valora objetos, personas o fenómenos, clasificándolos en orden de importancia. En este

estudio, las representaciones sociales enfatizaron valores negativos, convergiendo sus sentidos

en una imagen de descrédito en instituciones, gobiernos y medios de comunicación. Este esce-

nario es preocupante, debido a la gravedad de la actual crisis pandémica en Brasil y dice mu-

cho sobre el pasado y el futuro del país.

Palabras-clave: Representación social; Virus; Brasil.

A partir de dezembro de 2019, apareceu nos noticiários uma nova ameaça à saúde e a

vida da população chinesa. Tratava-se da epidemia gerada pelo SARS-CoV-2 ou Coronavírus,

causador da COVID-19, doença com quadro clínico variado, desde infecções assintomáticas a

sintomas graves. Esse vírus se alastrou por diversos países e evoluiu para uma pandemia

(Depoux, Martin, Karafillakis, Preet, Wilder-Smith, & Larson, 2020; Silva, Pereira, Gritz,

Simoes, &Porto, 2020).

No Brasil, no início de 2020, a população tornou-se alvo fácil de várias informações

sobre a pandemia, muitas delas reconhecidas como fake news, que misturaram questões
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políticas e de saúde em diversos seguimentos comunicativos. Nesse contexto, informações

sobre a evolução da COVID-19 no país e as medidas para conter a propagação do vírus foram

disseminadas, com poder de influência sobre o nível de adesão de indivíduos e das

instituições às propostas de isolamento social e confinamento pela quarentena (Burki, 2020;

Kirby, 2020).

Desse modo, este contexto se constituiu terreno fértil para a formação de

representações sociais sobre o novo Coronavírus e suas repercussões em diferentes domínios

da qualidade de vida. As representações sociais circulam e se entrecruzam, continuamente,

por meio de palavras e gestos, com influência nas relações vividas, nos objetos produzidos e

consumidos. Em outras palavras, por meio das representações sociais, convencionam-se

objetos, pessoas e situações vividas no dia-a-dia, diferenciando-os e abarcando-os como

elementos de um modelo específico partilhado na sociedade. Surgem, portanto, como modo

de comunicação e entendimento dos elementos que cercam as pessoas (Moscovici, 2000).

Por trás das representações sociais existe uma teoria implícita, na qual as pessoas

criam um sistema de classificação e denotação. De acordo com Moscovici (2015), as

representações sociais são criadas para tornar familiares fenômenos, seres e objetos não

familiares. Para tanto, dois processos geradores de representação social são acionados: a

ancoragem e a objetivação. No processo de ancoragem, ideias abstratas sobre determinado

fenômeno, por exemplo, são agrupadas e categorizadas, a partir de determinado paradigma.

Estas transformam-se, então, em ideias concretas por meio da objetivação. Em outras

palavras, objetivar é descortinar a qualidade icônica de uma ideia sobre um fenômeno,

reproduzindo uma ideia imprecisa em uma imagem. É reproduzir um conceito em uma

imagem (Moscovici, 2015). Veja-se que, segundo o autor, as representações sociais não são

simples “opiniões sobre” ou “imagens de”, são teorias coletivas particulares, baseadas em

conceitos e valores. A atividade representativa, portanto, constitui um processo mental que

permite as pessoas a se familiarizarem e materializarem algo que não é familiar.


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É importante destacar, ainda, que as representações sociais se constituem a partir do

entrelaçamento de duas matrizes de pensamento na sociedade: o universo reificado, onde

circulam as ideias produzidas pela ciência, mídia, política, entre outras; e o universo

consensual, onde se encontram as práticas interativas do dia-a-dia, campo fecundo para a

formação das representações sociais, consideradas teorias do senso comum (Moscovici, 2015;

Guareschi, 2013; Oliveira & Werba, 2013).

Diante disso, enfatiza-se que o não familiar é, muitas vezes, gerado no universo

reificado das ciências, da política, da mídia e se entrelaça ao universo consensual do dia-a-dia,

por meio de diversos divulgadores científicos, como jornalistas e políticos que utilizam como

recurso os meios de comunicação de massa (Guareschi, 2013; Moscovici, 2015; Oliveira &

Werba, 2013). Assim, ao se diluir nas práticas interativas do dia-a-dia, os conceitos gerados

no universo reificado dão lugar às teorias do senso comum.

Diante do exposto, o estudo das representações sociais possibilita a compreensão de

fenômenos históricos, geradores de grande impacto social. E discutir o conhecimento

construído sobre determinada temática é de fundamental importância para o entendimento do

grau de influência do universo reificado no consensual, onde as práticas e interações são

estabelecidas, cotidianamente, para o enfrentamento dos desafios colocados pela COVID-19.

Nesse sentido, este estudo tem como objetivo analisar as representações sociais de

internautas, a partir de comentários a reportagens sobre o Coronavírus nos primeiros meses de

pandemia no Brasil.

Método

Trata-se de uma pesquisa com caráter analítico-exploratório e abordagem quanti-

qualitativa no tratamento dos dados. Foram utilizados dados secundários, obtidos a partir do

exame de comentários de internautas que acessaram a página eletrônica do Universo Online

(UOL). Esta é uma empresa brasileira de conteúdo, produtos e serviços de internet, fundada

pelo Grupo Folha em abril de 1996 e tem como slogan “O melhor Conteúdo”. A escolha pelo
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referido portal se deu, em virtude de estar entre os 10 sites mais visitados da internet no

Brasil, segundo a plataforma Similar Web em 2017. Além disso, foi considerado pelo IBOPE

Nielsen Online o maior portal do Brasil, contando com mais de 50 milhões de visitantes e 6,7

bilhões de páginas visitadas mensalmente (Valor Online, 2010). E possui conteúdo disponível

gratuitamente.

