Você está na página 1de 12

O pensamento decolonial:

análise, desafios e
perspectivas

Texto de: MAURÍCIO DE NOVAIS REIS


MARCILEA FREITAS FERRAZ DE ANDRADE

Licenciatura em Pedagogia

NOVAIS REIS, MAURÍCIO; FREITAS FERRAZ DE ANDRADE, MARCILEA. O


pensamento decolonial: análise, desafios e perspectivas. Revista Espaço
Acadêmico, [s. l.], ed. 202, p. 1-11, 2018.
O pensamento decolonial: análise, desafios e perspectivas
MAURÍCIO DE NOVAIS REIS*
MARCILEA FREITAS FERRAZ DE ANDRADE**

Resumo: O presente artigo tem como escopo essencial discutir o pensamento


decolonial na perspectiva da reestruturação das nações africanas no âmbito da
aquisição da consciência política de sua autonomia sociocultural de campo epistêmico
legitimamente constituído, bem como identificar e explicitar conceitos necessários para
se pensar a decolonialidade no interior de uma construção gnosiológica da
emancipação dos povos africanos. A partir das conceituações presentes no decurso das
argumentações, surgem elementos da realidade brasileira e latino-americana que
convergem com a realidade africana. Os conceitos analisados revestem-se de relevância
fundamental porque estão amparados no arcabouço das práticas políticas –
colonialismo, modernidade, transculturalidade, colonialidade do poder – e retomam
debates imprescindíveis para se pensar as culturas colonizadas no contato com a
modernidade.
Palavras-chave: Decolonialidade; Transculturalidade; Estudos Subalternos;
Colonialidade do Poder.
The decolonial rationality: analysis, challenges and perspectives
Abstract: The present article has as object of rationality discuss the decolonial thought
in the perspective of the restructuring of the African nations in the ambit of the
acquisition of the political conscience of its socio-cultural autonomy of legitimately
constituted epistemic field, as well as to identify and to explain concepts necessary to
think the decoloniality within a gnosiological construction of the emancipation of the
African peoples. From the conceptualizations present in the course of the arguments,
there are elements of the Brazilian and Latin American reality that converge with the
African reality. The concepts analyzed are of fundamental importance because they are
supported by the framework of political practices - colonialism, modernity,
transculturality, coloniality of power - and return to essential debates to think of
cultures colonized in contact with modernity.
Key words: Decoloniality; Transculturality; Subaltern Studies; Coloniality of Power.

*
MAURÍCIO DE NOVAIS REIS é mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em Ensino e
Relações Étnico-Raciais da Universidade Federal do Sul da Bahia.

**
MARCILEA FREITAS FERRAZ DE ANDRADE é mestranda pelo Programa de Pós-
Graduação em Ensino e Relações Étnico-Raciais da Universidade Federal do Sul da Bahia.

1
Introdução Na contemporaneidade, especialmente
O colonialismo europeu resultou em após decurso da época de
complexas marcas na civilização dos aquinhoamento e colonialismo do
povos colonizados, especialmente no continente africano, cujos efeitos podem
continente africano. A situação colonial, ser inferidos hodiernamente, torna-se
necessário o debate acerca dos
conforme analisada e teorizada pelo
etnólogo francês Georges Balandier caminhos pós-coloniais trilhados pelos
(2014), provocou transformações povos africanos anteriormente
profundas na cultura dos sujeitos subalternizados mediante o severo
domínio neocolonialista imposto pelas
envolvidos no processo colonialista
decorrido desde o final do século XIX nações europeias, sob o pretexto de
até a primeira metade do século XX. Se levar “civilização” aos “primitivos”
por um lado o empreendimento colonial habitantes de África (BALANDIER,
das nações europeias objetivava a 2014, p. 52). Este pretexto justificou,
obtenção de vantagens econômicas entre outras coisas, a instalação
europeia no continente africano.
mediante a expansão do capitalismo
industrial, com a abertura de novos Afirmando combater “o mercadejo de
escravos, ingleses e franceses ocuparam
mercados fornecedores de matéria-
cidades e portos africanos, humilharam
prima, ensejava também a abertura de
e depuseram chefes, sobas e reis” e
mercados consumidores. Por outro lado,
promoveram o enfraquecimento dos
os próprios sujeitos europeus
envolvidos no sistema colonial foram reinos africanos então existentes com o
escopo de impor seu poder (COSTA E
afetados pelo intercâmbio cultural
existente na “zona de contato” SILVA, 1994, p. 30).
estabelecida no encontro entre as As palavras introdutórias ora expressas,
diferentes identidades culturais, a despeito de contemplar uma série de
produzindo o fenômeno designado por elementos que seriam justificadamente
“transculturação” (PRATT, 1999). acolhidos no corpo deste trabalho,
Não obstante as nações africanas surgem nesta introdução como
tenham conseguido suas independências dimensões contextualizadoras dos
políticas mediante um colossal acontecimentos concernentes à
movimento de resistência, adentrando historiografia do neocolonialismo em
no que se habituou designar de período África, a fim de que a discussão
pós-colonial, observam-se as propriamente dita no tocante ao
irrefragáveis alterações culturais pensamento decolonial torne-se mais
ocorridas na vida dos mais variados palatável, visto que a necessidade de
povos integrantes desse continente. As compreensão histórica dos eventos
marcas da situação colonial persistem constitui contributo indispensável para o
como chagas abertas na cultura dos majoramento do conhecimento. Assim,
povos africanos, mesmo no período situar historicamente os eventos
posterior à independência política dos conforme ocorridos subsidiará a
seus países diante do seu compreensão dos argumentos ensejados
reconhecimento como Estados pelo pensamento decolonial, os quais
soberanos; por exemplo, os idiomas serão recorrentemente utilizados no
oficiais desses Estados são, decurso deste ensaio teórico.
majoritariamente, línguas impostas Neste sentido, o presente tem como
pelos colonizadores. escopo essencial discutir o pensamento

