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Questões preliminares
É importante serem elucidadas questões pertinentes aos Estudos Africanos,
quando se fala em História da África e principalmente em África Pré-
Colonial. Uma discussão de algumas décadas anteriores: nomenclaturas que
servem para o Ocidente denominar as estruturas de poder e suas hierarquias
como rei, rainha, príncipe, duque, reino, estado que estão, na verdade,
vinculadas à história européia (1). Como cunhar o termo rei para estruturas
de poder tão distantes, se pensarmos em forma de poder, como as africanas?
A situação que trouxe aos meios acadêmicos dos Estudos Africanos essa
polêmica, situa-se na década de setenta. Como definir estado para a maioria
das formações sociais africanas, que como se sabe, são muitas as
dificuldades de se encaixarem nesse padrão do estado moderno europeu (2).
Diante dessa discussão é de suma importância deslindar aqui o uso do
termo rei, reino e o seu enquadramento em situações em que um
determinado poder possa ser similar às unidades políticas ocidentais assim
denominadas. Mas cabe argumentar ainda, como o historiador africano Ki-
Zerbo já assinalou, que com todas as especificidades da África Negra, ela
não é um caso à parte na História Universal e, por isso mesmo,
imperceptível para a análise histórica ou social. As suas peculiaridades não
inviabilizam seu estudo, muito pelo contrário, são seus grandes desafios que
vêm permitindo sua avançada participação na atual transformação da
Historiografia Internacional.
Outra ponta da discussão são as fontes. Assunto central para a historiografia
africanista hoje. As fontes escritas e seus problemas, obras feitas por
estrangeiros, com olhares etnocêntricos, europeus imbuídos de
superioridades, levados pela modernidade européia aos mais longínquos
pontos do litoral africano. Fora estes escritos resta um continente,
principalmente no caso preciso da África Negra, com uma população
ágrafa. Em muitas partes e épocas não se tem nenhum testemunho escrito. E
antes da chegada dos europeus, como reconstruir a história? A grande
contribuição da historiografia africanista à Historiografia Universal situa-se
aqui, na década de 60, período das emergentes nações africanas, na
necessidade da construção da História da África que impôs ao fazer
histórico, naquele continente, um dos maiores desafios. O reconhecimento
da importância da tradição oral como testemunho histórico, categoria de um
saber peculiar, possuidora de outra lógica que não a da escrita, foi tarefa
árdua. A leitura dos ‘textos orais’ requer técnicas específicas, com suas
várias tipologias, como as genealogias e narrativas. Mas hoje, além de
reconhecida, profundamente enriquecedora e com uma produção
destacável, contribui para o desenvolvimento de uma emergente História
Oral, aplicada as sociedades industrializadas contemporâneas (Prins, 1992,
p. 165-6).
Observação feita por um autor no século XVII chama a atenção para o fato
de que no reino do Kongo, o número dos escravos é igual ao das pessoas
livres (Cavazzi, 1965, p.356).
Para se livrar ‘do pagamento por uma noiva’, um homem pode casar-se com
uma escrava ou penhorada, sendo neste último caso a dívida cancelada.
Uma escrava com um homem livre faz parte da família e, depois de ter
filhos de um homem livre, torna-se uma ‘dependente livre’. Uma escrava
casada com um escravo, no entanto, mantém seu status de escrava.
Mulheres e escravos nascidos na família são, com o tempo, assimilados e
raramente vendidos. Muitas vezes desempenham tarefas domésticas, mas
podem assumir funções de responsabilidade. A segunda geração dos cativos
já será mais integrada à comunidade.
Esta forma de subordinação nas sociedades africanas, para alguns, pode ser
apresentada como uma instituição que congrega a ‘marginalidade’ de
determinada população (Miers & Kopytoff, 1977). Os que defenderam esta
formulação preferem ‘escravidão’ a escravidão, a principal ênfase recaindo
na confrontação dos conceitos escravidão/liberdade. Esta dualidade se
caracteriza como uma maneira Ocidental de aproximar-se dessa relação de
submissão. A mentalidade ocidental tende a englobar tudo que se apresenta
como submissão neste rótulo de escravidão. Às vezes, tais rótulos se
adequam a alguns traços, mas no geral não se encaixam no caso africano.
