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HISTÓRIAS E POLÍTICAS EM CONTEXTOS

AFRICANOS: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES


Silas Fiorotti
Noemi Alfieri
Oliveira Adão Miguel
Washington Nascimento

1. PALAVRAS INICIAIS: CONSIDERAÇÕES SOBRE OS MÚLTIPLOS


E COMPLEXOS CONTEXTOS AFRICANOS

A África é muitas vezes tomada como um único país ou um único ter-


ritório. Este tipo de superficialidade é tão frequente que o professor sul-
-africano Sean Jacobs criou uma página com o título que é uma paródia:
Africa Is a Country.1 A tendência de simplificar toda a complexidade dos
múltiplos contextos africanos precisa ser cotidianamente combatida.
Não trata-se de algo fortuito, essa tendência de simplificar a África
é, sim, fruto do conhecimento a respeito da África que foi e que é
produzido a partir das lentes, dos projetos e das disciplinas ocidentais.
O conhecimento ocidental tendeu a essencializar e a criar imagens dos
africanos presos a identidades étnicas estáticas e a tradições atávicas
e imutáveis. O desenvolvimento do conhecimento ocidental de um
modo geral, conforme as denúncias de diversos intelectuais africanos,
caminhou no sentido da rejeição das compreensões da África enquan-
to continente civilizado e capaz de produzir algum pensamento rele-
vante e autônomo (KI-ZERBO 2007; MAFEJE 2019).

1. Ver: <http://africasacountry.com>.

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10 • Histórias e políticas em contextos africanos

As histórias dos africanos se entrecruzam com o conhecimen-


to ocidental que, por sua vez, criou e representou os africanos como
“outros” inferiores, incivilizados ou infantis. Grande parte deste co-
nhecimento esteve atrelada aos processos de dominação colonial do
continente africano; por isso, pode ser considerada como “um saber-
-intervenção” que foi utilizado para dominar de maneira eficaz as po-
pulações africanas (PEREIRA & NASCIMENTO 2020). Uma crítica
importante ao conhecimento ocidental vem dos pesquisadores africa-
nos que entendem que os discursos a respeito do continente africano
e dos africanos são primordialmente discursos de poder (MUDIMBE
2019; NDLOVU-GATSHENI 2013).
Nos dias atuais, apesar de toda a produção dos intelectuais afri-
canos e africanas que vem se intensificando desde a década de 1970,
assim como a produção de outros intelectuais comprometidos com a
descolonização do conhecimento, ainda é possível encontrar muitos
discursos a respeito do continente africano e dos africanos que são
produzidos a partir de perspectivas eurocêntricas, ocidentocêntricas e
afropessimistas (CARDOSO 2012; FIOROTTI 2020b).
Diante disso, o objetivo deste texto é apresentar alguns tópicos in-
trodutórios aos estudos dos contextos africanos. Trata-se de abordagens
e de caminhos, principalmente a partir das contribuições de determina-
dos estudos históricos e antropológicos, que consideramos importantes
no sentido de evitar e combater as simplificações e as essencializações a
respeito dos contextos africanos. Entre os tópicos abordados neste texto,
estão: a questão da utilização das fontes coloniais, a abordagem da situa-
ção colonial, a questão da invenção dos “outros” africanos, as críticas à
perspectiva eurocêntrica, as contribuições dos intelectuais africanos e das
epistemologias africanas, as questões de gênero nos contextos africanos, e
a abordagem das trajetórias e das biografias africanas.
Um espaço do texto será dedicado para destacar alguns aspectos dos
ensaios que estão presentes no livro. Os ensaios apresentam histórias
de pessoas, de indivíduos e de populações africanas que se entrecruzam

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com as políticas coloniais e com as políticas contemporâneas. A partir


de áreas distintas e de diferentes percursos acadêmicos, todos os autores
dos ensaios de alguma forma buscaram dar ênfase às ações e às agências
dos africanos e das africanas, entre os quais: populações do reino do
Kongo, populações de Casamance, Rosinha da Guiné-Bissau, Sumbo
de Cabinda, Helena Domingos e Afonso de Moçâmedes, Loquengo de
Moçâmedes, Maria do Céu do Carmo Reis, Jaime Pedro Gonçalves,
mulheres macúa da Ilha de Moçambique, ex-militares angolanos, jo-
vens ativistas angolanos, ex-combatentes da Renamo (Moçambique),
cidadãos em geral e jovens ativistas moçambicanos.
Esperamos que este texto, assim como o livro todo, venha a contri-
buir no processo de formação de estudantes, professores e pesquisado-
res das ciências humanas em geral interessados nos estudos críticos a
respeito de diferentes contextos africanos.

