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2.2.

O SISTEMA ESCRAVOCRATA E A
NATURALIZAÇAO DA VIOLENCIA
O TRÁFICO DE VIVENTES
O jesuíta Antonil, dono de frases tão sintéticas como cruéis, relevância, particularmente na Espanha e em Portugal. Foi,
definiu os escravos como “as mãos e os pés do senhor do porém, com as Cruzadas que os europeus se voltaram outra
engenho porque sem eles no Brasil não é possível fazer, vez para o mercado de escravos. Do século X ao XIII, com a
conservar e aumentar fazenda, nem ter engenho corrente”. entrada de genoveses e venezianos na Síria, Palestina, mar
Real alicerce da sociedade, os escravos chegaram a Negro, Bálcãs, Chipre, Creta, ocorreu novo impulso no
constituir, em regiões como o Recôncavo, na Bahia, mais de sentido de implementar a utilização de trabalho escravo.
75% da população. Desde o século XVI e até a extinção do Um mercado poderoso envolvendo eslavos (daí o nome
tráfico, em 1850, o regime demográfico adverso verificado “escravo”, slave) também tomou vulto nesse contexto.
entre os cativos — em razão das mortes prematuras e da
baixa taxa de nascimento — levou a uma taxa de No final da Idade Média, nas ilhas mediterrâneas, região
crescimento negativo e à necessidade de constante em que se encontrava o regime de tipo escravista mais
importação de mão de obra escrava da África. Tal atividade importante da Europa, escravos já trabalhavam com a
gerou uma classe influente de traficantes de homens, em produção de açúcar. Note-se, contudo, que, se diversos
direção à América, e o crescimento da demanda por povos contavam com trabalho escravo, este não era muito
produtos usados no comércio com a costa africana, como o empregado na agricultura; cativos executavam sobretudo
fumo e a aguardente. tarefas artesanais. A mão de obra essencial para o setor
agrícola continuava a ser camponesa; isso até os
Europeus, desde a Antiguidade, conheciam diversas formas portugueses chegarem à costa da Guiné no século XV.
de escravidão — sistema que estava longe de ser extinto na
época das grandes navegações —, mas menos intensas ou A escravidão também estava presente na África, mas nesse
disseminadas do que aquela que surgiria a partir do século continente se desenvolveu paralelamente a sistemas de
XVI. Poucos foram os povos que deixaram de conviver com linhagem e de parentesco. Sem unidades políticas ou
o sistema escravocrata, e os que o praticavam sempre religiosas mais abrangentes, os africanos eram livres para
deram aos cativos o tratamento de “estrangeiros”, vender, comprar e até exportar escravos. Caravanas
julgando-os indivíduos sem história ou família. Não há realizavam grandes rotas pelo interior do deserto do Saara,
dúvida de que camponeses e servos muitas vezes se viram e desde o século VII mercadores islâmicos desempenhavam
em condições que lembravam uma escravidão temporária. o papel de traficantes de homens. A rota principal foi o
Entretanto, foi a falta de raízes, de direitos e de laços com a Norte da África, seguida pelo comércio do mar Vermelho e
comunidade o que distinguiu a escravidão dos demais pelo do Leste do continente, onde o sistema também
sistemas de trabalho, ainda que igualmente compulsórios. existia, mas não era fundamental para a economia local. Ou
seja, cativos dedicavam-se especialmente aos trabalhos
As cidades gregas e o Império Romano podem ser caseiros; somente em alguns poucos casos eram usados em
considerados os maiores exemplos de sociedades atividades de manufatura ou no pastoreio. Exerciam ainda
escravocratas da Antiguidade — no auge desse Império, na funções domésticas e religiosas, e por vezes escravas
Itália havia de 2 milhões a 3 milhões de escravos, que atuavam como concubinas ou eram compulsoriamente
representavam 35% a 40% da população total. No entanto, incluídas nos atos de sacrifício ritual. A despeito disso, o
diferentemente do que aconteceu na escravidão moderna, comércio permaneceu constante durante oito séculos,
nas antigas civilizações o trabalho compulsório não mostrando sua vitalidade; e não só o comércio interno,
significava a principal força para a produção de bens e como o internacional, que se dirigia, em particular, para a
realização de serviços. Mesmo com o declínio do Império Europa.
Romano e a concentração de cativos nas tarefas
domésticas, o sistema se manteve vigente. Tanto que nos O contato português com a África negra tinha igualmente
séculos V e VI, e durante as invasões bárbaras, são uma longa história, e antecedeu em até meio século a
constantes as referências à existência e uso de escravos. descoberta do Brasil. Em 1453, por exemplo, Zurara, em
Com as invasões muçulmanas das ilhas do Mediterrâneo e sua Crônica de Guiné, descrevia atividades lusas na foz do
da península Ibérica, a escravidão renasceu em força e rio Senegal. Nessa época, o interesse de Portugal estava

