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FACULDADES IPEDE

HISTÓRIA DA ÁFRICA
Elaboração: Prof.ª Tânia Cordova
Elaboração: Prof.ª Marta Heloísa Leuba Solum (Lisy)
Elaboração: Prof.ª Ubiracy de Souza Braga
Elaboração: Prof.Anthony Appiah wamme
Ministrado por: Profª Ribamar Protasio

2024
Urbano santos
APRESENTAÇÃO
Caro(a) acadêmico(a)!

Retornamos nossos estudos sobre a História da África II. Com essa


disciplina buscamos romper com uma historiografia fundamentada
numa visão eurocêntrica da História.

Esta é uma disciplina importante à formação do professor de História,


haja vista a obrigatoriedade, desde 2003, da temática África e Afro-
brasileiros no currículo da Educação Básica. Todavia, para além
desta obrigatoriedade, o conhecimento relacionado ao Continente
Africano, é essencial para que possamos conhecer e trabalhar com a
formação histórica, social, cultural e econômica do Brasil.

Ao observarmos a composição social em que vivemos, podemos


confirmar que os negros africanos possibilitaram importantes
contribuições para a construção do Brasil. Depois de retirados à
força do Continente Africano, terem atravessado a duras penas o
oceano Atlântico, serem obrigados a mudar sua maneira de viver,
com a adaptação de seus costumes e suas tradições a um novo
ambiente, os que aqui chegaram misturaram-se à sociedade já
existente e configuraram novos elementos à cultura. Nesse sentido,
é inegável a presença e a influência dos diferentes povos africanos à
História do Brasil.

Como você pode perceber, esta é uma disciplina densa e tem uma
carga enorme de conteúdo, afinal, estudar a história de um
continente milenar, não é uma tarefa fácil. Pelo contrário, exigirá,
além do Caderno de Estudos, outras fontes de pesquisa. Lembre-se:
a pesquisa é uma prática que deve ser inerente ao trabalho do
professor em especial ao futuro professor de Historia pois sem
fontes,vestigios não será possivel escrever ou preescrever a História
que pode ser sua,da cidade ou algo parecido.
OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM
• compreender o contexto histórico e social de surgimento da Lei nº 10.639;

• refletir sobre a formação de professores e a obrigatoriedade da temática da


História e Cultura Africana e Afro-brasileira;

• perceber a construção da imagem do negro no Brasil em diversos contextos;

• avaliar as possibilidades do trabalho interdisciplinar e a temática África e Afro-


brasileiros na escola.

PLANO DE ESTUDOS
Esta unidade está dividida em quatro tópicos. Ao final de cada um
deles você encontrará atividades que o(a) auxiliarão na apropriação dos
conhecimentos aqui disponibilizados.

TÓPICO África: cultura material e história


TÓPICO África: cultura material e arte africana
TÓPICO África: cultura material, filosofia e religião

TÓPICO POR QUE ESTUDAR ÁFRICA, TRÁFICO E AFRICANOS NO BRASIL?

TÓPICO A LEI 10.639 E A FORMAÇÃO DE PROFESSORES

TÓPICO A CONSTRUÇÃO DAS REPRESENTAÇÕES SOBRE ÁFRICA,


AFRICANOS E AFRO-BRASILEIROS
África: culturas e sociedades
África: cultura material e história

Para compreendermos a cultura material das sociedades africanas, a primeira questão


que se impõe é a imagem que até hoje perdura da África, como se até sua
"descoberta", fosse esse continente perdido na obscuridade dos primórdios da
civilização, em plena barbárie, numa luta entre Homem e Natureza.

De fato, a história dos povos africanos é a mesma de toda humanidade: a da


sobrevivência material, mas também espiritual, intelectual e artística, o que ficou à
margem da compreensão nas bases do pensamento ocidental, como se a reflexão
entre Homem e Cultura fosse seu atributo exclusivo, e como se Natureza e Cultura
fossem fatores antagônicos.

E é isso que fez com que a distorção da imagem do continente africano, atingisse
também os povos que ali habitavam. De acordo com as ciências do século XIX,
inspiradas no evolucionismo biológico de Charles Darwin, povos como os africanos
estariam num estágio cultural e histórico correspondente aos ancestrais da
Humanidade. Dotados do alfabeto como instrumento de dominação não apenas
cultural, mas econômica também, os europeus estavam em busca de suas origens,
sentindo-se no vértice da pirâmide do desenvolvimento humano e da História. Vem
daí as relações estabelecidas entre Raça e Cultura, corroborando com essa distorção.

Por isso, a história da África, pelo menos antes do contato com o mundo ocidental,
em particular antes da colonização, não pode ser compreendida tomando-se como
referência a organização dominante adotada pelas sociedades ocidentais.
Normalmente fica no esquecimento, dado ao fato colonial, que não existe uma
África anterior, a que se convencionou chamar África tradicional, diversa e
independente, com suas particularidades sociais, econômicas e culturais.

O que a história oficial procurou velar é que os africanos desenvolveram várias


formas de governo muito complexas, baseando-se seja em uma ordem genealógica
(clãs e linhagens), seja em processos iniciáticos (classes de idade), seja, ainda, por
chefias (unidades políticas, sob várias formas). Algumas grandes chefias,
consideradas Estados tradicionais, são conhecidas desde o século IV (como a
primeira dinastia de Gana), mesmo assim posteriores a grandes civilizações, cuja
existência pode ser testemunhada pela arte, como a cerâmica de Nok (Nigéria),
datada do século V a.C. ao II século d.C. Aliás, ela é uma das produções mais
atingidas pelo tráfico do mercado negro das artes na África que coloca em risco toda
uma história ainda não completamente.

A mudança social provocada pelo fato colonial faz parte dessa história, mesmo que a
intenção da colonização era acabar com ela. O período colonial africano é recente,
durando de 1883-1885 até pouco mais da metade do século XX. Nesse período, os
governos europeus dividiram e reagruparam as sociedades tradicionais da África em
colônias, cujas fronteiras não correspondiam aos seus territórios originais.

Aqui estamos falando apenas daqueles que permaneceram no continente e não dos
que foram sequestrados para a industria da escravidão que durou pelo menos quatro
séculos. Podemos dizer que se o futuro de alguns africanos (os que foram feitos
escravos) continuou aqui no Brasil (e nas Américas), e o passado de povos africanos
na África ficou na memória coletiva e no silêncio da cultura material, temos muito a
repensar sobre a nossa história em comum, encontrando, oxalá, nossos valores para o
futuro.
Por isso, não podemos admitir nada de primitivo na história e na cultura material dos
povos africanos, vez que se trata de sociedades que têm atrás de si mesmas
existência milenar. Temos testemunhos plásticos e iconográficos do séculos V, VI e
até VII a.C. nos países do Mediterrâneo antigo, que demonstram não apenas a
presença da civilização egípcia, como também das civilizações da África sub-
saariana, esta chamada de África negra. Vê-se aqui a antiguidade das culturas
africanas, bem como sua dinâmica, alimentada não apenas por fluxos internos, mas
também externos, desde longa data. Ao lado de tudo isso, lembrar que descobertas
arqueológicas vêm demonstrando a precedência da espécie humana e de suas
indústrias no continente africano, antes dos seus vestígios em território europeu,
como o caso do exemplar mais antigo do homo sapiens sapiens (nossa espécie)
descoberto no Quênia, datado de 130 mil anos atrás.

Em contrapartida, devemos também estar alertos para não nos valermos do que,
entre nós, é tido como premissa de civilização, achando que com isso chegamos à
compreensão de outros povos. Ao lado de técnicas de metalurgia ou cultivo, ao lado
de chefias ou de um comércio ativo, cada sociedade, cada cultura tem um sistema de
categorias próprias de pensamento e existência, sendo ele o que a diferencia das
outras, e o que lhe dá real relevância perante a Humanidade. A cultura material e a
arte, pelo seu caráter concreto (de "coisas", objetos), podem ser veículos eficientes
para que tais categorias não fiquem tão vulneráveis à ação destruidora de nosso
etnocentrismo, desde que sejam enfocadas como produtos de sociedades diferentes e
não desiguais.

África: cultura material e arte africana

As artes plásticas da África que vemos nos livros e coleções são produtos
desenvolvidos ao longo de séculos. Sejam esculpidos, fundidos, modelados,
pintados, trançados ou tecidos, os objetos da África nos mostram a diversidade de
técnicas artísticas que eram usadas nesse continente imenso, e nos dão a dimensão da
quantidade de estilos criados pelos povos africanos.

Tais estilos são a marca da origem dos objetos, isto é, cada estilo ou grupo de estilos
corresponde a um produtor (sociedade, ateliê, artista) e localidade (região, reino,
aldeia). Mesmo assim, devemos lembrar que os grupos sociais não podem ser
considerados no seu isolamento, e, portanto, é natural que a estética de cada
sociedade africana compreenda elementos de contato. Além disso, cada objeto é
apenas uma parte da manifestação estética a que pertence, constituída por um
conjunto de atitudes (gestos, palavras), danças e músicas. Isso pode determinar as
diferenças entre a arte de um grupo e de outro, tendo-se em vista também o lugar e a
época ou período em que o objeto estético-artístico era visto ou usado, de acordo
com a sua função.

Portanto, a primeira coisa a reter é que, na África, cada estátua, cada máscara, tinha
uma função estabelecida, e não eram expostas em vitrines, nem em conjunto, nem
separadamente, como vemos dos museus. Outra coisa deve ser lembrada: a arte
africana é um termo criado por estrangeiros na interpretação da cultura material
estética dos povos africanos tradicionais, diferente das artes plásticas da África
contemporânea que se integram, como as nossas, brasileiras e atuais, no circuito
internacional das exposições.

Se hoje ainda há uma produção similar aos objetos tradicionais, ela deve-se no maior
das vezes às demandas de um mercado turístico, motivado pela curiosidade e
exotismo.

Com referência aos objetos muito semelhantes aos tradicionais ainda em uso em
rituais religiosos ou festas populares há, assim como no Brasil, na África atual, uma
cultura material, que, apesar de sua qualidade estética, é considerada, também pelos
africanos de hoje, "religiosa" ou
"popular" nos moldes ocidentais, onde o antigo e moderno são historicamente
discerníveis. Isso não quer dizer, no entanto, que, através de conteúdos e símbolos, a
arte africana atual não esteja impregnada do tradicional, ainda que se manifestando
em novas formas. Ao contrário, as especificidades da estética tradicional africana é
visível também, nos dias atuais, nas produções artísticas dos países de fora da África,
principalmente daqueles, como o Brasil, cuja população e cultura foram formadas
por grandes contingentes africanos.