A pesquisa foi realizada em maio de 2020, por meio do sistema de busca do Google,

a partir de termos-chave para este estudo, a saber, “Coronavírus”, “SARS-CoV-2” e “COVID-

19”, cruzados, individualmente, com o termo “UOL”. Deste modo, selecionou-se o menu

“ferramentas” e marcou-se a opção “intervalo personalizado” para delimitar três períodos

específicos de tempo para a seleção dos comentários. O primeiro período iniciou em

06/02/2020, quando foi promulgada a Lei da Quarentena no Brasil, até 16/03/2020; o segundo

período iniciou em 17/03/2020, quando foi registrada a primeira morte por COVID-19 no país

e foi até 15/04/2020; e o terceiro período foi de 16/04/2020, quando todos os estados

registraram morte por COVID-19, se estendendo até 01/05/2020. Justificam-se esses três

períodos de tempo em razão do objetivo de comparar as representações sociais, a partir de

eventos significativos que marcaram a pandemia no Brasil. Destaca-se que foram

selecionados comentários diretamente relacionados à matéria publicada no referido portal,

excluindo os que destoavam do assunto, como anúncios, passagens bíblicas, entre outros.

Procedimentos

Coleta dos dados

A primeira etapa assinalou a leitura geral dos comentários nas reportagens e a

seleção dos que seriam incluídos na análise. Em seguida, o conteúdo dos comentários

selecionados foi transcrito na íntegra e separados por linhas de comando, conforme

orientações para processamento de dados textuais no software IRAMUTEQ (Interface de R

pour les Analyses Multidimensionnelles de Textes et de Questionnaires) para estruturação do


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corpus de análise (Camargo & Justo, 2018). Ressalta-se que o corpus foi composto somente

pelos textos dos comentários dos internautas e não do conteúdo das reportagens.

Análise dos dados

Para analisar os dados, aplicou-se a técnica da análise de conteúdo, que permitiu o

exame dos comentários transcritos e inferir, sistemático-descritivamente, sobre a temática

comentada (Bardin, 2011). Nesse sentido, foi gerada, inicialmente, a Nuvem de Palavras, a

partir dos comentários dos internautas em cada período, a fim de apresentar uma síntese

exploratória do conteúdo analisado. Esta técnica agrupa as palavras, aleatoriamente, e as

organiza, graficamente, em função da sua frequência no texto. A segunda técnica utilizada foi

a Classificação Hierárquica Descendente (CHD), que promove a análise das raízes lexicais e

oferece os contextos em que as classes estão inseridas (Camargo & Justo, 2018). Destaca-se,

ainda, que o processamento feito pelo IRAMUTEQ propicia abordagem quanti-qualitativa dos

dados, pois o conteúdo do corpus é processado a partir da frequência e do teste estatístico qui-

quadrado (Silva & Enumo, 2017).

Resultados e Discussão

Foram selecionados 228 comentários, sendo 83 comentários, de 22 reportagens, no

Período 1; 84 comentários, de 24 reportagens, no Período 2; e 61 comentários, de 14

reportagens, no Período 3. Para compor a análise da Nuvem de Palavras, foi adotado, como

ponto de corte, a frequência média de formas ativas (palavras distintas) de cada período

(Período 1 = 4,1; Período 2 = 3,8; Período 3 = 3,7). Diante disso, a imagem gráfica (Figura 1)

apresenta as palavras mais evocadas em cada período: Coronavírus (f = 71), Brasil (f = 49),

País (f = 31) e Governo (f = 26), referente ao Período 1; COVID-19 (f = 33), Coronavírus (f

= 30), Bolsonaro (f = 23) e Quarentena (f = 22), correspondente ao Período 2; e Coronavírus

(f = 23), COVID-19 (f = 22), Bolsonaro (f = 17), Economia (f = 16) e Isolamento Social (f =

15), equivalente ao Período 3.

Inserir Figura 1
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A partir da análise exploratória do conteúdo textual pela Nuvem de Palavras, o

resultado aponta para uma coesão de conteúdo entre os comentários nos três períodos para o

tema em tela. Observa-se que a palavra “Coronavírus” aparece com maior frequência nos

comentários dos três períodos, já as palavras “Bolsonaro” e “Governo” sugerem um conteúdo

semântico comum nos períodos. Nesse sentido, o conjunto de palavras, destacadas em cada

período, revela os sentidos de ancoragem da representação social nos comentários ilustrativos.

É preciso cobrar que o governo apresente um plano emergencial para a produção de kits de
testes para o coronavírus desde já, porque mesmo assim vai demorar a dar conta do que
parece que vai ser essa pandemia (...) (Comentário 76, Período 1).

O Bolsonaro já sabia que isso iria acontecer desde o ano passado e ficou brincando e
falando que era histeria. A China fez hospital em 10 dias e o Bolsonaro não fez nada nem 1
leito para a COVID-19(...) (Comentário 14, Período 2).

Segundo o presidente Bolsonaro a COVID-19 é só uma gripezinha. Daqui a pouco o


desgoverno manipula os dados novamente. Os negacionistas só vão aprender quando
parentes próximos começarem a morrer (Comentário 24, Período 3).

Veja-se que os sentidos de ancoragem em cada período recaem sobre atitudes e

comportamentos do presidente Bolsonaro, associados, sobremaneira, aos conteúdos centrais

que emergiram das Classes geradas pela CHD. Dessa forma, de acordo com a análise da

CHD, o corpus geral foi constituído por 228 textos separados em 559 segmentos de texto

(ST), com aproveitamento de 523 STs (93,56%)1. Emergiram 15.145 ocorrências (palavras,

formas ou vocábulos), sendo 3.117 palavras distintas e 1.089 com uma única ocorrência.

