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RESENHA

FERDINAND, Malcom. Uma e dá a tônica de cada capítulo com


ecologia decolonial: pensar a um navio e suas histórias marcantes
partir do mundo caribenho. São à dominação colonial do mundo e
Paulo: Ubu Editora, 2022. 320 p. à escravização dos pretos africanos
trazidos à força às Américas e submetidos
ao trabalho nas plantations. No texto, a
Lucas Rocha Salgado imagem colonial do mundo metaforiza
Universidade Federal do Rio de Janeiro, os navios negreiros cruzando o Atlântico
PPGAS/Museu Nacional, Rio de Janeiro, com pretos africanos escravizados por
RJ, Brasil
europeus brancos e por eles relegados
https://orcid.org/0000-0002-1323-5234
lucasrochasalgado@gmail.com ao porão, ao trabalho ou aos tubarões.
Em contrapartida a essa política, que
Ferdinand denomina de a política do
porão, estruturante do colonialismo,
O livro Uma ecologia decolonial ele propõe uma ecologia decolonial à
(2022) materializa o pensamento de imagem de um navio-mundo com um
uma ecologia pensada a partir do convés da justiça.
mundo caribenho. O que o autor chama de a dupla
O autor martinicano Malcom fratura da modernidade é crucial ao
Ferdinand é a continuidade de uma argumento do livro. A ideia é um
longa tradição de autores que partem da desdobramento da clássica separação
realidade caribenha para pensar questões moderna entre natureza e cultura, que
ligadas à configuração do mundo, as coloca o Homem (Wynter 1971) em
suas desigualdades contemporâneas e posição ontológica de superioridade
continuidades com o regime colonial em relação à natureza e à paisagem
e da plantation. O escritor cubano da qual faz parte. Tal fratura central à
Antonio Benítez-Rojo, a jamaicana ontologia moderna resultou em uma
Sylvia Wynter, o antropólogo Michel- histórica separação e em uma falta de
Rolph Trouilliot, nascido no Haiti, e o comunicação entre os movimentos pós-
trinitário-tobagense Eric Williams são coloniais e antirracistas e os movimentos
notórios representantes da potência ambientalistas. Para Ferdinand, a
caribenha para os campos acadêmico dupla fratura colonial e ambiental da
e literário e os estudos do colonialismo, modernidade é o principal problema da
do capitalismo e da plantation. crise ecológica. Um exemplo da dupla
A estrutura do livro de Ferdinand fratura é o fato de a palavra antirracismo
possui uma escolha literária que inicia não ter feito parte do vocabulário dos

MANA 29(1): e2023011, 2023 – http://doi.org/10.1590/1678-49442023v29n1e2023011.pt ISSN: 1678-4944


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movimentos ecologistas durante muito relações que teciam outros mundos:


tempo. Como pensar a necessidade outras maneiras de habitar a Terra.
de lutas ecológicas sem considerar a Modos ameríndios que conceberam a
máquina colonial responsável por esse Terra como mãe nutriz, não como insumo
modelo de mundo? A obviedade dessa ou meras terras a serem exploradas.
relação se ilumina depois da leitura de Junto ao genocídio ameríndio houve
Uma ecologia decolonial. um matricídio praticado pelo habitar
Por não ter sido sempre uma colonial, uma mudança referencial da
relação assim tão óbvia, a dupla fratura Terra para o que Ferdinand denomina
da modernidade criou a metáfora da de uma Terra sem manman e humanos
arca de Noé como política adequada à sem Mãe Terra. Essa recusa de mundo
Terra diante da tempestade ecológica aos povos ameríndios se complementou
“trancando no fundo do porão da com a política do porão, dispositivo
modernidade os gritos de apelo por fundador do mundo moderno que
um mundo” (Ferdinand 2022: 32). O exclui os pretos da dignidade de uma
navio-mundo com seu convés da justiça, existência, de um mundo, da Terra.
como proposto pela ecologia decolonial À força retirados de terras africanas,
oferecida no livro de Ferdinand, por sua levados às Américas e tendo sua
vez, faz um deslocamento epistêmico qualidade de outro negada mesmo
dos pensamentos do mundo e da Terra, com o desembarque nas plantations, o
e Malcom Ferdinand faz, a partir do escravizado preto, por não poder ser o
mundo caribenho, uma ecologia outro, torna-se, portanto, o fora. Fora
decolonial. Uma ecologia que muda do mundo comum do habitar colonial.
o centro de produção desses saberes Para pensar uma ecologia a partir do
e se constrói a partir de antirracismo, Caribe, Ferdinand elucida a narrativa
antiespecismo e feminismo como mítica que é própria do arquipélago, não
questões fundantes das suas lutas, redutível a remanescências da África, da
seguindo o convite de Aimé Césaire Europa ou das Américas. Um imaginário
para alcançar o centro da tempestade. fundado em meio ao tráfico negreiro
Para Malcom Ferdinand, a transatlântico e à escravidão colonial.
tempestade ecológica em curso, a qual “Como começo, o navio negreiro
Uma ecologia decolonial persegue o representa os inícios, a cena primordial
seu centro, revela problemas e danos do mundo crioulo” (Ferdinand 2022: 155).
que são próprios de uma determinada Os navios negreiros foram máquinas
maneira de habitar a Terra: o habitar que produziram o Negro como categoria
colonial. As violências constituintes sociopolítica de seres escravizados
do mundo colonial e da sua forma coloniais. Ferdinand denomina
de habitar – da engenharia global política do desembarque as disposições
de transformação das paisagens em e engenharias sociais e políticas
plantations – impuseram rupturas de engendradas pelo navio negreiro,

