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HISTÓRIA DA ÁFRICA
Elaboração: Prof.ª Tânia Cordova
Elaboração: Prof.ª Marta Heloísa Leuba Solum (Lisy)
Elaboração: Prof.ª Ubiracy de Souza Braga
Elaboração: Prof.Anthony Appiah wamme
Ministrado por: Profª Ribamar Protasio
2024
Urbano santos
APRESENTAÇÃO
Caro(a) acadêmico(a)!
Como você pode perceber, esta é uma disciplina densa e tem uma
carga enorme de conteúdo, afinal, estudar a história de um
continente milenar, não é uma tarefa fácil. Pelo contrário, exigirá,
além do Caderno de Estudos, outras fontes de pesquisa. Lembre-se:
a pesquisa é uma prática que deve ser inerente ao trabalho do
professor em especial ao futuro professor de Historia pois sem
fontes,vestigios não será possivel escrever ou preescrever a História
que pode ser sua,da cidade ou algo parecido.
OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM
• compreender o contexto histórico e social de surgimento da Lei nº 10.639;
PLANO DE ESTUDOS
Esta unidade está dividida em quatro tópicos. Ao final de cada um
deles você encontrará atividades que o(a) auxiliarão na apropriação dos
conhecimentos aqui disponibilizados.
E é isso que fez com que a distorção da imagem do continente africano, atingisse
também os povos que ali habitavam. De acordo com as ciências do século XIX,
inspiradas no evolucionismo biológico de Charles Darwin, povos como os africanos
estariam num estágio cultural e histórico correspondente aos ancestrais da
Humanidade. Dotados do alfabeto como instrumento de dominação não apenas
cultural, mas econômica também, os europeus estavam em busca de suas origens,
sentindo-se no vértice da pirâmide do desenvolvimento humano e da História. Vem
daí as relações estabelecidas entre Raça e Cultura, corroborando com essa distorção.
Por isso, a história da África, pelo menos antes do contato com o mundo ocidental,
em particular antes da colonização, não pode ser compreendida tomando-se como
referência a organização dominante adotada pelas sociedades ocidentais.
Normalmente fica no esquecimento, dado ao fato colonial, que não existe uma
África anterior, a que se convencionou chamar África tradicional, diversa e
independente, com suas particularidades sociais, econômicas e culturais.
A mudança social provocada pelo fato colonial faz parte dessa história, mesmo que a
intenção da colonização era acabar com ela. O período colonial africano é recente,
durando de 1883-1885 até pouco mais da metade do século XX. Nesse período, os
governos europeus dividiram e reagruparam as sociedades tradicionais da África em
colônias, cujas fronteiras não correspondiam aos seus territórios originais.
Aqui estamos falando apenas daqueles que permaneceram no continente e não dos
que foram sequestrados para a industria da escravidão que durou pelo menos quatro
séculos. Podemos dizer que se o futuro de alguns africanos (os que foram feitos
escravos) continuou aqui no Brasil (e nas Américas), e o passado de povos africanos
na África ficou na memória coletiva e no silêncio da cultura material, temos muito a
repensar sobre a nossa história em comum, encontrando, oxalá, nossos valores para o
futuro.
Por isso, não podemos admitir nada de primitivo na história e na cultura material dos
povos africanos, vez que se trata de sociedades que têm atrás de si mesmas
existência milenar. Temos testemunhos plásticos e iconográficos do séculos V, VI e
até VII a.C. nos países do Mediterrâneo antigo, que demonstram não apenas a
presença da civilização egípcia, como também das civilizações da África sub-
saariana, esta chamada de África negra. Vê-se aqui a antiguidade das culturas
africanas, bem como sua dinâmica, alimentada não apenas por fluxos internos, mas
também externos, desde longa data. Ao lado de tudo isso, lembrar que descobertas
arqueológicas vêm demonstrando a precedência da espécie humana e de suas
indústrias no continente africano, antes dos seus vestígios em território europeu,
como o caso do exemplar mais antigo do homo sapiens sapiens (nossa espécie)
descoberto no Quênia, datado de 130 mil anos atrás.
Em contrapartida, devemos também estar alertos para não nos valermos do que,
entre nós, é tido como premissa de civilização, achando que com isso chegamos à
compreensão de outros povos. Ao lado de técnicas de metalurgia ou cultivo, ao lado
de chefias ou de um comércio ativo, cada sociedade, cada cultura tem um sistema de
categorias próprias de pensamento e existência, sendo ele o que a diferencia das
outras, e o que lhe dá real relevância perante a Humanidade. A cultura material e a
arte, pelo seu caráter concreto (de "coisas", objetos), podem ser veículos eficientes
para que tais categorias não fiquem tão vulneráveis à ação destruidora de nosso
etnocentrismo, desde que sejam enfocadas como produtos de sociedades diferentes e
não desiguais.
As artes plásticas da África que vemos nos livros e coleções são produtos
desenvolvidos ao longo de séculos. Sejam esculpidos, fundidos, modelados,
pintados, trançados ou tecidos, os objetos da África nos mostram a diversidade de
técnicas artísticas que eram usadas nesse continente imenso, e nos dão a dimensão da
quantidade de estilos criados pelos povos africanos.
Tais estilos são a marca da origem dos objetos, isto é, cada estilo ou grupo de estilos
corresponde a um produtor (sociedade, ateliê, artista) e localidade (região, reino,
aldeia). Mesmo assim, devemos lembrar que os grupos sociais não podem ser
considerados no seu isolamento, e, portanto, é natural que a estética de cada
sociedade africana compreenda elementos de contato. Além disso, cada objeto é
apenas uma parte da manifestação estética a que pertence, constituída por um
conjunto de atitudes (gestos, palavras), danças e músicas. Isso pode determinar as
diferenças entre a arte de um grupo e de outro, tendo-se em vista também o lugar e a
época ou período em que o objeto estético-artístico era visto ou usado, de acordo
com a sua função.
Portanto, a primeira coisa a reter é que, na África, cada estátua, cada máscara, tinha
uma função estabelecida, e não eram expostas em vitrines, nem em conjunto, nem
separadamente, como vemos dos museus. Outra coisa deve ser lembrada: a arte
africana é um termo criado por estrangeiros na interpretação da cultura material
estética dos povos africanos tradicionais, diferente das artes plásticas da África
contemporânea que se integram, como as nossas, brasileiras e atuais, no circuito
internacional das exposições.