Mas aqui, neste texto, estaremos tratando sempre dessas produções realizadas pelos
africanos antes da ruptura entre tradição e modernidade. Daqui para frente, devemos
relativizar o uso do tempo verbal, e lembrar que a expressão arte africana é,
queiramos ou não, um reducionismo inventado por estrangeiros, mas que está
cristalizada entre nós, relativa a toda produção material estética da África produzida
antes e durante a colonização, até meados do século XX, trazida à Europa por
viajantes, missionários e administradores coloniais.

Não seria difícil encontrarmos nessa arte africana alguns elementos de aproximação
com os de correntes da arte ocidental, do naturalismo ao abstracionismo. Mas esse
tipo de comparação não é capaz de nos desvendar o verdadeiro sentido da arte
africana tradicional, porque esta não foi feita para ser realista ou cubista, isto é, ela
não era um exercício de reflexão sobre a forma, ou sobre a matéria, como nas artes
plásticas entre nós. Apesar disso, podemos identificar na arte africana os elementos
que permitiram a artistas, como Picasso, a revolucionar a arte ocidental.

O cubismo, portanto, é uma invenção intelectual dos europeus, que nada tem a ver
com a intenção dos africanos: enquanto no cubismo a representação do objeto se dá
de diversos pontos de vista, em diversas de suas dimensões formais ao mesmo
tempo, a estética africana busca, ao contrário, uma síntese do objeto ou do tema
construído materialmente, plena de objetivo, inspiração e conteúdo.

Uma estátua não representa, normalmente, um Homem, mas um Ser Humano


integral, que tem uma parte física e espiritual - do passado e do futuro. Tem, por
isso, um lado sagrado, ligado às forças da Natureza e do Universo. Uma máscara ou
uma estátua concentram forças inerentes do próprio material de que são constituídas,
ou que comportam em seu interior ou superfície, além de sua própria força estética.
Elas não têm, portanto, uma função meramente formal.

Ainda assim, podemos observar que algumas produções são mais realistas ou mais
geométricas. O realismo ocorre com frequência nas estátuas, talvez por seu caráter
representativo (de uma figura humana, da imagem onírica de um antepassado),
enquanto que o geometrismo aparece muito nas máscaras, principalmente naquelas
que representam espíritos e seres sobrenaturais, melhor dizendo, o desconhecido
(mas existente no plano consciente e inconsciente). Mesmo assim, nada disso
permite dizer ou não é isso que determina haver uma linha divisória clara entre uma
forma e outra, ou um estilo e outro.

Esse tipo de objeto (porta de celeiro) e esse tema (antílope) celebram a arte dos
Dogon e dos Bambara respectivamente não apenas porque foram encontrados em
abundância entre eles, mas também porque são considerados por esses povos como
signos específicos de sua cultura em circunstâncias dadas na sua tradição oral.

Os procedimentos técnicos e a matéria-prima usados na produção material podem


"falar" muito sobre o estilo, assim como sobre o meio ambiente em que determinadas
sociedades vivem. A madeira era muito usad-a nas regiões de floresta. É por isso que
a estatuária africana está concentrada na chamada África ocidental e na África
central, regiões onde predominava a floresta equatorial e tropical, e onde se
conservam apenas partes dela hoje em dia.

Outras artes, como a cerâmica, cestaria, adornos corporais, eram feitas


tradicionalmente por todas as sociedades, respondendo às necessidades cotidianas e
rituais, sendo que podemos destacar algumas em que essas técnicas eram mais
usadas do que a escultura, de acordo com o modelo de organização social e as
formas de expressão estética. Nesses casos, os recursos gráficos eram mais aplicados
do que os recursos representativos da escultura. Aqui podem ser compreendidos,
particularmente, os produtos de sociedades situadas em regiões semi-áridas, que, em
busca periódica de novos territórios, não podiam transportar com facilidade bens
móveis de grande porte.
África: cultura material, filosofia e religião

Antes de mais nada, devemos lembrar que a dissociação entre Religião e outras
esferas da Cultura existente no Ocidente, e na Modernidade, não faz parte da
natureza da Humanidade. E, como vimos, as sociedades da África pertencem a
complexos culturais muito antigos, reciclando valores arraigados pela Tradição,
caracterizando-se por uma maneira de produzir bens espirituais e materiais de acordo
com sua história e com o meio ambiente onde se formaram.

O historiador Francisco Adolfo Varnhagem, em seus trabalhos historiográficos,


buscou ressaltar a importância da presença do índio e do negro na sociedade e na
cultura brasileira, no final do século XIX. Na década de 30 do século XX,
Gilberto Freyre, apresenta à historiografia o papel do negro na sociedade brasileira,
focando em seu livro Casa Grande e Senzala, as relações estabelecidas entre brancos
e negros no processo de construção histórica do país.
A riqueza da contribuição cultural africana na formação da cultura brasileira
fica patente nas manifestações populares no Brasil. Essa contribuição se mostra na
religião, no batuque do samba, na capoeira, na culinária, na moda, na língua; está
em todo arcabouço cultural brasileiro. A esses elementos trazidos pelos negros
escravos e adaptados e resignificados por eles ao meio que encontraram no Brasil,
chama-se cultura afro-brasileira.
Para compreendermos os sistemas de pensamento e de crenças das sociedades
africanas, devemos ter sempre em mente a dinâmica tradição-modernidade, e, como
fizemos com respeito à arte, relativizar o que pertenceu ao passado e o que, e sob
que forma, permanece no presente.
Cada cultura africana tinha, antes da ruptura social, sua forma de conceber o mundo,
de explicar suas origens e de formular o que lhes convêm, conforme mostram os
mitos e lendas, bem como o discurso das pessoas mais antigas, que viveram antes ou
durante a situação colonial. Isso demonstra a grande diversidade cultural no
continente, correspondente à diversidade de formas e estilos na arte tradicional.
Nesse contexto, o exercício da existência volta-se para questões que vão além do
poder econômico, o que não exclui a preocupação social e individual com o status
(disputado e atribuído a indivíduos de prestígio como sábios e dirigentes), já que ele
é uma das chaves para que o grupo tenha uma estrutura para permanecer unido e
forte visando ao advento de futuras gerações.

Um indivíduo vivendo em sociedade em um determinado período histórico supõe a


existência de outro ou outros indivíduos (filho, neto, bisneto, etc) em períodos
subsequentes, graças à existência daqueles que vieram antes dele, e criaram regras
para que seus contemporâneos e conterrâneos pudessem seguir vivendo, articulando-
se conforme as condições de sobrevivência.

Trata-se de uma linguagem gráfica simbólica, equivalente a da figura antropomórfica


em estátuas e estatuetas, onde se ressaltam cabeça, mãos e pés, seios, ventre, orgãos
sexuais (todos considerados, de um modo geral, centros de força vitais).
Temas como a fertilidade da mulher e fecundidade dos campos são freqüentes e
quase que indissociáveis na expressão artística, estabelecendo a relação entre a
abundância de alimento e a multiplicação da prole, um fator concreto em sociedades
agrárias. O tema do duplo remete à relação de fatores complementares ou
antagônicos (dia-noite, homem-mulher). Todas essas formas gráficas e
representativas são um recurso para apresentar, sob forma material, um conjunto de
idéias sobre a existência concebida visando ao equilíbrio e à perpetuação biológica e
espiritual do grupo social.
Dizem que os africanos não tinham Deus, ou que tinham vários deuses, o que não
parece ser muito preciso. Em quase todas as populações da África foram registrados
depoimentos da criação do mundo, em que existe apenas um único "Deus". Trata-se
de uma força primordial, um Criador que criou o Mundo e os Homens, colocou-os
na Terra, e deixou-os ao seu Destino.

Essas histórias de origem podem ser chamadas de mitos porque se trata de seres não
conhecidos em vida (que estão na memória coletiva), sendo por isso míticos, sem
que se caia no erro de desconsiderá-los, como fizeram os ocidentais, como idéias
sem valor científico e histórico. Tais mitos de origem comportam freqüentemente o
relato de pares primordiais, de gêmeos ou duplas, que vieram para cultivar e povoar
o mundo, e, muitas vezes, seres zoo-antropomorfos que, dotados da tecnologia
(instrumentos agrários ou de caça), vieram para ensinar os Homens a produzir e
obter alimento, para se multiplicarem, zelando, eles - os Homens -, pela sua própria
permanência em vida.

Uma das diferenças dessas idéias com relação às idéias de mundo cristãs é a
consciência de que cada ser que está presente no mundo tem seu papel, e que a força
dos Homens é humana, e não divina. Daí a necessidade de uma relação constante
com os antepassados, visando às futuras gerações. Esse pode ser apontado como um
significado substantivo das várias formas de culto de ancestrais.

É por isso que a vida dos povos africanos é tida como muito mais ritualizada que no
mundo cristão. O mundo material e o espiritual são concebidos juntos, quase que
inseparáveis, o que implica em modelos de culto e religião completamente diferentes
do que se adotou no Ocidente, que por sua vez serviu de modelo para outros povos
formados na modernidade, como é o caso brasileiro
Os Candomblés (são várias as formas como essa religião brasileira de origem
africana se apresenta) conservam formas de culto muito próximas às de cultos
tradicionais da África ocidental (sobretudo dos Fon e dos Ioruba), adotando
emblemas, nomes e outras características de suas divindades (e, às vezes, das
divindades dos povos de línguas bantu, ou dos chamados Bantos, da África central),
bem como a hierarquia de poder iniciático.
Mas, numa aproximação ainda que a grosso modo, eles teriam uma estrutura de
panteão, como a das religiões grega e cristã. Isso quer dizer que existe um Criador e
uma porção de outras divindades articuladas em camadas subalternas. Os cultos
tradicionais da África, por sua vez, voltavam-se, em linhas gerais, aos antepassados
ou a divindades da Natureza. Neste último caso, poderia ser enquadrado o Culto de
Orixás - apelação dada às divindades de origem ioruba ou nagô (os voduns, inquices
e caboclos são divindades de povos africanos de outras origens) -, em que se baseiam
a maioria dos candomblés, muito embora muitas dessas divindades celebram chefes
políticos sacralizados, com uma qualidade divina, de uma localidade (ou reino)
determinado, onde são considerados como antepassados.

Para concluir, grande parte da escultura antropomórfica seja da África ocidental, seja
da central, é uma "presentificação" desses personagens míticos ou mesmo
conhecidos em vida - antepassados fundadores de territórios, chefes de linhagem ou
chefes eleitos renomados por feitos realizados durante seus governos. Em peças
desse tipo transparece a grande relação entre política e religião, motivo pelo qual
estátuas, bustos e cabeças, tendo uma força acumulada de vários níveis, não podiam
ser vistas por todas as pessoas, se não os altos iniciados nos cultos, ou seja, aqueles
que tinham status social e religioso, sendo que em muitas sociedades, o chefe
político era também o sacerdote supremo.