Percorrendo os meandros da dicotomia escravidão/liberdade, no relativo à
sociedade africana, uma pessoa pode ser vendida ou comprada e, logo
depois, incorporada a uma determinada comunidade, integrando-se de
maneira diferente das pessoas nascidas naquela mesma comunidade. A
partir daí, surgem os primeiros limites a possíveis analogias com o modelo
Ocidental de escravidão. A própria noção de ‘vendável’ não era sempre
aplicada aos escravos, mas muitas vezes o era às pessoas livres. Assim,
segundo este enfoque, para entender, ou melhor, aproximar-se do que seria
esta ‘escravidão’ africana, necessitamos ressaltar o exato contexto das
questões dos ‘direitos pessoais’ nestas culturas. Esses direitos eram objeto
de negociações entre comunidades, ou no interior de uma determinada
comunidade. Não seria adequado identificar a escravidão a partir do
atributo ‘propriedade’ especialmente na África, onde os direitos pessoais
não eram facilmente separáveis de outros direitos de posse. Tais direitos —
incluindo direitos sobre o trabalho, sexualidade e procriação — eram
definidos pelas leis e pelos costumes.
Revisão: Autor
ISBN 85-7062-199-X
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com a lei. Nenhuma parte deste livro pode ser reproduzida ou transmitida
de qualquer forma ou por qualquer meio, incluindo fotocópia, gravação ou
informação computadorizada, sem permissão por escrito do autor.
APRESENTAÇÃO
Não lhe conto a vida, porque é isto o que faz Selma Pantoja neste livro. E
não só lhe narra a existência corporal e terrena, como explica o mundo que
lhe foi dado e como procurou obstinadamente preservá-lo e protegê-lo da
expansão da Luanda portuguesa, usando em sua resistência tanto a violência
dos exércitos quanto a diplomacia do adiamento e da conformidade. Se seus
dotes de negociadora e sua habilidade impiedosa no uso da força
impressionaram os europeus, não causaram menor impacto entre seus
súditos e seus adversários africanos, a quem deu guerra e escravizou.
Foram alguns daqueles que ao lado dela ou contra ela lutaram, os que
embarcaram o seu mito pela primeira vez num navio negreiro e o trouxeram
para o Brasil. E não permitiram que ela morresse neste lado do Atlântico,
mas sim, que continuasse viva na boca e nas festas do povo, por toda a
parte, até mesmo na Fortaleza de minha meninice, onde os negros se
contavam pelos dedos de poucas mãos. Eram tão raros, que, nos maracatus,
as moças e os rapazes, brancos, cafuzos e caboclos, se pintavam de preto.
Antes, porém, de serem vendidos para o Sul ou de se confundirem, pela
mestiçagem, nas camadas populares, os africanos e seus descendentes
deixaram na memória de todos a figura da rainha irredutível de Andongo,
Matamba e Cassanje.
Tome-se, por exemplo, o auto popular que tem, em muitas de suas versões,
a rainha Ginga como personagem presente ou encoberta: a congada. Não
tenho dúvidas sobre as influências portuguesas, na forma como se
organizaram as falas e os versos, na roupagem e em muito mais. Todavia,
noto que rei, rainha e altos dignitários vêm cobertos por grandes guarda-
sóis — o símbolo mais evidente do poder em boa parte do continente
africano. E lembro — e isto é mais importante — que os dois partidos
adversários, dispostos um frente ao outro, repetem uma cerimônia festiva
que se realizava quando ascendia ao poder, no Congo, um novo rei. Todos
os anos, pela mesma época, era ela reencenada, com os dois grupos a
simularem, dançando e a cruzar lanças, uma batalha.