2
decolonial na perspectiva da Nesta perspectiva, torna-se necessário
reestruturação das nações africanas no estabelecer as diferenças fundamentais
âmbito da aquisição da consciência entre os termos “pós-colonial” e
política de sua autonomia sociocultural “decolonial”. Tendo esboçado no
de campo epistêmico legitimamente parágrafo anterior a fundamentação
constituído, bem como identificar e etimológica do termo
explicitar conceitos necessários para se “decolonialidade”, passaremos agora,
pensar a decolonialidade no interior de embasados nas noções trazidas por
uma construção gnosiológica da estudiosos desta seara específica, a
emancipação dos povos africanos. elaborar uma conceituação do vocábulo
Logo, os conceitos analisados revestem- “pós-colonial”. Todavia, urge explicitar
se de relevância fundamental porque se que os pensamentos pós-colonial e
amparam no arcabouço das práticas decolonial constituem projetos que
políticas – colonialismo, modernidade, estão sendo construídos à medida que as
transculturalidade, colonialidade do relações sócio-históricas acontecem no
poder – e retomam debates âmago da sociedade moderna2. Assim, o
imprescindíveis para se pensar as pensamento pós-colonial articula-se na
culturas colonizadas, especialmente, no perspectiva de demonstrar as
que concerne a este artigo, as culturas dessemelhanças antagônicas existentes
africanas. entre colonizador e colonizado,
denunciando essa discrepância como
Pensamento pós-colonial e decolonial
um projeto de domínio e opressão.
O pensamento decolonial1 objetiva Larissa Rosevics explica que
problematizar a manutenção das
O projeto pós-colonial é aquele que,
condições colonizadas da ao identificar a relação antagônica
epistemologia, buscando a emancipação entre colonizador e colonizando,
absoluta de todos os tipos de opressão e busca denunciar as diferentes
dominação, ao articular formas de dominação e opressão
interdisciplinarmente cultura, política e dos povos. Como uma escola de
economia de maneira a construir um pensamento, o pós-colonialismo
campo totalmente inovador de não tem uma matriz teórica única,
pensamento que privilegie os elementos sendo associado aos trabalhos de
epistêmicos locais em detrimento dos teóricos como Franz (sic) Fanon,
legados impostos pela situação colonial. Albert Memmi, Aimé Césaire,
Edward Said, Stuart Hall e ao
Grosfoguel aponta que “é preciso
Grupo de Estudos Subalternos,
descolonizar não apenas os estudos criado na década de 1970 pelo
subalternos como também os pós-
coloniais” (apud ROSEVICS, 2017, p.
189).
2
“O pensamento decolonial reflete sobre a
colonização como um grande evento prolongado
e de muitas rupturas e não como uma etapa
histórica já superada. [...] Deste modo quer
1
O vocábulo “decolonial” é utilizado no lugar salientar que a intenção não é desfazer o
de “descolonial” em virtude da indicação de colonial ou revertê-lo, ou seja, superar o
Walter Mignolo “para diferenciar os propósitos momento colonial pelo momento pós-colonial.
do Grupo Modernidade/Colonialidade e da luta A intenção é provocar um posicionamento
por descolonização do pós-Guerra Fria, bem contínuo de transgredir e insurgir. O decolonial
como dos estudos pós-coloniais asiáticos” implica, portanto, uma luta contínua”
(ROSEVICS, 2017, p. 191). (COLAÇO, 2012, p. 08).

