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Introdução
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O método terapêutico usualmente utilizado em crianças autistas é comportamental: Análise do
Comportamento Aplicada (ABA - Applied Behaviour Analysis). Foi recomendada a Diego por seu
neuropediatra aos 3 anos, quando foi diagnosticado.
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Isso pode ser considerado um interesse restrito, padrão de comportamento autístico recorrente em crianças
e adolescentes dentro do espectro (SILVA, 2012).
Todavia, é preciso trabalhar e jogar com as vontades de Diego, como veremos
mais profundamente no próximo tópico, que trata da educação e da formação do ser social
na criança-indivíduo. Durkheim e Simmel enxergam a socialização como um processo,
uma prática, que mais do que o compartilhamento das tradições e valores já instaurados
pela sociedade às novas gerações criarão condições para a autonomia, emancipação
individual, tal como postulara Kant. E esse é o objetivo da prática terapêutica. Veremos
de perto esses elementos.
Quando nasceu, Diego era uma criança como qualquer outra, exceto por certas
características notadas e descritas por sua mãe em entrevista. No momento da
amamentação, não houve a esperada e calorosa troca afetiva, com olho no olho, entre mãe
e filho. Além da ausência de contato visual, não havia uma correspondência de estímulos
vocais maternos. Diego não se atentava quando chamado por seu nome, não apontava
para os objetos e podia ficar horas a fio assistindo televisão. Para Simmel, “o conceito de
sociedade significa a interação psíquica entre os indivíduos” (SIMMEL, 2006, p. 15).
Essa interação psíquica exige a reciprocidade entre os sujeitos envolvidos, o que nem
sempre acontece quando falamos de um indivíduo (criança ou adulto) autista. Isso porque
É impossível determinar se a criança autista não tem nenhuma ideia geral, uma
vez que não verbaliza seus pensamentos nem internalizou os códigos linguísticos. Apesar
dessa indeterminação, sabe-se que a linguagem é o meio fundamental através do qual o
indivíduo realiza sua interação social e cultural, “avançando em seu envolvimento social
e definindo sua própria identidade. Contudo, é na linguagem e na comunicação que se
concentra o maior obstáculo no autismo” (ORRÚ, 2012, p. 38-39).
Dado o diagnóstico e após o período de negação e luto pelo qual passaram os pais
de Diego, narrados por sua mãe, chegou o momento da aceitação e da procura por uma
intervenção terapêutica. O garoto conta, desde os 3 anos, com o acompanhamento de
psicólogas, Assistentes Terapêutica (A.T.), fonoaudiólogo, terapeuta ocupacional,
musicoterapia e psicomotricista. A interação social com esse grupo de profissionais visa
potencializar comportamentos corretos e diminuir comportamentos estereotipados ou
possíveis regressos: apontar, fazer contato visual, atentar-se ao nome; aprender a pedir, a
esperar, entre outros. Esses comportamentos, relata a mãe, seriam a base para entrar na
escola.
Além destes, as chamadas Atividades da Vida Diária (AVDs) também só foram
conquistadas após a intervenção terapêutica: o desfralde se deu com repetição por quadro
de registro; o autocuidado e a higiene pessoal também. Diariamente sua mãe lhe mostrava
as figuras correspondentes ao uso do banheiro, por exemplo, até que, pela repetição, se
mostrou desnecessário o uso das figuras.
Simmel (2006) chama de sociação as interações duradouras, objetivadas em
unidades específicas como Estado, família, corporações, igrejas, classes, associações etc.
Todavia, chama atenção para outras formações, modos de relação, que servem para
sustentar a sociedade tal como a conhecemos. Para ele, a sociedade é um “acontecer”
(Ibdem, p. 18), um processo dinâmico, cuja ação reciprocamente orientada resulta na
modificação mútua. Em outro momento, esse mesmo autor vai dizer que a sociedade nada
mais é do que “convivência sociável” (Ibdem, p. 65).
Ao acompanharmos uma das sessões de terapia de Diego, pudemos ver que a
interação ocorre profissionalmente orientada. Isso significa dizer que Diego muitas vezes
simplesmente não se importava com a presença da A.T., ignorando suas instruções e se
deleitando com suas vontades (olhar pela janela, deitar-se na cama). Por vezes, o garoto
interagia de acordo com suas vontades, sorrindo para ela ou mesmo lhe acariciando. O
objetivo da A.T., contudo, não era atingido nesses momentos de espontânea interação
entre ela e Diego. Seu interesse estava no aprendizado do pequeno homem. Sua função
era pedagógica. Ela ensinava-o a reconhecer os números de 0 a 10, algumas frutas e
objetos3. A cada acerto, Diego ganhava o que queria: alguns minutos na cama ou com
algum brinquedo colorido de seu agrado. O mais notável nessa sessão foi o esforço da
A.T. em chamar a atenção de Diego e mantê-la, trazendo suas mãos até os olhos e
dizendo: “Atenção Diego, aqui!”, para que o garoto lhe olhasse nos olhos e se
comprometesse com a atividade. Sua hiperatividade, contudo, dificilmente o mantinha
quieto sentado na cadeira por muito mais do que 30s.
