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HISTÓRIA DA ÁFRICA E

DOS AFRICANOS: DOS


PRIMÓRDIOS AO PERÍODO
PRÉ-COLONIAL

Autores: Edison Lucas Fabricio

Edilson Pereira Brito

UNIASSELVI-PÓS
Programa de Pós-Graduação EAD
CENTRO UNIVERSITÁRIO LEONARDO DA VINCI
Rodovia BR 470, Km 71, no 1.040, Bairro Benedito
Cx. P. 191 - 89.130-000 – INDAIAL/SC
Fone Fax: (47) 3281-9000/3281-9090

Reitor: Prof. Ozinil Martins de Souza

Diretor UNIASSELVI-PÓS: Prof. Carlos Fabiano Fistarol

Coordenador da Pós-Graduação EAD: Prof. Norberto Siegel

Equipe Multidisciplinar da
Pós-Graduação EAD: Profa. Hiandra B. Götzinger Montibeller
Profa. Izilene Conceição Amaro Ewald
Profa. Jociane Stolf

Revisão de Conteúdo: Profa. Bruna Scheifer

Revisão Gramatical: Camila Thaisa Alves

Diagramação e Capa:
Centro Universitário Leonardo da Vinci – UNIASSELVI

Copyright © UNIASSELVI 2012


Ficha catalográfica elaborada na fonte pela Biblioteca Dante Alighieri
UNIASSELVI – Indaial.

960
F122h Fabrício, Edson Lucas
História da África e dos africanos : dos primórdios ao período
pré-colonial / Edson Lucas Fabrício e Edilson Pereira Brito.
Indaial : Uniasselvi, 2012.
128 p. : il

Inclui bibliografia.
ISBN 978-85-7830-602-1

1. História da África.
I. Centro Universitário Leonardo da Vinci.

Impresso por:
Edison Lucas Fabricio

Graduado em História pela Universidade


Regional de Blumenau (2008); Mestre em História
pela Universidade Federal de Santa Catarina (2011).
Professor nos cursos de História da UNIASSELVI,
FURB e UNIDAVI.

Edilson Pereira Brito

Licenciado em História pela Universidade


Estadual de Maringá (2006); Mestre em História
Cultural pela Universidade Federal de Santa Catarina
(2011). Foi professor de educação básica na rede
pública de ensino do Estado do Paraná por quatro anos e
desde 2012 é aluno do curso de doutorado em História da
Universidade Estadual de Campinas. Realiza pesquisas
nas áreas de ensino de História, História Social e
história dos africanos e seus descendentes no
Brasil Meridional.
Sumário

APRESENTAÇÃO.......................................................................7

CAPÍTULO 1
África: Berço da Humanidade e da Civilização – a Paisagem,
a Pré-História e as Primeiras Sociedades Agrícolas......... 9

CAPÍTULO 2
As primeiras civilizações africanas.
A África Nilótica: Egito, Núbia, Kush e Axum..................... 35

CAPÍTULO 3
De Berberes a Árabes: O Norte da África e sua
História................................................................................... 63

CAPÍTULO 4
A África Negra Pré-Colonial............................................... 89
APRESENTAÇÃO
Caro(a) pós-graduando(a):

Prezados pós-graduandos, sejam bem-vindos à disciplina de História da


África: dos primórdios ao período colonial. Nestas páginas a seguir, vamos trilhar
um caminho de descobertas e de agregação de novos conhecimentos, saberes e
experiências.

No primeiro capítulo, vamos discutir como a África foi constituída enquanto


objeto da História e qual seu lugar no próprio processo de hominização. Dessa
forma, veremos como a constituição física ou geográfica do continente africano
contribuiu para a formação das primeiras comunidades humanas e favoreceu o
desenvolvimento de núcleos agrícolas e pastoris.

No segundo capítulo, vamos à História da África a partir das primeiras


civilizações que surgiram na região oriental, a partir das margens do Rio Nilo. A
civilização egípcia foi uma das mais importantes, mas também veremos que ao
sul do Egito emergiram importantes culturas, como os reinos da Núbia, de Kush,
as cidades de Kerma, Napata, Meroé e a civilização de Axum.

No terceiro capítulo, vamos voltar nosso olhar para o norte da África. O norte
do continente africano é um território milenar e foi o lugar de passagem e ocupação
de diversos povos. Essa região, também conhecida Magrebe, foi o ambiente onde
viveram os berberes, passaram fenícios, gregos, romanos, bárbaros, bizantinos e
árabes, o espaço onde emergiu o grande Império de Cartago e por onde começou
o processo de islamização da África. É como uma grande encruzilhada de povos
e culturas.

No quarto e último capítulo vamos abordar as questões relativas à história da


África subsaariana. Vamos perceber que essa região de povos bantus, sudaneses,
iorubas, e muitas outras etnias, deu origem a diversos reinos e impérios, como
Ghana, Mali, Songai, Kongo, Monomopata e vários outros. Tais povos foram
fundamentais para a própria constituição da história do Brasil, pois foi de seus
territórios que vieram cerca de 4 milhões de escravos para trabalharem nos
nossos canaviais, regiões mineradoras e fazendas de café. Portanto, veremos que
a riqueza cultural das regiões da costa ocidental da África, das regiões de Angola, do
golfo da Guiné e de Moçambique foi essencial para nossa formação identitária.

Bons estudos.

Os autores.
C APÍTULO 1

África: Berço da Humanidade


e da Civilização – a Paisagem,
a Pré-História e as Primeiras
Sociedades Agrícolas

A partir da perspectiva do saber fazer, neste capítulo você terá os seguintes


objetivos de aprendizagem:

 Discutir a singularidade da África enquanto berço da humanidade e seu lugar


na História.

 Compreender o processo de formação da pré-história africana.

 Introduzir o debate sobre os primeiros elementos das civilizações africanas: o


sedentarismo, as primeiras comunidades agrícolas e os primeiros aglomerados
sociais.
História da África e dos Africanos: dos Primórdios ao Período Pré-Colonial

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Capítulo 1 ÁFRICA: BERÇO DA HUMANIDADE E DA CIVILIZAÇÃO – A
PAISAGEM, A PRÉ-HISTÓRIA E AS PRIMEIRAS SOCIEDA-
DES AGRÍCOLAS

Contextualização
Prezado (a) pós-graduando (a), quando pensamos em “África”, qual imagem
vem à nossa mente? Miséria, fome, desnutrição, animais exóticos, belezas
naturais, florestas, desertos...
A África é muito
Muito bem. Neste capítulo, vamos compreender que a África é mais complexa do
que as imagens
muito mais complexa do que as imagens que vemos nos noticiários e
que vemos nos
que aprendemos na escola. noticiários e que
aprendemos na
A África é o berço da humanidade. Essa expressão, à primeira escola.
vista, parece retórica, mas ela guarda um significado muito importante.
Foi na África que surgiram os primeiros seres humanos e que tinham consciência
de sua humanidade. Em última instância, ao dizer que somos humanos, queremos
dizer que, através dos nossos ancestrais, temos laços de humanidade com o
continente africano.

Mas a África não é um bloco homogêneo. Neste estudo, veremos A África também é
que até o próprio nome é muito recente, se levarmos em conta os um continente rico
milhões de anos que compõem a história do continente. Para além da em diversidade
natural e cultural.
nomenclatura, a África também é um continente rico em diversidade
natural e cultural. Neste estudo, veremos que as condições ambientais,
os desertos, as florestas, acabaram por criar particularidades culturais muito
específicas.

Neste estudo também vamos discutir o longo processo de hominização nas


diversas regiões do continente africano e a introdução das práticas agrícolas e
pastoris.

O Significado da África para a


História
A primeira questão que queremos levantar nesta jornada do conhecimento
é o próprio significado da África para a História. A princípio, essa questão parece
insignificante, mas ela é um indício da complexa discussão em torno da história
africana.

Sabemos que há uma divisão clássica entre a pré-história e a história da


humanidade propriamente dita. Nesse sentido, atribuímos comumente à invenção

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História da África e dos Africanos: dos Primórdios ao Período Pré-Colonial

da escrita o papel de marco divisor entre os dois períodos. Esse entendimento


produziu uma série de problemas, pois as sociedades sem escrita eram
caracterizadas como sociedades sem história.

Nessa perspectiva, todo o universo simbólico, as outras formas de linguagem


que não a escrita, a oralidade, eram desprezados em nome da superioridade das
civilizações que dominavam a escrita. Esse entendimento teve consequências
desastrosas, principalmente para a compreensão da história africana.

Durante muito tempo, Durante muito tempo, alguns pensadores assinalaram em


alguns pensadores seus discursos que a África era um continente sem história, pois
assinalaram em seus não tinha escrita. Nessa linha de raciocínio, a África estaria mais
discursos que a África
próxima da natureza do que da cultura. Essa visão justificava
era um continente
uma ideologia e uma política de dominação sobre os povos e
sem história, pois não
tinha escrita. as riquezas do continente africano. No contexto imperialista do
século XIX, a concepção cientificista europeia relegava a África
aos patamares mais baixos dos povos civilizados, entre as culturas menos
desenvolvidas. Sobre isso, veja o que expressam os historiadores africanos
Boubou Hama e Ki-Zerbo:

Num primeiro contato com a África, e mesmo a partir da


leitura de numerosas obras etnológicas, tem-se a impressão
de que os africanos estavam imersos e como que afogados
no tempo mítico, vasto oceano sem margens nem marcos,
enquanto os outros povos percorriam a avenida da história,
imenso eixo balizado pelas etapas do progresso (2010, p.
24).

No entanto, o desenvolvimento da História como disciplina


Hoje temos a e o diálogo com outros ramos do saber, como a Antropologia, a
consciência da
Linguística, a Arqueologia e outras ciências, possibilitou alargar
riqueza da história e
da cultura africana, a compreensão da história da África. Hoje temos a consciência da
de seus rituais, de riqueza da história e da cultura africana, de seus rituais, de sua
sua religiosidade, religiosidade, da oralidade, da sua arte.
da oralidade, da sua
arte. Para os historiadores da atualidade, a inexistência de registros
escritos não é empecilho para a constituição de uma história da
África. A Arqueologia relativizou a importância das fontes escritas e mostrou
o valor de todo e qualquer indício material para a História. A Antropologia e a
Linguística tornaram evidentes a importância da oralidade e de outras formas de
linguagem, diferentes da escrita.

A História do século XX também passou por transformações profundas.


A História deixou de ser a narrativa dos grandes acontecimentos, a história
dos reis, dos governantes e passou a valorizar a experiência e o cotidiano das

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Capítulo 1 ÁFRICA: BERÇO DA HUMANIDADE E DA CIVILIZAÇÃO – A
PAISAGEM, A PRÉ-HISTÓRIA E AS PRIMEIRAS SOCIEDA-
DES AGRÍCOLAS
pessoas comuns, seus modos de vida, as formas de sociabilidade, os detalhes
aparentemente sem importância.

Para nós, brasileiros, a África tem um significado especial. A nossa identidade


nacional é impensável sem levarmos em conta a nossa primordial e Para nós,
tripla constituição: índios, europeus e africanos. É inegável que os brasileiros, a
africanos marcaram a história, a cultura e a identidade brasileira de África tem um
forma indelével. Outros grupos étnicos só imigraram para o Brasil significado
especial.
a partir do século XIX em diante, depois de mais três séculos de
escravidão.

Após uma penosa e compulsória travessia pelo Atlântico, os


É inegável que
negros adentraram o território brasileiro, tiveram que renunciar a muitos os africanos
costumes no novo ambiente, adaptaram muitos deles também. Aqui marcaram a
tiveram que enfrentar a dureza do trabalho escravo. Todavia, deixaram história, a cultura
sua marca através do trabalho, com suas mãos e seu suor construíram e a identidade
a riqueza deste país, seja nos canaviais, nas plantações de café, nas brasileira de forma
indelével.
indústrias. Mas também marcaram nossa própria constituição étnica e
biológica, através da mestiçagem, a pele morena, a linguagem, as formas de crer,
de dançar.

É essa história que vamos conhecer nas próximas páginas. Mas vamos
começar por um breve relato da constituição geográfica do continente.

Atividade de Estudos:

1) Segundo Boubou Hama e Ki-Zerbo (2010, p. 24), ao lermos


algumas obras sobre a África “tem-se a impressão de que os
africanos estavam imersos e, como que afogados no tempo
mítico, vasto oceano sem margens nem marcos, enquanto os
outros povos percorriam a avenida da história”. A crítica dos
autores é muito importante para compreender o preconceito
de uma “África sem história”. No seu ponto de vista, como foi
produzido tal preconceito?
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História da África e dos Africanos: dos Primórdios ao Período Pré-Colonial

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O Mundo Físico: Quando a Geografia


Constrange a História
A composição Qualquer tentativa de compreensão da história africana não deve
geográfica do fugir da discussão de sua constituição geográfica. Segundo alguns
continente criou historiadores, como veremos a seguir, a composição geográfica do
“duas Áfricas”, uma continente criou “duas Áfricas”, uma África mediterrânica e outra
África mediterrânea e
África negra ou subsaariana, sendo o deserto do Saara o elemento
outra África Negra ou
subsaariana”. divisor do continente.

A África mediterrânica é caracterizada por territórios que há muitos séculos


mantiveram um intercâmbio cultural com os povos mediterrânicos: fenícios,
gregos, romanos, árabes, judeus. A chamada África mediterrânica é composta
pelas regiões do atual Egito, Líbia, Tunísia, Argélia, Marrocos. Esses povos, na
perspectiva histórica, estão culturalmente mais ligados ao “Velho Mundo” do que
ao restante da África negra.

No ano de 1964, a UNESCO iniciava um empreendimento


sem precedentes. Construir uma coleção de narrasse a história da
África a partir da perspectiva dos próprios africanos. Depois de 30
anos, a Coleção História Geral da África, em 8 volumes e mais de
10 mil páginas, estava concluída. Esse material foi traduzido para
vários idiomas, inclusive o português, e está em domínio público,
podendo ser baixado através do Portal do Ministério da Educação.
Acesse:

http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_content&view=
article&id=16146.

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Capítulo 1 ÁFRICA: BERÇO DA HUMANIDADE E DA CIVILIZAÇÃO – A
PAISAGEM, A PRÉ-HISTÓRIA E AS PRIMEIRAS SOCIEDA-
DES AGRÍCOLAS

Por outro lado, há a África negra separada do norte pelo Saara. A África
subsaariana é caracterizada pela diversidade étnica, linguística e religiosa. Ao sul
do Saara, entre o Oceano Atlântico e o Índico, habitam centenas de tribos, sendo
que as línguas chegam a ser mais de duas mil e seus panteões de deuses muito
diversificados.

Muitos historiadores aceitam essa teoria das “duas áfricas”. Alberto da Costa
e Silva, um dos historiadores brasileiros mais conceituados em História da África,
afirma que “o que realmente faz da África duas Áfricas é o enorme deserto, a
estender-se do Atlântico ao Mar Vermelho” (1992, p. 7).

Nessa mesma perspectiva, o historiador francês da Escola dos Annales,


Fernand Braudel, nos adverte que a geografia e os elementos ambientais tiveram
um papel determinante na vida das sociedades da África negra. Segundo Braudel,

Para a compreensão do mundo negro: a geografia prevalece


sobre a história. Os contextos geográficos, embora não sejam
os únicos a contar, são os mais significativos. [...] Em suma, a
África Negra se abriu mal e tardiamente para o mundo exterior.
Não obstante, seria um erro imaginar que suas portas e
janelas seriam aferrolhadas ao longo dos séculos. A natureza,
que aqui, comanda de maneira imperativa, não é, entretanto, a
única a ditar suas ordens: a história teve frequentemente a sua
palavra a dizer (BRAUDEL, 2004).

Todavia, pretendemos neste estudo considerar a África como um todo, mesmo


sabendo que a geografia tende a produzir diferenças culturais. Compartilhamos da
perspectiva de M. Amadou Mahtar M’Bow, que assinala o fato de, durante muito
tempo, o continente africano quase nunca ser tratado como

uma entidade histórica. Em contrário, enfatizava-se tudo o


que pudesse reforçar a ideia de uma cisão que teria existido,
desde sempre, entre uma “África branca” e uma “África
negra” que se ignoravam reciprocamente. Apresentava-se
frequentemente o Saara como um espaço impenetrável que
tornaria impossíveis misturas entre etnias e povos, bem como
trocas de bens, crenças, hábitos e ideias entre as sociedades
constituídas de um lado e de outro do deserto. Traçavam-se
fronteiras intransponíveis entre as civilizações do antigo Egito
e da Núbia e aquelas dos povos subsaarianos. Certamente,
a história da África norte-saariana esteve antes ligada àquela
da bacia mediterrânea, muito mais que a história da África
subsaariana, mas, nos dias atuais, é amplamente reconhecido
que as civilizações do continente africano, pela sua variedade
linguística e cultural, formam em graus variados as vertentes
históricas de um conjunto de povos e sociedades, unidos por
laços seculares (2010, p. XXII).

Antes de falarmos sobre a constituição física do continente africano, vamos

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História da África e dos Africanos: dos Primórdios ao Período Pré-Colonial

ao surgimento da própria nomenclatura “África”. Segundo Conceição, durante


muito tempo o continente africano era conhecido simplesmente como “Líbia”.
Segundo a tradição, o nome teria sido atribuído por Heródoto, historiador grego do
período clássico, “quando usou o nome de heroínas míticas para designar os três
continentes então conhecidos: Europa, Ásia e Líbia. Esse último nome predominou
até o século XVI, quando foi adotado o de “Afriquyia”, antiga designação árabe,
que mais tarde foi latinizada para África. Segundo essa mesma autora, a hipótese
mais provável para o surgimento do nome “África”, é derivação da palavra Afrig,
uma tribo berbere do antigo império cartaginês (CONCEIÇÃO, 2006, p. 12).

Provavelmente você já ouviu falar da Lei 10.639/2003, que torna


obrigatório o ensino de História e Cultura Afro-Brasileira nas escolas
públicas e particulares, de ensino fundamental e ensino médio. O
Ministério da Educação vem trabalhando no sentido de implementar
políticas para o efetivo cumprimento dessa lei. Uma dessas medidas
é a publicação de pesquisas acadêmicas sobre a temática. Acesse o
livro Educação anti-racista: caminhos abertos pela Lei Federal
nº 10.639/03 e participe dessas reflexões.

http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman&task=doc_
download&gid=658&Itemid=

Pontuada a questão das “duas Áfricas” e o significado do termo “África”,


vamos à problemática das diferenças espaciais presentes no território. O
continente africano é um imenso maciço de 30.259.752 km², sendo o terceiro
maior continente, só perdendo em extensão para a Ásia e a América. Seus
contornos são simples e seu litoral tem poucas ilhas, sendo Madagascar, São
Tomé, Príncipe, Cabo Verde, as Canárias e o arquipélago da Madeira algumas
delas. O formato triangular do continente africano colocou como limites, o
Mediterrâneo ao norte, Oceano Índico a leste, o Atlântico a oeste.

Atualmente, a África é conhecida mundialmente por suas belezas naturais, a


riqueza da vida selvagem, a diversidade de animais, de paisagens e singularidades
culturais. Segundo Conceição, a África é o continente mais quente do mundo,
com uma temperatura média que ultrapassa os 20°C, “quatro quintos da sua área
fica entre os trópicos, o que corresponde a ocupar 43% de todo o território tropical
do planeta. A África é também o continente mais árido, com 30% dos desertos do
planeta” (2006, p. 16).

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Capítulo 1 ÁFRICA: BERÇO DA HUMANIDADE E DA CIVILIZAÇÃO – A
PAISAGEM, A PRÉ-HISTÓRIA E AS PRIMEIRAS SOCIEDA-
DES AGRÍCOLAS
Os maiores desertos da África são, respectivamente, o Saara, Os maiores
com uma área que totaliza oito milhões de km², o Namibe e o Kalahari, desertos da
África são,
ao sudoeste do continente, mais voltado para o Atlântico. Segundo
respectivamente,
Alberto da Costa e Silva, “um terço da África pertence aos desertos o Saara, com uma
e aos semidesertos”. Todavia, não se pode afirmar que não há vida área que totaliza
nesses desertos, em muitos lugares há oásis, tamareiras, aloés, oito milhões de
acácias, sisal” (1992, p. 15). km², o Namibe e o
Kalahari.
Figura 1 - Mapa com as características climáticas do continente africano

FONTE: Disponível em: <http://4.bp.blogspot.com/_GKQJwnQvnw0/


Si8GlbMBjMI/AAAAAAAAAFk/v_mGEfgWCAE/s1600/EF2_
AN9_1BI_GEO_BL02_003.jpg>. Acesso em: 23 mai. 2012.

Há uma longa temporada de secas, que pode chegar a oito ou O Sahel é a faixa
nove meses, na área que vai de Dacar, no Atlântico, a Massaua, no de estepes que
mar Vermelho. Esse é o clima da área conhecida como Sahel, que em margeia o deserto
árabe quer dizer “costa”, “margem”. O Sahel é a faixa de estepes que do Saara.
margeia o deserto do Saara e sua extensão pode variar conforme a

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História da África e dos Africanos: dos Primórdios ao Período Pré-Colonial

intensidade das chuvas, ora adentrando o deserto, ora se retraindo e invadindo


as savanas.
Como dissemos anteriormente, o continente africano é um grande maciço,
suas planícies litorâneas tem em média 100 km e logo se iniciam os planaltos em
direção ao interior do continente, tais elevados chegam a ter aproximadamente
700 metros. Essas superfícies irregulares produzem, a partir dos rios, numerosas
cataratas. O continente africano também é permeado de norte a sul por algumas
falhas tectônicas, que podem chegar a 80 km de largura e centenas
O continente de metros de profundidade. É justamente nessas falhas que
africano também é encontramos os grandes lagos: Vitória (69,11 km²), Tanganika (32,8
permeado de norte
km²), o Malawi (28,9 km²).
a sul por algumas
falhas tectônicas,
que podem chegar Nessas falhas geológicas do continente também está localizada
a 80 km de largura e uma grande cadeia montanhosa, que vai desde a África do Sul até a
centenas de metros Etiópia, no leste do continente. Os maiores picos são o Kilimanjaro
de profundidade. (5.895 m), o Kênia (5.211 m) e o Ruwenzori (5.119 m). Nessas terras
altas há geleiras.

Figura 2 - Relevo e hidrografia do continente africano

FONTE: Disponível em: <http://4.bp.blogspot.com/_GKQJwnQvnw0/


Si8DxkicxbI/AAAAAAAAAEU/YFTMm2MyVR8/s1600/EF2_
AN9_1BI_GEO_BL02_002.jpg>. Acesso em: 23 mai. 2012.

Entre a parte central e ocidental do continente, voltadas para o Atlântico,


ficam as grandes bacias hidrográficas dos rios Níger, Chade, Congo/Zaire. Na
parte nordeste do continente fica o segundo rio mais longo da terra, o Nilo, com
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Capítulo 1 ÁFRICA: BERÇO DA HUMANIDADE E DA CIVILIZAÇÃO – A
PAISAGEM, A PRÉ-HISTÓRIA E AS PRIMEIRAS SOCIEDA-
DES AGRÍCOLAS
6.670 km de extensão. Ao lado do Nilo, os maiores rios são o Congo (4.374 km),
o Níger (4.180 km) e o Zambeze (2.650 km). Mas, de acordo com Costa e Silva,

não é o Nilo, com seus 6.670km de extensão, o eixo do maior


sistema fluvial da África, e sim o Zaire ou Congo. A bacia
do Zaire (3.700.000km2) só é inferior às do Amazonas e do
Paraná-Paraguai. Estende-se desde as montanhas e lagos da
região das grandes falhas ocidentais até o Atlântico, do Bahr-
el-Ghazal, no nordeste, ao planalto de Angola, no sul (COSTA
E SILVA, 1992, p. 11).

A vegetação do continente segue os diferentes climas. São três os São três os tipos
de vegetações
tipos de vegetações mais comuns: as florestas equatoriais, as savanas
mais comuns:
e os desertos. as florestas
equatoriais, as
As florestas equatoriais ocupam as regiões de baixa latitude, savanas e os
principalmente na parte centro ocidental do continente. Nesses desertos.
espaços, o clima é úmido e quente e as árvores podem chegar a uma
estatura de até 60 metros. Nessas florestas,

Na fímbria dessas densas matas, os abertos se sucedem.


Para dentro da floresta, o chão vai se tornando nu ou
coberto de detritos vegetais, enquanto as árvores se
multiplicam em andares de altura, com as copas, em muitos
pontos, a se unirem umas às outras, na confusão de um só
teto. Tudo é verde. Só vista do alto, a floresta colore-se de
flores (SILVA, 1992, p.17).

Já as savanas são características do clima tropical, nelas há pequenas


árvores e uma abundante vegetação rasteira. Segundo Alberto da Costa e Silva,
as savanas

são a morada dos grandes mamíferos africanos: o búfalo, os


variadíssimos tipos de antílopes (o elande, o gnu, o cudo, a
impala, as palancas, o guelengue, o sim-sim, o inhacoso, o
chango, as gazelas), o elefante, o rinoceronte, o hipopótamo,
a zebra, a girafa, o leão, o leopardo, o guepardo, a hiena, os
numerosos símios. [...]
São também diversificadas as espécies de aves, ressaltando-
se o avestruz, a cegonha, o flamingo, o pelicano, a águia-
pesqueira. Em nenhum outro continente há tantas espécies
de grandes animais e em tão considerável número — e é nas
savanas que eles se concentram (1992, p.16).

Os desertos, como vimos anteriormente, não são totalmente desprovidos de


vida, a vegetação não é permanente, mas depois das chuvas há o surgimento de
alguma vegetação rasteira. O clima é de altas temperaturas durante o dia e muito
baixas à noite.

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História da África e dos Africanos: dos Primórdios ao Período Pré-Colonial

O Saara foi a grande barreira entre a áfrica negra e o mediterrâneo. Por


outro lado, o Rio Nilo, que poderia servir de elo com o interior do continente,
não conseguiu minimizar o isolamento da áfrica negra, suas grandes cataratas
dificultam sobremaneira a navegação.

Atividade de Estudos:

1) Durante muito tempo, houve um entendimento de que o continente


africano era, na verdade, formado por “duas Áfricas”. Nessa
perspectiva, Braudel (2004) afirma que “para a compreensão
do mundo negro: a geografia prevalece sobre a história”. Como
podemos explicar a teoria das “duas áfricas” e o papel da
geografia?
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A Pré-história Africana
Falar de pré-história africana é sempre complexo. Como dissemos no início
desse capítulo, se entendermos a pré-história como o período anterior aos
registros escritos e a escrita como único elemento que separa a História da Pré-
história, alguns territórios africanos ainda estariam na pré-história e outros há
pouquíssimo tempo teriam saído dessa condição.

Portanto, não podemos deixar de sublinhar que essa rígida divisão entre
a pré-história e a história propriamente dita é uma divisão artificial. Pois ainda
em muitas sociedades africanas não há testemunhos escritos, e muitos grupos

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Capítulo 1 ÁFRICA: BERÇO DA HUMANIDADE E DA CIVILIZAÇÃO – A
PAISAGEM, A PRÉ-HISTÓRIA E AS PRIMEIRAS SOCIEDA-
DES AGRÍCOLAS
ainda preferem viver como coletores e caçadores, mesmo convivendo Para
ao lado de grupos agrícolas e sedentários. Todavia, não podemos compreendermos
afirmar que são pré-históricos. É importante dizer que a maioria das melhor a pré-
explorações arqueológicas no continente só se iniciou a partir do história, é
século XIX e ganharam mais relevância no século XX. importante termos
consciência
da história
Antes de falarmos da pré-história africana, vamos a algumas dos tempos
informações gerais. Para compreendermos melhor a pré-história, geológicos.
é importante termos consciência da história dos tempos geológicos.
Dividimos geralmente os tempos geológicos em Eras, Períodos e Épocas.
Para nosso contexto, é importante conhecer os períodos Primário, O Quaternário
Secundário, Terciário e Quaternário. O Terciário é dividido em: abrange dois
Paleoceno, Eoceno, Oligoceno, Mioceno e Plioceno. E o Quaternário períodos:
abrange dois períodos: Pleistoceno e Holoceno. Esses dois últimos Pleistoceno e
períodos são os mais importantes, pois é neles que situamos a origem Holoceno. Esses
dois últimos
do homem. Veja o quadro abaixo:
períodos são os
mais importantes,
Figura 3 – Cronologia das Eras, Períodos e pois é neles que
Épocas de desenvolvimento da vida situamos a origem
do homem.

FONTE: Disponível em: <http://ppegeo.igc.usp.br/img/revistas/


ted/v1n1/html/1a02f5.jpg>. Acesso em: 15 jun. 2012.
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História da África e dos Africanos: dos Primórdios ao Período Pré-Colonial

É no interior do período Quarternário e das épocas do Pleistoceno e Holoceno


que situamos os diferentes períodos pré-históricos: Paleolítico, Mesolítico,
Neolítico e Idade dos Metais.

O Período Paleolítico é o mais longo de todos, inicia-se há cerca de 4,5


milhões de anos, com o surgimento do ser humano e se estende até cerca de
10.000 anos a. C. Nesse contexto surgem os primeiros hominídeos. São mais de
40 espécies de hominídeos, mas para simplificar vamos falar apenas das quatro
mais importantes: Australopithecus, Homo Habilis, Homo Erectus e o Homo
Sapiens-sapiens.

O Período Paleolítico O período Mesolítico é um período intermediário entre o


é o mais longo de Paleolítico e o Neolítico, nele ocorrem as últimas glaciações. No
todos, inicia-se há
período Neolítico ocorre a transição da caça e da coleta de alimentos
cerca de 4,5 milhões
de anos, com o para a produção agrícola. O cultivo de alimentos proporcionou uma
surgimento do ser verdadeira revolução, pois o ser humano teve sua organização social
humano e se estende estabilizada, criou comunidades organizadas e não corria mais o
até cerca de 10.000 risco de ser extinto pela falta de alimentos. Mas vamos a algumas
anos a. C. breves informações sobre os mais importantes hominídeos.

Para melhor compreender o período da Pré-história, sugerimos


que você assista ao filme Guerra do Fogo. Sem dúvida, a melhor
produção do gênero. Ficha Técnica. Diretor: Jean-Jacques Annaud.
Duração: 100 min. Ano: 1981. País: França/ Canadá/ EUA. Gênero:
Aventura.