2. ALGUNS CAMINHOS PARA NÃO SIMPLIFICAR OS CONTEXTOS


AFRICANOS

Quais caminhos podemos adotar nas nossas pesquisas e nos nossos


percursos acadêmicos no sentido de evitar e combater as simplifica-
ções e as essencializações a respeito dos contextos africanos? Nesta se-
ção apresentaremos algumas abordagens, principalmente a partir das
contribuições de determinados estudos históricos e antropológicos e
também a partir de nossa própria experiência empírica enquanto pes-
quisadores dos contextos africanos, que consideramos importantes no
sentido de evitar e combater tais simplificações e essencializações.

• A questão da utilização das fontes coloniais

A utilização de fontes coloniais como ferramenta para a reflexão so-


bre o continente africano, as suas histórias políticas, sociais e culturais –
mas também sobre a sua relação com outras zonas do mundo – apresenta

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12 • Histórias e políticas em contextos africanos

várias questões. Se as fontes coloniais ainda constituem uma das princi-


pais fontes para a história tanto de dinâmicas coloniais, como dos contex-
tos de descolonização, já há muito os pensadores, ativistas e intelectuais
do continente que têm questionado tanto a forma em que o conhecimen-
to está organizado nestes arquivos, como as formas de acesso e as formas
de falar sobre os arquivos. Quem, como, em que contextos e sob quais
condições tem o poder e a possibilidade de usar, falar sobre, questionar o
arquivo? A questão, amplamente abordada por Achille Mbembe (2015),
tem a ver com os lugares onde os arquivos coloniais são conservados, mas
também com questões de fronteiras e de livre circulação dos seres hu-
manos – ou da falta dela. Com o pretexto de questões de conservação,
ou utilizando argumentos de gestão administrativa, muitos arquivos colo-
niais sobre a história dos países africanos se encontram na Europa. Quem
pode aceder a estes arquivos, considerados elementos de ordem econó-
mica, questões de vistos – e, portanto, de estadia e passagem de cidadãos
africanos – e de poder institucional? Todas essas questões, concretas, reais
e cotidianas, têm um efeito tangível sobre quem escreve e como se escreve
a história do continente. Estas questões não são, ainda, alheias aos debates
sobre reparação. Estes debates (basta pensar no atualmente em curso rela-
tivo aos bronzes do Benim) não têm a ver só com restituições de objetos,
mas também sobre esforços no sentido de não perpetuar epistemicídios
em curso que têm as suas raízes nos processos coloniais.
Por essas e outras razões, a escrita da história política e social do
continente fora do prisma eurocêntrico, fora da ideia de organização
objetiva e sistemática do conhecimento que os próprios arquivos teste-
munham e reproduzem, é fundamental. Fundamental, inclusive, para
entender como as malhas da colonialidade acabam por, através da re-
novação de discursos e de lógicas de subalternidade, reproduzir discur-
sos e dinâmicas historicamente ligadas aos epistemicídios.2

2. Lembramos que diversos estudos foram e têm sido desenvolvidos utilizando-se primor-
dialmente de outras fontes, distintas das fontes coloniais, por exemplo: os relatos orais, as

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É importante lembrar, por outro lado, que os arquivos coloniais


fornecem pistas e informações relevantes sobre as formas em que as
propagandas coloniais foram organizadas, reproduzidas e sobre as ma-
neiras em que houve tentativas de justificar, através dos discursos ofi-
ciais, a própria colonização (ALFIERI 2021).