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mais voltado para o ouro, e os escravos, o marfim e a para o cumprimento de tarefas domésticas. Mas, com a
pimenta constituíam motivações apenas secundárias. introdução da cultura do açúcar, a história seria outra: os
Mesmo quando os portugueses começaram a traficar cativos tornaram-se indispensáveis na produção agrícola e
escravos, estes se destinavam privilegiadamente à Europa o interesse se voltou da pimenta para o tráfico de viventes.

Organização dos escravizados em um tumbeiro

Já em meados do XVI, Lisboa (ao lado de Sevilha) era a Ademais, naquele momento a “África” quase inexistia como
cidade europeia que mais possuía escravos negros. Se na realidade territorial, até mesmo para seus habitantes.
capital dos lusos havia cerca de 100 mil habitantes, 10 mil Antes do pan-africanismo do século XIX, a concepção
eram escravos negros ou mulatos. Em Cabo Verde, São ocidental era que sempre havia povos mais ao sul do Saara,
Tomé e Madeira desenvolveram-se ao longo do XVI e do “prontos para serem escravizados”. O certo é que, por no
XVII verdadeiras sociedades luso-africanas, condicionadas mínimo seis séculos, africanos foram exportados para a
pelo comércio transatlântico e pelo súbito aumento de Ásia, Europa e Oriente Médio. Estima-se em 6 milhões o
contato intercontinental após 1492. Em 1582, ao redor de número de africanos vendidos de forma coercitiva.
16 mil pessoas viviam nessas ilhas, sendo a maioria
escravos: 87% da população total. Os oceanos, que até A chegada dos portugueses à costa atlântica subsaariana
então haviam separado povos e culturas, agora em meados do XV alteraria radicalmente as modalidades de
estimulavam o contato, compulsório, graças às novas rotas comércio, tanto no que se referia à escala como no que se
marítimas e contando com as correntes favoráveis. Por referia ao recurso crescente à violência. A nova conquista
volta de 1520, portugueses mantinham um número alteraria também modalidades internas de guerra e de
razoável de feitorias na África, com os escravos vindo do redes de relacionamento no interior de Estados africanos.
baixo rio Zaire e do Benin e dirigindo-se, sobretudo, a São Se, como vimos inicialmente, Portugal estava pouco
Tomé e, a partir de 1570, ao rico mercado brasileiro. interessado em obter escravos, com a introdução da cana
Negociantes, em geral de origem sefardita (termo usado entre os principais produtos do Império a situação mudaria
para designar os povos judeus com origem na península completamente, em especial a partir da colonização de São
Ibérica e parte da Itália), passaram a cuidar do “açúcar do Tomé e das relações estáveis com congoleses que viviam
Brasil”. Por outro lado, a criação das grandes plantations próximos do rio Zaire.
americanas levou os portugueses a almejarem um mercado
em grande escala, que deveria dispor de abundante oferta
de mão de obra.

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Navio negreiro.