Dito isso, fica evidente a importância deste livro de Selma Pantoja sobre a
rainha Ginga. Recebi os seus originais com alegria. E com alegria ainda
maior o colocarei na minha estante, ao lado daqueles poucos, pouquíssimos
volumes que os brasileiros escreveram sobre a África. Que não se demore
um outro. Que Selma Pantoja nos dê logo a obra que promete sobre a
condição da mulher, ao longo do tempo, em Angola. Afinal, África é uma
palavra feminina e, no Brasil, deveria ser sinônimo de mãe-pátria.
O nosso estudo tem como objetivo, de uma maneira geral, avaliar o caráter
específico da organização e do desenvolvimento histórico das sociedades do
litoral angolano no século XVII. Para tal, tentamos caracterizar a divisão
interna desta sociedade levando em conta o surgimento de grupos
privilegiados; o significado das estruturas de parentesco e linhagens; as
formas de concepção do poder. Mais especificamente, ao longo desta
análise, tratamos de investigar com maior precisão as funções do escravo e
em que categorias ele se enquadra nas estruturas sociais.
Os Bantu e os não-Bantu
Os povos situados ao norte do rio Zambeze, ao sul da floresta equatorial e ao
centro da região de savanas são predominantemente população de língua
Bantu. Sabe-se, através das peças arqueológicas, gravuras e pinturas
rupestres, que os primeiros habitantes desta região foram os bosquímanos,
povos caçadores e coletores. A partir do primeiro milênio da nossa era, os
bosquímanos foram deslocados pelas migrações Bantu, dispersando-se para
o sul de Angola. Os Bantu, poderíamos assinalar, introduziram a agricultura
e a metalurgia na região da África Central.
Caçadores e agricultores
Angola é parte da África Central Ocidental, região que compreende os
seguintes países: os Camarões, O Gabão, a República Democrática do
Congo, República Popular do Congo e a Zâmbia.
Á África Central Ocidental é uma zona formada por desertos, pela floresta
Equatorial e por savanas, áreas cujas especificidades são pertinentes ao
estudo da fixação humana (mapa 3). O norte da região inclui a floresta
úmida equatorial até o rio Congo; no sul estão as franjas semidesérticas do
Kalaari. Característica do desenvolvimento da região no passado foi a
expansão dos povos de língua Bantu. Hoje em dia quase toda a população da
África Central Ocidental é de origem Bantu. O início dessa expansão,
provavelmente, foi consequência da busca de áreas de ocupação mais
favoráveis para a sobrevivência. A população autóctone, pressionada, não
tinha como se defender contra os migrantes, agricultores que conheciam o
ferro.
A atividade agrícola mais antiga na África Central (9) com vistas à produção
de alimentos foi a cultura do inhame (10), para cujo cozimento empregava-
se óleo de palmeiras cultivadas na zona de florestas. A cultura de cereais se
deu basicamente nas savanas, enquanto que a cultura de tubérculos ocorreu
na floresta. A introdução do uso do ferro na agricultura teve um efeito
explosivo, com a população agrícola crescendo e se expandindo para os
lados das savanas e dos lagos. O cultivo da banana, segundo Vansina, data de
época anterior ao ano 1000. A difusão da metalurgia, facilitando a abertura
de clareiras nas florestas úmidas, área ideal para a plantação da banana,
permitiu essa cultura, essencial para a dieta alimentar dos Bantu até o
advento do milho e da mandioca. A banana se adaptou melhor que o inhame
e as palmeiras à zona da floresta úmida, pois dispensava a preparação do
solo e tinha um bom rendimento na colheita (Birmingham, 1983, p. 12-13).
Por volta do século XV, a África Central já tinha uma agricultura importante
ao longo das margens dos rios e das savanas. As altas terras do interior de
Angola, por exemplo, possibilitaram o surgimento de uma zona
desenvolvida e um crescimento significativo da população. A região de
savanas em direção a leste, pelos seus vales férteis, foi outra área escolhida
pelos agricultores (Vansina, 1984, p. 140-41).