• A situação colonial e a invenção dos “outros” africanos

O processo de colonização do continente africano não deve ser


compreendido a partir de esquemas dogmáticos e simplistas. Por
exemplo, a mera ideia de que as sociedades europeias “avançadas” do-
minaram as sociedades africanas “atrasadas” é algo que prejudica ou
impossibilita a identificação e a análise das especificidades da coloniza-
ção de cada contexto africano, assim como a identificação das ações e
das agências dos africanos, por mais limitadas que elas possam ter sido.
A ideia de que as sociedades africanas “atrasadas” estavam predestina-
das a serem dominadas pelos europeus é algo que prejudica a avaliação
dos diferentes impactos da colonização sobre cada contexto africano.
Por outro lado, não cabe adotar a posição totalmente oposta no sen-
tido de atribuir toda a responsabilidade da colonização do continente
africano aos próprios africanos. Conforme as contribuições do professor
Mahmood Mamdani (1996), é necessário adotar uma perspectiva que
não esteja presa no extremo do universalismo abstrato ou no extremo do
particularismo intimista, no primeiro caso as histórias africanas tornam-
-se banais e no segundo caso tornam-se exóticas. É necessário adotar
uma perspectiva que seja capaz de identificar as especificidades históri-
cas do processo de colonização dos distintos contextos africanos.

memórias, a arte contemporânea, as biografias, o cotidiano das populações africanas, etc. Po-
de-se mencionar os estudos de A. Hampâté Bâ (2010; 2021), entre outros, assim como os
estudos presentes neste livro. No entanto, destacamos nesta parte do texto que é possível
utilizar as fontes coloniais de forma crítica, sem endossar ou reproduzir qualquer perspectiva
eurocêntrica e colonizadora.

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A noção de situação colonial proposta por Georges Balandier


(1976; 2014) representa uma importante contribuição no sentido des-
sa historicização dos contextos africanos coloniais e da combinação da
macroanálise com as microanálises. Na situação colonial se evidencia
as relações entre sociedades colonizadoras e sociedades colonizadas.
Pode-se elencar alguns fatores que estão envolvidos na complexidade
da situação colonial; por exemplo, o papel da colonização africana nas
histórias dos países ocidentais, a imposição dos recortes e das frontei-
ras territoriais no continente africano, a imposição das administrações
coloniais diretas e indiretas, o papel das ideologias coloniais e das ca-
tegorias classificatórias, a imposição de segregações e barreiras raciais
nos distintos contextos coloniais (aos moldes do apartheid), o papel
das crises e dos conflitos coloniais, o papel dos movimentos (religio-
sos, associativos, culturais, e políticos) criados por indivíduos e grupos
africanos, entre outros fatores.
Voltando à atenção especificamente para as políticas coloniais no
continente africano, é possível dizer que elas em geral combinaram a
administração direta com a administração indireta. A administração
direta se deu, de maneiras distintas, no sentido da imposição de um
poder externo sobre as populações africanas e suas formações políticas.
A administração indireta, por sua vez, buscou acirrar e criar divisões
entre as diferentes populações africanas, e estabelecer relações específi-
cas com cada uma delas. Assim, através da utilização do conhecimento
ocidental, das categorias classificatórias ocidentais e das ideologias co-
loniais, levou-se adiante o lema “dividir para dominar” (PEREIRA &
NASCIMENTO 2020).
As categorias classificatórias ocidentais – tais como: família, tribo,
clã, etnia, raça, reino, nação, superstição, religião, cultura, civilização,
etc. – tiveram um papel fundamental no sentido de criar ou inven-
tar imagens homogêneas e estanques das populações africanas, e elas
pautaram igualmente as ações dos administradores coloniais europeus.
Para além de colaborar com os esforços de ampliar o conhecimento

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a respeito das populações africanas colonizadas, as utilizações dessas


categorias classificatórias ocidentais geraram também uma amplia-
ção das incompreensões, das simplificações, das inferiorizações, dos
preconceitos e dos estereótipos em relação aos africanos, e deixaram
um legado negativo que ainda marca os chamados estudos africanos
e os estudos antropológicos (FIOROTTI 2020a; MUNANGA 1978;
REINHARD 2014).