Se hoje ainda há uma produção similar aos objetos tradicionais, ela deve-se no maior
das vezes às demandas de um mercado turístico, motivado pela curiosidade e
exotismo.
Com referência aos objetos muito semelhantes aos tradicionais ainda em uso em
rituais religiosos ou festas populares há, assim como no Brasil, na África atual, uma
cultura material, que, apesar de sua qualidade estética, é considerada, também pelos
africanos de hoje, "religiosa" ou
"popular" nos moldes ocidentais, onde o antigo e moderno são historicamente
discerníveis. Isso não quer dizer, no entanto, que, através de conteúdos e símbolos, a
arte africana atual não esteja impregnada do tradicional, ainda que se manifestando
em novas formas. Ao contrário, as especificidades da estética tradicional africana é
visível também, nos dias atuais, nas produções artísticas dos países de fora da África,
principalmente daqueles, como o Brasil, cuja população e cultura foram formadas
por grandes contingentes africanos.
Mas aqui, neste texto, estaremos tratando sempre dessas produções realizadas pelos
africanos antes da ruptura entre tradição e modernidade. Daqui para frente, devemos
relativizar o uso do tempo verbal, e lembrar que a expressão arte africana é,
queiramos ou não, um reducionismo inventado por estrangeiros, mas que está
cristalizada entre nós, relativa a toda produção material estética da África produzida
antes e durante a colonização, até meados do século XX, trazida à Europa por
viajantes, missionários e administradores coloniais.
Não seria difícil encontrarmos nessa arte africana alguns elementos de aproximação
com os de correntes da arte ocidental, do naturalismo ao abstracionismo. Mas esse
tipo de comparação não é capaz de nos desvendar o verdadeiro sentido da arte
africana tradicional, porque esta não foi feita para ser realista ou cubista, isto é, ela
não era um exercício de reflexão sobre a forma, ou sobre a matéria, como nas artes
plásticas entre nós. Apesar disso, podemos identificar na arte africana os elementos
que permitiram a artistas, como Picasso, a revolucionar a arte ocidental.
O cubismo, portanto, é uma invenção intelectual dos europeus, que nada tem a ver
com a intenção dos africanos: enquanto no cubismo a representação do objeto se dá
de diversos pontos de vista, em diversas de suas dimensões formais ao mesmo
tempo, a estética africana busca, ao contrário, uma síntese do objeto ou do tema
construído materialmente, plena de objetivo, inspiração e conteúdo.
Ainda assim, podemos observar que algumas produções são mais realistas ou mais
geométricas. O realismo ocorre com frequência nas estátuas, talvez por seu caráter
representativo (de uma figura humana, da imagem onírica de um antepassado),
enquanto que o geometrismo aparece muito nas máscaras, principalmente naquelas
que representam espíritos e seres sobrenaturais, melhor dizendo, o desconhecido
(mas existente no plano consciente e inconsciente). Mesmo assim, nada disso
permite dizer ou não é isso que determina haver uma linha divisória clara entre uma
forma e outra, ou um estilo e outro.
Esse tipo de objeto (porta de celeiro) e esse tema (antílope) celebram a arte dos
Dogon e dos Bambara respectivamente não apenas porque foram encontrados em
abundância entre eles, mas também porque são considerados por esses povos como
signos específicos de sua cultura em circunstâncias dadas na sua tradição oral.
Antes de mais nada, devemos lembrar que a dissociação entre Religião e outras
esferas da Cultura existente no Ocidente, e na Modernidade, não faz parte da
natureza da Humanidade. E, como vimos, as sociedades da África pertencem a
complexos culturais muito antigos, reciclando valores arraigados pela Tradição,
caracterizando-se por uma maneira de produzir bens espirituais e materiais de acordo
com sua história e com o meio ambiente onde se formaram.
Essas histórias de origem podem ser chamadas de mitos porque se trata de seres não
conhecidos em vida (que estão na memória coletiva), sendo por isso míticos, sem
que se caia no erro de desconsiderá-los, como fizeram os ocidentais, como idéias
sem valor científico e histórico. Tais mitos de origem comportam freqüentemente o
relato de pares primordiais, de gêmeos ou duplas, que vieram para cultivar e povoar
o mundo, e, muitas vezes, seres zoo-antropomorfos que, dotados da tecnologia
(instrumentos agrários ou de caça), vieram para ensinar os Homens a produzir e
obter alimento, para se multiplicarem, zelando, eles - os Homens -, pela sua própria
permanência em vida.
Uma das diferenças dessas idéias com relação às idéias de mundo cristãs é a
consciência de que cada ser que está presente no mundo tem seu papel, e que a força
dos Homens é humana, e não divina. Daí a necessidade de uma relação constante
com os antepassados, visando às futuras gerações. Esse pode ser apontado como um
significado substantivo das várias formas de culto de ancestrais.
É por isso que a vida dos povos africanos é tida como muito mais ritualizada que no
mundo cristão. O mundo material e o espiritual são concebidos juntos, quase que
inseparáveis, o que implica em modelos de culto e religião completamente diferentes
do que se adotou no Ocidente, que por sua vez serviu de modelo para outros povos
formados na modernidade, como é o caso brasileiro
Os Candomblés (são várias as formas como essa religião brasileira de origem
africana se apresenta) conservam formas de culto muito próximas às de cultos
tradicionais da África ocidental (sobretudo dos Fon e dos Ioruba), adotando
emblemas, nomes e outras características de suas divindades (e, às vezes, das
divindades dos povos de línguas bantu, ou dos chamados Bantos, da África central),
bem como a hierarquia de poder iniciático.
Mas, numa aproximação ainda que a grosso modo, eles teriam uma estrutura de
panteão, como a das religiões grega e cristã. Isso quer dizer que existe um Criador e
uma porção de outras divindades articuladas em camadas subalternas. Os cultos
tradicionais da África, por sua vez, voltavam-se, em linhas gerais, aos antepassados
ou a divindades da Natureza. Neste último caso, poderia ser enquadrado o Culto de
Orixás - apelação dada às divindades de origem ioruba ou nagô (os voduns, inquices
e caboclos são divindades de povos africanos de outras origens) -, em que se baseiam
a maioria dos candomblés, muito embora muitas dessas divindades celebram chefes
políticos sacralizados, com uma qualidade divina, de uma localidade (ou reino)
determinado, onde são considerados como antepassados.