E, neste final, resta a contradição: grande parte da arte africana, que tanto nos
mobiliza o olhar pelo impacto estético, era feita, antes de ser tirada de seu contexto,
para não ser vista, a menos que houvesse uma ocasião precisa para isso. Está aí está
a demonstração da grandeza e do poder de uma cultura material, depositária não de
segredos, mas de fundamentos, a serviço da história e cultura dos povos africanos,
que dentro e fora de seu território original, continuam sua existência, formando
novos valores, como acontece entre nós, no Brasil.

POR QUE ESTUDAR ÁFRICA, TRÁFICO E AFRICANOS NO BRASIL?

A inserção do africano no mundo atlântico foi consequência de um processo que teve


o objetivo de exploração do trabalho. Do século XVI ao XIX, aproximadamente
4.010.000 indivíduos foram trazidos de suas terras de origem, na África, amontoados
em porões de navios e submetidos como escravos no Brasil. Hoje, o contingente dos
afrodescendentes chega a cerca de 80 milhões de pessoas, 46,2% da população
nacional, o que tem levado à afirmação de que o Brasil seria a segunda maior nação
com população de origem africana no mundo, ficando atrás da Nigéria. Nestes quase
cinco séculos, o trabalho negro possibilitou que a metrópole portuguesa num primeiro
momento e as elites brancas nativas em outro constituíssem fortunas.

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Este grande amálgama que se convencionou chamar de cultura brasileira é também
devedor das línguas, das habilidades e dos saberes africanos. Das apreciações
culinárias aos movimentos corporais, das expressões idiomáticas às produções
musicais, das formas de convivência às manifestações religiosas, cada um de nós
brasileiros, traz um pouco daquelas Áfricas ancestrais dentro de si. No entanto, a tão
propalada democracia racial de que tanto nos orgulhamos, e que está presente no
discurso das condições de igualdade no Brasil, ainda está longe de ser realidade.

Há muito já se percebeu que a grande riqueza cultural e o diferencial do Brasil


residem em ser um país mestiço em que povos se misturaram. São negros, brancos e
amarelos; bantos, iorubas, nagôs, tupinambás, guaranis, carijós, portugueses,
italianos, alemães, japoneses e tantos outros.

No entanto, no processo de construção histórica e social do Brasil, alguns desses


povos não foram reconhecidos pelas suas contribuições e acabaram sendo ignorados,
inferiorizados, invisibilizados ou tratados de forma desqualificada na historiografia
nacional, mencionados em muitas vezes como os dominados, incivilizados. Entre
esses povos encontram-se os africanos.

A nova historiografia brasileira e estudos recentes vêm avançando na crítica aos


preconceitos embutidos nos discursos científicos de século XIX e XX. Vêm também
resignificando visões distorcidas da presença africana e resgatando as multifacetadas
presenças negras no país.

No Brasil, o início do século XXI é o marco que representa este avanço e a


concretização de um novo olhar ao Continente Africano. Em 9 de janeiro de 2003,
foi aprovada a Lei nº 10.639, tornando obrigatório o ensino de história e cultura
africana e afro-brasileiras nos níveis de Ensino Fundamental e Médio. Os currículos
deverão incluir temáticas que orientem a presença, a contribuição africana e
afrodescendente nas disciplinas escolares.

Se no Brasil, os primeiros anos do século XXI são importantes, pois concretizaram


os resultados de ações em prol das reivindicações dos movimentos negros, o ano de
2010 projetará o Continente Africano mundialmente. Os olhares estarão voltados
para este continente, que é sede da Copa do Mundo.

Assim, espera-se nessa unidade, não responder, mas alinhar conhecimentos no sentido
de compreendermos a importância do porque estudar África, tráfico e africanos no
Brasil.

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O MOVIMENTO NEGRO E A LUTA PELA INSERÇÃO DA HISTÓRIA DA
ÁFRICA

Como já sinalizado, as reivindicações dos grupos de defesa das ideologias africanas e


afro-brasileiras foram fundamentais para compreender a determinação da Lei nº
10.639.

O entendimento de que os movimentos sociais pelos direitos culturais, políticos,


seja ele qual for, não é um ato neutro, mas é fundamental para a discussão do
contexto das lutas e reivindicações dos grupos que defendem a ideologia africana e
afro-brasileira. Para iniciarmos um diálogo sobre essas ações no Brasil, é necessário
conceituar movimentos sociais.

Movimentos sociais são movimentos populares de representação de um grupo de


interesses cuja ação social é orientada, o que descaracteriza como espontâneo, a fim
de obter transformações políticas e econômicas em um novo cenário de
transformações naturais, e sociais, levando em consideração a metodologia
adotada, sua organização, seu contexto geográfico, seus representantes, ideologia,
políticas, vitórias, derrotas, estrutura e experiência para se consolidar como
representativo dentro de uma sociedade. (BRAGA, 1999).

As primeiras expressões do Movimento Negro no Brasil podem ser representadas a


partir das formas de resistência dos africanos a escravidão ainda nos navios que os
transportavam até o continente americano. Os quilombos, que representam no
período escravista a expressão concreta da resistência negra são também
configurações desse movimento negro.
No final do século XIX, algumas iniciativas de denúncia à discriminação racial se
fazem presentes no cenário brasileiro. Entre elas, pode ser citada a criação do jornal
paulista O Menelick, em 1915, que foi seguido de vários outros jornais, que
buscaram denunciar a condição do negro na sociedade brasileira. Todavia, é
somente a partir dos anos 30 do século XX, que organizações em defesa aos direitos
dos negros começaram a surgir no Brasi.
Em 1931, Henrique Cunha e José Correia Leite fundaram a Frente Negra Brasileira
(FNB), que chegou a transformar-se em partido político em 1936.

O Primeiro congresso afro-brasileiro, realizado em Recife em 1934, reuniu


intelectuais e homens do povo interessados em compreender a influência africana na
formação do Brasil. O congresso buscou valorizar a tradição africana a fim de torná-
la mais próxima da sociedade que ainda relutava em reconhecer e aceitar sua presença
na cultura nacional. Esse Congresso foi organizado por Gilberto Freyre e pelo
psiquiatra Ulisses Pernambucano. Participaram ainda nomes proeminentes da sociedade
brasileira como: o pintor Cícero Dias, Jorge Amado e Renato Mendonça.

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Nos anos 80, com a redemocratização do país, os estudos sobre preconceitos e
estereótipos raciais em livros didáticos são retomados. Os resultados desses estudos
apresentavam a depreciação de personagens negros, associada a uma valorização dos
brancos.

A Comissão de Educação do Conselho de Participação e Desenvolvimento da


Comunidade Negra e o Grupo de Trabalho para Assuntos Afro-brasileiros
promoveram, em 1984, no estado de São Paulo, discussões com professores de
várias áreas sobre a necessidade de rever o currículo e introduzir conteúdos não
discriminatórios na educação.

Atendendo a reivindicações do Movimento Negro, o estado da Bahia, em 1986,


inseriu a disciplina Introdução aos Estudos Africanos na Educação Básica das
escolas estaduais.

Em 1996, o Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) instituiu como critério de


avaliação dos livros didáticos comprados e distribuídos as temáticas que abordavam
as questões raciais.

Os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), em 1998, apresentavam a inclusão da


Pluralidade Cultural entre os temas transversais, como orientação ao trabalho do
professor.

Em 2003, a publicação da Lei nº 10.639 tornou obrigatório o ensino de História da


África e dos afro-brasileiros na Educação Básica.
E ainda, em março de 2003, o governo Federal criou a Seppir (Secretaria Especial de
Políticas de Promoção da Igualdade Racial) e instituiu a Política Nacional de
Promoção da Igualdade Racial. O objetivo dessas ações é promover alteração
positiva na realidade vivenciada pela população negra e rumar para uma sociedade
democrática, justa e igualitária, revendo os desumanos séculos de preconceitos,
discriminação a que foram submetidos os afro-brasileiros.

Nesse sentido, podemos afirmar que atualmente no Brasil, se tem criado condições
para uma maior abertura para se discutir os problemas da sociedade negra, como as
conferências contra a intolerância racial. Esse movimento se organizou em
associações, grupos de apoio, fundações etc., com os objetivos de buscar a
efetivação dos direitos à igualdade, promover a equidade entre a sociedade, através
de ações afirmativas e políticas de integração social. Mas as velhas demandas
continuam sendo lutas constantes do genérico Movimento Negro, como a luta pelo
fim do racismo e exclusão da sociedade negra no mercado de trabalho e do conjunto de
direitos que constituem dignamente um cidadão ativo no meio em que vive.

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AÇÕES AFIRMATIVAS E AS COTAS PARA AFRODESCENDENTES NAS
UNIVERSIDADES
Ocorrida em Durban, na África do Sul, entre os dias 31 de agosto e 8 de
setembro de 2001, a Conferência Mundial contra o Racismo, Discriminação Racial,
Xenofobia e Intolerância Conexa reuniu mais de 2.500 representantes de 170
países, incluindo 16 chefes de Estado, cerca de 4.000 representantes de 450
organizações não governamentais (ONG) e mais de 1.300 jornalistas, bem como
representantes de organismos do sistema das Nações Unidas, instituições nacionais
de direitos humanos e público em geral. Essa conferência representou um evento de
importância primordial nos esforços empreendidos pela comunidade internacional
para combater o racismo, a discriminação racial e a intolerância em todo o mundo.

POR QUE ESTUDAR ÁFRICA, TRÁFICO E AFRICANOS NO BRASIL?


Entre as ações resultantes desta conferência, encontra-se no plano educacional a
adoção do sistema de cotas para negros nas universidades.

O que justificaria a adoção das ações afirmativas para afrodescendentes no sistema


educacional brasileiro? Para responder essa questão vamos ler o texto de Flavia
Piovesan, em que são apresentados elementos para refletir sobre esse
questionamento.

TRÊS SÃO OS ARGUMENTOS QUE SUSTENTAM A NECESSIDADE DE


TAIS MEDIDAS NO CASO BRASILEIRO

O primeiro deles refere-se à própria exigência de uma educação voltada para valores
e para a promoção da diversidade étnico-racial. Se o objetivo maior do processo
educacional há de ser o pleno desenvolvimento da personalidade humana, guiado
pelo valor da cidadania, do respeito, da pluralidade e da tolerância, afirma-se como
absolutamente legítimo o interesse da Universidade em promover a diversidade
étnico-racial, o que traduziria o benefício de maior qualidade e riqueza do ensino e
da vivência acadêmica, contribuindo, ainda, para a eliminação de preconceitos e
estereótipos raciais.