• As críticas à perspectiva eurocêntrica

O eurocentrismo enquanto expressão da centralidade hegemônica


da Europa no universo, historicamente terá sido concebido como ins-
trumento ideológico utilizado para justificar a existência da escravidão
e da colonização das populações africanas e a sua diáspora, e das po-
pulações não ocidentais em geral. Entrementes, o conceito surgiu de
um fenômeno moderno cujas raízes não vão além do Renascimento
e que se expandiu, nos meados do século XIX, no período em que se
começou a consolidar a ideologia do capitalismo e do racismo cien-
tífico que, por sua vez, forjou até certo ponto, de forma consciente e
propositada, os mitos que invisibilizaram e anularam epistemologica-
mente o contributo dos africanos e da África na construção histórica
do mundo (AMIN 2021). Esta estrutura foi constituída a custa de
“um grande custo intelectual, por textos ideológicos e teóricos, que
desde o último quarto do século XIX até a década de 1950 propuse-
ram programas para ‘regenerar’ o espaço africano e os seus habitantes”
(MUDIMBE 2019: 18). O professor maliano Boubacar Keita (2009)
revela-nos que estes mitos ficaram conhecidos como conjunto de re-
flexões, construções teóricas, conceitos elaborados propositadamente
com a finalidade de minimizar a importância do papel ou do lugar dos
africanos na constituição das civilizações que já fazem parte do patri-
mônio da humanidade, de menosprezar e até negar a existência de um
passado consciente vivido e lembrado na memória coletiva dos povos

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de África. Estes mitos foram usados para justificar da parte da Europa


a ideia da conquista colonial que se fazia por via inescrupulosa da bar-
bárie, alegando tratar-se falaciosamente em missão humanitária ou ci-
vilizatória. Nas palavras do filósofo moçambicano Severino Ngoenha:

[...] Para a Europa “civilizada” o chamado novo mundo é um outro


mundo: costumes selvagens, sem religião, espírito degradado. Os po-
vos não têm escrita, não têm arquivos, não têm Estado. Eles não per-
tencem ao mundo histórico em todas as suas formas, moral, civil e
política. (NGOENHA 1993: 17)

A estrutura colonial e os seus intelectuais dedicaram-se, durante


muito tempo, a construir um imaginário coletivo estereotipado, pre-
conceituoso e estigmatizante sobre os espaços e os povos não ociden-
tais, com realce aos africanos. E, o primeiro equívoco derivava daquilo
que era entendido como sendo África:

[...] Lembremos que o próprio nome do continente é, em si mesmo, um


grande problema. Os gregos deram-lhe o nome de Líbia e costumavam
chamar qualquer pessoa negra de Aitiopes. A confusão começa com ro-
manos, eles tinham uma província em seu império conhecido como a
África, e seus intelectuais usavam a mesma palavra para tertia orbis ter-
rarum pars [...], ou seja, o continente que conhecemos seria o terceiro,
depois da Europa e da Ásia. Com a “descoberta” europeia da África no
século XV, a confusão ficou completa. (MUDIMBE 2022: 12)

Construiu-se uma África dentro da tradição ocidental contida em


um tipo de conhecimento que visava explorar as representações e cate-
gorias exóticas, como ilustradas na literatura inglesa ou francesa, por-
tanto, marginalizando o continente dentro da “biblioteca colonial”,
sem ter em conta as descrições acerca da autenticidade da antropo-
logia, história, geografia e mitologia dos seus povos. Infelizmente, a
ideia de África ficou mesclada a concepções pseudocientíficas e ideoló-
gicas cuja semântica acoplou os conceitos de primitivismo e selvageria,

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ou como nos diz o filósofo congolês Valentin Mudimbe (2022: 17,


grifo nosso): “a África foi subsumida por disciplinas ocidentais, como
a história, antropologia, teologia ou qualquer outro discurso científico
que procurou inventá-la”.

