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Materiais sobre o filme “Que horas ela volta?

Trechos de entrevista da diretora, Anna Muylaert.

A diretora pretende com o filme retirar certas “pessoas da invisibilidade” e “queria


dar um destino melhor para a filha da empregada. Na minha cabeça de
dramaturga, eu queria tirar o clichê da maldição da repetição. Durante muitos anos
o caminho era igual, a filha vinha para cá ser cabeleireira e acabava como
doméstica, assim como a mãe.”

Sobre o fato da filha da emprega ter sido aprovada no vestibular de uma faculdade
federal: “Mas isso é um pequeno começo, a questão da educação ainda está muito
atrasada em relação aos países europeus, por exemplo, que são socialmente mais
democráticos. Aqui demos um pequeno passo para o direito à cidadania.”

O filme retrata essa cultura escravista herdada do período colonial. Foram


realizadas pesquisas sobre isso?
AM: Fizemos uma pesquisa para encontrar a personagem principal, que é inspirada
na Edna. Ela foi babá do meu filho por aproximadamente dois anos e acabou se
tornando minha amiga. Quando era criança, foi deixada na Bahia pela mãe e
buscada apenas dez anos depois. Sobre essa arquitetura colonial e os espaços de
poder dentro da casa, não foi preciso praticamente nenhuma pesquisa, já que esses
valores estão presentes em qualquer casa da classe alta brasileira.

Além do seu filme, vários outros abordaram essa mesma temática nos
últimos anos. “Domésticas”, de Gabriel Mascaro, talvez seja o mais evidente.
Mas também podemos citar “O Som ao Redor”, de Kleber Mendonça Filho, e
“Casa Grande”, de Fellipe Barbosa. Algum deles te influenciou?
AM: Eu tive uma influência muito grande do filme ‘O Som ao Redor’. Eu me conecto
a ele porque eu realmente amei, saí do cinema tremendo. Apesar de
completamente diferentes, ambos estão tirando diversas pessoas da invisibilidade.
Já o documentário “Domésticas”, que foi exibido para a nossa equipe durante a
preparação, serviu de inspiração para o figurino da Val. O “Casa Grande”,
entretanto, foi diferente. No início da sua exibição no Festival de Cinema de
Paulínia, achei que alguém tivesse feito o mesmo filme que eu. Mas, passados os
primeiros trinta minutos, o filme abandona o caráter crítico e assume o papel do
herói adolescente que termina trepando com a empregada, o que eu considero
retrógrado e machista. Na Europa, os espectadores perguntam se isto realmente
existe ou se é pura ficção. Em suma, todo mundo está abordando um tema que urge
porque o Brasil ainda está no século XIX. Essa é uma cultura gerada nos primórdios
da colonização, quando os portugueses vieram para o Brasil explorar o ouro e
comer as mulheres. A lógica era o ócio ao invés do negócio. Isso não dá mais, é 7 a 1
em todo o canto. É urgente profissionalizar, legislar e respeitar essas mulheres. No
Brasil, ainda é normal homem pisar em mulher; branco, em preto; e rico, em pobre.
Os cineastas estão no cinema para isso e é ótimo que estes filmes estão dando
certo, porque faz o mundo pensar e repensar estas atitudes.

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Assim como o personagem Fabinho, as memórias da primeira infância de
muitas crianças brasileiras são das babás. Existe uma solução para isso?
AM: O Brasil é isso. A minha babá, a Dagmar, veio para casa quando eu tinha sete
anos. Mas, mesmo assim, eu consegui criar um vínculo forte com a minha mãe
porque ela não trabalhava. Já a minha irmã menor, que tinha três anos, tem uma
conexão muito mais forte com a Dagmar. Meu pai, por exemplo, não me deixava
assistir televisão e, por isso, até hoje eu não tenho esse hábito. Em compensação, a
minha irmã senta com o marido e os quatro filhos na frente do aparelho, em
decorrência de uma herança que não veio dos meus pais. Eu já vi vários filhos de
amigas minhas descer do quarto para dormir com a empregada. Esse é um debate
que temos que abrir, mas não tem uma saída pronta. Outro dia, uma jornalista
inglesa me perguntou no meio da entrevista o que eu achava que ela deveria fazer
em relação à filha de sete meses. Obviamente, eu falei que não tinha uma fórmula.
Mas se os pais, os homens, pegassem metade da responsabilidade não precisaria
de nenhuma babá. O pai dos meus filhos ajudou no máximo 2%. Eu aguentei a
responsabilidade dos outros 98%, além de continuar minha carreira no cinema.
Nos países nórdicos, por exemplo, os homens ganham seis meses de licença
paternidade. Se um homem limpa a bunda de uma criança é claro que ele se
transforma, amadurece e cria uma relação de intimidade com o filho. Além disso,
na Europa existem mais creches disponíveis. Aqui no Brasil, ou a mulher deixa o
filho na casa da mãe ou doa para alguém. Essa é uma discussão muito importante
porque a mulher nunca mais vai parar de trabalhar, “somos todas Jéssica”.