O Australopithecus viveu a cerca de 3 ou 4 milhões de anos na África Oriental,


era caçador e coletor, andava sobre duas patas, não media mais que 1,20 m de
altura e pesava cerca de 30 quilos. É bem provável que fossem vegetarianos e
que não fabricassem instrumentos de pedra, mas que utilizassem apenas as que
já se encontravam na natureza. Antes de ser extinto, deu origem ao gênero homo.

O Homo Habilis é o primeiro do gênero homo. Surgiu há cerca de 2 milhões


de anos e tinha a habilidade de fabricar instrumentos, a carne já fazia parte de
sua alimentação, por isso precisava de instrumentos para caçar e rasgar a
pele dos animais. O Homo Habilis já industrializava seixos para a utilização na
caça. Segundo Alberto da Costa e Silva, “ao conjunto desses instrumentos
líticos deu-se o nome de cultura dos seixos lascados - ou Pebble Culture, em
inglês. Ou, ainda, Olduvaiense” (1992, p. 48).

22
Capítulo 1 ÁFRICA: BERÇO DA HUMANIDADE E DA CIVILIZAÇÃO – A
PAISAGEM, A PRÉ-HISTÓRIA E AS PRIMEIRAS SOCIEDA-
DES AGRÍCOLAS
O Homo Erectus viveu há cerca de 1,3 milhão de anos, por sua postura
ereta e estrutura esquelética é o que mais se aproxima do homem atual. Vivia
em grupos e tinha o domínio do fogo. É possível que tenha sido contemporâneo
do Australopithecus e que esse tenha sido extinto devido aos sucessivos
combates e perseguições do Homo Erectus. Foi hábil caçador e colhedor, viveu
na África central e oriental, fabricava utensílios de pedra lascada, sendo
os mais conhecidos os bifaces, ou “machados de mão”. O Homo Erectus
foi responsável pela indústria do “Acheulense”, nome que dá para a cultura
dos seixos raspados, pois se diferenciavam dos seixos lascados da indústria
Olduvaiense.

Finalmente, o Homo Sapiens-sapiens é último do gênero homo, do qual


descendemos. Esse hominídeo surgiu há cerca de 200 mil anos, desenvolveu
capacidades artísticas, dominou a escrita e tornou-se sedentário. Ao que tudo
indica, o homem moderno expandiu-se a partir das áreas próximas ao lago
Turcana e ao lago Vitória para o resto do continente. O Homo sapiens é
responsável pelo refinamento da indústria lítica africana.

A fim de poder ocupar os terrenos fortemente arborizados,


o homem armou-se de instrumentos especiais de pedra,
instrumentos que, pertencendo à tradição acheulense, se
apresentam, entretanto, muito mais pesados. Os bifaces
tornam-se mais maciços, mais largos e mais curtos. O cutelo
ou machadinha desaparece. As esferas tornam-se raras. Os
picões passam a prevalecer, com os raspadores. E surgem
peças bifaciais, longas e estreitas - goivos? buris? punhais? -,
que podem ultrapassar os 25cm de comprimento. Com esses
utensílios - que formam o complexo cultural a que se chamou
de Sangoense - o homem arranca raízes comestíveis, limpa
a terra, corta os galhos das árvores, trabalha a madeira. O
conhecimento do fogo lhe permitirá, mais tarde, queimar a
ponta das lanças, para endurecê-la, e chamuscar a madeira,
com o objetivo de escavá-la. As técnicas do Sangoense - nome
tirado da baía de Sango, na parte ocidental do lago Vitória -
predominaram a oeste das Grandes Falhas, em grande parte
da África Atlântica e no sudeste do continente até Natal. Na
Zâmbia, no Zimbábue, nas planícies de Moçambique (COSTA
e SILVA, 1992, p. 51).

Certamente os acidentes e as depressões geológicas foram


A região da África
fatores importantes para a conservação de fósseis em determinados Oriental é a parte
locais. A região da África Oriental é a parte do continente que do continente que
mais conserva fósseis, inclusive registros do período do Mioceno mais conserva
(vinte e cinco milhões de anos). Foi nesse ponto que o primeiro fósseis.
Australopithecus foi encontrado.

Coppens assim sintetiza como teria sido o aparecimento do


homem na África: “É como se, há 6 ou 7 milhões de anos,
nascesse no quadrante sudeste do continente africano
um grupo de hominídeos denominados australopitecíneos

23
História da África e dos Africanos: dos Primórdios ao Período Pré-Colonial

e [...] emergisse desse grupo polimorfo um ser, ainda


Australopithecus ou já Homem, capaz de trabalhar a pedra
e o osso, construir cabanas e viver em pequenos grupos,
representando, através de todas as suas manifestações, a
origem propriamente dita da humanidade criadora, do Homo
faber . O último milhão de anos viu nascer o Homo sapiens
e assistiu, durante os últimos séculos, à sua alarmante
proliferação” (GIORDANI, 1985, p. 61).

Neste ponto é importante dizer que os sistemas de divisão cronológica


utilizados para a Europa, Ásia e norte da África não são os mesmos para a África
Subsaariana. Por exemplo, a Idade da Pedra, que geralmente é dividida em
Paleolítico, Mesolítico e Neolítico, é substituída por Early Stone Age, Middle Stone
Age e Late Stone Age.

O primeiro período, também chamado Old Stone Age, vai da


época dos primeiros utensílios de pedra, há três milhões de
anos, até cerca de cem mil anos atrás. O segundo período vai
de cem mil anos até cerca de quinze mil anos atrás. O terceiro
se estende de quinze mil anos atrás até o início da Idade do
Ferro (GIORDANI, 1985, p. 62).

Ao que tudo indica, a África Oriental é o berço da humanidade.


Ao que tudo indica,
a África Oriental Foi nessa região que, há cerca de três milhões de anos, surgiu um
é o berço da animal de postura ereta e que fabricava utensílios. Segundo Sutton,
humanidade. foi essa associação de capacidades físicas e mentais, “a superação
de sua condição biológica – e a crescente dependência dessas
habilidades e atividades extrabiológicas, ou seja, culturais, distinguem o homem
dos outros animais e definem a humanidade” (SUTTON, 2010, p. 512).

Os primeiros fósseis humanos da África Oriental e os mais antigos da


humanidade foram encontrados em Olduvai (norte da Tanzânia) e nas regiões do
lago Turkana (norte do Quênia e sul da Etiópia). Por isso, a primeira fase da Early
Stone Age é chamada Olduvaiense em virtude das descobertas no desfiladeiro
Olduvai.

É bem provável que os primeiros instrumentos fabricados pelos africanos


orientais fossem de pedras, mas não se descarta a fabricação de utensílios de
couro, madeira, ossos, dos quais não temos vestígios. Os instrumentos mais
antigos, datados de 2 ou 3 milhões de anos, eram lascas de quartzo e foram
encontrados junto ao Rift Valley, no norte da Tanzânia, no Quênia e na Etiópia.

Junto às lascas de quartzo havia também os seixos, provavelmente


utilizados para confeccionar instrumentos para cortar a pele de animais ou
mesmo triturar sementes e vegetais mais sólidos. Segundo Sutton (2010, p.

24
Capítulo 1 ÁFRICA: BERÇO DA HUMANIDADE E DA CIVILIZAÇÃO – A
PAISAGEM, A PRÉ-HISTÓRIA E AS PRIMEIRAS SOCIEDA-
DES AGRÍCOLAS
531),

Até certo tempo atrás, pensava-se que os fabricantes desses


utensílios de seixos lascados eram capazes de caçar e
abater apenas pequenos animais, como pássaros, lagartos,
tartarugas e daimões, para complementar sua coleta de
frutos, vegetais e insetos. Atualmente há evidências de que
eles abatiam também animais de grande porte. Entre os
restos fósseis encontrados ao lado de utensílios nos sítios de
acampamento ou perto deles, figuram ossos de elefantes e
grandes antílopes.

Junto à utilização de lascas de seixo e quartzo, por volta de um milhão de


anos atrás, começou-se a desenvolver uma produção de utensílios maiores, dos
quais os mais conhecidos são os bifaces e machadinhas, já atribuídos ao homo
erectus. Essa já é a segunda fase da Early Stone Age, também chamada de
Acheulense.

O biface ou hand-axe (acha de mão) não era um machado,


mas, certamente, um instrumento para uso geral, cuja
extremidade pontiaguda e longos bordos afiados poderiam
servir para cavar e esfolar, entre outras coisas. A machadinha
(cleaver), com borda cortante em formato ligeiramente
quadrangular, serviria propriamente para esfolar animais
(SUTTON, 2010, p. 531).

As populações da Early Stone Age da África Oriental eram A descoberta do


basicamente bandos de caçadores e coletores que se deslocavam fogo teria ocorrido
por diferentes regiões procurando alimentos, mas se concentravam, há pelo menos 50
na maioria das vezes, em margens de rios ou lagos por causa da mil anos.
abundância de animais e recursos para a subsistência. É nesse
período, do Acheulense, que encontramos os primeiros vestígios da utilização do
fogo. A descoberta do fogo teria ocorrido há pelo menos 50 mil anos e o Homo
erectus teria sido um dos primeiros usuários em sua tarefa de cozimento de
alimentos.

A Middle Stone Age da África Oriental já é habitada por homo Havia uma
sapiens. Nesse período, ocorre um crescimento demográfico gama variada
significativo, a ocupação de novos territórios e técnicas de caça de instrumentos
de animais de grande porte. A última das fases, a Late Stone de caça, com
Age, é marcada pela sofisticação da indústria lítica. Havia uma a utilização do
sílex, obsidiana e
gama variada de instrumentos de caça, com a utilização do sílex,
quartzo.
obsidiana e quartzo. Foi nesse período também que provavelmente
iniciou-se a utilização do arco e da flecha nas atividades de caça. Nesse
contexto, também é possível perceber uma regularidade nas habitações,
geralmente debaixo de rochas, onde houvesse proteção da chuva e do vento.
Nesses locais é possível encontrar vestígios de fogo, restos de alimentos e
pinturas rupestres.
25
História da África e dos Africanos: dos Primórdios ao Período Pré-Colonial

Figura 4 - Early Stone Age: instrumentos acheulenses típicos (vista


frontal e lateral) – 1. picão; 2. machadinha; 3. biface.

FONTE: KI-ZERBO, Joseph (Ed.). História Geral da África I. Metodologia


e pré-história da África. 2ª ed. rev.: Brasília: Unesco, 2010, p. 533.

Na África Austral encontramos indústrias líticas parecidas com as encontradas


na África Oriental, isto é, olduvaienses e acheulenses. Segundo Giordani, “os mais
antigos conjuntos sul-africanos de utensílios do Acheulense foram encontrados
em duas jazidas perto de Vereeniging: bifaces pontiagudos, machadinhas,
poliedros, seixos lascados e vários outros utensílios”. Tais instrumentos talvez
tenham sido produzidos por populações de homo erectus, mas ainda não se pode
afirmar com segurança, pois não foram encontrados fósseis de tal hominídeo na
região (GIORDANI, 1985, p. 65).

Nos diversos sítios arqueológicos também foram encontrados vestígios de


utilização do fogo. Assim como os africanos orientais, os do sul também preferiam
habitar regiões próximas aos rios e lagos, onde havia abundância de caça. Os
principais animais caçados eram os elefantes, rinocerontes, hipopótamos, girafas,
antílopes e javalis que, depois de conduzidos aos pântanos, se
A fartura de caça na tornavam presas fáceis.
região sul da África
também possibilitou
A fartura de caça na região sul da África também possibilitou
uma estabilidade nas
habitações. uma estabilidade nas habitações de cavernas e certo crescimento

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Capítulo 1 ÁFRICA: BERÇO DA HUMANIDADE E DA CIVILIZAÇÃO – A
PAISAGEM, A PRÉ-HISTÓRIA E AS PRIMEIRAS SOCIEDA-
DES AGRÍCOLAS
demográfico. Prova disso são as inúmeras inscrições rupestres.

Nas regiões muito favoráveis do sul da África, os caçadores-


coletores da Late Stone Age ocuparam algumas das áreas
mais ricas do mundo em recursos alimentares vegetais e
animais. Em regiões como essas, nas quais as fontes de caça
eram praticamente inesgotáveis, os caçadores tinham tempo
suficiente para se dedicarem a atividades intelectuais, como
prova a magnífica arte rupestre dos Montes Drakensberg, de
Zimbabwe e da Namíbia (CLARK, 2010, p. 588).

Esses povos coletores e caçadores foram sucedidos por populações de


agricultores e que dominavam a metalurgia.

São escassas as informações que possuímos sobre a pré-história da África


Central. As pesquisas arqueológicas na bacia do Rio Congo/Zaire só recentemente
começaram a ser efetuadas. A imensa floresta levou os pesquisadores a acreditar
que não havia povoamento pré-histórico na região. Todavia, em toda a bacia
do Congo/Zaire é possível encontrar indústrias pré-históricas. Nesses locais, é
possível encontrar uma indústria lítica, que durou cerca de 2 milhões de anos, a
“cultura do seixo lascado”.

Nessa região da África há uma ausência de fósseis humanos. Segundo


Noten,

podemos imaginar que os seixos lascados foram produzidos


pelo Australopithecus ou pelo Homo Habilis, que, segundo
observações feitas em vários lugares da África, certamente
eram necrófagos. Entretanto, a vida social deve ter-se
organizado a partir desse momento. Tal período da história do
homem iniciou-se há mais de 2 milhões de anos, prolongando-
se até cerca de 500 mil anos atrás (NOTEN, 2010, p. 623).

Nesses sítios foram encontradas machadinhas e bifaces características da


cultura acheulense. Acredita-se que a floresta contribuiu de forma significativa
para o isolamento dessas populações e que elas “evoluíram no próprio local,
condicionadas pela floresta primária e sem contato com as populações que viviam
nas zonas de vegetação menos densa” (NOTEN, 2010, p. 591).

Os primeiros indícios da presença do homem na África Central são os


instrumentos do Acheulense, bifaces e machadinhas. Esses instrumentos são
atribuídos ao Homo erectus, hominídeo que dependia da caça e da coleta para
sobreviver. Na bacia do Congo/Zaire também é possível encontrar monumentos
megalíticos e arte rupestre. Os monumentos megalíticos apresentam-se sob
forma de túmulos, indicando que já havia certo cuidado com os mortos.

O norte da África e a região do Magreb são locais onde a presença de

27
História da África e dos Africanos: dos Primórdios ao Período Pré-Colonial

O norte da África e hominídeos é mais recente. “Atualmente não parece verossímil que
a região do Magreb a presença de hominídeos no Magreb e no Saara seja tão antiga
são locais onde quanto na África oriental e meridional” (BALOUT, 2010, p. 639).
a presença de
hominídeos é mais
Ao que tudo indica, houve uma elaborada indústria de machados
recente.
de lasca que teria sido transmitida da África para a Europa. Inclusive,
entre os arqueólogos, convencionou-se chamar o complexo cultural pré-histórico
dessa região de Musteriense, que vai desde o norte da África até a Península
Ibérica, França e Itália. A partir de lascas de sílex, fazia-se a retirada do núcleo, e
dessas lascas produzia-se raspadeiras e pontas de projétil.

Logo abaixo da região mediterrânica do norte da África há o imenso deserto do


Saara. As pesquisas no Saara têm como um dos principais objetivos compreender
as causas da desertificação, uma vez que a região era bastante povoada antes
do desaparecimento da cobertura vegetal e da fauna, o que acarretou também
o êxodo das populações que antes habitavam a região. No Saara houve uma
cultura de seixos lascados e também é possível encontrar indícios do surgimento
de instrumentos bifaces, o que representa uma mudança cultural importante.

Atividade de Estudos:

1) A partir do quadro abaixo, descreva as principais características


dos hominídeos mais importantes.

Homo
Australopithecus Homo Habilis Homo Erectus
Sapiens-sapiens

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Capítulo 1 ÁFRICA: BERÇO DA HUMANIDADE E DA CIVILIZAÇÃO – A
PAISAGEM, A PRÉ-HISTÓRIA E AS PRIMEIRAS SOCIEDA-
DES AGRÍCOLAS

O Surgimento das Culturas


Agrícolas
Entre cem e setenta mil anos atrás, o homem começa a Entre cem e
abandonar as margens dos rios e lagos e passa a habitar cavernas. setenta mil
Há indícios de que tenha aprendido a transportar e armazenar anos atrás, o
homem começa
água, utilizar o fogo para cozer alimentos e talvez alguns grupos
a abandonar as
tenham passado a utilizar o sal. Nesse período, há evidências de margens dos rios
que muitos grupos migravam sazonalmente, no inverno ficavam no e lagos e passa a
litoral e no verão nas montanhas. habitar cavernas.

Mas a mudança cultural mais relevante da pré-história é a A mudança cultural


chamada “Revolução Neolítica”, ou seja, a descoberta da agricultura mais relevante
e a domesticação de animais. Esse processo iniciou-se há cerca de da pré-história
10.000 a. C na Mesopotâmia e foi fundamental para a sendentarização é a chamada
“Revolução
do homem. Veja como Portères e Barrau compreendem a importância
Neolítica”.
da “Revolução Neolítica”.

É essencial, todavia, compreender as implicações das


invenções agrícolas e pastoris, assim como do cultivo de
plantas e domesticação de animais. O homem passou da
apropriação de alimentos (coleta, caça) à produção (cultivo,
criação). Desse modo, progressiva e parcialmente, o homem
se liberou das imposições dos ecossistemas a que pertencia
(PORTÈRES; BARRAU, 2010, p. 783).

O domínio da agricultura e a domesticação de animais promoveu O domínio da


a estabilidade social das populações de caçadores e coletores. Nesse agricultura e a
período, o excedente de alimentos tornou possível um aumento domesticação
demográfico e o afastamento definitivo da ameaça de extinção das de animais
comunidades. promoveu a
estabilidade social
das populações
Acredita-se que a “Revolução Neolítica” não ocorreu em apenas de caçadores e
uma região do mundo e depois se espalhou, mas em vários pontos. coletores.
Para a Europa, parte da Ásia e a África mediterrânica, “o foco mais
importante se encontra na região montanhosa de Anatólia, do Irã e do
norte do Iraque. Foi nesses lugares que se desenvolveram a cultura do trigo e da
cevada e a domesticação da ovelha, da cabra e dos bovinos” (SHAW, 2010, p.
707).

Segundo Portères e Barrau (2010, p. 782), “durante muito tempo, as ideias


sobre as origens da agricultura foram fortemente influenciadas pelo etnocentrismo.
A tendência era (e ainda é, por vezes) a de considerar o berço agrícola e pastoril do
Oriente Próximo, sede da ‘revolução neolítica’”. Mas as pesquisas arqueológicas

29
História da África e dos Africanos: dos Primórdios ao Período Pré-Colonial

das últimas décadas vêm alterando esse entendimento, há um reconhecimento


da importância de outras regiões, como a América e a África, para a história das
práticas agrícolas (PORTÈRES; BARRAU, 2010, p. 782).

Na África, a Na África, a domesticação de animais e a introdução da


domesticação agricultura, não substituíram a caça e a pesca. É bem provável
de animais e a que tais atividades continuassem a ser práticadas paralelamente.
introdução da A passagem para uma economia de produção teria sido gradativa.
agricultura, não Não podemos datar com precisão o momento inicial da agricultura na
substituíram a caça e
África, mas é bem provável que tenha ocorrido entre -9000 e -5000
a pesca.
anos, ainda no período do Pleistoceno. Outro ponto a considerar
é que, embora a produção de alimentos e a domesticação de animais estejam
associadas à formação de núcleos urbanos, na África isso, na maioria das vezes,
não ocorreu.

O primeiro local onde O primeiro local onde foram introduzidas as práticas agrícolas
foram introduzidas foram os vales dos rios Tigre, Eufrates e Nilo. No Rio Nilo havia
as práticas agrícolas
uma sofisticada técnica de drenagem e irrigação. É provável que a
foram os vales dos
rios Tigre, Eufrates agricultura só tenha chegando ao delta do Nilo por volta de 5000
e Nilo. a.C., como explica o autor abaixo.

A partir do

quinto milênio, ovinos e bovinos foram domesticados no Egito,


onde também se cultivaram cereais. Atualmente, temos provas
de que o gado domesticado já existia anteriormente nas terras
altas saarianas, e temos indicações, embora insuficientes, do
cultivo de cereais (SHAW, 2010, p. 707).

No quarto milênio Embora no fim do quinto milênio a.C. predominasse a caça,


temos indícios a pesca e a coleta, nas regiões do Egito, aos poucos, começam a
de produção de ser cultivados a cevada, o trigo e o linho. No quarto milênio temos
alimentos no sul da indícios de produção de alimentos no sul da Núbia e de pastoreio de
Núbia e de pastoreio bovinos, com cabras e ovelhas em Kadero, à margem direita do Nilo.
de bovinos, com
cabras e ovelhas.
O trigo, a cevada e o linho demoraram para ser introduzidos no
interior do continente, pois não se adaptavam às condições climáticas da região
tropical. Na região da Etiópia já predominava um outro tipo de cultura, mais
“baseada no cultivo do tef, da ensete e do Níger”. Segundo Alberto da Costa e
Silva:

O tef é um cereal de grãos pequeninos, mas muito nutritivos.


Com eles prepara-se um pão, o enjera, de bom sabor. A
ensete, quase uma monocultura em certas regiões do sul
da Etiópia, parece a bananeira, mas dela não se comem os
frutos, de escassa polpa e sementes grandes, e sim o falso

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Capítulo 1 ÁFRICA: BERÇO DA HUMANIDADE E DA CIVILIZAÇÃO – A
PAISAGEM, A PRÉ-HISTÓRIA E AS PRIMEIRAS SOCIEDA-
DES AGRÍCOLAS
caule e os brotos novos. Estes são cozidos como legumes;
aquele, após ser enterrado para fermentar, seco e pilado,
transforma-se numa papa ou é assado qual um pão [...]. Já
o niger ou noog produz óleo comestível. É planta corriqueira
nas terras abissínias, cultivada em pequena escala em
outros países africanos e na Índia (COSTA E SILVA, 1992,
p. 65).

Foram três os grandes núcleos de desenvolvimento da agricultura na África.


O primeiro compreendia a região mediterrânica, com áreas que iam do Egito ao
Marrocos e que receberam influência direta da cultura agrícola e pastoril do Oriente
Próximo. O segundo abrangia as regiões das savanas e estepes, nas margens
das grandes florestas tropicais. Nesses locais desenvolveram-se as culturas dos
cereais, destacando-se o sorgo e o milhete. Finalmente, o terceiro núcleo agrícola
estava localizado no interior da floresta e em suas margens, caracterizado por
“uma horticultura associada à coleta” (PORTÈRES; BARRAU, 2010, p. 801).

Segundo Portères e Barrau,

o fato de que a coleta e a caça permaneceram por muito tempo,


em algumas regiões da África como fontes de subsistência,
não significa um atraso, mas é resultado da abundância e
diversidade dos recursos naturais, que permitiram ao homem
viver sem muito esforço nos diversos ecossistemas sem ter
necessariamente de transformá-los (2010 p. 801).

Um dos primeiros produtos agrícolas cultivados na África é o inhame.


É bem possível que esse tubérculo seja datado de mais ou menos 5000 anos
atrás. Segundo Alberto da Costa e Silva, os milhetes também teriam sido
domesticados em múltiplos centros de cultivo na região subsaariana entre
3000 e 2000 a.C. Para esse autor, o sorgo também é outro produto tipicamente
africano, não há dúvidas de que originou-se no interior do continente. O sorgo
“teria sido domesticado na faixa que vai da Nigéria à Etiópia Ocidental. Em
muitos e variados pontos, desde o Senegal até a Eritréia [...]” (1992, p. 67).

Portères e Barrau afirmam que a África ainda originou outros cereais


importantes, dentre eles o arroz. “Por muito tempo acreditou-se que a rizicultura
na África tivesse por origem o arroz asiático”, mas as pesquisas A história da
arqueológicas provam que nas regiões do Níger surgiu um arroz agricultura e do
especificamente africano (PORTÈRES; BARRAU, 2010, p. 797). pastoreio na
África guarda
uma relação
Ainda nas regiões abaixo do Saara, muitas plantas foram
muito próxima e
domesticadas, como a melancia, a batata-hauçá, a ervilha-de-vaca, recíproca com as
o dendê, o inhame, o quiabo etc. Entre as savanas e as grandes culturas asiáticas
florestas os africanos aprenderam a praticar a coivara e o plantio. Com e do Oriente
o passar do tempo, aprenderam a técnica da semeadura e as estações Próximo.

31
História da África e dos Africanos: dos Primórdios ao Período Pré-Colonial

apropriadas para empregá-la.

É importante salientar que a história da agricultura e do pastoreio na África


guarda uma relação muito próxima e recíproca com as culturas asiáticas e do
Oriente Próximo. Sabe-se que a África recebeu do Oriente Próximo variedades
de trigo e cevada, o boi, o carneiro, a cabra, o cão e o porco. À Ásia forneceu
vegetais, como o sorgo, inhame, arroz, e desse continente recebeu bananeiras,
cana-de-açúcar etc.

Segundo Costa e Silva, vários animais foram domesticados na África. No


Egito houve a domesticação do jumento, de onde esse animal era nativo, na
África subsaariana, a galinha-d’angola. Há indícios de que o elefante também
tenha sido domesticado em algum tempo em Méroe.

Todavia, as práticas agrícolas se disseminaram muito lentamente


pelo continente. Houve bastante resistência por parte dos caçadores e dos
pescadores, pois em todas as regiões havia abundância de animais e peixes. Não
havia motivos para trocar os hábitos da pesca e da caça pela agricultura, que
sempre enfrentava a instabilidade do clima e as diversas pragas que atacavam as
colheitas. Talvez por isso ainda nos dias atuais existam grupos de caçadores que
resistem às mudanças, mesmo convivendo ao lado de grupos de agricultores.

Atividade de Estudos:

1) Descreva o que foi a “Revolução Neolítica” e sua importância


para a história da humanidade.
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Capítulo 1 ÁFRICA: BERÇO DA HUMANIDADE E DA CIVILIZAÇÃO – A
PAISAGEM, A PRÉ-HISTÓRIA E AS PRIMEIRAS SOCIEDA-
DES AGRÍCOLAS

Algumas Considerações
Nesse capítulo abordamos a questão do significado e da importância da
África para a História. A história africana para nós, brasileiros, tem um valor
significativo, pois nossa identidade cultural é marcada pela contribuição dos
diversos povos que vieram compulsoriamente habitar a América, por ocasião do
tráfico de escravos.

Para adentrar a história africana, começamos a discutir a importância do meio


físico para a história, pois a história e a cultura dos povos africanos foram bastante
influenciadas pelas condições geográficas e climáticas. Não afirmamos que houve
um determinismo ambiental, mas assinalamos que os fatores ambientais tiveram
papel importante na configuração das sociedades africanas.

Nesse capítulo ainda discutimos de forma breve a pré-história africana, que


tem uma importância crucial para a história da humanidade, pois foi na região
oriental do continente que temos notícia do surgimento dos primeiros hominídeos.
Isso levou a constituir a África como o berço da humanidade.

Após o longo período de caça e coleta, os homens pré-históricos realizaram


a “Revolução Neolítica”, e através da agricultura e do pastoreio começaram a
dominar seu próprio destino biológico. Era a entrada num período de estabilidade
social e o início das sociedades complexas, tema que veremos nos próximos
capítulos.

ReferÊncias
BALOUT, L. A Pré-História da África do Norte. In: KI-ZERBO, Joseph (Ed.).
História Geral da África I. Metodologia e pré-história da África. 2ª ed. rev.:
Brasília: Unesco, 2010.

BRAUDEL, Fernand. Gramática das Civilizações. São Paulo: Martins Fontes,


2004.

CLARK, J. D. A Pré-História da África Austral. In: KI-ZERBO, Joseph (Ed.).


História Geral da África I. Metodologia e pré-história da África. 2ª ed. rev.:
Brasília: Unesco, 2010.

CONCEIÇÃO. José Maria Nunes Pereira. África: um novo olhar. Rio de Janeiro:
CEAP, 2006. (Cadernos CEAP).

GIORDANI, Mário Curtis. História da África: anterior aos descobrimentos.


33
História da África e dos Africanos: dos Primórdios ao Período Pré-Colonial

Petrópolis: Vozes, 1985.

HAMA, Boubou; KI-ZERBO, Joseph. Lugar da história na sociedade africana. In:


KI-ZERBO, Joseph (Ed.). História Geral da África I. Metodologia e pré-história
da África. 2ª ed. rev.: Brasília: Unesco, 2010.

M’BOW, M. Amadou Mahtar. Prefácio. In: KI-ZERBO, Joseph (Ed.). História


Geral da África I. Metodologia e pré-história da África. 2ª ed. rev.: Brasília:
Unesco, 2010.

NOTEN, F. van. A Pré-História da África Central Parte II. In: KI-ZERBO, Joseph
(Ed.). História Geral da África I. Metodologia e pré-história da África. 2ª ed.
rev.: Brasília: Unesco, 2010.

PORTÈRES; R. BARRAU, J. Origens, desenvolvimento e expansão das técnicas


agrícolas. In: KI-ZERBO, Joseph (Ed.). História Geral da África I. Metodologia e
pré-história da África. 2ª ed. rev.: Brasília: Unesco, 2010.

SHAW, T. Pré-História da África Ocidental. In: KI-ZERBO, Joseph (Ed.). História


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SILVA, Alberto da Costa e. A enxada e a lança: a África antes dos portugueses.


Rio de Janeiro; São Paulo: Nova Fronteira; Edusp, 1992.

SUTTON, J. E. G.. A Pré-História da África Oriental. In: KI-ZERBO, Joseph (Ed.).


História Geral da África I. Metodologia e pré-história da África. 2ª ed. rev.:
Brasília: Unesco, 2010.

34
C APÍTULO 2

As primeiras Civilizações
Africanas. A África Nilótica:
Egito, Núbia, Kush e Axum

A partir da concepção do saber fazer, neste capítulo você terá os seguintes


objetivos de aprendizagem:

 Compreender a civilização egípcia como parte da história africana.

 Analisar a constituição de civilizações na África oriental a partir das regiões


nilóticas.

 Compreender a formação dos reinos na região da Núbia, Kush e Axum.