Para concluir, grande parte da escultura antropomórfica seja da África ocidental, seja
da central, é uma "presentificação" desses personagens míticos ou mesmo
conhecidos em vida - antepassados fundadores de territórios, chefes de linhagem ou
chefes eleitos renomados por feitos realizados durante seus governos. Em peças
desse tipo transparece a grande relação entre política e religião, motivo pelo qual
estátuas, bustos e cabeças, tendo uma força acumulada de vários níveis, não podiam
ser vistas por todas as pessoas, se não os altos iniciados nos cultos, ou seja, aqueles
que tinham status social e religioso, sendo que em muitas sociedades, o chefe
político era também o sacerdote supremo.
E, neste final, resta a contradição: grande parte da arte africana, que tanto nos
mobiliza o olhar pelo impacto estético, era feita, antes de ser tirada de seu contexto,
para não ser vista, a menos que houvesse uma ocasião precisa para isso. Está aí está
a demonstração da grandeza e do poder de uma cultura material, depositária não de
segredos, mas de fundamentos, a serviço da história e cultura dos povos africanos,
que dentro e fora de seu território original, continuam sua existência, formando
novos valores, como acontece entre nós, no Brasil.
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Este grande amálgama que se convencionou chamar de cultura brasileira é também
devedor das línguas, das habilidades e dos saberes africanos. Das apreciações
culinárias aos movimentos corporais, das expressões idiomáticas às produções
musicais, das formas de convivência às manifestações religiosas, cada um de nós
brasileiros, traz um pouco daquelas Áfricas ancestrais dentro de si. No entanto, a tão
propalada democracia racial de que tanto nos orgulhamos, e que está presente no
discurso das condições de igualdade no Brasil, ainda está longe de ser realidade.
Assim, espera-se nessa unidade, não responder, mas alinhar conhecimentos no sentido
de compreendermos a importância do porque estudar África, tráfico e africanos no
Brasil.
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O MOVIMENTO NEGRO E A LUTA PELA INSERÇÃO DA HISTÓRIA DA
ÁFRICA
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Nos anos 80, com a redemocratização do país, os estudos sobre preconceitos e
estereótipos raciais em livros didáticos são retomados. Os resultados desses estudos
apresentavam a depreciação de personagens negros, associada a uma valorização dos
brancos.
Nesse sentido, podemos afirmar que atualmente no Brasil, se tem criado condições
para uma maior abertura para se discutir os problemas da sociedade negra, como as
conferências contra a intolerância racial. Esse movimento se organizou em
associações, grupos de apoio, fundações etc., com os objetivos de buscar a
efetivação dos direitos à igualdade, promover a equidade entre a sociedade, através
de ações afirmativas e políticas de integração social. Mas as velhas demandas
continuam sendo lutas constantes do genérico Movimento Negro, como a luta pelo
fim do racismo e exclusão da sociedade negra no mercado de trabalho e do conjunto de
direitos que constituem dignamente um cidadão ativo no meio em que vive.
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AÇÕES AFIRMATIVAS E AS COTAS PARA AFRODESCENDENTES NAS
UNIVERSIDADES
Ocorrida em Durban, na África do Sul, entre os dias 31 de agosto e 8 de
setembro de 2001, a Conferência Mundial contra o Racismo, Discriminação Racial,
Xenofobia e Intolerância Conexa reuniu mais de 2.500 representantes de 170
países, incluindo 16 chefes de Estado, cerca de 4.000 representantes de 450
organizações não governamentais (ONG) e mais de 1.300 jornalistas, bem como
representantes de organismos do sistema das Nações Unidas, instituições nacionais
de direitos humanos e público em geral. Essa conferência representou um evento de
importância primordial nos esforços empreendidos pela comunidade internacional
para combater o racismo, a discriminação racial e a intolerância em todo o mundo.
O primeiro deles refere-se à própria exigência de uma educação voltada para valores
e para a promoção da diversidade étnico-racial. Se o objetivo maior do processo
educacional há de ser o pleno desenvolvimento da personalidade humana, guiado
pelo valor da cidadania, do respeito, da pluralidade e da tolerância, afirma-se como
absolutamente legítimo o interesse da Universidade em promover a diversidade
étnico-racial, o que traduziria o benefício de maior qualidade e riqueza do ensino e
da vivência acadêmica, contribuindo, ainda, para a eliminação de preconceitos e
estereótipos raciais.
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POR QUE ESTUDAR ÁFRICA, TRÁFICO E AFRICANOS NO BRASIL?
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discriminação, negação do racismo, silenciamentos, indiferença quanto à
temática etc. E todas essas atitudes são um forte indicativo da persistência e da
força do mito da democracia racial brasileira.
Vários estudiosos, através de suas pesquisas e análises da temática étnico-
racial, empenharam-se em comprovar e captar as dinâmicas e peculiaridades do
racismo no Brasil, a exemplo de pesquisadores como Munanga (1999, 2009),
Neusa Santos (1983), Carlos Hasenbalg (2005), Petrônio Domingues (2005),
Clóvis Moura (2014), Lilia Schwarcz (1993), Ana Célia Silva (2004), Silvio
Almeida (2018), Nilma Lino Gomes (2017), entre tantos outros.
O racismo enquanto conceito e realidade já foi objeto de diversas
interpretações. Silvio Luiz Almeida, em seu livro “O que é Racismo
Estrutural?” (2018), organiza os debates sobre as atuações do racismo em três
concepções: Racismo individualista – nessa concepção, o racismo é visto como
um fenômeno ético ou psicológico, de caráter individual ou coletivo, atribuído
a grupos isolados; concepção considerada frágil, por se limitar apenas a efeitos
comportamentais. Racismo institucional – nessa visão, o racismo não se
resume a comportamentos individuais, mas é tratado como resultado do
funcionamento das instituições, as quais passam a atuar em uma dinâmica que,
indiretamente, atribui desvantagens e privilégios a partir da raça, tendo o poder
como elemento central da relação racial; segundo o autor, essa visão é um
avanço importante na discussão de racismo, porém as instituições não são a
origem do racismo, e sim reprodutoras da ordem social em que estão inseridas:
“as instituições são racistas porque a sociedade é racista” (p 36). Racismo
estrutural – o racismo é visto como decorrente da própria estrutura social, ou
seja, do modo normal como se constituem as relações políticas, econômicas,
jurídicas, educacionais e até familiares, não sendo uma patologia social e nem
um desarranjo institucional, “Comportamentos individuais e processos
institucionais são derivados de uma sociedade cujo racismo é regra e não
exceção” (p. 38).
