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Durante muito tempo, mitos e preconceitos de toda espécie esconderam do mundo a real história da
África. As sociedades africanas passavam por sociedades que não podiam ter história. Apesar de
importantes trabalhos efetuados desde as primeiras décadas do século XX por pioneiros como Leo
Frobenius, Maurice Delafosse e Arturo Labriola, um grande número de especialistas não africanos, ligados
a certos postulados, sustentavam que essas sociedades não podiam ser objeto de um estudo científico,
notadamente por falta de fontes e documentos escritos.
Se a Ilíada e a Odisseia podiam ser devidamente consideradas como fontes essenciais da história da
Grécia antiga, em contrapartida, negava-se todo valor à tradição oral africana, essa memória dos povos que
fornece, em suas vidas, a trama de tantos acontecimentos marcantes. Ao escrever a história de grande parte
da África, recorria-se somente a fontes externas à África, oferecendo uma visão não do que poderia ser o
percurso dos povos africanos, mas daquilo que se pensava que ele deveria ser. Tomando frequentemente a
“Idade Média” europeia como ponto de referência, os modos de produção, as relações sociais tanto quanto
as instituições políticas não eram percebidos senão em referência ao passado da Europa.
Com efeito, havia uma recusa a considerar o povo africano como o criador de culturas originais que
floresceram e se perpetuaram, através dos séculos, por vias que lhes são próprias e que o historiador só
pode apreender renunciando a certos preconceitos e renovando seu método.
Da mesma forma, o continente africano quase nunca era considerado como uma entidade histórica. Em
contrário, enfatizava-se tudo o que pudesse reforçar a ideia de uma cisão que teria existido, desde sempre,
entre uma “África branca” e uma “África negra” que se ignoravam reciprocamente. Apresentava-se
frequentemente o Saara como um espaço impenetrável que tornaria impossíveis misturas entre etnias e
povos, bem como trocas de bens, crenças, hábitos e ideias entre as sociedades constituídas de um lado e de
outro do deserto. Traçavam-se fronteiras intransponíveis entre as civilizações do antigo Egito e da Núbia e
aquelas dos povos subsaarianos.
Certamente, a história da África norte-saariana esteve antes ligada àquela da
bacia mediterrânea, muito mais que a história da África subsaariana mas, nos dias atuais, é amplamente
reconhecido que as civilizações do continente africano, pela sua variedade linguística e cultural, formam
em graus variados as vertentes históricas de um conjunto de povos e sociedades, unidos por laços seculares.
Um outro fenômeno que grandes danos causou ao estudo objetivo do passado africano foi o
aparecimento, com o tráfico negreiro e a colonização, de estereótipos raciais criadores de desprezo e
incompreensão, tão profundamente consolidados que corromperam inclusive os próprios conceitos da
historiografia. Desde que foram empregadas as noções de “brancos” e “negros”, para nomear
genericamente os colonizadores, considerados superiores, e os colonizados, os africanos foram levados a
lutar contra uma dupla servidão, econômica e psicológica. Marcado pela pigmentação de sua pele,
transformado em uma mercadoria entre outras, e destinado ao trabalho forçado, o africano veio a
simbolizar, na consciência de seus dominadores, uma essência racial imaginária e ilusoriamente inferior: a
de negro. Este processo de falsa identificação depreciou a história dos povos africanos no espírito de
muitos, rebaixando-a a uma etno-história, em cuja apreciação das realidades históricas e culturais não podia
ser senão falseada.
A situação evoluiu muito desde o fim da Segunda Guerra Mundial, em particular, desde que os países
da África, tendo alcançado sua independência, começaram a participar ativamente da vida da comunidade
internacional e dos intercâmbios a ela inerentes. Historiadores, em número crescente, têm se esforçado em
abordar o estudo da África com mais rigor, objetividade e abertura de espírito, empregando – obviamente
com as devidas precauções – fontes africanas originais. No exercício de seu direito à iniciativa histórica,
os próprios africanos sentiram profundamente a necessidade de restabelecer, em bases sólidas, a
historicidade de suas sociedades.
Prefácio XXIII
1 O volume I foi publicado em inglês, árabe, chinês, coreano, espanhol, francês, hawsa, italiano, kiswahili, peul e português; o volume II, em inglês,
árabe, chinês, coreano, espanhol, francês, hawsa, italiano, kiswahili, peul e português; o volume III, em inglês, árabe, espanhol e francês; o
volume IV, em inglês, árabe, chinês, espanhol, francês e português; o volume V, em inglês e árabe; o volume VI, em inglês, árabe e francês;
o volume VII, em inglês, árabe, chinês, espanhol, francês e português; o VIII, em inglês e francês.
A terceira e última fase constituiu-se na redação e na publicação do trabalho. Ela começou pela
nomeação de um Comitê Científico Internacional de trinta e nove membros, composto por africanos e não
africanos, na respectiva proporção de dois terços e um terço, a quem incumbiu-se a responsabilidade
intelectual pela obra.
Interdisciplinar, o método seguido caracterizou-se tanto pela pluralidade de abordagens teóricas quanto
de fontes. Dentre essas últimas, é preciso citar primeiramente a arqueologia, detentora de grande parte das
chaves da história das culturas e das civilizações africanas. Graças a ela, admite-se, nos dias atuais,
reconhecer que a África foi, com toda probabilidade, o berço da humanidade, palco de uma das primeiras
revoluções tecnológicas da história, ocorrida no período Neolítico. A arqueologia igualmente mostrou que,
na África, especificamente no Egito, desenvolveu-se uma das antigas civilizações mais brilhantes do
mundo. Outra fonte digna de nota é a tradição oral que, até recentemente desconhecida, aparece hoje como
uma preciosa fonte para a reconstituição da história da África, permitindo seguir o percurso de seus
diferentes povos no tempo e no espaço, compreender, a partir de seu interior, a visão africana do mundo, e
apreender os traços originais dos valores que fundam as culturas e as instituições do continente.
Saber-se-á reconhecer o mérito do Comitê Científico Internacional encarregado dessa História geral da
África, de seu relator, bem como de seus coordenadores e autores dos diferentes volumes e capítulos, por
terem lançado uma luz original sobre o passado da África, abraçado em sua totalidade, evitando todo
dogmatismo no estudo de questões essenciais, tais como: o tráfico negreiro, essa “sangria sem fim”,
responsável por umas das deportações mais cruéis da história dos povos e que despojou o continente de
uma parte de suas forças vivas, no momento em que esse último desempenhava um papel determinante no
progresso econômico e comercial da Europa; a colonização, com todas suas consequências nos âmbitos
demográfico, econômico, psicológico e cultural; as relações entre a África ao sul do Saara e o mundo árabe;
o processo de descolonização e de construção nacional, mobilizador da razão e da paixão de pessoas ainda
vivas e muitas vezes em plena atividade. Todas essas questões foram abordadas com grande preocupação
quanto à honestidade e ao rigor científico, o que constitui um mérito não desprezível da presente obra. Ao
fazer o balanço de nossos conhecimentos sobre a África, propondo diversas perspectivas sobre as culturas
africanas e oferecendo uma nova leitura da história, a História geral da África tem a indiscutível vantagem
de destacar tanto as luzes quanto as sombras, sem dissimular as divergências de opinião entre os estudiosos.
Prefácio XXV
M’BOW, M. Amadou Mahtar. (2010). Prefácio sobre preconceitos. In: História geral da África, I:
Metodologia e Pré-história da África / editado por Joseph Ki‑Zerbo.– 2.ed. V. 1. – Brasília: UNESCO.