3
indiano Ranajit Guha (2017, p. é construído discursivamente a
187). partir do olhar do colonizador, e
como o colonizado se constrói
As marcas indeléveis da situação tendo por base o discurso do
colonial simplesmente não colonizador (ROSEVICS, 2017, p.
abandonaram os povos colonizados, 188).
tampouco os abandonarão, tendo-se em
vista a magnitude da operação do Não obstante o pensamento pós-colonial
processo colonial que hodiernamente se esteja intrinsecamente vinculado às
desdobra na colonialidade do poder. lutas pela independência dos países
Nesta esteira, fez-se necessário que africanos, deve-se considerar que a
pesquisadores estruturassem um África não foi o único continente onde o
pensamento inovador, que, conforme neocolonialismo se instalou. Na
salienta Rosevics, não se trata de uma América Latina os processos de
matriz teórica única, mas de um colonização demarcaram a hegemonia
emaranhado de olhares e vozes que se econômica das nações europeias,
debruçaram insistentemente sobre a forçando a resistência anticolonialista a
temática da interferência política, desenvolver estratégias de combate à
cultural e econômica resultante do dominação dos seus povos. Foi nesta
neocolonialismo, tanto em África como perspectiva que Frantz Fanon escreveu
em outros continentes do planeta nos o livro “Pele Negra, Máscaras Brancas”
quais este penetrou incontestavelmente. (2008), no qual descreve como jovens
Esse emaranhado de vozes ergueu-se antilhanos, ao emigrarem para a França,
retumbantemente contra a hegemonia retornam simbolicamente
política, econômica e epistemológica embranquecidos, transformados em
europeia que reivindicava o domínio franceses, dominando a sua língua e a
soberano sobre as terras do sul. sua cultura. Fanon demonstra que o
colonialismo não está baseado somente
O pós-colonialismo tem seu nascedouro no poderio bélico e econômico das
marcado pelo processo de nações europeias, mas principalmente
independência dos países africanos, na diferença de raça.
assumindo a responsabilidade de
encontrar – ou até mesmo de criar – Todo povo colonizado — isto é,
uma identidade africana3. todo povo no seio do qual nasceu
um complexo de inferioridade
A preocupação dos estudos pós- devido ao sepultamento de sua
coloniais esteve centrada nas originalidade cultural — toma
décadas de 1970 e 1980 em posição diante da linguagem da
entender como o mundo colonizado nação civilizadora, isto é, da cultura
metropolitana. Quanto mais
3
Achille Mbembe (2001, p. 198) empreendendo assimilar os valores culturais da
uma análise minuciosa das diferentes maneiras metrópole, mais o colonizado
como se tentou pensar uma identidade africana escapará da sua selva. Quanto mais
utilizando-se, essencialmente, de duas ele rejeitar sua negridão, seu mato,
formulações discursivas, a saber, o discurso mais branco será (2008, p. 34).
nativista e o discurso instrumentalista, parece, à
guisa de conclusão, concordar com Appiah Fanon argumenta que o negro que viveu
(1997, p. 243) de que não há uma identidade algum tempo na França retorna
africana que “possa ser nomeada por uma única
palavra”, mas que, sendo uma “coisa nova”, a
completamente transformado.
“identidade africana não existe como Depreende-se disso que o mundo
substância.” colonizado é constituído a partir do

