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O processo de socialização em crianças autistas: um estudo de

caso a partir da teoria social clássica


Jordanna Fonseca Silva

Introdução

Este ensaio se propõe a refletir sobre o fenômeno da socialização, das interações


sociais humanas, da educação das novas gerações, tendo em vista um caso específico de
uma criança autista e os aportes teóricos da sociologia clássica de Durkheim e Simmel.
Nomearemos aqui essa criança de Diego.
Diego é uma criança de seis anos diagnosticado dentro do Transtorno do Espectro
Autista aos três, no nível severo ou grave, o autismo clássico (SILVA, 2012). Tem cabelos
loiros, olhos escuros, pele branca, e não apresenta qualquer indício de deficiência física.
Segundo Orrú (2012), o autismo é mais difícil de ser identificado, pois, diferentemente
de outras condições, ele não apresenta sinais físicos aparentes. De família de classe média,
foi possível a Diego, desde a constatação de seu diagnóstico, ser acompanhado por
terapeutas e profissionais especializados, cujos relatos serão descritos ao longo deste
ensaio. Também traremos o relato da mãe de Diego para analisar o processo de
socialização da criança autista, tendo em vista que ela é a pessoa mais próxima a ele com
convívio diário.
Ao caracterizar-se como um transtorno do neurodesenvolvimento, com
dificuldades marcantes na interação social, no desenvolvimento da linguagem, da
comunicação e dos comportamentos sociais, o autismo põe em xeque a teoria social
clássica, que enxerga no indivíduo socializado um ser social capaz de integrar-se aos
mundos sociais aos quais pertence, interagir e se comunicar conforme o que lhe foi
ensinado pelas gerações anteriores, interiorizando os elementos sociais através da
educação. Isso porque a criança autista, como veremos ao longo deste ensaio, pode não
desenvolver a linguagem verbal, ter rígidos problemas para entrar e manter relações
sociais, para interagir e desenvolver suas competências ou habilidades sociais, sendo
“uma existência humana estrangeira em qualquer lugar do mundo” (SILVA, 2012, p.
183).
Sabe-se que cada autista é único, assim como o são cada pessoa individual, e aqui
traçaremos o esboço de um estudo de caso, o que nos isenta de generalizações possíveis,
embora permissíveis a nível teórico. A escolha deste caso se justifica tendo em vista que
os sintomas do transtorno nomeado autismo são todos eles de origem ou de destinação
social, como colocado anteriormente: prejuízos na interação social, na comunicação, na
linguagem, no comportamento; a rotina rígida; os repertórios restritos e repetitivos de
interesses e atividades; o comprometimento na interpessoalidade, nas ações simbólicas
(ORRÚ, 2012). Nesse sentido, ainda que as causas do transtorno sejam genéticas,
biológicas, psíquicas, neurológicas, ambientais etc., as dificuldades atravessam elementos
de natureza eminentemente social.
Assim, cabe aqui uma reflexão sobre os processos de socialização da criança
autista e suas particularidades, em contraposição ao que a teoria social clássica entende e
explica. Tomaremos Durkheim, em especial, e suas concepções de sociedade, educação
e socialização; e Simmel e a noção de sociação/socialização. Partimos assim da hipótese
de que a socialização da criança autista não se dá nos mesmos moldes das crianças
típicas/“normais”, e que a teoria sociológica parte de um “homem médio” (DURKHEIM,
2014, p. 102) para explicação do mundo social.

A individualidade da criança autista e os processos de socialização: do diagnóstico à


intervenção

Uma das principais preocupações dos pais, cuidadores, amigos, profissionais da


saúde, que auxiliam no processo de socialização da criança autista diz respeito a como
manter sua individualidade tendo em vista as sobreposições e reprimendas próprias ao
processo de inserção social. Uma vez que, durante os processos de socialização, a criança
autista será levada a maximizar certos comportamentos esperados socialmente e
abandonar outros, o que restará dela nesse desenrolar?
Diego é um garoto apaixonado por atividades motoras. Gosta de passear, correr,
pular. O jump, mini cama elástica, é inclusive seu reforçador positivo1, usado pelas
terapeutas quando querem reforçar algum comportamento esperado. Por exemplo, agora
que estão trabalhando em sua alfabetização, se ele acerta o nome da letra cuja figura a
Assistente Terapêutica (A.T.) lhe mostrou, ele ganha alguns minutos no jump. Também
gosta de comer a todo instante, em especial alimentos amarelos2, sua cor preferida. Gosta
de assistir desenhos animados, escutar músicas infantis e ama um balanço.