A história do sul da África Central difere da história das zonas norte e oeste.
Aí o gado se desenvolveu em maior escala, porque esta região não estava
infestada pela tsé-tsé e, além disto, a produção do cobre na Zâmbia e, a partir
do ano 1000, a mineração do ouro no Zimbabwe, contribuíram para sua
riqueza.
A zona nordeste da África Central, por volta do ano 1000, entre o baixo
Upemba e o alto Zaire, distingue-se por um razoável crescimento
demográfico e pelo desenvolvimento do nível técnico das comunidades. Os
habitantes do lago Kisale, por exemplo, fabricavam cerâmica em diferentes
estilos, e comunidades pesqueiras exploravam os lagos, fabricavam canoas
para carregar os peixes, que depois de secos, eram enviados a mercados
distantes. O contato do Kisale com o exterior trouxe das regiões norte e sul o
sal e o cobre (Birmingham, 1983, p. 19).
Sociedades linhageiras
Estas sociedades africanas tinham uma forma de organização social e
política mais complexa do que se pensa. As instituições sociais, em sua
maior parte, se baseavam no sistema de parentesco: relação em que duas
pessoas são parentes, descendem de um ancestral comum e a dominância
desse sistema passa a caracterizar essas sociedades. O termo parentesco no
sentido em que o empregamos aqui é utilizado principalmente como uma
relação social no interior destes grupos e também como uma relação de
parentesco consanguínea. Se discute hoje da centralidade do parentesco nas
sociedade africanas, o caso aqui estudado se configura tratar de uma forma
básica da organização social.
Além de outros rios da região sul temos o Coriango, que corre em direção
norte-sul e tem um curioso sistema hidrográfico, na maior parte de sua
extensão forma correntes subterrâneas, que afloram somente em curtas
extensões. Este fenômeno é conhecido como mulolas ou malongas.
Os rios angolanos, em sua maior parte, não são navegáveis e as grandes vias
são, principalmente, o Zaire e o Kwanza. E como veremos, estes dois rios
foram fundamentais formando sistemas de transportes de pessoas e
mercadorias com o litoral Atlântico, antes e depois da chegada dos
europeus àquele litoral.
A história dos Mbundu, como foi visto, está intimamente ligada à trajetória
dos imigrantes de língua Bantu da Idade do Ferro, que se infiltraram por toda
a região da África Central. Esses Bantu, dos quais se originaram os Mbundu,
formaram vários estados ou confederações de estados, cada um adotando
determinado tipo de organização política. Algumas dessas unidades políticas
influenciaram profundamente a história dos Mbundu. Foi o caso do Kongo,
Lunda, Loango. Ao sul do Rio Zaire e a oeste do estado Lunda localizava-se
o território dos Mbundu.
O Kongo
O Ndongo, onde nasceu Nzinga, era tributário de um grande estado ao norte,
o Kongo dotado de uma complexa organização administrativa, o Kongo
estava dividido em seis unidades, cada uma com um titular nomeado pelo
soberano africano, o Manikongo. A principal função administrativa do
Manikongo e dos chefes locais era a coleta das taxas em diferentes níveis da
sociedade. Além das unidades administrativas, alguns estados independentes
pagavam tributo ao Manikongo, como era o caso do Ndongo.