História da África e dos Africanos: dos Primórdios ao Período Pré-Colonial

36
Capítulo 3 DE BERBERES A ÁRABES: O NORTE DA ÁFRICA E SUA
HISTÓRIA

Contextualização
Prezados acadêmicos, neste capítulo a nossa proposta é O Egito esteve
estudarmos a História da África a partir das primeiras civilizações profundamente
que surgiram na região oriental. Nesse sentido, salta aos olhos a ligado ao
continente
grandiosidade e o esplendor da Civilização Egípcia. Mas, ao longo
africano, muito
deste estudo, você verá que ao sul do Egito, depois das cataratas, mais do que se
surgiram muitas culturas importantes para a história da África e do admitia até pouco
Oriente Próximo como um todo. tempo.

A nossa intenção é mostrar que o Egito esteve profundamente ligado ao


continente africano, muito mais do que se admitia até pouco tempo. Subindo
o Nilo, acima das cataratas, vamos encontrar culturas e povos muito ricos e
profundamente ligados ao Egito e ao Sul da África, como os reinos da Núbia, o
reino de Kush, as cidades de Kerma, Napata, Meroé, Axum e tantas
A África nilótica,
outras. que vai desde
o delta, passa
A região que vamos estudar neste capítulo ficou conhecida como pelo vale e
a África nilótica, que vai desde o delta, passa pelo vale e atinge as seis atinge as seis
cataratas do Nilo. Uma verdadeira encruzilhada de culturas e povos. cataratas do Nilo.
Uma verdadeira
Espaço de intercâmbio entre o Oriente Próximo e o restante da África.
encruzilhada de
culturas e povos.

O Egito Antigo
A Civilização Egípcia é uma das mais importantes do mundo antigo. O Egito
é um lugar de mistério e grandiosidade, encanta e envolve todos os que dela se
aproximam. A capacidade criativa e de organização é o que mais impressiona
aqueles que estudam o Egito antigo.

Ao incluir o Egito nas discussões sobre a História da África, nosso objetivo


é reconhecer a importância capital desse país para a África. Não se trata apenas
de um pertencimento geográfico, mas de uma profunda relação histórico-cultural
com o restante do continente. Por muito tempo, a história do Egito Antigo esteve
associada à história do Oriente Próximo, das civilizações do chamado Crescente
Fértil, mas atualmente passou-se a reconhecer o profundo intercâmbio cultural e
econômico entre o Egito e o restante do continente africano.

Quando observamos o mapa do Egito, vemos duas grandes regiões: o delta


e o vale. O vale acompanha o rio por cerca de 1000 km e por uma estreita faixa de
cerca de 10 km de terras cultiváveis. O delta é uma espécie de triângulo de 200 km

37
História da África e dos Africanos: dos Primórdios ao Período Pré-Colonial

de cada lado, possui uma rica vegetação, água em abundância e é densamente


povoado (PINSKY, 2006, p. 91).
A história do Egito Antigo é milenar e não poderíamos discuti-la no limite de
poucas páginas. Portanto, o objetivo não é construir uma narrativa exaustiva sobre
a história egípcia, mas tão somente, enfatizar alguns pontos mais relevantes.

Costumamos dividir a história do Egito Antigo em sete grandes períodos:


o Dinástico primitivo, Reino antigo, 1º Período intermediário, Reino Médio, 2º
Período intermediário, Reino Novo e 3º período intermediário. Os períodos
intermediários, que dividem os grandes impérios, são caracterizados por
momentos de instabilidade política, contextos em que os faraós tiveram que
dividir poder com mandatários estrangeiros ou mesmo ver a unidade do reino
enfraquecida e consequentemente fragmentada através de diversas lideranças
políticas.

Já os reinos antigo, médio e novo são períodos de estabilidade e unidade


política. Esses períodos são marcados pela sucessão de diversas dinastias, num
total que chegou a trinta e uma, no período que vai de aproximadamente 3000 até
332 a.C., com as interrupções dos períodos intermediários, como mostra a tabela
abaixo.

Figura 5 - Cronologia das dinastias egípcias

FONTE: DOBERSTEIN, 2010, p. 58.

A noção de “dinastia” é algo muito particular da história egípcia. De modo


geral, quando falamos em dinastias, nos referimos a longos períodos históricos

38
Capítulo 2 AS PRIMEIRAS CIVILIZAÇÕES AFRICANAS.
A ÁFRICA NILÓTICA: EGITO, NÚBIA, KUSH E AXUM

em que o poder político esteve concentrado em pessoas de uma Durante esses


mesma linhagem familiar. Dessa forma, o processo de sucessão 3000 anos de
política ocorria quando o pai passava o poder a um herdeiro prosperidade
econômica e
legítimo, que não era necessariamente o primogênito, fazendo com
crescimento
que houvesse um continuísmo político. demográfico do
Egito, o restante
O Estado faraônico manteve-se por quase 3000 anos, desde 3100 da África ainda
a. C. até o ano de 332 a. C., quando foi derrotado pelos macedônios. vivia em pequenas
Durante esses 3000 anos de prosperidade econômica e crescimento comunidades,
muitas delas
demográfico do Egito, o restante da África ainda vivia em pequenas
vivendo da pesca
comunidades, muitas delas vivendo da pesca e da coleta. Nessa e da coleta.
época, o Egito teria cerca da metade da população do continente
africano.

A história do Egito é geralmente apresentada a partir da unificação do Estado


faraônico, por volta de 3200 a. C., que antes estava dividido em Alto e Baixo Egito.
Para Cyril Aldred, embora houvesse muitas diferenças entre o Alto e Baixo Egito,
ambas as regiões “partilhavam uma língua comum e a mesma cultura material e
espiritual” (ALDRED, 1965, p. 41).

Nesse período, as várias aldeias do Alto e do Baixo Egito, que existiam nas
margens do Rio Nilo teriam sido unificadas por Menés, o primeiro faraó. No Egito
antigo havia uma enorme preocupação com a unidade do reino, pois qualquer
divisão prejudicava a exploração da natureza, as colheitas e também a construção
obras hidráulicas, monumentos, templos e pirâmides.

No Egito antigo, a pessoa do faraó era vista com distinção. O No Egito antigo, a
faraó não era apenas um herdeiro dos deuses, era a expressão do pessoa do faraó
próprio deus, o símbolo vivo da divindade. Como dissemos acima, era vista com
de acordo com a tradição, Menés teria sido primeiro faraó do Egito. distinção. O faraó
não era apenas
Através dele teria se formado primeira dinastia e graças a ele o Egito
um herdeiro dos
teria conhecido a agricultura, o artesanato e a escrita. A importância deuses, era a
simbólica do faraó era tão relevante que a própria capacidade expressão do
produtiva do Egito era atribuída a ele. Era graças ao faraó que havia próprio deus, o
boas colheitas e o Reino continuava triunfante em meio ao deserto símbolo vivo da
que o rodeava. “O Egito ostentava unidade nacional sob a chefia de divindade.
uma divindade. Porque o faraó é o exemplo clássico de um deus
encarnado num rei” (ALDRED, 1965, p. 49).

39
História da África e dos Africanos: dos Primórdios ao Período Pré-Colonial

Alberto da Costa e Silva, o maior africanista brasileiro. No


Brasil não há uma tradição de estudos acadêmicos sobre a África.
Somente a partir dos anos de 1950 começaram a surgir algumas
iniciativas nas universidades. Dessa forma, nosso africanista mais
importante, Alberto da Costa e Silva, não foi um especialista dedicado
somente aos estudos africanos, por muito tempo trabalhou como
diplomata nas embaixadas africanas. Sua obra mais importante
sobre a África pré-colonial é o já clássico “A enxada e a lança”.

Mas onde e como surgiram as primeiras elites que organizaram o estado


faraônico? Hierakonpolis tem sido aceita como o local de nascimento das elites
faraônicas e do Estado.

Nessa série de novas investigações, o sítio da antiga


Hierakonpolis – do grego polis (cidade) e hierakon (falcão) –
tem se mostrado como um dos mais importantes. Chamado
pelos egípcios de Nekhen, o local sempre foi associado
pelos especialistas ao nascimento da monarquia e do Estado
faraônico. Diversos objetos ali prospectados testemunham
que os primeiros faraós tinham ligações com o local. [...]
Essa hipótese de que a localidade de Hierakonpolis, por
volta de 3800-3700 a.C., já se apresentava como uma
sociedade complexa vem sendo cada vez mais confirmada
(DOBERSTEIN, 2010, p. 9).

A mesma tese é defendida por Roland Oliver. Para esse autor, a centralização
política no Egito deve ter ocorrido na região de Hierakonpolis e Abydos. É provável
que uma das principais causas da centralização política tenha sido a competição
entre diversas famílias nobres pelo controle das regiões em que havia minas de
cobre e ouro. Para termos uma ideia da importância econômica da região entre
Hierakonpolis e Abydos, basta atentar para o nome de uma das cidades mais
importantes, Nagada, que quer dizer exatamente: “a cidade do ouro” (OLIVER,
1994, p. 69).

No Egito, o período histórico entre quarto e o terceiro milênio antes de Cristo é


marcado por uma série de mudanças. É nesse contexto que surgem o calendário,
a escrita hieroglífica, a engenharia hidráulica. Esta última particularmente
revolucionou a agricultura do período, pois permitiu aos egípcios observar os
períodos de transbordamento do Nilo e utilizar esse conhecimento para implantar
técnicas de irrigação do solo.

40
Capítulo 2 AS PRIMEIRAS CIVILIZAÇÕES AFRICANAS.
A ÁFRICA NILÓTICA: EGITO, NÚBIA, KUSH E AXUM

Você sabia que existe no Brasil uma parcela de pesquisadores


que se dedicam ao estudo do Egito antigo? Acesse está página e
conheça mais quem são nossos egiptólogos.

http://egiptologianobrasil.blogspot.com.br/2010/05/quem-sao-os-
egiptologos-brasileiros.html

A agricultura é um dos primeiros pontos divergentes da história egípcia.


Segundo a historiografia tradicional, a agricultura foi introduzida no Egito a partir
de povos vindos do Oriente, das civilizações do Crescente Fértil, onde já eram
conhecidas as técnicas de irrigação, a metalurgia, a escrita. Por outro lado, há
especialistas que afirmam a especificidade africana da agricultura egípcia, ou seja,
o desenvolvimento da agricultura teria ocorrido de forma autônoma no continente
africano. Veja como o autor abaixo descreve o processo de irrigação.

A cada ciclo de tempo, a partir de meados de julho, uma


enchente acontecia. Durante umas doze luas, de julho a
setembro, ficava tudo inundado. Dava tempo para que os
nutrientes orgânicos, que vinham junto com as águas, se
fixassem no solo. Depois disso o rio voltava ao seu leito
normal e não chovia mais. O grão era semeado onde ficava
mais úmido, na beira de pequenas poças que se formavam
nas reentrâncias naturais do terreno (DOBERSTEIN, 2010,
p. 27).

O rio Nilo não era apenas a principal via de transporte, era a O rio Nilo não era
espinha dorsal do Reino egípcio, aquilo que tornou possível a chamada apenas a principal
“Revolução agrícola”. Segundo Roland Oliver, todos os anos a região via de transporte,
entre as cataratas e o delta, cerca de 31000 Km², era submersa pelas era a espinha
dorsal do Reino
águas do Nilo. Dessa forma, o Egito se tornou uma das primeiras
egípcio, aquilo que
civilizações africanas a estocar alimentos e a criar toda uma estrutura tornou possível a
administrativa e estatal. É bem possível que a revolução agrícola do chamada “Revolu-
Egito seja um dos principais fatores da centralização política e da ção agrícola”.
própria formação do estado (OLIVER, 1994, p. 65).

41
História da África e dos Africanos: dos Primórdios ao Período Pré-Colonial

Figura 6 - O Rio Nilo e suas cataratas

FONTE: Disponível em: <http://www.portalsaofrancisco.com.br/alfa/


civilizacao-egipcia/imagens/rio-nilo9.gif>. Acesso em: 30 jun. 2012.

Quando falamos no Rio Nilo logo lembramos da famosa frase do historiador


grego Heródoto: “o Egito é uma dádiva do Nilo”. Essa frase sobreviveu ao
tempo e ainda faz parte de muitos livros didáticos. Essa longa tradição deve ser
questionada. Embora o Nilo fosse fundamental para a vida do Egito, não podemos
42
Capítulo 2 AS PRIMEIRAS CIVILIZAÇÕES AFRICANAS.
A ÁFRICA NILÓTICA: EGITO, NÚBIA, KUSH E AXUM

cair numa visão da realidade, atribuindo à natureza ou ao meio ambiente o papel


determinante na história cultural de um determinado povo. A importância do Rio
Nilo é inegável, mas não se deve esquecer a capacidade criativa e de organização
dos egípcios. Foi graças ao desenvolvimento de importantes técnicas de irrigação
e do conhecimento dos ciclos das inundações que os egípcios conseguiram
dominar o rio e garantir a produção de alimentos.

Os camponeses do Vale do Nilo, do Delta à Alta Núbia,


têm constantemente necessidade de água. Constroem e
mantêm diques e canais de irrigação. É necessário dominar
a inundação, drenar os canais, construir diques, proteger
habitações, o que explica porque as tribos nômades do
neolítico egípcio e núbio se tornaram sedentários. Os homens
tiveram que se agrupar muito cedo em aldeias e aí fazer
funcionar uma organização adaptada às suas necessidades
(BRISSAUD, 1978, p. 31).

As pirâmides eram
O desenvolvimento tecnológico da cultura material do Reino o símbolo da ca-
Antigo atingiu seu apogeu entre os anos 2600 e 2500 a.C., durante a IV pacidade criadora
Dinastia. O símbolo desse período de prosperidade foi a construção das do homem, da
três grandes pirâmides: Queóps, Quéfren e Miquerinos. As pirâmides capacidade de do-
minar a natureza.
eram o símbolo da capacidade criadora do homem, da capacidade de
O Egito rodeado
dominar a natureza. O Egito rodeado por desertos mostrou através da por desertos
construção das pirâmides a capacidade de congregar todos os súditos mostrou através
em objetivos do estado. da construção
das pirâmides a
Figura 7 - Pirâmides egípcias capacidade de
congregar todos
os súditos em ob-
jetivos do estado.

FONTE: Disponível em: <http://1.bp.blogspot.com/-ZhuAyGuyKug/T2eoptzYeqI/


AAAAAAAAN7g/O5PishFoXsc/s1600/egipto-1024x768.jpg>. Acesso em: 09 jul. 2012.

43
História da África e dos Africanos: dos Primórdios ao Período Pré-Colonial

O Antigo Reino entrou em decadência a partir dos anos 2180, quando


surgiram várias dinastias paralelas. Este é o chamado 1º Período intermediário,
que dura cerca de 180 anos, indo até o ano 1990 a.C.

Depois desse período de instabilidade política, o Egito é reunificado e


inicia-se o Reino Médio. No período anterior, a Núbia havia se fortalecido e
bloqueado a passagem para o sul da África. No Reino Médio, o Egito volta a
dominar o corredor núbio e suas riquezas minerais. Não interessava mais ao
Egito somente explorar o comércio de marfim e peles de leopardo do sul da
Núbia. O interesse maior nesse período eram as minas de ouro existentes na
Núbia.

O Reino Médio terminou por volta de 1750 a.C., com a invasão dos hicsos,
tribos asiáticas vindas do norte. Esse é o Segundo Período Intermediário, também
chamado de “a grande humilhação”, pois os hicsos impuseram um domínio sobre
todo o Delta do Nilo, inclusive instalando um novo faraó, no sul, em Tebas. O
poder militar dos hicsos era bastante superior, introduziram os carros de guerra,
guerreiros com armaduras e o cavalo nos combates.

O início do Novo Reino principia com a expulsão definitiva dos hicsos.


Esse é o período de maior prosperidade da história do Egito antigo, foi “auge
da riqueza e do refinamento da civilização faraônica” (CARDOSO, 1992, p.
60).

Mas como explicar o sucesso da estrutura governamental egípcia e a


prosperidade econômica dela advinda? Segundo Roland Oliver,

o estado faraônico era burocrático, não feudal. Seus grandes


proprietários eram funcionários, e não magnatas territoriais
hereditários que haviam sido incorporados numa unidade mais
ampla. O maior dos triunfos dos faraós foi o fiscal. Utilizando
plenamente as capacidades do escriba, do fiscal e do coletor
de impostos, eles canalizaram o excedente de produção da
planície aluvial para o interior dos cofres (OLIVER, 1994, p.
70).

No Egito antigo, os camponeses eram chamados de félas. Eram eles que


dominavam as técnicas agrícolas às margens do rio. Todavia, esses camponeses
não tinham domínio sobre a sua produção, sobre o resultado de seu trabalho.
Os félas eram absorvidos pela estrutura de poder do Reino egípcio, temiam as
lanças dos soldados, as maldições dos sacerdotes e os impostos arrecadados
pelos escribas. Em suma, eram eles que mantinham a enorme estrutura do Egito
faraônico.

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Capítulo 2 AS PRIMEIRAS CIVILIZAÇÕES AFRICANAS.
A ÁFRICA NILÓTICA: EGITO, NÚBIA, KUSH E AXUM

Para conhecer um pouco mais sobre a formação do Egito antigo,


assista o documentário “Construindo Impérios: Egito”, produzido pelo
canal History Channel e disponível no You Tube – http://youtu.be/
wxpmD2gjnW8 .

A partir da XXI dinastia, inicia-se um período de decadência e fragmentação


do poder político no Egito. Nesse contexto, o reino se divide e há muitas dinastias
paralelas. O resultado é um enfraquecimento cada vez mais visível. Como
veremos adiante, os soberanos de Kush invadem e dominam o Egito, formando a
XXV dinastia. Posteriormente, os assírios invadem o Egito, em seguida os persas,
macedônios e romanos, já na Era Cristã.

Atividades de Estudos:

1) As características geográficas do Egito são bastante peculiares.


O delta e o vale do Rio Nilo são regiões extremamente férteis e
favoráveis à agricultura. Isso fez com que surgisse a máxima de
que “o Egito é uma dádiva do Nilo”. Que tipo de crítica podemos
fazer a essa afirmativa?
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2) Na história política egípcia houve períodos de grandes reinos e


períodos intermediários. Explique a diferença e disserte sobre o
período da “grande humilhação”.
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3) O faraó era tido como a encarnação da divindade no Egito Antigo.


Mas só isso não foi o suficiente para construir um Estado forte
e centralizado. Explique como foi possível construir um estado
próspero economicamente e qual o papel dos félas nessa
estrutura de poder.

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História da África e dos Africanos: dos Primórdios ao Período Pré-Colonial

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Núbia
Até pouco tempo atrás se conhecia bem pouco sobre a região da Núbia. É
bem provável que poucas pessoas tenham ouvido falar do reino de Kush, das
cidades de Napata e Meroé. Neste texto, vamos conhecer um pouco mais sobre
esses povos que habitavam a região acima das cataratas do Nilo. Gente de pele
extremamente negra e ricos em minas de ouro e ferro.

A história da Núbia A história da Núbia é profundamente marcada pela história do


é profundamente Egito. A região situa-se na parte sul do Rio Nilo, entre o atual Egito
marcada pela história e o Sudão, na região que vai desde a primeira catarata, próxima à
do Egito. cidade de Assuã, até as proximidades da cidade de Cartum, entre os
rios Nilo Branco e Nilo Azul. Historicamente, a Núbia foi com espaço
intermediário entre a África mediterrânica e África negra.

As primeiras evidências do desenvolvimento cultural da Núbia datam do


fim do IV milênio antes da Era Cristã, sendo a cultura núbia contemporânea da I
Dinastia egípcia. Nesse período, há vestígios de uma indústria de metais bastante
elaborada, principalmente de instrumentos de ouro e cobre. Inclusive o próprio
nome “Núbia”, na escrita hieroglífica nub, quer dizer “terra do ouro”.

Geralmente os arqueólogos costumam dividir a história da Núbia antiga


entre dois tipos de culturas, a do grupo A e a do grupo C. As culturas do Grupo
A foram encontradas próximas à cidade de Assuã. Os habitantes dessa região
eram semelhantes fisicamente aos egípcios pré-dinásticos. Viviam em pequenos
acampamentos, cuidavam de rebanhos, eram seminômades, pois estavam
sempre em busca de novas pastagens, faziam uso de instrumentos de cobre e
também eram produtores de cerâmica, com decorações estilizadas.

Os costumes funerários eram bem singulares. Nas sepulturas, o corpo


era envolvido em couro animal, deitado do lado direito e em posição contraída,
e ao seu lado havia numerosos objetos, cerâmica egípcia, tecidos de linho,
amuletos, penas de avestruz, machados, utensílios de cobre, colares de
concha, braceletes de ossos, imagens femininas em argila, bumerangues em

46
Capítulo 2 AS PRIMEIRAS CIVILIZAÇÕES AFRICANAS.
A ÁFRICA NILÓTICA: EGITO, NÚBIA, KUSH E AXUM

madeira etc.

O Grupo A sobreviveu até o período da II dinastia do Egito, próximo ao ano


de 2780 a. C. O período seguinte parece ter sido de muita pobreza na Núbia,
talvez por causas das inúmeras investidas do Egito na região, que já era um
Estado unificado, forte e centralizado. Foram realizados investimentos militares ao
sul, pois os egípcios observaram a importância econômica da Núbia, que possuía
ouro, incenso, marfim, ébano, pedras e minerais preciosos.

O intercâmbio entre a Núbia e o Egito num primeiro momento parece facilitado


pela localização geográfica, mas se analisarmos com cuidado, a principal via de
acesso entre as regiões, o rio Nilo, veremos que as cataratas dificultam muito a
navegação.

No período do Grupo A há vários testemunhos desse intercâmbio. Por


exemplo, muitas cerâmicas e artefatos de cobre egípcios foram encontrados
na região da Núbia, e muitos artefatos produzidos com marfim e obsidiana da
Núbia foram encontrados no Egito. Segundo evidências arqueológicas, entre
7000 e 3000 a. C., a cultura material, cerâmicas, práticas funerárias, No Egito, a escrita
instrumentos de pedra e bronze, parece ter sido comum entre o Egito surgiu por volta de
e a Núbia. 3200 a. C., a partir
de um processo
Nesse período começa a diferenciação. No Egito, a escrita surgiu de descentraliza-
ção política e eco-
por volta de 3200 a. C., a partir de um processo de descentralização
nômica. Enquanto
política e econômica. Enquanto que na Núbia as comunidades que na Núbia
permaneciam fragmentadas e predominava a tradição oral. Com o as comunidades
passar dos anos, as duas sociedades seriam complementares uma à permaneciam
outra. É nesse período que o Egito, da I Dinastia, invade a Baixa Núbia fragmentadas e
(Norte) e ocupa o território núbio até a Segunda Catarata. predominava a
tradição oral.
Segundo Sherif,

desde os primeiros tempos, os antigos egípcios eram


fascinados pela Núbia, devido a suas riquezas em ouro,
incenso, marfim, ébano, óleos, pedras semipreciosas e outras
mercadorias de luxo. Por isso eles sempre procuraram obter o
controle do comércio e dos recursos econômicos desse país.
Vemos assim que a história da Núbia é quase inseparável da
do Egito (2010, p, 238).

Entre 3100 e 2500 a. C., os egípcios empreenderam pelo menos cinco


campanhas militares na Núbia. Mas a verdadeira conquista da Núbia pelos
egípcios ocorreu no reinado do faraó Snefru, fundador da IV dinastia. Nessa
ocasião, a campanha militar teria feito 7 mil prisioneiros e 200000 cabeças

47
História da África e dos Africanos: dos Primórdios ao Período Pré-Colonial

de gado. Desse período em diante, a Núbia se rendeu e aceitou a dominação


egípcia.

Para conhecer melhor as riquezas das civilizações africanas,


acesse o site “Civilizações Africanas”, um dos melhores blogs sobre o
tema na internet. http://civilizacoesafricanas.blogspot.com.br

O Egito reconheceu a enorme potencialidade da Núbia para seu próprio


progresso econômico e enquanto rota comercial com o sul da África. Dessa forma,
após a conquista, seguiu-se um período de relativa paz. A Núbia foi dividida em
várias regiões e governada por monarcas independentes.

Entre a existência do grupo A e do Grupo C há uma lacuna de quase


quinhentos anos. Alguns arqueólogos supuseram existir um grupo B, mas nada
foi comprovado, tudo indica que era o Grupo A que esteve empobrecido e que
depois desses quinhentos anos voltou a florescer cultural e economicamente
enquanto Grupo C. Essa cultura surgiu durante o primeiro período intermediário
da história do Egito antigo, entre 2240 e 2150 a. C., na Alta Núbia, próximo
à cidade de Dakka. Como dissemos anteriormente, ainda não se sabe ao
certo qual a origem dessa cultura, se eram povos migrantes da Líbia ou se
simplesmente eram povos que haviam evoluído culturalmente a partir do grupo
A.

O povo do grupo C era constituído de criadores de gado, que habitavam


pequenos povoados. Esse grupo possuía rituais funerários não muito diferentes
do outro grupo A, a posição do corpo continuava igual, havia também muitos
objetos, cerâmica, marfim, objetos decorativos, colares, brincos, braceletes e
armas. A mudança mais substancial foi o enterro de muitos animais juntamente
com o corpo, ovelhas, cães, gazelas e, em algumas tumbas, crânios de bois
pintados em vermelho e preto.

Nesse grupo C, já marcado pela crescente sedentarização, as inscrições


rupestres dão conta que os bovinos eram seus temas mais pintados. Segundo
Albert da Costa e Silva, nesse período já eram construídas casas de seis ou sete
cômodos, algumas redondas e outras retangulares. E muitos povoados passaram
a ter muralhas (SILVA, 1992, p. 82).

Após o Primeiro Período Intermediário, o Egito controlou a instabilidade


política em seu território e voltou-se para o sul. A Núbia foi dominada e

48
Capítulo 2 AS PRIMEIRAS CIVILIZAÇÕES AFRICANAS.
A ÁFRICA NILÓTICA: EGITO, NÚBIA, KUSH E AXUM

ocupada pelo Egito. Nesse período são construídos cerca de 17 fortes na


região da segunda catarata do Nilo. Os fortes tinham vários objetivos, era
necessário manter a dominação sobre a população do Grupo C, garantir as
rotas comerciais com o sul da África e, o mais importante, garantir a segurança
do Reino egípcio dos ataques de um poderoso reino que surgia no sul, o Reino
de Kush.

Após o colapso do Reino Médio egípcio, com a invasão dos hicsos, a


população nativa da Núbia invade, saqueia e queima os fortes egípcios. A Núbia
recuperava novamente sua autonomia.

Atividade de Estudos:

1) Descreva a importância da Núbia para o Egito.


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O Reino Kush
A palavra “kush” apareceu pela primeira vez num texto egípcio há cerca de
2000 a.C. Segundo as fontes egípcias, esse era um reino abaixo da cidade de
Semna. A cidade de Kerma era a mais importante do reino kushita, ficava há cerca
de 16 km ao sul da Terceira Catarata e, entre 2000 e 1500 a. C., pode ter sido a
maior cidade da Núbia e é bem provável que seus habitantes sejam
Kerma também
remanescentes do Grupo C.
era um ponto
estratégico, seu
Essa é uma região isolada do Nilo e altamente fértil e foi um dos domínio permitia
lugares ideais para um povoamento autônomo e para a formação o controle de
de um Estado. A riqueza do solo não só permitiu o desenvolvimento todas as transa-
agrícola, mas também a criação de gado em larga escala. Kerma ções econômicas
entre o Egito e o
também era um ponto estratégico, seu domínio permitia o controle de
restante da África
todas as transações econômicas entre o Egito e o restante da África através do Nilo.
através do Nilo.

49
História da África e dos Africanos: dos Primórdios ao Período Pré-Colonial

Por muito tempo pensou-se que essa cidade era apenas mais uma guarnição
do Reino egípcio. Mas hoje não há dúvidas de que a cidade de Kerma fazia parte
de um reino núbio e era habitada por homens negros.

Esse reinado atingiu o apogeu durante o intervalo ocorrido


entre os reinados médio de novo no Egito, aproximadamente
entre 1700 e 1500 a. C. Durante esse período, oito governantes
foram enterrados em túmulos gigantescos, o maior deles
com cerca de 90 m de diâmetro. Os bens tumulares foram
saqueados, porém as câmaras construídas para eles eram
maiores do que as de qualquer das pirâmides egípcias. Os
sacrifícios humanos, não praticados no Egito desde a primeira
dinastia, acompanhavam todos os enterros reais e podem
ter chegado à casa dos quatrocentos na maior das tumbas
(OLIVER, 1994, p. 75).

A tradição de enterrar vítimas de sacrifício junto com o soberano era uma


prática que já existia na antiga Mesopotâmia. No Egito também foram encontradas
tumbas com centenas de sacrifícios humanos, pois acreditava-se que tais servos
iriam acompanhar seus senhores após a morte. Todavia, essas práticas foram
superadas, sendo empregadas a confecção de inúmeras estatuetas para ser
depositadas ao lado do corpo. Ao que tudo indica, Kush foi um dos últimos reinos
da região a empregar tais práticas funerárias.

Kerma era a capital Kerma era a capital do Reino Kush. Esse reino foi um tradicional
do Reino Kush. inimigo do Egito no período do Reino Médio. Durante o século em
Esse reino foi um que os hicsos dominaram o Egito, ocupando toda a região do Delta
tradicional inimigo do do Nilo e formando a 15ª e 16ª dinastias, os kushitas estabeleceram
Egito no período do
relações comerciais e diplomáticas com os soberanos de soberanos
Reino Médio.
hicsos e o faraó de Tebas.

O maior desenvolvimento da cidade de Kerma é registrado durante a época


do Segundo Período Intermediário, 1730 e 1580 a. C., da história egípcia. Nesse
período, por volta de 1750 a. C, Kerma dominou as fortalezas construídas pelo
Egito ao sul do Nilo. O Egito estava dividido, ao norte havia um faraó hicso em
Ávaris e ao sul um faraó egípcio em Tebas. O reinado do faraó de Tebas, que
ainda sobrevivia enfraquecido, estabeleceu um intercâmbio comercial bastante
profícuo com o Reino de Kush. Muitos artesãos egípcios foram recrutados para
trabalhar em Kerma e ensinar as técnicas egípcias aos kushitas. Nesse período,
Kerma também adotou a escrita hieroglífica egípcia, o que ajudou a centralizar a
administração, unificar a legislação e consolidar seu domínio sobre um território
ainda maior.