O segundo argumento é de ordem político-social. Se se pretende uma sociedade mais


democrática, com a transformação de organizações, políticas e instituições, o título
universitário ainda remanesce como um passaporte para ascensão social e para a
democratização das esferas de poder, com o “empoderamento” dos grupos
historicamente excluídos. Para ampliar o número de afrodescendentes juízes(as),
advogados(as), procuradores(as), médicos(as), engenheiros(as), arquitetos(as), dentre
outros, o título universitário mostra- se essencial. Acentua-se, ainda, que os
afrodescendentes constituem menos de 2% dos estudantes nas Universidades
públicas brasileiras, embora sejam 45% da população brasileira, que é a segunda
maior população negra do mundo, com exceção da Nigéria.
14
Por fim, há o argumento jurídico, pois a ordem constitucional, somada aos tratados
internacionais de proteção dos direitos humanos ratificados pelo Brasil (em
especial a Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação
Racial), acolhem não apenas o valor da igualdade formal, mas também da
igualdade material. Reconhecem que não basta proibir a discriminação,
sendo necessário também promover a igualdade, por meio de ações
afirmativas. Além disso, a Constituição Federal de 1988 estabelece o
princípio do pluralismo no campo do ensino e consagra como objetivos
fundamentais da República, a construção de uma sociedade justa e solidária,
com a redução das desigualdades sociais – o que vem a conferir lastro jurídico
aos demais argumentos já expostos.

O sistema de cotas para afrodescendentes nas universidades justifica- se diante da


constatação de que a universidade brasileira, ao longo da história desta instituição no
Brasil, foi um espaço de formação profissional de maioria esmagadoramente branca,
valorizando assim apenas um segmento étnico, onde a condição racial constituiu um
fator de privilégios para brancos e de exclusão e desvantagens para os não brancos.

No entanto, se por um lado as políticas de ação afirmativa representam uma conquista,


por outro, elas representam uma série de impactos sociais a exemplo:

• instauração, no espaço acadêmico, de um mecanismo reparador das perdas


infringidas à população negra brasileira;
• acusar a existência do racismo e combatê-lo de forma ativa;
• possibilidade de avaliação das consequências da inclusão de negros e negras na
vida universitária;
• convivência plural e diária com a diversidade humana em sua variedade de
experiências e perspectivas;
• estímulo da confiança de crianças e adolescentes negros em sua capacidade de
realização;
• estímulo aos estudantes negros para demandar de suas escolas um melhor
nível educacional;
• conscientização sobre o que é ser negro no Brasil;
• irradiação dessas influências benéficas para todo o país.

15
POR QUE ESTUDAR ÁFRICA, TRÁFICO E AFRICANOS NO BRASIL?

1 DIRETRIZES CURRICULARES NACIONAIS PARA A EDUCAÇÃO DAS


RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS E PARA O ENSINO DE HISTÓRIA E CULTURA
AFRO-BRASILEIRA E AFRICANA

A Lei nº 10.639, de 2003, alterou a Lei de Diretrizes e Bases da


Educação Brasileira em seu artigo 26 A, oportunizou a elaboração de um
documento com vistas a orientar o trabalho na educação.

Art. 26 – A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio,


oficiais e particulares, torna-se obrigatório o ensino sobre História e
Cultura afro-brasileira.

§ 1º O conteúdo programático a que se refere o caput deste artigo


incluirá o estudo de História da África e dos Africanos, a luta dos negros
no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade
nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social,
econômica e política pertinentes à História do Brasil.

§ 2º Os conteúdos referentes à História e Cultura afro-B=brasileira


serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas
áreas de Educação Artística e de Literatura e História Brasileiras.

As Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-raciais e


para o Ensino de História e Cultura afro-brasileira e Africana destinadas a orientar os
trabalhos educacionais, fundamentar a prática docente e dar sustentação à
obrigatoriedade da Lei nº 10.639, foi posto em circulação, a partir de março de 2004.
Neste item, vamos buscar compreender os princípios que norteiam este documento.

RACISMO, ANTIRRACISMO E A EDUCAÇÃO PARA AS RELAÇÕES


ÉTNICO-RACIAIS
RACISMO NO BRASIL:

A progressiva mobilização e atuação do Movimento Negro no combate à


discriminação, na denúncia do mito da democracia racial e na afirmação de uma
identidade negra positivada trouxe avanços em diversas frentes de combate contra o
racismo no Brasil, principalmente na área da educação.

16
discriminação, negação do racismo, silenciamentos, indiferença quanto à
temática etc. E todas essas atitudes são um forte indicativo da persistência e da
força do mito da democracia racial brasileira.
Vários estudiosos, através de suas pesquisas e análises da temática étnico-
racial, empenharam-se em comprovar e captar as dinâmicas e peculiaridades do
racismo no Brasil, a exemplo de pesquisadores como Munanga (1999, 2009),
Neusa Santos (1983), Carlos Hasenbalg (2005), Petrônio Domingues (2005),
Clóvis Moura (2014), Lilia Schwarcz (1993), Ana Célia Silva (2004), Silvio
Almeida (2018), Nilma Lino Gomes (2017), entre tantos outros.
O racismo enquanto conceito e realidade já foi objeto de diversas
interpretações. Silvio Luiz Almeida, em seu livro “O que é Racismo
Estrutural?” (2018), organiza os debates sobre as atuações do racismo em três
concepções: Racismo individualista – nessa concepção, o racismo é visto como
um fenômeno ético ou psicológico, de caráter individual ou coletivo, atribuído
a grupos isolados; concepção considerada frágil, por se limitar apenas a efeitos
comportamentais. Racismo institucional – nessa visão, o racismo não se
resume a comportamentos individuais, mas é tratado como resultado do
funcionamento das instituições, as quais passam a atuar em uma dinâmica que,
indiretamente, atribui desvantagens e privilégios a partir da raça, tendo o poder
como elemento central da relação racial; segundo o autor, essa visão é um
avanço importante na discussão de racismo, porém as instituições não são a
origem do racismo, e sim reprodutoras da ordem social em que estão inseridas:
“as instituições são racistas porque a sociedade é racista” (p 36). Racismo
estrutural – o racismo é visto como decorrente da própria estrutura social, ou
seja, do modo normal como se constituem as relações políticas, econômicas,
jurídicas, educacionais e até familiares, não sendo uma patologia social e nem
um desarranjo institucional, “Comportamentos individuais e processos
institucionais são derivados de uma sociedade cujo racismo é regra e não
exceção” (p. 38).
Percebe-se que, na concepção estrutural, o racismo está eficazmente
institucionalizado, mas também difuso no tecido social, psicológico,
econômico, político e cultural da sociedade.
Apesar desse avanço no desenvolvimento das teorias, a concepção
individualista sobre racismo ainda é a mais recorrente nas discussões e debates
do nosso cotidiano, inclusive nos ambientes escolares. As contestações ao
racismo ainda ficam muito restritas ao efeito comportamental direto,
superficial, não se aprofundando o assunto numa perspectiva institucional ou
estrutural.

17
Quanto ao conceito de racismo, o professor Kabenguele Munanga revela que
(...) o racismo seria teoricamente uma ideologia essencialista que postula a
divisão da humanidade em grandes grupos chamados raças contrastadas que
têm características físicas hereditárias comuns, sendo estas últimas suportes das
características psicológicas, morais, intelectuais e estéticas e se situam numa
escala de valores desiguais. O racista cria a raça no sentido sociológico, ou
seja, a raça no imaginário do racista não é exclusivamente um grupo definido
pelos traços físicos. A raça na cabeça dele é um grupo social com traços
culturais, lingüísticos, religiosos, etc. que ele considera naturalmente inferiores
ao grupo ao qual ele pertence (2003, p. 8).
Segundo Nilma Lino Gomes:
(...) o racismo constitui-se um sistema de dominação e opressão estrutural
pautado numa racionalidade que hierarquiza grupos e povos baseada na crença
da superioridade e inferioridade racial. No Brasil, ele opera com a ideologia de
raça biológica, travestida no mito da democracia racial que se nutre, entre
outras coisas, do potencial da miscigenação brasileira. A ideologia da raça
biológica encontra nos sinais diacríticos “cor da pele”, “tipo de cabelo”,
“formato do nariz, “formato do corpo” o seu argumento central para
inferiorizar os negros, transformando-os (sobretudo a cor da pele) nos
principais classificatórios dos negros e brancos no Brasil (2012, p .25).
Assim, segundo Munanga (2003) e Gomes (2012), o grande problema é que,
no contexto das relações de poder e de dominação, as classificações da raça
criam hierarquias e legitimam uns em detrimento de outros, criando
desigualdades.
O racismo nasce no Brasil na época da escravidão, mas é no final do século
XIX e início do XX que o discurso ganha contornos científicos.
A adoção, pela elite brasileira, das teses de inferioridade/superioridade racial
vindas da Europa e Estados Unidos iniciou-se em 1870, tendo grande aceitação
pela comunidade acadêmica no período que compreende os anos de 1880 a
1930.
A chegada dessas teorias causou grande impacto nos diversos estabelecimentos
científicos de ensino e pesquisa e serviram de base para a interpretação
científica do desenvolvimento nacional e para a formação de uma identidade da
nação republicana e pós-escravista.
Lilia Schwarcz, em seu livro „„O espetáculo das raças: cientistas, instituições e
questão racial no Brasil‟‟ (1993), analisa como os pensamentos e ideais dos
intelectuais, que estavam envolvidos na questão eugênica no Brasil, foram se
estabelecendo e se adaptando à realidade brasileira. A elite do país no século
XIX foi buscar fundamentos em meio ao novo ideário científico, baseando-se
no darwinismo social, no positivismo, no evolucionismo e no determinismo
biológico e geográfico, para explicar e teorizar a situação racial do país e
também propor caminhos.