4
olhar do colonizador, dos valores do localmente pelos povos subalternizados
colonizador, da branquitude do na situação colonial.
colonizador. É a partir dos valores
introjetados pelo colonizador nas Neste sentido, o conhecimento
mentes dos sujeitos subalternizados que apresenta-se como elemento-chave na
os valores colonizados passam a ser disputa e na manutenção da hegemonia
estruturados, numa lógica de (NOGUERA, 2014, p. 23). Ciente disso,
inferioridades racial, econômica, bélica, o eurocentrismo colonial colocou seu
linguística e cultural que impõe aos equipamento epistêmico em pleno
indivíduos colonizados um paradigma funcionamento dividindo os humanos
de valores fundamentados, em raças e desqualificando todos os
notadamente, nos valores dominantes povos não europeus, o que acarretou na
articulados pelo aparato cultural do imposição sistemática da cultura
colonizador. Grosso modo, é o “colono europeia sobre os demais povos. O
que fez e continua a fazer o colonizado” sociólogo peruano Aníbal Quijano
(FANON, 1968, p. 26)4. (2010, p. 84) assevera que o conceito de
colonialidade refere-se às condições de
Transpondo o pensamento pós-colonial, estabelecimento do sistema capitalista
“o pensamento decolonial propõe como modelo de funcionamento das
romper com os pensamentos gravados relações de poder na modernidade, que
nas mentes e corpos por gerações”, operam mediante a “imposição de uma
representados, por exemplo, pelas classificação racial-étnica da população
tradições greco-romanas, eurocentradas, do mundo”. Destarte, o capitalismo
incorporando “o pensamento dos povos opera mediante uma lógica étnico-
originários (índios) e de diáspora racial, subsidiando um paradigma
forçada (negros)” como epistemologias completamente novo de império, a
legítimas para a cultura dos povos saber, a “colonialidade do poder”, que
colonizados (COSTA NETO, 2016, p. promove uma classificação social
51). Trata-se, por conseguinte, de mediante os aspectos culturais de
conceder voz às narrativas oriundas de controle e domínio dos povos outrora
experiências históricas vivenciadas subalternizados pelo colonialismo.
Assim, o processo de descolonização
intelectual torna-se laborioso em
4
“C'est le colon qui a fait et qui continue à faire decorrência dos resquícios do
le colonisé” (FANON, 2002, p. 40). Neste colonialismo nas culturas dos povos
sentido, Valentim Yves Mudimbe (2013, p. 15- colonizados.
16) elucida que o vocábulo “colonos” refere-se
àqueles “que estabelecem uma região”, A perspectiva da colonialidade são
enquanto que “colonizadores” diz respeito percepções que emergem de
àqueles “que exploram um território pelo experiências fronteiriças, nas quais
domínio de uma maioria local”. Parece ficar um indígena sob o domínio
evidente que o sentido expresso por Frantz espanhol, por exemplo, viu-se
Fanon ao utilizar, no fragmento mencionado, o obrigado a incorporar às suas
termo “colono”, era designar os
referências de vida conceitos e
“colonizadores”, posto que o contexto expresso
pelo autor indica forte antagonismo, embora
noções da epistemologia moderna
refira-se à coabitação, entre colonizadores e (LEDA, 2015, p. 124).
colonizados. Resta-nos, contudo, buscar
compreender as razões pelas quais o autor
Em contraponto à lógica da
utilizou a palavra “colon” em vez de colonialidade, o giro decolonial objetiva
“colonisateur” na expressão ora analisada. transfigurar a concepção de mundo,

5
transpassando os conhecimentos crença iluminista na transparência
estabelecidos pela racionalidade da linguagem em prol de uma
(pós)moderna (MIGNOLO, 2003). O fratura epistemológica capaz de
projeto da decolonialidade não é inserir uma perspectiva inédita e
fundado no discurso acadêmico, libertadora tanto no campo
discursivo como na esfera da ação,
tampouco trata de uma inovação
assumindo a impossibilidade de
intelectiva, mas faz emergir qualquer ciência falar em nome de
conhecimentos que sempre existiram e coletividades heterogêneas e
que não encontravam espaço de multifacetadas mas a premência de
apreciação, invisibilizados pelos saberes se insurgir contra quaisquer
acadêmicos eurocentrados. Na estruturas de poder e opressão que
consecução do projeto decolonial, silenciem alguém. A denúncia da
percebe-se a preponderância da geopolítica do conhecimento é
transculturalidade sistêmica, ou seja, condição de afirmação, dentre
explicita-se, no âmbito do encontro de outros, também da América Latina,
culturas5 que os impactos culturais não ou melhor, da América Indo-Afro-
Latina como lócus de enunciação
afetam apenas as nações colonizadas,
(MIGLIEVICH-RIBEIRO, 2014, p.
mas também as nações colonizadoras, 78).
possibilitando falarmos em
transculturalidade como um fenômeno No aspecto próprio do conhecimento e,
da “zona de contato” instalada nos particularmente, da cultura, a
limites das tensões estabelecidas pela racionalidade decolonial questiona não
situação colonial (PRATT, 1999). Não somente os espaços de poder em que as
somente o universo semântico do tensões acontecem, mas também os
colonizado retornou impregnado pela territórios geopolíticos em que as
cultura do colonizador, como algo relações de poder se materializam,
especialmente similar ocorre no sentido fundamentadas na suposta legitimidade
contrário, resultando numa “troca” pós-industrial do conhecimento
cultural e epistêmica. Entretanto, no sistematizado como epistemologia
volume, o colonizador conseguiu homogeneizadora. Se as bases históricas
implementar a sua cultura com maior da modernidade institucionalizaram-se
êxito do que o subjugado, haja vista que no Iluminismo e na Revolução Francesa
o lugar ocupado pelo colonizador mediante o liberalismo político e
apresenta-se como lugar de poder econômico que corroboraram a
hegemônico hierarquizado racionalidade eurocentrada como
institucionalmente. princípio orientador da iluminação da
O principal desafio ético-político- consciência política e filosófica
epistemológico trazido pela razão ocidental, hierarquizando as relações de
decolonial é a consciência da poder dentro de uma geopolítica própria
geopolítica do conhecimento, a de dominação protagonizada pelo
partir da qual se trata de rejeitar a Ocidente, de outro lado, as raízes
históricas da decolonialidade
5
Torna-se necessário diferenciar a expressão encontram-se fixadas na Conferência de
“encontro de culturas” da expressão usualmente Bandung de 1955, onde representantes
utilizada “choque cultural”, trazida por Lisa de 29 países dos continentes africano e
Velazquez para designar a angústia sentida por
indivíduos que se veem operando no interior de
asiático reuniram-se para sistematizar as
um ambiente sociocultural desconhecido (apud bases de “um futuro que não fosse nem
MENDONÇA, 2014, p.70). capitalista nem comunista”, mas que