'Que Horas Ela Volta?'


Contardo Calligaris
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrada/233259-que-horas-ela-
volta.shtml#_=_

Os que chamávamos de 'emergentes' são hoje os afundantes. Até porque há


verdadeiros emergentes...

Gostei muito do novo filme de Anna Muylaert e admirei as performances de Regina


Casé e de Camila Márdila. Também achei bem-vinda a escolha do filme para
representar o país no Oscar, porque "Que Horas Ela Volta?" é um retrato tocante e
fiel de nossa sociedade hoje.

Sem spoilers: Val é babá e empregada na casa de Bárbara e Carlos. Ela criou o filho
deles, Fabinho, e, enquanto isso, há anos, deixou de criar (e de ver) sua própria
filha, Jéssica. Um dia, Jéssica reaparece: ela vem a São Paulo para tentar o
vestibular. Val hospeda a filha na casa onde mora: a dos patrões.

1) Na classe média abastada, a babá se transforma quase sempre em empregada.


Aliás, ela nunca foi propriamente uma babá, mas uma empregada que tinha jeito
com as crianças. Ou talvez ela nunca deixe de ser uma babá: ela começou como
babá das crianças e acaba sendo a babá de toda a família –que é assim reduzida a
um jardim de infância de pseudoadultos.

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A infantilização de todos pela babá-empregada é um exemplo do que Hegel
observava sobre o mestre e o escravo: à força de ser servido, o mestre desaprende
a lidar com o mundo, torna-se um inútil. O mestre antigo, ao menos, de vez em
quando, saía pelo mundo desafiando a morte: a coragem o qualificava como
mestre. O mestre moderno, nem isso: ninguém entende mais por qual mérito ele
continuaria sendo "mestre".

2) Uma consequência habitual do recurso ao serviço da babá é o ciúme das mães,


que se sentem (e são) menos amadas do que a mulher a quem elas confiam seus
filhos.

3) A babá mima tanto quanto a mãe, se não mais: o filho de criação é idealizado
além da conta (talvez para compensar o abandono do filho natural, no caso de Val,
da filha). Conclusão: a mãe topa qualquer coisa para que o filho lhe perdoe a
ausência, e a babá topa qualquer coisa para se perdoar pelo abandono de seus
próprios filhos.

Em suma, o filho do qual cuida a babá é, para a babá como para a mãe, a coisa mais
linda (e mais "rica") do mundo. Coitado dele.

4) Fabinho, mimado por Val, é improdutivo e incapaz de encarar uma frustração.


Carlos desistiu da vida. Bárbara é "estilista", o que, no caso, significa que sua
função social se resume em manter uma pose.

Os que chamávamos de "emergentes" são hoje os afundantes. Até porque há


verdadeiros emergentes: Jéssica, por exemplo, que é obrigada a acreditar no seu
esforço, e não no amor da mãe (que não teve) ou da babá (que também não teve).

5) Quando cheguei ao Brasil, nos anos 1980, o país parecia dividido em castas,
criadas e mantidas pela extrema desigualdade.

Ou seja, as diferenças quantitativas (de renda) produziam uma distância


qualitativa, aparentemente insuperável. Ora, um sistema de castas, para se manter,
precisa que cada um, em cima ou embaixo, "saiba qual é seu lugar" e se identifique
com ele. Jéssica, como diria Val, não sabe mais qual é o seu lugar. Graças às Jéssicas,
pode acabar a sociedade de castas no Brasil.

6) Na Folha de domingo (13), Mauro Paulino e Alessandro Janoni, do Datafolha,


notaram que as Jéssicas são, hoje, vítimas da crise e do desgoverno. Será que por
isso elas deixarão de desafiar o sistema brasileiro de castas?

Penso que não: as Jéssicas não são apenas novas consumidoras (eventualmente
subsidiadas). O país não está melhor porque Val e Jéssica podem bancar um
aluguel ou comprar potinhos com capa de renda.

O país está melhor porque, para as Jéssicas, ser cidadão não é o efeito de uma
condição econômica privilegiada. Jéssica, mesmo empobrecida, continuará se
dando o direito de se sentar na sala, dizer o que pensa e tentar o vestibular numa
escola de elite.

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7) Anna Muylaert poderia ter me contratado como consultor para "Que Horas Ela
Volta?". Em Porto Alegre, quando cheguei ao Brasil, no fim dos anos 1980, nossa
Val era a Vera. Vera tinha uma filha, que se chamava Letícia e que tinha uma idade
parecida com a de meus enteados.

Lembro-me de um diálogo (incompreensível para mim, europeu) para decidir se


Letícia podia usar a piscina de casa.

Lembro-me também que Vera gastava muito mais do que seria prudente em
enciclopédias e coleções de clássicos. Aqueles livros, acumulados no quartinho dos
fundos, eram o jeito de Vera lembrar o que ela desejava para a filha.

Funcionou: Letícia, hoje, é professora. Letícia é a primeira Jéssica que conheci. Esta
coluna é dedicada a ela.