Os Lunda
O reino Lunda foi outro importante estado situado na região do planalto de
Katanga, a leste dos Mbundu. Formavam- se pequenas famílias que,
inicialmente, viviam em aldeias dispersas. A sua economia era basicamente
de subsistência, mas conheciam a maneira de fabricar instrumentos 66 de
ferro e cerâmica. Durante o século XV o seu território foi invadido pelos
luba, originários da bacia do Lualaba. Esses invasores, detentores de técnicas
metalúrgicas superiores, formaram vários pequenos estados luba. No século
XV, porém, já existiam os estados Lunda (Oliver e Atmore, 1981, p. 7-10),
(mapa 6 e 8). Mais para norte do Kongo estava o reino do Loango. Parece ter
sido fundado antes do Kongo, com um soberano que gozava de poder
centralizado e que, além disto, desempenhava a função mágica de fazer
chover. A região conhecia grandes estiagens, o que levava a população a
trazer presentes ao soberano, na esperança do fim da seca. O Loango estava
dividido em províncias e a língua, o vili, não tem relação com as outras
línguas da África Central Ocidental, tratando-se provavelmente de idioma
originário dos Bantu do leste (Oliver e Atmore, 1981, p. 10) (mapa 8).
Havia longo tempo que os Mbundu mantinham contatos com todos esses
reinos. A tradição oral dos Mbundu sugere que a formação do povo que
originou o Ndongo sofreu influências tanto do Kongo como do Luba.
Os livres e os não-livres
Toda a população, aparentemente, estava submetida ao Ngola, mas havia
diferenças na forma de submissão. Por exemplo, os prisioneiros de guerra
eram considerados cativos e assim trabalhavam um pouco mais do que os
não-escravos. Nem só os prisioneiros de guerra eram escravos. Existiam os
escravos perpétuos, os escravos por dívidas e aqueles que eram punidos por
crimes, adultério e, principalmente, bruxaria. Os órfãos, quando cresciam,
eram vendidos como escravos. Comumente os filhos de escravos já não
precisavam trabalhar tanto e os filhos destes últimos deixavam a condição de
escravos (Cadornega, 1940, p. 30-31).
A produção
O Ndongo era uma sociedade agrária e utilizava instrumentos de ferro no
cultivo da terra. A prática agrícola desta região era o cultivo do solo de
forma primitiva. Com o esgotamento da terra, o agricultor procurava nova
área para se instalar. Havia a irrigação natural das terras, pois era região
relativamente privilegiada em bacias hidrográficas. Apesar disto, era pouca a
quantidade de terras férteis propícias á atividade agrícola. Fatores como as
secas periódicas, os parasitas e as guerras contribuíam para a desorganização
da colheita e para longos períodos de fome.
A pesca em alto mar era feita pelos homens, mas a pesca do marisco zimbo,
cujas conchas serviam de moeda nesta região, era tarefa exclusivamente
feminina. Cavazzi, ao descrever o Ndongo, fala dos habitantes que se
vestiam de peles de animais e das mulheres que usavam os cabelos
encrespados, enquanto os homens raspavam a cabeça.
Nzinga Mbandi nasceu por volta de 1582 e seu pai era o temido Ngola
Mbandi, chefe do Ndongo, poderoso estado africano habitado,
principalmente, pelos povos Mbundu.
Conta a tradição que, quando o exército de Mbandi voltava de uma de suas
vitoriosas batalhas aprisionou uma africana por nome Chinguela. O Ngola
Mbandi a transformou em sua cativa e com ela teve uma filha, que chamou
Nzinga. Seguindo os costumes de sua gente, alguns dias após o nascimento
da criança, o Ngola pediu aos adivinhos que predissessem o futuro de sua
filha. Os Achinguela profetizaram um futuro terrível e cruel para a filha do
Mbandi. Durante uma noite inteira os Achinguela vaticinaram o futuro da
menina Nzinga. Na sua época — diziam os adivinhos — o povo do Ndongo
sofrerá os ataques dos brancos vindos do mar, os rios transbordarão, a fome
estará por todos os lados, as doenças espalharão a dor e a tristeza.
Onde e como?
No século XVII não havia uma região ‘angolana’: Angola era como os
portugueses chamavam as sociedades africanas situadas ao sul do rio Zaire, e
isto porque um dos chefes dessas sociedades tinha o título de Ngola.