Naquele local os lusos mantinham forte presença e Foi o uso específico, aliado ao encarecimento da mão de
atuavam como clérigos, traficantes e soldados. Isso sem obra — ocasionado pela ascensão do Império Otomano no
esquecer a penetração da religião cristã, aceita pela família leste do Mediterrâneo e pela consolidação de um império
real congolesa, pelas elites e pela população urbana; as marroquino independente na África do Norte com a
boas relações entre as duas nações duraram, porém, decorrente restrição ao uso dessas populações —, além da
apenas até 1665. abertura do transporte marítimo para os mercados
subsaarianos, que tornou os cativos negros
Além do mais, se no princípio da colonização foram comparativamente mais baratos.
reexportados trabalhadores negros aculturados e
cristianizados da península Ibérica, com o incremento das Por outro lado, com o incremento do comércio do ouro e
atividades açucareiras no Brasil iniciou-se um movimento do marfim no Oeste da África, e o crescimento da atuação
direto da África para o Novo Mundo. Também se alterou a econômica portuguesa na Ásia, as relações ficaram mais
quantidade: enquanto na segunda metade do século XVI o corriqueiras. Por fim, a eficácia crescente dos traficantes do
volume de africanos que aqui entravam não excedia Atlântico na suplementação de mão de obra, a segurança
algumas centenas anuais, a partir da primeira década no suprimento de cativos vindos da África e o declínio dos
registraram-se em torno de mil “importações” por ano, preços levaram os africanos a se converterem, para a
alcançando 3 mil por ano já na década de 1580. Europa do século XVI, em sinônimo de mão de obra escrava
e a rumarem forçadamente em direção às colônias
Daí em diante, africanos não falantes de línguas românicas americanas.
ou cristãs, os chamados “boçais”, passaram a ser
exportados em massa para a América. Nesse aumento Foram transportados para as Américas de 8 milhões a 11
contaria muito a conquista de uma nova feitoria em milhões de africanos durante todo o período do tráfico
Luanda, que a partir de 1575 se transformaria em ativo negreiro; desse total, 4,9 milhões tiveram como destino
posto avançado para tal comércio. Por dois séculos Portugal final o Brasil.
concentraria suas feitorias em Luanda, na região do rio
Cuanza e Benguela, nunca reunindo mais de quinhentos Aliás, o sucesso do sistema de plantation brasileiro
homens brancos nesses lugares. influenciaria todos os regimes de agricultura escravistas, ao
passo que franceses, ingleses e espanhóis adotariam o
A essas alturas, os portugueses consideravam-se sistema português, com propriedades menores.
familiarizados com as populações africanas e as
classificavam como amigas ou inimigas, muçulmanas ou A operação começava com o apresamento em guerra ou
pagãs, mas não se preocupavam com a cor ou com o que emboscada dos futuros escravos pelos traficantes, seguido
hoje denominamos “raça”. de uma extensa viagem pelo interior africano. Os cativos
eram obrigados a percorrer longas distâncias até

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alcançarem os portos de embarque, e muitos não resistiam pertencentes a nobres ou reis. Em alguns lugares o
ao esforço físico ou a doenças que apanhavam durante o comércio era livre; em outros, controlado por governos e
deslocamento. Realizavam a operação os reinos africanos agentes mais intervencionistas, que impunham tarifas
aliados dos portugueses; estes últimos nunca se restritivas.
envolveram em tais atividades internas. Com o tráfico,
elites africanas tinham acesso a armas e bens de consumo Outro mito recorrente, e associado à falsa ideia do baixo
que caíram no gosto local, como a aguardente e o tabaco. preço dos escravos africanos, é o da destruição
inconsequente de vidas durante a viagem. Se de fato as
Nos portos, os capturados permaneciam amontoados por condições no navio eram as mais terríveis, também é claro
dias e às vezes meses, até que a carga humana completasse que o negociante não tinha interesse em que a mortalidade
o navio a ela correspondente, em barracões; nesses fosse alta a ponto de comprometer os lucros. Por isso
alojamentos precários, insalubres e sem ventilação, a mesmo, era preciso avaliar a quantidade de cativos em
mortalidade era alta. Partiam então nos “tumbeiros”, como relação às possibilidades de espaço dos navios. Fazia-se o
se chamavam os navios negreiros. Usualmente, antes até cálculo a partir do menor espaço costumeiramente
de entrarem nas embarcações, os escravizados eram reservado a tropas do exército ou grupos de condenados
marcados com ferro quente no peito ou nas costas, como em trânsito, mas o objetivo era levar “a carga” até seu
sinal de identificação do traficante a que pertenciam, uma destino.
vez que era comum se recolherem no mesmo navio cativos
de vários proprietários. Nos séculos XVI e XVIII, uma caravela portuguesa era capaz
de transportar quinhentos cativos, e um pequeno
Diferentemente do que se costuma pensar, os africanos bergantim até duzentos. Já no XIX, para reduzir o tempo de
não eram apenas apreendidos. Precisavam ser trocados por viagem, passou-se a fazer uso de navios a vapor, que
tecidos, instrumentos agrícolas, barras de metal, pólvora, levavam em média, cada um, 350 escravos. O fato de as
cachaça, rum e outras bebidas alcoólicas; produtos que se embarcações utilizadas para o tráfico serem geralmente
transformavam em moedas fortes nas mãos dos menores e desenhadas para abrigar a “carga humana” em
traficantes. Outro engano é descrever os negociantes seus porões põe abaixo outra versão corrente, a de que os
africanos como ingênuos ou passivos na comercialização. europeus triangulavam seu comércio, carregando produtos
Ao contrário, eles condicionavam as relações mercantis às europeus para a África, escravos para a América e açúcar
circunstâncias de seus próprios mercados. Os senhores para a Europa numa mesma viagem.
brasileiros preferiam ter trabalhadores de diversas etnias e
culturas para evitar comunicação entre eles e, desse modo, Procurava-se, de todo modo, otimizar os custos, colocando
impedir rebeliões. Já os traficantes locais escolhiam em o maior número de pessoas no navio, o que com frequência
geral, e por comodidade, transportar povos de uma mesma correspondia a uma queda no abastecimento de víveres.
região, sendo eles que normalmente determinavam os Nesses casos os escravos, que normalmente comiam uma
termos da transação. vez por dia, chegavam a passar a travessia inteira à base de
azeite e milho cozido, e bebendo pouquíssima água
O tráfico era um negócio complexo que englobava pontos potável, segundo atestam documentos. Entre os cativos,
fixos, barcos que navegavam em águas costeiras, fortes mal alimentados desde o aprisionamento no interior e
litorâneos e portos. Os comerciantes africanos variavam: expostos a uma dieta pobre em vitamina C, grassava o
podiam ser meros intermediários, ou fazer parte de escorbuto, a ponto de no século XVIII essa doença começar
monopólios estatais ou de organizações mais estáveis a ser chamada de “mal de luanda”.