1
O método terapêutico usualmente utilizado em crianças autistas é comportamental: Análise do
Comportamento Aplicada (ABA - Applied Behaviour Analysis). Foi recomendada a Diego por seu
neuropediatra aos 3 anos, quando foi diagnosticado.
2
Isso pode ser considerado um interesse restrito, padrão de comportamento autístico recorrente em crianças
e adolescentes dentro do espectro (SILVA, 2012).
Todavia, é preciso trabalhar e jogar com as vontades de Diego, como veremos
mais profundamente no próximo tópico, que trata da educação e da formação do ser social
na criança-indivíduo. Durkheim e Simmel enxergam a socialização como um processo,
uma prática, que mais do que o compartilhamento das tradições e valores já instaurados
pela sociedade às novas gerações criarão condições para a autonomia, emancipação
individual, tal como postulara Kant. E esse é o objetivo da prática terapêutica. Veremos
de perto esses elementos.
Quando nasceu, Diego era uma criança como qualquer outra, exceto por certas
características notadas e descritas por sua mãe em entrevista. No momento da
amamentação, não houve a esperada e calorosa troca afetiva, com olho no olho, entre mãe
e filho. Além da ausência de contato visual, não havia uma correspondência de estímulos
vocais maternos. Diego não se atentava quando chamado por seu nome, não apontava
para os objetos e podia ficar horas a fio assistindo televisão. Para Simmel, “o conceito de
sociedade significa a interação psíquica entre os indivíduos” (SIMMEL, 2006, p. 15).
Essa interação psíquica exige a reciprocidade entre os sujeitos envolvidos, o que nem
sempre acontece quando falamos de um indivíduo (criança ou adulto) autista. Isso porque

muitas das alterações apresentadas por crianças autistas ocorrem em


razão da falta de reciprocidade e compreensão na comunicação,
afetando, além da parte verbal, as condutas simbólicas que dão
significados às interpretações das circunstâncias socialmente vividas,
dos sinais sociais e das emoções nas relações interpessoais. (ORRÚ,
2012, p. 32).
Conforme foi crescendo, novas características surgiram. Além do notável atraso
da linguagem, comportamentos estereotipados apareceram, como bater na própria orelha
para autorregulação, padrões repetitivos e restritos de comportamento (seletividade
comportamental), como pular em lugares e horários impróprios, bater as mãos ou amarrar
os cadarços dos sapatos apenas de uma determinada maneira. Também foi relatado por
sua mãe que Diego não se esforçava para pedir as coisas, levando o adulto mais próximo
ao objeto que lhe interessava: por exemplo, puxando pela mão alguém até o copo d’água
se estivesse com sede. Outras dificuldades ocorriam, pois, ele apresentava uma baixa
tolerância à espera, em filas, no preparo dos alimentos; ou ainda externalizava verdadeiro
bloqueio ao escutar a palavra “não” quando executava algum comportamento
inadequado. Às vezes chegava a bater a cabeça no chão ou em objetos quando ficava
nervoso, sem reclamar de dor, características existentes em pessoas com autismo clássico
(SILVA, 2012).
A questão social do autista, seu desenvolvimento social, fica comprometida dadas
suas dificuldades. O “processo de incorporação da criança autista ao grupo social em que
vive” (ORRÚ, 2012, p. 41) se torna mais trabalhoso. Como existe o déficit linguístico,
com a linguagem prejudicada, além da apraxia da fala que acomete Diego, o processo
comunicativo acontece com mais prejuízos. Sobre a importância social da linguagem,
Durkheim afirma que

