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"Quando o mundo estiver


unido na busca do
conhecimento, e não mais
lutando por dinheiro e poder,
então nossa sociedade
poderá enfim evoluir a um
novo nível."
1. A HISTORIOGRAFIA E O
UNIVERSO NEGRO-AFRICANO

Questões preliminares
É importante serem elucidadas questões pertinentes aos Estudos Africanos,
quando se fala em História da África e principalmente em África Pré-
Colonial. Uma discussão de algumas décadas anteriores: nomenclaturas que
servem para o Ocidente denominar as estruturas de poder e suas hierarquias
como rei, rainha, príncipe, duque, reino, estado que estão, na verdade,
vinculadas à história européia (1). Como cunhar o termo rei para estruturas
de poder tão distantes, se pensarmos em forma de poder, como as africanas?
A situação que trouxe aos meios acadêmicos dos Estudos Africanos essa
polêmica, situa-se na década de setenta. Como definir estado para a maioria
das formações sociais africanas, que como se sabe, são muitas as
dificuldades de se encaixarem nesse padrão do estado moderno europeu (2).
Diante dessa discussão é de suma importância deslindar aqui o uso do
termo rei, reino e o seu enquadramento em situações em que um
determinado poder possa ser similar às unidades políticas ocidentais assim
denominadas. Mas cabe argumentar ainda, como o historiador africano Ki-
Zerbo já assinalou, que com todas as especificidades da África Negra, ela
não é um caso à parte na História Universal e, por isso mesmo,
imperceptível para a análise histórica ou social. As suas peculiaridades não
inviabilizam seu estudo, muito pelo contrário, são seus grandes desafios que
vêm permitindo sua avançada participação na atual transformação da
Historiografia Internacional.
Outra ponta da discussão são as fontes. Assunto central para a historiografia
africanista hoje. As fontes escritas e seus problemas, obras feitas por
estrangeiros, com olhares etnocêntricos, europeus imbuídos de
superioridades, levados pela modernidade européia aos mais longínquos
pontos do litoral africano. Fora estes escritos resta um continente,
principalmente no caso preciso da África Negra, com uma população
ágrafa. Em muitas partes e épocas não se tem nenhum testemunho escrito. E
antes da chegada dos europeus, como reconstruir a história? A grande
contribuição da historiografia africanista à Historiografia Universal situa-se
aqui, na década de 60, período das emergentes nações africanas, na
necessidade da construção da História da África que impôs ao fazer
histórico, naquele continente, um dos maiores desafios. O reconhecimento
da importância da tradição oral como testemunho histórico, categoria de um
saber peculiar, possuidora de outra lógica que não a da escrita, foi tarefa
árdua. A leitura dos ‘textos orais’ requer técnicas específicas, com suas
várias tipologias, como as genealogias e narrativas. Mas hoje, além de
reconhecida, profundamente enriquecedora e com uma produção
destacável, contribui para o desenvolvimento de uma emergente História
Oral, aplicada as sociedades industrializadas contemporâneas (Prins, 1992,
p. 165-6).

Saindo das pontas, chegando ao centro da discussão, aquilo que norteia os


textos sobre Estudos Africanos: onde se colocar para observar e inserir-se
nos períodos distantes, buscar uma construção próxima do possível, fazer
chegar à tona os sujeitos desses atos em cenários de pleno encontro de
culturas diversas, como o caso do século XVII no litoral angolano? Uma
enxurrada de literatura nos diz da África sem os africanos, ou com visões
profundamente estereotipadas, nos informam sobre as populações africanas.
Essas são as nossas fontes e com certeza ainda nos preparam fecundas
armadilhas. Que se cuidem os bem intencionados! Porque a memória, em si
coletiva, nos trai a cada passada.

A  par das boas intenções, inevitáveis, o texto que se segue pretende se


posicionar relevando a autonomia dos povos e a independência das
estruturas africanas perante a aparição dos europeus (3). Permeando as
respostas dadas pelos africanos e as dificuldades encontradas pelos
portugueses, na tentativa destes ocuparem pequenos trechos no litoral, que
será feito o recorte na reconstrução do período histórico aqui analisado.

Escravidão africana e/ou a atlântica


Ao tentar a nossa síntese da região de Angola Central, do povo Mbundu em
seu maior momento de tensão na relação com os portugueses —
características, basicamente, da primeira metade do século XVII —, resta-
nos justificar em que medida nosso texto, ao tentar reconstruir este período,
insere-se no debate da bibliografia existente. Sobre a escravidão veremos a
problemática da especificidade desta relação social na África.

No Brasil não é comum a discussão da diferença: o ser escravo nas


Américas e ser escravo na África. Por isso mesmo, apresento uma discussão
que na historiografia inglesa e francesa já vem sendo analisada há mais de
quarenta anos e tem se renovado constantemente.

Nossa idéia é apresentar um quadro sumário das diferentes correntes


teóricas com as quais a historiografia tem tentado explicar o escravismo nas
complexas relações sociais do mundo africano, desde o período pré-colonial
até a chegada dos europeus no século XVI, quando ocorreram
transformações violentas.