As elites intelectuais brasileiras não só consumiram essas novas concepções,


mas também as reconstruíram e reformularam de acordo com os interesses do

18
projeto de formação de identidade nacional. A aceitação da perspectiva de
existência de uma hierarquia racial e o reconhecimento dos problemas da
degeneração inerente a uma sociedade eminentemente mestiça somaram-se à
ideia de que a miscigenação permitiria alcançar a predominância da raça
branca. Assim, a maioria dos estudos da época vislumbravam o
embranquecimento da população brasileira a partir da mistura das raças em
gerações consecutivas, que levariam, inevitavelmente, ao desaparecimento da
população negra.
Essas teorias racistas vigoraram até os anos 30, quando foram substituídas por
um tratamento mais sutil da questão racial, baseado na ideia da democracia
racial, popularizada pelo sociólogo Gilberto Freyre.
A partir dos trabalhos de Freyre em seu livro “Casa Grande e Senzala” (1933),
há uma interpretação do Brasil que desloca o eixo de discussão de raça para a
discussão de cultura. Ao contrário das ideias das teorias raciais as quais traziam
o negro como raça que deveria desaparecer na sociedade, Freyre enaltece a
mistura de sangue, demonstrando a mestiçagem com um valor positivo no
quesito cultural, mas sem trazer para debate os conflitos e as desigualdades de
poder inerentes à questão racial.
Assim nasce a ideia da democracia racial, de harmonia entre as raças, a qual,
apesar de sofrer fortes contestações científicas desde as décadas de 1950 e
1960, por estudiosos como Florestan Fernandes, repercute fortemente até hoje
na mentalidade da população brasileira.
Hasenbalg explica-nos que “(...) o mito da „democracia racial‟ brasileira é
indubitavelmente o símbolo integrador mais poderoso criado para desmobilizar
os negros e legitimar as desigualdades raciais vigentes desde o fim do
escravismo” (HASENBALG, 2005, p. 250).
Segundo Munanga, no livro “Rediscutindo a mestiçagem no Brasil”, o mito da
democracia racial
(...) exalta a ideia de convivência harmoniosa entre os indivíduos de todas as
camadas sociais e grupos étnicos, permitindo às elites dominantes dissimular as
desigualdades e impedindo os membros das comunidades não-brancas de terem
consciência dos sutis mecanismos de exclusão da qual são vítimas na
sociedade. Ou seja, encobre os conflitos raciais, possibilitando a todos se
reconhecerem como brasileiros e afastando das comunidades subalternas a
tomada de consciência de suas características culturais que teriam contribuído
para a construção e expressão de uma identidade própria. Essas

19
características são "expropriadas", "dominadas" e "convertidas" em símbolos
nacionais pelas elites dirigentes (1999, p. 80).
É interessante perceber – como nos alerta Amilcar Pereira (2010, p.60),
fazendo referência aos estudos de George Andrews (1997) – a relação entre a
ideia de democracia racial e as condições de repressão democrática política no
Brasil, na medida em que foi justamente próximo ao período Estado Novo
(1937-1945) que surgiu e se concretizou a ideia de democracia racial e foi no
período da ditadura militar (1964-1985) que o discurso da unidade nacional
baseada na ideia de “democracia racial” se tornou mais evidente, demonstrando
que o conceito de democracia racial está intimamente vinculado às tensões que
cercam a democracia política do país.
O mito da democracia racial ainda é muito presente no imaginário e no
discurso da população brasileira, sendo reforçado periodicamente pelo discurso
político conservador atual. Esse discurso esconde os conflitos raciais
existentes, naturaliza os espaços subordinados que os negros e negras ocupam
na sociedade e invisibiliza as relações de poder entre as populações negra e
branca. O resultado é uma sociedade que ainda propaga o discurso de igualdade
e harmonia racial, disfarçando a relação direta existente entre o racismo e as
desigualdades sociais dele resultantes.
Por isso, a construção de estratégias que visem o combate do racismo e o
elucidar do mito da democracia racial é uma tarefa crucial para um projeto de
sociedade mais igualitária.
A educação, enquanto instrumento emancipatório e de construção de cidadania,
tem, pois, um papel fundamental no enfrentamento da desconstrução do mito
da democracia racial, à medida que possibilita o desenvolvimento de olhar
crítico perante a sociedade, dando subsídios para a luta contra o racismo.
O Movimento Negro, desde o início do século XX, percebeu o papel
estratégico da educação e logo a inseriu como uma de suas pautas principais de
luta.
Assim, no intuito de perceber a importância crucial da educação nas lutas
antirracistas, busco, no próximo ponto, compreender as lutas do Movimento
Negro e a perspectiva educacional como papel prioritário de ação
emancipatória.

ANTIRRACISMO E EDUCAÇÃO: LUTAS DO MOVIMENTO NEGRO

De acordo o autor Sales Augusto dos Santos, em sua tese “Movimento negro,
educação e ações afirmativas” (2007), a educação sempre esteve como uma das
frentes da luta do Movimento

20
Negro. Para Santos, “há uma forma de combate ou um instrumento de luta
contra o racismo que é consensual entre os Movimentos Sociais Negros, qual
seja, a luta por educação formal e a reivindicação de políticas educacionais não
eurocêntricas.” (2007, p.49).
Ainda segundo Santos, as lutas antirracistas no Brasil começaram no período
escravista. O autor compreende que a luta contra a escravidão também era uma
luta contra o racismo, visto que o preconceito e a discriminação racial eram
inerentes à sociedade escravista brasileira e manifestavam-se em todas as suas
formas típicas, considerando o escravismo como um meio extremo de opressão
racial. Assim, as lutas dos negros contra o escravismo – como o afrouxamento
ou a recusa do trabalho, a rebeldia coletiva dos escravizados, fugas, formação
de quilombos e rebeliões nas senzalas – eram consideradas lutas antirracistas,
nas quais o foco era a liberdade.
Mas, ao tematizar as ações desencadeadas do Movimento Negro após a
abolição, Santos afirma que tão logo a escravidão foi formalmente extinta, a
educação tornou-se uma das reivindicações prioritárias dos Movimentos
Negros.
Segundo Nilma Lino Gomes (2017):
Entende-se como Movimento Negro as mais diversas formas de organização e
articulação das negras e negros politicamente posicionados na luta contra o
racismo e que visam à superação desse perverso fenômeno na sociedade.
Participam dessa definição os grupos políticos, acadêmicos, culturais,
religiosos e artísticos com o objetivo explícito de superação do racismo e da
discriminação racial, de valorização e afirmação da história e da cultura negras
do Brasil, de rompimento das barreiras impostas aos negros e às negras na
ocupação dos diferentes espaços e lugares na sociedade (p. 23 e 24).
As primeiras formas de lutas coletivamente organizadas contra o racismo no
pós-abolição aparecem mais visivelmente em São Paulo e Rio de Janeiro, por
meio de associações e clubes que visavam promover a recreação e a cultura
entre os negros, motivado pelas discriminações sofridas pela população negra
nas associações frequentadas pela população branca. Muitas dessas
organizações negras se empenharam em colocar a educação nas suas próprias
agendas e várias criaram escolas em suas sedes. Com o passar do tempo,
tenderam a construir outras formas de lutas, a exemplo dos jornais, que
divulgavam, além de eventos sociais, assuntos de natureza econômica e política
e faziam denúncias e protestos relacionados às questões raciais, formando a
então Imprensa Negra nos anos 20.

21
Esses jornais tinham um papel educativo, informavam e politizavam a
população negra e davam destaque à educação. Várias matérias vinculavam a
ideia da ascensão social do negro à via da educação formal.
Nos anos de 1930, destaca-se a Frente Negra Brasileira (FNB), uma das mais
importantes instituições negras do início do século XX, que chegou a reunir
cerca de 60 mil associados em diversos estados do país e que mais tarde
tornou-se um partido político. A FNB também se preocupou com a educação
formal dos negros, que, segundo a instituição, seria uma condição primordial
para a ascensão moral e o progresso material dos negros na sociedade. Segundo
Sales (2007), comentando a visão de Florestan Fernandes, a FNB buscava a
inclusão e assimilação dos negros na sociedade, mas nos moldes do “padrão
branco”, objetivando a ascensão econômica e social. A FNB subsidiou cursos
de alfabetização para crianças e adultos, além de inglês e música. Com o
advento do Estado Novo, o presidente Getúlio Vargas fechou todos os partidos
políticos; entre eles, a FNB.
Na década de 1940, o Teatro Experimental do Negro (TEN), grupo liderado
por Abdias do Nascimento, nasceu com o intuito de formar atores e
dramaturgos negros com visão crítica da realidade racial no Brasil. Esse grupo
tinha como objetivo trazer ao público temáticas que envolvessem a herança
africana na sua expressão brasileira e a contestação da discriminação racial. O
TEN alfabetizava seus participantes de forma reflexiva e crítica quanto às
questões raciais e sociais, promovia atividades acadêmicas e militantes e
publicava o jornal “Quilombo” (1948-1950), em que se reivindicava o ensino
gratuito para todas as crianças e o incentivo governamental para a admissão de
estudantes negros nas instituições de ensino secundário e universitário. Além
disso, no programa educacional dessa organização, propunha-se o combate ao
racismo com base em medidas culturais e de ensino, baseadas na formação de
uma imagem positiva do negro ao longo da história. Em face das pressões e
perseguições da ditadura militar brasileira, o TEN é extinto em 1968, quando
seu principal fundador, Abdias do Nascimento, vai para o autoexílio, nos
Estados Unidos.
Em 1978, várias entidades negras mobilizadas contra a discriminação racial
fundam, em São Paulo, o Movimento Unificado Contra a Discriminação Racial
(MUCDR), que, em 1979, passa a se chamar Movimento Negro Unificado
(MNU). Segundo Amilcar Pereira, o MNU propunha o combate ao racismo
também no âmbito educacional, porém não somente numa proposta
integradora, mas questionando a escola e, principalmente, a História. Segundo
o autor, A Carta de

22
Princípios do MNU, redigida em 1978, já apresentava uma importante
reivindicação que também se tornou característica do Movimento Negro
contemporâneo, “ a luta pela reavaliação do papel do negro na História do
Brasil” (PEREIRA, 2012, p.99).
Do grupo Palmares, umas das organizações negras contemporâneas ao MNU,
surge outra proposta importante, a de considerar o dia 20 de novembro (dia da
morte do herói negro Zumbi dos Palmares) como Dia da Consciência Negra,
data a ser enaltecida em substituição ao 13 de maio (Dia da Abolição da
Escravatura).
Ao longo da década de 1980, o Movimento Social Negro e intelectuais e
pesquisadores da área da educação produziram um amplo debate sobre a
importância de um currículo escolar que refletisse a diversidade étnico-racial
da sociedade brasileira. Na agenda de reivindicações, estava a reformulação
dos currículos escolares visando a valorização do papel do negro na História do
Brasil e a introdução de matérias como História da África e Línguas Africanas.
Uma das estratégias bem-sucedidas utilizadas pelo MNU nesse período foi a
atuação direta em escolas, não somente dando palestras, informando
professores e estudantes sobre a história do negro no Brasil, mas também
produzindo material didático, como cartilhas, com o objetivo de apresentar
aspectos pouquíssimos conhecidos da História do país, especialmente a história
dos negros no Brasil aliada a uma tentativa de aumento de autoestima por parte
das crianças negras (PEREIRA, 2010, p. 205-209).
Segundo Gomes (2017), a partir da década de 1980, com o processo de
redemocratização, passou a se configurar outro perfil de Movimento Negro,
com a ênfase especial na educação. Alguns ativistas conseguiram seguir no
mundo acadêmico, iniciaram uma trajetória como intelectuais engajados e
focaram suas pesquisas na análise do negro no mercado de trabalho, no
racismo presente nas escolas, analisaram estereótipos raciais nos livros
didáticos, desenvolveram pedagogias e currículos com enfoque nas relações
étnico-raciais e discutiram a importância do estudo da história da África nos
currículos escolares.
Em função de todas essas discussões a níveis nacional e internacional, foi
elaborada, em 1996, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), a Lei nº
9.394/1996, cujo artigo 26 destaca que o ensino de História deve considerar a
diversidade das contribuições dos indígenas, africanos e europeus na formação
do povo brasileiro. Também foram elaborados os Parâmetros Curriculares
Nacionais (PCNs), que, por conta das reivindicações das organizações negras,
tornaram-se objeto de avanço na luta contra o racismo com a aprovação dos
Temas Transversais (Pluralidade Cultural),