O conteúdo analisado foi categorizado em três classes: Classe 1, com 260 ST

(49,71%); Classe 2, com 112 ST (21,41%) e Classe 3, com 151 ST (28,87%). Ressalta-se que

as três classes foram divididas em duas ramificações (A e B) do corpus total em análise. O

subcorpus A é composto pela Classe 3 (Desprestígio do presidente) e o subcorpus B, contém

os textos correspondentes às Classes 1 (Coronavírus: política, saúde e sociedade) e 2

(Desconfiança das estatísticas). Destaca-se que a análise foi realizada da classe mais externa

(Classe 3, subcorpus A) para as internas (Classes 1 e 2, subcorpus B).

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Para que a o material seja consistente para a análise, os manuais indicam que a retenção de segmentos de texto
aproveitados seja de no mínimo 70%.
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Observa-se que o conteúdo da Classe 3 ramifica-se do subcorpus A e do subcorpus

B, o conteúdo se distribui nas Classes 1 e 2. Estas, apesar de serem divergentes entre si, têm

um conteúdo comum e, por isso, apresentam-se em ramificação separada da Classe 3. Para

melhor visualização, o dendrograma (Figura 2) apresenta a lista de palavras componentes de

cada Classe, cujo ponto de corte foi o qui-quadrado expressivo (x2≥3,80) e significância

estatística (p≤0,05).

Inserir Figura 2

De forma complementar, é possível visualizar, também, um gráfico de Análise

Fatorial de Correspondência (AFC) gerado pela CHD. O ponto de corte estabelecido foi a

extensão do texto, proporcional à frequência de no mínimo cinco e máximo 40 palavras, bem

como a extensão do texto, proporcional ao qui-quadrado entre sete e 70, conforme Camargo e

Justo (2018). Dessa forma, observa-se como as palavras e suas frequências, em classe, se

organizaram no plano cartesiano (Figura 3). Assim, por terem conteúdo semântico mais

específico, as palavras da Classe 3 (Desprestígio do presidente) tenderam a se aglomerar no

eixo horizontal direito e não ultrapassaram os quadrantes, superior e inferior, esquerdos do

plano, onde se localizam as palavras das Classes 1 e 2. Esse resultado confirma a emergência

da Classe 3, a partir do subcorpus A, conforme apresentado na Figura 2.

As palavras da Classe 1 (Coronavírus: política, saúde e sociedade) e da Classe 2

(Desconfiança das estatísticas) distribuíram-se perifericamente, ocupando quadrantes

distintos. No entanto, conforme a Figura 2, ambas as classes emergiram do subcorpus B,

sugerindo conteúdo semântico comum, ou seja, expressaram o descrédito dos internautas a

respeito das informações e ações de combate à COVID-19. Por isso, há palavras tanto da

Classe 1 (Lockdown, Dia, Porque, Casa), quanto da Classe 2 (Totalmente, Mês, Caso, Não)

que migram uma ao encontro da outra. Além disso, ao emergirem da Classe 3, as palavras que

compõem o campo semântico das Classes 1 (Coronavírus, Sistema, Vírus, País, Mundo) e 2

(Ministério da saúde, Isolamento domiciliar, Hospitais de campanha) tenderam a migrar para


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o eixo vertical, ao encontro de palavras da Classe 3 (Isolamento social, Pandemia,

Responsável, Incompetente), cujo foco dos discursos nos comentários foi o presidente

Bolsonaro.

Inserir Figura 3

A Classe 3 (Desprestígio do presidente) foi responsável por 28,87% dos ST, diz

respeito à falta de credibilidade do presidente Bolsonaro, diante da emergência em saúde

pública. O sentido de ancoragem da representação social recai sobre o comportamento do

presidente da república que, segundo os internautas, atuou de forma irresponsável e

debochada, especialmente, no início da pandemia de COVID-19. Observa-se, ainda, que o

Período 3 apresentou maior afinidade com esta classe, com associação, estatisticamente,

significativa (x2=72,3; p≤0,0001).

No Brasil, a responsabilidade da execução das ações e serviços do Sistema Único de Saúde

(SUS) é de responsabilidade dos municípios. Os estados coordenam e planejam o SUS em nível

estadual. Todavia, é o governo federal o principal normatizador e financiador desse sistema,

sendo o Ministério da Saúde (MS) o responsável por formular as políticas nacionais de saúde.

Deste modo, a articulação nesta tríade é importante para o controle de epidemias como a do

Coronavírus, porém, a gestão e postura do presidente Bolsonaro, diante da crise da COVID-19,

têm sido criticadas nacional e internacionalmente (Burki, 2020; Ricard & Medeiros, 2020; The

Lancet, 2020).

Diante disso, o presidente vem enfrentando protestos contra a sua gestão na atual

emergência de saúde. Segundo os discursos dos internautas, Bolsonaro tem minimizado a

ameaça da COVID 19, chegando a chamá-la de “gripezinha”, além de atacar os esforços de

governadores e prefeitos para estabelecer as intervenções não-farmacológicas de enfrentamento à

doença, definidas pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como as principais estratégias de

controle.
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A partir dos discursos analisados, observa-se o entrelaçamento dos universos

reificado e consensual na constituição da representação social (Moscovici, 2015; Guareschi,

2013; Oliveira & Werba, 2013). A pandemia por coronavírus enquanto fenômeno não familiar

para milhares de brasileiros, tem sido ser maciçamente difundida pela política desde que teve

início no país. Nesse cenário, a figura de Bolsonaro ganhou realce ao utilizar os meios de

comunicação para transmitir suas ideias a respeito da doença. Tal transmissão, ao se diluir nas

práticas interativas do dia-a-dia, cede lugar a teorias do senso comum, servindo para justificar

atitudes e comportamentos. Em contrapartida, discursos dos internautas analisados se

colocaram contrários ao conteúdo das ideias propagadas pelo presidente. .