Se, por um lado, as mulheres conseguiam sua liberdade por meio de sua
função reprodutiva, por outro, eram presas por estas mesmas funções ao se
recusarem, frequentemente, a abandonar seus filhos. As mulheres, como em
outras sociedades, cumpriam função não só de reprodutora biológica, mas
também de reprodutora das relações sociais.
Por mais tentador que seja, temos que ter o cuidado de não constituir a
imagem de uma África homogênea, sem as variantes locais e regionais, que
são numerosas. Principalmente para esses casos das relações homem/mulher,
embora, no caso de síntese, as generalizações sejam tão perigosas como
necessárias, como nas reflexões acima mencionadas.
5. AFRICANOS E
PORTUCUESES NO COMÉRCIO
E NA ESCRAVIDÃO
Neste mesmo ano uma pequena expedição, enviada pela Coroa portuguesa,
chegou à embocadura do rio Kwanza. O capitão era Paulo Dias de Novais,
neto de Bartolomeu Dias. O objetivo era iniciar os contatos comerciais
diretamente com o Ngola. Este último, acreditando que tais contatos lhe
trariam mais poder e riqueza, pediu ao rei luso o envio de padres e
comerciantes, tendo em troca mandado alguns objetos de prata. Pensando
existir fabulosas minas de prata e diante das possibilidades comerciais, a
Coroa lusa encarregou Paulo Dias de Novais da embaixada ao Ndongo,
acompanhado de seus padres. No Kwanza, enquanto aguardavam a
tradicional recepção de boas-vindas do chefe local, residente mais próximo
ao litoral, foram informados de que o Ngola não estava interessado em
recebê-los. Na verdade, o Ngola que fizera o primeiro contato com os lusos
morrera, e o seu substituto não demostrou o mesmo entusiasmo pelos
portugueses. O contexto que os portugueses encontraram era outro: das
disputas entre linhagens do sul e norte, estas últimas pareciam ter a
hegemonia com os títulos independentes. Parecia não haver motivo nenhum
para que o Ndambi a Ngola fosse gentil com os estrangeiros e poderia ser
que o fato da capital situar-se no coração da linhagem do sul traria certa
fragilidade na posição do Ngola perante os estrangeiros (Miller, 1976).
Cardonega calculou que saíram mais de dez mil escravos por ano (28) do
porto de Luanda para o Brasil. As consequências para o povo Mbundu
foram desastrosas, como o despovoamento e o desaparecimento de
comunidades inteiras. Cada governador usava métodos mais violentos de
captação de escravos, estabelecia novas fortificações e as lutas locais
forneciam crescente número de escravos para o litoral: a única meta era
aumentar o tráfico de escravos.
Este posto avançado dos portugueses contribuiu para que o Ngola fosse
pressionado pela própria irmã Nzinga, que capitalizaria politicamente o fato
ao iniciar um aproximação prevendo a reconciliação.
Foi pedido a Lisboa um apoio militar para fazer frente à resistência e aos
contra-ataques do Ndongo, e também para combater os holandeses, que
passaram a frequentar assiduamente a costa angolana.
Pelo seu lado, Nzinga, deve ter ponderado a necessidade de unir o Ndongo,
para que, durante um período de paz com o inimigo externo, pudesse fazer
frente à luta com o irmão. Agora que ganharia prestígio se conseguisse
assinar um acordo não muito desvantajoso com os portugueses.
Segundo estes relatos Nzinga foi recebida, pela segunda vez, em Luanda
com todo o aparato cerimonial de boas-vindas, salvas de canhões e
perfilhação dos soldados portugueses. A entrada na cidade foi triunfal, com
tapetes até o local onde deveria ficar alojada a soberana. Descrevem os
documentos da época que toda a população veio ver e confirmar a
existência real daquela mulher. Na presença do governador, ao se iniciarem
as discussões, Nzinga constatou a existência de somente uma cadeira, na
qual se sentou o governador, para ela restando uma almofada. Rapidamente,
sentou-se no corpo de uma de suas escravas, para não ficar em nível inferior
ao governador (ver gravura da Rainha Nzinga negociando em Luanda).