6
tivesse como elemento central a orientação teórico-metodológica na
reflexão sobre as epistemologias produção dos conhecimentos.
subalternas (MIGNOLO, 2017, p. 14). Na perspectiva do projeto
O caminho encontrado foi a decolonial, as fronteiras não são
descolonização. somente este espaço onde as
Todavia, não se trata do diferenças são reinventadas, são
estabelecimento de uma meta também loci enunciativos de onde
são formulados conhecimentos a
simplesmente descolonizadora no
partir das perspectivas,
sentido de retirar os sedimentos cosmovisões ou experiências dos
coloniais da cultura subalterna, uma vez sujeitos subalternos
que esta opção culminaria na (BERNARDINO-COSTA &
possibilidade do encontro com o vazio GROSFOGUEL, 2016, p. 19).
epistêmico, que acabaria por legitimar o
Apropriar-se dos recursos utilizados
epistemicídio promovido pelo
pelo colonizador tornou-se necessidade
etnocentrismo europeu e demonstraria a
premente para a construção de um
não-epistemologia colonizada. Pelo
projeto decolonial verdadeiramente
contrário, o escopo decolonial não se
emancipatório. Neste aspecto, torna-se
refere apenas a retirar a roupagem
oportuno lembrar dos projetos de
europeia das sociedades colonizadas,
educação escolar indígena atuais no
mas resgatar e até mesmo reconstruir as
Brasil, liderados pelos movimentos
epistemologias autóctones,
indígenas que reivindicam maior
violentamente destroçadas pelo
atenção às suas culturas no âmbito da
(neo)colonialismo.
diversidade gnosiológica. A
Para tanto será necessário o uso de decolonialidade perpassa
recursos parecidos com aqueles invariavelmente a descolonização
utilizados pelos europeus. Os franceses, epistêmica do lugar ocupado pelos
por exemplo, adentrando em África, sujeitos indígenas, ensejando do Estado
estimularam a construção de escolas e o fomento de modelos diferenciados de
inseriram elementos da sua cultura nos currículos escolares que garantam o
seus currículos justificando o “acesso” protagonismo dos povos indígenas
dos autóctones à civilização. brasileiros dentro de suas peculiaridades
Similarmente, a fim de se colocar em culturais, econômicas e sociais
prática o projeto decolonial, tornar-se-á (BRASIL, 2006).
necessário utilizar os aparatos
Nessa perspectiva educacional, os
educacionais, políticos e curriculares a
modelos de educação indígena têm sido
fim de se proporcionar o direito à voz
tomados como alternativas pedagógicas
aos sujeitos subalternos, constituindo-os
decoloniais importantes, pois trazem
como seres epistemologicamente
cosmovisões diferentes como, por
situados na práxis reflexiva da condição
exemplo, a visão não exploratória da
subalterna. Para tanto, tornar-se-á
natureza ou do trabalho, ou ainda a
necessário um currículo educacional
valorização dos interesses coletivos
cuja pluriversalidade6 configure
6
Advogando a existência de vários universos forma, defende a utilização do conceito de
culturais, Mogobe Ramose, filósofo sul- pluriversalidade para referir-se a um conjunto
africano, argumenta que o vocábulo “universal” de sistemas policêntricos no qual os
pressupõe um sistema único organizado conhecimentos possuem semelhante valor
hierarquicamente em centro e periferia. Desta epistemológico (RAMOSE, 2011).