Assistir a “Que horas ela volta” na Europa: passar vergonha pelo


Brasil

http://revistatpm.uol.com.br/blogs/berlimmandaavisar/2015/09/15/assistir-a-
que-horas-ela-volta-na-europa-passar-vergonha-pelo-brasil.html

"Mas é verdade que no Brasil tem gente que não levanta para pegar um copo
de água?" "É verdade que existe empregada que não pode sentar na mesa?"
Infelizmente, digo para eles, é.

“Val, me traz um copo de água”, por favor?


“Val, você pode colocar a mesa, por favor?”
“Val, você pode tirar a mesa, por favor?
Val, você pode trazer um sorvete para a gente?”
Esse tipo de pedido é repetido sem parar em “Que horas ela volta”, o filme gênio de
Anna Muylaert estrelado com maestria por Regina Casé.
Val, por favor! Val é a empregada da casa, uma pessoa “praticamente da família”.
Val é uma escrava.
A familia de classe média alta brasileira, sentada na mesa, faz os pedidos, e Val vem
e volta. Algumas vezes eles estão sentados na mesa da cozinha, ao lado da Val, mas
pedem para ela: “você pode pegar água?” Ela abre a geladeira. Os membros da
familia, pai artista, mãe fashionista e filho adolescente gente boa, parecem
incapazes. Eles não se movem. Eles não levantam a porra da bunda da cadeira. No
meio do filme a vontade é entrar na tela e bater neles.
Estou em um cinema em Kreuzberg, Berlim, e eu sei que é assim na vida real no
meu país. A platéia, formada por brasileiros e alemães, dá risos nervosos.
Desconfio que os risos nervosos sejam mais de brasileiros como eu, que conhecem
bem essa situação e sabem que a escravidão existe no Brasil de uma maneira
sinistra. E de uma forma que a gente ainda não foi capaz de acabar.
Vez ou outra eu falo nervosa para o alemão: “é assim mesmo”.
Na saída, encontro uma amiga brasileira, também acompanhada de namorado
europeu e ela me diz: “deu um pouco de vergonha”. Concordamos que a vergonha é
total.

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No café, eu explico para ele. “É assim, não, não na minha família, não com os meus
amigos, mas sim, eu conheço gente assim.” “Eu sei, se você está dizendo eu
acredito. Mas quem na Europa vai acreditar que essa situação é real? Acho que vão
pensar que a diretora é genial, mas que criou uma historia surrealista muito boa,
não que isso seja real. Porque isso é muito bizarro. Isso é inconcebível.”
Cara de vergonha. E repito, pela milésima vez em dois anos: “é assim mesmo! É
absurdo! Mas é assim mesmo!”
Lembro de um ex de esquerda que brincava no inicio dos anos 2000: “ é bom
morar no Brasil porque aqui temos escravos”. E gargalhava. Isso antes do
politicamente correto chegar e, graças a deus, acabar com esse tipo de humor
podre.
Na minha vida passada recente, eu tinha empregada duas vezes por semana em
São Paulo só para catar a minha bagunça. Não sou de família rica. Sou de família de
classe média média com momentos de dureza, mas na casa da minha avó sempre
teve empregada. Quando eu era bebê meus pais tiveram empregada que dormiu
em casa. Eu tive babás por alguns momentos.
O alemão fala: lembro que a minha mãe dizia que o sonho dela, se ganhasse na
loteria, era ter uma empregada domestica.”
Conto para uma alemã mãe de três filhos que muitas crianças brasileiras não
ajudam em casa, não fazem nada, pedem tudo para a babá. Ela diz: “não acredito,
mas elas são muito ricas, não?”. “Não, são classe media como você”. Ela faz cara de
choque e diz: “fulana, vem aqui ouvir a história que a Nina está contando, você não
vai acreditar.”
Uma criança alemã não pede um copo de água, ela abre a geladeira e pega. Elas não
pedem um sanduíche, elas fazem. Tenho dois enteados alemães, sei do que estou
falando.
Há um ano e meio não, não tenho faxineira. Sim, a minha casa vive uma zona. Sim,
eu cozinho. Sim, eu lavo louça, sim, eu lavo as minhas roupas e as estendo em um
varal. Tentem. É muito fácil. Eu juro.
Esse não é um texto vira lata falando que, oh, veja bem, a Europa é tão superior. É
apenas para dizer que talvez de longe a gente enxergue melhor certas coisas.
E eu sei mais que nunca que o jeito que patrões como os da Val vivem é inaceitável.
E eu sei mais que nunca que a escravidão existe sim no Brasil, onde descolados
levam babás vestidas de branco para brincar com os filhos na praia do Arpoador
enquando eles fumam um e falam de arte.
Pronto. Falei.
E obrigado Anna Muylaert, por abrir a porta do armário e mostrar essa realidade
para o mundo.

Veja também:

Ex-doméstica assiste a 'Que Horas Ela Volta' e diz que preconceito é real
http://www1.folha.uol.com.br/saopaulo/2015/10/1689475-apos-ver-que-horas-
ela-volta-ex-domestica-diz-que-preconceito-e-real.shtml

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