O tributo era cobrado juntamente com outras taxas adicionais, criando uma
situação extorsiva que impedia o ‘vassalo’ de efetuar o pagamento. Sempre
que isto acontecia, seguia-se uma situação de rebeliões e campanhas
punitivas dos portugueses e a população fugia por meio da migração.
No entanto, esses recursos arrecadados com o tributo não iam para a Coroa
no seu total. Ficavam, substancialmente, com os encarregados da coleta
(comandantes dos fortes, feitores do rei, provedores etc.) e com os
governadores. Serviam fundamentalmente para o enriquecimento pessoal
dos funcionários e representantes do estado português.
Nzinga era temida por ter adotado os ritos Mbangala e ter sobrevivido à
varíola e às perseguições dos portugueses: a população, por conta disto, lhe
atribuía poderes sobrenaturais.
O Ndongo e a escravidão
No início do século XVII, o Ndongo era um estado independente e
poderoso. Tinha uma relação estreita com o comércio Atlântico de escravos
estabelecido entre a elite Mbundu e os portugueses no litoral. Neste
momento, o Ndongo era o principal fornecedor de escravos para a região de
Luanda.
“[...] acho que quase toda essa gente é escrava cativa do rei, por serem
alevantadas cada passo, em que concorrem por suas leis em pena de morte,
por adultérios ou roubos, e em tal caso os vendem se os acham em coisa
sua, pelos não matarem, e sobretudo houve um angola Grande que dizem
sujeitou toda esta gente por armas, donde foram eles cativos. E os senhores
têm vilas e lugares que o mesmo rei lhes dá com alçada, e sendo-lhe
credores e alevantados os sujeitam, de maneira que os podem matar ou os
vender. Também dizem ser certo que, se provar que homem compra ou
vende pessoa livre, será destituído e punido como ladrão com pena de
morte, e que também que as mesmas peças se não são cativas, logo
reclamam e se não deixam vender” (34).
Neste mesmo sentido, para legitimar o novo rei, o governador dizia ser
necessário transformar os sobas em aliados do comércio, para que tais sobas
abrissem as ‘feiras’, o comércio e passagem. Portanto, esses conselheiros e
os chefes, os soldados, detinham um espaço importante no processo
decisório, a eles cabendo o ato de legitimar o poder. No caso da escolha dos
comandantes auxiliares de guerra, dependia-se das consultas aos macotas.
Numa época posterior esta situação foi vista quando, em Matamba, por
ocasião da morte de Nzinga, na luta por substitui-la, o comandante Ginga
Amona ascende ao poder, mas os seus adversários, apoiados pelos
portugueses, o derrotam, argumentando contra a sua chegada ao topo do
poder ser ele “filho de uma escrava” (Cavazzi, Ob. cit. p. 357-8). Se, por
um lado, a mobilidade social do status de escravo, a chamada assimilação
não parecia ser muito definida, o ato de emancipação nem sempre era muito
claro, e não tornava alguém livre, mas apenas não escravo. O historiador
Miller refere-se ao ‘mito de assimilação na escravidão africana’,
qualificando a situação de dependente como um início de assimilação. Essa
tendência dependia de lugar e época, pois nem sempre foi o caminho típico
da escravidão linhageira (Miller, 1981, p. 55).
Para finalizar, poderíamos dizer que escravidão é sempre uma relação social
específica, seja o escravo ‘doméstico’ ou ‘produtivo’. O historiador Finley a
define como a mais servil da séries das relações de dependência. De
qualquer maneira, é sempre menos confusa esta conceituação se
conhecermos o contexto.