Enquanto o mundo está tomando todas as medidas para conter a escalada da COVID-19, o
Bolsonaro vem na contramão de todos, só pensando nos prejuízos para a economia e
subestimado a COVID-19, chamando de uma gripezinha (...). Ele vem praticando uma
conduta intragável e irresponsável, além de incompatível com o cargo de presidente,
criticando os governadores que estão adotando medidas de quarentena necessárias para
impedir o avanço do coronavírus nos seus respectivos estados (Comentário 33, período 2).

Gostaria de saber quando o senhor presidente será responsabilizado por essas mortes? Ele
debocha, fala e daí? Diz que em algum momento todos iremos pegar a COVID-19. Ele
esconde seu exame, tira o Mandetta durante a pandemia, trata até seus eleitores como
fantoches, promovendo atritos e carreatas, e nega que participa disso. Falta de respeito,
merece o impeachment! (Comentário 60, período 3).

Resultados semelhantes foram encontrados em estudos sobre a representação social de

pessoas a respeito da pandemia de COVID-19 (Rosati, Domenech, Chazarreta, & Maguire,

2020) e de H1N1 (Sy & Spinelli, 2016) na Argentina e de Ebola na Espanha (Idoiaga, Gil de

Montes, & Valencia, 2017). Os pesquisadores encontraram representações sociais de vilões às

autoridades políticas e de saúde, ou seja, as pessoas culpabilizaram os gestores por falhas na

administração das respectivas crises sanitárias, além de corrupção, que dificultou os

investimentos no sistema de saúde e facilitou a propagação destas doenças.

A partir dos comentários dos internautas, nota-se, ainda, que além da crise na saúde, o

governo de Bolsonaro tem enfrentado uma crise política, na qual perdeu o Luiz Henrique

Mandetta, ministro da saúde que tinha boa aceitação política e social. Na tentativa de seguir as

evidências científicas e as orientações da OMS, muitas vezes, Mandetta teve que contradizer o
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presidente (Dyer, 2020; Kirby, 2020). O ministro, então, foi substituído por Nelson Teich, que

inicialmente demonstrou discurso alinhado com a presidência. Entretanto, após divergências

científicas, principalmente, sobre o uso do medicamento Cloroquina e de medidas de isolamento

social, Teich também foi exonerado (Dyer, 2020).

O ministro da saúde Mandetta e o mundo dizem que a melhor prevenção é a população


ficar em isolamento social, mas o Bolsonaro pede para população sair nas ruas como se
nada estivesse acontecendo. Vão acreditar em quem? Na ciência dos cientistas, que estão
se desdobrando para orientar a sociedade a se prevenir, ou num presidente irresponsável
incapaz de contornar uma profunda crise? (...) (Comentário 34, período 2).

Este ministro Teich está por fora! O que está faltando nas pessoas é medo, pois já estão
saindo da quarentena em muitos lugares, estimulados pelo presidente, com seu exemplo e
fake news de bolsonaristas nas redes sociais contra governantes que defendem a
quarentena. Quero saber quem será responsável pelo crime de genocídio no Brasil? devido
à forma inconsequente da saída do isolamento social e abertura de comércios que não são
essenciais (Comentário 42, período 3).

Veja-se que, embora o sentido de ancoragem da representação social recaia sobre o

comportamento do presidente da república, os discursos analisados desvalidam a opinião do

presidente Bolsonaro e validam o discurso científico. Importante destacar, também, as

contradições apontadas por esses discursos. De um lado, tem-se os embates entre integrantes

do governo, e entre este e a ciência, constituindo o que se entende por universo reificado.

Esses conhecimentos, por sua vez, ao se entrelaçarem ao universo consensual, geram

representações diversas. No caso dos discursos dos internautas, o coronavírus é apontado,

implicitamente, como algo ruim, que deve ser combatido por meio da quarentena e isolamento

social. Porém, ao mesmo tempo, eles reforçam comportamentos que validam a atitude do

presidente diante da pandemia, quando desestimulam a adesão à quarentena e o cumprimento

das medidas de isolamento social, com incremento do comércio e outras atividades da

economia.

Nesta perspectiva, de acordo com Jaspal e Nerlich (2020), a representação de que o

isolamento social é necessário na pandemia de COVID-19 aponta para a mudança de

comportamento quanto ao estilo e rotina de vida, por meio do distanciamento. Por outro lado,

a negação da gravidade da COVID-19 foi entendida pelos autores como uma estratégia
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desadaptativa. Isto é, a representação de que o isolamento é uma ameaça aos direitos de ir/vir

e de liberdade faz com que algumas pessoas desobedeçam a tais medidas no cotidiano.

Todavia, os que não respeitam essas medidas podem ser rotuladas como egoístas e

irresponsáveis, imagens estas que foram observadas nos discursos dos internautas sobre o

comportamento do presidente Bolsonaro e de seus seguidores.