7
antes dos individuais – valores que emancipatório e libertador. Explicite-se,
põem em questionamento “categorias ademais, que o fato de não constituir um
explicativas (e normativas) até então projeto comunista à medida que opera
naturalizadas como absolutas” na contramão do capitalismo, sistema
(MIGLIEVCH-RIBEIRO, 2014, p. 68). imbuído de assimetrias, não podemos
conceber o projeto decolonial como
Pensar a educação indígena remete-nos
aderente à noção de terceira via7,
aos fundamentos legais que regem o
conforme teorizado pelo sociólogo
modelo de Educação Escolar Indígena,
britânico Anthony Giddens (1999). O
como a LBD 9394/96, cujo artigo 78 do
projeto decolonial refere-se
título VII preconiza que o Sistema de
primordialmente à condição de
Ensino da União deverá desenvolver
libertação dos povos subalternos,
programas integrados de ensino e
reconhecendo sua autenticidade
pesquisa, para a oferta de educação
cultural, política, econômica e
escolar bilíngue e intercultural aos
ideológica. Afinal, liberdade não tem
povos indígenas (BRASIL, 1996). Vale
preço, tem valor.
ressaltar, entretanto, que na América
Latina o termo interculturalismo tem Considerações finais
sido apropriado pelas políticas As profundas marcas produzidas pela
neoliberais integracionistas que sem experiência colonial na realidade
visar a transformação das estruturas cultural e territorial dos povos africanos,
coloniais de poder, buscam apenas asiáticos e americanos operam como
amenizar conflitos étnicos e assegurar matriz ideológica de processos
os interesses do capitalismo compreendidos mediante os designados
globalizado. A esse tipo de estudos subalternos, cuja perspectiva de
interculturalismo, Walsh chama de reflexão da colonialidade do poder
funcional. Em contrapartida a esse perpassa certamente os elementos mais
interculturalismo funcional, é proposto sutilmente imbricados na cosmovisão
então, o interculturalismo crítico. De dos povos colonizados. Tornou-se
mãos dadas com a decolonialidade, o imprescindível, consequentemente,
interculturalismo crítico aparece como repensar a situação colonial mediante as
alternativa ao projeto neocolonial na construções epistemológicas produzidas
medida em que propõe a a partir do processo de independência
“transformação radical das estruturas,
instituições e relações existentes”,
partindo das cosmologias dos 7
A terceira via constitui-se um fenômeno
submetidos e subalternizados pelo poder político-econômico cujo escopo refere-se à
hegemônico ocidental mercadológico reconciliação entre elementos ideológicos da
esquerda e da direita, uma vez que defende uma
(WALSH, 2009, p. 22). política econômica aparentemente conservadora
A descolonização intelectual mostrar- associada a uma política social progressista.
Neste sentido, a terceira via, advoga a
se-á indispensável na mesma medida necessidade de uma intervenção moderada do
em que a colonização do pensamento Estado na economia alinhada à responsabilidade
faz com que perdurem a opressão e o social do Estado no combate às desigualdades
domínio, especialmente na esfera sociais. Surgida após o antagonismo
econômica. Antes de qualquer coisa, protagonizado durante a Guerra Fria entre os
dois blocos hegemônicos, a saber, o socialismo
não se trata de um projeto comunista, soviético e o liberalismo estadunidense, a
que se apresentaria anticapitalista na terceira via formulou os componentes essenciais
essência, mas de um projeto da Social-Democracia.

