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GEOUSP - Espaço e Tempo, São Paulo, Nº 15, pp.

21 - 37, 2004

ESPAÇO PÚBLICO E ACESSIBILIDADE:


NOTAS PARA UMA ABORDAGEM GEOGRÁFICA

Angelo Serpa*

RESUMO:
No espaço público da cidade contemporânea, o “capital escolar” e os modos de consumo são os
elementos determinantes das identidades sociais. Aqui, diferença e desigualdade articulam-se no
processo de apropriação espacial, definindo uma acessibilidade que é, sobretudo, simbólica. Visto
assim, acessibilidade e alteridade têm uma dimensão de classe evidente, que atua na territorialização
(e, na maior parte dos casos, na privatização) dos espaços públicos urbanos. Mas, afinal, que
qualidades norteiam a apropriação social do espaço público na cidade contemporânea? Como explicar
a apropriação seletiva e diferenciada de espaços, que, em tese, seriam – ou deveriam ser – acessíveis
a todos? O presente trabalho pretende discutir essas e outras questões, baseando-se em uma
revisão bibliográfica comentada das contribuições filosóficas de Hannah Arendt, Jürgen Habermas,
Walter Benjamin e Henri Lefebvre. Em seguida, a partir da análise de exemplos concretos de espaços
públicos, em cidades como Salvador, São Paulo e Paris, objetiva-se uma aplicação empírica dos
conceitos discutidos, buscando-se elucidar as dimensões socioculturais e políticas da apropriação
social destes espaços urbanos.
PALAVRAS-CHAVE:
Espaço público, cidade contemporânea, acessibilidade, apropriação, identidade.

ABSTRACT:
In the public spaces of the modern city, the “school capital” and the means of consumption are the
elements that determine social identity. Here, difference and inequality join forces in the process of
occupation of space, defining an accessibility which is, above all, symbolic. Seen in this light,
accessibility and difference have a visible social content, which acts in production of territories (and,
in most cases, in privatization as well) within (of) urban public spaces. But, after all, what qualities
are behind the social appropriation of public spaces in the modern city? How can one explain the
selective and differentiated appropriation of spaces which, at least in theory, would be – or should
be – accessible to all? This work seeks to discuss this and other relevant issues, based on a
commented bibliographical review of the philosophical contributions made by Hannah Arendt, Jürgen
Habermas, Walter Benjamin and Henri Lefebvre. Next, based on an analysis of real examples of
public spaces in such cities as Salvador, São Paulo and Paris, the aim is to present an empirical
application of the concepts that have been discussed, in a move to shed light on the political and
socio-cultural dimensions of the social appropriation of these urban spaces.
KEY WORDS:
Public space, modern city, accessibility, appropriation, identity.

* Professor Adjunto Doutor do Departamento e Mestrado de Geografia, da Universidade Federal da Bahia.


E-mail: angserpa@ufba.br
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A Geografia pouco se ocupou da também simbólica, e a apropriação social dos


discussão acerca do espaço público urbano. espaços públicos urbanos tem implicações que
Com raras exceções, esse tem sido um tema ultrapassam o design físico de ruas, praças,
pouco explorado pelos geógrafos. Em um livro parques, largos, shoppings e prédios públicos.
lançado recentemente, Gomes (2002) busca Se é certo que o adjetivo “público” diz respeito
compreender, na contramão dessa tendência, a uma acessibilidade generalizada e irrestrita,
a contribuição da Geografia para o um espaço acessível a todos deve significar, por
entendimento do espaço público na cidade outro lado, algo mais do que o simples acesso
contemporânea, baseando-se em estudos de físico a espaços “abertos” de uso coletivo. Afinal,
caso no Brasil, França e Canadá. É um estudo que qualidades norteiam a apropriação social
pioneiro que pretende lançar as bases do espaço público na cidade contemporânea?
“geográficas” para análise deste tema, Como explicar a apropriação seletiva e
associando os conceitos/noções de espaço diferenciada de espaços, que, em tese, seriam
público e cidadania. Também o papel do Estado – ou deveriam ser – acessíveis a todos?
na conformação do espaço público urbano é O presente trabalho pretende discutir
discutido pelo autor. Gomes defende a idéia de essas questões, baseando-se em uma revisão
que tais pesquisas, na Geografia, devem bibliográfica comentada das contribuições
nortear-se pela concretude desses espaços, filosóficas de Hannah Arendt, Jürgen Habermas,
sem perder de vista as práticas e dinâmicas Walter Benjamin e Henri Lefebvre. Em seguida, a
sociais que aí se desenvolvem1 . partir da análise de exemplos concretos de espaços
A questão levantada por Gomes (2002) é públicos, em cidades como Salvador, São Paulo e
pertinente, mas é evidente a dificuldade de Paris 2 , objetiva-se uma aplicação empírica dos
muitos pesquisadores quando se trata de conceitos discutidos, buscando-se elucidar as
relacionar as dimensões políticas e sociais de dimensões socioculturais e políticas da apropriação
uma esfera pública urbana e os aspectos formais social destes espaços urbanos, em contextos por
e estruturais dos espaços públicos “concretos”. vezes muito distintos. Aqui, a análise das
Dialeticamente, forma e conteúdo são a um só semelhanças deve ter um peso equivalente à
tempo produtos e processos: são explicitação das diferenças, de acordo com a
autocondicionantes, auto-referentes e máxima de Milton Santos: as regiões e os lugares
historicamente determinados. Na análise do são “as distintas versões da mundialização”
espaço público urbano, forma e conteúdo são, (SANTOS, 1994: 46). Como, em um contexto de
portanto, indissociáveis, e uma discussão sobre homogeneização de espaços e técnicas, na escala
tal tema passa necessariamente pela difícil mundial, pode-se falar em apropriação social do
articulação entre os aspectos que dão espaço público urbano? Qual é, afinal, o significado
“concretude” à esfera pública urbana e aqueles do espaço público na cidade contemporânea,
de cunho mais abstrato, que denunciam seu expressão maior do capitalismo oligopólico e
caráter intersubjetivo e a necessidade de uma monopolista?
abordagem fenomenológica do problema.
Uma abordagem assim passa necessaria- 1. Entre ação e comunicação: as contribuições
mente pela discussão da noção de cidadania e de Arendt e Habermas
da ação política e, para falar em um conceito
Entre os chamados “filósofos do espaço
eviden-temente geográfico, pela análise da
público”, destacam-se, sem dúvida, as
acessibilidade. Esta última está estreitamente
contribuições de Hannah Arendt e Jürgen
vinculada, na demarcação dos territórios
Habermas. Na obra de Arendt, o espaço público
urbanos, à alteridade, contrapondo uma
aparece enquanto lugar da ação política e de
dimensão simbólica (e abstrata) à concretude
expressão de modos de subjetivação não
física dos espaços públicos urbanos. Pois, a
identitários, em contraponto aos territórios
acessibilidade não é somente física, mas
familiares e de identificação comunitária. Já para
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Habermas, o espaço público seria o lugar par necessidades econômicas mais imediatas
excellence do agir comunicacional, o domínio (Compare: Prado Jr.,1995).
historicamente constituído da controvérsia
A esfera pública burguesa
democrática e do uso livre e público da razão
desenvolve-se no campo de tensões entre
(Compare: Joseph, 1998).
Estado e sociedade, mas de modo tal que
Na concepção de Arendt, a ação política é ela mesma se torna parte do setor privado.
uma atividade que comprova imediatamente a A separação radical entre ambas as esferas,
pluralidade da condição humana. Seguindo a na qual se fundamenta a esfera pública
tradição kantiana e aristotélica, Arendt tenta burguesa, significa inicialmente apenas o
repensar a ação política a partir da capacidade de desmantelamento dos momentos de
julgamento, entendendo como tal o poder de reprodução social e de poder político
discernimento de cada ser humano; algo conjugados na tipologia das formas de
intercambiável a partir da possibilidade de dominação da Idade Média avançada. Com
comunicação entre os indivíduos, o que confere a expansão das relações econômicas de
um caráter intersubjetivo à esfera pública, ampliada mercado, surge a esfera do “social”, que
a partir do confronto de (diferentes) idéias e ações implode as limitações da dominação feudal
(Compare: d´Allones, 1995 e Prado Jr., 1995). e torna necessárias formas de autoridade
Que o poder de julgar é uma faculdade administrativa. À medida que é
especificamente política, no sentido indicado intermediada pelo sistema de trocas, a
por Kant, a saber: a capacidade de ver as produção liberta-se das competências da
coisas não somente do ponto de vista autoridade pública – e, por outro lado, a
pessoal, mas na perspectiva de todos que administração descarrega-se de trabalhos
se encontram presentes; melhor, que o produtivos. O poder público concentra-se
julgamento é uma das faculdades nos Estados nacionais e territoriais, eleva-
fundamentais do homem como ser político, se acima de uma sociedade privatizada
na medida em que ele é capaz de orientar (HABERMAS, 1984: 169)4 .
suas ações na esfera pública, no mundo
Com a evolução do capitalismo e o avanço
coletivo – são pontos de vista tão antigos
do liberalismo, dissolve-se de fato a relação original
quanto a experiência política. Os gregos
entre o público e o privado, através da
chamavam isso de perspicácia e
decomposição generalizada das características
consideravam a capacidade de julgar como
essenciais da esfera pública burguesa. Para
a virtude principal que conferia excelência
Habermas, duas tendências, dialeticamente
ao homem de Estado, em oposição à
interrelacionadas, marcam a decadência da esfera
sabedoria dos filósofos (Arendt, 1972:
pública: ela penetra setores cada vez mais
282)3 .
extensos da sociedade e, ao mesmo tempo, vai
Habermas foi buscar na mercantilização perdendo sua função política, no sentido de
da esfera literária ao longo do século XIX uma submeter os fatos tornados públicos ao controle
maneira de explicitar o declínio do uso público de um público crítico (Compare: Habermas,
da razão. Na visão do autor, os círculos literários 1984). A partir do momento em que as leis do
acabaram por perder sua independência frente mercado, que dominam a esfera dos negócios e
às exigências de “satisfação das necessidades” do trabalho, penetram também na vida privada
de públicos cada vez mais largos. O dos indivíduos, “reunidos” artificialmente em um
comportamento característico de quem busca o “espaço público”, a capacidade de julgamento
lazer deve ser visto, segundo Habermas, como – a razão – tende a transformar-se em
apolítico, já que isto está ligado ao círculo da consumo. A comunicação – pública – perde em
produção e do consumo e não pode gerar uma coerência e dissolve-se em estereótipos para
esfera pública liberada da preocupação com as o consumo individual (Prado Jr., 1995).
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Esse processo é sintomático, e sua