Isso nos lembra o que Durkheim denominou de “espírito de disciplina”, que teria
como objetivo fundamental criar na criança “a moderação dos desejos e o domínio de si
mesmo” (DURKHEIM, 2018, p. 124). Certamente havia ali, naquela sala de terapia, um
processo de socialização em curso, porém, com seus percalços bem delineados. Como
veremos,
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Esse reconhecimento se dava da seguinte maneira: A A.T. mostrava para Diego duas figuras e perguntava
“Onde está o maracujá?”. Se Diego apontasse corretamente para a figura da fruta designada, ganhava o
reforçador positivo (elogios, cócegas, brinquedos, ceder a vontade da criança). Se errasse, a A.T. virava o
rosto para ele, negando-lhe o reforçador. Esse processo, explicou-nos a A.T., segue algumas etapas até
chegar na etapa independente (aquela em que a criança aponta sozinha para a figura correspondente),
passando pelo acompanhamento físico (a A.T. leva a mão da criança até a figura correta) e gestual (a A.T.
aponta). Isso também foi descrito na literatura, ver SILVA, 2012.
conjuntamente em direção a uma unidade no seio da qual esses
interesses se realizam. Esses interesses (...) formam a base da sociedade
humana (SIMMEL, 2006, p. 61).
A sociação, ou socialização, é um conceito alternativo elaborado por Simmel para
dar conta da complexidade do conceito de sociedade. Para ele, a sociedade “significa que
os indivíduos estão ligados uns aos outros pela influência mútua que exercem entre si e
pela determinação recíproca que exercem uns sobre os outros” (Ibdem, p. 18). Nesse
sentido, a sociedade é algo funcional, algo que os indivíduos fazem e sofrem ao mesmo
tempo e, por isso, dever-se-ia falar em sociação e não em sociedade. Podemos perceber
que o conceito de sociação/socialização, para Simmel, abarca a questão da reciprocidade,
tão cara a Weber, da mutualidade das relações sociais, e que dão origem a uma unidade,
ainda que transitória e em constante flutuação: dinâmica, portanto. Para ele, “a própria
sociedade, em geral, significa a interação entre indivíduos. Essa interação surge sempre
a partir de determinados impulsos ou da busca de certas finalidades” (Ibdem, p. 59).
Para pensar esse conceito, vamos analisar o projeto social que Diego passou a
integrar chamado Parque Azul. Com o objetivo de promover a interação de crianças com
autismo em ambiente natural e ampliar a generalização dos comportamentos que elas
aprendem nas terapias, o projeto ajudou a construir em Diego uma base social por meio
de atividades como brincadeiras tradicionais (cantigas de roda, cirandas), integração
sensorial (esponjas, tintas, cartolinas). Com isso Diego aprendeu e passou a aproximar-
se de outra criança para brincar (cumprimentá-la, participar das atividades propostas por
qualquer pessoa) e fez cinco amigos frequentes (abraçando-os independentemente,
chamando para brincar, demonstrando entusiasmo com a presença do colega, dividindo
seu próprio alimento, entre outros gestos de afeto). Além disso, o projeto auxiliou seus
pais criando uma rede de apoio entre as famílias que experienciavam as mesmas coisas.
Com esses exemplos vemos o conteúdo das formas de socialização postas em
jogo: no cumprimento, no gesto afetuoso, nas brincadeiras, no abraço, entre outros.
Ademais, a criação de um grupo entre as famílias afetadas demonstra que essa sociação
se deu não somente no nível infantil, mas contemplou também os indivíduos adultos
envolvidos. O projeto, como é aberto para crianças típicas e não somente autistas, ajuda
na promoção da equidade, da empatia; na redução do preconceito, e na difusão da
informação entre as crianças e seus pais. Simmel chama atenção para a existência dos
grupos, mostrando como eles exercem “efeitos mútuos” (SIMMEL, 2006, p. 19), i. é, ao
mesmo tempo em que os indivíduos formam os grupos, eles são determinados por esses
mesmos grupos formados.
Considerações Finais
Referências Bibliográficas
SILVA, Ana Beatriz Barbosa et al. Mundo singular – Entenda o autismo. São Paulo:
Fontanar, 2012.