Ao aprender uma língua, aprendemos todo um sistema de ideias,


distintas e classificadas, e herdamos todo o trabalho do qual são
oriundas estas classificações, que resumem séculos de experiência. E
tem mais: sem a linguagem, não teríamos, por assim dizer, nenhuma
ideia geral, pois é a palavra que, ao fixar os conceitos, lhes dá
consistência suficiente para que eles possam ser manipulados
comodamente pelo intelecto. Portanto, foi a linguagem que nos
permitiu elevar-nos acima da pura sensação; e é desnecessário
demonstrar que a linguagem é, por excelência, uma coisa social.
(DURKHEIM, 2014, p. 60, grifos nossos)

É impossível determinar se a criança autista não tem nenhuma ideia geral, uma
vez que não verbaliza seus pensamentos nem internalizou os códigos linguísticos. Apesar
dessa indeterminação, sabe-se que a linguagem é o meio fundamental através do qual o
indivíduo realiza sua interação social e cultural, “avançando em seu envolvimento social
e definindo sua própria identidade. Contudo, é na linguagem e na comunicação que se
concentra o maior obstáculo no autismo” (ORRÚ, 2012, p. 38-39).
Dado o diagnóstico e após o período de negação e luto pelo qual passaram os pais
de Diego, narrados por sua mãe, chegou o momento da aceitação e da procura por uma
intervenção terapêutica. O garoto conta, desde os 3 anos, com o acompanhamento de
psicólogas, Assistentes Terapêutica (A.T.), fonoaudiólogo, terapeuta ocupacional,
musicoterapia e psicomotricista. A interação social com esse grupo de profissionais visa
potencializar comportamentos corretos e diminuir comportamentos estereotipados ou
possíveis regressos: apontar, fazer contato visual, atentar-se ao nome; aprender a pedir, a
esperar, entre outros. Esses comportamentos, relata a mãe, seriam a base para entrar na
escola.
Além destes, as chamadas Atividades da Vida Diária (AVDs) também só foram
conquistadas após a intervenção terapêutica: o desfralde se deu com repetição por quadro
de registro; o autocuidado e a higiene pessoal também. Diariamente sua mãe lhe mostrava
as figuras correspondentes ao uso do banheiro, por exemplo, até que, pela repetição, se
mostrou desnecessário o uso das figuras.
Simmel (2006) chama de sociação as interações duradouras, objetivadas em
unidades específicas como Estado, família, corporações, igrejas, classes, associações etc.
Todavia, chama atenção para outras formações, modos de relação, que servem para
sustentar a sociedade tal como a conhecemos. Para ele, a sociedade é um “acontecer”
(Ibdem, p. 18), um processo dinâmico, cuja ação reciprocamente orientada resulta na
modificação mútua. Em outro momento, esse mesmo autor vai dizer que a sociedade nada
mais é do que “convivência sociável” (Ibdem, p. 65).
Ao acompanharmos uma das sessões de terapia de Diego, pudemos ver que a
interação ocorre profissionalmente orientada. Isso significa dizer que Diego muitas vezes
simplesmente não se importava com a presença da A.T., ignorando suas instruções e se
deleitando com suas vontades (olhar pela janela, deitar-se na cama). Por vezes, o garoto
interagia de acordo com suas vontades, sorrindo para ela ou mesmo lhe acariciando. O
objetivo da A.T., contudo, não era atingido nesses momentos de espontânea interação
entre ela e Diego. Seu interesse estava no aprendizado do pequeno homem. Sua função
era pedagógica. Ela ensinava-o a reconhecer os números de 0 a 10, algumas frutas e
objetos3. A cada acerto, Diego ganhava o que queria: alguns minutos na cama ou com
algum brinquedo colorido de seu agrado. O mais notável nessa sessão foi o esforço da
A.T. em chamar a atenção de Diego e mantê-la, trazendo suas mãos até os olhos e
dizendo: “Atenção Diego, aqui!”, para que o garoto lhe olhasse nos olhos e se
comprometesse com a atividade. Sua hiperatividade, contudo, dificilmente o mantinha
quieto sentado na cadeira por muito mais do que 30s.
Isso nos lembra o que Durkheim denominou de “espírito de disciplina”, que teria
como objetivo fundamental criar na criança “a moderação dos desejos e o domínio de si
mesmo” (DURKHEIM, 2018, p. 124). Certamente havia ali, naquela sala de terapia, um
processo de socialização em curso, porém, com seus percalços bem delineados. Como
veremos,

a sociação é (...) a forma (que se realiza de inúmeras maneiras distintas)


na qual os indivíduos, em razão de seus interesses – sensoriais, ideais,
momentâneos, duradouros, conscientes, inconscientes, movidos pela
causalidade ou teleologicamente determinados –, se desenvolvem