2. Seguindo a trilha de Benjamin... significação vai muito além da esfera da
arte. Generalizando, podemos dizer que a
O aparecimento de uma ideologia
técnica da reprodução destaca do domínio
“sentimentalista” nos magazines de sucesso, a
da tradição o objeto reproduzido. Na medida
partir da segunda metade do século XIX, marcou
em que ela multiplica a reprodução,
uma degradação evidente dos círculos literários
substitui a existência única da obra por uma
no continente europeu, como indica Habermas.
existência serial. E, na medida em que essa
Paralelo a esse processo, a consolidação de uma
técnica permite a reprodução vir ao
imprensa de massa, antes celebrada como uma
encontro do espectador, em todas as
instância fundamental para a emancipação dos
situações, ela atualiza o objeto reproduzido.
cidadãos, passa a favorecer, ao contrário, a
Esses dois processos resultam num
dispersão, a estupefação e a paralisia dos leitores-
violento abalo da tradição (Benjamin, 1996:
consumidores, despossuídos de sua capacidade
168-169).
de assimilação e de associação.
Com a degradação dos leitores em clientes-
consumidores, confirmam-se, meio século mais 3. A contribuição fundamental de Henri
tarde, as reflexões de Walter Benjamin sobre o Lefebvre
declínio crescente da experiência e da capacidade
O abalo da “tradição” em Walter Benjamin
de assimilar os acontecimentos externos à vida
pode ser explicado também pela brutal (e
privada dos indivíduos. Graças às novas
crescente) separação entre os conteúdos
tecnologias e aos monopólios econômico- econômicos e históricos no capitalismo. Para Henri
midiáticos, é cada vez maior o abismo entre Lefebvre, não é necessário um exame muito
intimidade e exterioridade, entre vida privada e atento das cidades modernas, das periferias
vida pública, marcando uma crise evidente na urbanas e das novas construções, para constatar
percepção e na capacidade de assimilação dos que tudo se parece. A dissociação, mais ou menos
indivíduos (Prado Jr., 1995). artificial, entre aquilo que chamamos “arquitetura”
A noção de experiência (Erfarhrung) é uma e o que chamamos de “urbanismo”, isto é, entre
das noções capitais da teoria de Walter Benjamin. o “micro” e o “macro”, não contribuiu para o
A ela se junta a noção de vivência (Erlebnis). A incremento da diversidade na morfologia urbana.
experiência está relacionada à memória, individual Ao contrário, o repetitivo substituiu a unicidade, o
e coletiva, ao inconsciente, à tradição. A vivência fatual e o sofisticado prevaleceram sobre o
relaciona-se à existência privada, à solidão, à espontâneo e o natural, o produto sobre a
percepção consciente, ao choque. Nas sociedades produção. Esses espaços repetitivos resultam de
modernas, o declínio da experiência corresponde gestos e atitudes também repetitivos,
a uma intensificação da vivência (Compare: transformando os espaços urbanos em produtos
Muricy, 1999). homogêneos, que podem ser vendidos ou
comprados. Não há nenhuma diferença entre eles,
Submete-se, portanto, a experiência à a não ser a quantidade de dinheiro neles
vivência, contrapondo as sensações fortes e o empregada. Reina a repetição e a quantificação.
choque à aptidão humana de imaginar e de julgar.
O que está em jogo aqui é a crise geral da Esses espaços possuem um caráter
percepção e da capacidade de julgamento, dentro visual cada vez mais pronunciado. Eles são
de um contexto de “reprodutibilidade técnica”. fabricados para o “visível”. Esse traço
Segundo Benjamin, com a reprodutibilidade dominante, a visualização (mais
técnica, a obra de arte se emancipa, destacando- importante que a “espetacularização” nela
se do ritual. A obra de arte reproduzida é cada implícita), mascara a repetição. As pessoas
vez mais a reprodução de uma obra de arte olham, confundindo a vida, o olhar, a visão.
criada para ser reproduzida. Constrói-se sobre planos e projetos.
Compram-se imagens. O olhar e a visão
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tornam-se intercambiáveis, eles permitem Lefebvre, 2000).