Percebe-se que, na concepção estrutural, o racismo está eficazmente
institucionalizado, mas também difuso no tecido social, psicológico,
econômico, político e cultural da sociedade.
Apesar desse avanço no desenvolvimento das teorias, a concepção
individualista sobre racismo ainda é a mais recorrente nas discussões e debates
do nosso cotidiano, inclusive nos ambientes escolares. As contestações ao
racismo ainda ficam muito restritas ao efeito comportamental direto,
superficial, não se aprofundando o assunto numa perspectiva institucional ou
estrutural.
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Quanto ao conceito de racismo, o professor Kabenguele Munanga revela que
(...) o racismo seria teoricamente uma ideologia essencialista que postula a
divisão da humanidade em grandes grupos chamados raças contrastadas que
têm características físicas hereditárias comuns, sendo estas últimas suportes das
características psicológicas, morais, intelectuais e estéticas e se situam numa
escala de valores desiguais. O racista cria a raça no sentido sociológico, ou
seja, a raça no imaginário do racista não é exclusivamente um grupo definido
pelos traços físicos. A raça na cabeça dele é um grupo social com traços
culturais, lingüísticos, religiosos, etc. que ele considera naturalmente inferiores
ao grupo ao qual ele pertence (2003, p. 8).
Segundo Nilma Lino Gomes:
(...) o racismo constitui-se um sistema de dominação e opressão estrutural
pautado numa racionalidade que hierarquiza grupos e povos baseada na crença
da superioridade e inferioridade racial. No Brasil, ele opera com a ideologia de
raça biológica, travestida no mito da democracia racial que se nutre, entre
outras coisas, do potencial da miscigenação brasileira. A ideologia da raça
biológica encontra nos sinais diacríticos “cor da pele”, “tipo de cabelo”,
“formato do nariz, “formato do corpo” o seu argumento central para
inferiorizar os negros, transformando-os (sobretudo a cor da pele) nos
principais classificatórios dos negros e brancos no Brasil (2012, p .25).
Assim, segundo Munanga (2003) e Gomes (2012), o grande problema é que,
no contexto das relações de poder e de dominação, as classificações da raça
criam hierarquias e legitimam uns em detrimento de outros, criando
desigualdades.
O racismo nasce no Brasil na época da escravidão, mas é no final do século
XIX e início do XX que o discurso ganha contornos científicos.
A adoção, pela elite brasileira, das teses de inferioridade/superioridade racial
vindas da Europa e Estados Unidos iniciou-se em 1870, tendo grande aceitação
pela comunidade acadêmica no período que compreende os anos de 1880 a
1930.
A chegada dessas teorias causou grande impacto nos diversos estabelecimentos
científicos de ensino e pesquisa e serviram de base para a interpretação
científica do desenvolvimento nacional e para a formação de uma identidade da
nação republicana e pós-escravista.
Lilia Schwarcz, em seu livro „„O espetáculo das raças: cientistas, instituições e
questão racial no Brasil‟‟ (1993), analisa como os pensamentos e ideais dos
intelectuais, que estavam envolvidos na questão eugênica no Brasil, foram se
estabelecendo e se adaptando à realidade brasileira. A elite do país no século
XIX foi buscar fundamentos em meio ao novo ideário científico, baseando-se
no darwinismo social, no positivismo, no evolucionismo e no determinismo
biológico e geográfico, para explicar e teorizar a situação racial do país e
também propor caminhos.
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projeto de formação de identidade nacional. A aceitação da perspectiva de
existência de uma hierarquia racial e o reconhecimento dos problemas da
degeneração inerente a uma sociedade eminentemente mestiça somaram-se à
ideia de que a miscigenação permitiria alcançar a predominância da raça
branca. Assim, a maioria dos estudos da época vislumbravam o
embranquecimento da população brasileira a partir da mistura das raças em
gerações consecutivas, que levariam, inevitavelmente, ao desaparecimento da
população negra.
Essas teorias racistas vigoraram até os anos 30, quando foram substituídas por
um tratamento mais sutil da questão racial, baseado na ideia da democracia
racial, popularizada pelo sociólogo Gilberto Freyre.
A partir dos trabalhos de Freyre em seu livro “Casa Grande e Senzala” (1933),
há uma interpretação do Brasil que desloca o eixo de discussão de raça para a
discussão de cultura. Ao contrário das ideias das teorias raciais as quais traziam
o negro como raça que deveria desaparecer na sociedade, Freyre enaltece a
mistura de sangue, demonstrando a mestiçagem com um valor positivo no
quesito cultural, mas sem trazer para debate os conflitos e as desigualdades de
poder inerentes à questão racial.
Assim nasce a ideia da democracia racial, de harmonia entre as raças, a qual,
apesar de sofrer fortes contestações científicas desde as décadas de 1950 e
1960, por estudiosos como Florestan Fernandes, repercute fortemente até hoje
na mentalidade da população brasileira.
Hasenbalg explica-nos que “(...) o mito da „democracia racial‟ brasileira é
indubitavelmente o símbolo integrador mais poderoso criado para desmobilizar
os negros e legitimar as desigualdades raciais vigentes desde o fim do
escravismo” (HASENBALG, 2005, p. 250).
Segundo Munanga, no livro “Rediscutindo a mestiçagem no Brasil”, o mito da
democracia racial
(...) exalta a ideia de convivência harmoniosa entre os indivíduos de todas as
camadas sociais e grupos étnicos, permitindo às elites dominantes dissimular as
desigualdades e impedindo os membros das comunidades não-brancas de terem
consciência dos sutis mecanismos de exclusão da qual são vítimas na
sociedade. Ou seja, encobre os conflitos raciais, possibilitando a todos se
reconhecerem como brasileiros e afastando das comunidades subalternas a
tomada de consciência de suas características culturais que teriam contribuído
para a construção e expressão de uma identidade própria. Essas
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características são "expropriadas", "dominadas" e "convertidas" em símbolos
nacionais pelas elites dirigentes (1999, p. 80).