Com o passar dos anos, o faraó tebano Camósis começou a reestruturar


seu reino, que estava espremido entre o faraó hicso e o rei de Kush. Tebas

50
Capítulo 2 AS PRIMEIRAS CIVILIZAÇÕES AFRICANAS.
A ÁFRICA NILÓTICA: EGITO, NÚBIA, KUSH E AXUM

avançou sobre os hicsos e voltou a dominar o Delta. Os hicsos ainda tentaram


pedir auxílio a Kush, para tentar deter o faraó tebano, oferecendo a divisão do
território que seria conquistado. Mas foi sem sucesso. Os egípcios expulsaram
os hicsos.

O reino de Kush, que abrangia toda a Núbia ao sul de Assuã, foi retomado
durante a XVIII dinastia egípcia, depois da expulsão dos hicsos.

Toda a Núbia foi reorganizada segundo padrões puramente


egípcios e montou-se um sistema administrativo totalmente
egípcio, que requeria a presença de um número considerável
de escribas, sacerdotes, soldados e artesãos. Tal processo
acabou resultando na completa egipcianização do país. Os
nativos adotaram a religião egípcia e passaram a adorar
divindades egípcias. [...] Como já se mencionou, a política
oficial era a de assegurar a lealdade e o apoio dos chefes
nativos. Seus filhos eram educados na corte real do Egito,
onde escutavam a fala dos egípcios do séquito do rei, o que
os fazia esquecer sua própria língua. Desse modo eles eram
fortemente egipcianizados e isso naturalmente ajudou a
garantir a lealdade dos príncipes núbios para com o Egito e a
cultura egípcia (SHERIF, 2010, p. 269).

Segundo Alberto da Costa e Silva, somente em três anos do reinado do faraó


Tutemósis III o Egito teria recebido mais de 700 quilos de ouro de toda a Núbia.
Essa cifra ainda é acrescida de tantos outros produtos, como marfim, ovos e
plumas de avestruz, peles de animais, gado, diversos tipos de minerais, granito,
turquesas, ametistas etc. (SILVA, 1994, p. 90).

Toda a Núbia, e principalmente Kerma, havia se tornado uma importante


colônia egípcia, a ponto de o faraó estabelecer o “vice-rei de Kush” na alta Núbia.
Ele governava toda a região desde a primeira até a quarta catarata do Nilo. Mas
aos poucos os recursos da Núbia foram se esgotando e o próprio território foi
despovoado. Nos períodos posteriores, Kerma “vira memória. Depois da tomada
pelos egípcios, foi por eles largada ao abandono. Se é que deliberadamente não
lhe secaram a vida” (SILVA, 1994, p. 91).

Atividades de Estudos:

1) Descreva a importância do Reino de Kush situado em Kerma e


sua relação com o Egito no Segundo Período Intermediário.
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História da África e dos Africanos: dos Primórdios ao Período Pré-Colonial

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2) Disserte sobre as práticas funerárias dos soberanos de Kerma.


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3) Disserte sobre as relações entre Kush e o Egito no período


posterior à invasão hicsa.
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Napata e Méroe
A partir do século XI, o poder do Egito começa a enfraquecer
Ao sul de Kerma,
próximo à Quarta novamente, é o início do Terceiro Período Intermediário. Ao sul de
Catarata, durante Kerma, próximo à Quarta Catarata, durante a XVIII Dinastia egípcia,
a XVIII Dinastia começa a surgir um importante centro político, é a cidade de Napata
egípcia, começa a (atual Merowe). A partir de Napata foi possível estabelecer um
surgir um importante importante reino independente no sul da Núbia. O reino cresceu a
centro político, é a
ponto de conquistar todo o sul do Egito até a cidade de Tebas, um
cidade de Napata.
importante centro religioso onde se cultuava o deus Amon.

Além de ser um importante centro administrativo e econômico, era um ponto


de encontro de várias caravanas de comerciantes. A cidade de Napata, através
do prestigiado templo de Amon, construído sob a montanha sagrada de Jebel
Barcal, foi ainda mais importante como centro religioso. Era um verdadeiro centro
de peregrinação de fiéis, pois havia uma estreita relação de Napata com a religião
egípcia da cidade de Tebas.

Os rituais funerários de Napata eram bastante diferentes daqueles


encontrados em Kerma. Não havia sacrifícios humanos e existia uma grande
riqueza em ouro nas sepulturas. Nas necrópoles de Kurru e Nuri, que abrigavam
sepulturas de cerca de 9 reis e mais de 70 rainhas, as tumbas reais eram
construídas em forma de pirâmides. Nessas pirâmides foram enterradas cinco
gerações de reis de Napata. Se compararmos com as pirâmides egípcias, as de

52
Capítulo 2 AS PRIMEIRAS CIVILIZAÇÕES AFRICANAS.
A ÁFRICA NILÓTICA: EGITO, NÚBIA, KUSH E AXUM

Napata eram bem pequenas e pontiagudas, a maior delas tinha apenas 29 metros
em um dos lados de sua base, enquanto que a pirâmide de Quéops, no Egito,
apresenta 228 metros na sua base (SILVA, 1994, p. 100).

Figura 8 - Pirâmides em Meroé

FONTE: Disponível em: <http://colunas.revistaepoca.globo.com/viajologia/


files/2010/03/DSC_2521-web60.jpg>. Acesso em: 08 jul. 2012.

Um dos primeiros reis de que se tem notícia em Napata é Cachita, que


conquistou a cidade de Tebas, mas não quis adotar o título de faraó. Quando
Tebas viu-se novamente ameaçada por um príncipe líbio que tentava reunificar o
Egito, chamou o filho de Cachita, Peíe, para protegê-la. Peíe não apenas afastou
a ameaça de Tebas, como também conquistou todas as cidades importantes do
Egito, até o Delta, mas não quis ficar estabelecido em Tebas. Voltou para Napata
como faráo do Egito.

O mesmo não aconteceu como seu irmão, Xabaca. Ele reclamou para si o direito
de ser faraó de todo o Egito, dessa forma tornou-se senhor de todo o vale do Nilo até
o Delta. Era a famosa 25ª dinastia do Egito, ou a “dinastia etíope”.

A sucessão real em Napata foi a seguinte: Cachita, Peíe, Xabata, Xabataca e


Taraca. O processo de sucessão era bastante curioso. Não era como no Egito em
que o poder real passava de pai para filho. Em Napata, quando morria o rei, o seu
segundo irmão ascendia ao trono e assim sucessivamente. Quando acabava-se
a linhagem dos irmãos, o trono recaía sobre o filho mais velho daquele que tinha

53
História da África e dos Africanos: dos Primórdios ao Período Pré-Colonial

sido o primeiro rei. Dessta forma, assegurava-se que o reinado não seria exercido
por uma pessoa inexperiente.

O último rei de Napata a governar o Egito foi Tenutamon, sobrinho de Taraca.


Em seu governo, os assírios invadiram o Egito e conquistaram todo o território,
fazendo-o retornar para Napata no ano de 653 a. C.

Figura 9 - Rotas comerciais a partir de Méroe

FONTE: (SILVA, 1994, p. 75).

Ao sul de Napata, há Ao sul de Napata, há cerca de 300 anos a. C., a cidade de Meroé
cerca de 300 anos surgia como uma terceira capital do Reino Kush, se considerarmos
a. C., a cidade de
Kerma a primeira e Napata a segunda. Meroé também foi chamada
Meroé surgia como
uma terceira capital de “ilha de Meroé”, pois ficava na confluência de três rios, o Nilo Azul,
do Reino Kush. o Nilo Branco e o Rio Atbara.

Tudo indica que a transferência da capital para Méroe se deu por questões
climáticas. Méroe estava numa região extremamente fértil e Napata em uma

54
Capítulo 2 AS PRIMEIRAS CIVILIZAÇÕES AFRICANAS.
A ÁFRICA NILÓTICA: EGITO, NÚBIA, KUSH E AXUM

região rodeada por desertos. Mas há outra explicação bastante plausível


para o fato. Como a cidade de Napata estava localizada numa grande curva
do Rio Nilo, aos poucos acabou se isolando das rotas comerciais. Com a
intensificação do comércio entre o Vale do Nilo e a região da sexta catarata,
surgiu a chamada “Rota de Korosco”, que ligava a cidade de Korosco, entre
a primeira e segunda catarata, e a cidade de Abu Hamed, entre a quarta e a
quinta catarata. A cidade de Napata ficaria apenas como um importante centro
religioso.

No século VIII a. C., Méroe já era uma cidade habitada. Mas foi no período
posterior ao reinado de Peíe em Napata que Méroe, de uma simples aldeia, viria a
se tornar a maior cidade de toda a Núbia. Méroe estava num ponto extremamente
estratégico, por ela passavam todas as caravanas de comerciantes com destino
ao Delta do Nilo, como também aqueles que se destinavam ao Mar Vermelho e
também aqueles com rotas para Darfur ou Cordofã, em direção ao sul da África.

Por esta razão, Méroe recebeu influência de várias regiões do mundo então
conhecido. Em Méroe, por sua proximidade com o Mar Vermelho, confluíam
culturas persas, indianas, gregas, sírias, árabes, romanas e principalmente
egípcias, as que mais marcaram a cultura meroítica.

Tudo indica que a cidade de Napata ainda permanecia como um Napata era o
centro importante, mas tinha apenas uma função religiosa. Podemos centro espiritual
dizer que Napata era o centro espiritual do Reino, o local do grande do Reino, o local
templo do deus Amon. Nela, os reis eram consagrados e sepultados, do grande templo
do deus Amon.
mas seus reinados eram exercidos a partir da cidade de Méroe. A partir
de um ano 300 a. C., os reis passaram a ser enterrados em Méroe.

Houve muitos reis em Méroe, mas sabemos muito pouco a respeito deles.
Destoando da tradição de enterrar os soberanos em Napata, Arcamani, ao que
tudo indica, teria sido o primeiro rei a ser sepultado em Méroe. Não há muitas
referências sobre os outros reis de Méroe, pois a cultura kushita abandonou a
escrita hieroglífica egípcia e desenvolveu um tipo de escrita ainda não decifrada,
também conhecida como meroítica. Enquanto não for decifrado o alfabeto meroíta,
com seus 23 sinais, pouco saberemos sobre a história de Méroe.

55
História da África e dos Africanos: dos Primórdios ao Período Pré-Colonial

O Reino kushita de O Reino kushita de Méroe conheceu seu período áureo a partir
Méroe conheceu
do século VIII a. C. Nesse período também teriam surgido a tradição
seu período áureo a
partir do século VIII das rainhas-mães ou candaces. Em várias sociedades africanas
a. C. Nesse perío- há tradições matrilineares, mas Méroe parece ter sido um dos mais
do também teriam importantes centros dessa tradição. Como dissemos antes, só nas
surgido a tradição necrópoles de Jebel Barcal foram encontradas tumbas de mais de
das rainhas-mães ou setenta rainhas.
candaces.
As candaces ocupavam um papel importante na vida social e
As candaces política do Reino kushita. Essas mulheres ocupavam cargos de
ocupavam um papel liderança no reino. Algumas eram sacerdotisas de Amon, o que
importante na vida
significava aderir ao celibato e ser eternizada através de uma esfinge
social e política do
Reino kushita. Essas real depois da morte. Ser uma candace em Méroe significava estar
mulheres ocupavam entre o poder político e o religioso. Como era a religião que legitimava
cargos de liderança a política, as candaces tinham um papel importante na definição
no reino. dos novos reis e no auxílio ao respectivo governo. Com o passar do
tempo, essas mulheres chegaram a exercer o governo também.

No capítulo 8 do livro bíblico de Atos dos Apóstolos, temos uma referência


importante a uma candace. No episódio, um eunuco de nome desconhecido,
mas identificado como tesoureiro de uma candace da Etiópia, quando voltava de
Jerusalém, foi interceptado pelo apóstolo Felipe e através da pregação dele é
convertido ao cristianismo.

Veja o que diz Alberto da Costa e Silva sobre as tradições matrilineares:

E as tradições matrilineares, que nunca se haviam apagado –


como o demonstra o prestígio das rainhas-mães ou candaces
–, tornaram-se mais fortes. Várias mulheres ascenderiam
ao poder e se fariam retratar, de ancas largas, gordas e
energéticas, com uma túnica franjada, tão pouco egípcia, a
cair do ombro direito, cheias de colares e enfeites, verdadeiros
marimachos a combater à frente dos exércitos, a presidir o
culto, a espairecer na caça (SILVA, 1994, p.127).

Pouco se sabe do fim das cidades de Napata e Méroe. Napata teria sido
invadida em 23 a. C pelos romanos que governavam a província romana do Egito.
Já a cidade de Méroe foi ocupada pelo Reino Axum por volta do ano 350 da era
cristã.

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Capítulo 2 AS PRIMEIRAS CIVILIZAÇÕES AFRICANAS.
A ÁFRICA NILÓTICA: EGITO, NÚBIA, KUSH E AXUM

Atividades de Estudos:

1) Descreva a importância da cidade de Napata para o Reino Kush.


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2) Descreva como ocorreu a decadência de Napata e a transferência


da capital para Méroe.
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3) Descreva como ocorria o processo de sucessão real no Reino


Kush.
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4) Disserte sobre as tradições matrilineares no Reino Kush.


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O Reino de Axum
Embora o Reino de Axum não pertença à África Nilótica, achamos importante
trazê-lo para a discussão, pois há indícios de que foi esse reino que dominou
o Reino meroítico e teve um papel importante nos intercâmbios culturais e
econômicos com toda a região do Mar Vermelho e o restante da África, inclusive
tendo um papel protagonista na inserção do Cristianismo na região.

57
História da África e dos Africanos: dos Primórdios ao Período Pré-Colonial

O Reino de Axum foi um dos maiores da África Antiga, entre os séculos I e


XIII da Era Cristã. O período mais importante do Reino foi o século IV, quando
dominou as regiões da atual Etiópia, o sul do Egito e parte da Arábia.

As candaces O reino de Axum nasceu nas regiões montanhosas da Etiópia.


ocupavam um papel Talvez a geografia também explique o sucesso e a duração tão
importante na vida longa do reino. A região é formada por abismos profundos que
social e política do podem chegar a 4600 metros. Portanto, uma região de difícil acesso
Reino kushita. Essas e dominação para qualquer inimigo. Nos documentos históricos
mulheres ocupavam
egípcios Axum é apresentada como uma fonte de mirra.
cargos de liderança
no reino.
Existe uma tradição lendária sobre o surgimento do Reino de
Axum. Segundo a lenda, o encontro entre a rainha de Sabá e o rei Salomão,
narrado no livro bíblico de I Reis, capítulo 10, teria gerado um filho, cujo nome
seria Menelik, primeiro rei de Axum e fundador da dinastia salomônica.

A cidade de Axum situava-se próximo a um afluente do rio Atbara. No período


pré-axumita, a região da Etiópia sofreu forte influência sul-arábica. Prova disso
são os instrumentos e inscrições semelhantes encontrados tanto na Etiópia quanto
no Rio Tigre. Da região sul da Arábia vieram vários imigrantes, que introduziram
novas técnicas agrícolas, como o uso do arado na agricultura da Etiópia.

Entre o século II e o século IV da era cristã, o Reino de Axum submeteu as


regiões do planalto do Tigre e o vale do Nilo ao seu domínio. Entre os anos de 183
e 213, o rei axumita Gadara e seu filho foram considerados os soberanos mais
poderosos da Arábia meridional. No século III, o Reino de Axum foi considerado
um dos maiores do mundo, e no século IV o Reino de Meroé foi conquistado pelos
axumitas.

Os reis de Axum adotaram o cristianismo durante o século IV. A


Os reis de Axum ado-
taram o cristianismo história da introdução do cristianismo no Reino de Axum é bastante
durante o século IV. curiosa. Um homem chamado Merópio, da cidade de Tiro, teria feito
uma viagem para a Índia e levado consigo dois jovens, Frumêncio
e Edésio. Ao voltar da viagem, seu barco foi atacado próximo de um porto no
Mar Vermelho. Merópio morreu, mas os dois jovens foram levados diante do rei
de Axum. Um dos jovens, Frumêncio, graças ao seu conhecimento da cultura
grega, teria se tornado o tesoureiro da casa real, conselheiro do rei e preceptor de
seus filhos. Acredita-se que Ezana, o filho do rei, tenha sido educado na religião
cristã por Frumêncio, e que depois da morte do pai tenha assumido o trono e
cristianizado o reino (GIORDANI, 1985, p. 84).

A cristianização da Etiópia foi consolidada pelos sucessores de Ezana.


Frumêncio teria se tornado o primeiro bispo da Igreja Copta Etíope. A partir da

58
Capítulo 2 AS PRIMEIRAS CIVILIZAÇÕES AFRICANAS.
A ÁFRICA NILÓTICA: EGITO, NÚBIA, KUSH E AXUM

cristianização foram construídas muitas igrejas na Etiópia, sendo a Igreja de


Santa Maria de Sião, do final do século IV, uma das mais famosas.

O Reino axumita tornou-se poderoso a ponto de comercializar com o Egito,


na época uma província romana, a Índia, a Síria e o Império Bizantino.

Figura 10 - Reino de Axum (Aksum)

FONTE: Disponível em: <http://2.bp.blogspot.com/-GJKmCJgwI3E/T2PH0ef-SzI/


AAAAAAAABWE/lX9I-ZZpPsw/s1600/mapa+de+aksum.jpg>. Acesso em: 09 jul. 2012.

A expansão do Reino de Axum chegou ao fim quando os persas invadiram


a Arábia. A partir desse período, século VIII, os árabes muçulmanos também
passaram a dominar o Mar Vermelho e dessa forma estrangularam as vias
comerciais axumitas.

Aos poucos, o Reino de Axum foi entrando em decadência. A cidade foi


abandonada e só lhe restou uma importância religiosa. Ainda restam alguns
obeliscos em pé na cidade, a maioria está em ruínas.

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História da África e dos Africanos: dos Primórdios ao Período Pré-Colonial

Atividades de Estudos:

1) Descreva a origem lendária do Reino de Axum.


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2) Disserte sobre a introdução do Cristianismo no Reino axumita.


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Algumas Considerações
Nesse capítulo estudamos alguns dos aspectos mais importantes da África
nilótica. Temos consciência de que essas civilizações milenares não podem ser
retratadas em um número reduzido de páginas. Mas esse texto é um ponto de
partida, um roteiro para estudos mais aprofundados.

Ficou evidente em nosso estudo que o Egito teve, em seu passado, uma
relação muito estreita com o restante do continente africano, muito mais do que
a historiografia até pouco tempo admitia. Vale aqui registrar uma frase de Alberto
da Costa e Silva, segundo esse autor, o Egito é “uma esquina do mundo. Mas – é
bom não esquecer – uma esquina que fica na África” (SILVA, 2012, p. 138).

O Egito foi uma O Egito foi uma grande encruzilhada. Pelas águas do Nilo
grande encruzilha- não passaram apenas mercadorias, transitaram ideias, costumes,
da. Pelas águas do religiosidades, culturas. A existência do Egito dos faraós, reis
Nilo não passaram divinizados, das grandes obras hidráulicas, das grandes obras
apenas mercadorias,
arquitetônicas não foi só possível por causa do Rio Nilo. Foi possível
transitaram ideias,
costumes, religiosida- também pela capacidade inventiva e pela capacidade de organização
des, culturas. do povo egípcio.

Mas o Egito também foi possível por causa das inúmeras riquezas que
vinham da região da Núbia. Aliás, o sul do Egito, como vimos, embora seja

60
Capítulo 2 AS PRIMEIRAS CIVILIZAÇÕES AFRICANAS.
A ÁFRICA NILÓTICA: EGITO, NÚBIA, KUSH E AXUM

uma região ainda muito desconhecida nos estudos históricos, é uma região que
fascina a todos que a estudam. A influência egípcia é notória em toda a região da
Núbia e nas diversas fases do Reino Kush. Mas é impossível não reconhecer a
originalidade de tal reino, suas formas de sucessão real e as famosas candaces.
Em todos os
Em todos os reinos que estudamos nesse capítulo, a religião reinos que
ocupava um lugar central na vida social, ao mesmo tempo em que estudamos nesse
legitimava a ordem vigente, também produzia coesão e unidade social. capítulo, a religião
No Reino de Axum, o último que estudamos, vimos um dos primeiros ocupava um lugar
central na vida
relatos da introdução do Cristianismo em África. No próximo capítulo
social, ao mesmo
vamos aprofundar o papel da religião no contexto cultural da África, tempo em que le-
principalmente a partir na África mediterrânica, onde o Cristianismo e gitimava a ordem
posteriormente o Islã tiveram um papel fundamental na organização vigente, também
das sociedades. produzia coesão e
unidade social.

ReferÊncias Bibliográficas
ADAM, Shehata. A importância da Núbia: um elo entre a África central e o
Mediterrâneo. In: MOKHTAR, Gamal (Ed.). História Geral da África II. África
Antiga. 2ª ed. rev. Brasília: Unesco, 2010.

ALDRED, Cyril. O Egito Antigo. Lisboa, Portugal: Editorial Verbo,1965.

BRISSAUD, Jean-Marc. A civilização núbia até a conquista árabe. Rio de


Janeiro: Editions Ferni, 1978.

CARDOSO, Ciro F. O Egito Antigo. São Paulo: Brasiliense, 1992.

DOBERSTEIN, Arnoldo Walter. O Egito antigo. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2010.

LECLANT J.O Império de Kush: Napata e Méroe. In: MOKHTAR, Gamal (Ed.).
História Geral da África II. África Antiga. 2ª ed. rev. Brasília: Unesco, 2010.

OLIVER, Roland, A experiência africana: da pré-história aos dias atuais. Rio de


Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1994.

PINSKY, Jaime. As primeiras civilizações. 26ª Ed. São Paulo: Contexto, 2006.

SHERIF, Nagm-El-Din Mohamed. A Núbia antes de Napata (3100 a 750 antes


da Era Cristã). In: MOKHTAR, Gamal (Ed.). História Geral da África II. África
Antiga. 2ª ed. rev. Brasília: Unesco, 2010.

61
História da África e dos Africanos: dos Primórdios ao Período Pré-Colonial

SILVA, Alberto da Costa e. A enxada e a lança: a África antes dos portugueses.


Rio de Janeiro; São Paulo: Nova Fronteira; Edusp, 1992.

62
C APÍTULO 3

De Berberes a Árabes:
O Norte da África e sua
História
A partir da perspectiva do saber fazer, neste capítulo você terá os seguintes
objetivos de aprendizagem:

 Analisar a constituição e importância histórica da região do Magrebe.

 Discutir a história do norte da África a partir da ocupação territorial dos


povos berberes, fenícios, gregos, romanos, bárbaros, bizantinos e árabes.

 Analisar as trocas culturais e religiosas produzidas no norte da África por


ocasião do contato com o mundo mediterrânico, oriental e africano ao sul do
Saara.
História da África e dos Africanos: dos Primórdios ao Período Pré-Colonial

64
Capítulo 3 DE BERBERES A ÁRABES: O NORTE DA ÁFRICA E SUA
HISTÓRIA

Contextualização
Caros acadêmicos, neste capítulo vamos voltar nossa atenção para o norte
da África. Esse território milenar guarda histórias e experiências de vários povos,
pelo Magrebe viveram povos berberes, passaram fenícios, gregos, romanos,
bárbaros, bizantinos, árabes. É uma grande encruzilhada de povos e culturas.

Como vimos nos capítulos anteriores, o norte da África, por muito O norte da África,
tempo, esteve muito mais ligado ao mundo mediterrânico do que ao por muito tempo,
restante do próprio continente. Neste capítulo vamos relativizar um esteve muito mais
pouco essa visão dogmática. ligado ao mundo
mediterrânico.

Neste capítulo vamos perceber que a cultura é algo dinâmico,


não é estático e não obedece a limites naturais e geográficos. Por isso, não será
surpresa ver as trocas culturais entre o norte e o sul do Saara, navegadores fenícios
construindo Cartago como uma potência comercial, cartagineses constituindo-se
em senhores do Mediterrâneo por séculos, e resistindo à ingerência militar dos
romanos, o Magrebe cobiçado por vândalos, bizantinos e derradeiramente pelos
muçulmanos.

Sejam bem-vindos a mais essa aventura do conhecimento.

O Norte da África e os Povos


Berberes
A presença humana no norte da África é atestada há pelo menos 13000
a.C., e desde 9000 a.C. é comprovado o intercâmbio cultural entre as
populações do norte da África e da península ibérica através do estreito de
Gibraltar.

Segundo Desanges, a primeira civilização a habitar o território do norte da


África ficou conhecida como ibero-maurusiense, eram humanos de alta estatura,
cerca de 1,72 m, e com características negroides. A partir de 7000 a. C., surgiu
um novo grupo na região, que ficou conhecido como capsienses, também eram de
alta estatura, com algumas características negroides e vindos do interior. Dessa
forma, podemos aferir que o surgimento dos primeiros berberes ocorreu da fusão
dos dois grupos a partir do período Neolítico (DESANGES, 2010, p. 453).

No entanto, é a partir de 3000 a. C. que a relação do norte da África com a

65
História da África e dos Africanos: dos Primórdios ao Período Pré-Colonial

Península Ibérica, a Sicília, a Sardenha, Malta, todo o sul da Itália é mais evidente.
As evidências deste intercâmbio são produtos originários do norte da África, como
marfim e ovos de avestruz, encontrados na Espanha. E da mesma forma, vasos de
cerâmica e pontas de flecha de cobre e bronze da Península Ibérica encontrados
nas regiões de Ceuta, no norte da África. Dessa forma, podemos afirmar que o
norte da África esteve inserido no mundo Mediterrâneo antes mesmo da fundação
da cidade de Cartago.

O deserto do Saara Por outro lado, é importante salientar que a história do norte
produziu um afasta- da África é marcada pelo processo de desertificação do Saara, que
mento do norte da influenciou diretamente o desenvolvimento da navegação através
África com a África
do Mediterrâneo. O deserto do Saara produziu um afastamento do
Setentrional.
norte da África com a África Setentrional. Mas não podemos falar em
isolamento, pois através do corredor de Trípoli houve uma profunda
influência das civilizações subsaarianas.

Toda a região do Mas antes de falarmos dos povos que habitavam o norte da
norte da África ficou África, convém falar sobre as designações da própria região. Toda
conhecida durante a região do norte da África ficou conhecida durante a antiguidade
a antiguidade como como Berbéria, daí a designação de berberes para os povos
Berbéria. indígenas, ou seja, autóctones que habitavam a região. O uso do
termo berbere é bastante tardio, ele surge no século VIII d. C.,
quando os árabes ocuparam a região. Segundo Kormikiari, a palavra berbere
pode ter sido originada a partir da palavra latina barbari, que designava os
povos bárbaros que invadiram o Império Romano. Ainda que essa designação
seja anacrônica, foi a que permaneceu na historiografia (KORMIKIARI, 2001,
p. 11).

A região da Berbéria ganhou várias designações ao longo dos séculos.


Durante o Império Romano era chamada de África Menor. E durante a ocupação
árabe ficou conhecida como Magrebe. O Magrebe abrangia a atual Mauritânia,
Saara Ocidental, Marrocos, Argélia, Tunísia e Líbia.

Magrebe é uma pala- Magrebe é uma palavra de origem árabe e quer dizer “o tempo
vra de origem árabe e o lugar do pôr-do-sol – o oeste”. Segundo Kormikiari, essa região
e quer dizer “o tempo era uma espécie “ilha do oeste” para os conquistadores árabes, pois
e o lugar do pôr-do- estava entre o Saara – “mar de areia” – e o Mar do Mediterrâneo
-sol – o oeste”.
(KORMIKIARI, 2001, p. 10).

66
Capítulo 3 DE BERBERES A ÁRABES: O NORTE DA ÁFRICA E SUA
HISTÓRIA

Figura 10 - Magreb, a região habitada por berberes

FONTE: Disponível em: <http://3.bp.blogspot.com/-KNwMlzVhco/TlLpDRa9f5I/


AAAAAAAAFkY/SgYWW1k7byA/s1600/berberes.jpg>. Acesso em: 28 jul. 2012.

O norte da África foi tradicionalmente um espaço invadido e O norte da África


ocupado por povos estrangeiros. Primeiro, chegaram os fenícios, no foi tradicional-
início do primeiro milênio antes da Era Cristã. Depois se seguiram mente um espaço
os romanos, e já na Era Cristã os vândalos, por ocasião do domínio invadido e ocu-
bárbaro do Império Romano, depois os bizantinos e posteriormente os pado por povos
estrangeiros.
árabes, já no século VII.

Os grupos berberes na Antiguidade eram bastante diversos, muitos eram


nômades, outros seminômades e alguns sedentários. Os berberes, apesar
dos numerosos dialetos, possuíam uma língua comum, chamada líbica. Essa
língua se tornou escrita apenas no século IV a.C., quando se estreitaram os
laços do púnico, língua usada por fenícios e os cartagineses na região do
Magrebe.

A história dos povos berberes antes da chegada dos fenícios é praticamente


desconhecida. As poucas informações que temos são provenientes de seus
vizinhos e, por ser muitas vezes uma descrição de inimigos, é marcadamente
ideológica.

67
História da África e dos Africanos: dos Primórdios ao Período Pré-Colonial

As fontes da história egípcia dão conta da ocupação dos


Os berberes também berberes líbios na região do noroeste do delta do Nilo durante o
aparecem descritos período da unificação do Egito, no terceiro milênio antes de Cristo.
nos numerosos tra-
Os líbios são representados na Paleta de Narmer, um dos mais
balhos dos escritores
gregos e romanos. antigos documentos da unificação do Egito. Segundo outras fontes,
por diversas vezes os líbios atacaram e tentaram dominar o Egito,
mas sempre foram derrotados.

Os berberes também aparecem descritos nos numerosos trabalhos dos


escritores gregos e romanos. Os mais importantes são Heródoto, Diodoro da
Sicília, Ptolomeu e Políbio, Salústio, Tito-Lívio, Plínio, o velho, Tácito e outros.

Para compreender um pouco mais a atividade historiográfica de


Heródoto, leia o livro: HARTOG, François. O espelho de Heródoto:
ensaio sobre a representação do outro. Belo Horizonte: Editora da
UFMG, 1999.