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produtoras de uma relação de alienação colonial. Essa nova forma de habitar


com os corpos, com a Terra e com o relaciona antiescravismo e construção
Mundo. Corpos perdidos, aculturados, da paisagem. A vida fora do mundo
destituídos de seus pertencimentos e colonial seria uma ilusão, portanto, a
práticas culturais por meio dos quais prática de fuga não permite escapar dele,
faziam parte de uma relação com a Terra segundo Ferdinand, mas possibilita
habitada por humanos e não humanos. outras maneiras de habitar a Terra: outro
O Negro é produto do navio negreiro. mundo. Quilombolas em suas fugas
Tal alienação do mundo aos pretos trilharam caminhos com seus jardins
não significou, entretanto, que não crioulos que, como o autor bem coloca,
impusessem resistência criando práticas teceram à mão um cordão umbilical nas
emancipadoras do mundo colonial. Suas terras das Américas seguindo rastros
ações tensionaram o projeto colonial deixados nas florestas pelos ameríndios.
em diversos pontos, com sofisticadas Essa matrigênese traduz a metamorfose
formas de sabotagem e também no crioula que cria um corpo novo, um eu a
cotidiano da realidade das plantations. A partir de um nós, em uma nova relação
necessidade de alimentos, por exemplo, com o corpo, com a Terra e com sua
inicia a concessão de lotes para cultivo participação em uma vida coletiva.
pelos escravizados. Essa experiência de A prática ecologista do quilombola
jardins (roças como chamaríamos no é condição de sua emancipação e a
Brasil) se tornou “uma primeira forma Terra sem manman, na matrigênese do
de apropriação e de construção do aquilombamento, se torna Mãe Terra.
território pelos escravizados” (Benoît A ecologia decolonial proposta
2000 citado em Ferdinand 2022:76). por Malcom Ferdinand por meio da
Modelos de construção do território metáfora do navio negreiro é uma saída
criados pelos pretos escravizados do porão do mundo moderno. Ela busca
fizeram raízes se aterrando nas Américas. se distanciar de um ambientalismo à
“Diante de um habitar colonial imagem do que ele denomina de arca de
devorador de mundo, os quilombolas Noé. A arca de Noé, com suas políticas do
colocaram em prática outra maneira embarque, representa, para o autor, uma
de viver junto e de se relacionar com a metáfora política sobre os pensamentos
Terra” (Ferdinand 2022:168). clássicos da ecologia e suas teorias
O livro explicita o aquilombamento1 de enfrentamento à crise ecológica.
como uma das formas mais potentes Esse tipo de ambientalismo possui o
de resistência ao habitar colonial e à que Ferdinand chama de disposições
servidão. Nessa maneira de estabelecer e engenharias do embarque, as quais
mundos para além da dominação das atuam pela lógica da sobrevivência à
plantations há uma nova forma de catástrofe legitimando uma seleção
liberdade habitando essas terras das violenta do embarque, mantendo, assim,
Américas em contraposição ao habitar a dupla fratura ambiental e colonial

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do pensamento moderno. A ecologia navio-mundo a partir de um encontro


decolonial, por sua vez, questiona capaz de superar a dupla fratura
o habitar colonial da Terra e propõe ambiental e colonial do pensamento
desconstruir os agenciamentos políticos moderno em uma nova postura ecológica
que mantêm o porão da modernidade.
em relação a habitar a Terra. Um outro
“Dékalé 2 o Antropoceno abre a
(navio-)mundo sem porão, onde seja
possibilidade de outro mundo, de outra
possível aos companheiros de bordo
construção do viver-junto, de um navio
sem porão (Ferdinand 2022: 210). habitarem juntos o convés da justiça
A imagem trazida pelo livro como para enfrentar a tempestade em curso.
proposta de uma ecologia decolonial O livro Uma ecologia decolonial é um
representa a construção de um passo nesse sentido.

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Notas
1 No livro os termos “marron” e seus derivados foram traduzidos por “quilombola” e seus
derivados na língua portuguesa. “Aquilombamento” na versão brasileira corresponde
à “marronage” caribenha. No entanto, o autor enfatiza que, independente de onde
tenham ocorridos tais processos, eles são a corporificação do princípio de oposição à
escravidão em uma perspectiva coletiva e transnacional.
2 Segundo o livro (Ferdinand 2022: 210), “dékale” significa “destruição”, é uma palavra
crioula para a francesa “décaler”.

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Referências
BENOÎT, Catherine. Corps, jardins, caribenho. São Paulo: Ubu Editora, 2022.
mémoires. Paris: CNRS Éditions & 320 p.
Maisons des Sciences de l’Homme, 2000.
WYNTER, Sylvia. Novel and history, plot
FERDINAND, Malcom. Uma ecologia and plantation. Savacou, v. 5, n. 1, p.
decolonial: pensar a partir do mundo 95-102, 1971.

Editora-chefe: María Elvira Díaz Benítez


Editor Associado: John Comerford
Editora Associada: Adriana Vianna

Recebido em 09 de novembro de 2022.


Aprovado em 07 de março de 2023.

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