É interessante perceber – como nos alerta Amilcar Pereira (2010, p.60),
fazendo referência aos estudos de George Andrews (1997) – a relação entre a
ideia de democracia racial e as condições de repressão democrática política no
Brasil, na medida em que foi justamente próximo ao período Estado Novo
(1937-1945) que surgiu e se concretizou a ideia de democracia racial e foi no
período da ditadura militar (1964-1985) que o discurso da unidade nacional
baseada na ideia de “democracia racial” se tornou mais evidente, demonstrando
que o conceito de democracia racial está intimamente vinculado às tensões que
cercam a democracia política do país.
O mito da democracia racial ainda é muito presente no imaginário e no
discurso da população brasileira, sendo reforçado periodicamente pelo discurso
político conservador atual. Esse discurso esconde os conflitos raciais
existentes, naturaliza os espaços subordinados que os negros e negras ocupam
na sociedade e invisibiliza as relações de poder entre as populações negra e
branca. O resultado é uma sociedade que ainda propaga o discurso de igualdade
e harmonia racial, disfarçando a relação direta existente entre o racismo e as
desigualdades sociais dele resultantes.
Por isso, a construção de estratégias que visem o combate do racismo e o
elucidar do mito da democracia racial é uma tarefa crucial para um projeto de
sociedade mais igualitária.
A educação, enquanto instrumento emancipatório e de construção de cidadania,
tem, pois, um papel fundamental no enfrentamento da desconstrução do mito
da democracia racial, à medida que possibilita o desenvolvimento de olhar
crítico perante a sociedade, dando subsídios para a luta contra o racismo.
O Movimento Negro, desde o início do século XX, percebeu o papel
estratégico da educação e logo a inseriu como uma de suas pautas principais de
luta.
Assim, no intuito de perceber a importância crucial da educação nas lutas
antirracistas, busco, no próximo ponto, compreender as lutas do Movimento
Negro e a perspectiva educacional como papel prioritário de ação
emancipatória.
De acordo o autor Sales Augusto dos Santos, em sua tese “Movimento negro,
educação e ações afirmativas” (2007), a educação sempre esteve como uma das
frentes da luta do Movimento
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Negro. Para Santos, “há uma forma de combate ou um instrumento de luta
contra o racismo que é consensual entre os Movimentos Sociais Negros, qual
seja, a luta por educação formal e a reivindicação de políticas educacionais não
eurocêntricas.” (2007, p.49).
Ainda segundo Santos, as lutas antirracistas no Brasil começaram no período
escravista. O autor compreende que a luta contra a escravidão também era uma
luta contra o racismo, visto que o preconceito e a discriminação racial eram
inerentes à sociedade escravista brasileira e manifestavam-se em todas as suas
formas típicas, considerando o escravismo como um meio extremo de opressão
racial. Assim, as lutas dos negros contra o escravismo – como o afrouxamento
ou a recusa do trabalho, a rebeldia coletiva dos escravizados, fugas, formação
de quilombos e rebeliões nas senzalas – eram consideradas lutas antirracistas,
nas quais o foco era a liberdade.
Mas, ao tematizar as ações desencadeadas do Movimento Negro após a
abolição, Santos afirma que tão logo a escravidão foi formalmente extinta, a
educação tornou-se uma das reivindicações prioritárias dos Movimentos
Negros.
Segundo Nilma Lino Gomes (2017):
Entende-se como Movimento Negro as mais diversas formas de organização e
articulação das negras e negros politicamente posicionados na luta contra o
racismo e que visam à superação desse perverso fenômeno na sociedade.
Participam dessa definição os grupos políticos, acadêmicos, culturais,
religiosos e artísticos com o objetivo explícito de superação do racismo e da
discriminação racial, de valorização e afirmação da história e da cultura negras
do Brasil, de rompimento das barreiras impostas aos negros e às negras na
ocupação dos diferentes espaços e lugares na sociedade (p. 23 e 24).
As primeiras formas de lutas coletivamente organizadas contra o racismo no
pós-abolição aparecem mais visivelmente em São Paulo e Rio de Janeiro, por
meio de associações e clubes que visavam promover a recreação e a cultura
entre os negros, motivado pelas discriminações sofridas pela população negra
nas associações frequentadas pela população branca. Muitas dessas
organizações negras se empenharam em colocar a educação nas suas próprias
agendas e várias criaram escolas em suas sedes. Com o passar do tempo,
tenderam a construir outras formas de lutas, a exemplo dos jornais, que
divulgavam, além de eventos sociais, assuntos de natureza econômica e política
e faziam denúncias e protestos relacionados às questões raciais, formando a
então Imprensa Negra nos anos 20.
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Esses jornais tinham um papel educativo, informavam e politizavam a
população negra e davam destaque à educação. Várias matérias vinculavam a
ideia da ascensão social do negro à via da educação formal.
Nos anos de 1930, destaca-se a Frente Negra Brasileira (FNB), uma das mais
importantes instituições negras do início do século XX, que chegou a reunir
cerca de 60 mil associados em diversos estados do país e que mais tarde
tornou-se um partido político. A FNB também se preocupou com a educação
formal dos negros, que, segundo a instituição, seria uma condição primordial
para a ascensão moral e o progresso material dos negros na sociedade. Segundo
Sales (2007), comentando a visão de Florestan Fernandes, a FNB buscava a
inclusão e assimilação dos negros na sociedade, mas nos moldes do “padrão
branco”, objetivando a ascensão econômica e social. A FNB subsidiou cursos
de alfabetização para crianças e adultos, além de inglês e música. Com o
advento do Estado Novo, o presidente Getúlio Vargas fechou todos os partidos
políticos; entre eles, a FNB.