8
política das nações colonizadas. influências mútuas sofridas pelo contato
Todavia, não se trata somente de cultural entre colonizador e colonizado,
repensar a situação colonial em si. porém, com maior vantagem de
Antes, trata-se fundamentalmente de se transmissão dos valores culturais do
repensar as bases epistemológicas do lado colonizador em decorrência do
próprio pensamento pós-colonial, forte aparato burocrático imposto sobre
constituído sobre os alicerces da as nações colonizadas. Para
identificação das assimetrias existentes exemplificar, pode-se utilizar a língua
nas relações coloniais, cujos implementada nas colônias francesas
antagonismos possibilitam a reflexão mediante o estamento burocrático
referente à suposta hegemonia bélica, educacional, cujo objetivo não era outro
epistemológica, cultural e social senão homogeneizar o idioma a fim de
eurocentrada. perpetuar o domínio. Nesta perspectiva,
embora as colônias francesas tenham
Nesta perspectiva, articulações
passado pelo processo de independência
interdisciplinares entre política,
política, os resquícios da experiência
economia e cultura objetivam fazer
colonial continuam presentes na língua,
emergir os saberes outrora ocultados,
na cultura8 e na economia das outrora
mas que estiveram permanentemente
colônias francesas africanas. A despeito
submersos no manto da dominação
da autonomia formal alcançada pelas
europeia. Desta forma, buscamos
antigas colônias francesas africanas, as
considerar não somente os efeitos do
ligações entre ex-colônias e ex-
denominado período colonial, mas
metrópole se mantiveram,
especialmente os desdobramentos do
assemelhando-se às relações anteriores
colonialismo para além das
ao processo descolonizatório9. O
independências políticas dos povos
aparelho ideológico francês mostrou-se
colonizados, a saber, a permanência da
dominação epistemológica operada 8
O filósofo francês Félix Guattari, teorizando a
mediante a perspectiva da colonialidade respeito do conceito de cultura, em
do poder na reprodução da Micropolítica: cartografias do desejo,
modernidade. Como narrativa subdividiu-o em três categorias básicas: cultura-
hegemônica da modernidade, a Europa valor, cultura-mercadoria e cultura-alma
ocupa espaço privilegiado de poder que coletiva (GUATTARI, 1996). Para esta
argumentação, interessa-nos especificamente a
favorece a sobreposição de sua cultura noção de cultura-valor, uma vez que a expressão
em detrimento das demais referências promove a ideia de um julgamento diferencial
de vida (cf. LEDA, 2015). na direção de indicar que alguém possui cultura
e que outro alguém não a possui. Esta, segundo
Após o advento dos estudos subalternos, Guattari, é a noção mais antiga de cultura. Por
assistimos emergir um pensamento pós- outro lado, interessa-nos adicionalmente a
colonial sustentado na denúncia das noção de cultura-alma coletiva, que se refere à
assimetrias provocadas pela experiência identidade cultural dos povos. Portanto, todos os
povos possuem uma identidade cultural própria,
colonial. A percepção dos antagonismos ou seja, uma alma coletiva. Não obstante,
perpetrados pela situação colonial pensemos a cultura-valor como um valor
passou a proporcionar aos intelectuais imposto pelo aparato cultural-estatal do
de terras colonizadas um pensamento colonizador sobre o colonizado de maneira que
emancipatório e descolonizador das a identidade cultural deste último se transforme,
paulatinamente, nos valores implantados pela
epistemologias. Ao mesmo tempo, cultura colonizadora.
ocorreu o que se convencionou chamar 9
Verschaves (apud FILHO & BADOU, 2014)
de transculturalidade, referindo-se às passou a designar essa ligação de Françafrique.

9
eficiente adicionalmente na expansão da de legitimidade epistêmica social,
francofonia, alçando o idioma entre os política e cultural.
mais falados do mundo10.
Trata-se, portanto, de alterar a
[...] após vários séculos de cosmovisão, desarticulando a
assimilação progressiva, de
hierarquização epistemológica
apropriação, de reapropriação e de
tráficos, o francês acabou por
estruturada nos moldes “norte-sul”, sob
converter-se numa língua africana a noção de uma divisão das
de pleno direito (MBEMBE, 2014, epistemologias entre centro e periferia,
p. 87, grifo do autor). mas reconhecendo a existência de
outros universos para além dessa
Todavia, o pensamento decolonial não hierarquização rígida. Por isso,
trata simplesmente de retirar o verniz pluriversalidade é um conceito que se
imposto pela situação colonial, encaixa melhor quando nos referimos às
tampouco se refere à emancipação
epistemologias dos povos constituintes
simplesmente em termos políticos e da humanidade, subalternizados ou não,
econômicos. Trata-se, dentre todas estas uma vez que pressupõe a existência de
possibilidades, especialmente, de vários centros. A pluriversalidade não
retomar a cultura autóctone dentro da retira a legitimidade de nenhuma
sua legitimidade e autenticidade
epistemologia porque opera numa
epistêmica, posto que apenas retirar o
matriz de pensamento fundamentada
verniz imposto pelo colonizador
nas noções de policentro e polifonia,
resultaria em sociedades vazias, e não
apostando na horizontalidade dos
um retorno às epistemologias
saberes e culturas, e não na
originárias dos povos subalternos. Um verticalidade, que opera com as noções
simples desnudamento da cultura
de superioridade e inferioridade.
eurocentrada poderia inclusive legitimar
o epistemicídio promovido pelo
processo colonial. Portanto, faz-se
imprescindível o pensamento de Referências
fronteira como “resposta epistêmica dos BALANDIER, Georges. [1951]. A Situação
subalternos ao projeto eurocêntrico da Colonial: abordagem teórica. Cadernos Ceru
modernidade” (BERNARDINO- v.25, n. 1, dezembro 2014.
COSTA & GROSFOGUEL, 2016, p.
BERNARDINO-COSTA, Joaze;
19). Esse pensamento de fronteira GROSFOGUEL, Ramón. Decolonialidade e
operacionaliza na borda entre a perspectiva negra. Revista Sociedade e Estado.
modernidade e a tradição gnosiológica V. 31, N. 1. Janeiro/Abril 2016.
subalternizada, propiciando, para além
BRASIL. O índio brasileiro: o que você
da denúncia dos antagonismos, o
precisa saber sobre os povos indígenas no Brasil
reconhecimento da validade epistêmica de hoje. Coleção Educação para Todos. Brasília:
dos saberes inerente às sociedades MEC/UNESCO, 2006.
colonizadas. Trata-se tão-somente (mas
não apenas isso) de reconduzir os BRASIL. Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional. Lei número 9394, 20 de
saberes outrora recônditos à condição dezembro de 1996.