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Representação da agonizante travessia.

A princípio deficientes, o abastecimento e o carregamento Sobraram poucos relatos acerca dos horrores desse tipo de
de víveres nos tumbeiros tenderam a se regularizar, ao viagem forçada. Em dezembro de 1649, frei Sorrento, um
menos para as necessidades mais básicas. A crescente capuchinho italiano que esteve num tumbeiro, contabilizou
rotinização levou à redução gradativa das taxas de novecentos cativos, e desabafou: “Aquele barco […] pelo
mortalidade. O padrão vigente a partir de 1700 intolerável fedor, pela escassez de espaço, pelos gritos
determinava que os traficantes carregassem um escravo e contínuos e pelas infinitas misérias de tantos infelizes
meio por tonelada, usassem o mesmo tipo de parecia um inferno” .
abastecimento, recorressem a procedimentos semelhantes
no que se referia ao transporte e à manutenção mínima da Falando em inferno, para as populações aprisionadas o
saúde dos cativos: métodos de higiene, exercícios, banho trauma da travessia estava relacionado, também, à
de sol diário por algumas horas, e assim por diante. preocupação com o destino das almas, uma vez que muitos
povos advindos da região do Congo e de Angola
Traficantes costumavam vacinar a tripulação contra varíola acreditavam que deveriam morrer junto “a seus vivos” e
e dividiam a população por sexo e idade, quando o número descendentes. Morrer no mar e num navio negreiro
de passageiros o permitia. Ainda assim, a taxa de óbitos constituía impedimento certo para que os espíritos
continuava alta: uma média de 10% dos jovens ou adultos retornassem para junto de seu povo e aldeia; essa era outra
saudáveis perecia numa viagem que durava de trinta a causa do sentimento que oscilava entre tristeza,
cinquenta dias. Para se ter uma ideia melhor, registre-se inconformismo, melancolia e raiva, e que dominava o
que, na França da época, essa quantidade de falecimentos ambiente a bordo.
era considerada sinal claro de epidemia. Muitas eram as
razões das mortes. Os maiores vilões: desarranjos Mas a travessia era igualmente feita de poucos porém
gastrointestinais, em geral relacionados à baixa qualidade duradouros ganhos. Na viagem, os companheiros de barco
dos alimentos e da água distribuída a bordo. Disenterias e de amizade chamavam a si próprios de “malungos”.
eram comuns, assim como o bloody flux, nome dado aos Construíam-se, apesar do contexto adverso, laços de
surtos de infecções intestinais causadores de óbitos em lealdade que permaneciam quando os amigos tinham a
escala epidêmica. Varíola, sarampo, febre amarela, tifo e sorte (rara) de serem vendidos para a mesma propriedade.
outras doenças contagiosas também contribuíam para É possível dizer inclusive que a mistura entre várias Áfricas
aumentar a mortalidade. Além do mais, os africanos começava já nessa ocasião, com os escravizados trocando
embarcados eram postos em contato com diversos povos, e doenças mas também culturas, práticas de todo tipo,
acabavam morrendo de enfermidades que lhes eram até amizade, cultos, crenças, segredos de cura e religiões. Tais
então desconhecidas e contra as quais não tinham defesas relações talvez expliquem o estado de desconfiança e
imunológicas. Há registros de mortes por suicídio: cativos medo, por parte dos traficantes, que reinava nos navios.
precipitavam-se ao mar ou recusavam sistematicamente a Frequentemente os escravizados iam acorrentados, dado o
alimentação oferecida. Isso sem esquecer a constante receio de que pudessem estourar rebeliões a bordo.
superlotação, outra responsável pelo grande número de
No século XVI, a viagem de Angola para Pernambuco
óbitos durante a travessia para a América.
demorava em média 35 dias, quarenta até a Bahia,
cinquenta para alcançar o Rio de Janeiro. Se os ventos não