a simulação da diversidade do espaço social,
o simulacro da transparência (Lefebvre,
2000: 92)5 . 4. Alteridade e acessibilidade no espaço
público
Lefebvre vai conferir a esse espaço Os símbolos que compõem uma
homogêneo – “concebido” – um caráter abstrato, identidade social não são construções
em contraponto ao espaço absoluto, o espaço totalmente arbitrárias ou aleatórias, já que
vivido/percebido das representações e das sempre mantêm determinados vínculos com a
práticas espaciais cotidianas. Produto da violência realidade concreta. Ao mesmo tempo em que
e da guerra, o espaço abstrato é instituído pelo determina aspectos da vida em sociedade, o
Estado e, portanto, institucional. Ele serve de simbolismo está repleto de interstícios e de
instrumento para que os detentores do poder – graus de liberdade (Castoriadis, 1982, apud
político e econômico – destruam tudo aquilo que Haesbaert, 1997).
representa ameaça e resistência, em outras
palavras, abram caminho para que se A questão das identidades urbanas
homogeneízem as diferenças. O espaço serve, mantém-se insuficientemente explorada, mesmo
assim, ao poder institucional como um tanque de nos estudos de Antropologia. No entanto, parece
combate, instrumentalizando a homogeneização. consensual que “identidades” constroem-se
O sentido do espaço absoluto nada tem a ver sempre a partir do reconhecimento de uma
com o intelecto, guardando relação com o corpo, alteridade. Isso, no entanto, só pode acontecer
com as ameaças à existência (através de sanções onde há interação, transações, relações ou
diversas), com as emoções (colocadas à prova a contatos entre grupos diferentes (Barth, 1969,
todo instante). Este espaço é vivido, ele não é apud Uriarte, 2001). Para Bourdieu, o mundo social
concebido, é espaço de representação, mais que é também representação e vontade, e existir
representação do espaço (Compare: Lefebvre, socialmente é também ser percebido como
2000). distinto:
As reflexões de Lefebvre são sem dúvida As lutas a respeito da identidade (...)
fundamentais para a análise do papel do espaço são um caso particular das lutas das
público na cidade contemporânea. Se o espaço classificações, lutas pelo monopólio de fazer
público é, sobretudo, social, ele contém antes de ver e fazer crer, de dar a conhecer e de fazer
tudo as representações das relações de produção, reconhecer, de impor a definição legítima
que, por sua vez, enquadram as relações de poder, das divisões do mundo social e, por este
nos espaços públicos, mas também nos edifícios, meio, de fazer e desfazer grupos. Com efeito,
nos monumentos e nas obras de arte. A triplicidade o que nelas está em jogo é o poder de impor
ou tríade lefebvriana é também uma característica uma visão do mundo social através dos
subjacente à estrutura espacial da esfera pública princípios de divisão que, quando se impõem
urbana: a) as práticas espaciais, englobando ao conjunto do grupo, realizam o sentido e
produção e reprodução, lugares específicos e o consenso sobre o sentido e, em particular,
conjuntos espaciais característicos para cada sobre a identidade e a unidade do grupo,
formação social, assegurando continuidade em que fazem a realidade da unidade e da
um quadro de relativa coesão; b) as identidade do grupo (BOURDIEU, 2000).
representações do espaço, ligadas às relações
de produção, à ordem imposta, ao É no sistema de relações com o que lhe é
conhecimento, aos signos e códigos, às relações externo, ou seja, com a alteridade, que a
“frontais”; c) os espaços de representação, territorialidade pode ser definida. Ela está
apresentando simbolismos complexos, impregnada de laços de identidade, que tentam
expressão do lado clandestino e subterrâneo de alguma forma homogeneizar esse território,
da vida social, mas também da arte (Compare: dotá-lo de uma área/superfície minimamente
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igualizante, seja por uma identidade territorial, 5. Espaços públicos para as classes médias?
seja por uma fronteira definidora de alteridade. Uma pesquisa de pós-doutorado,
Importante também é a distinção entre desenvolvida recentemente no Laboratório Espaço
“diferente” e “desigual”. Enquanto a e Cultura, da Universidade de Paris IV, mostra que
desigualdade exige um parâmetro comum, a concepção e implantação de novos parques
classificatório, que permita uma comparação públicos, em Paris e Salvador, a partir dos anos
global, “em rede”, a diferença stricto sensu o é 1990, estão sempre subordinadas a diretrizes
no sentido de alteridade, não havendo, a políticas e ideológicas (Compare: Serpa, 2003).
princípio, a possibilidade de hierarquização, já Na cidade contemporânea, o parque público é um
que se manifesta quando confrontada com outra meio de controle social, sobretudo das novas
identidade (Compare: Haesbaert, 1997). classes médias, destino final das políticas públicas,
No espaço público da cidade contem- que, em última instância, procuram multiplicar o
porânea, o “capital escolar” e os modos de consumo e valorizar o solo urbano nos locais onde
consumo são os elementos determinantes das são aplicadas. Mais precisamente, as novas classes
identidades sociais. Aqui, diferença e desigualdade médias são representadas, nas cidades
articulam-se no processo de apropriação espacial, contemporâneas, pelos novos grupos de
definindo uma acessibilidade que é, sobretudo, trabalhadores qualificados, engenheiros e técnicos,
simbólica. Visto assim, acessibilidade e alteridade que surgem em função da evolução das condições
têm uma dimensão de classe6 evidente, que atua de produção, pelas classes médias assalariadas
na territorialização (e, na maior parte dos casos, com um nível elevado de estudos, pelas novas
na privatização) dos espaços públicos urbanos. O (ou renovadas) categorias profissionais, ou,
conceito de habitus é sem dúvida a melhor simplesmente, pelo setor terciário inteiro (Bidou,
ferramenta disponível para perceber como a 1984), salvo evidentemente o “novo proletariado”
dimensão de classe age sobre cada indivíduo na terciário, constituído de categorias de trabalhadores
esfera cultural (Garrigou,1998). A identidade social pouco qualificados, mal remunerados e/ou com
se define e se afirma a partir de uma alteridade empregos precários (Préteceille, 2002). Trata-se
que expressa também uma dimensão de classe, de posições sócio-econômicas equivalentes, onde
uma alteridade ao mesmo tempo “desigual” e as relações e representações estão “socialmente
“diferente”. Desse modo, a acessibilidade ao referenciadas”. Pensa-se aqui no conceito de
espaço público da/na cidade contemporânea é, em “habitus” (Bourdieu, 1979), naquilo que concerne
última instância, “hierárquica”. os comportamentos das classes médias ao se
Os estilos de vida são produtos sistemáticos apropriarem do espaço público contemporâneo.
do habitus, que, percebidos a partir das relações No mundo ocidental, o lazer e o consumo
sociais, transformam-se em sistemas de signos das novas classes médias são os “motores” de
qualificados socialmente (como distintos, vulgares, complexas transformações urbanas, modificando
etc.). O fundamento da alquimia que transforma áreas industriais, residenciais e comerciais
a distribuição do capital em sistema de diferenças decadentes, recuperando e “integrando”
percebidas está, portanto, na dialética que waterfronts, desenvolvendo novas atividades de
contrapõe o habitus e as condições materiais comércio e de lazer “festivo”. Isto é
objetivas. Trata-se de um “capital simbólico”, particularmente evidente nos Estados Unidos,
indutor de propriedades distintivas, um capital onde as experimentações se multiplicam, antes
pouco conhecido na sua verdade objetiva. O gosto, de se “exportar” para o resto do mundo
propensão e aptidão à apropriação – material e/ (Augustin, 2001). Em Salvador, o Parque Costa
ou simbólica – de objetos e práticas, constitui-se Azul foi implantado no lugar de um antigo hotel
num princípio gerador de estilos de vida distintos, em ruínas, margeando a orla atlântica,
num conjunto unitário de preferências distintivas enquanto o Jardim dos Namorados foi projetado
que exprimem uma intenção “expressiva” para dar origem a uma zona de pedestres e
(Compare: Bourdieu, 1979). ciclistas na beira do mar. Em Paris, o Parque de
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Bercy foi construído paralelo ao Rio Sena, e bebidas. Esculturas estão dispostas em
enquanto o Parque André-Citroën está pontos-chave nos dois espaços, ao lado de
orientado em direção ao mesmo rio, que os painéis (no Parque Costa Azul) e de pórticos de