23
reconhecendo a escola como espaço privilegiado para a eliminação das
diferentes formas de discriminação.
A década de 90 constitui um período singular na história das relações raciais
brasileiras. A “Marcha Zumbi contra o Racismo, pela Cidadania e a Vida”, em
1995, representou um momento de reivindicação com propostas de políticas
públicas para a população negra, inclusive com políticas educacionais,
sugeridas para o governo federal. É no governo de Fernando Henrique Cardoso
que, pela primeira vez, admite-se oficialmente a existência de preconceito e
discriminação raciais em nossa sociedade. Considero relevante também
mencionar a edição do livro “Superando o racismo na escola”, que contém 11
artigos versando sobre educação e relações raciais, organizado pelo professor
Kabengele Munanga, publicado pela primeira vez em 1999. Esse livro pode ser
considerado mais um dos resultados (na área da educação) dos debates entre
sociedade civil e governo federal ocorridos na década de 1990.
Nos anos 2000, especialmente a partir da “III Conferência Mundial Contra o
Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata”, realizada
em Durban, África do Sul, em 2001, observa-se um avanço nas discussões
sobre a dinâmica das relações raciais no Brasil, sobretudo no que se refere às
diversas formas de discriminação vivenciadas pela população negra no país.
Em consequência, na primeira gestão do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, é
criada, em 2003, a Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade
Racial (SEPPIR), representação histórica da reivindicação do Movimento
Negro, e a questão racial então é incluída como prioridade na pauta de políticas
públicas do país.
Todo esse processo de lutas organizadas dos negros resulta na Lei n°
10.639/03, que altera a LDB, tornando obrigatório o ensino de História e
Cultura Africana e Afro-Brasileira nas escolas.
A Lei nº 10.639/03 e seus desdobramentos legais, promulgados nos anos
seguintes – como as “Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das
Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e
Africana” e o “Plano Nacional de Implementação das Diretrizes Curriculares
Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de
História e Cultura Afro-Brasileira e Africana” – representam avanços no
currículo escolar brasileiro, atingindo todos os níveis e modalidades de ensino.
Assim, o Movimento Negro, ao longo da história, considerou o tema da
educação como ponto crucial no enfrentamento do racismo e com isso tem
obtido importantes conquistas. É fundamental que os estudantes das escolas
brasileiras tenham uma formação emancipatória, que 24

promovam a construção/afirmação de sua identidade, que conheçam mais sobre


a história da África, dos africanos, da luta dos negros e povos indígenas no
Brasil. Mas, para isso, ainda são necessários muitos esforços no sentido de que
o instrumento legal se torne algo concreto e efetivo na educação brasileira.

24
A LEI 10.639 E A FORMAÇÃO DE PROFESSORES

As diretrizes curriculares para a educação étnico-racial e para o ensino de História e


Cultura Afro-brasileira e Africana sinalizam que entre os direitos dos cidadãos
brasileiros, encontram-se o de cursar cada um dos níveis de ensino e de serem
orientados por professores qualificados e com formação para lidar com as tensas
relações produzidas pelo racismo e discriminações, sensíveis e capazes de conduzir a
reeducação das relações entre diferentes grupos étnicos.

O fator chave para a implementação da Lei nº 10.639 é a formação dos professores.


Eles serão os atores fundamentais desse processo. Para isso é necessário difundir,
divulgar a proposta dessa lei, bem como ampliar o acesso à produção histórica em
relação ao Continente Africano.

Os conteúdos pertinentes ao ensino de história da África vêm se constituindo como


uma realidade aos cursos de formação de professores. Essa realidade é problemática,
sobretudo, porque se tem a obrigatoriedade da inserção dos conteúdos referentes a
essa temática no currículo da educação básica. Mas as iniciativas em proporcionar
formação específica nessa temática ao professor se encontram em processo de
construção no ensino brasileiro. No entanto, não se pode negar e nem deixar de citar
os núcleos de estudos afro-brasileiros e africanos junto às universidades federais,
estaduais e também as iniciativas em âmbito estadual, municipal, privadas entre
outros, engajados em divulgar e difundir as questões relacionadas aos estudos da
África.

Desta forma, este tópico objetiva delinear e refletir sobre os desafios em introduzir a
temática história e cultura afro-brasileira e africana nas salas de aula. O professor ao
trabalhar com esta temática deve atentar para não reproduzir a condição de inferioridade e,
em contrapartida, também, deve estar atento para não criar uma ideia de enaltecimento
das sociedades africanas. Seu trabalho deverá possibilitar o entendimento do processo
histórico, social, político e econômico que coloca a África na pauta de discussão em
alguns momentos da História Geral e do Brasil.

25
ENSINAR A RIQUEZA E A DIVERSIDADE DA HISTÓRIA E CULTURA
AFRICANA

Para nós brasileiros, a África, como já sinalizado, tem uma importância peculiar,
sendo juntamente com Portugal uma das grandes matrizes da nossa sociedade.

No entanto, como apresentar um continente rico em sua diversidade, como alinhar a


significativa contribuição africana ao processo de construção histórica do Brasil. Se,
esse mesmo continente é ainda alvo da divulgação de imagens depreciativas, onde os
conflitos étnicos, genocídios, crianças famélicas e aidéticas, líderes corruptos e
cruéis são apontados como sendo a realidade das muitas sociedades que compõem a
mosaica África.

Essa realidade é indicativa de que não basta fazer referência à África e à história
e cultura afro-brasileira nas salas de aula, é preciso atentar para a abordagem dos
conteúdos que serão trabalhados. Ela aponta, também, para a necessidade da
formação docente, uma vez que os problemas decorrem da estratificação de um
imaginário sobre a África, que a concebe como um continente pobre, subdesenvolvido,
subalterno e incivilizado.

PROBLEMÁTICA DIDÁTICA

Considerando o olhar negativo sobre a África e africanos que predominou na


sociedade brasileira durante um longo período, a questão abordada diz respeito ao
problema com as fontes para ensino de História desse continente. O problema
reside em: onde buscar leituras que propiciem informações sobre o Continente
Africano, sua história e sua diversidade?

Como só há pouco tempo o tema passou a fazer parte do currículo escolar e a


incorporar as preocupações dos pesquisadores, a carência de material e de fontes é
relevante.

AS FONTES DE ENSINO PARA HISTÓRIA DA ÁFRICA

Nortear os estudos sobre a África na perspectiva de desnaturalizar, de desmistificar a


imagem negativa e errônea que se construiu ao longo do tempo, requer um esforço
didático sobre um corpo de obras interdisciplinares desprovidas de preconceitos
ideológicos e que levem a compreender a configuração histórica desse continente e
das sociedades africanas.

No Brasil existe um descompasso entre a produção acadêmica e os saberes que


circulam nos espaços da educação básica, isto é, o conhecimento científico
produzido nas universidades, nem sempre chegam às escolas.

26
O livro didático, instrumento importante na difusão do conhecimento, nem sempre
é produzido à luz de novos saberes.
Para mudar a forma como em geral lidamos com conteúdos relativos à África e os
africanos, é indispensável conhecer acerca de suas realidades passadas e presentes.
Para isso, já sinalizamos a importância de um esforço didático. Para auxiliá-lo
disponibilizamos no ambiente virtual, um acervo contendo indicações de leituras
sobre a História da África.

No entanto, é relevante lembrar que não são somente as fontes escritas que
proporcionam conhecimento sobre a África.

AS NOVAS ABORDAGENS NO ENSINO DE HISTÓRIA DA ÁFRICA

Caro(a) acadêmico(a)! Para compreendermos a dinâmica que transfere um continente


desprovido de história, constituído por sociedades ditas incivilizadas, composto por
sujeitos inferiorizados para um continente rico em diversidade cultural, formado por
diferentes sociedades com estruturas políticas, religiosas específicas, que viveram
processos históricos variados e que devem ser entendidos como parte da história da
humanidade. Precisamos voltar um pouco na história das disciplinas que compõem o
Curso de História da Uniasselvi.

A disciplina de Processos Historiográficos possibilitou-nos compreender a dinâmica


das novas correntes historiográficas que nos revelaram a existência, a possibilidade
de novos olhares para a História. Ou seja, que existe uma variedade de abordagens
históricas (como a questão de gênero, das migrações, da elaboração dos padrões
próprios de organização política, econômica e social, dos valores estéticos,
filosóficos e culturais, entre vários outros). A África também se insere nessa
perspectiva de um novo olhar para a história.

Precisamos romper com a visão de que esse continente se constitui num bloco monolítico.
Isto é, precisamos perceber a existência de várias Áfricas dentro de um extenso
território. Áfricas que apresentaram e apresentam diferenças e semelhanças.

27
UNIDADE 1 | A ÁFRICA NA SALA DE AULA

É fundamental que se entenda que a História desse continente não começa com a vinda
dos escravos para as Américas, que não inicia com o colonialismo dos séculos XV e
XVI e que também não começa e nem se esvai com a história da civilização egípcia.
Na verdade, a história da África pré-colonial é uma história rica, em que povos estão
organizados, no mínimo em clãs. Muitos deles formando reinos, estados e impérios,
portanto com estruturas políticas diferentes (algumas com mais governo centralizado,
outras com governo menos centralizado), mais estruturas políticas definidas.

Importante evidenciar que os africanos que vieram para as Américas, em específico


para o Brasil, como cativos e que aqui se tornaram escravos, muitas vezes eram
originários da nobreza africana.

DICAS

Livro “Reis Negros no Brasil Escravista – História da Festa de Coroação de Rei Congo”
(Editora UFMG, 2002, 390 páginas), de Marina de Mello e Souza, professora de História
da África na Universidade de São Paulo.

FIGURA 2 – CAPA DO LIVRO REIS NEGROS NO BRASIL ESCRAVISTA


O livro busca traçar o processo histórico no qual as festas de coroação
de Rei Congo se constituíram, privilegiando a perspectiva do encontro
de culturas diferentes, que, em dado contexto de dominação social
produziu manifestações culturais mestiças. Para tanto, foi necessário
aprofundar o conhecimento da história e da cultura da África Centro-
Ocidental, que compreende a região chamada pelos portugueses, dos
séculos XVI ao XIX, de Congo e Angola e preencher uma lacuna nos
estudos de manifestações culturais afro-brasileiras, no que diz respeito
às contribuições do mundo banto.

FONTE: Disponível em:<http://www1.folha.uol.com.br/folha/sinapse/images/sps4_19.jpg>.


Acesso em: 25 abr. 2010.

