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Universidade Federal de Pernambuco

Centro de Artes e Comunicação


Cultura Brasileira I
Letras - Português (licenciatura) - Tarde

Júlia Morais Sobral

Puro suco de modernidade

Recife
2023
1 INTRODUÇÃO
A literatura expressa traços de um país, sendo a materialização histórica e cultural de
um modo de estar no mundo. Publicado em 1906, na antologia Relíquias de Casa Velha, o
conto Pai Contra Mãe, de Machado de Assis, apresenta uma trama imersa no contexto
escravocrata brasileiro. No entanto, engana-se quem interpreta o conto como apenas um
recorte da sociedade brasileira, mesmo que a obra aborde esse tema de maneira tão explícita.
Explana-se já no início do conto o contraste étnico-racial entre pessoas pretas e
brancas quando, logo após a descrição de métodos de castigo para pessoas pretas
escravizadas e o ofício de se prender escravizados fugidos, o conto se afunila até a
apresentação do personagem que dedica a vida a esse ofício: Cândido Neves (ou Candinho).
Com isso, o autor já coloca Candinho como uma figura acima de pessoas pretas na hierarquia
social no enredo.
Além disso, Cândido, nome advindo da palavra latina candidus, significa literalmente
“branco”, “puro”, e tem seu nome completo com “Neves”, o que remete a ainda mais
branquidão. Sua esposa, Clara, cujo nome também vem do latim clarus, também remeteria ao
que é claro e branco. Temos assim, uma família branca cuja maior parte da renda era advinda
do sistema escravocrata da época. Ironicamente, em contraposição aos nomes do casal da
narrativa, Arminda, o nome da escrava fugida que é capturada por Candinho no fim do conto,
é de origem germânica e significa “a que possui armas”.
Considerando inicialmente os nomes dos personagens, é possível fazer a interpretação
dessa distância étnico-racial entre eles, apesar de essa questão não ser a única forma de
interpretar o texto.

2 IMPLICAÇÕES DA ESCOLHA DO TÍTULO “PAI CONTRA MÃE”


Ao abordar a escravidão de maneira tão evidente, a escolha de Machado de Assis pelo
título Pai Contra Mãe poderia parecer até equivocado, no entanto, essa escolha resultou
intencionalmente em diferentes implicações. Ao trazer as duas figuras familiares em sua
composição, o título “rebalanceia” o texto, obrigando o leitor a repensar a segregação
étnico-racial como a única faceta do conto, fazendo-o reconsiderar a possível pluralidade da
obra.
Seria equivocada a interpretação de que precisamos, enquanto leitores, escolher um
único “lado” para analisar a obra, visto que um fenômeno da obra não exclui outro. A
inteligência dessa escolha de título reside no fato que todas as camadas do conto se articulam
de formas diferentes e complementares, interagindo entre si. Parte do efeito que o conto
repercute no leitor é a potencialidade de relacionar todos esses elementos e, quanto mais se
articular todos esses elementos, mais proveitosa será a leitura.
Destarte, pai (Cândido) contra mãe (Arminda) é a evidência do peso colocado pelo
autor nas posições psicológicas das personagens em relação às posições sociais ocupadas por
elas. Assim, o desfecho da história gira em torno do choque de interesses do pai e da mãe,
explicitando as diferenças entre os personagens para criar dignamente um filho.
Sendo a literatura uma forma de expressão artística que acontece através da
articulação de ideias pelas palavras, as estruturas sintáticas escolhidas pelo autor de uma obra
são cruciais para os efeitos semânticos que elas são capazes de causar para quem a lê. Então,
seu título também poderia ser Preto Contra Branco, Homem Contra Mulher, Livre Contra
Escrava ou mesmo Eu e o Outro. Contudo, cada um destes implicaria em diferentes leituras,
abordagens e justificativas para a trama e atitudes dos personagens, que não teriam o mesmo
impacto que o título escolhido por Machado.