O historiador grego Heródoto, a partir do final do século V a.C., é um dos


pioneiros na descrição dos berberes. No seu relato, os berberes são divididos em
pastores e agricultores, nômades e sedentários. Segundo Heródoto, do Egito até
a Tunísia o território era habitado por grupos indígenas variados:

Os adimarquides, giligames, asbites, ausquises, bacales,


nasamões, psilos (extintos), maces, gindanos, lotófagos,
maxlies e auses. Os primeiros, até os maces, habitavam
a área litorânea a partir da Sirte Maior (Golfo de Sidra). Os
últimos habitavam as margens do lago Tritonis (KORMIKIARI,
2001, p. 19).

Nas narrativas dos Nas narrativas dos autores gregos e romanos, os grupos
autores gregos e indígenas berberes que ganham maior destaque são os númidas, os
romanos, os grupos getulos e os mouros.
indígenas berberes
que ganham maior
destaque são os Os númidas habitavam uma região conhecida como Numídia,
númidas, os getulos entre os anos de 200 a 50 a. C. O termo Numídia foi usado pelo
e os mouros. grego Políbio para designar a região a oeste de Cartago, entre a
Argélia, a Tunísia e o Marrocos. Os númidas estabeleceram relações
comerciais com Cartago, mas não chegaram a ser dominados por esta. Todavia,
a Numídia por diversas vezes forneceu guerreiros para lutar nas fileiras dos

68
Capítulo 3 DE BERBERES A ÁRABES: O NORTE DA ÁFRICA E SUA
HISTÓRIA

cartagineses. Os cavaleiros númidas eram famosos por suas habilidades em


combate. Durante a Segunda Guerra Púnica, lutaram como mercenários ao lado
dos cartagineses, mas em seguida passaram a combater por Roma.
Os getulos inicialmente eram apenas uma tribo berbere, mas com o passar
do tempo tornou-se uma congregação de vários grupos. A denominação “getulos”
passa a ser utilizada a partir do século II a.C. Os getulos eram povos brancos,
desenvolviam atividades pastoris, eram seminômades e habitavam as franjas do
deserto Saara, com abrangência de seu domínio desde os territórios habitados
pelos etíopes até o sul da área onde habitavam os mouros.

Já os mouros eram grupos berberes que habitavam o território ao ocidente,


onde hoje está situada a Mauritânia. Um dos primeiros escritores a designar esse
grupo berbere foi o romano Plínio, o velho. A origem do termo mouro é remetida
ao termo semítico mahaurim, que quer dizer “os ocidentais”, e que em latim era
conhecido como mauri (KORMIKIARI, 2001, p. 30).

Os mouros eram um dos grupos berberes mais importantes. Durante a


expansão islâmica no norte da África, no século VII, os mouros foram convertidos
à nova religião e adotaram o árabe como segunda língua. A partir do século VIII,
árabes e mouros islamizados conquistaram a Península Ibérica e formaram várias
dinastias e califados. Da Península Ibérica, os mouros somente foram expulsos no
século XIII, mas deixam inúmeras influências culturais na arquitetura, nas artes,
na linguagem e em outros domínios.

Atividades de Estudos:

1) Qual foi o papel desempenhado pelo Saara no desenvolvimento


do Norte da África?
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2) Qual a origem da designação “berbere”, para referir-se aos povos


indígenas do norte da África?
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História da África e dos Africanos: dos Primórdios ao Período Pré-Colonial

3) Quais eram os principais grupos berberes do Magrebe?


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Os Fenícios e a Formação do Império


CartaginÊs
O Magrebe aparece na história escrita quando marinheiros e
O Magrebe aparece
na história escritacolonos fenícios desembarcam na costa norte da África. A maioria
quando marinheiros e das informações que temos desse período são narrativas escritas
colonos fenícios de-por gregos e romanos. Dessa forma, são informações que devem
sembarcam na costa ser relativizadas, pois os fenícios eram tradicionais inimigos de
norte da África. gregos e romanos. Por outro lado, as informações arqueológicas são
bastante imprecisas, pois todas as cidades fenícias estão encobertas
materialmente por cidades romanas.

Quando os fenícios chegaram ao norte da África, eles encontraram os três


grandes grupos citados anteriormente. A oeste, os mouros; entre a Mauritânia e o
limite o ocidental com o Egito estavam os númidas; e na região setentrional, entre
os mouros, os númidas e o deserto do Saara, estavam os getulos.

Os colonos e navega- Os colonos e navegadores fenícios vieram da cidade de Tiro,


dores fenícios vieram
um dos centros comerciais mais dinâmicos do Egeu e do Oriente
da cidade de Tiro, um
dos centros comer- Próximo. A busca por metais como ouro, prata, cobre e estanho
ciais mais dinâmicos levou os fenícios a fundar colônias no ocidente do Mar Mediterrâneo.
do Egeu e do Oriente A colônia mais antiga de que temos notícia foi fundada em 1110 a.
Próximo. C., na Península Ibérica, e estava localizada onde hoje é a cidade de
Cádiz, na Espanha.

Para conhecer um pouco mais da História da formação do


Império cartaginês, assista ao documentário produzido em 2006 pelo
History Channel – “Construindo um Império: Cartago”.

70
Capítulo 3 DE BERBERES A ÁRABES: O NORTE DA ÁFRICA E SUA
HISTÓRIA

O intenso comércio com a Península Ibérica levou os fenícios a empreender


expedições ao norte da África. Mas a fundação das primeiras colônias fenícias na
costa do Magrebe, se compararmos com Cádiz, são bastante tardias. É somente
em 814 a. C. que é fundada a cidade de Cartago.
No século VI antes
As colônias fenícias sempre foram pequenos povoados que não da era cristã, a
tinham mais que algumas centenas de colonos. No século VI antes cidade Cartago se
da era cristã, a cidade Cartago se torna autônoma e estabelece uma torna autônoma e
estabelece uma
hegemonia em todo o norte da África. Esse fato ocorreu pois a cidade
hegemonia em
de Tiro, a capital e metrópole dos fenícios, havia sido dominada pela todo o norte da
Babilônia. África.

A partir do século VII a. C. iniciaram-se os primeiros conflitos entre A partir do século


gregos e fenícios. No ano de 580 a. C., as regiões da Sicília, Sardenha VII a. C. iniciaram-
e Córsega se tornaram alvos de disputas entre gregos e fenícios. Os -se os primeiros
fenícios contaram com a ajuda dos etruscos para derrotar e impedir o conflitos entre
domínio grego. Nesse período também ganhou destaque a tentativa gregos e fenícios.
de gregos espartanos, liderados por Dorieus, de fundar uma feitoria na
Líbia. A aliança entre fenícios e líbios provocou a derrota grega e a expulsão dos
mesmos da região.

Essas duas vitórias descritas acima nos dão indícios das razões do sucesso
do exército de Cartago. As vitórias de Cartago, em virtude do seu reduzido números
de habitantes, só foram possíveis graças ao recrutamento de mercenários e
formação de tropas aliadas. Por muito tempo os cartagineses contaram com os
serviços militares dos líbios, númidas, mouros e mercenários vindos da Espanha,
Gália, Itália e também da Grécia.

Após a derrota de Dorieus, os gregos, liderados por Gelão, organizaram uma


campanha militar para vingá-lo e recuperar as áreas de colonização fenícia na
Sicília. Os cartagineses enfrentaram os gregos com uma frota de 200 navios, mas
foram duramente derrotados em Himera.

Após essa derrota, em 480 a. C., houve 70 anos de paz entre cartagineses e
gregos. Nesse período, os cartagineses buscaram ampliar sua área de influência
no norte da África, pois os gregos haviam se fortalecido comercialmente no
Mediterrâneo após a vitória sobre os persas.

Entre os séculos
Cartago fundou várias colônias desde o Estreito de Gibraltar até
IV e III a. C., a
as regiões da atual Líbia, e no Mediterrâneo continuou seu domínio cidade de Cartago
sobre algumas colônias na Península Ibérica, Ilha de Malta etc. era a mais prós-
Todas essas colônias tinham que pagar tributos sobre importações e pera do Mediter-
exportações, entregar entre 10 até 50 % da produção agrícola e ainda râneo.

71
História da África e dos Africanos: dos Primórdios ao Período Pré-Colonial

fornecer soldados em tempos de guerra.

Os registros deixados pelos escritores gregos e romanos atestam que, entre


os séculos IV e III a. C., a cidade de Cartago era a mais próspera do Mediterrâneo,
e isso se devia a sua atividade comercial. Cartago comercializava com os povos
vizinhos produtos manufaturados, têxteis, agrícolas e escravos em troca de
metais, ouro, prata e estanho. Veja como o historiador grego Heródoto descrevia
essas trocas.
Os cartagineses também nos falam de uma região da África e
de seus habitantes, além do estreito de Gibraltar. Assim que
eles chegam a este país, descarregam suas mercadorias e
as colocam na praia; depois retornam a seus navios e enviam
um sinal de fumaça. Quando os nativos veem a fumaça,
descem até a praia, depositam ali uma certa quantidade de
ouro para ser trocado pelas mercadorias e depois se retiram.
Os cartagineses desembarcam novamente e examinam o ouro
que foi deixado. Se julgam que seu valor corresponde ao dos
produtos ofertados, eles o recolhem e seguem viagem; se
não, voltam aos navios e esperam até que os nativos tenham
levado ouro suficiente para satisfazê-los. Nenhuma das partes
engana a outra: os cartagineses nunca tocam o ouro até que
seu valor corresponda ao que trouxeram para vender, ecos
nativos não tocam as mercadorias até que o ouro tenha sido
levado (HERÓDOTO apud WARMINGTON, 2010, p. 482).

Cartago mantinha o Segundo Warmington, Cartago mantinha o monopólio das


monopólio das trocas trocas comerciais em toda a extensão de seu império. Esse
comerciais em toda monopólio era conseguido através do ataque a qualquer embarcação
a extensão de seu que ousasse comercializar em águas cartagineses e através de
império. alianças comerciais com os concorrentes diretos, Roma e as cidades
etruscas. A oeste de Cartago, nenhuma embarcação poderia praticar
o comércio, quaisquer produtos estrangeiros eram baldeados para os navios
cartagineses para poderem ser comercializados (2010, p. 484).

O coração de todo esse império marítimo-comercial era a cidade de


Cartago. Segundo Warmington, a cidade de Cartago possuía um porto artificial
duplo. A parte externa servia para a ancoragem de navios comerciais e a
parte interna destinava-se a embarcações de guerra. Não se sabe ao certo a
capacidade do porto externo, mas o interno possuía espaço para 220 navios
de guerra. Outro aspecto que mostra a capacidade bélica da cidade são suas
muralhas. A cidade de Cartago era cercada de muralhas que chegavam a 40
km de extensão, sendo 12 metros de altura e 9 de espessura. A cidade de
Cartago, em número de habitantes, pode ser comparada à cidade de Atenas
do século V, com uma população de 400.000 pessoas (WARMINGTON, 2010,
p. 486).

72
Capítulo 3 DE BERBERES A ÁRABES: O NORTE DA ÁFRICA E SUA
HISTÓRIA

Figura 11 - O porto de Cartago

FONTE: Disponível em: <http://i49.tinypic.com/28sswtx.jpg>. Acesso em: 28 jul. 2012.

O sistema político em Cartago era bastante singular. O rei não ocupava o


cargo de forma hereditária, mas era eleito pelos cidadãos e por um Conselho de
estado, próximo ao que foi o senado romano, e era formado por 100 membros das
famílias mais ricas e aristocráticas de Cartago. O rei, além dos poderes políticos,
possuía poderes sagrados, judiciários e militares. A partir do século III, surgiu o
termo sufete, para designar uma espécie de juiz ou governador, também eleito
anualmente e que ajudava na administração do vasto império.

Os reis mais famosos de Cartago foram Amilcar e seu filho Aníbal. Ambos
foram poderosos chefes militares. Amílcar nasceu em 270 a. C e Os reis mais fa-
faleceu 228 a.C, foi o comandante dos exércitos cartagineses na mosos de Cartago
primeira guerra púnica. Amilcar também foi o principal responsável foram Amilcar e
seu filho Aníbal.
pela conquista cartaginesa da península Ibérica. Aníbal era o filho mais
Ambos foram
velho de Amilcar e seu sucessor, nasceu em 248 a. C e faleceu em poderosos chefes
183 a. C. O nome Aníbal quer dizer “Baal é bondoso”. Aníbal lutou na militares.
Primeira e na Segunda Guerra Púnica.

A religião dos cartagineses é um dos aspectos mais criticados nas narrativas


dos autores gregos e romanos. O principal deus dos cartagineses O principal deus
era Baal e foi trazido pelos fenícios quando colonizaram o Magrebe. dos cartagineses
Todavia, aos poucos, o culto a Baal foi substituído pelo culto a era Baal e foi tra-
Tanit, uma deusa que, ao que tudo indica, surgiu a partir do norte zido pelos fenícios
quando coloniza-
da África, com traços ligados aos aspectos da fertilidade. A principal
ram o Magrebe.
crítica de gregos e romanos à religião dos cartagineses se devia ao
73
História da África e dos Africanos: dos Primórdios ao Período Pré-Colonial

fato dos inúmeros sacrifícios humanos oferecidos anualmente a Baal e Tanit,


principalmente crianças do sexo masculino.

Após a derrota dos cartagineses frente aos gregos em Himera, em 470 a.


C., seguiu-se um período de relativa paz por 70 anos. Nesse período começaram
novos conflitos entre os cartagineses e gregos pela posse da Sicília. Nesse
contexto, a Grécia sofria com a instabilidade política interna, espartanos e
atenienses lutavam entre si para impor a supremacia na Grécia.

No ano de 409 a. C., com a ajuda de 50000 e mercenários,


No ano de 409 a. Aníbal conquistou a cidade de Selinunte e Hímera e, em 406 a. C.,
C., com a ajuda de a cidade de Agrigento, na Sicília. Mas Aníbal não chegou a dominar
50000 e mercenários,
toda a ilha, a importante cidade de Siracusa não chegou a ser
Aníbal conquistou a
cidade de Selinunte tomada (WARMINGTON, 2010, p. 489).
e Hímera e, em 406
a. C., a cidade de Todavia, todas as guerras contra os gregos foram conflitos
Agrigento, na Sicília. pequenos se compararmos com as Guerras Púnicas entre Cartago
e Roma.

Atividades de Estudos:

1) Comente sobre a importância dos fenícios para o Magrebe.


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2) Qual a relação entre gregos e cartagineses no contexto da


expansão cartaginesa pelo Mediterrâneo?
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3) Descreva a cidade de Cartago, em seus aspectos militares e


estratégicos.
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Capítulo 3 DE BERBERES A ÁRABES: O NORTE DA ÁFRICA E SUA
HISTÓRIA

As Guerras Púnicas
A disputa pela Sicília esteve na origem da Primeira Guerra Púnica.
A disputa pela
Por muito tempo Roma foi apenas uma entre tantas comunidades Sicília esteve na
agrícolas da Itália que tinham tratados comerciais com Cartago. origem da Primei-
Cartago era o centro de um poderoso império marítimo comercial, a ra Guerra Púnica.
cidade mais rica e poderosa de todo o Mediterrâneo. Estava localizada
numa posição estratégica entre as nações mediterrânicas e o interior da África.
Era melhor para Roma tê-la como aliada do que como inimiga.

Mas desde aproximadamente o ano 500 a. C. Roma tornou-se poderosa e


dominou toda a Península Itálica. O próximo desafio era a conquista da Sicilia,
espaço dividido entre colônias gregas e cartaginesas. A disputa se originou pela
posse da cidade de Messana, no norte da Ilha da Sicília, fazendo fronteira com a
Península Itálica. O domínio dessa cidade significava a manutenção do estratégico
entreposto comercial que era a Sicília para os cartagineses e a contenção do
avanço romano. E para os romanos significava a continuidade da expansão pelo
Mediterrâneo, consolidando seu comércio.

Os políticos romanos na época estavam bastante seguros:


ao que parece, eles acreditavam que Cartago não reagiria
e que as cidades gregas da Sicília seriam uma presa fácil.
[...] Cartago decidiu resistir à intervenção romana, pois isso
significaria uma mudança completa no equilíbrio de forças
existentes na Sicília durante um século e meio e, sem dúvida,
também porque a política romana lhes parecia perigosamente
ousada (WARMINGTON, 2010, p. 492).

Nos primeiros tempos de guerra, Cartago obteve vantagem, pois era


um império experiente em batalhas navais, sua marinha era uma das mais
poderosas do Mediterrâneo. Mas os romanos logo compensaram esta
deficiência contratando mercenários gregos para a construção de suas frotas
de guerra.

Os romanos venceram várias batalhas na costa siciliana, mas quando


tentaram tomar a cidade de Cartago foram derrotados pelas tropas cartaginesas
e pelo enorme contingente de mercenários contratados no interior da África e na
Grécia. Segundo Grant, nessa ocasião os cartagineses utilizaram elefantes em
combate aos romanos, certamente uma das primeiras experiências do
tipo de que temos notícia (GRANT, 1987, p. 95). O conflito, que
ficou conhecido
como a Primeira
O conflito, que ficou conhecido como a Primeira Guerra Púnica, Guerra Púnica,
durou 23 anos, entre 264 e 242 a.C., e deixou enormes perdas para durou 23 anos,
ambos os lados. As duas partes estavam com forças e recursos entre 264 e 242
a.C.

75
História da África e dos Africanos: dos Primórdios ao Período Pré-Colonial

exauridos. O general cartaginês Amilcar assinou um tratado de rendição em 242


a. C. Nesse tratado, Cartago perdeu definitivamente o domínio sobre a Sicília
e teve que pagar para Roma uma pesada indenização para cobrir os custos de
guerra.

No território cartaginês seguiram-se três anos de rebelião das tropas


mercenárias que não tiveram seus pagamentos efetuados. Amilcar sufocou os
focos de rebelião líbia e númida e buscou ampliar seu domínio na Península
Ibérica, para reestruturar economicamente o império (GRANT, 1987, p. 97).

Após o conflito com Cartago, Roma se tornou um dos maiores impérios do


Mediterrâneo. As conquistas subsequentes foram as terras da Sardenha, Córsega
e Malta.

FIGURA 12 - Ruínas de Cartago

FONTE: Disponível em: <http://upload.wikimedia.org/wikipedia/


commons/8/84/Ruines_de_Carthage.jpg>. Acesso em: 28 jul. 2012.

A Segunda Guerra Púnica, a


Ascensão de Aníbal
Com o término da primeira guerra púnica, Amílcar, o comandante cartaginês,
teve que enfrentar a rebelião de mercenários que queriam seus pagamentos
atrasados por lutar ao lado de Cartago. No Mediterrâneo, Roma, aproveitando a
fragilidade cartaginesa, se apoderou da Sardenha. Dessa forma, restou a Amilcar
voltar sua atenção para a conquista da Hispânia (Espanha). Amilcar dominou todo
o restante da Espanha, pois as cidades costeiras já estavam controladas.

76
Capítulo 3 DE BERBERES A ÁRABES: O NORTE DA ÁFRICA E SUA
HISTÓRIA

Em vinte anos, Amílcar conseguiu explorar as minas de prata da Espanha,


reestruturar economicamente o império cartaginês e constituir um poderoso
exército, de aproximadamente 50.000 homens, para enfrentar novamente os
romanos. Amílcar colocou seu próprio filho, Aníbal, no comando do exército
cartaginês. Pode-se dizer que a Segunda Guerra Púnica é reflexo e consequência
direta da anterior.

Na Península Ibérica havia algumas cidades que estavam sob Segunda Guer-
a influência romana, principalmente Sagunto e Ampurias. O avanço ra Púnica, que
de Aníbal e seus exércitos sobre essas cidades foi o estopim para ocorreu entre 218
o reinício dos conflitos entre romanos e cartagineses. Era o início e 202 a. C., perfa-
zendo um período
da Segunda Guerra Púnica, que ocorreu entre 218 e 202 a. C.,
de 16 anos.
perfazendo um período de 16 anos. Cartago foi novamente derrotada e
Roma ampliou ainda mais seu império, ampliando seus domínios até a Península
Ibérica. Mas vamos a alguns detalhes do conflito.

No ano de 218 a. C., o comandante cartaginês Aníbal subiu com seu exército
a Península Ibérica, passou pelos Pirineus e cruzou os Alpes, chegando pelo
norte da Itália. Segundo Warmington,

tal estratégia baseava-se na idéia de que Roma só poderia ser


derrotada em seu próprio solo e de que era necessário levar
a guerra para a Itália a fim de evitar uma invasão da África
pelos romanos, uma vez que agora eles controlavam o mar
(WARMINGTON, 2010, p. 493).

Aníbal conseguiu formar um enorme contingente de soldados para combater


os romanos. A maioria dos soldados era de origem espanhola, mas também
havia soldados africanos e gauleses. Aníbal conseguiu várias vitórias em território
italiano, mas a união das cidades italianas em torno de Roma e o fornecimento
de soldados, aparentemente inesgotável, para o exército fez com que a Roma
sobrevivesse e não caísse sob o domínio dos cartagineses.

Ao contrário da Primeira Guerra Púnica, a Segunda foi marcada Ao contrário da


por várias batalhas campais e reduzido número de batalhas navais. Primeira Guerra
Os romanos dividiram seus exércitos em duas frentes. Enquanto Púnica, a Segun-
da foi marcada por
Roma fazia uma batalha defensiva e tentava suportar o ataque dos
várias batalhas
cartagineses que vinham pelo norte, outros soldados romanos, campais e redu-
liderados pelo general “Cipião, o Africano”, conquistavam a Espanha. zido número de
Os romanos ainda se aproveitaram do clima de descontentamento batalhas navais.
existente entre as tribos berberes númidas e fizeram alianças com
essas para invadir a África.

77
História da África e dos Africanos: dos Primórdios ao Período Pré-Colonial

Aos poucos, Aníbal e seu exército ficaram isolados e sem suprimentos nas
terras italianas e dessa forma tiveram que fazer o retorno para as terras africanas.
No retorno, Aníbal encontrou as tropas romanas lideradas pelo general Cipião.
No ano de 203 a.C., os generais Aníbal e Cipião buscaram uma solução definitiva
para a guerra. Cipião desejava uma capitulação completa dos africanos, mas
Aníbal não concordou com a rendição total.

Os cartagineses Assim, em 202 a.C., iniciou-se aquela que seria a última batalha
foram vencidos em deste longo período de 16 anos de guerra. A batalha ocorreu próxima
seu próprio territó- à cidade de Zama, ao sul de Cartago. Havia aproximadamente 40 mil
rio. Cartago não foi soldados de cada lado combatente. Os cartagineses foram vencidos
invadida, mas teve
em seu próprio território. Cartago não foi invadida, mas teve que
que indenizar Roma
por causa dos custos indenizar Roma por causa dos custos de guerra.
de guerra.
Nos termos do tratado de paz, Cartago teve de se desfazer
de sua frota; seu território na África ficou desde então
limitado a uma linha que ia aproximadamente de Thabraca
(Tabarca) a Thaenae. [...] Finalmente, os cartagineses
ficaram proibidos de fazer a guerra fora da África, e
mesmo em seu próprio solo sem a autorização de Roma
(WARMINGTON, 2010, p. 495).

Após o fim da Segunda Guerra Púnica, Roma estabeleceu alianças com


todos os reinos no norte da África. A Númidia e a Mauritânia tornaram-se reinos
clientes ou vassalos de Roma. Quanto a Cartago, houve aproximadamente 50
anos de paz após a guerra, reconstrução e prosperidade.

Todavia, em 149 a.C., reiniciaram-se os conflitos. Os cartagineses reagiram


às agressões e saques dos reinos vizinhos e clientes de Roma, principalmente
a Númidia, e dessa forma atraíram a atenção de Roma. Ao chegar em território
africano, as tropas romanas, como pena pelo rompimento do acordo de não
fazer guerra sem o consentimento romano, propuseram que os cartagineses
abandonassem a cidade de Cartago e se instalassem há cerca de 15 km ao sul
de Cartago.

Diante da negativa cartaginesa, os romanos invadiram a cidade e a


destruíram totalmente. A população foi dizimada e aqueles que sobreviveram
foram escravizados. Calcula-se que mais de 85 mil combatentes cartagineses
foram mortos.

78
Capítulo 3 DE BERBERES A ÁRABES: O NORTE DA ÁFRICA E SUA
HISTÓRIA

Atividades de Estudos:

1) Qual foi o elemento que originou a Primeira Guerra Púnica?


____________________________________________________
____________________________________________________
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2) Como podemos relacionar a Primeira e a Segunda Guerra


Púnica? Qual foi o elemento de ligação dos dois conflitos?
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3) Qual foi o papel dos soldados mercenários nos conflitos entre


Roma e Cartago?
____________________________________________________
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O Domínio Romano no Norte da


África
Logo após a destruição de Cartago, em 146 a. C., todo o território Todo o território
cartaginês foi reduzido à condição de uma simples província romana. cartaginês foi re-
duzido à condição
Ao lado de Cartago, havia também os reinos clientes de Roma, que
de uma simples
mantiveram sua relativa independência com o apoio aos romanos província romana.
durante a Segunda Guerra Púnica e a destruição de Cartago. A partir
do ano 40 da Era Cristã, todo norte da África foi submetido ao domínio romano,
até o momento da conquista vândala (MAHJOUBI, 2010, p. 501).

Durante o período do domínio romano, a África era administrada por

79
História da África e dos Africanos: dos Primórdios ao Período Pré-Colonial

governos nomeados diretamente pelo Senado romano. A escolha


Durante o período
do domínio romano, do governante de Cartago era feita a partir dos mais antigos ex-
a África era adminis- cônsules, o escolhido recebia o título de procônsul e governava por
trada por governos um ano. Justamente por isso, nesse período toda a área dominada
nomeados direta- pelo Império Romano no norte da África ficou conhecida como África
mente pelo Senado Pró-consular.
romano.

As funções do procônsul eras judiciárias e administrativas.


O governo aplicava a lei e os regulamentos do Império em matéria civil e
criminal. O governo também administrava toda a construção de obras públicas
e o aspecto financeiro da província: a cobrança de impostos, as despesas etc.
Nessa época, as principais riquezas obtidas por Roma da África eram o trigo,
o principal produto agrícola africano que abastecia a capital do Império, e os
lucros advindos da cobrança de impostos, depositados diretamente no Tesouro
do Senado.

Figura 13 - Teatro romano em Sabrata (Líbia)

FONTE: Disponível em: <http://globewallpapers.com/wp-content/uploads/2012/06/Roman-


Theater-Sabratah-Libia-Sabratha-Wa-Surman-Libya.jpg>. Acesso em: 28 jul. 2012.

A civilização romana A civilização romana era marcada pelo urbanismo. Nesse


era marcada pelo aspecto, a vida urbana nas províncias africanas era muito
urbanismo. desenvolvida. Em toda a África Proconsular “foram registradas ao
menos quinhentas cidades”. Ao lado do urbanismo, a colonização
Em toda a África romana no norte da África era marcada pela extrema exploração da
Proconsular “foram agricultura. “Portanto, o primeiro século de ocupação romana foi para
registradas ao menos
a África um período de retrocesso, caracterizado principalmente pela
quinhentas cidades”.
exploração ostensiva da terra fértil” (MAHJOUBI, 2010, p. 514; 522).

A partir do segundo século de ocupação houve um grande avanço. Durante


o governo do Imperador Marco Aurélio, muitos veteranos de guerra imigraram

80
Capítulo 3 DE BERBERES A ÁRABES: O NORTE DA ÁFRICA E SUA
HISTÓRIA

para a África e fundaram cerca de 35 colônias nas províncias africanas. Segundo


Mahjoubi, “é conhecida a preponderância da agricultura na economia antiga; na
África, durante o período romano, a terra era a principal fonte – e a mais valorizada
– de riqueza e prestígio social. Também é comum dizer que a África era o celeiro
de Roma” (MAHJOUBI, 2010, p. 522).

Como dissemos anteriormente, o trigo era o principal produto africano


fornecido a Roma em forma de tributo. Era o preço pago pela derrota e
consequente dominação romana. Os habitantes romanos recebiam todos os
meses, gratuitamente, uma cota de trigo advinda dos impostos africanos.
A dominação romana nos campos culturais e simbólicos encontrou bastante
resistência. Os cartagineses e os reinos berberes vizinhos mantinham a
religiosidade tradicional, principalmente entre as populações rurais permaneciam
vivas as devoções aos deuses fenícios, Baal e Tanit, deuses nativos e as
divindades da fertilidade.

Figura 14 - O aqueduto de Chercell (Argélia)

FONTE: Disponível em: <http://aj.garcia.free.fr/afrique_romaine/


images/Aqueduc_Cherchell.jpg>. Acesso em: 28 jul. 2012.

A expansão do Cristianismo também chegou às terras africanas. Dentre


as províncias ocidentais do Império Romano, as províncias africanas foram as
primeiras a ver a introdução e o desenvolvimento do Cristianismo.

De acordo com Tertuliano, que viveu no final do século II e


início do III, naquela época havia na África um número muito
grande de cristãos, em todas as classes e profissões. Por
volta de 220, foi possível reunir em Cartago um sínodo de
71 bispos; outro, realizado em cerca de 240, reuniu noventa
bispos (MAHJOUBI, 2010, p. 540). 81
História da África e dos Africanos: dos Primórdios ao Período Pré-Colonial

Todo esse crescimento do Cristianismo no solo africano era motivo de


preocupação para as autoridades imperiais. Os cristãos eram considerados um
organismo estranho no corpo do império, pois não aceitavam a ideologia oficial,
não prestavam culto ao imperador e se colocavam habitualmente na oposição ao
regime romano.

Em regiões dominadas através de guerras pelo Império Romano, o


Cristianismo era particularmente perigoso, pois poderia inspirar rebeliões contra
o poder central. Nas diversas cidades das províncias africanas, e principalmente
em Cartago, muitos cristãos foram mortos pelas autoridades romanas por
representarem uma suposta ameaça à unidade do Império. Segundo Mahjoubi, “o
ano de 203 foi marcado pelo martírio das santas Perpétua e Felicidade e de seus
companheiros, que foram atirados aos animais na arena do anfiteatro de Cartago”
(2010, p. 541).

Para conhecer sobre o cristianismo no norte da África, assista


ao filme Santo Agostinho. O filme é de 1972 e foi dirigido pelo
renomado diretor italiano Roberto Rosselini. Grande parte do filme
é ambientada na cidade de Hipona, na atual Argélia. Recentemente,
em 2010, foi lançada outra cinebiografia de Santo Agostinho sobe o
título de Santo Augustine: O Declínio do Império Romano dirigido
por Christian Duguay.