28
A CONSTRUÇÃO DAS REPRESENTAÇÕES SOBRE ÁFRICA,
AFRICANOS E AFRO-BRASILEIROS

AS REPRESENTAÇÕES DO NEGRO NOS LIVROS DIDÁTICOS DE HISTÓRIA

Até que ponto a imagem retratada do negro nos livros didáticos, de forma
mascarada, contribuiu para a formação de uma cultura que discrimina e exclui?
Esse questionamento está presente nas discussões que envolvem a produção do livro
didático no Brasil. E, vem colocando este importante veículo de difusão de saberes e
conhecimentos como um dos agentes responsáveis pelo processo que retirou os
africanos e afro-brasileiros da construção da história do Brasil.

Os livros didáticos costumam resumir a participação dos africanos e seus


descendentes ao papel de escravos no Brasil Colônia, e a uma breve menção à
escravidão, mais do que aos próprios escravos, no período imperial. Nesse caso,
não é raro se mencionarem brevemente as leis emancipacionistas (Lei Eusébio de
Queiroz, Lei do Ventre Livre e Lei dos Sexagenários) e se falar mais
demoradamente da Lei Áurea – mesmo que, em um esforço crítico, tente-se
questionar o caráter “redentor” da lei e da Princesa que a assinou. Sobre a África,
pouquíssimo; dificilmente as referências vão além da escravidão moderna, da
partilha imperialista e, no período pós-Segunda Guerra Mundial, do processo de
descolonização – sempre em pouquíssimas linhas. Há exceções, é claro, mas por
serem poucas e pouco difundidas, elas acabam confirmando a regra: o ensino de
História da África no Brasil é muito deficiente.

29
Além disso, essa abordagem, longe de proporcionar elementos para que o estudante
possa compreender a África, os africanos e as nossas origens culturais (e, muitas
vezes, suas próprias origens familiares), contribui para difundir ainda mais o
preconceito: o africano é apresentado como escravizado, primitivo, tutelado,
explorado. Não se fazem referências às diversas civilizações africanas, antigas e
originais, muitas delas extremamente ricas e influentes em sua época, nem aos
complexos modos de vida que se desenvolveram no continente. Pior ainda: algumas
tentativas de aprofundar um pouco o tema servem, ao contrário, para reforçar o
preconceito, como ao mencionarem apressadamente a escravidão africana anterior à
presença europeia. Este é um terreno perigoso, pois, se não compreendermos o
conceito de escravidão em seu contexto correto, corremos o risco de acreditar que a
escravidão, por já existir na África por volta de 1500, seria plenamente justificável
quando praticada pelos europeus.

Caro(a) acadêmico(a)! Para nos aprofundarmos nas discussões em torno da produção


do livro didático e da história da África vamos ler o texto que segue.

O LIVRO DIDÁTICO DE HISTÓRIA ENTRE REPRESENTAÇÕES

Se levarmos em consideração que a grande maioria dos autores de livros didáticos


são historiadores, ou pelo menos professores de História, os manuais escolares –
com seus textos escritos e imagéticos – ganham o status de serem representações da
História. Da mesma forma, seria natural pensar que as mesmas serão (re)significadas
pelos seus leitores, sejam eles professores ou alunos. Entendemos, portanto, que os
textos e os recursos imagéticos presentes em um livro didático – mapas, figuras,
fotografias, pinturas, charges ou desenhos – são produtos da interpretação e da
representação de certa realidade pelos seus autores.

Os próprios manuais guardam uma larga possibilidade de entendimento a partir do


contexto no qual foram fabricados, do momento historiográfico vivenciado, das
diversas demandas e influências que se apresentaram na elaboração desse tipo de
material e de ideologias ou mentalidades circulantes. Ao escrever um texto sobre a
formação dos Estados nacionais europeus e ignorar a multiplicidade étnica da África
pré-colonial, ou utilizar imagens de africanos escravizados e brutalizados e não
aquelas em que aparecem resistindo ou interagindo ao tráfico, o autor está fazendo
uso de uma série de critérios: sua formação acadêmica, suas convicções ideológicas,
seu contexto histórico, o público para quem está elaborado o material, a intenção das
editoras, as limitações de sua formação para tratar todos os assuntos e as pressões do
mercado editorial. De certa forma, seu trabalho final é o resultado de seus olhares
direcionados e cheios de significados e interpretações, resultando num tipo de
representação da história. O livro didático

30
[...] é um importante veículo portador de um sistema de valores, de uma ideologia,
de uma cultura. Várias pesquisas demonstraram como textos e ilustrações de obras
didáticas transmitem estereótipos e valores dos grupos dominantes, generalizando
temas, como família, criança, etnia, de acordo com os preceitos da sociedade branca
[...]. (BITTENCOURT, 1997, p. 72).

A partir das palavras e imagens – significantes – presentes nos livros, os próprios


alunos irão construir suas representações – significados – ou somente absorverão as
representações elaboradas pelos autores. De acordo com Zamboni

Com relação à produção do conhecimento em sala de aula, lidamos diretamente


com a construção e elaboração de imagens e palavras. Neste aspecto, a compreensão
dos sentidos das palavras é de fundamental importância [...] Quando uma palavra
adquire determinado significado, pode ser aplicada a outras situações: é a aplicação
de um conceito a novas situações concretas, é um tipo de transferência. (ZAMBONI,
1998, p. 94-95).

Entretanto, acreditamos que a construção de significados em sala de aula não se


limita às palavras ou textos escritos. As imagens, além de contribuírem para o
processo de ensino-aprendizagem em História (ibidem: 75), também informam uma
maneira de os alunos olharem os indivíduos ou grupos sociais que convivem com
eles.

A imagem enquanto representação do real estabelece identidade, distribui papéis e


posições sociais, exprime e impõe crenças comuns, instala modelos formadores,
delimita territórios, aponta para os que são amigos e os que se deve combater.
(MEIRELES, 1995, p. 101).

Seria plausível, então, pensar que se uma criança africana, europeia ou brasileira for
acostumada a estudar e valorizar apenas ou majoritariamente elementos, valores ou
imagens da tradição histórica europeia elas irão construir interpretações ou
representações influenciadas pelas mesmas. Da mesma forma, se as imagens
reproduzidas nos livros didáticos sempre mostrarem o africano e a História da África
em uma condição negativa, existe uma tendência da criança branca em desvalorizar os
africanos e suas culturas e das crianças africanas em sentirem-se humilhadas ou
rejeitarem suas identidades.

FONTE: OLIVA, Anderson Ribeiro. A História da África nos bancos escolares:


representações e imprecisões na literatura didática. p. 421-461. Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?script

No entanto, não se desconsidera que o PNLD e a legislação brasileira têm estado


31
atentos à representação de negros (e indígenas) nos materiais didáticos. A questão
vem sendo tratada em concordância com as principais tendências do movimento
negro, sob dois ângulos: a proibição do racismo em livros e outros materiais
didáticos, a exortação à inclusão dos aportes de negros (inclusive da África
contemporânea) e indígenas na história e construção do país.

O NEGRO E A LITERATURA

A temática afro-brasileira é uma temática marginal na literatura culta brasileira. No


entanto, na literatura popular, há a existência de uma escrita que é também negra. De
uma escrita onde duas culturas se sucederam. A negra africana, que foi trazida pelos
cativos escravizados e a negra brasileira, que se desenvolveu no Brasil, a partir da
primeira, mas com certa autonomia.

A literatura africana, em consequência a afro-brasileira, se origina a partir do resgate


da tradição oral. Na África, a cultura parte de uma tradição oral, como forma de
conhecimento, como forma de herança.

A resistência do mercado editorial no Brasil a esse tipo de literatura, ainda é


significativa, haja vista, a pouca divulgação de obras com essa temática. No entanto,
o acesso ao pensamento africano, a forma de ser, de viver, que é diferente da cultura
europeia, cultura esta que se faz presente no currículo da educação básica, precisa ser
acessada. Os professores precisam chamar a atenção para a importância do contato
com esse tipo de literatura.

Numa cultura oral como a africana, o griot conserva a memória coletiva. A


figuradogriottemumaenormeimportâncianaconservaçãodapalavra,danarração, do
mito. Na prática, eles funcionam como escritores sem papel. Ortografam na
oralidade aquilo que deve permanecer embutido na memória e no coração dos seus
familiares e conterrâneos, no sentido de manter incrustada a identidade do seu ser
e das suas raízes, fundamentada, em grande parte, no seu passado. Os griots são os
guardiães, intérpretes e cantores da História oral de muitos povos africanos.

FIGURA 4 – GRIOTS DE SAMBALA, REI DE MEDINA (POVO FULA, MALI), 1890

FONTE: Disponível em: <HTTP://pt.wikipedia.org/wiki/Griot>. Acesso em: 25 abr.


2010

32
ÁFRICA, AFRICANOS E AFRO-BRASILEIROS NOS BRINQUEDOS E BRINCADEIRAS

Chicotinho Queimado, Escravos de Jô, Samba Lelê, entre outros são brincadeiras
que perpassam o universo infantil no Brasil, sejam nos espaços formais como a
escola, ou nos espaços informais, como as brincadeiras de rua.

Se por um lado, essas brincadeiras renovam os contextos de opressão onde foram


construídas. Por outro, carregam uma memória afetiva difícil de ser apagada.
Nesse sentido, as brincadeiras infantis que reiteram ou descartam a desumanização
sofrida pelos negros, podem ser também, aliadas no processo de resgatar a
valorização das ações afirmativas que têm o negro como centro. Músicas, danças,
jogos podem ser instrumentos para a maior densidade da referência africana e afro-
brasileira. Para compreendermos esse universo das representações infantis, vamos ler
o texto a seguir.
REDESCOBRINDO BRINQUEDOS CANTADOS NA AFRICANIDADE
BRASILEIRA

Todos os povos têm suas brincadeiras pertinentes às necessidades expressivas de


cada cultura. Como sonhar acordado, brincar é expor-se de dentro para fora.
Segundo a Musicoterapia o som tem propriedades físicas que incidem sobre o corpo
humano de forma objetiva e subjetiva, movendo o sujeito afetivamente, interferindo
no seu desenvolvimento biopsicossocial. Vamos fazer uma breve leitura de alguns
brinquedos do folclore brasileiro que perpassam as instâncias da arte de brincar,
cantar, dançar e imaginar.

Os brinquedos cantados surgem na espontaneidade da cultura popular. Geralmente são


cantigas anônimas acompanhadas de movimentos expressivos, saltitantes e ou
dramatizados. Nestes brinquedos, em geral, as crianças imitam o mundo do adulto
vivenciando emoções, sensações e conflitos como veículos de elaboração e
amadurecimento.

Dos três povos que inicialmente formaram a cultura brasileira, o português trouxe
maior influência para os brinquedos cantados. A oralidade que caracteriza o processo
de transmissão das brincadeiras e brinquedos cantados de certa forma transformou as
cantigas e os modos de brincar, ocorrendo a mistura dos costumes africanos com os
lusitanos, além das variações regionais de uma mesma brincadeira
(CASCUDO,1988). No entanto, os ritmos e danças africanas deram um tempero mais
brejeiro ao legado lúdico brasileiro.