No que tange ao confronto político de Bolsonaro com as demais esferas do governo,

especialmente, no embate entre as intervenções na saúde, em detrimento da economia, os

sentidos de ancoragem das representações sociais aqui analisadas, remontam períodos na

história de crise sanitária e da saúde pública, a exemplo da Peste Negra. Segundo Nascimento

(2020), antes da Peste Negra chegar ao Brasil, houve a notificação de sua existência na cidade

do Porto. E o estabelecimento de quarentena aos navios vindos de Portugal, como medida

sanitária, levantou grande debate no país, sob a justificativa de que a medida afetaria,

negativamente, a economia brasileira. Esse debate entre saúde e economia, segundo a autora,

é recorrente em alguns contextos de epidemia. Do mesmo modo, no estudo de Idoiaga et al.

(2017), o processo de ancoragem emergiu de sentimentos de raiva às autoridades, que tinham

interesses em agradar empresários e não prejudicar a economia, ao invés de priorizarem as

ações de prevenção do Ebola.

Sabe-se, diante disso, que a maioria das medidas contra a COVID-19 tem

implicações socioeconômicas diretas, o que dificulta aos governantes minimizar,

simultaneamente, o impacto em ambos os setores. No entanto, a recuperação econômica do

país dependerá do sucesso das medidas adotadas para impedir a disseminação da COVID-19,

do tempo do isolamento social e de como as empresas se prepararam durante e após a

pandemia (Fernandes, 2020).

A Classe 1 (Coronavírus: política, saúde e sociedade) foi responsável por 49,71% dos

ST. Refere-se ao atendimento deficitário na área da saúde, em que o sentido de ancoragem recai,

assim, sobre as ações do governo no combate ao Coronavírus e o desamparo dos segmentos


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sociais mais vulneráveis. Destaca-se que o Período 1 apresentou maior afinidade com a classe,

sendo essa associação, estatisticamente, significativa (x2=75,7; p≤0,0001).

No dia 27 de janeiro de 2020, a OMS admitiu um erro na avaliação do risco global da

COVID-19, que foi classificada, inicialmente, como risco moderado. Porém, já apresentava risco

muito alto na China e com grande probabilidade de tornar-se uma pandemia. Para Croda et al.

(2020), isso pode ter interferido no tempo para a implementação de intervenções e contribuído

com a propagação do SARS-CoV-2 no Brasil e no mundo. Nessa mesma semana, foi

identificado o primeiro caso suspeito de Coronavírus no país e, a partir disso, foram

estabelecidas as diretrizes de vigilância epidemiológica para o enfrentamento da pandemia

(Croda et al., 2020) e aprovada a Lei 13.979 (Lei de Quarentena), que definiu estratégias de

enfrentamento, como isolamento social, quarentena, estudo epidemiológico, entre outras (Brasil,

2020).

O primeiro caso confirmado de Coronavírus no Brasil foi registrado em 26 de fevereiro

de 2020 em São Paulo. Com isso, a implementação de medidas de isolamento se intensificou e

muitas cidades adotaram o lockdown. Quanto ao tratamento farmacológico, o ministro interino

da saúde Eduardo Pazuello oficializou o uso de cloroquina e hidroxicloroquina, como medida

complementar aos pacientes de COVID-19 nas formas leve e grave, com distribuição em massa

desses medicamentos.

Não obstante, essas medidas sofreram críticas de governantes, entidades científicas e da

sociedade, principalmente, pelo possível atraso para tomadas de decisões, pois a pandemia já

estava disseminada. Ademais, o atual cenário epidemiológico tem infecções concomitantes,

como sarampo, dengue, H1N1, o que dificulta as medidas de saúde pública (Fernandes, 2020).

As representações sociais, identificadas na Classe 1, associam-se aos referidos eventos do início

da pandemia no país e foram ancoradas e assimiladas, a partir de concepções preexistentes sobre

a ineficácia dos serviços de saúde em epidemias ou surtos anteriores, como de dengue.

Os que procuram os hospitais com todos os sintomas leves eles, medicam e mandam voltar
para casa e ficar em isolamento domiciliar, sem fazer qualquer teste. Seria importante se
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tivéssemos testes suficientes, mas infelizmente no Brasil são ínfimos os testes (Comentário
25, período 1).

O governo diz para não termos pânico, isso não quer dizer que será uma catástrofe? Se aqui
não conseguem nem conter a epidemia da dengue ou dar o atendimento rápido e eficaz, com
certeza não vão dar conta do coronavírus. Ou seja, vamos morrer em filas tentando ter o
atendimento no SUS (Comentário 23, período 1).

Os trechos acima apontam para a análise histórica do processo de erradicação de doenças,

como a dengue, varíola e poliomielite, no sentido de mostrar a interseção entre ciência, política e

sociedade. Tanto a ciência precisa ter uma ferramenta efetiva e eficaz contra a doença, quanto é

importante uma decisão política forte e coesa para garantir os recursos necessários para a

implementação de medidas sanitárias capazes de conter determinada epidemia (Nascimento,

2020).

Existem, ainda, preocupações quanto à disponibilidade de testes diagnósticos, do

quantitativo de profissionais de saúde, Unidades de Pronto Atendimento (UPA), Unidades de

Terapia Intensiva (UTI) e de Respiradores Mecânicos. Nos primeiros meses da pandemia, o

sistema público de saúde brasileiro possuía cerca de 7,6 leitos de UTI por 100.000 habitantes e 2

leitos hospitalares por 1.000 cidadãos, sendo necessário aumentar esse quantitativo, assim como

a construção de hospitais de campanha (Canabarro, Ten, Martins, Martins, & Chaves, 2020;

Croda et al., 2020; Kirby, 2020). Nessa perspectiva, Canabarro et al. (2020) e Silva et al. (2020)

sugeriram que, para o cenário brasileiro, a combinação de estratégias farmacológicas e não-

farmacológicas pode impedir o colapso do sistema de saúde. Mesmo assim, devido à baixa

proporção do número de leitos para a quantidade de casos graves, somente a intensificação das

medidas de isolamento social, como a adoção do lockdown, seria suficiente para evitar

calamidade no sistema (Tarrataca, Dias, Haddad, & Arruda, 2020).