• As contribuições dos intelectuais africanos e das epistemologias africanas

A partir das primeiras décadas do século XX, os intelectuais afri-


canos, sobretudo antropólogos e historiadores, procuraram fazer uma
ampla discussão a respeito das teorias ocidentais, elaborando estudos
interessantes a respeito da história das civilizações africanas, recons-
truindo de novas formas, “pedaço por pedaço”, este passado que mui-
tas vezes se baseava em várias fontes históricas. Isso ficou conhecido
como conquista ou renovação africana e, como exemplo, temos as
obras de Cheikh Anta Diop (1923-1986), que colocaram em evidên-
cia a tese da origem negra do povo do Egito antigo, tendo provado
que terá legado algum contributo à civilização mundial. Portanto, este
pensador deixou um grande legado para o que veio a ser chamado de
afrocentrismo (DIOP 1974; FARIAS 2003).
Dentro do afrocentrismo há uma diversidade grande de ideias, tal-
vez seja mais apropriado falar em afrocentrismos no plural. Além dos
estudos de Cheikh Anta Diop, pode-se mencionar os estudos de Wil-
son Jeremiah Moses, de Théophile Obenga, de Molefi Kete Asante,
entre outros. É possível constatar em diversos estudos do afrocentris-
mo uma tendência a afirmar que as culturas da África negra descen-
dem da cultura do Egito antigo. Esta tendência pode ser identificada
até mesmo quando busca-se dar ênfase à diversidade das populações
africanas, nas palavras do professor Boubacar Keita:

[...] os vários povos ou civilizações que marcaram a antiguidade africana,


desde os egípcios, núbios, fenícios, até gregos e romanos (ou que se desta-
caram durante a Idade Média como os do wagadu ou gana, os mandengues,

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os songhais, os hauçás, kanembus) Tiveram as suas próprias denominações


para várias zonas geográficas do continente. (KEITA 2009: 12)

As críticas que são feitas a essa tendência presente no afrocentrismo vão


no sentido de considerar as culturas presentes na África negra como criações
próprias, sem a necessidade de tomá-las como fruto de um estímulo civili-
zador a partir do mundo faraônico (FARIAS 2003). No entanto, apesar das
críticas que possam ser feitas, cabe destacar a importância do afrocentrismo
como uma demanda para que intelectuais africanos e africanas estudem suas
sociedades e seus contextos a partir de dentro, como uma exigência meto-
dológica que vai no sentido da descolonização do conhecimento na África
e sobre a África, e na busca por epistemologias africanas. Nesse sentido, des-
taca-se os estudos de Joseph Ki-Zerbo, Amadou Hampâté Bâ, Kwesi Prah,
Paulin Hountondji, Valentin Mudimbe, Thandika Mkandawire, Severino
Ngoenha, Mahmood Mamdani, Achille Mbembe, Archie Mafeje, Sabelo
Ndlovu-Gatsheni, Amina Mama, Fatema Mernissi, Awa Thiam, Ifi Amadiu-
me, Oyèrónkẹ́ Oyěwùmí, entre outros (CARVALHO FILHO & NASCI-
MENTO 2019; MKANDAWIRE 2005; NDLOVU-GATSHENI 2013).
Cabe mencionar também, no sentido da descolonização do conhe-
cimento, que os estudos de gênero nos contextos africanos têm desa-
fiado as construções de gênero ocidentais, assim como as formas de se
olhar para as relações de gênero e para os binarismos eurocêntricos.
As intelectuais africanas têm apontado que diversos papéis sociais e
hierárquicos em contextos africanos não estão relacionados ao gênero
(ASSUNÇÃO 2020; MAMA 2005; OYĚWÙMÍ 2021).

• A abordagem das trajetórias e das biografias africanas

A abordagem dos contextos africanos por meio do recurso metodo-


lógico da biografia histórica é algo que tem se difundido nos estudos
históricos e antropológicos. A ênfase nas trajetórias individuais mos-
tra-se capaz de evidenciar variados aspectos da história da África e das