A força do Cristianismo nas terras africanas é um estudo que ainda está


por se realizar. Somente o fato de Santo Agostinho, bispo da cidade africana de
Hipona, produzir uma das obras mais brilhantes da teologia cristã, já seria motivo
suficiente para uma grande investigação histórica sobre esse contexto. Embora
exista um grande reconhecimento da rica e monumental obra de Agostinho,
um dos teólogos mais prestigiados do cristianismo primitivo, ainda está por ser
reconhecida que essa obra nasceu em terras africanas.

O EnfraQuecimento de Roma e as
Disputas pelo Magrebe
O Império Romano teve um crescimento sem precedentes a partir da
Segunda Guerra Púnica. A dificuldade administrativa por causa da grandiosidade
do império, as disputas políticas internas e o constante assédio dos povos

82
Capítulo 3 DE BERBERES A ÁRABES: O NORTE DA ÁFRICA E SUA
HISTÓRIA

inimigos produziram uma profunda crise no Império Romano e sua consequente


decadência.

Povos de origem germânica, também conhecidos como bárbaros, Povos de origem


a partir do século V invadiram as fronteiras romanas. As províncias germânica, tam-
africanas foram conquistadas pelos vândalos a partir do Estreito bém conhecidos
como bárbaros,
de Gibraltar. Terminava um período de cinco séculos de dominação
a partir do século
romana na África. Os vândalos conquistaram inicialmente a Península V invadiram as
Ibérica, e de 429 e até 430 conquistaram todo o restante do norte da fronteiras roma-
África. nas. As províncias
africanas foram
O Império Romano do Oriente ainda permanecia intacto, com conquistadas
pelos vândalos a
sua capital em Bizâncio. A partir do ano de 474, Bizâncio e o Reino
partir do Estreito
Vândalo fizeram tratados comerciais e de paz. Para Bizâncio, era de Gibraltar.
estrategicamente favorável ter os vândalos como aliados.

Segundo Salama, o termo “vandalismo” foi cunhado como sinônimo de


destruição somente no século XVIII e deve ser relativizado quando queremos
nos referir ao contexto africano. Na sua avaliação, o Estado Vândalo manteve
a estrutura administrativa romana, as assembleias provinciais etc. Nesse
contexto,

Cartago tornou-se a rica metrópole do novo Estado. [...]


Outras (cidades), ao contrário, como Ammaedara, Theveste
ou Hipona, prosseguiram suas obras monumentais. Parece
mesmo que durante esse período – e a manutenção da
economia monetária o comprova – nem a agricultura nem o
comércio sofreram qualquer declínio evidente. Tudo indica
que as relações externas foram prósperas, e o conjunto das
possessões vândalas pôde ser qualificado de “império do
trigo”. São testemunho da riqueza das classes dominantes
as finas joias de estilo germânico, por vezes encontradas
em Hipona, Cartago, Thuburbo Maios e Mactar. O balanço
político e religioso mostra-se mais negativo. Nas partes sul
e oeste de seu domínio norteafricano, os vândalos sofreram
tantos ataques dos “mouros”, denominação geral dos rebeldes
norteafricanos, que é quase impossível fixar uma fronteira
estável na zona sob seu controle. [...] No campo religioso, o
clima de crise foi permanente. Os vândalos eram cristãos,
mas professavam o arianismo, heresia intolerável para o
clero católico tradicional. Seguiu-se uma repressão quase
sistemática do clero por um poder central pouco inclinado a
tolerar resistências dogmáticas (SALAMA, 2010, p. 548, 549).

Todas as disputas políticas e a crise que se abatia sobre o Estado Vândalo le-

83
História da África e dos Africanos: dos Primórdios ao Período Pré-Colonial

varam Bizâncio a promover uma espécie de “reconquista” dos territórios africa-


nos. Reconquista em dois aspectos: em primeiro lugar, esses territórios antes
pertenciam ao Império Romano e Bizâncio era a única herdeira legítima com
forças militares capazes de reconquistar o norte da África; em segundo lugar, a
perversão do Cristianismo, através da heresia ariana era um bom motivo para a
expulsão dos vândalos. A conquista ocorreu sob o governo de Justiniano, no ano
de 533 da Era Cristã.

Figura 16 - Ruínas de uma fortaleza bizantina, século VI, em Timgad


(Argélia). Ao fundo, Arco do Imperador Romano Trajano

FONTE: Disponível em: <http://upload.wikimedia.org/wikipedia/


commons/c/c1/Timgad_Trajan.jpg>. Acesso em: 28 jul. 2012.

O domínio bizantino no Magrebe durou menos de 200 anos. Já era o contexto


da afirmação do Islã e os conquistadores árabes se tornaram os novos senhores
no norte da África.

Do Cristianismo ao Islã: A Presença


Árabe no Norte da África
Após a morte do profeta Maomé, o Islamismo, que era apenas até então
mais uma religião inexpressiva, encravada no interior da Arábia, tornou-se em
poucas décadas uma das maiores expressões religiosas do mundo antigo, entre
os séculos VII e XI.

84
Capítulo 3 DE BERBERES A ÁRABES: O NORTE DA ÁFRICA E SUA
HISTÓRIA

Nascido sob o sol ardente da península arábica, o islã soubera


aclimatar-se a diferentes latitudes e junto a povos tão distintos
quanto os camponeses da Pérsia, do Egito e da Espanha, os
nômades berberes somalis e turcos, os montanheses afegãos
e curdos, os párias da Índia, os comerciantes soninquês e os
dirigentes do Kānem (HRBEK, 2010, p. 2).

O Império Muçulmano surgiu como um fenômeno essencialmente árabe no


princípio, mas com o passar dos anos, e com a rápida expansão, ficou claro que
a única identidade possível para civilização muçulmana era a dos laços religiosos,
portanto o Islamismo, e não a dos laços étnicos, sanguíneos, árabes. Dessa
forma, ao falarmos de civilização islâmica, nos referimos ao conjunto de fiéis que
professam a fé islâmica e não apenas a pessoas originárias da Arábia.

A conquista do
A conquista do norte da África pela civilização islâmica foi
norte da África
avassaladora. Num primeiro momento, oito anos após a morte de pela civilização
Maomé, em 632, a conquista foi iniciada pelas regiões do Rio Nilo. O islâmica foi avas-
Egito, depois a Núbia e posteriormente o Sudão foram as primeiras saladora.
regiões afetadas pela expansão islâmica na África.

A conquista islâ-
A conquista islâmica do Egito foi o ponto de partida para a
mica do Egito foi
expansão para o Magrebe, mas essa região não foi facilmente o ponto de partida
conquistada, quase um século foi necessário para que os muçulmanos para a expansão
submetessem o norte da África aos seus domínios. Segundo Hrbek, para o Magrebe.

No Magreb, os conquistadores árabes enfrentaram a tenaz


resistência dos berberes e somente ao final do século
VII lograram submeter as principais regiões. A maioria
dos berberes converteu-se então ao Islã e, malgrado o
ressentimento que lhes inspirava a dominação política árabe,
eles tornaram-se ardentes partidários da nova fé, contribuindo
para propagá-la do outro lado do estreito de Gibraltar e além
do Saara (2010, p. 8).

O Magrebe era uma região estratégica para a expansão islâmica e sua


conquista permitiu a penetração da fé islâmica na Península Ibérica e no sul do
Saara. Os muçulmanos, árabes e mouros islamizados cruzaram o Estreito de
Gibraltar no ano de 711 e conquistaram a Península Ibérica, que era território
visigodo. Muitas famílias islâmicas constituíram governos na Península Ibérica
através de emirados e califados, sendo que o mais famoso foi o Califado de
Córdoba. Os últimos mouros foram expulsos da Península Ibérica somente em
1492.

85
História da África e dos Africanos: dos Primórdios ao Período Pré-Colonial

Como estamos vendo no texto, a presença árabe/muçulmana


no norte da África é datada desde o século XII. No ano de 2011,
esta região esteve muito presente nos noticiários do mundo todo
através da chamada “Primavera Árabe”. A Primavera Árabe foi uma
série de protestos e manifestações contra governos autoritários e
antidemocráticos no Oriente Médio e norte da África, principalmente
Líbia, Egito, Síria e Tunísia. Pesquise mais sobre o assunto. Há boas
análises do tema na internet.

Ao sul do Saara, Ao sul do Saara, muitos povos negros aderiram à fé islâmica.


muitos povos negros O Islamismo na África subsaariana teve grande longevidade. Muitos
aderiram à fé islâ- negros que foram escravizados e trazidos compulsoriamente para
mica. o Brasil eram adeptos da fé islâmica. Uma das maiores revoltas
de escravos registrada na Bahia, a Revolta do Malês, em 1835, foi
protagonizada por um grande número de escravos que resistiam à imposição do
Catolicismo.

Para compreender sobre a presença dos negros islamizados no


Brasil imperial, leia o livro de REIS, João José. Rebelião escrava
no Brasil: a história do levante do malês em 1835. São Paulo,
Companhia das Letras, 2003.

No próximo capítulo vamos abordar a dinâmica e organização dos reinos da


África Subsaariana.

Atividades de Estudos:

1) Descreva como foi o período da ocupação romana no Magrebe.


____________________________________________________
____________________________________________________
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86
Capítulo 3 DE BERBERES A ÁRABES: O NORTE DA ÁFRICA E SUA
HISTÓRIA

2) Exponha as razões do domínio vândalo no Magrebe e sua


sucessão pelos bizantinos.
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3) Descreva como ocorreu a conquista árabe do Magrebe.


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Algumas considerações
O Magrebe sem-
Neste percurso histórico, vimos que a região do norte da África,
pre foi um espaço
o Magrebe, sempre foi uma área cobiçada por muitos povos. A onde imperou o
posição estratégica atraiu a atenção de muitas civilizações. Por esse hibridismo cultural,
motivo, o Magrebe sempre foi um espaço onde imperou o hibridismo pelo Magrebe se
cultural, pelo Magrebe se entrecruzaram culturas, povos, línguas e entrecruzaram
religiosidades. culturas, povos,
línguas e religiosi-
dades.
O Magrebe é importante não somente para a História da
África, mas para a história da humanidade como um todo. O Magrebe marcou
profundamente a identidade romana, pois era seu oposto, o diferente. O Magrebe
também marcou a história da Península Ibérica, afinal o Estreito de Gibraltar
nunca foi uma barreira entre os dois continentes, foi por ele que passaram os
cartagineses para atacar Roma pelo norte, foi por ele também que desceram os
vândalos para dominar o norte da África, e finalmente foi por ele que árabes e
mouros islamizados subiram para dominar territórios visigodos.

Compreender a história do norte da África, do Magrebe, é fundamental para


perceber as profundas transformações histórias do continente africano.

87
História da África e dos Africanos: dos Primórdios ao Período Pré-Colonial

ReferÊncias Bibliográficas
DESANGES, J. Os protoberberes. In: MOKHTAR, Gamal (Ed.). História Geral
da África II. África Antiga. 2ª ed. rev. Brasília: Unesco, 2010.

GRANT, Michel. História de Roma. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1987.

HRBEK, Ivan. A África no contexto da história mundial. In: FASI, Mohammed El.
(Ed.). História Geral da África III. África do século VII ao XI. Brasília: Unesco,
2010.

KORMIKIARI, Maria Cristina N. Grupos indígenas berberes na Antiguidade: a


documentação textual e epigráfica. Revista de História. São Paulo, v. 145, 2001.

MAHJOUBI, A. O período romano e pós-romano na África do Norte. Parte I. O


período romano. In: MOKHTAR, Gamal (Ed.). História Geral da África II. África
Antiga. 2ª ed. rev. Brasília: Unesco, 2010.

SALAMA, P. Parte. De Roma ao Islã. In: MOKHTAR, Gamal (Ed.). História Geral
da África II. África Antiga. 2ª ed. rev. Brasília: Unesco, 2010.

WARMINGTON, B. H.. O período cartaginês. In: MOKHTAR, Gamal (Ed.).


História Geral da África II. África Antiga. 2ª ed. rev. Brasília: Unesco, 2010.

88
C APÍTULO 4

A África Negra Pré-Colonial

A partir da perspectiva do saber fazer, neste capítulo você terá os seguintes


objetivos de aprendizagem:

 Compreender a formação dos povos africanos subsaarianos.

 Analisar a constituição dos reinos de Ghana, Mali, Songhai, Monomopata,


Kongo.

 Iniciar a reflexão sobre os contatos da África negra com os mundos europeus.

 Debater o significado das religiosidades e da escravidão na África pré-colonial.


História da África e dos Africanos: dos Primórdios ao Período Pré-Colonial

90
Capítulo 4 A ÁFRICA NEGRA PRÉ-COLONIAL

Contextualização
Caros pós-graduandos, chegamos ao último capítulo desta disciplina. Nos
capítulos anteriores, estudamos a pré-história da África e procuramos abordar a
história da África a partir dos povos e civilizações que se formaram às margens do
rio Nilo, posteriormente discutimos a importância histórica do norte da África e dos
povos que por lá habitaram e construíram sua cultura.
Essa região deu
Neste capítulo vamos abordar a história dos povos da África negra origem a diversos
ou subsaariana. Essa região deu origem a diversos reinos e impérios reinos e impérios
e foi fundamental
e foi fundamental para a história do Brasil, pois foi de seus territórios
para a história
que vieram a maioria dos escravos para trabalharem nos canaviais do Brasil, pois foi
e nas fazendas de café e construírem a riqueza brasileira. Vieram de seus territó-
principalmente da costa ocidental da África, das regiões de Angola, do rios que vieram
golfo da Guiné e de Moçambique. a maioria dos
escravos para
trabalharem nos
Portanto, estudar a história dessa região da África é compreender
canaviais e nas
a própria constituição do brasileiro, pois por quase 350 anos os negros fazendas de café
foram desterrados para com sua mão-de-obra tornarem-se o principal e construírem a
sustentáculo da economia brasileira. riqueza brasileira.

Uma das principais regiões da África negra era o Sudão, não


Uma das princi-
confundir com o atual país do Sudão. A faixa sudanesa, tendo ao norte pais regiões da
a região semidesértica do Sahel e ao sul a floresta equatorial, é uma África negra era o
das regiões mais propícias à ocupação humana e ao desenvolvimento Sudão, não con-
da agricultura. Seu relevo é formado por planaltos e planícies, possui fundir com o atual
água farta através dos rios Níger, Senegal e seus afluentes. Foi país do Sudão.
nesse território que, entre o século VIII e XII, surgiram vários estados
estruturados e prósperos economicamente: Ghana, Mali, Songai.

Ao lado dos sudaneses surgiram os povos bantus. Esses últimos Ao lado dos su-
daneses surgiram
ocuparam a região da África oriental e setentrional, foram importantes
os povos bantus.
reinos como o do Monomopata e o do Kongo, e foram muito importantes
na formação do Brasil, pois dessa região recebemos grande parte dos escravos
que aportaram no litoral brasileiro. Portanto, neste capítulo vamos acompanhar
um pouco a trajetória desses povos.

O Reino de Ghana
Segundo Medeiros (2010, p. 159), o desenvolvimento dos vários reinos

91
História da África e dos Africanos: dos Primórdios ao Período Pré-Colonial

sudaneses foi facilitado pela introdução de novos instrumentos e técnicas.


O domínio do ferro e a utilização do cavalo e do camelo proporcionaram a
superioridade necessária para impor a dominação sobre as comunidades
de pastores e agricultores do Sahel. O ferro, por exemplo, possibilitou a
construção do poderio militar, a formação de exércitos e prática da caça e da
pesca.

Dessa forma, os reinos sudaneses, num primeiro momento,


Com o passar dos
mantiveram contato com as populações berberes do Sahel de
séculos os atritos
com tais populações origem branca, mas com o passar dos séculos os atritos com tais
provocaram o recuo populações provocaram o recuo dos agricultores negros, contudo
dos agricultores esse recuo foi estratégico para organizar melhor a resistência. Foi
negros, contudo esse na faixa de savana, entre o Sahel e a floresta equatorial, que os
recuo foi estratégicoreinos sudaneses se prepararam para enfrentar as intimidações
para organizar me-
provenientes do deserto. Essas pequenas comunidades do Sudão,
lhor a resistência.
através do gana, cobravam tributos pela travessia de mercadores
em suas terras. O domínio das rotas comerciais e os tributos delas advindos
proporcionaram lucro e desenvolvimento para o Reino de Ghana.

Não se deve confun- O Reino de Ghana estava localizado na costa ocidental da


dir esse reino com o África, em regiões compreendidas atualmente por países como o
atual país de Gana,
Mali e a Mauritânia. O reino de Ghana atingiu seu apogeu entre
distante quase 400
km do antigo reino de os séculos VII e XI, graças ao seu poderio econômico advindo do
Ghana. comércio de ouro. Não se deve confundir esse reino com o atual
país de Gana, distante quase 400 km do antigo reino de Ghana.

Embora não tivesse O reino de Ghana era habitado pelos grupos étnicos soninquês
ligação com o mar,
e saracolês, do grupo linguístico mandinga. A capital do reino era
tinha contato com o
Saara, o grande mar Kumbi Saleh, possuía cerca de 20000 moradores e era um dos
de areia, navegá- maiores entrepostos comerciais da África ocidental. Embora não
vel apenas pelos tivesse ligação com o mar, tinha contato com o Saara, o grande mar
tuaregues, tribos de areia, navegável apenas pelos tuaregues, tribos berberes com
berberes com seus seus dromedários.
dromedários.

As primeiras informações que temos desse reino surgiram no


século VIII, através dos textos árabes, a partir das diversas incursões que os
berberes islamizados, habitantes da região do Magrebe, fizeram ao sul do Saara.

92
Capítulo 4 A ÁFRICA NEGRA PRÉ-COLONIAL

Segundo Medeiros (2010, p. 147), durante muito tempo essas populações da


África negra foram analisadas e observadas pelos “óculos do Islã”, pois a maioria
das fontes escritas sobre o Reino de Ghana é proveniente do período em que os
árabes dominaram o norte da África.

Figura 17 - Principais reinos e impérios da África pré-colonial

FONTE: Disponível em: <http://exploringafrica.matrix.msu.edu/


images/africa_kingdoms.jpg>. Acesso em: 16 set. 2012.

As informações sobre esse reino são escassas, mas tudo leva a crer que
as condições ambientais e técnicas favoreceram a ocupação dessa região, a
produção agrícola das primeiras comunidades e a formação dos reinos. Além das
condições favoráveis à atividade agrícola e pastoris, havia também uma grande
concentração de minas de ouro. Por isso, esse reino ficou conhecido como o país
do ouro.

Segundo Mário Maestri (1988, p. 17),

O tráfico de ouro através do Saara era bastante antigo. Em


torno de 681 de nossa era, a expansão muçulmana chegou
às costas atlânticas do Marrocos. Sabedores da existência do
comércio com o ouro, os mercadores arabizados começaram
a enviar expedições mercantis para o sul. Elas levavam o sal
e produtos mediterrâneos para serem trocados pelo precioso
metal.

93
História da África e dos Africanos: dos Primórdios ao Período Pré-Colonial

Sua força e prestígio Esse reino ganhou esse nome devido à sua forma de
iniciais seriam devi- organização social. O nome, gana, quer dizer “senhor da guerra”, e
dos ao fato de que era o título utilizado pelo governante do reino. “Sua força e prestígio
ele desempenhava
iniciais seriam devidos ao fato de que ele desempenhava também
também o papel de
mestre do ouro (MA- o papel de mestre do ouro” (MAESTRI, 1988, 19). A sua função era
ESTRI, 1988, 19). dividir as áreas de mineração para os clãs e receber eles o tributo
em ouro.

Toda a formação Toda a formação social do antigo Reino de Ghana era baseada
social do antigo na família clânica e patriarcal, que abrigava o patriarca, os filhos
Reino de Ghana era casados e solteiros e também os escravos. Segundo Mario Maestri,
baseada na família essas formações aldeão-familiares eram presididas por chefarias
clânica e patriarcal. que também recebiam a designação de sobas, ou seja, eram zonas
de influência de um chefe, uma determinada circunscrição política e
geográfica que estava sob o domínio de um patriarca. As famílias se ocupavam
da agricultura, do artesanato, da caça, pesca e extração mineral. A posse da terra
era coletiva. Nesse modelo familiar, o patriarca recebia tributos dos filhos e dos
demais membros do clã, administrava os bens e distribuía as esposas e dotes
familiares e, muitas vezes, estava livre dos afazeres produtivos (MAESTRI, 1988,
p. 18)

No Brasil há poucos centros de pesquisa sobre a África, um dos


mais importante é o CEAO (Centro de Estudos Afro-Orientais). O
CEAO está vinculado à Universidade Federal da Bahia e se dedica
à “pesquisa e ação comunitária na área dos estudos afro-brasileiros
e das ações afirmativas em favor das populações afro-descendentes,
bem como na área dos estudos das línguas e civilizações africanas e
asiáticas”. Acesse: <www.ceao.ufba.br>.

Segundo Alberto da Costa e Silva, Ghana não era um


O estado de Ghana
império no sentido de haver contornos geográficos precisos e uma
era, sobretudo, uma
zona de influência. administração centralizada. O estado de Ghana era, sobretudo, uma
zona de influência. “Nele havia povos que respondiam diretamente
ao rei e outros que, sujeitos a seus sobas tradicionais ou a seus conselhos de
anciães, apenas se sabiam ligados [...] por vínculos espirituais, pelo dever militar
e pelo pagamento de tributos”. Dessa forma, as relações entre o gana seus
“súditos” era muito mais pessoal do que territorial (SILVA, 1992, p. 247).

Como dissemos anteriormente, o reino de Ghana muitas vezes foi visto

94
Capítulo 4 A ÁFRICA NEGRA PRÉ-COLONIAL

apenas com os “óculos do Islã”. A seguir vamos analisar as descrições de al-Bakri,


historiador e geógrafo árabe cordovês que viveu entre 1014 e 1094. Observe
como al-Bakri descreve o reino de Ghana.

O reino de Gana está povoado pelos povos de Soninke, que


chamam sua terra de Wagadugu ou Wagadu. O nome Gana
é o título do rei que governa aquele império. O Estado de
Soninke é forte, e seu rei controla 200000 soldados, 40000
dos quais arqueiros que protegem as rotas de comércio de
Gana.

O poder do rei de Gana provém do monopólio da enorme


quantidade de ouro produzida em seu reino. Esta riqueza
permite aos de Soninke construir e manter enormes cidades,
além de uma capital com uma população estimada entre
15000 e 20000 habitantes. Soninke também usa sua riqueza
para desenvolver outras atividades econômicas, tais como a
tecelagem, a ferraria e a produção agrícola (AL-BAKRI apud
COSTA, 2012).

A capital de
Pela descrição de al-Bakri, a grande riqueza de Ghana era Gana é chamada
advinda da mineração aurífera. Essa riqueza teria contribuído para Kumbi Saleh. A
formação de cidades e a organização de exércitos. Sigamos o relato cidade consiste
de al-Bakri para observarmos sua descrição sobre a capital de Ghana, na reunião de
Kumbi Saleh. duas cidades que
se unem em uma
A capital de Gana é chamada Kumbi Saleh. A planície, a maior
cidade consiste na reunião de duas cidades que delas habitada
se unem em uma planície, a maior delas habitada por muçulmanos e
por muçulmanos e com doze mesquitas. Kumbi com doze mesqui-
Saleh possui também um grande número de tas. Kumbi Saleh
juízes e de homens instruídos. Ao redor de ambas
as cidades há poços de água doce e potável, e possui também
próximos a eles, terras cultivadas com vegetais. um grande núme-
ro de juízes e de
A cidade habitada pelo rei está a seis milhas da homens instruí-
outra cidade (muçulmana) e é chamada de Al- dos. Ao redor de
Ghana. A área entre as duas cidades é coberta
com casas feitas de pedra e de madeira. O rei tem ambas as cidades
um palácio e choças de formato cônico, cercadas há poços de água
por paredes. Na cidade do rei, não muito longe doce e potável, e
da corte de justiça real, há uma mesquita. Os próximos a eles,
muçulmanos que vêm em missões ao rei podem terras cultivadas
rezar ali. Há ainda uma grande avenida, que
cruza a cidade de leste a oeste (AL-BAKRI apud com vegetais.
COSTA, 2012).

As casas descritas
As informações que al-Bakri relata já nos podem dar uma noção por al-Bakri ainda
da islamização pela qual o Reino de Ghana estava passando e o lugar podem ser vistas
que os muçulmanos ocupavam nos domínios do gana. Por esse relato, atualmente em
temos a impressão que os muçulmanos foram acolhidos pacificamente várias regiões do
no reino. As casas descritas por al-Bakri ainda podem ser vistas Mali, como pode-
mos ver na figura
atualmente em várias regiões do Mali, como podemos ver na figura
abaixo.
abaixo.
95
História da África e dos Africanos: dos Primórdios ao Período Pré-Colonial

Figura 18 - Habitações descritas por al-Bakri ainda


podem ser vistas na vila de Songo no Mali

FONTE: Disponível em: <http://sacredsites.com/africa/mali/images/


dogon-village-500.jpg>. Acesso em: 16 set. 2012.

Em todo o relato de al-Bakri, o que mais impressiona é pompa da corte de


Ghana e de seu soberano.

Atrás do rei ficam dez O rei adorna a si mesmo como se fosse uma mulher, usando
colares ao redor do pescoço e braceletes em seus antebraços.
pajens segurando Quando se senta diante do povo, fica sobre uma elevação
escudos e espadas, decorada com ouro e se veste com um turbante de pano fino.
ambas decoradas A corte de apelação fica em um pavilhão abobadado, com
com ouro. dez cavalos estacionados e cobertos com um tecido bordado
com ouro. Atrás do rei ficam dez pajens segurando escudos e
espadas, ambas decoradas com ouro.

À sua direita ficam os filhos dos vassalos do país do rei, vestindo


Os cães usam ao esplêndidas roupas e com os cabelos trançados com ouro.
redor de seus pesco- O governador da cidade senta-se na terra diante do rei e os
ços colares de ouro ministros ficam do mesmo modo, sentados ao redor. Na porta
do pavilhão estão cães de excelente pedigree e que dificilmente
e de prata cheios de saem do lugar de onde o rei está, pois estão ali para protegê-lo.
sinos com o mesmo Os cães usam ao redor de seus pescoços colares de ouro e de
metal. prata cheios de sinos com o mesmo metal.

A audiência é anunciada pela batida em um longo cilindro oco


que se chama daba. Quando os povos que professam a mesma
religião se aproximam do rei, caem de joelhos e polvilham suas
cabeças com pó, uma forma de mostrar respeito por ele. Quanto
aos muçulmanos, eles cumprimentam-no somente batendo suas
mãos (AL-BAKRI apud COSTA, 2012).

Segundo a descrição acima, o reino de Ghana era poderoso e com riquezas,


já que os cães usavam coleiras de ouro. Devemos tomar esse depoimento com

96
Capítulo 4 A ÁFRICA NEGRA PRÉ-COLONIAL

cuidado, pois os relatos dos viajantes árabes devem ser relativizados e não
tomados como verdade absoluta. Mas o que podemos aferir é que a realeza de
Ghana possuía elementos que fazia com que os súditos a venerassem e nutrissem
respeito pela autoridade. Reverência de que apenas os islâmicos eram poupados.
“Tudo isso contribui para fazer da monarquia uma instituição sagrada e digna de
reverência” (MEDEIROS, 2010, p. 162). O aspecto religioso da monarquia de
Ghana pode ser visto na descrição dos funerais reais.

Ao redor da cidade do rei há choupanas abobadadas e


bosques onde vivem os feiticeiros, homens encarregados de
seus cultos religiosos. Ali se encontram também os ídolos e
os túmulos dos reis. Estes bosques são guardados: ninguém
pode entrar ou descobrir seus recipientes. As prisões dos
vivos também estão ali, e se alguém é aprisionado lá, nunca
mais se ouve falar dele.

Quando o rei morre, constroem uma enorme abóbada de


madeira no lugar do enterro. Então trazem-no em uma cama
levemente coberta e colocam-no dentro da abóbada. A seu
lado colocam seus ornamentos, suas armas, e os recipientes
que ele usava para comer e beber. A serpente é a guardiã do
Estado e vive em uma caverna que lhe é devotada. Quando
o rei morre, seus possíveis sucessores se reúnem em uma
assembleia, e a serpente é trazida para picar um deles com
seu focinho. Essa pessoa é então chamada para ser o novo rei
(AL-BAKRI apud COSTA, 2012).

Os reis de Ghana construíam a sua autoridade através do universo mítico


e religioso de seu povo, mas é inegável que a afirmação da soberania também
advinha do poder econômico que a tributação ocasionava. Veja como al-Bakri
descreve o recolhimento de tributos.

O rei cobra o imposto de um dinar de ouro para cada carga de


asno com sal que entra em seu país, e dois dinares de ouro
para cada carga de sal que sai.

Os impostos são cobrados também pelo cobre e qualquer


outra mercadoria que entra e sai do Império. O melhor ouro
do país vem de Ghiaru, uma cidade distante da capital 18
dias de viagem. Todas as peças de ouro que são nativas e
encontradas nas minas do Império pertencem ao soberano,
embora ele deixe o povo ter um pouco de ouro em pó,
isso certamente com o conhecimento de todos. Sem essa
precaução, o ouro não só se tornaria abundante como
praticamente perderia seu valor (AL-BAKRI apud COSTA,
2012).

Os excertos de al-Bakri devem ser lidos com cautela, pois al-bakri, como
grande parte de seus colegas cronistas almorávidas, não tiveram acesso direto
aos locais que descrevem, mas basearam suas narrativas em depoimentos
orais de vários viajantes e mercadores árabes que cruzavam o Saara em busca
comércios rentáveis.

97
História da África e dos Africanos: dos Primórdios ao Período Pré-Colonial

Conheça a Revista Afro-Ásia. Uma das melhores publicações na


área de africanidades. Acesse: <http://www.afroasia.ufba.br>.

A primeira questão que podemos discutir é a própria forma de escolha do


soberano, ou seja, as práticas religiosas tradicionais animistas indicam o relativo
alcance do Islã nos reinos sudaneses. Outro aspecto ainda mais importante era a
formação social e econômica do reino e a centralização da tributação.

É importante notar que passava pela realeza o controle do comércio aurífero.