Outro ponto discutido, no início da pandemia, foi que os primeiros casos de Coronavírus

no país foram de pessoas de classe média alta, que fizeram viagens internacionais. No entanto,

rapidamente, o SARS-CoV-2 atravessou a hierarquia social e se espalhou pelas classes

socioeconômicas mais baixas. Isso é preocupante, pois estima-se que, aproximadamente, 55


15

milhões de pessoas vivam no Brasil em condições de pobreza e 13,5 milhões na extrema pobreza

(IBGE, 2017), sendo que a maioria habita as grandes periferias. Esse conteúdo esteve presente

nas evocações dos internautas.

Mandem de volta os repatriados para a China! O Brasil é um país onde as pessoas morrem na
fila do SUS por um atendimento na saúde, então ver nos jornais, que pessoas repatriadas se
encontram de quarentena com toda a mordomia é querer demais, em detrimento aos pobres
(...) (Comentário 09, período 1).

A pandemia vai sobrar para os mais pobres, que nem direito a hospitais possuem. Assim como
ocorre em outras epidemias no Brasil, locais pobres sofrem mais, ou seja, quase todo o Brasil
(Comentário 22, período 1).

Esses malditos chineses destroem a fauna silvestre no consumo de carnes (...) e ainda
disseminam essas malditas doenças mundo a fora com seu vírus chinês matando pessoas
inocentes (Comentário 53, período 1).

Dos discursos acima, emergem representações ancoradas no pensamento social,

discutido por Idoiaga et al. (2017), sobre o Ebola e, por Joffe (2013), sobre representações

sociais transculturais da AIDS. Nos discursos, aqui apresentados, as representações sociais sobre

o Coronavírus são semelhantes às representações dessas doenças, cujo conteúdo é a “condição

estrangeira” e o “outro”. Em outras palavras as representações sobre o Coronavírus trazem a

condição estrangeira como composição de uma estratégia projetiva. Pois, diante dessas ameaças,

o sentimento de impotência pode ser evocado em um período de crise (Joffe, 2013). Do mesmo

modo, os resultados vão ao encontro das representações que emergiram durante a propagação do

Ebola. Nelas, os estrangeiros, principalmente, africanos, eram responsabilizados pela

disseminação da doença (Idoiaga et al., 2017).

Assim, neste estudo, a referência aos repatriados, “malditos chineses”, bem como a

possibilidade de as pessoas em situação de pobreza sofrerem mais com a pandemia, convoca

padrões de defesa como meio de proteção. E esses padrões defensivos, conforme Joffe (2013)

aparecem como força motora subjacente à formação das representações sociais do Coronavírus,

na qual a ameaça colocada por ele ao Eu desloca a atenção para o outro (repatriados, “malditos

chineses” e as pessoas em situação socioeconomicamente desfavorecidas).


16

Outrossim, Jaspal e Nerlich (2020) consideram que a teoria das representações sociais de

Moscovici auxilia na compreensão das pessoas sobre a pandemia de COVID-19. Para os autores,

o processo de ancoragem e objetivação do novo Coronavírus também se assemelha a do

HIV/AIDS, no uso de metáforas de guerra, como combate contra “agentes biológicos” e luta

contra o “inimigo invisível” ou “praga homossexual” (Joffe, 2013). Assim, o uso das metáforas

“malditas doenças” e “vírus chinês”, no comentário 53, período 1, reveste de feição mais familiar

o desconhecido (Coronavírus). Ou seja, as metáforas objetificam a ameaça do Coronavírus nos

chineses.

Por fim, a Classe 2 (Desconfiança das estatísticas) foi responsável por 21,41% dos ST e

diz respeito à descrença dos internautas frente às informações acerca do número dos casos de

COVID-19. Destaca-se que o Período 2 apresentou maior afinidade com esta classe, sendo essa

associação, estatisticamente, significativa (x2=8,43; p=0,003).

Neste contexto, a China conseguiu reduzir a transmissão do Coronavírus,

principalmente, com três medidas, a saber, proteger os profissionais de saúde com equipamentos

de proteção individual; realizar testes em massa para identificar os casos sintomáticos e isolá-los;

detectar os assintomáticos e colocá-los em quarentena. No entanto, no Brasil, a população tem

acesso insuficiente aos testes, devido a dificuldades logísticas e geográficas. Os laboratórios

oficiais ficaram sobrecarregados e houve redução no orçamento de ciência e tecnologia, que

fomentava as universidades e institutos de pesquisa. Com isso, houve morosidade em testar os

casos suspeitos, pois, cerca de 80% dos casos eram leves e nem todos chegaram ao serviço de

saúde, além de o MS não possuir um banco de dados concreto, devido à quantidade de casos

subnotificados (Kirby, 2020; Ribeiro & Bernardes, 2020; Tarrataca et al., 2020).

Nessa perspectiva, um estudo do Imperial College do Reino Unido, que analisou a taxa de

transmissão de COVID-19 em 48 países, mostrou que o Brasil é o país com a maior

transmissibilidade (R0=2,81) (Bhatia et al., 2020; The Lancet, 2020). Além disso, a

subnotificação de casos, no país, também foi apontada no estudo de Ribeiro e Bernardes (2020),
17

o qual indicou que o número de casos é, possivelmente, 7.7 vezes maior do que os divulgados.