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populações africanas. Tais estudos representam uma contribuição no


sentido de compreender que o indivíduo não pode ser dissociado do
contexto mais amplo que o circunda (NASCIMENTO 2020).
Muitos indivíduos africanos tiveram suas trajetórias fortemente mar-
cadas pela colonização europeia, e vivenciaram o processo da descoloni-
zação e da emergência dos novos países africanos independentes. Neste
sentido, as análises das trajetórias individuais desses africanos têm o po-
tencial de revelar nuances das dinâmicas coloniais e pós-coloniais que
muitas vezes não são captadas pelas análises que somente dão ênfase às
ações governamentais e aos marcos legais (HAMPÂTÉ BÂ 2021).3
Destaca-se as trajetórias dos indivíduos africanos considerados
marginais, traidores ou demasiadamente críticos, porque as análises
destas trajetórias têm o potencial de revelar as limitações e as contradi-
ções das narrativas oficiais propagandeadas pelos respectivos governos
africanos, e de revelar as agências destes indivíduos e suas formas de
construir outras narrativas e outros mundos (FIOROTTI 2022).
Nesta seção foi possível mencionar alguns caminhos e algumas
abordagens que consideramos importantes para o desenvolvimento de
estudos críticos e descolonizados sobre os diferentes contextos africa-
nos.4 Agora voltamos nossa atenção ao conteúdo do livro.

3. HISTÓRIAS E POLÍTICAS EM CONTEXTOS AFRICANOS: SOBRE


O CONTEÚDO DO LIVRO

Este livro reúne histórias de indivíduos e de populações africanas que se


entrecruzam com as políticas coloniais e com as políticas contemporâneas.

3. Diversos intelectuais africanos publicaram relatos autobiográficos que têm sido muito re-
levantes aos estudos históricos e antropológicos, entre os quais mencionamos as obras de C.
Achebe (2012), M. Diawara (2022), e A. Hampâté Bâ (2021).
4. Para um maior aprofundamento nas abordagens e nos tópicos mencionados nesta seção,
ver: N. Alfieri (2021), H.S. Assunção (2020), S. Carvalho Filho e W. Nascimento (2019), F.
Cooper (2016), S. Fiorotti (2022), M. Mamdani (1996), T. Mkandawire (2005), K. Munan-
ga (1978; 2012; 2016), W. Nascimento (2020), e S.J. Ndlovu-Gatsheni (2013).

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20 • Histórias e políticas em contextos africanos

Os autores e as autoras dos ensaios são pesquisadores e pesquisadoras de


pós-graduação, do Brasil, do Senegal, de Angola, e de Moçambique, que
apresentaram suas respectivas pesquisas no III Seminário Internacional
Áfricas.5 Este evento ocorreu no Rio de Janeiro, em novembro de 2022, e
foi promovido pelo grupo de pesquisa Áfricas.6
A partir de áreas distintas e de diferentes percursos acadêmicos, to-
dos os autores e as autoras dos ensaios de alguma forma buscaram dar
ênfase às ações e às agências dos africanos e das africanas, entre os quais:
populações do reino do Kongo, populações de Casamance, Rosinha da
Guiné-Bissau, Sumbo de Cabinda, Helena Domingos e Afonso de Mo-
çâmedes, Loquengo de Moçâmedes, Maria do Céu do Carmo Reis, Jai-
me Pedro Gonçalves, mulheres macúa da Ilha de Moçambique, ex-mili-
tares angolanos, jovens ativistas angolanos, ex-combatentes da Renamo
(Moçambique), cidadãos em geral e jovens ativistas moçambicanos.
O historiador Alec Ichiro Ito, no primeiro ensaio, apresenta dados
importantes que indicam como as populações do reino do Kongo, no
início do século XVII, foram afetadas pelas políticas da monarquia
ibérica e do bispado de Dom Frei Manuel Baptista.
A historiadora Mariana Bracks Fonseca e o historiador senegalês
Ibrahima Djitté, autores do ensaio intitulado “Casamance em lutas:
identidades e resistências à colonização”, defendem que as identidades
das diversas populações de Casamance, no sul do Senegal, foram forja-
das no contexto de sucessivas rebeliões contra a presença de europeus.
O historiador Marcus Vinicius de Oliveira, a partir das imagens de
Rosinha da Guiné-Bissau, apresenta uma reflexão sobre o modo como
o colonialismo português produziu e utilizou as imagens fotográficas
das mulheres africanas. Destaca-se a importância de se buscar novas
atitudes diante destas imagens dos indivíduos africanos.