criadores do parque entendem como o “quarto cerâmica colorida (no Jardim dos Namorados).
limite do projeto” em um jardim rodeado de água Pequenas placas indicando a autoria das obras
(Compare: Serpa, 2003). marcam um itinerário de “museu ao ar livre”.
Os novos parques da orla atlântica de Nas grandes cidades do Brasil e do mundo
Salvador vêm alimentar e “coroar” um processo ocidental, a palavra de ordem é, portanto, de
de valorização imobiliária das áreas nobres da investir em espaços públicos “visíveis”, sobretudo
cidade, acrescentando novas amenidades físicas os espaços centrais e turísticos, graças às parcerias
aos bairros que já possuem melhor infra-estrutura entre os poderes públicos e as empresas privadas.
de comércio e serviços, bem como vias expressas Estes projetos sugerem uma ligação clara entre
para circulação de veículos particulares. A lógica “visibilidade” e espaço público. Eles comprovam
da localização dos parques na Capital baiana também o gosto pelo gigantismo e pelo “grande
obedece também ao princípio de priorizar áreas espetáculo” em matéria de arquitetura e
com algum interesse turístico, próximas a grandes urbanismo. De uma forma deliberada, os novos
equipamentos como o Aeroporto Internacional, o parques públicos se abrem mais para o “mundo
Centro de Convenções e os shoppings centers urbano exterior” e se inscrevem num contexto
Iguatemi e Aeroclube Plaza. Em Paris, os parques geral de “visibilidade completa” e espetacular.
já nascem como elementos de valorização de Projetados e implantados por arquitetos e
bairros novos, que surgem em antigos terrenos paisagistas ligados às diferentes instâncias do poder
industriais da capital francesa. Junto a eles, novos local – verdadeiras “grifes” do mercado imobiliário–
equipamentos culturais e de lazer são os novos parques tornam-se importante
acrescentados ao tecido urbano, com o intuito de instrumento de valorização fundiária, como
transformar áreas decadentes em pólos de “lazer comprovam os estudos de caso analisados na
festivo” da cidade. Isso é evidente em Bercy, onde, pesquisa anteriormente citada (Compare: Serpa,
junto ao Parque, surgem um grande cinema 2003).
multiplex e uma grande praça de alimentação As pesquisas desenvolvidas na França
(“Bercy Village”) nos antigos depósitos de vinho, mostraram, sobretudo, que as operações de
outrora engarrafado ali (Compare: Serpa, 2003). urbanismo que deram origem aos grandes parques
Existem também semelhanças evidentes em Paris têm muitos pontos em comum com
quanto aos materiais utilizados e aos equipamentos aquelas desenvolvidas nas metrópoles de terceiro
implantados no Parque Costa Azul e no Jardim dos mundo e, também, em Salvador. Pode-se afirmar
Namorados com outros projetos realizados ou em que fazemos as mesmas coisas quando estamos
fase de execução na capital baiana (caso, por em um parque assim, na França e no Brasil. Na
exemplo, dos Parques do Abaeté7 e das Esculturas) verdade, estamos diante de um estilo de vida de
ou em outras cidades do país. O Parque Costa Azul classes médias, que homogeneíza as diferenças
acolhe em seu interior alguns restaurantes, culturais em prol de modos de consumo
equipamentos esportivos e áreas de jogos para mundializados. É claro que as classes médias
crianças. Um anfiteatro serve de palco para shows francesas são muito mais numerosas e que seu
e espetáculos de teatro gratuitos. O Jardim dos poder de compra é incomparavelmente maior que
Namorados apresenta também playgrounds para no Brasil. Mas, para quem foi a Franca buscando
crianças, um restaurante e áreas reservadas à diferenças, a quantidade de semelhanças
prática de esportes. Uma pista de ciclismo liga este encontradas não é de forma alguma negligenciável.
último ao Parque Costa Azul, graças a uma Projetos assinados por arquitetos e paisagistas
passarela sobre a Avenida Otávio Mangabeira. de renome, aqui e lá, servem para valorizar
Ao longo do caminho, no Jardim dos Namorados, bairros de classe média, permanecendo
encontram-se quiosques para venda de comidas distantes e inacessíveis para um público de perfil
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mais popular que habita as periferias dos domicílios pesquisados têm um carro
metropolitanas das duas cidades. Eventos estacionado na garagem (Rocha, 1998). Deste
musicais como aqueles que acontecem no modo, ao priorizar a implantação de novos
Parque da Cidade e no Parque Costa Azul, em parques e praças na orla atlântica de Salvador, em
Salvador, estão também na ordem do dia nos detrimento da orla suburbana - onde a renda média
parques parisienses. da população é de um a três salários mínimos - o
Este é, por exemplo, o caso do Parque de governo e a prefeitura acabam discriminando
La Villette, em Paris, intimamente ligado a grandes grande parte da população soteropolitana, justo
equipamentos culturais, como a Cidade da Música aquela com mais dificuldades de deslocamento e
(um grande complexo musical, que abriga salas falta de opções de lazer. Em uma cidade, onde
de exposições, sala de concertos, auditórios, grande parte da população anda a pé, por falta de
conservatório e apartamentos para músicos), o recursos para utilizar o transporte público, não é
Zenith (grande teatro para concertos de música difícil perceber para que perfil de usuário foram
pop) e a Cidade da Ciência (museu da ciência e da pensados o Parque Costa Azul e o Jardim dos
indústria), além do Cabaré Selvagem, da Géode Namorados.
(um cinema para exibição de filmes em três Mesmo que o discurso oficial defenda a idéia
dimensões) e dos Teatros Internacional de Língua de que os novos equipamentos têm fomentado
Francesa e Paris-Villette. Exposições, espetáculos um novo comportamento nas atividades de lazer
de circo, peças de teatro, festivais de cinema, dos baianos, até então restritas à praia, poucos
concertos de jazz, de música clássica e de música se beneficiam, além dos turistas e dos moradores
pop fazem parte do cotidiano do lugar. O público é do entorno, dos novos parques e praças. Em geral
jovem e diversificado, cresce a uma taxa de 15% distantes dos bairros periféricos da cidade, os
ao ano, mas a maior parte dos consumidores da novos equipamentos vêm segregar ainda mais a
“cultura” de La Villette têm diploma de curso população de baixa renda. Uma reportagem do
superior ou estão cursando a universidade. Jornal A Tarde faz um relato pormenorizado sobre
Pesquisas realizadas pelo Estabelecimento Público a adoção de praças e logradouros públicos por
do Parque de La Villette mostram que, em 1992, empresas privadas, através do Programa de
os usuários do parque com nível elevado de Adoção de Praças, Áreas Verdes, Monumentos e
estudos constituíam 61% do total de visitantes. Espaços Livres, da Prefeitura Municipal. Em 1999,
Em 1993 e 1996, esse percentual oscilou para foram aprovados sete projetos e oito estavam
57% e 55%, respectivamente (EPPGHLV, 1996). em andamento na capital baiana. Segundo o jornal,
Pode-se falar aqui de um fraco sentimento de a população “não precisa mais temer a
pertencimento a esse tipo de espaço público entre descontinuidade política, pois as empresas ficam
as classes populares, de uma “recusa a se deixar responsáveis pela manutenção dos benefícios, e
guiar por aqueles que se consideram os únicos a para os empresários serve como um veículo de
ter legitimidade para definir o que é cultura” marketing” (JORNAL A TARDE, 22/08/1999). Uma
(Ballion, Amar & Grandjean, 1983: 52)8 . análise da distribuição dos quinze projetos
Em Salvador, das três milhões e 691 mil anteriormente citados confirma uma concentração
viagens feitas diariamente pelos habitantes da das intervenções em áreas consideradas nobres,
cidade, um milhão e 70 mil são feitas a pé, de como a Praça Marconi (na Pituba), a Praça do
acordo com uma pesquisa da Superintendência de Iguatemi, o Parque da Cidade (no Itaigara) ou a
Transportes Públicos, da Prefeitura Municipal. As Avenida Antônio Carlos Magalhães. A prefeitura
causas apontadas pelo estudo - que contemplou justifica com “a escassez de recursos, que não
600 mil domicílios - para este fato são, além das permite que se atenda à demanda de obras e
dificuldades financeiras (a principal), as serviços que a comunidade reclama, a necessidade
necessidades de deslocamentos curtos, a de unir esforços do Poder Público com a iniciativa
deficiência do sistema de transportes e a tradição privada e grupos sociais organizados, para a
das caminhadas em festas populares. Apenas 21% implantação, conservação e manutenção de
Espaço Público e Acessibilidade: Notas para uma abordagem geográfica, pp. 21-37 29