O rei de Ghana concentrava toda a produção de pepitas de ouro para também
controlar as cotações desse produto. O soberano mantinha o monopólio do
produto e organizava a economia através da troca com produtos inexistentes em
seus domínios, sal e tecidos por exemplo.
Como vimos na
descrição de al-Bakri,
Como vimos na descrição de al-Bakri, o comércio e a tributação
o comércio e a tri-
butação estavam na estavam na base da prosperidade do Reino de Ghana. A capital
base da prosperidade do reino estava na rota de tribos comerciantes berberes e dos
do Reino de Ghana. comerciantes muçulmanos que aos poucos dominavam a região do
norte da África. O reino de Ghana estava numa rota comercial que
unia as cidades de Sidjilmassa, no atual Marrocos, e Audaghost,
O reino de Ghana
atual Mauritânia. Segundo Mario Maestri (1988, p. 20), o soberano
estava numa rota co-
mercial que unia as de Ghana sempre recebia os tributos dos produtos que passavam
cidades de Sidjilmas- pelo reino, fosse o ouro, o sal, tecidos e outros, era ele quem recebia
sa, no atual Marro- “as pepitas que os seus súditos encontravam quando mineravam
cos, e Audaghost, ouro em pó nos cursos d´água do reino. As pepitas eram tidas como
atual Mauritânia. portadoras de malefício. Só o ghana podia sobrepor-se às malignas
influências que delas provinham”.

Veja como Medeiros (2010) descreve a estrutura tributária do Reino de


Ghana.

Os soberanos de Gana exerceram um estrito e eficaz


controle neste importante âmbito, particularmente no
tocante aos lugares de proveniência do ouro e às condições
da sua aquisição. [...] O soberano de Gana, esforçando-se
para manter em mãos os meios das transações econômicas
ao Sul do Saara, pratica uma inteligente política: ele cobra
taxas sobre as operações, na entrada e na saída das
mercadorias do seu território; os mercadores devem pagar
duas vezes pelo sal: um dinar na entrada e dois dinares
na saída. Gana desempenha assim o papel de plataforma

98
Capítulo 4 A ÁFRICA NEGRA PRÉ-COLONIAL

giratória para a distribuição deste produto vital “O ouro, tão


que é o sal para a África Subsaariana. necessário à eco-
nomia monetária
Para Alberto da Costa e Silva, o maior africanista brasileiro, o da Europa e do
Oriente Próximo.
sucesso do reino de Ghana estava no controle do comércio do ouro
O sal, indispensá-
e do sal. “O ouro, tão necessário à economia monetária da Europa e vel às populações
do Oriente Próximo. O sal, indispensável às populações sudanesas e sudanesas e
silvícolas. No ouro e no sal assentar-se-ia a força de Ghana” (SILVA, silvícolas. No ouro
1992, p. 244). e no sal assentar-
-se-ia a força de
Ghana” (SILVA,
Nesse contexto, os soberanos de Ghana contavam com os
1992, p. 244).
preciosos serviços dos muçulmanos, que eram letrados e serviam de
intérpretes, ministros e tesoureiros do reino. Diante da competência
e habilidade dos muçulmanos, o soberano de Ghana lhes concede o Diante da compe-
direito de praticar livremente sua religiosidade nos domínios do reino. tência e habilidade
dos muçulmanos,
Gana, assim como Gao, possui ao lado da cidade o soberano de
do rei uma cidade onde habitam os muçulmanos, Ghana lhes con-
com doze mesquitas, cada qual com o seu imame, cede o direito de
o seu muezim, o seu leitor. Consultores jurídicos praticar livremente
e eruditos vivem igualmente nesta cidade. Enfim,
os muçulmanos não são forçados aos costumes
sua religiosidade
incompatíveis com as suas convicções religiosas nos domínios do
(MEDEIROS, 2010, p. 164). reino.

O Reino de Ghana atingiu seu apogeu no século XI. Nesse período, o exército
possuía cerca de 200.000 soldados, dos quais 40.000 eram arqueiros.
Estima-se que produção de ouro do Sudão fosse a principal fonte de Estima-se que
abastecimento do Mediterrâneo, chegando a cifras de 9 toneladas por produção de ouro
do Sudão fosse
ano.
a principal fonte
de abastecimento
O reino de Ghana entrou em crise quando o Islã começou sua do Mediterrâneo,
expansão nas regiões do Sudão. No entanto, Ghana ofereceu uma chegando a cifras
forte resistência até a rendição, que segundo Nei Lopes ocorreu de 9 toneladas por
por volta de 1076, quando Ghana caiu sob o domínio dos árabes ano.
almorávidas, sendo a cidade de Kumbi Saleh invadida e saqueada (2004, p. 292).

99
História da África e dos Africanos: dos Primórdios ao Período Pré-Colonial

O domínio almorávida estava estabelecido desde as regiões dos atuais


Portugal e Espanha até a capital de Ghana, Kumbi Saleh.

Figura 19 - Os domínios almorávidas

FONTE: Disponível em: <http://www.ricardocosta.com/sites/default/


files/imagens/africa/africa34.jpg>. Acesso em: 16 set. 2012.

Aos poucos, Ghana foi caindo no isolamento, a maioria dos comerciantes


de ouro e sal desviava de suas rotas para as cidades de Tombuktu, Gao e
Djenne. As populações de Ghana passaram por um processo de islamização,
embora nunca completo. Muitos adeptos do Islã ainda continuavam com
suas práticas religiosas tradicionais, construindo uma religiosidade ricamente
sincrética.

Atividades de Estudos:

1) Sobre o reino de Ghana, descreva como era o relacionamento de


Ghana com os mulçumanos do reino.
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100
Capítulo 4 A ÁFRICA NEGRA PRÉ-COLONIAL

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2) Descreva como era a organização política de Ghana, assinalando


a sua singularidade em relação à nossa concepção de reino e
império.
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3) Como ocorreu o declínio e dissolução do reino de Ghana?


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O Império do Mali
O Império do Mali surgiu sob o pano de fundo do declínio de Ghana. Não se
tem muitas notícias sobre o império de Mali. O que sabemos é que o senhor de
uma chefaria negra, chamado Baramendana, na atual república de O Império do Mali
Guiné, se converteu ao islamismo devido uma promessa que havia surgiu sob o pano
feito a um muçulmano. Isso ocorreu por volta do século XII. O chefe de fundo do declí-
africano, através de uma religiosidade profundamente marcada por nio de Ghana.
aspectos ligados aos elementos da natureza, não conseguia “chamar”
a chuvas necessárias para regar a agricultura de seu clã, então recebeu ajuda de
um clérigo islâmico. Assim que as águas caíram sobre as terras de sua tribo, o
chefe africano converteu-se ao Islã, assim como havia prometido. Dessa forma,
o Islamismo adentrou aos domínios do Mali e fez vários adeptos, mas sempre
convivendo com as religiões tradicionais, muitas vezes sofrendo influência delas
(MAESTRI, 1988, p. 25).

101
História da África e dos Africanos: dos Primórdios ao Período Pré-Colonial

Conheça o Centro de Estudos Afro-Asiáticos – CEAA,


vinculado à Universidade Cândido Mendes – RJ. <http://www.ucam.
edu.br/ceaa>. Acesse também a Revista Estudos Afro-Asiáticos,
publicada desde 1978. <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_
serial&pid=0101-546X&lng=pt&nrm=iso>.

Os habitantes do Mali Do fato relatado acima, até cerca de um século e meio depois
eram conhecidos não temos informações sobre a região. Ao que tudo indica, nesse
como malinqueses período reinava sobre o Mali a dinastia dos keitas. Este pequeno
ou mandingas. estado era vassalo de seus vizinhos sossos, cujo soberano era
Sumanguru Kante. Os habitantes do Mali eram conhecidos como
malinqueses ou mandingas.

Segundo a tradição oral, nesse período o senhor do Mali era o keita Nare
Fa Maghon. Quando ele morreu, assumiu o trono seu filho primogênito Dankaron
Touman, mas Touman não foi o grande construtor do Império do Mali e sim seu
irmão, o famoso general Sundiata.

Figura 20 - Mesquita de Djenné, construída em 1228, e comerciantes nos seus arredores

FONTE: Disponível em: <http://www.alovelyworld.com/webmali/


gimage/mali106.jpg>. Acesso em: 16 set. 2012.

102
Capítulo 4 A ÁFRICA NEGRA PRÉ-COLONIAL

Sundiata foi a figura mais marcante da história do Império do Mali


Segundo a tradi-
e do Sudão ocidental como um todo, ainda hoje os povos mandingas ção oral, quando
oferecem cultos em sua memória. Segundo a tradição oral, quando seu pai morreu e
seu pai morreu e seu irmão Touman assumiu o trono, Sundiata tinha seu irmão Touman
apenas sete anos e ainda possui uma deficiência nas duas pernas que assumiu o trono,
o impediam de caminhar. Mas a partir dessa idade ele curiosamente Sundiata tinha
apenas sete anos
começou a se recuperar fisicamente e a tornar-se um prestigiado
e ainda possui
caçador. uma deficiência
nas duas pernas
As disputas entre os chefes tribais que surgiram após Sundiata que o impediam
ganhar a admiração popular o levaram a fugir com sua mãe, irmã e o de caminhar.
irmão mais jovem, Mande Bory, para um local distante, pois temia por
sua vida. Sundiata encontrou asilo junto a corte de um rei de uma tribo tounkara
e tornou-se seu chefe militar. Enquanto isso, no Mali, as tribos mandingas se
rebelavam contra o domínio dos sossos e chamavam Sundiata para combater
junto a eles e a retomar o trono.

As primeiras batalhas que os mandingas travaram foram duras derrotas. Mas


finalmente, no ano de 1235, na cidade de Kerina, Sundiata com seus exércitos
derrotou a Sumanguru Kante. Sundiata Keita tornou-se soberano sobre todos os
sossos e convidou todos os governantes dos clãs mandingas (também conhecidos
como mansas), para estarem sob sua liderança, tornando-se o grande Mansa.

Figura 21 - Mapa catalão representando o domínio do soberano Mansa, c. 1375

FONTE: Disponível em: <http://exhibitions.nypl.org/africansindianocean/img/


Gallery%20Breakdown/Cairo/large/12_44.jpg>. Acesso em: 15 set. 2012.

Dessa forma, Sundiata tornou-se o senhor absoluto da região. Após esse

103
História da África e dos Africanos: dos Primórdios ao Período Pré-Colonial

grande evento militar, Sundiata reuniu uma assembleia geral para


O deslocamento do
centro de gravidade lançar as bases do novo império. Dividiu as províncias e elegeu
do império para as governadores. Nesse período Sundiata teria se convertido ao
regiões meridionais islamismo, enquanto a maioria da população ainda continuava as
foi para que os keitas crenças tradicionais. Sundiata estabeleceu a capital do império em
se prevenissem dos Niani, sul da antiga capital de Ghana. O deslocamento do centro
ataques de nômades
de gravidade do império para as regiões meridionais foi para que
do deserto.
os keitas se prevenissem dos ataques de nômades do deserto.
Sundiata morreu por volta de 1255. Mas, após seu reinado, vários soberanos
ainda continuaram usando o título de mansa.

Após a morte de Após a morte de Sundiata, seu filho Mansa Ulé governou de
Sundiata, seu filho 1255 até 1270. Depois de Mansa Ulé ainda reinaram Abubakar I,
Mansa Ulé governou Sakura, Abubakar II e o famoso Mansa Kanku Mussa, que teria feito
de 1255 até 1270.
notório o Mali em toda a África e Oriente Próximo, através de sua
Depois de Mansa
Ulé ainda reinaram peregrinação a Meca em 1324.
Abubakar I, Sakura,
Abubakar II e o Toda a riqueza comercial do Mali ficou comprometida a partir da
famoso Mansa Kanku viagem do mansa Kanku Mussa à Meca entre 1307 e 1332 . Acredita-
Mussa, que teria feito se que ele levou consigo cerca de 14000 servos e de 10 a 12 toneladas
notório o Mali em
de ouro. Por onde passava, mansa Mussa era recebido com honras
toda a África e Orien-
te Próximo, através e comprava casas e terrenos a fim de abrigar os peregrinos negros.
de sua peregrinação Ao retornar para seus territórios, trouxe consigo um grande número
a Meca em 1324. de sábios comerciantes clérigos muçulmanos. É nesse momento que
Tombuktu tornou-se um importante centro cultural.

Figura 22 - Mansa Mussa de passagem pelo Cairo, por


ocasião de sua peregrinação à Meca em 1324

FONTE: Disponível em: <http://exhibitions.nypl.org/africansindianocean/img/


Gallery%20Breakdown/Cairo/large/488929.jpg>. Acesso em: 15 set. 2012.
104
Capítulo 4 A ÁFRICA NEGRA PRÉ-COLONIAL

Um dos cronistas árabes mais importantes deste período, Ibn Batuta (1307-
1377), esteve no Mali depois do falecimento de Mansa Musa, entre 1352 e1353.
Vejamos sua descrição da riqueza do palácio de Mali.

O sultão tem uma cúpula elevada, cuja porta se encontra no


interior de seu palácio e onde ele se senta com frequência.
Tem do lado das audiências três janelas em arco, de madeira,
cobertas de placas de prata, e por baixo delas três outras
guarnecidas de lâminas de ouro ou de prata dourada. Estas
janelas têm cortinados de lã que são levantados no dia da
audiência do sultão na cúpula [...]

Da porta do castelo saem trezentos escravos, uns com arcos


na mão, outros com pequenas lanças e escudos. Uns estão
sentados, outros de pé. À chegada do rei, três escravos
precipitam-se para chamar o seu lugar-tenente. Chegam os
comandantes, assim como o pregador, os sábios juristas,
que se sentam à esquerda e à direita, diante dos homens
de armas. À porta, de pé, o intérprete dougha em grande
aparato.

Está soberbamente vestido, em seda fina. O seu turbante


está ornado de franjas, que estas gentes sabem fazer
admiravelmente. Tem um sabre a tiracolo, cuja bainha é de
ouro. Nos pés botas e esporas [...] Tem na mão duas lanças
curtas. Uma é de prata, a outra é de ouro. As pontas são de
ferro. Os militares, o governador, os pajens ou eunucos e os
mesufitas (mercadores berberes e sarakholés) estão sentados
no exterior do lugar das audiências, numa longa rua, vasta e
com árvores.

Cada comandante tem diante de si os seus homens, com


as suas lanças, os seus arcos, os seus tambores, as suas
trompas, enfim, com os seus instrumentos de música feitos
com caniços e cabaças, em que se bate com baquetas e que
dão um som agradável (as trompas eram feitas de marfim
das presas de elefantes). Cada um dos comandantes tem
sua aljava às costas. Tem o seu arco à mão e anda a cavalo
(...). No interior da sala de audiências e nas janelas vê-se um
homem de pé. Quem desejar falar ao rei dirige-se primeiro
ao dougha. Este fala ao dito personagem que está de pé e
este último ao soberano.

Instala-se então um grande estrado com três degraus debaixo


de uma árvore. É o pempi. (o pempi era uma grande cadeira
de ébano, parecida com um trono, com as medidas adequadas
a uma personagem alta e gorda. De cada lado, uma defesa de
elefante a cobri-lo, uma em frente da outra). É coberto de seda
e guarnecido de almofadas. Por cima instala-se o guarda-sol,
que parece uma cúpula de seda, no alto da qual se vê uma
ave do tamanho de um gavião.

O rei sai por uma porta aberta num ângulo do castelo. Tem
o seu arco à mão e a aljava às costas. Traz na cabeça um
solidéu de ouro, fixado por uma pequena faixa também de
ouro, cujas extremidades são pontiagudas como facas e com
mais de um palmo de comprimento. Na maioria das vezes,
traz uma túnica vermelha e felpuda, feita com tecidos de

105
História da África e dos Africanos: dos Primórdios ao Período Pré-Colonial

fabricação europeia chamados mothanfas. Diante dele saem


os cantores, tendo na mão um kanabir de ouro e de prata (O
kanabir era uma calhandra, isto é, uma espécie de cotovia,
sabiá-do-campo).

Atrás dele encontram-se cerca de trezentos escravos


armados. O soberano caminha lentamente. Aproxima-se
devagar e para mesmo de vez em quando. Chegado ao pempi,
deixa de caminhar e olha para os assistentes. Em seguida,
sobe lentamente o estrado, como o pregador sobe ao púlpito.
Uma vez sentado, tocam-se os tambores e fazem-se soar as
trompas e as trombetas (IBN BATUTA apud COSTA, 2012).

A estrutura social no O império do Mali usou as mesmas bases econômicas de


Mali era fundamen-
Ghana. A estrutura social no Mali era fundamentada na organização
tada na organização
familiar. familiar. As comunidades africanas e os comerciantes de ouro, sal e
escravos tinham que pagar tributos ao soberano de Mali. A extensão
geográfica e as fronteiras étnicas e culturais de Mali também eram
Ghana comerciali- superiores às de Ghana.
zava com o sul do
Marrocos e Mali Ghana comercializava com o sul do Marrocos e Mali continuou
continuou esse
esse comércio, porém estabeleceu também relações com a Líbia e o
comércio, porém
estabeleceu também Egito. Esse comércio gerou duas novas cidades mercantis: Djenne e
relações com a Líbia Tombuktu. Tombuktu tornou-se um dos principais centros comerciais
e o Egito. do Sudão ocidental, tinha cerca de 25000 habitantes, 26 alfaiatarias
com até 200 aprendizes cada e 150 escolas alcoronistas (MAESTRI,
1988, p. 29).

Tombuktu tornou-se A partir de 1400, Mali entrou em decadência, seus territórios


um dos principais foram invadidos e saqueados. Nesse contexto, Mali sofreu forte
centros comerciais pressão do reino de Songai ou Gao. Ao final do século XVII, não restava
do Sudão ocidental. quase nada do poder de Mali.

Conheça também o Centro de Estudos Africanos (CEA),


criado em 1965 na Universidade de São Paulo. O CEA publica
a Revista África: Revista do Centro de Estudos Africanos da
USP, desde 1978. Acesse e conheça: <http://www.fflch.usp.br/cea/
mostrarevista.php>.

Segundo Mario Mestri, a partir das fontes orais africanas e escritas


muçulmanas e portuguesas, podemos ter uma ideia de como era a organização
social do império do Mali. Assim como em Ghana, o império do Mali baseou sua

106
Capítulo 4 A ÁFRICA NEGRA PRÉ-COLONIAL

organização através do pagamento de tributos. A classe dominante era unida por


laços clânicos e sanguíneos e aumentava ainda mais o seu poder através da
extração do excedente produtivo sobre a forma de tributo. Os agricultores tinham
que pagar o dízimo de toda a sua produtividade. O tributo era recolhido quando
eles levavam seus produtos para vender nos mercados. E dali era levado para as
redes administrativas.

Os senhores de Mali tributavam suas comunidades para a Os senhores de


formação do império. Os artesãos, os camponeses e trabalhadores Mali tributavam
suas comunidades
domésticos sofriam uma servidão pessoal, pois deviam tributos
para a formação
ao império. Cada um dava daquilo que produzia, a família de um do império.
ferreiro, por exemplo, contribuía com 100 flechas todos os anos, os
pescadores tributavam em forma de peixe seco e os camponeses
através dos produtos de suas terras. O principal produto comercial Embora a
do Mali era o ouro, mas o sal também tinha um importante lugar na religião tradicional
economia mandinga. persistisse entre
as comunidades
O papel do Islã no império do Mali foi muito relevante. Embora aldeãs, a maioria
dos funcionários
a religião tradicional persistisse entre as comunidades aldeãs, a
do império era
maioria dos funcionários do império era convertida e, por isso, letrada. convertida e, por
O que sem dúvida facilitava o controle do comércio e dos assuntos isso, letrada.
administrativos.

Figura 23 - Universidade de Sankore, Tombuctu, séc. XII

FONTE: Disponível em: <http://2.bp.blogspot.com/-8sEEGogxdso/


UAjK8o2DBeI/AAAAAAAAAoM/ac1TqZ9t1Uc/s1600/Mezquita+de+Tombuctu-
+Mal%C3%AD.jpg>. Acesso em: 16 set. 2012.

107
História da África e dos Africanos: dos Primórdios ao Período Pré-Colonial

Figura 24 - Mesquita de Bandiagara, no Mali, séc. XII

FONTE: Disponível em: <http://i.images.cdn.fotopedia.com/dc0k3gvt5gp1g-YsEZij1gBrM-


hd/World_Heritage_Sites/Africa/West_Africa/Mali/Cliff_of_Bandiagara_Land_of_the_
Dogons/Mud_Brick_Mosque_Bandiagara_Escarpment.jpg>. Acesso em: 16 set. 2012.

Atividades de Estudos:

1) O império de Mali, assim como Ghana, tinha um sistema tributário


que sustentava a estrutura administrativa. Descreva como ocorria
esse processo.
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2) A conversão do soberano Mansa acarretou a sua viagem à cidade


sagrada de Meca. Como podemos avaliar o significado dessa
viagem?
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108
Capítulo 4 A ÁFRICA NEGRA PRÉ-COLONIAL

O Império de Songai
O império de Songai foi o último grande reino a existir nas áreas O império de
que antes se constituíram os reinos de Ghana e do Mali. com Songai Songai foi o último
se interrompeu um processo de ascensão das civilizações negras na grande reino a
África ocidental. A estrutura do reino de Songai era muito parecida com existir nas áreas
os reinos anteriores, baseava-se no comércio e na tributação. que antes se
constituíram os
reinos de Ghana e
As origens do Império Songai são desconhecidas. As poucas do Mali.
informações dão conta de populações songais que viviam às margens
do rio Níger e eram divididas em dois grupos, os sorkos, que eram caçadores,
e os gous, que eram pescadores. Segundo a tradição mítica songai, o império
teria surgido a partir do nascimento de um feiticeiro chamado Faran Makan
Bote. Ele teria nascido a partir da união de um caçador sorko e de uma “mãe-
fada ligada aos espíritos das águas”. Makan Bote conseguiu unificar os caçadores
e os pescadores e ainda cumpria a função de sacerdote frente aos camponeses.
O Kanta, como era conhecido o sacerdote, era prestigiado por possuir poderes
mágicos. Segundo o mito, por volta do ano 500 teriam chegado às terras do
Kúkya, afluente do Níger, povos berberes que lutaram contra um terrível peixe-
feiticeiro, que era descendente de Makan Bote, e o príncipe berbere Za Aliamen
o teria vencido e libertado os pescadores e camponeses do terror imposto pelo
monstro. A partir desse momento, iniciou-se uma dinastia dia que duraria até 1335
(MAESTRI, 1988, p. 33).

Próximo ao ano 1000, o soberano Diá Kossoi, 15º na sucessão Gao era uma
dinástica que se iniciou com Za Aliamen, construiu em Gao a capital importante cidade
para o Império e foi o primeiro rei a aderir ao Islã. Gao era uma mercantil e chega-
va a competir com
importante cidade mercantil e chegava a competir com a cidade de
a cidade de Kumbi
Kumbi Saleh, capital de Império Mali. Gao tinha uma importância Saleh, capital de
capital para o império Songai, pois era um ponto de confluência das Império Mali.
rotas caravaneiras que cortavam o Saara.

Assim como o reino de Ghana, o soberano de Songai não vivia em Gao. A


capital era destinada ao comércio e era, portanto um foco de mercadores islâmicos
e islamizados. Além do comércio aurífero, o sal era um dos produtos Os príncipes
mais rentáveis no comércio que se realizava pelo rio Níger, por isso de Songai se
havia um grande cuidado dos pescadores songais para controlar esse tornaram vassalos
sistema de trocas. de Mali, tendo
que lutar como
soldados e oficiais
No século XIII, Songai foi dominado pelo soberano de Mali. Os
nas fileiras dos
príncipes de Songai se tornaram vassalos de Mali, tendo que lutar exércitos mandin-
como soldados e oficiais nas fileiras dos exércitos mandingas. Todavia, gas.

109
História da África e dos Africanos: dos Primórdios ao Período Pré-Colonial

um dos príncipes de Songai conseguiu escapar e voltou para libertar seu povo.
Aos poucos esse soberano foi reconquistando os territórios e fundou uma nova
dinastia, que ficou conhecida como Dinastia Soni.

Durante o século XV, Durante o século XV, o império do Mali entrou em decadência
o império do Mali e Ali, o Grande, da dinastia Soni, conquistou parte dos territórios
entrou em decadên-
mandingas, inclusive a cidade de Djenne, e formou o maior império
cia e Ali, o Grande,
da dinastia Soni, da faixa sudanesa. Ali, o Grande, estabeleceu governadores em
conquistou parte dos diversas partes do imenso território, construiu importantes obras
territórios mandingas. públicas, como canais de irrigação e até uma frota no Níger.

O Soni Ali morreu no ano de 1492. Em seu lugar reinou seu filho, mas seu
reinado foi efêmero, um ano após a morte de Ali, um antigo chefe militar chamado
Mohammed conquistou o trono de Songai. Mohammed deu origem à Dinastia
Áskia, aliou-se aos muçulmanos e escolheu seus ministros e secretários entre
sábios de Tombuctu. No ano de 1496, viajou a Meca e tornou-se o califa do Sudão
Ocidental. Durante o seu governo, Songai chegou ao apogeu de seu poderio.

Segundo Mario Maestri (1988, p. 36),

Mohammed foi um grande conquistador e estadista. Dividiu


o império gao em quatro vice-reinos, organizou um sistema
regular de arrecadação de impostos, unificou os pesos e
as medidas, explorou as salinas de Teghazza, fortaleceu
a flotilha do Níger e, pela primeira vez no Sudão Ocidental,
formou um exército regular constituído de “escravos” e
“prisioneiros”. O império de Songai não foi um mero sucessor
das duas formações negro-africanas anteriores. Ele superou
qualitativamente o reino de Ghana e o império de Mali.
O primeiro restringiu-se, no geral, aos territórios do povo
sarakolê. Mali e Songai foram, ao contrário, impérios que
abarcaram etnias e populações muito mais amplas do que,
respectivamente, os povos mandinga e songai.

O império de Songai O império de Songai atingiu um nível político-administrativo que


atingiu um nível pouco lembrava os reinos anteriores, pois estava estruturado para
político-administrativo
além das solidariedades sanguíneas e clânicas dos reinos anteriores.
que pouco lembrava
os reinos anteriores, O império de Songai estava centralizado na figura do imperador.
pois estava estrutu- Por outro lado, a profissionalização do exército, a burocratização
rado para além das do recolhimento de impostos e outras medidas administrativas
solidariedades san- diferenciavam bastante Songai dos outros reinos. Veja como o
guíneas e clânicas historiador Ricardo da Costa descreve a organização burocrática de
dos reinos anteriores.
Songai.

A formação do exército, dividido por sua vez em vários


corpos, reestruturou a sociedade: isento de ir à guerra, o povo
trabalhava na terra, na produção artesanal e no comércio. A
“burocracia” era muito estratificada (citemos apenas alguns

110
Capítulo 4 A ÁFRICA NEGRA PRÉ-COLONIAL

cargos): os altos funcionários (os koy, os fari), ministros e


governadores das montanhas (tondi-fari), feiticeiras (que
tinham a permissão de dirigirem-se ao imperador pelo nome),
o governador da província (gurma-fari), que era o celeiro
agrícola do império, o ministro da navegação
fluvial (hi-hoy), o chefe dos cobradores de A cidade de
impostos (fari-mondyo), o sacerdote do culto Tumbuctu era um
aos antepassados (horé-farima), o inspetor das grande centro
florestas (sao-farima), o chefe dos pescadores (ho- de estudos e
koy), e ministro encarregado dos homens brancos
residentes no império (korey-farima). Todos eram
abrigava uma uni-
nomeados e demitidos pelo imperador a seu bel- versidade desde
prazer (COSTA, 2012). o século XII, com
aproximadamente
Por outro lado, no Reino de Songai havia um sistema formal e 25000 estudantes,
num universo de
bem estruturado de educação. A cidade de Tumbuctu era um grande
100000 habitantes
centro de estudos e abrigava uma universidade desde o século XII, (COSTA, 2012).
com aproximadamente 25000 estudantes, num universo de 100000
habitantes (COSTA, 2012).
O império de
Songai começou a
O império de Songai começou a entrar em declínio no final do entrar em declínio
século XVI. Mohammed, aos seus 86 anos de idade, foi destituído do no final do século
trono por seu filho e, nesse contexto, o reino começou a entrar em XVI. Mohammed,
decadência e finalmente foi desagregado em 1591. Nesse período aos seus 86 anos
de idade, foi
os portugueses já haviam chegado à costa atlântica e aos poucos
destituído do trono
buscavam adentrar aos territórios do interior. por seu filho.

Atividade de Estudos:

1) Em que sentido o reino de Songai se diferenciava de Ghama e


Mali?
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111
História da África e dos Africanos: dos Primórdios ao Período Pré-Colonial

Os Reinos Iorubas
A história desses reinos é narrada através da tradição oral.
Na ausência de
documentos escritos, Na ausência de documentos escritos, a história dos mais velhos,
a história dos mais que passa de geração para geração, juntamente com os vestígios
velhos, que passa materiais são as únicas formas de conhecer a trajetória desses
de geração para reinos que habitavam perto do rio Volta e do Baixo Níger.
geração, juntamente
com os vestígios ma-
Algumas ruas calçadas e pedaços de muros nos dão uma ideia
teriais são as únicas
formas de conhecer de como eram essas civilizações. Nelas viviam agricultores, artesãos
a trajetória desses e grupos de famílias. Todos eram submetidos aos conselhos de
reinos que habitavam um chefe. Os vestígios arqueológicos mais importantes da região,
perto do rio Volta e datados do ano 500 da era cristã, foram encontrados em Ilê Ifé, a
do Baixo Níger. principal cidade dos iorubas.

Para conhecer melhor a discussão sobre a inclusão da no


currículo das escolas brasileiras do ensino da cultura e da história
afro-brasileira, acompanhe este vídeo com uma entrevista da
historiadora Marina de Mello e Souza (USP). Marina Souza é uma
das maiores especialistas em África no Brasil. Acesse: <http://youtu.
be/q_Y_mCFvA-4>.