3
Esse reconhecimento se dava da seguinte maneira: A A.T. mostrava para Diego duas figuras e perguntava
“Onde está o maracujá?”. Se Diego apontasse corretamente para a figura da fruta designada, ganhava o
reforçador positivo (elogios, cócegas, brinquedos, ceder a vontade da criança). Se errasse, a A.T. virava o
rosto para ele, negando-lhe o reforçador. Esse processo, explicou-nos a A.T., segue algumas etapas até
chegar na etapa independente (aquela em que a criança aponta sozinha para a figura correspondente),
passando pelo acompanhamento físico (a A.T. leva a mão da criança até a figura correta) e gestual (a A.T.
aponta). Isso também foi descrito na literatura, ver SILVA, 2012.
conjuntamente em direção a uma unidade no seio da qual esses
interesses se realizam. Esses interesses (...) formam a base da sociedade
humana (SIMMEL, 2006, p. 61).
A sociação, ou socialização, é um conceito alternativo elaborado por Simmel para
dar conta da complexidade do conceito de sociedade. Para ele, a sociedade “significa que
os indivíduos estão ligados uns aos outros pela influência mútua que exercem entre si e
pela determinação recíproca que exercem uns sobre os outros” (Ibdem, p. 18). Nesse
sentido, a sociedade é algo funcional, algo que os indivíduos fazem e sofrem ao mesmo
tempo e, por isso, dever-se-ia falar em sociação e não em sociedade. Podemos perceber
que o conceito de sociação/socialização, para Simmel, abarca a questão da reciprocidade,
tão cara a Weber, da mutualidade das relações sociais, e que dão origem a uma unidade,
ainda que transitória e em constante flutuação: dinâmica, portanto. Para ele, “a própria
sociedade, em geral, significa a interação entre indivíduos. Essa interação surge sempre
a partir de determinados impulsos ou da busca de certas finalidades” (Ibdem, p. 59).
Para pensar esse conceito, vamos analisar o projeto social que Diego passou a
integrar chamado Parque Azul. Com o objetivo de promover a interação de crianças com
autismo em ambiente natural e ampliar a generalização dos comportamentos que elas
aprendem nas terapias, o projeto ajudou a construir em Diego uma base social por meio
de atividades como brincadeiras tradicionais (cantigas de roda, cirandas), integração
sensorial (esponjas, tintas, cartolinas). Com isso Diego aprendeu e passou a aproximar-
se de outra criança para brincar (cumprimentá-la, participar das atividades propostas por
qualquer pessoa) e fez cinco amigos frequentes (abraçando-os independentemente,
chamando para brincar, demonstrando entusiasmo com a presença do colega, dividindo
seu próprio alimento, entre outros gestos de afeto). Além disso, o projeto auxiliou seus
pais criando uma rede de apoio entre as famílias que experienciavam as mesmas coisas.
Com esses exemplos vemos o conteúdo das formas de socialização postas em
jogo: no cumprimento, no gesto afetuoso, nas brincadeiras, no abraço, entre outros.
Ademais, a criação de um grupo entre as famílias afetadas demonstra que essa sociação
se deu não somente no nível infantil, mas contemplou também os indivíduos adultos
envolvidos. O projeto, como é aberto para crianças típicas e não somente autistas, ajuda
na promoção da equidade, da empatia; na redução do preconceito, e na difusão da
informação entre as crianças e seus pais. Simmel chama atenção para a existência dos
grupos, mostrando como eles exercem “efeitos mútuos” (SIMMEL, 2006, p. 19), i. é, ao
mesmo tempo em que os indivíduos formam os grupos, eles são determinados por esses
mesmos grupos formados.