praças, áreas verdes, monumentos e espaços classes de renda mais alta, criando ao seu modo
livres da cidade” (JORNAL A TARDE, 22/08/1999). cercas, pátios, guaritas, jardins e estacionamentos
(Macedo, 1995).
6. Quando as classes populares privatizam os No Conjunto José Bonifácio, cercados os
espaços públicos prédios de apartamentos, começa a disputa interna
pela ocupação e apropriação do espaço
O Conjunto Habitacional José Bonifácio,
privatizado. Ganha em regra quem grita mais alto
localizado no bairro de Itaquera, na periferia leste
nas assembléias dos condôminos. O que prevalece
de São Paulo, com mais de 250 mil habitantes,
são os estacionamentos, com garagens e lojas
equivale em dimensão e população a várias cidades
de construção precária: ocupam 41% da área total.
médias do Brasil. Para seu assentamento o relevo
A percentagem de áreas ajardinadas e terrenos
preexistente foi arrasado e, para isto, os
baldios nos espaços internos aos prédios é alta,
movimentos de terra foram gigantescos (Macedo,
cerca de 29%. Mas, nos prédios com menos
1987). O conjunto é um exemplo clássico da
espaço a tendência é a redução e, em alguns casos
política oficial nas últimas décadas do século XX,
mais radicais, a total eliminação das áreas
ditada por padrões estabelecidos pelo BNH e pelas
ajardinadas no interior das edificações. Os terrenos
companhias estaduais de habitação, que
baldios, “incorporados” aos prédios vizinhos e
caracterizam um absoluto desprezo pela qualidade
cercados, ou apresentam declividade muito alta e
do projeto de arquitetura e urbanismo, com clara
são abandonados pelos moradores, ou servem
preferência por soluções uniformizadas (Bonduki,
como varal de roupas coletivo (Serpa, 1997). No
1992).
centro do bairro, a situação atual mostra a maior
O centro de Itaquera, fortemente impactado parte dos terrenos baldios – que aparecem na
com a construção destes conjuntos, é, por seu planta de 1980 como espaços “abertos” –
lado, um exemplo típico de “tecido urbano privatizados e cercados. As leis municipais de
tradicional”, onde a morfologia é gerada pela parcelamento do solo prevêem multas altas para
utilização dos elementos de composição urbana os donos dos terrenos não cercados (Serpa,
que possuem forte interdependência, originando 1996).
espaços que guardam relação com a cidade
A privatização dos espaços livres de uso
histórica, claramente baseados na formação de
coletivo é, no entanto, um problema que atinge
percursos, quarteirões, praças, largos, etc. (Rigatti,
as cidades como um todo, sem distinção de
1995). No conjunto habitacional a sensação é
classes, como nos mostram as chamadas
aquela de quem caminha num labirinto e isso se
“invasões de colarinho branco”, em Salvador. São
deve em grande parte à privatização de espaços
condomínios que ocupam terrenos com
considerados no projeto original como “públicos”.
playgrounds e áreas de lazer (de uso restrito aos
Embora esses espaços já constassem no memorial
moradores dos prédios), são escolas e faculdades
descritivo de cada prédio, não era prevista a
particulares que levam seus muros alguns metros
construção de muros. A situação atual resulta do
à frente para abrigar mais laboratórios e salas de
fato de que os mutuários – em grande parte por
aula (de uso restrito aos estudantes daquelas
pressão da própria prefeitura, no sentido de
instituições). O outro lado da moeda mostra uma
legalizar e regularizar as áreas condominiais –
Salvador favelizada, sitiada por 357
cercam o lote do prédio depois de quitarem o
assentamentos espontâneos, de acordo com um
imóvel junto à COHAB. Sem os muros, o
estudo da CONDER - Companhia de
percentual de espaços livres (e públicos) sobre a
Desenvolvimento da Região Metropolitana de
área total subiria para 74, 8%! (Serpa, 1996).
Salvador.
Observa-se que as camadas menos favorecidas
da população acabam assumindo o “ideal das Pesquisas desenvolvidas no âmbito das
elites”: O prédio isolado no lote. A população dos atividades do Projeto Espaço Livre de Pesquisa-
conjuntos habitacionais recodifica e transforma Ação 9 , na Universidade Federal da Bahia,
seus espaços livres, seguindo os arquétipos das permitem apontar tendências comuns ao
30 - GEOUSP - Espaço e Tempo, São Paulo, Nº 15, 2004 SERPA, A.

