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África, São Paulo. v. 31-32, p.

173-179, 2011/2012

A nova África e os patrimónios culturais


africanos na Europa: novos desafios à
cooperação cultural1

Manuel Laranjeira Rodrigues de Areia*

Introdução

As ligações Europa-África são milenares. Algumas formas de contacto


particularmente negativas (como a escravatura e o colonialismo) fomentaram
um conjunto de estereótipos no imaginário europeu sobre África e os africanos
que podemos situar num contexto histórico mais amplo de etnocentrismo cuja
expressão máxima, em termos geográficos, se exprime na formulação tão repetida
“Europa e o resto do mundo”. Esta linguagem redutiva em que tudo o que não
era Europa (e cristandade) era apenas o resto do mundo exprime, simbolica-
mente, o que, em termos culturais, podemos considerar uma das “barbaridades”
da Europa. Obviamente o mundo mudou e a Europa vai mudando também.
É inegável, por outro lado, que um prolongado contacto entre europeus
e africanos criou fortes ligações de ordem diversa, nomeadamente no campo
da produção cultural. Boa parte dos estudos acadêmicos sobre África tem-se
limitado à África colonial e pós-colonial; só nas últimas décadas se tem posto em
relevo e chamado a atenção para o conhecimento dessa África milenar onde se
desenvolveram grandes civilizações (não apenas no Egito), poderosos impérios

1
Comunicação apresentada em 14.06.2012, no Painel 41: El patrimonio cultural africano: tradición,
transmisión, transformación do 8º Congreso de Estudios Africanos Ibéricos, Madrid, España.
* Universidade de Coimbra, Portugal.
AREIA, M. L. R. Comunicação

e influentes reinos (entre outros Benim e Kongo com os quais os portugueses


muito conviveram), com manifestações, as mais diversas, de exaltação do poder
que nessa África pré-colonial é quase exclusivamente um poder político-religioso.
Entre as múltiplas manifestações desse poder político-religioso destacam-
se símbolos diversos, formas mágico-religiosas emblemáticas do exercício do
poder ou dos rituais que lhe dão acesso. Dispersos por uma diáspora cultural,
desde há séculos, estes símbolos do poder multiplicam-se ainda mais nas últimas
décadas com as numerosas descobertas trazidas à luz do dia pela moderna
arqueologia africana que continua a encontrar, ainda hoje no terreno, a expres-
são plástica de muitos mitos sobre a origem do poder político, transmitidos, em
versões diversas, por tradições orais que vêm alargar aquele vasto conjunto de
objetos raros trazidos de África outrora por viajantes europeus, seduzidos pelo
seu carácter exótico ou encomendados a artistas africanos (como no caso particu-
lar de Benim). Trata-se de um rico património cultural africano, espalhado pelo
mundo mas presente sobretudo nas múltiplas coleções dos museus da Europa.

Patrimónios culturais africanos na Europa

Ainda antes da ocupação colonial decorrente da conferência de Berlim


(1884-1885) muitos viajantes e exploradores recolheram objetos exóticos de
origem africana vistos pelos europeus como raridades (por vezes como mara-
vilhas-mirabilia), produzidos em diferentes contextos sociais e políticos onde
se destacam os chamados “símbolos do poder” exibidos pelos detentores da
autoridade e como tal particularmente cobiçados pelos viajantes. É importante
ter em conta que estas recolhas de objetos raros se enquadravam, por vezes, no
contexto científico de procura de produtos dos três reinos da natureza, e também
os produtos do homem no seu estado natural (Homo naturalis: quer dizer não
civilizado e não cristianizado). Por isso boa parte dos produtos culturais das
civilizações africanas se enquadravam, ainda recentemente, em antigos museus
de História Natural com a designação de “produtos da indústria humana”,
num pressuposto ideológico naturalístico de uma hipotética homogeneidade dos
“primitivos”, todos por iguais homens silvestres (ou silvícolas), isto é, selvagens.
A presença de objetos africanos na Europa é pois muito antiga, e muito
174 anterior à ocupação colonial. A historiadora Jill Dias demonstra, com recurso
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a diversos documentos históricos, alguns anteriores ao séc. XV, como muitos


objetos africanos entraram na Europa citando o caso, entre outros, de Carlos de
Borgonha, o Temerário, que “comprou uma espada e dois ídolos a um portu-
guês” (1992, p. 57). Outros foram encomendados por compradores estrangeiros,
portugueses e outros, que preferiam os objetos de marfim que encomendavam “a
homens muito subtis e engenhosos (que) fazem obras de marfim muito maravilhas
de ver de todas as cousas que lhe mandam fazer” (idem).
Destas obras destacam-se as destinadas à casa real portuguesa: saleiros,
pimenteiros, olifantes (presas de marfim trabalhadas) e todo um conjunto de
obras de uma arte euroafricana, que atingiu grande vigor nos finais do séc.
XV (nos casos de Benim e Kongo, há sobretudo peças luso-africanas), hoje
largamente representadas nos grandes museus de arte africana. Só muito mais
tarde estas raridades africanas expostas em salões de arte passaram a integrar
coleções de museus, e no formato dos museus coloniais, no correr da coloniza-
ção propriamente dita. A ambiguidade destes museus, a sua atual indefinição
e o esquecimento de grande maioria das suas peças em reservas dificilmente
acessíveis (só menos de 10% dessas peças são expostas), deixa em aberto um
problema de cooperação cultural que os responsáveis europeus e africanos não
podem escamotear.