Assim, a plataforma COVID-19 Brasil (https://ciis.fmrp.usp.br/covid19), integrada por cientistas

de várias universidades brasileiras, reportou, a partir da taxa de letalidade do Coronavírus, que se

70% da população brasileira for infectada, pode haver 1,8 milhões de mortes, dados similares ao

modelo de predição elaborado por Canabarro et al. (2020).

O conteúdo representativo da Classe 2 se ancora nessa contradição entre os dados oficiais e

a subnotificação. Além disso, esta classe emergiu do mesmo subcorpus que constituiu a Classe 1

(subcorpus B), o que sugere a menção ao governo como conteúdo semântico comum, e o

descrédito em relação às informações e ações de combate ao coronavírus por este propagadas.

As estatísticas de casos confirmados são mentirosas! Temos inúmeros casos confirmados


em hospitais particulares e esse número de infectados e de mortes é muito maior que os
anunciados pelo governo (Comentário 05, período 2).

Desconfio dessas estatísticas, o número de mortes está muito baixo e há relatos nos
hospitais de que tem gente morrendo por suspeita do COVID-19, mas que não foram ainda
realizados os testes nelas, ou seja, não estão sendo contabilizado o número total de casos
do coronavírus no Brasil, e a estatística oficial do governo pode estar totalmente descolada
da realidade (Comentário 23, período 2).

Antes de chegar ao Brasil, o governo dizia que o coronavírus podia matar por pneumonia e
complicações pulmonares. Chegou a ser divulgado que causava inclusive problemas no
sistema nervoso e convulsões. Agora que já temos pelo menos um caso no Brasil, o
governo diz que é apenas um resfriado e que não há motivo para pânico, além disso não
tem tratamento específico (Comentário 25, período 1).

Tal resultado corrobora o apresentado pelo estudo de Do Bú, Alexandre, Bezerra, Sá-

Serafim e Coutinho (2020), que aponta o papel simbólico e pivô da figura dos chefes de

estado e seus posicionamentos a respeito da crise e disseminação do SARS-CoV-2. No

contexto brasileiro, segundo os autores, a evocação do termo presidente pode ou não se

vincular aos posicionamentos do governo de Bolsonaro. No presente estudo, pode-se afirmar,

com base no contexto dos discursos analisados, que as evocações do termo presidente não se

vincularam aos posicionamentos do governo de Bolsonaro, ou seja, os internautas se mostram

contrários às afirmações do presidente.


18

No momento, as principais ferramentas disponíveis para combater o COVID-19 são

as intervenções não-farmacológicas, como a quarentena e o isolamento social. Por isso, as

mídias devem ser utilizadas para propagar notícias corretas, com informações preventivas,

epidemiológicas e clínicas e o esclarecimento de fake news. Entretanto, poucas semanas após

o surgimento do novo Coronavírus na China, já circulavam rumores e teorias da conspiração

sobre sua origem, como uma arma biológica chinesa, por exemplo. Nesse contexto, algumas

mídias sociais associaram imagens de pessoas e produtos chineses ao SARS-CoV-2,

provocando desconfiança generalizada, racismo e xenofobia contra asiáticos (Depoux et al.,

2020; Pennycook, Mcphetres, Zhang, & Rand, 2020).

Foram relatadas, ainda, teorias de cura e tratamentos alternativos. O desabastecimento de

produtos, também foi alvo de fake news. Dessa forma, não apenas o vírus se espalhou

rapidamente, mas as inverdades sobre o mesmo, tornando-se uma infodemia. O que causou

pânico sobre a situação de saúde e economia (Depoux et al., 2020; Pennycook et al., 2020). Os

discursos, a seguir, trazem representações sociais, que podem estar ancoradas no fenômeno das

fake news que, de acordo com Do Bú et al. (2020), gera um conjunto de desinformações sobre

objetos sociais, a exemplo do Coronavírus, e contribui para a construção de representações

disfuncionais.

Essa estatística de casos confirmados é uma falácia. Os exames de confirmação somente são
feitos naqueles pacientes em estado grave (...) não há, segundo alguns relatos e pela fala dos
médicos, kits para realização de testes em número suficiente. E realmente não há (...) enfim,
saibam o número de infectados é infinitamente maior. Nosso cuidado deve ser redobrado!
(Comentário 27, período 2).

A mídia faz todo o alarde, o povo acha que todos vão morrer, a culpa é dos jornalistas,
deveriam informar melhor ao invés de propagar o desespero. Busquem dados de quantas
pessoas morreram só esse ano por dengue, sarampo e gripe comum. Quem está morrendo por
coronavírus? Acho normal pessoas com mais de 70 ou 80 anos morrer de um resfriado,
sempre foi assim. Agora, a maioria que teve a COVID-19, onde eles estão? O que sentiram?
A maioria está em casa de boa, sentiu um leve resfriado e nada demais (Comentário 34,
período 2).

Ademais, nota-se o entrelaçamento do universo reificado com o consensual. Para

Moscovici (2017), no contexto de formação das representações sociais, a mídia é fundamental


19

ao transmitir códigos normativos de comunicação e conduta. Nesse sentido, cotidianamente,

observa-se, nos mais variados meios de comunicação e interações entre as pessoas, a

veiculação e as trocas de informações formais e informais acerca do SARS-CoV-2 e da

COVID-19. Essas informações podem influenciar a forma como os brasileiros criam e

compartilham representações acerca dos objetos sociais mencionados (Do Bú et al., 2020).