sistema de espaços públicos nos bairros de manifestações pelo marketing turístico.


urbanização popular em Salvador, como: Trabalhou-se, na análise dos depoimentos dos
- Formação e consolidação de centralidades moradores, com as noções de “aura” –
intrabairro, que determinam uma hierarquia dos unicidade da obra de arte, ou seja, sua
espaços livres de edificação existentes; “inserção no contexto da tradição”, e de
“reprodutibilidade técnica” – técnica de
- Maior diversificação do comércio e dos
reprodução dos objetos artísticos e culturais
serviços nas áreas consolidadas como
(Benjamin, 1996).
centralidades, onde há também uma
apropriação mais intensa e diversificada dos Entre as manifestações artísticas e culturais
espaços livres de uso coletivo; mais citadas pelos moradores entrevistados nos
bairros estão as festas populares e a música. No
- Urbanização espontânea crescente dos
caso das festas populares, pressupõe-se que já
espaços livres de edificação de uso coletivo, que
tiveram a sua “aura”, já que estavam ligadas a um
tendem a desaparecer nas áreas mais
ritual religioso que antecedia as comemorações
segregadas (menos centrais), especialmente
“profanas” (Cordeiro & Serpa, 2001). Mas, com o
locais não consolidados como de uso público;
passar do tempo, o “acontecer” dessas festas
- Carência de áreas livres e de lazer, com a passou a ser marcado pela realização do lucro e
concentração dos usuários nas poucas áreas pela possibilidade de diversão (fato particularmente
consolidadas como praças e largos nos centros marcante na Ribeira, um bairro com “vocação
de bairro (SERPA, 2002). turística”), transformando, portanto, sua “aura” e
A privatização de ruas e acessos restringe sua autenticidade, que, segundo Benjamin (1996:
o movimento de passantes, canaliza percursos e 168), “é a quintessência de tudo o que foi
provoca a desertificação de muitas áreas públicas transmitido pela tradição, a partir de sua origem,
nas periferias urbanas. Com o confinamento dos desde sua duração material até o seu testemunho
moradores nos prédios dos conjuntos histórico”.
habitacionais populares (onde eles existem), Ao longo das décadas de 1980 e 1990 e
agrava-se a questão das drogas e aumenta a nos dias atuais, a Festa da Ribeira apresentou sinais
violência urbana; decreta-se (muitas vezes de de decadência e auge. Mas, nos momentos de
modo irreversível) a morte dos espaços públicos. auge, o resgate de sua importância se deu através
Nas ruas das áreas centrais, os pedestres cedem de uma outra manifestação cultural dominante na
seu lugar nas calçadas aos automóveis e camelôs. Bahia: o trio elétrico – a música de carnaval. A
Em uma cidade como Salvador, com ruas estreitas Festa da Ribeira, na sua origem, nunca foi palco
e tortuosas, parece não haver mais espaço para para esse aparato tecnológico. É compreensível,
o passeio a pé. Quem se arrisca a fazê-lo deve nas falas dos moradores, que apenas três deles
disputar o asfalto com os carros, ambulantes e tenham citado a festa, sendo que o mais jovem
caminhões, que também transitam livremente pelo foi o único que a relatou com entusiasmo. A festa
centro da cidade (não há horários específicos para se estendia ao bairro vizinho de Plataforma, mas
carga e descarga). à medida que este último foi sofrendo com o
processo de expansão urbana (na direção da orla
7. Quando as manifestações culturais se atlântica) e o conseqüente afastamento da cidade
mercantilizam também nos bairros populares (no sentido da perda de importância enquanto
bairro antigo, que faz parte da história de
Em outra pesquisa, também realizada em
Salvador), as festas populares foram deixando
Salvador, as manifestações artísticas e culturais
de acontecer nesse espaço. Outras, por falta
de dois bairros populares – Plataforma 10 e
de incentivo dos poderes públicos, acabaram
Ribeira 11 – foram analisadas sob a ótica do
por existir (e resistir) apenas na memória dos
conflito global/local, expresso, principalmente,
moradores. A Festa de São Brás (padroeiro do
na cooptação/folclorização destas
bairro) é o exemplo que melhor ilustra o
Espaço Público e Acessibilidade: Notas para uma abordagem geográfica, pp. 21-37 31

isolamento e o esquecimento de Plataforma.


Mesmo na época em que a tradição ainda era 8. À guisa de conclusão
mantida, a imprensa escrita não mencionava a
Todos os exemplos aqui analisados nos
lavagem de Plataforma entre as opções do
mostram que a crise da modernidade é uma
circuito de festas populares da cidade.
crise nos domínios público e privado: A erosão
Com a música ocorre o mesmo, se do equilíbrio entre a vida pública e a vida privada
pensarmos agora na questão da destrói o pilar que sustentava a sociedade nos
reprodutibilidade técnica. Os gêneros musicais primórdios do capitalismo (Sennet, 1998).
mais executados nos dois bairros são também Caminhamos para a consagração do
os mais reproduzidos no País. Se hoje se escuta individualismo como modo de vida ideal, em
mais o pagode e a axé-music 12 , os bairros detrimento de um coletivo cada vez mais
tornam-se uma pequena parcela desta decadente. Para que os conflitos sejam
realidade. Reproduzir esses gêneros musicais minimizados e para que se preserve uma certa
tornou-se relativamente fácil, a partir das novas “soberania” sob condições de proximidade física,
técnicas e da força da mídia impressa e fazemos questão de manter alguma distância
eletrônica. Restam, apenas, como outras psicológica, mesmo nas relações mais íntimas.
possibilidades, gêneros musicais como o reggae
Nossas relações de vizinhança são
e a MPB, ou ainda os corais de cunho religioso,
condicionadas de uma forma determinante pela
que se manifestam, entretanto, em espaços
densidade populacional do local que habitamos,
muito restritos (Cordeiro & Serpa, 2001). A
pelo nível econômico e o grau de cooperação dos
alteração dos referenciais culturais das áreas
seus habitantes, bem como pela distância entre
de urbanização popular, a partir da
as unidades de habitação (Keller, 1979). As relações
mercantilização de suas manifestações
de vizinhança na cidade contemporânea são ainda
artísticas, transforma radicalmente os espaços
muito condicionadas pelas diferenças entre classes
públicos nos bairros populares, agora
sociais. Nos bairros populares, a limitação de
instrumentalizados pela lógica do capitalismo
oportunidades, a pobreza e o isolamento relativos,
para multiplicar produção e consumo. Modifica-
a insegurança e o medo acabam por fortalecê-las
se também a paisagem urbana, a partir de
e torná-las parte fundamental da trama de
ações de agentes externos aos bairros, por
relações familiares. Nos bairros de classe média,
intensificação da atividade turística – Ribeira ou
as relações entre vizinhos são mais seletivas e
por exclusão do circuito turístico – Plataforma
pessoais, já que o maior poder aquisitivo faz
(Cordeiro & Serpa, 2001).
diminuir a necessidade de ajuda mútua e aumentar
Os resultados da pesquisa mostram ainda a necessidade individual de espaço.
diferenças no interior dos bairros pesquisados,
Sofrem as metrópoles contemporâneas,
quanto à incorporação seletiva de algumas
especialmente no Brasil, com a fragmentação do
áreas pela atividade turística. Geralmente a
tecido sócio-político espacial e a formação de
localização da infra-estrutura também é
encraves territoriais no tecido urbano, sofisticando
diferenciada, privilegiando estas áreas, que
as formas de auto-segregação dos habitantes.
coincidem muitas vezes com os núcleos
Esses encraves formam, nos bairros com
históricos dos bairros, mais consolidados e com
urbanização de status, circuitos exclusivos, cada
população com maior poder aquisitivo. Essa
vez mais restritos, de residências (condomínios),
imagem “histórica”, cooptada pelo marketing
lazer (parques temáticos) e consumo (shopping
turístico, é “interiorizada” na percepção dos
centers), constituindo o processo que Souza
moradores, mesmo daqueles que não moram
denomina de “involução metropolitana” (Souza,
nas áreas com maior potencial turístico, que
1999). A lógica dos novos bairros de classe
acabam por reproduzir uma “representação
média baseia-se na acessibilidade (física) e na
hegemônica”, estilizada, dos bairros onde
valorização da segurança. São as chamadas
moram.
32 - GEOUSP - Espaço e Tempo, São Paulo, Nº 15, 2004 SERPA, A.

