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Présence Africaine, 1961/3, n 38, p. 45-60 (Tradução de trecho entre as páginas 45-50)

Ensino e cultura africana


[Enseignement et culture africaine]
Joseph Ki-Zerbo

A educação está situada no coração do desenvolvimento da África. É uma das


principais alavancas para acelerar seu progresso em todos os planos:
- No plano político, por meio do estabelecimento de uma instrução mínima sem a
qual a democracia é uma palavra vazia de sentido;
- No plano social e humano, porque ela desenvolve no homem a consciência de
sua dignidade, as possibilidades de expressão, de criação e de libertação (por exemplo,
para a mulher africana);
- No próprio plano econômico, pois o ensino constitui o investimento mais
precioso a longo termo;
- No plano internacional, pois ela permite melhor conhecer e, dessa forma,
apreciar os outros povos.
A educação é, portanto, uma posição estratégica na grande batalha do progresso.
Ora, para responder adequadamente a esses múltiplos objetivos, a educação na África
deve ser africana, isto é, fundada sobre os alicerces da cultura africana específica, e
baseada nos imperativos particulares do progresso africano em todos os domínios.
No entanto, nós somos herdeiros de um passado que a ascensão à independência
está longe de ter varrido para longe. Os imperativos culturais desse período, ainda vivos,
eram os seguintes:
- A educação era a colonização continuada em outros meios que não os da
exploração econômica e da dominação política.
- Além disso, uma falsa concepção linear da civilização afirmava que os países
europeus tinham atingido uma situação pela qual todos os outros deveriam passar.
Resultados: Opressão cultural; pisoteamento dos valores africanos, bons apenas,
pensava-se, para constituir uma legitimidade folclórica; inexistência de história local;
inexistência de uma língua digna de ser fixada e elevada ao nível de um vetor cultural de
aporte universal etc. Além disso, o pacto colonial considerava os países africanos como
apêndices de sua metrópole. Daí a recusa da industrialização e da preparação de elites
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técnicas qualificadas. Os empregados de execução dos escritórios e os aprendizes eram


amplamente suficientes sob a direção europeia para fazer funcionar as minas e o aparelho
de Estado. Os imperativos da nova situação são diametralmente opostos aos precedentes.
1- Descolonização e africanização do ensino;
2- Adaptação deste ensino à situação de um país subdesenvolvido que deve, em
um curto lapso de tempo, anular seu atraso.
Tais são as exigências de base que comandam todo o resto. Existe certamente um
problema de quantidade no ensino africano; mas o problema qualitativo do conteúdo do
ensino e da natureza dos programas se reveste aqui de um significado mais
revolucionário, pois o homem africano de 1980 será exatamente como os programas
elaborados em 1961 o terão formado. O tipo de homem que dirigirá a África de amanhã
está contido potencialmente nos programas de educação. Questão muito complexa e que
interfere em todos os outros aspectos da vida pública em razão de suas implicações
econômicas, sociais e políticas.

I. Construir o ensino a partir do patrimônio cultural africano.


Trata-se de dar ao ensino sua vocação de catalizador dos valores nacionais
africanos que não são menos reais por não serem expressos da mesma maneira que na
Europa ou em outros lugares. Trabalho vital e gigantesco que pode ser definido ao
precisar quais as matérias-chave e os métodos desta inovação.
A) As matérias-chave.
(...)
3. História – Ela deve ocupar um lugar de destaque dentro da reforma dos
programas, pois constitui um dos fundamentos maiores da consciência nacional. Ora, em
vários Estados africanos de língua francesa, a história nacional não é ensinada em nenhum
momento no ensino secundário, salvo como aspecto da história colonial (Ex: a obra de
Faidherbe no Senegal, a expansão francesa na embocadura do Níger etc). Na República
da Guiné, colocou-se termo a essa situação absurda que continua a prejudicar como uma
sequela monstruosa da situação colonial. Essa situação imputava, com efeito, que os
colonizados não tinham história válida antes da chegada dos europeus. Não tinham
história digna de chamar a atenção de um bom empregado da administração colonial.
Hoje, muitas pessoas enfim aceitam que a África tenha uma história; mas afirmam que
ela não pode ser objeto de uma apresentação dita “objetiva” e “científica”, devido à falta
dos documentos necessários. Assim, nos livros europeus sobre a cronologia das
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civilizações, que apresentam as grandes datas da história universal, não há nenhuma data
sequer sobre a história da África. Ora, é fácil demonstrar que a história africana existe,
que ela pode ser escrita e que ela gozou, repetidas vezes, de um papel decisivo na história
universal.
Os documentos são bastante numerosos. Sejam os documentos escritos de origem
africana, europeia, hindu, chinesa, brasileira etc, sejam os vestígios de civilização (apesar
do papel destrutivo dos elementos), sejam os testemunhos orais. O testemunho oral
merece aqui uma atenção particular. Ele não deve ser minimizado. Com efeito, para dar
apenas um exemplo, os sítios arqueológicos atualmente explorados na África foram,
frequentemente, como no caso de Koumbi-Saleh, descobertos a partir de uma indicação
conservada pela tradição oral. Por outro lado, os documentos escritos não são quase
sempre a recolha de um testemunho oral, de uma narrativa escutada e não vivida por quem
o escreve?
A título de exemplo, em 1960, um ancião de 80 anos pode testemunhar sobre os
eventos ocorridos em torno de 1830 se ele escutou aos 15 anos de idade, em 1895, os
relatos de seu avô, nascido em 1815. Nós podemos dizer, então, que cada vez que um
ancião africano lúcido e experiente morre, é todo um plano da paisagem histórica de seu
país que é abolida.
É possível, portanto, edificar uma metodologia da história africana que levará em
conta os critérios particulares desta civilização do verbo (como, por exemplo, os métodos
tradicionais de datação), mas que não sacrificaria nada de fundamental no que concerne
o que se convencionou chamar de “objetividade histórica”. Essa metodologia deverá se
apoiar em um aparelho de documentação e de “provas” judiciosamente edificado. Mas,
para isso, é preciso que desde hoje um trabalho gigantesco de acumulação seja
completado, ao qual a UNESCO pode trazer um apoio decisivo. Fitas magnéticas, filmes
e microfilmes, fotocópias, nomenclaturas e catálogos devem ser constituídos, a fim de
formar um estoque no qual os especialistas poderão trabalhar posteriormente. Daí a
necessidade de cada região ter uma pequena equipe de arquivistas especializados nesse
trabalho de inventariado, de coleta e de classificação.
Além disso, como em geografia, é importante que os alunos africanos conheçam
a história dos países do mundo que têm mais ou menos a mesma idade tecnológica, assim
como tenham tido exposição a eventos históricos como o Islã, em razão da importância
da população muçulmana destes territórios. Em todo caso, é preciso rejeitar sem mais
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delongas a falsa ideia segundo a qual a história da Europa ocidental é permanentemente


o eixo da história universal.
(...).

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