A nova África e as antigas coleções

Com o processo de descolonização, iniciado após a segunda guerra


mundial, os povos africanos imaginaram uma nova África, sem opressão, com
melhores condições de vida, já que a grande maioria dos que combateram o
fizeram, como bem explicava Amílcar Cabral, não por um qualquer discurso
ideológico, mas simplesmente porque queriam viver melhor e acreditavam que
isso era possível. Nem sempre as coisas correram nesse sentido, e nalguns casos
a situação perverteu-se a tal ponto que o grande conhecedor e amigo de África,
Basil Davidson, pôde, com fundamento, escrever: “a situação real e atual de
África é de uma profunda perturbação, por vezes uma perturbação ainda mais
profunda do que nos piores momentos dos anos do colonialismo” (2000, p.18).
Ainda antes de B. Davidson, e tendo em conta o mesmo contexto pós-
colonial, o escritor nigeriano Chinua Achebe, galardoado com o prémio literário 175
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Man Booker International Prize e Wole Soyinka, Prémio Nobel de Literatura,


dois dos maiores representantes da literatura africana e impulsionadores de um
novo olhar africano sobre África, denunciam a estafada bandeira da “vitimização
africana” e reclamam o novo olhar sobre o futuro de Africa. Não são os únicos,
há mais africanos a pensar assim, não muitos mas uma minoria vibrante, hoje
um verdadeiro “poder capilar” que marcará cada vez mais o futuro próximo dos
caminhos de África. Procuram um verdadeiro conhecimento do passado como
condição para construir o futuro, e nesse sentido entendem que o património
africano deve ser recuperado e integrado no conhecimento de África. Por um
lado reclama-se o ultrapassar urgente de uma “África que não é” (COUTO,
M., 2011) e a abertura a todos os valores e contributos que possam ajudar a
construir uma Africa próspera e pacífica próxima do ideal Africa “arco-íris” de
Nelson Mandela, Desmond Tutu e muitos outros responsáveis comprometidos
numa Africa nova, e por outro é necessária uma verdadeira descolonização
cultural em que os testemunhos do passado devem inspirar e integrar as grandes
linhas da construção africana do futuro. A cooperação cultural entre os países
ocidentais, principalmente europeus, depositários desses patrimónios da diáspora
africana e os países africanos de onde eles são provenientes (sobretudo antigas
colónias) constitui um campo rico de perspetivas de cooperação com vantagens
mútuas para africanos e europeus, em que a partilha cultural funcionará (como
sempre funcionou) como mediação para aproximação dos povos.
O desconhecimento desta dimensão cultural por parte de alguns dirigentes
africanos que interiorizaram o preconceito colonialista de que “a África não tem
história” ou que o passado africano está cheio de feitiços e práticas arcaicas, e
por isso é para esquecer, revela-se tão dramática e ainda mais condenável que
a dos dirigentes europeus que continuam com milhares de objetos africanos,
escondidos em reservas de museus coloniais, vistos como fantasmas que lhes
avivam a má consciência de um passado colonial.
A Europa e a África dispensam bem este passadismo igualmente doen-
tio. Há estudiosos e políticos que perceberam que a nova África passa por
formas múltiplas de cooperação onde a cooperação cultural na recuperação de
um passado africano culturalmente rico, mas esquecido, representa um ponto
fundamental para a tão auspiciosa e desejada entrada de África na moderni-
dade. Sem pretender ir ao fundo da questão, e até porque estes caminhos da
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modernidade se fazem caminhando, não deixarei de apontar alguns passos


mínimos para estruturar essa desejável cooperação cultural.

Alguns pressupostos para uma mediação “objetiva”

Há que reconhecer antes de mais que a posse de coleções africanas na


Europa não se limita aos antigos países colonizadores, elas são muito mais amplas
pois existem também em países que não tiveram colónias. Antes de mais há que
“restituir a esses objetos a sua capacidade de representar as sociedades que os
produziram e utilizaram” (DIAS, J., 2005). Para dar vida a este património
e o integrar no passado histórico dos diferentes países africanos torna-se indis-
pensável reconhecer como válidos um conjunto de pressupostos que alicerçam
uma partilha cultural de mútuo interesse entre os organismos que guardam esses
patrimónios e os novos estados africanos. Esta questão pressupõe uma grande
flexibilidade na apreciação das múltiplas facetas do problema, a começar pelo
conceito de objeto cultural e pela questão, hoje tão debatida, da propriedade
cultural, problemas em aberto que envolvem não apenas múltiplas componentes
jurídicas como também complexas questões históricas e filosóficas (ver Berman,
1997; Handler, 1997).
Destaquemos, ainda que enunciando apenas, alguns destes pressupostos:

Objeto-memória/objeto-documento: todos os povos veneram, ao menos


por algum tempo, os objetos de referência dos seus antepassados; em África
eram particularmente prestigiados os objetos ligados ao exercício do poder e
que, por via de regra, eram transmitidos ao sucessor. A utilização levava em
princípio até ao fim de vida desses objetos. A decapitação do poder político
tradicional à época da ocupação colonial levou a que esses símbolos dos
agentes do poder perdessem atualidade, limitando-se por vezes a intervenções
meramente simbólicas ou, frequentemente, trocados por objetos de origem
europeia de mais utilidade no imediato. A exaustão foi rápida: grande procura
do exterior, ausência do contexto político que antes os produzia. Mesmo no
exterior, onde quer que estejam, esses objetos, mesmo esquecidos, continuam
a ser objetos-memória de um povo (etnia, grupo clãnico, reino, etc.) cujos
antepassados os produziram e que portanto também interessam aos atuais
descendentes. Por outro lado, esses objetos, por hipótese, preservados num
país, antiga potência colonial, também evocam traços da história desse país,
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sendo portanto objetos-documento dessa mesma história (ver Davallon,


2002). Concentrar num mesmo objeto a categoria de objeto-memória de um
povo e objeto-documento de outro, nada tem de exclusivo ou contraditório.
Retirar qualquer destas dimensões seria mutilar a capacidade mediadora deste
património, simultaneamente memória e documento.

Exposição dos objetos nos países de origem: uma verdadeira revolução


nas atitudes poderia resultar do simples facto de os objetos selecionados para
uma exposição temática ou temporária serem também expostos no país de ori-
gem. Será importante, para isso, que os países detentores das coleções possam
exportar, temporariamente, com todas as garantias de segurança, esses objetos.
Em 1997 a exposição “Memória da Amazónia” apresentava em Manaus
(Brasil) pela primeira vez objetos das nações indígenas recolhidos entre 1783-
1792 (Viagem Philosóphica de Alexandre Rodrigues Ferreira) e conservados
em Portugal (Museu Antropológico da Universidade de Coimbra e Academia
das Ciências de Lisboa).Para as diferentes nações indígenas que visitaram a
exposição esses objetos passaram a constituir um ponto de referência, um elo
de ligação, no processo de identidade destes povos que se reviam nos tesouros
dos seus antepassados.

Diferentes formas de apropriação das coleções: a apropriação de boa


parte destes objetos (como em geral das coleções vindas das colónias) fez-se
muitas vezes, como já foi dito, num contexto científico de História Natural
onde tudo se incluía, mesmo os artefactos ou produtos da indústria humana
(os artificialia dos naturalistas por oposição aos naturalia). Será por isso muito
esclarecedor discutir o suporte invocado pelos diferentes intervenientes que re-
clamam direitos sobre bens culturais. A produção social dos diferentes poderes
sobre estas coleções é uma questão fundamental nesta discussão.

Diálogo cultural e social: numa sociedade democrática como a nossa em


que a pedra de toque para o entendimento e cooperação é o diálogo, não seria
de modo algum aceitável que se recusasse o diálogo cultural entre os povos
e ainda menos aceitável, porque mais grave, se os objetos que suportam esse
diálogo continuassem enclausurados como reféns de uma guerra absurda onde
não haveria vencedores mas apenas perdedores.

De qualquer modo, na aldeia global em que começamos a viver, será cada


vez menos possível e, ainda, menos tolerável esconder objetos. Por outro lado,
para os que veem este novo mundo ameaçado pela monotonia e pela uniformidade
178 face à crescente homogeneização das culturas, a preservação da diversidade social
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e cultural é uma questão fundamental. As coleções etnográficas terão aqui um


papel determinante se formos capazes de restabelecer as ligações afetivas e de
identidade entre os objetos e os povos que os produziram.

Bibliografia

AREIA, M. L. R. de. Collections ethnographiques et identité culturelle: deux cas exem-


plaires. Paris: ICOM, 1997, p. 87-89. (Africa Programme: Documents de travail).

BERMAN, T. Beyond the museum: the politics of representation in asserting rights to


cultural property. Museum Anthropology, 21(3): 19-27, 1997.

DAVALLON, J. Les objets ethnographiques peuvent-ils devenir des objets de patrimoi-


ne? In: GHK (eds). Le Musée cannibale. Neuchâtel: Musée d’Ethnographie, 2002, p.
167-187.

DIAS, R. J. África: nas vésperas do mundo moderno. Lisboa: Comissão Nacional para
a Comemoração dos Descobrimentos Portugueses, 1992.

DIAS, J. Prefácio, in: PEREIRA, Maria Manuela Cantino. O Museu Etnográfico da


Sociedade de Geografia de Lisboa – Modernidade, Colonização e Alteridade. Lisboa:
Fundação C. Gulbenkian e F.C.T., 2005, p. 13-15.

HANDLER, R. Cultural property, cultural theory and Museum Anthropology. Museum


Anthropology, 21(3): 3-4, 1997.

MIA COUTO. Esta África que não é. Jornal Expresso-Revista Única (05.06.2010,
p. 81-85).

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