Até o século XIX, as brincadeiras das crianças eram muito limitadas pela rigidez
patriarcal imposta ao comportamento infantil, e porque os infantes eram vistos como
miniadultos. Freyre (2005) conta que muitas crianças brancas
33
eram criadas pelas escravas africanas juntamente com seus filhos negros, os quais
eram mais habilidosos com a natureza, mais dados a traquinagens e à criatividade
devido a sua condição servil.

Outro aspecto característico das brincadeiras infantis no tempo colonial brasileiro, é


que as crianças ao acompanharem seus pais no labor cotidiano da casa grande ou do
eito repetiam em suas brincadeiras estes afazeres e também o contexto de violência
vivido na época. (FREYRE, 2005).

Nos brinquedos cantados, encontra-se o canto, a poesia, a dança, a brincadeira, o


compartilhar, devido à simplicidade musical, riqueza simbólica e ludicidade peculiar;
as vivências através destes elementos lúdicos conquistam a criança como aquilo que é
próprio do seu tempo.

Os termos brincar e jogar são referenciados como sinônimos por Cascudo (1988).
Nos principais idiomas internacionais (inglês, francês, alemão e espanhol), brincar e
jogar também serve para definir atividades artísticas como a interpretação teatral ou
musical (Santa Roza,1993). Na língua portuguesa, o termo “brincar” vem do latim
vinculum e significa laço, união. No entanto, é o termo lúdico da nossa língua,
também proveniente do latim “ludus”, que melhor abrange e define as atividades
artísticas, culturais, brincadeiras e jogos. (ibid.)

Passando para o lado prático, vamos brincar com quatro exemplos curiosos do
cancioneiro infantil brasileiro. O primeiro se chama “Uma, duas angolinhas”, é um
brinquedo cantado tipo parlenda em roda, com as crianças sentadas e um solista ao
meio dando beliscos nas mãos de cada colega enquanto cantam as quadrinhas:

Uma, duas angolinhas, Finca o pé na pampulhinha O rapaz que faz o jogo faz o jogo
de capão
Capão sobre capão, Fica aí Mané João
Aquele que tirar a mão por último vai levar um be-lis-cão.

Além do beliscão refletindo a ideia da galinha d‟angola beliscando as mãos de


cada participante, a protagonista da música, uma ave, é um dos mais importantes
mitos iorubanos sobre a origem da criação do mundo; conta Lopes (2004) que “a
galinha d‟angola ciscou sobre as águas iniciais uma porção de terra e a espalhou por
todas as direções fazendo nascer terra firme”. Por este mito e outras razões ela
também é considerada a primeira iaô e é o animal mais importante dentro da tradição
dos orixás.

No divertido brinquedo cantado “O Saci Pererê”, as crianças em pé na roda, devem


cantar e imitar as habilidades do saci mostradas na música:

34
A CONSTRUÇÃO DAS REPRESENTAÇÕES SOBRE ÁFRICA, AFRICANOS E
AFRO-BRASILEIROS
O Saci Pererê, pula numa perna só, Ele toca o tambor, toca como ele só. O Saci
Pererê, pula numa perna só,
Ele toca o pandeiro, toca como ele só. (...)

Esta brincadeira é aberta a improvisações na letra, onde se podem colocar quantos


instrumentos quiser para o Saci tocar e consequentemente para as crianças imitarem.
O Saci Pererê, elemento tradicional no nosso folclore, aproxima-se de várias figuras
da mítica iorubana como: Exu (em suas traquinagens); Arôni (duende iorubano de
uma perna só, ligado a Ossãim, e que vive nas matas); e ainda é referenciado a uma
palavra do campo semântico da magia e do sortilégio em ioruba “Ásasí”, conforme
assinalado em Lopes (2004 e 2006).

Outro brinquedo cantado de significado muito expressivo é o Tangolomango; as


crianças brincam em roda também para contagem de números decrescentes, no qual
um participante deve deixar a roda ao final de cada verso. Eis algumas quadras desta
cantiga:

Eram dez irmãs numa casa, Uma delas foi tocar o fole, Deu um Tangolomango nela,
E das dez ficaram nove. Eram nove irmãs numa casa, Uma delas foi fazer biscoito,
Deu um Tangolomango nela, E das nove ficaram oito.
Eram oito irmãs numa casa, Uma delas foi amolar canivete, Deu um Tangolomango
nela, E das oito ficaram sete. [...]

A simbologia contida nesta brincadeira em que cada momento uma criança deixa de
fazer parte do grupo acometida pelo Tangolomango vai de encontro às diversas
referências a esta palavra como “Uma doença atribuída a feitiçaria, bruxedo, azar,
infelicidade, morte” (LOPES, 2004). Nota-se que este assunto é bastante difícil para
o entendimento das crianças e carregado de discriminação e preconceito racial,
social entre outros.

Como é de praxe, vamos terminar em samba com uma brincadeira muito conhecida
no sudeste brasileiro, onde as crianças finalizam a música sambando conjuntamente
na roda – como fazem os adultos.

Samba Lelê tá doente, Tá com a cabeça quebrada, Samba Lelê precisava, É de umas
boas lambadas,
Samba, samba, samba ô Lelê, Samba, samba, samba ô Lalá. (bis)

Nosso velho conhecido samba não poderia ficar de fora das brincadeiras das crianças.
Samba é um nome genérico para várias danças brasileiras e para a própria música;
contudo, foi registrado em Angola o verbo samba querendo dizer “cabriolar, brincar,
divertir-se”; é remetido também a palavra semba de origem Bantu significando o
mesmo que umbigada. A propósito, “Lê” é o

35
nome do menor dos três atabaques da orquestra ritual dos candomblés jeje- nagô
(LOPES, 2004). As crianças se divertem aprendendo e ensinando a dança do samba
umas às outras. Este parece ser o maior objetivo dos brinquedos cantados: transmitir
a cultura pela oralidade e pela corporeidade, favorecendo a vivência, a elaboração e o
desenvolvimento da criança.

Buscamos neste trabalho retomar um pouco o tema da africanidade permeada em


nossa cultura desde a infância. Há centenas de outros exemplos, mas, precisaríamos
de um espaço específico para mostrá-los.

Acredito que dar à criança a oportunidade de brincar, cantar e dançar é investir num
caminho de busca da essência do ato, da mente, da voz e do pertencimento
inventando o prazer de ser feliz! Para ambientar o final deste artigo, deixo alguns
versos de uma música popular brasileira do compositor Gonzaguinha que é um
exemplo de ciranda:

REDESCOBRIR
Como se fora brincadeira de roda (memória) Jogo do trabalho na dança das mãos
(macias) O suor dos corpos na canção da vida (história) O suor da vida no calor de
irmãos (magia) (...).

O FIM DA ESCRAVIDÃO E O NEGRO NA SOCIEDADE BRASILEIRA:


ALGUMAS CONSIDERAÇÕES

No ano seguinte ao fim da escravidão, o império no Brasil foi substituído por um novo
regime político, a República. Proclamada por militares, esta nova ordem política
representou os interesses dos cafeicultores. Este regime político difundia a ideia de
que os negros representavam um obstáculo ao desenvolvimento do país e
alimentaram os projetos de estímulos à imigração de europeus e asiáticos para
substituir os escravos libertos.

O fim da escravidão no Brasil, não representou a preocupação em inserir o liberto à


sociedade brasileira. Ao contrário, esses foram lançados da escravidão à liberdade
para vender como quisessem sua força de trabalho, competido pelas oportunidades
de emprego com os imigrantes que iniciavam um processo de adentramento ao
território brasileiro.

Entre a elite pensante brasileira, haviam projetos que objetivavam o branqueamento


da população, com a diminuição da presença negra, vista como fator que dificultava
a marcha ao desenvolvimento em que o país se lançava.

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No século XX, o Brasil iniciou um processo de mecanização e desenvolvimento da
indústria, que exigiu uma mão de obra mais especializada. Uma vez mais, os ex-
escravos e a população negra ficariam impedidos, ou restritos de acessarem essas
oportunidades, pois a maioria não havia recebido nenhum tipo de educação formal.

Nas áreas rurais, o ex-escravo que trabalhava no campo, muitas vezes ocupava
pedaços pequenos de terras, geralmente em sistema de parceria nos quais cedia parte
de sua produção ao proprietário da terra. Ao longo da terceira década do século XX,
a migração de negros para os centros urbanos foi intensa.

O novo quadro político, econômico e social criado a partir do século XX, em que as
cidades e a indústria cresciam, as comunicações se davam com mais facilidade em virtude
da difusão dos meios de comunicação e de transporte. Foi um campo profícuo ao
surgimento de movimentos populares que passaram a exigir direitos que visavam à
igualdade entre as diferentes categorias sociais. Os negros passaram a reivindicar um
espaço maior e mais igualitário numa sociedade que procurou durante séculos mantê-
los numa situação de inferioridade e marginalidade.

Na contemporaneidade, vivemos momentos em que não somente os movimentos


negros vêm reivindicando mais oportunidades de acesso a ações igualitárias, outros
grupos vêm manifestando-se, reivindicando, lutando pelo acesso, pela dignidade de
serem inseridos em uma sociedade mais justa, mais igualitária. No entanto,
chegamos ao fim deste caderno, lembrando de que o objetivo foi apresentar de
maneira geral o continente africano e a relação que ele manteve com a sociedade
brasileira, principalmente as relações mantidas a partir da inserção do africano como
escravo na sociedade brasileira.

Compreender o continente africano dissociado de uma visão monolítica é


fundamental para o trabalho do professor de História na atualidade. Desta forma,
conhecer as sociedades africanas, a maneira como se organizavam, as manifestações
culturais, pode levar à superação do preconceito que ainda estão presentes no
imaginário social contemporâneo. Entre eles pode-se ser citado o preconceito
associado à noção de raça e à ideia de que a uma direção linear na evolução da
humanidade, de sociedades mais primitivas para civilizações mais estruturadas, mais
complexas. Perceber a diversidade das sociedades africanas pode auxiliar no
convívio com o diferente.

37
REFERÊNCIAS

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de Janeiro: Editora Contraponto, 1997.

BENCINI, Roberta. Educação não tem cor. Revista Nova Escola. Ano XIX, n. 177,
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sociais. Ideação n° 4. Feira de Santana: 1999.

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ensino de história e cultura afro-brasileira e africana. Brasília: MEC/ Secretaria
Especial de Promoção de Igualdade Racial/ Secretaria de Educação Continuada,
Alfabetização e Diversidade. 2004

GIORDANI, Mario Curtis Giordani. História da África: anterior aos


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MERCIER, P. História da Antropologia. Rio de Janeiro: Eldorado, 1974.

SERRANO, C.; MUNANGA, K. A revolta dos colonizados: o processo de


descolonização e as independências da África e da Ásia. São Paulo: Atual, 1995.
(História geral em documentos)

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