edge cities que se originam em função de um Para retomar os exemplos dos novos
entroncamento viário, ancoradas por um parques públicos, pode-se afirmar que as práticas
shopping center regional, ao qual acrescentam- urbanas que neles ocorrem inscrevem-se em um
se bancos, postos de gasolina e centros de processo de “territorialização do espaço”. Em
serviços especializados (Del Rio, 1997). Na escala verdade, os usuários privatizam o espaço público
local ampliada, assiste-se a um evidente através da ereção de barreiras simbólicas, por
espraiamento da suburbanização; na escala vezes invisíveis. O espaço público transforma-se,
nacional há sinais que apontam para uma portanto, em uma justaposição de espaços
desmetropolização relativa, uma “desconcen- privatizados; ele não é partilhado, mas, sobretudo,
tração centralizada” das metrópoles, com o dividido entre os diferentes grupos.
crescimento das cidades médias (Souza, 1999). Conseqüentemente, a acessibilidade não é mais
Por outro lado, podemos falar também no generalizada, mas limitada e controlada
desaparecimento da capacidade de assimilação e simbolicamente. Falta interação entre esses
do uso público da razão, para pensar esta crise territórios, percebidos (e utilizados) como uma
nos termos de Benjamin, Arendt e Habermas; aqui, maneira de neutralizar o “outro” em um espaço
o importante é observar a conversão de um que é acessível a todos. Os usuários do espaço
público, que outrora fizera uso cultural da razão, contribuem assim para a amplificação da esfera
em um público consumidor de cultura. A publicidade privada no espaço público, fazendo emergir uma
comercial ultrapassa os limites do consumo de sorte de estranhamento mútuo de territórios
bens e passa a investir diretamente no campo privados, expostos, no entanto, a uma visibilidade
político, dirigindo-se explicitamente à opinião completa. Na cidade contemporânea, toda cultura
pública, propondo sua “formação”. As sensações, da exposição pública é também uma cultura do
o divertimento e o espetáculo são, afinal, a essência desengajamento, pois o espaço público
dessa “assimilação consumidora”, constituindo “neutraliza-se” do interior, através da percepção
uma cultura que é, ao mesmo tempo, de massa e simultânea e constante das diferenças (Joseph,
“personalizada”, centrada sobre o imediatismo e 1998).
a força da autoidentificação (Compare: Prado Jr., A soma de processos de apropriação de um
1995). coletivo de indivíduos não é suficiente para legitimar
Em um contexto de declínio do engajamento a noção de espaço público. O parque público é um
cívico no espaço público contemporâneo, onde a espaço aberto ao público, acessível a todos, posto
regra da indiferença civil (Joseph, 1998) e do a disposição dos usuários, mas todas essas
conformismo (Arendt, 2000) comanda de uma características não são suficientes para defini-lo
maneira implícita os comportamentos e as como espaço público. Este processo é, por um
relações, seria demasiado simplista reduzir a esfera lado, o resultado de uma concepção (e da
pública às dimensões materiais dos espaços promoção) do parque público como cenário,
urbanos de acessibilidade generalizada. A esfera destinado à fascinação dos futuros usuários,
pública não se restringe apenas aos espaços transformando-o em uma espécie de imagem
concretos de circulação e de repartição de fluxos, publicitária das administrações locais, sem
nem aos espaços materiais de consumo, de lazer nenhuma continuidade com práticas sociais que
e de diversão13 . É a esfera pública que nos reúne pudessem dar-lhe algum conteúdo e significado
na companhia uns dos outros, mas é ela também (Arantes, 1998). Com a instauração e
que evita que colidamos uns com os outros: “O consolidação de um mercado da paisagem e do
que torna tão difícil suportar a sociedade de massas paisagismo, os novos parques são, hoje,
não é o número de pessoas que ela abrange, ou mediadores da cultura oficial, nivelando as
pelo menos não é este o fator fundamental; antes, diferenças e fazendo emergir uma representação
é o fato de que o mundo entre elas perdeu a força estática, teatralizada e simplificada da “Natureza”
de mantê-las juntas, de relacioná-las umas com no contexto urbano.
as outras e de separá-las” (Arendt, 2000: 62).
Espaço Público e Acessibilidade: Notas para uma abordagem geográfica, pp. 21-37 33

Essas intervenções urbanas não são Todos os habitantes do espaço urbano


mudanças para atingir o futuro, mas para tem seu sistema de significações ao nível
permanecer no passado. Sob essa ótica, a moda ecológico, expressão de suas passividades e
e os modismos são desses artifícios com os quais de suas atividades. Já os arquitetos
as coisas permanecem as mesmas, embora (paisagistas e urbanistas) parecem ter
aparentando uma transformação. Milton Santos estabelecido e dogmatizado um conjunto de
nos lembra um segundo caráter da moda: sua significações, elaboradas não a partir do
uniformidade. Segundo essa lógica, cada qual deve percebido e do vivido pelos habitantes da
tornar-se semelhante aos outros. É preciso “fazer cidade, mas a partir do fato de habitar, por eles
como todo mundo”, pois se fazer notar é se excluir interpretado. Esse conjunto de significações é
do meio social ao qual se pertence (Santos, 1992). verbal e discursivo, tendendo para a
Nesse contexto, o produto é quem ganha em metalinguagem; é grafismo e visualização, que
poder e a existência não é vivida mais tanto para tende a se fechar sobre si mesmo, a se impor e
a consagração dos valores éticos e estéticos, mas a inviabilizar qualquer crítica ou questionamento
para a busca das coisas, o produtor se tornando (Lefebvre, 1991). Isso também acontece
submisso ao objeto produzido. porque o cotidiano se concebe como estratégia
do Estado dirigida às classes médias, suporte
No mundo contemporâneo, o Estado
e produto desse mesmo Estado.
funciona de fato como uma gigantesca
“administração caseira”: este “lar coletivo” ganha Trabalhando para as classes médias
significado e sentido através da concepção de urbanas, o Estado parece produzir apenas objetos
coletividades políticas como famílias saídas “do e imagens que são, na verdade, testemunhos da
sombrio interior do lar para a luz da esfera pública” desintegração e da desorganização da cidade
(Arendt, 2000: 47). O domínio público deixa de contemporânea. Como participante de parcerias
ter uma conotação política para assumir um entre o público e o privado, nos campos da
significado cada vez mais “social”, interditando a arquitetura, do urbanismo e do paisagismo, o
possibilidade da ação. A sociedade atual espera Estado coloca em ação estratégias urbanas que
“de cada um dos seus membros um certo tipo de não conseguem “ultrapassar os limites de sua
comportamento, impondo inúmeras e variadas própria sombra” (Baudrillard, 1987: 4). Desse
regras, todas elas tendentes a ‘normalizar’ os seus modo, são produzidos, apenas, lugares de
membros, a fazê-los ‘comportarem-se’, a abolir a expulsão e de extradição, de êxtase urbano:
ação espontânea ou a reação inusitada” (Arendt, aqueles que vêm se aglomerar ali procuram
2000: 47). antes de tudo um sentimento vazio de êxtase,
um banquete espacial, uma greve cosmopolita,
As relações de propriedade podem inviabilizar
um lugar parasitário (Baudrillard, 1987).
muitas vezes a apropriação social do espaço
público no contexto urbano. O conceito lefebvriano Em um mundo onde a cultura
de apropriação esclarece a propriedade, no limite, transformou-se em lazer e diversão, existe uma
como não-apropriação, como restrição à distância mais social que física, separando os
apropriação concreta. A apropriação inclui o novos equipamentos públicos daqueles com
afetivo, o imaginário, o sonho, o corpo e o prazer, baixo capital escolar, o que mostra que
que caracterizariam o homem como segregação espacial e segregação social nem
espontaneidade, como energia vital. Mas, essa sempre servem para designar a mesma coisa.
energia vital tende a recuar à proporção que Em Paris, a garantia de acessibilidade física aos
cresce a artificialidade do mundo; ela é novos parques públicos não assegura sua
reelaborada do ponto de vista humano, porque, apropriação pelas classes populares e o
atualmente, as relações de propriedade invadem problema da democratização do acesso não se
domínios cada vez mais amplos da existência, resume a uma repartição espacial eqüitativa dos
alcançando costumes e alterando-os (Seabra, equipamentos que permitiria, em tese, chances
1996). de utilização equivalentes a todas as categorias
34 - GEOUSP - Espaço e Tempo, São Paulo, Nº 15, 2004 SERPA, A.