Resultados semelhantes foram encontrados no estudo de Félicien, Fabrice e Fabrice

(2020) sobre as representações sociais do Coronavírus. As análises dos autores indicam que o

núcleo central das representações estava estruturado em torno de elementos de "teoria da

conspiração" e do preconceito com os asiáticos. Além disso, as mídias sociais tiveram uma

imagem de “vilã” por disseminarem fake news e gerarem pânico na população. Nessa ótica, os

resultados do estudo de Pennycook et al. (2020) apontaram que o motivo que leva as pessoas a

acreditarem em fake news sobre a COVID-19 está relacionado a dificuldades nas habilidades

cognitivas, como menor nível de criticidade a respeito da veracidade das informações e reduzida

capacidade de discernimento na tomada de decisão no que tange o compartilhamento das

mesmas. Isto é, a diminuição do pensamento reflexivo leva ao aumento da crença em notícias

falsas. Nos casos de COVID-19, em que as informações verdadeiras e de qualidade podem salvar

vidas, o ímpeto em desenvolver intervenções para combater a desinformação se torna

imprescindível.

Considerações Finais

O presente estudo objetivou analisar as representações sociais de internautas, a partir

de comentários a reportagens sobre o Coronavírus nos primeiros meses de pandemia no

Brasil. Por meio da Nuvem de Palavras e da AFC, obteve-se uma síntese do conteúdo dos

discursos, a partir da frequência das palavras mais evocados e a coesão entre si, nos três

períodos, sobre o tema. Nesse sentido, o conjunto de palavras revelou os sentidos de

ancoragem das representações que emergiram dos comentários dos internautas.


20

A respeito da CHD, foram obtidas três Classes, que emergiram do conteúdo total nos três

períodos de tempo. A Classe 3 (Desprestígio do Presidente) abordou a falta de credibilidade do

presidente Bolsonaro, diante da emergência em saúde pública. O sentido de ancoragem da

representação social recaiu sobre o comportamento do presidente da república, frente ao contexto

da pandemia da COVID-19, principalmente, no Período 3.

Na Classe 1 (Coronavírus: política, saúde e sociedade), foi abordado o atendimento

deficitário na área da saúde. O sentido de ancoragem recaiu sobre as ações do governo no

combate ao Coronavírus e o desamparo dos segmentos sociais mais vulneráveis, especialmente,

no Período 1. Por fim, a Classe 2 (Desconfiança das Estatísticas), abordou a descrença dos

internautas frente às informações acerca do número dos casos de COVID-19, principalmente, no

Período 2.

Pelo exposto, os diferentes sentidos de ancoragem das representações sociais

pesquisadas sugerem a força e a influência de um sistema de classificação, apoiado em um

paradigma teórico vigente, que atribui valor a cada objeto, pessoa ou fenômeno, organizando-

os em uma ordem hierárquica de importância. Assim, as representações sociais encontradas

foram apoiadas em valores negativos, construindo uma imagem única para os sentidos de

ancoragem: descrença nas instituições, nos governantes e na mídia. Diante da magnitude da

crise vivida pelos brasileiros, em razão da pandemia de COVID-19, considera-se que os dias

atuais são marcados por imagens negativas, que desqualificam e desprestigiam, de forma

generalizada, as instituições e seus representantes, como reminiscências históricas de um país

que pouco incentivou o pensamento reflexivo e crítico, inclusive sobre si mesmo e que se vê

pouco capaz de planejar seu futuro, a partir de sentidos positivos, como a confiança e o

crédito.

Quanto às limitações encontradas no decorrer da elaboração do estudo, destaca-se a

dificuldade em organizar o corpus textual de análise, devido aos períodos delimitados e à

quantidade de reportagens e comentários contidos nas mesmas. Com o percentual de 93,56% de


21

aproveitamento dos seguimentos de textos, não foi possível a utilização de todos os seguimentos

representativos de cada Classe. Porém, salienta-se que o tipo de pesquisa e processamento de

dados escolhidos mostrou-se adequados para compreender as representações sociais durante o

período de isolamento social, em que, no presente momento, a realização de pesquisas in loco é

limitada.

Sabe-se que a amostra analisada não foi representativa, porém, vislumbra-se que houve

convergência nas evocações analisadas, no que diz respeito aos sentidos de ancoragem

apreendidos. Deste modo, pode-se refletir, a partir dos achados desta pesquisa, que as medidas

de isolamento social, investimento em tecnologias de saúde e liderança política são

imprescindíveis para o combate à COVID-19 no Brasil.

Em contrapartida, não há dúvidas de que muitas dessas estratégias possam causar impacto

socioeconômico alarmante, que repercutirá em outra crise social no país. Porém, é preciso

refletir que essa consequência na saúde e na economia é produto da gestão pública brasileira e do

sistema capitalista e neoliberal, que vem gerando desigualdades sociais e dificuldades de acesso

ao sistema de saúde, emprego e renda, mazelas estas que foram potencializadas pela pandemia.

Portanto, é necessário que os governantes desenvolvam estratégias adaptadas ao cenário

brasileiro, considerando-se, também, o conhecimento científico, que pode repercutir na

diminuição de representações sociais negativas já cristalizadas e promover novas ancoragens. Ou

seja, é inegável a importância da convergência do binômio ciência-política para o enfrentamento

de calamidades públicas.

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comprar-29-do-uol-2903475.
25

Figura 1. Processamento por Nuvem de Palavras: Comparação entre os três períodos.


26

Figura 2.Dendrograma Representativo das Repartições em Classes, Frequência, Associação e Nível de


Significância das Palavras com a Classe.
Nota: *p≤0,0001 **p≤0,01 ***p≤ 0,05
27

Figura 3. Organização das Palavras Por Classe no Plano Fatorial.

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