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fossem favoráveis, esse prazo poderia se estender, e então açúcar, algodão e café, e eram consideradas boas
a falta de víveres seria ainda mais severa, elevando as “especialistas” para certas atividades. Já no continente
mortes para cerca de 20% dos transportados. africano, com seus sistemas matrilineares e matrilocais de
parentesco, que implicavam organizações econômicas,
Embora com tantos “contratempos”, o tráfico valia a pena sociais e culturais distintas, havia grande demanda por
como investimento. A demanda e o fluxo atlânticos eram mulheres, o que explica a diferença no suprimento. Em
marcados pelas necessidades dos agricultores da América, algumas sociedades elas eram bastante valorizadas por
e não respeitavam situação meteorológica ou mesmo causa da aquisição de status que o “acúmulo de esposas”
geográfica, como o contorno do cabo da Boa Esperança. Já poderia garantir, ou mesmo por conta das regras de
a divisão por sexo, idade e nacionalidade dos cativos era parentesco que levavam à formação de poderosas redes de
determinada pelas condições africanas. Traficantes sociabilidade. Ainda, em sociedades polígamas, escravas
europeus pouco sabiam sobre as sociedades da África e, a ajudavam a conferir poder aos senhores locais. Por fim, na
não ser pelos portugueses — que a essas alturas tinham África as mulheres eram muito procuradas para o trabalho
feitorias no Congo, em Angola e em Moçambique —, só agrícola, e especialmente na ocasião da semeadura. Tantos
tomavam contato com os aprisionados após o embarque. tipos de demanda explicam, também, por que as mulheres
Muitas vezes estes não falavam a mesma língua ou dialeto, que desembarcaram no Brasil tinham, muitas vezes, idade
e quase nada se conhecia dos grupos a que pertenciam. mais avançada.
Nem o que acontecia a poucos quilômetros da costa
traficantes imaginavam, ou queriam imaginar. Os navios traziam poucas crianças, uma vez que seu raro
uso imediato rebaixava o preço nos mercados americanos.
Casos como o das relações mais estáveis estabelecidas Na lógica dos traficantes, era melhor não reservar espaços
entre a capitania da Bahia e o golfo de Benin, no século XVI, para “mercadorias” com menor potencial lucrativo. Por
eram flagrante exceção. O mesmo pode ser dito do todas essas razões, entende-se o crescimento negativo de
desequilíbrio sexual: resultado mais das condições africanas escravos na colônia, sobretudo na primeira geração.
de fornecimento que da demanda americana. Homens Entende-se igualmente a necessidade de intensificação do
correspondiam a 65% das importações vindas do litoral, no tráfico negreiro, que ia se convertendo em negócio dos
entanto nem sempre chegavam como adultos, que era a mais relevantes. Se até antes de 1700 embarcaram 2,2
faixa etária mais estimada para o trabalho no campo. milhões de escravos, foi apenas no XVIII que o tráfico se
Mulheres, claro, tinham menos força, mas executavam tornou o principal bem de exportação africano.
tarefas semelhantes às dos homens nas plantações de

Debret representa a punição a um escravizado.