COLAÇO, Thais Luzia. Novas perspectivas


10 para a antropologia jurídica na América
A Organização Internacional da Francofonia
Latina: o direito e o pensamento decolonial.
reúne 57 Estados-membros e 20 países
Florianópolis: Fundação Boiteux, 2012.
observadores em cinco continentes.

10
COSTA E SILVA, Alberto da. O Brasil, a epistemológicos à cosmovisão moderna.
África e o Atlântico no século XIX. Estud. av., Civitas, Porto Alegre, v. 14, n. 1, p. 66-80, jan.-
Ago. 1994, vol.8, no.21. abr. 2014.
COSTA NETO, Antonio Gomes da. A MIGNOLO, Walter. Desafios Decoloniais
Denúncia de Cesáire ao Pensamento Hoje. Epistemologias do Sul, Foz do
Decolonial. Revista EIXO, Brasília – DF, v. 5, Iguaçu/PR, 1 (1), pp. 12-32, 2017.
n. 2, julho-dezembro de 2016.
_____________. Histórias locais / projetos
FANON, Frantz. [1963]. Pele negra, máscaras globais: colonialidade, saberes subalternos e
brancas. Salvador: EDUFBA, 2008. pensamento liminar. Belo Horizonte: Editora
UFMG, 2003.
_____________ [1961] Os Condenados da
Terra. Tradução de José Laurênio de Melo. Rio MUDIMBE, V. Y. A Invenção de África:
de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968. gnose, filosofia e a ordem do conhecimento.
Lisboa: Edições Pedago, Edições Mulemba,
____________ [1961]. Les Damnés de la
2013.
Terre. Paris: Éditions La Découverte & Syro,
2002. NOGUERA, Renato. O ensino de filosofia e a
lei 10.639. Rio de Janeiro: Pallas: Biblioteca
FILHO, Pio Penna. BADOU, Koffi Robert. A
Nacional, 2014.
França na África: as intervenções militares e
suas motivações – o caso da Costa do Marfim. PRATT, Mary Louise. Os Olhos do Império.
In: Carta Internacional, Vol. 9, n. 2, jul.-dez. Relatos de viagem e transculturação. Bauru,
2014 [p.156 a 172]. EDUSC, 1999.
GIDDENS, Anthony. A terceira via: reflexões QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder e
sobre o impasse político atual e o futuro da classificação social. In: SANTOS, Boaventura;
social-democracia. Rio de Janeiro/São Paulo: MENEZES, Maria Paula (Orgs.).
Record, 1999. Epistemologias do Sul. São Paulo: Cortez,
2010.
GUATTARI, Félix. Micropolítica: cartografias
do desejo. 4ª ed. Petrópolis: Vozes, 1996. RAMOSE, Mogobe. Sobre a legitimidade e o
estudo da filosofia africana. Ensaios
LEDA, Manuela Corrêa. Teorias pós-coloniais
Filosóficos. Rio de Janeiro, v. IV, out. 2011.
e decoloniais: para repensar a sociologia da
modernidade. Temáticas, Campinas, 23, ROSEVICS, Larissa. Do pós-colonial à
(45/46): 101-126, fev./dez. 2015. decolonialidade. In: CARVALHO, Glauber.
ROSEVICS, Larissa (Orgs.). Diálogos
MBEMBE, Achille. As formas africanas de
internacionais: reflexões críticas do mundo
auto-inscrição. Estudos Afro-Asiáticos, Ano
contemporâneo. Rio de Janeiro: Perse, 2017.
23, nº 1, 2001, pp. 171-209.
WALSH, Catherine. Interculturalidade Crítica e
_______________. Sair da Grande Noite:
Pedagogia Decolonial: in-surgir, re-existir e re-
ensaio sobre a África descolonizada. Lisboa:
viver. In.: CANDAU, Vera Maria (org.).
Edições Pedago, 2014.
Educação intercultural na América Latina:
MENDONÇA, Florsil Alfredo. Choque entre concepções, tensões e propostas. Rio de
cultural de alunos guineenses na USP. In: Janeiro: documento eletrônico, 2009.
Anais de resumos do I Simpósio Internacional
sobre Linguagem e Cognição: USP, 2014.
Recebido em 2017-12-22
MIGLIEVICH-RIBEIRO, Adelia. Por uma
Publicado em 2018-03-10
razão decolonial: desafios ético-político-

11

Você também pode gostar