Durkheim e a educação: formando o ser social na criança autista

O período escolar é único na vida de qualquer criança. É na escola que a criança-


indivíduo aprenderá não somente os conteúdos pedagógicos, será alfabetizada e
conhecerá os números e as ciências, mas, principalmente, terá vivências e experiências
sociais com outros colegas, seus semelhantes, que não se reduzem aos seus familiares.
Para a criança autista, todavia, esse período pode ser muito turbulento. Não pela
necessidade de criação de uma rotina. Na verdade, esse aspecto é o que menos
dificuldades ocasionaria na criança autista e, segundo Durkheim, em qualquer criança,
pois, todas teriam um apego à rotina, sendo ao mesmo tempo instável e “misoneísta”
(DURKHEIM, 2018, p. 126). As dificuldades se originariam, sobretudo, pela
obrigatoriedade de construir e manter laços e vínculos sociais. Nesta seção, veremos
como Durkheim define a educação para mostrar como o modelo educacional está
alinhado ao modelo de sociedade que, muitas vezes, pode ser inclusivo ou excludente.
Para começar, Durkheim entende que não há uma educação universal e única; que
ela variou historicamente de acordo com os tempos e os lugares (DURKHEIM, 2014, p.
46), isso porque cada sociedade elaborou um certo “ideal do homem” (Ibdem, p. 52), um
ideal não somente intelectual, mas também físico e, fundamentalmente, moral. Apesar
disso, a educação é um fenômeno universal, pois, “não há nenhum povo em que não exista
certo número de ideias, sentimentos e práticas que a educação deve inculcar em todas as
crianças sem distinção, seja qual for a categoria social à qual elas pertencem” (Ibdem, p.
104). É possível perceber que a educação repousa sobre uma base comum, uma vez que
a sociedade, para o sociólogo francês, só pode existir se houver uma homogeneidade entre
seus membros e que é função da educação perpetuar e fortalecer esta homogeneidade,
“gravando previamente na alma da criança as semelhanças essenciais exigidas pela vida
coletiva” (Ibdem, p. 53).
Nesse sentido, ele a conceitua como um fato social, ou seja, como uma maneira
de fazer que é externa aos indivíduos, capaz de exercer sobre ele uma coerção e que se
generaliza na extensão de uma determinada sociedade, tendo assim uma existência
própria, “independente de suas manifestações individuais” (DURKHEIM, 2019, p. 47).
A função primordial da educação, nesse sentido, é fazer com que o indivíduo interiorize
formas sociais pré-existentes, i. é, modelos societários que haviam antes mesmo de sua
existência individual.
Dessa forma, é possível considerar a educação como uma obra coletiva, uma vez
que não são os indivíduos que, particularmente, inventam os costumes e as ideias que
determinam a educação. Essas ideias e costumes são “o produto da vida em comum e
refletem suas necessidades” (DURKHEIM, 2014, p. 48), são obra das gerações anteriores.
Nesse sentido, para ele, “a educação desempenha acima de tudo uma função coletiva e
tem como objetivo adaptar a criança ao meio social no qual ela está destinada a viver”
(Ibdem, p. 62). Assim, quando Diego consegue ir ao teatro, sem a A.T. o acompanhando,
com outros colegas da escola, sem birra, sem choro, sem crise; ou andar enfileirado com
as mãos nos ombros da outra criança, sem problema aparente, a educação está cumprindo
seu dever de adaptá-lo ao meio social e às atividades que este meio desempenha.
No entanto, um dos limites dessa perspectiva durkheimiana está em entender a
educação somente como uma ação da geração mais velha sobre a mais jovem, fazendo
com que a criança incorpore, a partir da socialização com adultos já socializados, o mundo
social, desconsiderando as ações entre os pares, a própria agência da criança, ou da mídia
(GRIGOROWITSCHS, 2008). Assim, para ele, “a educação consiste em uma
socialização metódica das novas gerações” (DURKHEIM, 2014, p. 54). O meio para que
se efetue essa transmissão educacional, essa socialização, é a sociedade, a “personalidade
moral” (Ibdem, p. 61) que atravessa as gerações e as liga umas às outras.
A cada nova geração, diz-nos Durkheim, a sociedade se encontra com uma “tábula
quase rasa” sobre a qual ela se constrói novamente. O “quase” se justifica, pois, para ele,
a criança traz consigo os elementos da hereditariedade. Nesse sentido, a educação se torna
o meio pelo qual a sociedade se reproduz a si mesma, preparando “no coração das crianças
as condições essenciais da sua própria existência” (DURKHEIM, 2014, p. 53). Segundo
sua definição:

A educação é a ação exercida pelas gerações adultas sobre aquelas que


ainda não estão maturas para a vida social. Ela tem como objetivo
suscitar e desenvolver na criança um certo número de estados físicos,
intelectuais e morais exigidos tanto pelo conjunto da sociedade política
quanto pelo meio específico ao qual ela está destinada em particular
(Ibdem, p. 53-54).
Durkheim escorrega no evolucionismo positivista ao comparar as crianças à
“humanidade primitiva” ou aos “povos que ainda não ultrapassaram as formas mais
inferiores da civilização” (DURKHEIM, 2018, p. 123). Ainda, ao comparar o estado
infantil à hipnose, ele afirma que a criança está em estado de passividade mental e por
isso é bastante permeável ao exemplo e à imitação (DURKHEIM, 2014, p. 69). O mesmo
não se aplica para as crianças autistas. Vejamos.
Diego não responde com imitação aos comportamentos de seus pares, nem de seus
familiares ou terapeutas. Se falam e pedem que ele repita, ele continua calado ou, se
insistem muito e têm sua atenção, reproduz o respectivo fonema. Quanto ao exemplo, ele
não parece se importar tanto com o que acontece ao seu redor, fixando seus
comportamentos nas suas vontades e naquilo que lhe foi ensinado em terapias, seguindo
instruções.
Para Durkheim, a educação deve ser uma questão de autoridade (Ibdem). Mas isso
não significa violência ou repressão, nem medo ao castigo. A autoridade é um respeito,
transmitido entre as consciências fundamentalmente através da palavra e da linguagem
gestual. Para ele, “o mais importante é que o professor realmente sinta dentro de si a
autoridade, cujo sentimento ele deve transmitir” (Ibdem, p. 72). Em alguns momentos da
terapia, Diego se despede de seus terapeutas/tutores/professores, antes que a aula/terapia
acabe, ou ignora quando é chamado ou desvia sua atenção facilmente, pouco se
importando com a atividade proposta. Isso mostra que para o autista muito mais vale a
questão do afeto do que da autoridade, embora a autoridade seja fundamental. Sua mãe,
em entrevista, nos alertou que é “a autoridade máxima” na vida de Diego, o que se cumpre
com a obediência, o respeito e o carinho que ele nutre por ela.
Chegamos, então, ao ponto fundamental desta seção. A educação objetiva formar
o ser social, criar um novo ser na criança-indivíduo que nasce como um organismo
biológico, físico, psíquico e potencialmente social. “É preciso que, pelos meios mais
rápidos, ela substitua o ser egoísta e associal que acaba de nascer por um outro capaz de
levar uma vida moral e social” (DURKHEIM, 2014, p. 55). Esse ser social contém:

um sistema de ideias, sentimentos e hábitos que exprimem em nós não


a nossa personalidade, mas sim o grupo ou os grupos diferentes dos
quais fazemos parte; tais como as crenças religiosas, as crenças e
práticas morais, as tradições nacionais ou profissionais e as opiniões
coletivas de todo tipo (Ibdem, p. 54).
Apesar de partir de uma concepção de natureza humana egoísta e antissocial,
Durkheim entende que o homem deseja a educação, pois, apesar de parecer que a
sociedade modela os indivíduos de acordo com suas necessidades, numa relação de
“insuportável tirania” (Ibdem, p. 58), na realidade, ela age de acordo com os interesses
dos próprios indivíduos, uma vez que esse ser social, esse novo ser que surge em cada um
individualmente através da educação “representa o que há de melhor em nós, (...) o que
há de propriamente humano” (Ibdem).
É por isso que, diz-nos Durkheim, ao querer a sociedade, o indivíduo quer a si
mesmo, pois, o objetivo da ação educativa não é a repressão, a diminuição ou
desnaturalização do sujeito, mas sim sua amplificação, sua transformação em um ser
humano. Daí sua elaboração acerca da moral. Resultante da vida em comum, a moral
consiste na sujeição da nossa vontade individual em prol de um valor coletivo maior (o
dever, o bem). Para ele, a criança apreende o dever moral através de seus pais e
professores, mais especificamente através da linguagem e do comportamento deles.
Para Simmel, uma existência individual que não se ligasse às leis, que não
existisse externamente como ser social, que não se limitasse às normas, seria uma
“anomalia ética” (SIMMEL, p. 42), uma existência impossível. É possível pensar
especificidades na criança autista que, de acordo com essa conceituação, seria vista como
uma “anomalia ética”, uma vez que ainda não internalizou as normas sociais e tem
dificuldade em seguir certas leis ou agir conforme um ser socializado. Por exemplo,
durante a pandemia da Covid-19, Diego, como todas as crianças e adultos, foi
aconselhado e obrigado a utilizar máscaras protetoras em ambientes públicos, como
supermercados, shoppings etc., mas Diego não suporta um objeto externo tocando seu
rosto. Foi preciso que fosse criada uma lei que permitisse a crianças e adultos autistas
andarem sem máscaras, ainda que isso fosse contra sua própria proteção e saúde.

Considerações Finais

Vimos, ao longo deste ensaio, que as especificidades do autismo trazem consigo


uma marca fortemente social em suas maneiras de ser/estar no mundo. Partimos da
hipótese de que a socialização da criança autista não se daria nos mesmos padrões das
crianças típicas e que a teoria sociológica tem em vista um “homem médio” na explicação
do mundo social. Consideramos que esta hipótese foi parcialmente refutada, pois, embora
a teoria social parta de um indivíduo médio em suas elaborações teóricas, não deixa de
abarcar peculiaridades próprias à vida humana e social.
Nesse sentido, não podemos dizer que não há processos de socialização entre
crianças autistas, apesar deste mesmo processo se dar de maneiras muito diferentes em
cada criança e em cada autista. O autista interage, socializa, brinca, imagina, pensa,
executa todas essas atividades e outras de modo particular e único, conforme lhe foi
ensinado e conforme lhe é inerente, com suas dificuldades e facilidades. Pode não ter
facilidade para aprender a falar, mas não apresenta dificuldades em lidar com a rotina fixa
que a escola impõe ou, futuramente, um trabalho. Entra e mantém relações sociais,
apresenta afeto e carinho, cuidado e proteção.
Dessa forma, a teoria social clássica nos ajuda a pensar como os processos de
socialização são constitutivos da formação humana e que indivíduos com certas
dificuldades de interação e socialização, tais como os autistas, podem, em suas maneiras,
entender e serem entendidos por outros indivíduos, seus semelhantes.

Referências Bibliográficas

DURKHEIM, Émile. A educação moral. São Paulo: Edipro, 2018.

______. As regras do método sociológico. Petrópolis: Vozes, 2019.

______. Educação e Sociologia. Petrópolis: Vozes, 2014.

GRIGOROWITSCHS, Tamara. O conceito "socialização" caiu em desuso? Uma análise


dos processos de socialização na infância com base em Georg Simmel e George H.
Mead. Educação & Sociedade, vol.29, n.102, p.33-54, 2008.

ORRÚ, Sílvia Ester. Autismo, linguagem e educação – Interação social no cotidiano


escolar. Rio de Janeiro: Wak ed., 2012.

SILVA, Ana Beatriz Barbosa et al. Mundo singular – Entenda o autismo. São Paulo:
Fontanar, 2012.

SIMMEL, Georg. Questões fundamentais da sociologia. Rio de Janeiro: Zahar, 2006.

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