Na década de 1940, o Teatro Experimental do Negro (TEN), grupo liderado
por Abdias do Nascimento, nasceu com o intuito de formar atores e
dramaturgos negros com visão crítica da realidade racial no Brasil. Esse grupo
tinha como objetivo trazer ao público temáticas que envolvessem a herança
africana na sua expressão brasileira e a contestação da discriminação racial. O
TEN alfabetizava seus participantes de forma reflexiva e crítica quanto às
questões raciais e sociais, promovia atividades acadêmicas e militantes e
publicava o jornal “Quilombo” (1948-1950), em que se reivindicava o ensino
gratuito para todas as crianças e o incentivo governamental para a admissão de
estudantes negros nas instituições de ensino secundário e universitário. Além
disso, no programa educacional dessa organização, propunha-se o combate ao
racismo com base em medidas culturais e de ensino, baseadas na formação de
uma imagem positiva do negro ao longo da história. Em face das pressões e
perseguições da ditadura militar brasileira, o TEN é extinto em 1968, quando
seu principal fundador, Abdias do Nascimento, vai para o autoexílio, nos
Estados Unidos.
Em 1978, várias entidades negras mobilizadas contra a discriminação racial
fundam, em São Paulo, o Movimento Unificado Contra a Discriminação Racial
(MUCDR), que, em 1979, passa a se chamar Movimento Negro Unificado
(MNU). Segundo Amilcar Pereira, o MNU propunha o combate ao racismo
também no âmbito educacional, porém não somente numa proposta
integradora, mas questionando a escola e, principalmente, a História. Segundo
o autor, A Carta de
22
Princípios do MNU, redigida em 1978, já apresentava uma importante
reivindicação que também se tornou característica do Movimento Negro
contemporâneo, “ a luta pela reavaliação do papel do negro na História do
Brasil” (PEREIRA, 2012, p.99).
Do grupo Palmares, umas das organizações negras contemporâneas ao MNU,
surge outra proposta importante, a de considerar o dia 20 de novembro (dia da
morte do herói negro Zumbi dos Palmares) como Dia da Consciência Negra,
data a ser enaltecida em substituição ao 13 de maio (Dia da Abolição da
Escravatura).
Ao longo da década de 1980, o Movimento Social Negro e intelectuais e
pesquisadores da área da educação produziram um amplo debate sobre a
importância de um currículo escolar que refletisse a diversidade étnico-racial
da sociedade brasileira. Na agenda de reivindicações, estava a reformulação
dos currículos escolares visando a valorização do papel do negro na História do
Brasil e a introdução de matérias como História da África e Línguas Africanas.
Uma das estratégias bem-sucedidas utilizadas pelo MNU nesse período foi a
atuação direta em escolas, não somente dando palestras, informando
professores e estudantes sobre a história do negro no Brasil, mas também
produzindo material didático, como cartilhas, com o objetivo de apresentar
aspectos pouquíssimos conhecidos da História do país, especialmente a história
dos negros no Brasil aliada a uma tentativa de aumento de autoestima por parte
das crianças negras (PEREIRA, 2010, p. 205-209).
Segundo Gomes (2017), a partir da década de 1980, com o processo de
redemocratização, passou a se configurar outro perfil de Movimento Negro,
com a ênfase especial na educação. Alguns ativistas conseguiram seguir no
mundo acadêmico, iniciaram uma trajetória como intelectuais engajados e
focaram suas pesquisas na análise do negro no mercado de trabalho, no
racismo presente nas escolas, analisaram estereótipos raciais nos livros
didáticos, desenvolveram pedagogias e currículos com enfoque nas relações
étnico-raciais e discutiram a importância do estudo da história da África nos
currículos escolares.
Em função de todas essas discussões a níveis nacional e internacional, foi
elaborada, em 1996, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), a Lei nº
9.394/1996, cujo artigo 26 destaca que o ensino de História deve considerar a
diversidade das contribuições dos indígenas, africanos e europeus na formação
do povo brasileiro. Também foram elaborados os Parâmetros Curriculares
Nacionais (PCNs), que, por conta das reivindicações das organizações negras,
tornaram-se objeto de avanço na luta contra o racismo com a aprovação dos
Temas Transversais (Pluralidade Cultural),
23
reconhecendo a escola como espaço privilegiado para a eliminação das
diferentes formas de discriminação.
A década de 90 constitui um período singular na história das relações raciais
brasileiras. A “Marcha Zumbi contra o Racismo, pela Cidadania e a Vida”, em
1995, representou um momento de reivindicação com propostas de políticas
públicas para a população negra, inclusive com políticas educacionais,
sugeridas para o governo federal. É no governo de Fernando Henrique Cardoso
que, pela primeira vez, admite-se oficialmente a existência de preconceito e
discriminação raciais em nossa sociedade. Considero relevante também
mencionar a edição do livro “Superando o racismo na escola”, que contém 11
artigos versando sobre educação e relações raciais, organizado pelo professor
Kabengele Munanga, publicado pela primeira vez em 1999. Esse livro pode ser
considerado mais um dos resultados (na área da educação) dos debates entre
sociedade civil e governo federal ocorridos na década de 1990.
Nos anos 2000, especialmente a partir da “III Conferência Mundial Contra o
Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata”, realizada
em Durban, África do Sul, em 2001, observa-se um avanço nas discussões
sobre a dinâmica das relações raciais no Brasil, sobretudo no que se refere às
diversas formas de discriminação vivenciadas pela população negra no país.
Em consequência, na primeira gestão do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, é
criada, em 2003, a Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade
Racial (SEPPIR), representação histórica da reivindicação do Movimento
Negro, e a questão racial então é incluída como prioridade na pauta de políticas
públicas do país.
Todo esse processo de lutas organizadas dos negros resulta na Lei n°
10.639/03, que altera a LDB, tornando obrigatório o ensino de História e
Cultura Africana e Afro-Brasileira nas escolas.
A Lei nº 10.639/03 e seus desdobramentos legais, promulgados nos anos
seguintes – como as “Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das
Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e
Africana” e o “Plano Nacional de Implementação das Diretrizes Curriculares
Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de
História e Cultura Afro-Brasileira e Africana” – representam avanços no
currículo escolar brasileiro, atingindo todos os níveis e modalidades de ensino.
Assim, o Movimento Negro, ao longo da história, considerou o tema da
educação como ponto crucial no enfrentamento do racismo e com isso tem
obtido importantes conquistas. É fundamental que os estudantes das escolas
brasileiras tenham uma formação emancipatória, que 24
24
A LEI 10.639 E A FORMAÇÃO DE PROFESSORES
Desta forma, este tópico objetiva delinear e refletir sobre os desafios em introduzir a
temática história e cultura afro-brasileira e africana nas salas de aula. O professor ao
trabalhar com esta temática deve atentar para não reproduzir a condição de inferioridade e,
em contrapartida, também, deve estar atento para não criar uma ideia de enaltecimento
das sociedades africanas. Seu trabalho deverá possibilitar o entendimento do processo
histórico, social, político e econômico que coloca a África na pauta de discussão em
alguns momentos da História Geral e do Brasil.