sociais (Ballion, Amar & Grandjean, 1983). Afinal, estamos diante de espaços
Vemos que a aplicação dos conceitos/noções verdadeiramente públicos ou de espaços
geográficos de distância e acessibilidade concebidos e implementados para um tipo
acabam por colocar em questão a esfera pública, específico de público?
o espaço público, na cidade contemporânea.

Notas

1
“Um olhar geográfico sobre o espaço público deve permitem, ou não, a representação pública das
considerar, por um lado, sua configuração física aspirações privadas”.
e, por outro, o tipo de práticas e dinâmicas sociais 5
Tradução do autor.
que aí se desenvolvem. Ele passa então a ser visto
como um conjunto indissociável das formas com
6
“O espaço não se (re) produz sem conflitos e sem
as práticas sociais. É justamente sob esse ângulo contradições inerentes a uma sociedade de
que a noção de espaço público pode vir a se classes. As práticas não se reduzem apenas à
constituir em uma categoria de análise geográfica. produção imediata (...) é na vida cotidiana, como
Aliás, essa parece ser a única maneira de se um todo, que essas contradições se manifestam
estabelecer uma relação direta entre a condição mais profundamente; nas diferenciações entre os
de cidadania e o espaço público, ou seja, sua modos de morar, o tempo de locomoção, o
configuração física, seus usos e sua vivência acesso à infra-estrutura, ao lazer, à quantidade
efetiva” (GOMES, 2002: 172). de produtos consumidos etc.” (CARLOS, 1994).
2
Estudos de caso a partir das pesquisas
7
O exemplo do Parque do Abaeté mostra a
“Planejamento paisagístico em zonas periféricas e uniformização visual e funcional dos espaços
em áreas de alta densidade populacional” (com públicos urbanos, onde os parques se
bolsa de recém-doutor do CNPq, 1994/1996), assemelham cada vez mais aos shopping-centers,
“Processos de periferização, descentralização e com a valorização do consumo como atividade de
apropriação social dos espaços livres de edificação” lazer. Restaurantes e bares parecem ser a principal
(com bolsa de produtividade em pesquisa do CNPq, atração do lugar para os moradores da cidade,
1998/2000), “Identidade de bairro: Um estudo embora a lagoa continue a atrair turistas de
de geografia humanística aplicada ao procedências diversas. No Abaeté, quem quiser
planejamento” (com bolsa de produtividade em chegar perto da lagoa, deve abandonar os
pesquisa do CNPq, 2001/2003) e “Clonagem de caminhos convencionais e adentrar a paisagem,
paisagens: Subsídios de Geografia Cultural para caminhando pela areia. É como se os caminhos
análise de Projetos Paisagísticos no Brasil e na do projeto evitassem de maneira intencional a
França” (com bolsa de pós-doutorado da CAPES, lagoa, partindo do pressuposto (incorreto!) que
2002/2003). para preservá-la da depredação humana o melhor
seria segregá-la (Serpa, 2001).
3
Tradução do autor. 8
“O poder é expresso e mantido na reprodução da
4
Sabemos, no entanto, que, no Brasil, a formação cultura. Isto é melhor concretizado quando é
da sociedade civil burguesa não seguiu o modelo menos visível, quando as suposições culturais do
proposto por Habermas, já que, como não houve grupo dominante aparecem simplesmente como
feudalismo no país, também não existiram as senso comum. Isto às vezes é chamado de
condições para a formação da burguesia a partir ‘hegemonia cultural’. Há, portanto, culturas
da evolução das relações feudais. Como Leite dominantes e subdominantes ou alternativas, não
(1998: 31), nosso propósito aqui é menos o de apenas no sentido político (...) mas também em
discutir “o processo de formação da ordem social termos de sexo, idade e etnicidade. (...) As
burguesa no Brasil, do que as condições culturas subdominantes podem ser divididas não
apresentadas pelas cidades, e exclusivamente apenas nos termos já indicados, mas também
por elas, de abrigar representações dessa ordem historicamente, como residuais (que sobram do
(...) E aqui importa examinar as condições que passado), emergentes (que antecipam o futuro)
Espaço Público e Acessibilidade: Notas para uma abordagem geográfica, pp. 21-37 35

e excluídas (que são ativa ou passivamente antiga ligação do bairro com a Ribeira, que tem
suprimidas) como as culturas do crime, drogas sua história também ligada à indústria têxtil
ou grupos religiosos marginais. Cada uma destas (Serpa & Garcia, 1999: 97-98).
subculturas encontra alguma expressão na 11
Primitivamente, a Ribeira – expressão portuguesa
paisagem, mesmo se apenas numa paisagem de que significa ancoradouro de reparação de naus
fantasia” (COSGROVE, 1998: 92-123). – era uma colônia de pescadores e lugar de
9
O Projeto Espaço Livre de Pesquisa-Ação tem como veraneio, muito distante do centro da cidade, cuja
objetivo principal a análise da situação de bairros única via de acesso era o mar. Com a construção
populares de Salvador, tendo como premissa o da basílica do Bomfim, a península passou a receber
planejamento de áreas carentes e periféricas, romeiros de vários pontos da cidade, que
disponibilizando informações coletadas e passavam ali longas temporadas.
sistematizadas junto às próprias comunidades aos 12
Estilo musical hegemônico no carnaval de Salvador
órgãos responsáveis por projetos de habitação a partir da segunda metade da década de 1980,
popular e de planejamento urbano. suporte principal das apresentações dos blocos
10
Situado no Subúrbio Ferroviário, Plataforma é um de trio (Compare: Dias, 2002).
dos bairros mais antigos dessa região. Os 13
O consumidor/usuário não é necessariamente um
primeiros núcleos de indústria têxtil se cidadão: “Nem o consumidor de bens materiais,
estabeleceram na Bahia por volta de 1844 e, em ilusões tornadas realidades como símbolos: a casa
Plataforma, em 1875. Também é do século própria, o automóvel, os objetos, as coisas que
passado (1850) a instalação de ampla rede dão status. Nem o consumidor de bens imateriais
ferroviária no Brasil e em particular na Bahia, ou culturais, regalias de um consumo elitizado
ligando Salvador ao interior e entrecortando como o turismo e as viagens, os clubes e as
Plataforma. Ao lado da estação ferroviária diversões pagas” (SANTOS, 1992: 41).
localiza-se o terminal hidroviário (desativado),

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Trabalho enviado em outubro de 2003.

Trabalho aceito em março de 2004.

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