3 O PROCESSO DE IDENTIFICAÇÃO DA MODERNIDADE E O CONTO


Em oposição à Idade Média, que era marcada por certezas e verdades incontestáveis,
a Modernidade trouxe o desconforto da incerteza para o indivíduo. Enquanto o homem
medieval estava imerso na ideia da imutabilidade das coisas - e, dentre elas, da identidade -, o
homem moderno saiu desse “abrigo identitário”. Uma característica idiossincrática do
período moderno foi o rompimento com a ideia de que só poderíamos assumir uma
identidade enquanto pessoas, trazendo o conceito do “processo de identificação” no lugar do
conceito de “identidade”. O primeiro, diferentemente do segundo, é algo complexo e trouxe a
ideia da fragmentação, acarretando mais possibilidades de existência para o indivíduo.
Segundo Hall (2004), a fragmentação das identidades modernas acontece não só pela
sua desagregação, mas pelo seu deslocamento, que tem acontecido através de uma série de
rupturas nos discursos do conhecimento moderno. Isso caracteriza um processo de libertação
da prisão que uma única “máscara identitária” forma um indivíduo, mas que nós utilizamos
várias dessas “máscaras” ao longo da vida, que coexistem e podem se alterar ou ficar mais
evidentes dependendo do contexto no qual nos encontramos.
Dito isso, é importante ressaltar que a tarefa de “caçar escravos fugidos” não era vista
como um trabalho digno socialmente e era um trabalho muito difícil pois dependia
exclusivamente da “demanda”. Se não havia “demanda” não havia trabalho. A certa altura da
narrativa, com o avanço da gravidez de Clara e a preocupação com a situação financeira da
família por parte de Tia Mônica, Cândido “(...) quisera efetivamente fazer outra cousa (...)
mudar de pele”. Percebe-se aqui como o trabalho era parte fundamental da identidade do
personagem, pois exercer o trabalho é além de exercer o trabalho, é “mudar de casca”, é
mudar quem eu sou diante dos olhos do outro.
Mais tarde na trama, quando o filho de Cândido e Clara nasce e a situação financeira
da família, que já não era confortável, piora, Candinho cede aos apelos de Tia Mônica e
resolve abrir mão do seu bebê, levando-o para a Roda dos Enjeitados. No entanto, no
percurso até o abandono do filho, o nosso protagonista encontra Arminda, escravizada fugida
cuja captura poderia impedir a perda do filho dele. A preta luta pela sua liberdade e implora
pela misericórdia do caçador, alegando que estava grávida, mas a frustração de perder o filho
que Candinho havia experimentado há pouco pareceu não ser capaz de sensibilizá-lo o
suficiente para desistir de entregá-la. Ao entregar Arminda ao seu antigo patrão, Cândido
presencia o aborto que a escrava sofre e a consequente perda do bebê dela, mas fica feliz ao
receber a sua recompensa pela captura e não precisar mais abandonar o próprio filho,
levando-o para casa.
Quanto mais amor Machado deposita na relação entre Cândido e seu filho, mais ele
escancara a contradição do personagem em relação à escrava que vai perder o filho dela. Essa
dinâmica apresentada pelo autor aborda de forma implícita a complexidade dos indivíduos
com a fragmentação da identidade dos personagens. Como disse Hall (2004), “Dentro de nós
há identidades contraditórias, empurrando em diferentes direções, de tal modo que nossas
identificações estão sendo continuamente deslocadas”, o que é abordado na reviravolta do
conto. Assim, só é possível interpretar os personagens de forma fragmentada e
descentralizada.

4 “PAI CONTRA MÃE” COMO EXPRESSÃO DA REALIDADE BRASILEIRA E


DOS DESEJOS HUMANOS
O conto apresenta um homem livre, que apesar de pobre, é branco, contra uma mulher
preta e escravizada. Tendo a literatura nessa época o objetivo de retratar a vida de maneira
universal e particularizada ao mesmo tempo, o enredo foi um item expressivo da realidade do
Brasil. Infelizmente, é inegável que, mesmo com o passar do tempo, a nossa atual realidade
enquanto país é um resultado da sociedade desenhada por Machado no conto.
Para além de uma ilustração da realidade nacional, o conto também é uma peça
expressiva da complexidade que os indivíduos apresentam. Para que o leitor tenha o melhor
aproveitamento possível do texto, ele precisa compreender que os indivíduos estão inseridos
dentro de um contexto, considerando os lugares psicológicos e culturais que cada personagem
ocupa.
Se parte do que suponho ser parte do que veio antes de mim, meus potenciais são
reduzidos ou aumentados de acordo com o lugar de onde eu parto e estou: o contexto no qual
estou inserido. Isso significa que as nossas características enquanto indivíduos são
simbólicas, não naturais. Sendo a identidade formada na interação entre o “eu” e a sociedade,
esse fenômeno não é algo essencial para o indivíduo, não é algo natural ou permanente
(HALL, 2004). A complexidade com que Machado apresenta os sujeitos da trama os torna
reais e humanos, pois estão inseridos em contextos que foram fundamentais para o processo
de formação da identidade de cada um, o que não justifica, mas explica as atitudes de cada
um.
Assim, tal qual a identidade particular para Hall (2004), determinar que o conto é a
expressão da realidade brasileira talvez fosse tratar as realidades do conto como naturalmente
nacionais. Para Machado, não há elemento nacional, então muitos outros temas também
poderiam ser considerados expressões da nossa realidade nacional. Por isso, é válido ressaltar
que as situações desenhadas no conto podem ser consideradas componentes do cenário
brasileiro, acarretando em consequências que ainda afetam a nossa sociedade, mas que essa é
apenas uma das nossas realidades nacionais.