25
ENSINAR A RIQUEZA E A DIVERSIDADE DA HISTÓRIA E CULTURA
AFRICANA
Para nós brasileiros, a África, como já sinalizado, tem uma importância peculiar,
sendo juntamente com Portugal uma das grandes matrizes da nossa sociedade.
Essa realidade é indicativa de que não basta fazer referência à África e à história
e cultura afro-brasileira nas salas de aula, é preciso atentar para a abordagem dos
conteúdos que serão trabalhados. Ela aponta, também, para a necessidade da
formação docente, uma vez que os problemas decorrem da estratificação de um
imaginário sobre a África, que a concebe como um continente pobre, subdesenvolvido,
subalterno e incivilizado.
PROBLEMÁTICA DIDÁTICA
26
O livro didático, instrumento importante na difusão do conhecimento, nem sempre
é produzido à luz de novos saberes.
Para mudar a forma como em geral lidamos com conteúdos relativos à África e os
africanos, é indispensável conhecer acerca de suas realidades passadas e presentes.
Para isso, já sinalizamos a importância de um esforço didático. Para auxiliá-lo
disponibilizamos no ambiente virtual, um acervo contendo indicações de leituras
sobre a História da África.
No entanto, é relevante lembrar que não são somente as fontes escritas que
proporcionam conhecimento sobre a África.
Precisamos romper com a visão de que esse continente se constitui num bloco monolítico.
Isto é, precisamos perceber a existência de várias Áfricas dentro de um extenso
território. Áfricas que apresentaram e apresentam diferenças e semelhanças.
27
UNIDADE 1 | A ÁFRICA NA SALA DE AULA
É fundamental que se entenda que a História desse continente não começa com a vinda
dos escravos para as Américas, que não inicia com o colonialismo dos séculos XV e
XVI e que também não começa e nem se esvai com a história da civilização egípcia.
Na verdade, a história da África pré-colonial é uma história rica, em que povos estão
organizados, no mínimo em clãs. Muitos deles formando reinos, estados e impérios,
portanto com estruturas políticas diferentes (algumas com mais governo centralizado,
outras com governo menos centralizado), mais estruturas políticas definidas.
DICAS
Livro “Reis Negros no Brasil Escravista – História da Festa de Coroação de Rei Congo”
(Editora UFMG, 2002, 390 páginas), de Marina de Mello e Souza, professora de História
da África na Universidade de São Paulo.
28
A CONSTRUÇÃO DAS REPRESENTAÇÕES SOBRE ÁFRICA,
AFRICANOS E AFRO-BRASILEIROS
Até que ponto a imagem retratada do negro nos livros didáticos, de forma
mascarada, contribuiu para a formação de uma cultura que discrimina e exclui?
Esse questionamento está presente nas discussões que envolvem a produção do livro
didático no Brasil. E, vem colocando este importante veículo de difusão de saberes e
conhecimentos como um dos agentes responsáveis pelo processo que retirou os
africanos e afro-brasileiros da construção da história do Brasil.
29
Além disso, essa abordagem, longe de proporcionar elementos para que o estudante
possa compreender a África, os africanos e as nossas origens culturais (e, muitas
vezes, suas próprias origens familiares), contribui para difundir ainda mais o
preconceito: o africano é apresentado como escravizado, primitivo, tutelado,
explorado. Não se fazem referências às diversas civilizações africanas, antigas e
originais, muitas delas extremamente ricas e influentes em sua época, nem aos
complexos modos de vida que se desenvolveram no continente. Pior ainda: algumas
tentativas de aprofundar um pouco o tema servem, ao contrário, para reforçar o
preconceito, como ao mencionarem apressadamente a escravidão africana anterior à
presença europeia. Este é um terreno perigoso, pois, se não compreendermos o
conceito de escravidão em seu contexto correto, corremos o risco de acreditar que a
escravidão, por já existir na África por volta de 1500, seria plenamente justificável
quando praticada pelos europeus.
30
[...] é um importante veículo portador de um sistema de valores, de uma ideologia,
de uma cultura. Várias pesquisas demonstraram como textos e ilustrações de obras
didáticas transmitem estereótipos e valores dos grupos dominantes, generalizando
temas, como família, criança, etnia, de acordo com os preceitos da sociedade branca
[...]. (BITTENCOURT, 1997, p. 72).
Seria plausível, então, pensar que se uma criança africana, europeia ou brasileira for
acostumada a estudar e valorizar apenas ou majoritariamente elementos, valores ou
imagens da tradição histórica europeia elas irão construir interpretações ou
representações influenciadas pelas mesmas. Da mesma forma, se as imagens
reproduzidas nos livros didáticos sempre mostrarem o africano e a História da África
em uma condição negativa, existe uma tendência da criança branca em desvalorizar os
africanos e suas culturas e das crianças africanas em sentirem-se humilhadas ou
rejeitarem suas identidades.
O NEGRO E A LITERATURA
32
ÁFRICA, AFRICANOS E AFRO-BRASILEIROS NOS BRINQUEDOS E BRINCADEIRAS
Chicotinho Queimado, Escravos de Jô, Samba Lelê, entre outros são brincadeiras
que perpassam o universo infantil no Brasil, sejam nos espaços formais como a
escola, ou nos espaços informais, como as brincadeiras de rua.
Dos três povos que inicialmente formaram a cultura brasileira, o português trouxe
maior influência para os brinquedos cantados. A oralidade que caracteriza o processo
de transmissão das brincadeiras e brinquedos cantados de certa forma transformou as
cantigas e os modos de brincar, ocorrendo a mistura dos costumes africanos com os
lusitanos, além das variações regionais de uma mesma brincadeira
(CASCUDO,1988). No entanto, os ritmos e danças africanas deram um tempero mais
brejeiro ao legado lúdico brasileiro.