Os escravizados que chegavam à América falavam línguas ao catolicismo e aos cultos populares. Diante das proibições
distintas, e com frequência as vendas finais no continente sistemáticas feitas pela Igreja católica, os africanos
rompiam elos culturais e familiares entre eles, ou ao menos demonstraram muita habilidade em seus esforços de
essa era a intenção dos clientes interessados em evitar ocultar crenças sob um manto católico. As manifestações
possíveis insurreições e revoltas. As práticas religiosas de fundo religioso mais importantes nas Américas foram o
trazidas na bagagem foram por aqui alteradas, misturadas candomblé, o vodu e a santeria. O vodu foi mais comum em

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São Domingos, em especial aquele proveniente dos povos situados nas cercanias das áreas portuárias. Por conta da
fons (do Daomé). Já o candomblé nagô (iorubá) forneceu, viagem, eles aportavam magros e debilitados, com muitas
principalmente na Bahia, a base ritual para as outras feridas na pele: desde brotoejas até sarna. Crianças eram
variações praticadas por nações do Daomé, de Angola e do sempre desenhadas nas gravuras de época com a barriga
Congo. inchada, consequência de vermes e da desnutrição. Vários
africanos sofriam de escorbuto e de oftalmia, inflamação
Entre 1580 e 1590 entraram cerca de 6 mil africanos na nos olhos que se disseminava com frequência a bordo
primeira e 4 mil na segunda leva de escravizados com devido à falta de higiene e de sol.
destino nas capitanias de Pernambuco e Bahia. Apesar das
avaliações pouco precisas, estima-se que a população total Com o objetivo de valorizar a mercadoria, “maquiavam-se”
brasileira em 1584 era de 25 mil brancos, 18 mil índios os escravizados, antes de expô-los nos leilões e casas de
domesticados e 14 mil escravos negros. Vivíamos, pois, comércio. Eles eram, então, limpos e banhados; os homens
quase numa nova Roma negra: um êxodo forçado cujos tinham a barba e o cabelo raspados, e, para esconder
número e proporção superavam tudo que até então se doenças, passava-se óleo na pele. Com o mesmo propósito,
conhecera. distribuíam-se alimentos um pouco mais fartamente. Para
evitar um aspecto depressivo — o famoso “banzo”,
E assim, depois de longa e traumática travessia, os também conhecido como “doença da saudade” —, os
africanos chegavam aos portos do Brasil: Rio de Janeiro, negociantes davam aos cativos estimulantes como gengibre
Salvador, Recife, Fortaleza, Belém e São Luís eram os e tabaco. Anunciados nos jornais, os africanos, agora
principais importadores e distribuidores. No século XVII prontos para venda, eram dispostos a partir do sexo, idade
foram, sobretudo, Salvador e Recife que se firmaram como e nacionalidade. Proprietários e traficantes discutiam
grandes portos, e de lá cativos seguiam também para o abertamente as condições e preços — os homens adultos
Maranhão, Pará e rio Amazonas. Com a descoberta das alcançavam valores mais altos. E havia regras: durante
minas de ouro no século seguinte, o porto do Rio de Janeiro quinze dias, caso o escravo contraísse alguma doença, ou
ganhou impulso significativo, e daí os escravizados eram apresentasse problemas de deformidade física ou moral,
reexportados especialmente para Minas Gerais, Mato ele poderia ser devolvido. Aqueles que não fossem
Grosso e Colônia do Sacramento, ao sul da colônia, no vendidos imediatamente, passavam a ser negociados não
território do atual Uruguai. só por grandes casas comerciais como também por
pequenos e médios traficantes locais, mascates e tropeiros
Logo após o desembarque, as autoridades do lugar
que percorriam a colônia de um extremo a outro. Dessa
anotavam os recém-chegados por sexo e idade: o número
forma terminava a longa jornada desde as savanas
de “crias” — as crianças escravas que seguiam junto com as
africanas até os latifúndios da cana, as casas nas poucas
mães — era igualmente verificado. Feito o primeiro
cidades ou os campos dedicados à pecuária. Assim, unindo-
registro, os traficantes pagavam os impostos estabelecidos
se as várias pontas de um mesmo mapa, é que se instituiu e
no Brasil, sobre os escravos acima de três anos, e estes
fortaleceu o comércio escravagista, modalidade de
eram encaminhados para o local de leilão. Se houvesse
mercado que levou ao banimento e exílio de milhões de
clientes por lá, leiloavam-se os escravizados já na
pessoas.
alfândega; caso contrário, os conduziam a armazéns

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A representação do cotidiano em uma casa-grande por Debret.

Verdadeiro holocausto de inícios da era moderna, o


negócio lucrativo explorava o fato de esse sistema ser
muito eficaz. Ainda que constituísse o mais opressivo dos
modelos migratórios, era o que dava realmente conta da
produção crescente da cana-de-açúcar e, no século
seguinte, do ouro e do diamante. As vantagens econômicas
eram tais que garantiram a continuidade da empreitada, ao
menos em direção ao Brasil, até 1850 — quando o tráfico,
mas não a escravidão, foi extinto no país — e mesmo
depois.

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