5. Ver: <http://www.even3.com.br/iiiseminariointernacionalafricas2022>.
6. Ver: <http://grupoafricas.wixsite.com>; <http://www.instagram.com/grupoafricas>.

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O historiador Ronald Lopes de Oliveira, no ensaio “O lento ca-


minhar ritual da colonização portuguesa ao sul de Angola”, apresenta
uma reflexão a respeito das relações entre colonizadores portugueses
e luso-brasileiros, e as populações hereros no sul de Angola. O autor
analisa especificamente alguns rituais de aliança entre o soba Loquen-
go e os colonizadores, algo que não vai simplesmente no sentido de
constatar a aceitação da colonização e a passividade dos africanos, mas
sim de localizar os indivíduos africanos com suas ações e suas agências
dentro de processos complexos.
A historiadora Camila Dias da Costa, autora do ensaio “Os trabalha-
dores urbanos de Moçâmedes”, analisa o cotidiano dos trabalhadores de
Moçâmedes, no início do século XX, a partir das histórias de Sumbo de
Cabinda, Helena Domingos, e Afonso. A autora avalia os impactos das po-
líticas coloniais portuguesas na vida cotidiana destes indivíduos africanos.
A historiadora Leila Marques Elias e o historiador Luiz Augusto
Pinheiro Leal apresentam uma reflexão sobre a trajetória de Maria do
Céu do Carmo Reis (1943-), entre 1960 e 1974. Os autores defen-
dem que a trajetória de Maria do Céu do Carmo Reis, através da sua
atuação em diversas organizações, representa uma contribuição signifi-
cativa no processo de independência de Angola.
O historiador angolano António Ndelesse Epifânio apresenta uma
análise das memórias a respeito da guerra civil angolana a partir dos
relatos de ex-militares e afins sobre o ritual de fechamento dos corpos.
O antropólogo Silas Fiorotti, no ensaio “Trajetórias africanas que
desafiam as narrativas oficiais: considerações sobre a história recen-
te de Moçambique”, apresenta uma reflexão a respeito das narrativas
oficiais em Moçambique. O autor destaca a importância da análise
das trajetórias dos indivíduos moçambicanos considerados traidores
ou demasiadamente críticos aos projetos dos governantes da Frelimo.
As pesquisadoras Roberta Holanda Maschietto, Natália Bue-
no e Samantha Stringer, autoras do ensaio intitulado “Reflexões so-
bre o processo de reconciliação em Moçambique”, apresentam uma

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22 • Histórias e políticas em contextos africanos

avaliação de como a reconciliação tem sido percebida de formas dis-


tintas por ex-combatentes da Renamo e por jovens ativistas.
O antropólogo moçambicano Josué Bila, autor do ensaio intitula-
do “Os privilégios e a subversão dos direitos humanos em Moçambi-
que”, busca refletir sobre o estabelecimento dos privilégios na socie-
dade moçambicana a partir da análise do comportamento de alguns
grupos em situações cotidianas.
Por fim, a antropóloga Helena Santos Assunção, autora do ensaio
intitulado “O cuidado das relações: casamentos e danças com madjine
na Ilha de Moçambique”, apresenta uma análise das relações das mu-
lheres macúa com os espíritos madjine.

4. AGRADECIMENTOS

Dedicamos este livro aos jovens africanos e às jovens africanas que lu-
tam contra as injustiças que ocorrem em seus países.
Agradecemos imensamente as contribuições dos amigos e das ami-
gas do grupo de pesquisa Áfricas (UERJ-UFRJ).
Agradecemos a todos que participaram da organização do III Semi-
nário Internacional Áfricas, especialmente os pesquisadores que coor-
denaram os simpósios temáticos, entre os quais: Mohammed Nadir,
Ronald Lopes de Oliveira, Carolina Bezerra, e Marilda Flores.
Agradecemos os autores e as autoras dos ensaios deste livro que
foram extremamente gentis e atenciosos durante todo o processo de
organização do livro.

REFERÊNCIAS
ACHEBE, C. A educação de uma criança sob o Protetorado Britânico: ensaios. São
Paulo: Companhia das Letras, 2012.
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