5 CONCLUSÃO
“O que se deve exigir do escritor antes de tudo, é certo sentimento íntimo, que o torne
homem do seu tempo e do seu país, ainda quando trate de assuntos remotos no tempo e no
espaço.” (ASSIS, 1986). Com isso, mesmo com a publicação do conto em 1906, exatamente
18 anos depois da Lei Áurea, Machado apresenta no conto um narrador mergulhado na
sociedade escravocrata, muito bem precisamente localizado socialmente, com ideologias e
posição de classe muito bem claras para o leitor.
É possível observar tais fatos a partir da atribuição por parte do narrador de
características essenciais de africanos e afrodescendentes, em geral, negativas. Percebe-se,
então, a hierarquia natural das raças, estabelecida pelo narrador. Pereira (2020) destaca o uso
do advérbio “naturalmente” ao longo do conto pelo narrador, apresentando uma ideia de
natureza e essencialidade ao longo do texto, como em “Clara queria naturalmente casar; tia
Mônica era naturalmente alegre e ajudava naturalmente a sobrinha nas tarefas de casa.
Depois, o utiliza para dizer que naturalmente ninguém ouviu os pedidos de ajuda de
Arminda.”
Imerso em um contexto de segregação étnico-racial da sociedade brasileira, o conto
retrata de formas diferentes a dor histórica sofrida pelos pretos, mas também a luta pela
sobrevivência familiar e a dor psicológica de se perder um filho. É essencial ressaltar que a
percepção de um desses fenômenos não exclui os outros, eles dialogam entre si ao longo da
narrativa.
Dessa forma, o conto é sobre a dor histórica sofrida pelos pretos, mas também sobre a
dor psicológica de se perder um filho. Com o cenário do Brasil escravocrata, Machado
expressou muitos sentimentos que vieram a se expressar com o conto, mesmo que tenha
abordado temas específicos de um período, abordou questões emocionais e psicológicas que
são atemporais.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ASSIS, Joaquim Maria Machado de. Instinto de nacionalidade. In: Obras Completas de
Machado de Assis, 3 vols. Rio de Janeiro: Ed. Nova Aguilar, 1997.

ASSIS, Joaquim Maria Machado de. Pai contra mãe. In: Relíquias da Casa Velha. 2 ed. Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 1977.

DICIONÁRIO DE NOMES PRÓPRIOS. Dicionário de Nomes Próprios, c2008. Página


inicial. Disponível em: https://www.dicionariodenomesproprios.com.br/candido/; Acesso em
13 de mar. 2023.

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 9. ed. Rio de Janeiro: DP&A,


2004.

MARCÍLIO, Fernando. Pai Contra Mãe. Globo, 2022. Disponível em:


http://educacao.globo.com/literatura/assunto/resumos-de-livros/pai-contra-mae.html; Acesso
em 13 de mar. 2023.

NAGAMINI, Eliana. Literatura e Cinema: a História como elemento de atualização no


processo de adaptação do conto “Pai contra mãe”, de Machado de Assis, para o cinema.
XI Congresso Internacional da ABRALIC: Tessituras, Interações, Convergências,
Universidade de São Paulo, 2012.

PEREIRA, P. H. R. A liberdade na ordem escravocrata: interpretações sobre o conto Pai


contra mãe, de Machado de Assis. Revista Da Faculdade De Direito, Universidade De São
Paulo, 115, 455-475, 2020. Disponível em:
https://doi.org/10.11606/issn.2318-8235.v115p455-475; Acesso em 15 mar. 2023.

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