Até o século XIX, as brincadeiras das crianças eram muito limitadas pela rigidez
patriarcal imposta ao comportamento infantil, e porque os infantes eram vistos como
miniadultos. Freyre (2005) conta que muitas crianças brancas
33
eram criadas pelas escravas africanas juntamente com seus filhos negros, os quais
eram mais habilidosos com a natureza, mais dados a traquinagens e à criatividade
devido a sua condição servil.
Os termos brincar e jogar são referenciados como sinônimos por Cascudo (1988).
Nos principais idiomas internacionais (inglês, francês, alemão e espanhol), brincar e
jogar também serve para definir atividades artísticas como a interpretação teatral ou
musical (Santa Roza,1993). Na língua portuguesa, o termo “brincar” vem do latim
vinculum e significa laço, união. No entanto, é o termo lúdico da nossa língua,
também proveniente do latim “ludus”, que melhor abrange e define as atividades
artísticas, culturais, brincadeiras e jogos. (ibid.)
Passando para o lado prático, vamos brincar com quatro exemplos curiosos do
cancioneiro infantil brasileiro. O primeiro se chama “Uma, duas angolinhas”, é um
brinquedo cantado tipo parlenda em roda, com as crianças sentadas e um solista ao
meio dando beliscos nas mãos de cada colega enquanto cantam as quadrinhas:
Uma, duas angolinhas, Finca o pé na pampulhinha O rapaz que faz o jogo faz o jogo
de capão
Capão sobre capão, Fica aí Mané João
Aquele que tirar a mão por último vai levar um be-lis-cão.
34
A CONSTRUÇÃO DAS REPRESENTAÇÕES SOBRE ÁFRICA, AFRICANOS E
AFRO-BRASILEIROS
O Saci Pererê, pula numa perna só, Ele toca o tambor, toca como ele só. O Saci
Pererê, pula numa perna só,
Ele toca o pandeiro, toca como ele só. (...)
Eram dez irmãs numa casa, Uma delas foi tocar o fole, Deu um Tangolomango nela,
E das dez ficaram nove. Eram nove irmãs numa casa, Uma delas foi fazer biscoito,
Deu um Tangolomango nela, E das nove ficaram oito.
Eram oito irmãs numa casa, Uma delas foi amolar canivete, Deu um Tangolomango
nela, E das oito ficaram sete. [...]
A simbologia contida nesta brincadeira em que cada momento uma criança deixa de
fazer parte do grupo acometida pelo Tangolomango vai de encontro às diversas
referências a esta palavra como “Uma doença atribuída a feitiçaria, bruxedo, azar,
infelicidade, morte” (LOPES, 2004). Nota-se que este assunto é bastante difícil para
o entendimento das crianças e carregado de discriminação e preconceito racial,
social entre outros.
Como é de praxe, vamos terminar em samba com uma brincadeira muito conhecida
no sudeste brasileiro, onde as crianças finalizam a música sambando conjuntamente
na roda – como fazem os adultos.
Samba Lelê tá doente, Tá com a cabeça quebrada, Samba Lelê precisava, É de umas
boas lambadas,
Samba, samba, samba ô Lelê, Samba, samba, samba ô Lalá. (bis)
Nosso velho conhecido samba não poderia ficar de fora das brincadeiras das crianças.
Samba é um nome genérico para várias danças brasileiras e para a própria música;
contudo, foi registrado em Angola o verbo samba querendo dizer “cabriolar, brincar,
divertir-se”; é remetido também a palavra semba de origem Bantu significando o
mesmo que umbigada. A propósito, “Lê” é o
35
nome do menor dos três atabaques da orquestra ritual dos candomblés jeje- nagô
(LOPES, 2004). As crianças se divertem aprendendo e ensinando a dança do samba
umas às outras. Este parece ser o maior objetivo dos brinquedos cantados: transmitir
a cultura pela oralidade e pela corporeidade, favorecendo a vivência, a elaboração e o
desenvolvimento da criança.
Acredito que dar à criança a oportunidade de brincar, cantar e dançar é investir num
caminho de busca da essência do ato, da mente, da voz e do pertencimento
inventando o prazer de ser feliz! Para ambientar o final deste artigo, deixo alguns
versos de uma música popular brasileira do compositor Gonzaguinha que é um
exemplo de ciranda:
REDESCOBRIR
Como se fora brincadeira de roda (memória) Jogo do trabalho na dança das mãos
(macias) O suor dos corpos na canção da vida (história) O suor da vida no calor de
irmãos (magia) (...).
No ano seguinte ao fim da escravidão, o império no Brasil foi substituído por um novo
regime político, a República. Proclamada por militares, esta nova ordem política
representou os interesses dos cafeicultores. Este regime político difundia a ideia de
que os negros representavam um obstáculo ao desenvolvimento do país e
alimentaram os projetos de estímulos à imigração de europeus e asiáticos para
substituir os escravos libertos.
36
No século XX, o Brasil iniciou um processo de mecanização e desenvolvimento da
indústria, que exigiu uma mão de obra mais especializada. Uma vez mais, os ex-
escravos e a população negra ficariam impedidos, ou restritos de acessarem essas
oportunidades, pois a maioria não havia recebido nenhum tipo de educação formal.
Nas áreas rurais, o ex-escravo que trabalhava no campo, muitas vezes ocupava
pedaços pequenos de terras, geralmente em sistema de parceria nos quais cedia parte
de sua produção ao proprietário da terra. Ao longo da terceira década do século XX,
a migração de negros para os centros urbanos foi intensa.
O novo quadro político, econômico e social criado a partir do século XX, em que as
cidades e a indústria cresciam, as comunicações se davam com mais facilidade em virtude
da difusão dos meios de comunicação e de transporte. Foi um campo profícuo ao
surgimento de movimentos populares que passaram a exigir direitos que visavam à
igualdade entre as diferentes categorias sociais. Os negros passaram a reivindicar um
espaço maior e mais igualitário numa sociedade que procurou durante séculos mantê-
los numa situação de inferioridade e marginalidade.
37
REFERÊNCIAS
APPIAH, Kwame Anthony. Na casa de meu pai: a África na filosofia da cultura. Rio
de Janeiro: Editora Contraponto, 1997.
BENCINI, Roberta. Educação não tem cor. Revista Nova Escola. Ano XIX, n. 177,
nov. 2004, p. 47-53.
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