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“Faço esta a V. Sa. de filha de Pay, mando este meu criado de minha parte,
que já avisei mais largo na carta que levão os portadores, que saberá V. Sa.
que sou sua filha, por hora não tenho que mandar a V. Sa. como samos
parentes espirituais possa também ter mimo de parte do parentesco, não lhe
por falta de vontade, senão he por não ter com que na mão possa servir; o
nosso Cabuco entregará a V. Sa. huma peça muito boa, que he sinal de
amor; passo a V. Sa. me mande hum brinco muito bom, e mais não tenho
em ponda, se V. Sa. tiver me mande. Não sou largo. Nosso S. Gde. a V. Sa.
hoje doze de janeiro de mil e seis centos cincoenta e sete annos. Rainha
Dona Anna.”
OS REIS DO NDONGO
Segundo Cavazzi, G.
Ndambe Ngola
Ngola Kiluanji
Nzinga Ngola
1. A HISTORIOGRAFIA E O
UNIVERSO NEGRO-AFRICANO
(1) A questão ortográfica de como escrever os nomes africanos foi e tem
sido objeto de imensas discussões. Dentro dessas polêmicas há um
entendimento sobre a versão fonética mais próxima a pronúncia. Procurei
uma aproximação do que tem sido escrito pelos historiadores africanistas da
região.
4. OS MBUNDU
(14) Mas existe toda uma discussão sobre a unidade do Kongo que não seria
assim tão centralizado como os cronistas de época descreveram. Por não ser
de nosso interesse imediato não entramos nesses debates. Acho importante
frisar que para a história do Kongo a documentação é muito mais numerosa
do que para a região dos Mbundu. A bibliografia, portanto, é bem extensa,
principalmente, em inglês e francês.
(17) Claro está que tento citar alguns, os mais atuais: D.Birmingham,
Joseph Miller, Virgílio Coelho, Beatrix Heintze, Adriano Parreira.
(18) A historiadora Rosa Cruz e Silva no seu artigo formula uma provável
diferença entre mercados e feiras na época do Ndongo (1997, p. 410).
(22) Tido como fator estratégico, já que cada uma, na sua hierarquia, residia
em lugares diferentes.
(23) Uma discussão sobre esses temas pode ser encontrado em: J. Farpart e
K. Staudt (orgs) Woman and lhe Stalen AlVica. Londres, Lynnen Riennen,
1989 (Capítulo I); Maria Rosa Cutrusfelli Woman of Alrica. Rootsol
Oppression. Londres, Zed Book, 1983 (Parte 2); Gwendppyn Mikell
“African Feminism: Toward anew politiesof representation” Feminist
Studies, 21, (summer 1995), p.405-425; M. Maynes, A. VValtner, B. Soland
e U. Strasser (Orgs) Gendcr, Kinship, Power. New York, Routledge, 1996.
(27) Carta do padre Francisco Gouveia para o padre Diogo Mião, 1564. In:
Relação de Angola. Biblioteca Nacional de Lisboa, p. 41-44.
6. NZINGAMBANDI NO PODER
(30) Exército sob o controle dos portugueses constituído de africanos
(Cadornega). A maior parte das tropas portuguesas na região era de guerra
preta.
(31) Para este assunto ver os trabalhos de José Curto que cobre o período
aqui estudado e vai até final do período do tráfico, cf. referência na
bibliografia.
(34) Carta do padre Garcia Simões para o padre Luiz Perpinhão, 1576,
Relação de Angola. B.N.L.
(35) “gente principal de uma terra sob o poder de um soba”. Homens mais
velhos numa linhagem, conselheiros do soba, entre os mbundu eram os
conselheiros do ngola do Ndongo. Cadornega, tomo 3.
(37) Documento 20, folha 255, v, s/d, B.A.L., nota 133. Fontes para história
de Angola do Século XVII. Ob.cit. p. 123.
(39) Relatório de Fernão de Sousa. Fontes para História de Angola. Ob. cit.
p. 252.
(40) A ilegitimidade do novo rei do Ndongo, Angola Aire. doc. Fontes para
História de Angola. Ob. cit. p.209