Os iorubas ocupavam Os iorubas ocupavam as regiões da Costa do Marfim, Golfo


as regiões da Costa da Guiné e Nigéria. Essa civilização atingiu um alto nível de uma
do Marfim, Golfo urbanização, muito raro nos outros reinos africanos. O apogeu
da Guiné e Nigéria. da civilização ioruba ocorreu no início do século XIII, através da
Essa civilização atin- fundação da cidade de Oio, a capital política do reino. Ao lado Oio,
giu um alto nível de
Ilê Ifé era uma das cidades mais importantes, pois era o local onde
uma urbanização.
ocorria a sagração dos reis.

Ao lado Oio, Ilê Ifé As cidades dos iorubas eram cercadas por muralhas, nelas
era uma das cidades habitavam artífices camponeses e uma aristocracia dominante.
mais importantes, As cidades também eram independentes do poder central, os reis
pois era o local onde eram escolhidos através de uma assembleia e o seu governo era
ocorria a sagração reconhecido pelo Oni de Ilê Ifé (rei e sacerdote) (MAESTRI, 1988, p.
dos reis.
55).

Segundo a tradição oral, Ilê Ifé é lugar da fundação do mundo, nela as

112
Capítulo 4 A ÁFRICA NEGRA PRÉ-COLONIAL

divindades Oduduwa e Obatalá criaram o mundo, que é dirigido por Olodumare,


a divindade suprema. Obatalá teria criado os primeiros humanos a partir do barro,
e Oduduwa teria se tornado o primeiro rei iorubá. Acredita-se que os sucessivos
obas (chefes, reis) são descendentes diretos de Oduduwa, o primeiro rei ioruba.

Dessa forma, em Ilê Ifé foi criada uma monarquia divina, onde quem
governava era o Oni, representante da divindade. O reino ioruba de Ilê Ifé possuía
aldeias, com vários chefes que prestavam obediência ao Oni, oba de Ilê Ifé. Todo
esse sistema político-religioso de Ilê Ifé foi adotado pelos povos iorubas que
habitavam ao redor do rio Volta e Níger.

Todos os obás dos reinos iorubas diziam que seus antepassados saíram
de Ilê Ifé e que por isso faziam parte de uma família real e divina. Ilê Ifé tinha
ascendência espiritual sobre quase todos os reino iorubas e era quem distribuía
os símbolos reais. Os adés, uma espécie de coroa feita de contas de coral, com
fios cobrindo o rosto de oba, foi um dos principais símbolos do poder junto com o
sistema de monarquia divina (SOUZA, 2006, p. 36).

Figura 25 - Rei ioruba usando adé, símbolo de poder

FONTE: SOUZA, 2006, p. 36.


113
História da África e dos Africanos: dos Primórdios ao Período Pré-Colonial

Em Ilê Ifé, o oba administrava o reino de sua capital, afastado do litoral,


sua moradia era uma construção com muros fortes, ruas largas e retas. O oba
tinha centenas de mulheres e filhos, assim como os outros obas dos outros
reinos.

No século XVI, os reinos iorubas ascenderam, exceto Ilê Ifé, que entrou em
declínio. Isso porque houve a presença de novos comerciantes na costa atlântica,
que traziam novas mercadorias em seus navios e que eram desejados pelos
chefes africanos. Mesmo em declínio, Ilê Ifé manteve a importância religiosa.
Todos os chefes das cidades, que teriam sido fundadas por ascendentes de
Oduduwa, iam até Ilê Ifé para terem seus poderes confirmados por Oni, o oba
mais importante política e religiosamente.

Figura 26 - Oba do Benin acompanhado de seus súditos

FONTE: Disponível em: <http://1.bp.blogspot.com/_lrnheGDims4/


TBeZMH_rchI/AAAAAAAAFS8/xR3VgvMc_-8/s1600/

Os iorubas constituem uma mistura de vários grupos. O povo se formou,


inicialmente, em torno da cidade de Ilê Ifé. Mas com o passar dos anos formaram-
se vários reinos, cada um com seu soberano e sua capital. A partir Ilê Ifé foram
planejadas as demais cidades, que eram divididas em bairros. Em cada reino havia
locais sagrados, palácio real, praças de mercado, lugares de reunião. Geralmente
cada cidade se aperfeiçoava em um ofício, algumas na tecelagem e tintura de
algodão, outras metalurgia, ensino de sacerdotes, esculturas em madeira etc.

Certamente as cidades de Oio e Ilê Ifé eram as mais importantes para os


iorubas. Mas, com o declínio delas, vários outros reinos emergiram ao seu redor,

114
Capítulo 4 A ÁFRICA NEGRA PRÉ-COLONIAL

Certamente as
como foram os casos do Reino do Benin, o Reino do Adomei ou Daomé
cidades de Oio
e a Confederação de reinos Ashanti. De todos esses reinos o Brasil e Ilê Ifé eram as
recebeu escravos, muitos foram identificados no Brasil como Nagôs, mais importantes
mas na verdade eram iorubas provenientes do Benin. para os iorubas.

Atividade de Estudos:

1) Descreva como era exercido o poder político entre os povos


iorubas.
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Os Povos Bantus
Os povos que habitavam abaixo da linha do Equador são Os povos que ha-
majoritariamente os grupos da família linguística bantu. Esses povos bitavam abaixo da
eram hábeis metalurgistas, principalmente na mineração de ferro. O linha do Equador
são majoritaria-
ferro era muito importante na África Central, pois permitia a fabricação
mente os grupos
de ferramentas utilizadas no trabalho agrícola. Esses primeiros da família linguísti-
metalurgistas ocuparam a África Central nos primeiros anos da era ca bantu.
cristã. Nessas sociedades o ouro ainda não tinha o valor que teria mais
tarde, com a chegada dos colonizadores. A metalurgia do ferro era muito mais
relevante, pois a economia era fundamentalmente agrícola. É interessante notar
que os grandes mestres da metalurgia brasileira serão justamente os negros que
vieram como escravos dessa região da África para o Brasil.

O Reino do Kongo O Reino de Kongo


ocupava toda a
O Reino de Kongo ocupava toda a vasta área em que hoje se vasta área em que
localiza os países Congo (antigo Zaire) e Angola. O reino foi fundado hoje se localiza
os países Congo
numa região extremamente favorável, o solo era fértil, rico em minérios
(antigo Zaire) e
Angola.

115
História da África e dos Africanos: dos Primórdios ao Período Pré-Colonial

de ferro e cobre e o território era rodeado por rios: ao sul estava o rio Cuanza, ao
norte o rio Oguwé e ao leste o rio Congo.

Segundo Marina de Mello e Souza, o reino do Kongo surgiu a partir da


chegada de povos conhecidos como muchicongos, que habitavam a outra margem
do rio. Ao chegarem na região, os muchicongos se misturaram aos outros povos
bantus que já habitavam a região. Essa fusão de povos bantus das duas margens
do rio Congo teria sido feita por Nimi Lukeni, chefe dos muchicongos a partir do
século XIII (SOUZA, 2006, p. 38).

A capital do reino No início do século XV essas comunidades de língua bantu


foi estabelecida em cresceram em riqueza e formaram uma federação de estados
Mbanza Kongo,
centralizados em um reino, cujo líder era conhecido como Mani
que, com o domínio
português a partir do kongo, muito parecido com os obas iorubas. A capital do reino foi
século XVI, se torna- estabelecida em Mbanza Kongo, que, com o domínio português a
ria São Salvador. partir do século XVI, se tornaria São Salvador.

O Estado do Kongo surgiu sob a liderança dos muchicongos e estava


dividido em seis províncias: Mpemba, Mbata, Nsundi, Mpangu, Mbemba e Soyo,
mais quatro reinos vassalos: Loango, Cacongo e Ngoye e Ndongo. Todos os
reinos vassalos e as províncias pagavam tributos ao Manikongo. A composição do
governo das províncias e reinos era escolhida através das famílias mais antigas.

A prática comercial A principal atividade econômica dos congoleses envolvia a


poderia ser feita
prática de um desenvolvido comércio onde predominava a compra e
através do escambo
(trocas) ou com a venda de sal, metais, tecidos e produtos de origem animal. A prática
adoção do nzimbu, comercial poderia ser feita através do escambo (trocas) ou com a
uma espécie de adoção do nzimbu, uma espécie de concha somente encontrada na
concha somente região de Luanda.
encontrada na região
de Luanda.
Nas aldeias foram mantidas as chefias existentes antes da
chegada do muchicongos. O chefe dava conselhos referentes aos
assuntos da comunidade. Um conjunto dessas comunidades estava submetido a
um chefe regional, que fazia a ligação dessas aldeias com a capital. O Reino do
Kongo se formou através de casamentos de uma elite tradicional com uma elite
nova, que eram os descendentes dos estrangeiros que vieram do outro lado do
rio.

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Capítulo 4 A ÁFRICA NEGRA PRÉ-COLONIAL

Figura 27 - Região onde se localizava o antigo reino do Kongo

FONTE. Disponível em: <http://civilizacoesafricanas.blogspot.com.


br/2010/01/reino-do-congo.html>. Acesso em: 18 set. 2012.

Quando os portugueses chegaram, por volta de 1484, encontraram uma


civilização hierarquizada onde os chefes viviam em construções grandiosas,
cercados de mulheres, filhos, conselheiros e escravos. Ali também moravam
agricultores, que sempre que convocados militarmente seguiam contra os
inimigos do Mani kongo. As aldeias e cidades pagavam tributos ao Mani kongo.
Esses tributos eram pagos com aquilo que o povo produzia: alimentos, tecidos,
sal e cobre. Mbanza Kongo,
assim como Oio
Nos mercados regionais, geralmente nas capitais das províncias, ou Ilê Ifé, era uma
eram trocados produtos de diferentes regiões. Nessas áreas de troca, grande cidade,
o Mani kongo, junto com seus conselheiros, controlava comércio, comparável ao
tamanho das
recebia os impostos e tentava manter a harmonia entre os súditos do
capitais europeias
reino. da época.

Mbanza Kongo, assim como Oio ou Ilê Ifé, era uma grande
cidade, comparável ao tamanho das capitais europeias da época. Que fazia a
ligação entre
O Mani Kongo vivia numa corte rodeada de muros e labirintos. Ali
seu reino e o
convivia com suas mulheres, filhos, parentes, conselheiros, escravos. mundo sobrena-
Os limites do reino eram traçados pelas aldeias que pagavam tributos tural, povoado
e em troca recebiam proteção para assuntos tanto deste mundo como por divindades e
para do além, pois o Mani Kongo não era apenas um líder político, mas pelos espíritos dos
acima de tudo um líder espiritual, que fazia a ligação entre seu reino e ancestrais.

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História da África e dos Africanos: dos Primórdios ao Período Pré-Colonial

o mundo sobrenatural, povoado por divindades e pelos espíritos dos ancestrais.

Assim que os portugueses chegaram ao Kongo, perceberam que esse reino


seria um bom parceiro comercial. O Mani Kongo, junto com os chefes, viu que
poderia lucrar com a presença dos portugueses. Esse relacionamento comercial
e político durou três séculos, até que os portugueses acabaram por controlar a
região que hoje corresponde ao norte da Angola. Dessa região vieram inúmeros
escravos para o Brasil.

Atividade de Estudos:

1) Descreva que relações podemos estabelecer entre os reinados


de Mbanza Kongo e o Oni, oba dos iorubas.
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O Reino do Monomotapa
Um dos povos mais importantes que foram feitos cativos e vieram para o
Brasil foram os moçambiques. Essa denominação genérica encontrada na
documentação sobre a escravidão a partir do século XIX deixa uma curiosidade.
Quem seriam esses moçambiques?

De maneira geral, podemos afirmar que os moçambiques eram embarcados


nos portos da Ilha de Moçambique e em Sofala, mas eram originários de diversos
pontos da África Centro-Oriental e Meridional. Nessa região, entre os atuais

118
Capítulo 4 A ÁFRICA NEGRA PRÉ-COLONIAL

Moçambique e Zimbábue, havia Estados organizados, que aos poucos foram


se desestruturando com a chegada dos portugueses e a organização do tráfico
negreiro. O mais importante dentre eles foi o Império do Monomopata.

Figura 28 - Detalhe do mapa de Rigobert Bonne, 1780. Na imagem é possível ver a Ilha
de Madagascar, o golfo de Sofala, o reino do Monomopata e em seu interior o Zimbábue

Figura 28 - Detalhe do mapa de Rigobert Bonne, 1780. Na imagem é possível ver a Ilha
de Madagascar, o golfo de Sofala, o reino do Monomopata e em seu interior o Zimbábue

FONTE: Disponível em: <http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/7/74/1780_


Raynal_and_Bonne_Map_of_South_Africa%2C_Zimbabwe%2C_
Madagascar%2C_and_Mozambique_-_Geographicus_-_ Antes da chegada
Mozambique-bonne-1780.jpg>. Acesso em: 16 set. 2012. europeia, abrangia
as regiões do
Durante o fim do primeiro milênio da era cristã, chegaram à África atual Zimbabué
oriental os primeiros comerciantes árabes. Nesse mesmo contexto, os até Moçambique,
povos xonas atravessaram o rio Zambeze e se estabeleceram junto onde se localizava
o importante porto
às populações nativas que já habitavam a região. Desses dois fatos
de Sofala.

119
História da África e dos Africanos: dos Primórdios ao Período Pré-Colonial

nasceu o grande Império Monomotapa e as famosas muralhas zimbabues.

O Império do Monomotapa foi um grande Estado estruturado


As riquezas minerais
fizeram do Império do entre o século IX e XVI. Antes da chegada europeia, abrangia as
Monomotapa um dos regiões do atual Zimbabué até Moçambique, onde se localizava o
mais poderosos da importante porto de Sofala. O centro do império estava localizado
África oriental e umnum grande planalto entre os rios Zambeze e Lipombo e o Oceano
dos locais mais pro-Índico. A principal atividade econômica era a exploração de ferro,
curados por comer-
cobre e de ouro. Foi o ouro do Monomotapa, durante século XII,
ciantes da Europa e
da Ásia. que atraiu os comerciantes árabes oriundos do Golfo Pérsico e
posteriormente os portugueses para a região. As riquezas minerais
fizeram do Império do Monomotapa um dos mais poderosos da África oriental e
um dos locais mais procurados por comerciantes da Europa e da Ásia.

O Império do Mono- O Império do Monomotapa recebeu esse nome porque assim


motapa recebeu esse era conhecido o chefe local. Monomotapa era um título de governo.
nome porque assim
Mas a ocupação do trono do Monomotapa não era feita de modo
era conhecido o
chefe local. Monomo- hereditário, a escolha do soberano era realizada pelos chefes das
tapa era um título de tribos e também através da consulta dos espíritos dos ancestrais.
governo.
As primeiras informações sobre o império do Monomotapa são
advindas dos primeiros comerciantes árabes e dos primeiros portugueses que
aportaram no litoral oriental da África, principalmente a partir de Vasco da Gama.
Apesar das escassas informações que temos sobre Monomopata, as ruínas de
pedra no interior dão a dimensão do grandioso império e da engenhosidade de
seus habitantes.

Figura 29 - Ruínas do grande zimbábue, provavelmente um centro religioso

FONTE: Disponível em: <http://www.aolcdn.com/photogalleryassets/


mydailyuk/911604/great-zimbabwe-ruins-1300.jpg>. Acesso em: 16 set. 2012

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Capítulo 4 A ÁFRICA NEGRA PRÉ-COLONIAL

Figura 30 - Casas construídas no interior dos zimbábues

FONTE: Disponível em: <http://picture4u.net/wp-content/uploads/2012/01/


great-zimbabwe.jpg>. Acesso em: 16 set. 2012.

No interior do reino ainda hoje podem ser vistas as enormes muralhas de pedras
que chegam a 5 m de altura por 2 m de largura. Essas enormes
muralhas foram construídas sobre terras férteis por um povo que vivia Segundo Mario
Maestri (1988, p.
da agricultura e da criação de gado. Elas são unidas somente pela
105), na língua
sobreposição de pedras, sem nenhum tipo de argamassa, são os dos povos xonas a
chamados zimbábues. Dentro das muralhas existiam casas cobertas palavra “zimbaoé”
com palha. quer dizer residên-
cia real, ou ainda,
Segundo Mario Maestri (1988, p. 105), na língua dos povos xonas lugar onde habita
o mambo.
a palavra “zimbaoé” quer dizer residência real, ou ainda, lugar onde
habita o mambo. Os xonas cultuavam uma divindade conhecida como
Mauari e tinham o mambo como chefe religioso e político. O mambo Os xonas eram
habitava o zimbábue, grande monumento de pedra datado do século comunidades
pastoris que ocu-
XI.
pavam as regiões
mineratórias mais
Os xonas eram comunidades pastoris que ocupavam as regiões abundantes e
mineratórias mais abundantes e controlavam as rotas que ligavam controlavam as
o interior e a costa litorânea. A partir do século XV, ocorreu uma rotas que ligavam
forte centralização do poder nas mãos dos mambos e um grande o interior e a costa
litorânea.
desenvolvimento comercial do litoral e do interior. Esse é momento de
maior esplendor da civilização xona. Segundo Marina de Mello e Souza
(2006, p. 40), próximo às muralhas chamadas zimbábues foram encontradas
porcelanas da China e da Índia, o que comprova a relevante atividade mercantil
desse povo.

121
História da África e dos Africanos: dos Primórdios ao Período Pré-Colonial

Segundo Maestri (1988, p. 105), a história do Monomopata pode ser dividida


em duas etapas. “A primeira começaria em 1075 e terminaria em 1440, com
o nascimento do Império Rozui. Esta última data marcaria também o início do
período de auge da civilização xona, que teve seu fim quando da invasão do
planalto pelos ngoni, em 1830”.

Dentre os povos xo- Dentre os povos xonas, o clã dos rozuis é apresentado como
nas, o clã dos rozuis o responsável pela fundação do império. A partir de 1440, o mambo
é apresentado como rozui Mutota iniciou uma política expansionista e conquistou muitos
o responsável pela
territórios. Segundo Maestri,
fundação do império.
as conquistas terminaram envolvendo, em uma só
organização política, os vastos territórios limitados pelo
oceano índico, pelos rios Zambeze e Limpopo e pelo
deserto de Calaari. O conquistador rozui, possivelmente
apoiado pelos comerciantes islamizados, tomou o título
de muene mutapa, ou seja, “senhor das terras arrasadas”
(1988, p. 107).

Mutope construiu o poder do estado num complexo sistema de vassalagem e


de cobrança de tributos. Mas as dificuldades de comunicação e as possibilidades
de estabelecer comunicação direta com o litoral e, portanto, com os comércio
marítimo só enfraquecia o sistema administrativo. A crise se agravou ainda mais
com a morte de Mutope, em 1480.

No Monomopata No Monomopata havia constantes conflitos entre as chefias,


havia constantes que eram formadas através de laços de parentesco, casamentos
conflitos entre as e de entidades religiosas. Quando Mutope morreu, começaram os
chefias, que eram conflitos pela sucessão. Um dos filhos, chamado Niune, assumiu
formadas através de o trono, mas não foi reconhecido por seu irmão, Changa, que
laços de parentesco,
administrava outras regiões do império e não aceitou a autoridade
casamentos e de
entidades religiosas. de seu meio-irmão. Changa guerreou contra Niune e o derrotou,
assumindo assim o reino de forma absoluta.

Para compreender melhor a História do reino do Monomopata,


assista ao documentário “África: uma história rejeitada”. Série.
Civilizações Perdidas. Produção BBC. Ano: 1995.

Aos poucos o reino foi se esfacelando e os territórios foram divididos em


diversos reinos menores. Nesse contexto de fragmentação ocorreu a chegada

122
Capítulo 4 A ÁFRICA NEGRA PRÉ-COLONIAL

dos portugueses. A presença dos árabes e dos portugueses, ambiciosos por


apoderar-se do ouro, só aumentava ainda mais os conflitos.

No Monomopata havia ouro, o que fez com que o local se tornasse uma
importante rota comercial. O ouro era extraído de maneira sazonal, durante
o intervalo entre o cultivo da terra e a criação de gado. Além do ouro, era
comercializado também sal, cobre e gado.

Quando os portu-
Quando os portugueses começaram a frequentar a costa oriental gueses começa-
da África, tomaram conhecimento dos zimbábues e da existência de ram a frequentar
um grande reino. A vontade de dominar o Reino do Monomopata era a costa oriental da
muito grande nos portugueses, pois segundo as algumas descrições África, tomaram
prévias, o reino seria rico em jazidas de ouro. Mas era bem menos rico conhecimento dos
zimbábues e da
do que portugueses imaginavam.
existência de um
grande reino.
Os portugueses receberam relatos de que havia no interior
da África um reino rico em ouro e que não era governado por
muçulmanos. Dessa forma, os primeiros contatos entre os portugueses e o
Reino do Monomotapa visavam estabelecer relações comerciais e construir
um entreposto entre a Europa e Ásia.

Os portugueses se instalaram e aos poucos foram se casando com as filhas


dos africanos, para que pudessem ocupar um lugar privilegiado na atividade
comercial. Ao perceber que a terra não era tão rica como imaginava, Portugal
parou de investir na região e os filhos nascidos nas terras moçambicanas
tornaram-se cada vez mais africanizados.

Segundo o historiador Luiz Felipe de Alencastro, o empreendimento


colonial português em Moçambique encontrou muita resistência. Os portugueses
tiveram que reconhecer a autoridade do Monomopata e não dominaram de
imediato a região. Uma frase de Alencastro dá bem a dimensão desse processo:
“sorvidos paulatinamente pela sociedade nativa, os colonos se africanizaram”
(ALENCASTRO, 2000, p. 17).

Religiosidades e Escravidão na
África Pré-Colonial
Atualmente, temos consciência da importância da religião na vida
social de um determinado povo. Principalmente nós brasileiros sabemos
da relevância da religião em nosso país, pois somos um povo que recebeu

123
História da África e dos Africanos: dos Primórdios ao Período Pré-Colonial

diversas contribuições para formar aquilo que denominamos religiosidade


brasileira, um universo rico em sincretismos e manifestações singulares das
religiões de diversos continentes. Muito de nossa religiosidade se deve à
contribuição africana.

Desde muito cedo aprendemos a diferenciar o mundo real, aquele que


podemos ver e tocar, daquele sobrenatural, ou invisível, que acreditamos com
nossa fé. O mundo real é aquele que vivemos, é o resultado da nossa vida em
sociedade. O mundo sobrenatural é aquele das religiões, com o qual o ser humano
tem somente um contato parcial através de ritos e cerimônias. Essa dimensão
sobrenatural depende muito das sociedades. Algumas atribuem muita relevância
à religião e outras nem tanto.

Nas sociedades afri-


Para uma parcela bastante considerável da nossa sociedade,
canas era diferente,
quase tudo estava quase não há espaço para o sobrenatural, pois vivemos em uma
ligado às forças má- sociedade em que quase tudo é explicado pela ciência. Nas
gicas sobrenaturais, sociedades africanas era diferente, quase tudo estava ligado às
a que somente se forças mágicas sobrenaturais, a que somente se tinha acesso
tinha acesso através através dos rituais.
dos rituais.

Segundo Marina de Mello e Souza (2006, p. 46), na costa da África, que vai
do Senegal até Moçambique, lugar onde os portugueses negociavam escravos,
tudo era manipulado através de curandeiros, adivinhos, médiuns, sacerdotes, que
foram chamados pelos portugueses de curandeiros.

Acreditava-se que os As práticas mágico-religiosas eram chamadas de feitiços. As


infortúnios ocorridos orientações de como agir em determinadas situações vinham dos
eram falta de harmo- antepassados, dos ancestrais, heróis fundadores, deuses e espíritos.
nia entre o mundo
Acreditava-se que os infortúnios ocorridos eram falta de harmonia
real e sobrenatural.
entre o mundo real e sobrenatural. Isso ocorria quando alguém
deixava de fazer alguma oferenda ou quando usava as forças
sobrenaturais de forma mal intencionada. Quando alguém adoecia, a plantação
arruinava, ou uma mulher não engravidava, os oráculos eram consultados para
que mostrassem qual o melhor procedimento para a solução dos males e doenças.

A liderança do povo também passava pelos sacerdotes, para que os espíritos


confirmassem a sua posição. Os líderes também eram considerados os mais
respeitados representantes do além entre os vivos. Podemos dizer que a religião
era a base central das sociedades africanas. A religião estava presente no poder,
na harmonia da sociedade, nas formas de convivência.

Ao longo desse capítulo, vimos que a religião na África pré-colonial


era inseparável da vida cotidiana e política. Mesmo quando os muçulmanos

124
Capítulo 4 A ÁFRICA NEGRA PRÉ-COLONIAL

adentraram a África pelo norte e pela costa do Índico, não conseguiram Nas mais variadas
islamizar totalmente o continente. Nas mais variadas regiões se regiões se produ-
produziram ricos sincretismos do Islã com as religiões tradicionais. ziram ricos sin-
cretismos do Islã
com as religiões
E toda essa riqueza cultural das religiões africanas veio com tradicionais.
os escravos nos quase 350 anos de tráfico atlântico. Nas regiões de
Salvador, Pernambuco e Maranhão ainda permanecem vivos os cultos africanos
dos Voduns, dos Orixás e do Tambor de Mina.

Ao lado da religio-
Ao lado da religiosidade, outro tema que chama a atenção de
sidade, outro tema
todos que se voltam para o estudo da África é a escravidão. Nesse que chama a aten-
aspecto, é importante discutir algumas questões. Principalmente para ção de todos que
nós, brasileiros, a escravidão tem um peso considerável na formação se voltam para o
de nossa sociedade, afinal a cifra chega a aproximadamente 4 milhões estudo da África é
de negros introduzidos compulsoriamente através do tráfico no Brasil a escravidão.
em quase três séculos e meio.

Para conhecer melhor a discussão sobre religiosidades e


escravidão no contexto das relações entre África e Brasil, indicamos
o documentário “Atlântico negro: na rota dos Orixás”. Diretor: Renato
Barbieri. Ano: 1998. Duração: 54 Minutos.

Mas devemos atentar para o fato de que a escravidão não foi uma criação do
sadismo português. Vejamos o que diz o grande historiador dos Annales, Fernand
Braudel.

O tráfico negreiro não foi uma invenção diabólica da


Europa. Foi o Islã, desde muito cedo em contato com a África
Negra através dos países situados entre Níger e Darfur e
de seus centros mercantis da África Oriental, o primeiro a
praticar em grande escala o tráfico negreiro (BRAUDEL, 1989,
p. 138).
A escravidão
A escravidão é conhecida desde tempos imemoriais. Mas, é conhecida
segundo Luiz Felipe de Alencastro, há que se fazer uma diferença desde tempos
imemoriais. Mas,
entre escravidão e escravismo. A escravidão era praticada no interior
segundo Luiz Fe-
da África pré-colonial através da captura de prisioneiros por ocasião lipe de Alencastro,
de guerras tribais e mesmo na Europa e nas ilhas portuguesas, há que se fazer
principalmente a Madeira. A escravidão era reconhecida como legal e uma diferença
permitida junto ao aparato jurídico. Já o escravismo deve ser pensado entre escravidão e
como a escravidão ganhando dimensões gigantes quando se integra à escravismo.
economia do sistema-mundo (ALENCASTRO, 2000, p. 32).
125
História da África e dos Africanos: dos Primórdios ao Período Pré-Colonial

Já o escravismo É importante notar que a escravidão em larga escala se


deve ser pensado insere nos quadros do sistema capitalista mercantil e no contexto
como a escravidão da expansão marítima europeia. Esse é um contexto de profunda
ganhando dimensões
crise econômica numa Europa que estava abandonando as
gigantes quando se
integra à economia estruturas feudais. É desse ponto de vista que devemos discutir a
do sistema-mundo introdução dos africanos e sua marca indelével na cultura brasileira.
(ALENCASTRO, Afinal, como nos mostra Alencastro, entre os séculos XVI e XVII,
2000, p. 32). “aproximadamente 12 mil viagens foram feitas dos portos africanos
ao Brasil para vender, ao longo de três séculos, cerca de quatro
milhões de escravos aqui chegados vivos” (ALENCASTRO, 2000, p. 85).

Atividades de Estudos:

1) Qual era o papel da religiosidade na África pré-colonial e como


percebemos sua influência na cultura brasileira?
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2) A escravidão é um tema recorrente quando falamos da


relação entre África e Brasil. Como podemos cuidar para não
generalizarmos o assunto ao dizer que a escravidão já existia
na África antes dos portugueses?
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Algumas Considerações
Chegamos ao final desse capítulo e dessa disciplina. O objetivo dessa
narrativa era lançar um olhar sobre a África pré-colonial, não pretendíamos de
modo algum esgotar todos os assuntos, pois temos a consciência da incompletude

126
Capítulo 4 A ÁFRICA NEGRA PRÉ-COLONIAL

de qualquer estudo histórico. Sempre haverá um novo olhar, uma nova perspectiva
e novas avaliações.

Contudo, intentamos, nesse capítulo, construir um grande mapa dos povos


que habitavam a África negra antes da chegada dos europeus. Nesse sentido,
buscamos abordar seus modos de vida, suas organizações políticas e religiosas
bastante singulares. Nesse trajeto de descobertas, encontramos reinos muito
prósperos economicamente e também ricos em manifestações culturais.

De todos esses reinos da África subsaariana, o Brasil recebeu negros


escravizados. Mas não recebeu somente escravos, enquanto braços para o
trabalho, recebeu também sua arte, sua cultura, sua culinária, sua alegria, suas
danças, religiosidades, seu conhecimento no trabalho da metalurgia, na criação
de gado e em vários outros domínios da vida social.

127
História da África e dos Africanos: dos Primórdios ao Período Pré-Colonial

ReferÊncias Bibliográficas
ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O trato dos viventes: Formação do Brasil no
Atlântico Sul, séculos XVI e XVII. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

COSTA, Ricardo da. A expansão árabe na África e os Impérios Negros de


Gana, Mali e Songai (sécs. VII-XVI). Disponível em: <http://www.ricardocosta.
com/artigo/expansao-arabe-na-africa-e-os-imperios-negros-de-gana-mali-e-
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LOPES, Nei. Enciclopédia brasileira da diáspora africana. São Paulo: Selo Negro,
2004.

MAESTRI, Mario. História da África negra pré-colonial. Porto Alegre: Mercado


Aberto, 1988.

MEDEIROS, François de. Os povos do Sudão: movimentos populacionais. In:


FASI, Mohammed El. (Ed.). História Geral da África III. África do século VII ao
XI. Brasília: Unesco, 2010.

SOUZA, Marina de Mello e. África e Brasil africano. São Paulo: Ática, 2006.

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