A princípio, prendemo-nos ao estudo do escravismo no contexto de todo o


continente africano — o escravismo na África de uma maneira genérica.
Posteriormente, nossa análise se deterá apenas em sua incidência numa
determinada região, por volta do século XVII — transição para a escravidão
Atlântica e seu estabelecimento no contexto específico das sociedades do
litoral angolano. Neste ponto, detalhamos a estrutura linhageira daquelas
sociedades.

Por fim, apresentamos nosso estudo sobre a ocorrência da escravidão no


reino do Ndongo, procurando inseri-la na discussão das diferentes
abordagens teóricas que, ainda hoje, provocam grandes divergências que
têm estimulado pesquisa acerca desse contexto de mudanças.
A escravidão africana
São conhecidas desde o século XI referências ao escravismo africano pelos
testemunhos dos viajantes árabes. Nos séculos XVI e XVII são numerosos,
em algumas áreas, os relatos dos viajantes, missionários e funcionários
europeus a respeito da presença da escravidão no seio das populações
africanas. Já nos séculos XVII e XIX os testemunhos confirmam a
importância desta instituição, chegando os escravos, às vezes, a
constituírem mais de 50% da população.

Observação feita por um autor no século XVII chama a atenção para o fato
de que no reino do Kongo, o número dos escravos é igual ao das pessoas
livres (Cavazzi, 1965, p.356).

A  hesitação do termo ‘escravo’ (4) que fez parte do debate na década de


1970 demonstra o aspecto polêmico acerca de identificar o escravo
africano, por exemplo, com o brasileiro. Restringimo-nos, porém, a uma
discussão das tendências no estudo do escravismo africano na região
subsaariana, sem qualquer pretensão a um estudo exaustivo da questão.

A nossa atenção concentra-se no debate em torno da natureza da


‘escravidão’ africana e das discussões, até agora, na busca de uma definição
dessa forma de submissão. Diretamente relacionada à definição de
escravidão, está a questão da real posição do ‘escravo’ nestas sociedades. E
para tal, reportamo-nos ao conceito de propriedade nas sociedades africanas
— posse, propriedade, compra de gente — com suas várias outras
categorias de dependentes.

Sistemas de parentesco, direitos pessoais, transferências desses direitos,


casamento e adoção de crianças perpassam toda a polêmica relativa à
escravidão africana. É impossível discutir o assunto sem considerar cada
um dos itens anteriores. Consta também que, ao remontar tais
problemáticas, defrontamo-nos com os dilemas atinentes à abordagem da
especificidade da realidade africana. O assunto, portanto, se prende à
origem, natureza e desenvolvimento dessas formas de escravidão.

A bibliografia tradicional sobre a África não deu conta de discernir esse


tipo de relação, as várias categorias de dependentes e sua relação com o
sistema de parentesco. Com apoio nos dados históricos e na Antropologia
Econômica (além de uma nova metodologia), a literatura da década de
oitenta sobre escravidão tenta melhor situar esta instituição específica,
discutindo os seus atributos e natureza.

Descartamos, aqui, aquela linha de interpretação que sugere a idéia da


escravidão africana como benigna, menos brutal e por isso mesmo um tipo
desviante do modelo Ocidental, tendo este último como padrão do
verdadeiro modelo de escravidão. Alguns estudos avançaram com propostas
para uma reflexão sobre a noção de escravidão, suscetíveis de atenuar as
incertezas conceituais relativas à especificidade africana.

Os esquemas rígidos de grau de evolução definidos para a Europa Ocidental


(escravismo, feudalismo e capitalismo) se mostraram pouco ajustáveis às
formações socioeconômicas do chamado Terceiro Mundo. Para o caso do
mundo africano tentou-se aplicar o conceito de modo de produção asiático
ou tributário (5). Com isto, considerou-se que a África Negra Pré-colonial
apresentaria três fases: a comunidade primitiva, a estrutura intermediária
tribo-patriarcal e a sociedade com estados. Tal esquema não foge muito à
oposição entre sociedade com estado e sem estado, nas sociedades
africanas; porém, a nível político, coexistiam elementos de ambas as
sociedades, ocorrendo, em comunidades ‘intermediárias’, formas
econômicas bem mais diferenciadas (Coquery-Vidrovitch e Moniot, 1974,
p. 260-261).

No estudo dessas sociedades, na década de sessenta, Godelier propõe que se


analise o parentesco com a função dupla de infraestrutura e superestrutura
(Godelier, 1976). Economia e parentesco, diz, se confundem a ponto das
relações de parentesco funcionarem como relações de produção e práticas
ideológicas e políticas. Esta ‘plurifuncionalidade’ do parentesco explicaria
não só a complexidade destas relações bem como sua importância. Esta
equivalência economia-parentesco se apresenta como uma relação interna
que se torna necessária pelo nível de desenvolvimento das forças
produtivas.

As analogias com a escravidão e o escravo africano têm provocado


profundos debates. Para Watson, o movimento de revisão dos escritos de
Mace causou impacto no meio dos antropólogos e historiadores. As
principais consequências têm a delineação e análise de vários ‘modos de
produção’, incluindo o modo de produção de base escravista (Watson, 1980,
p. 14).

Com mais eco entre os estudiosos, em 1975, Claude Meillassoux, através de


uma visão da Antropologia Econômica, defendeu a tese de que estas
comunidades agrícolas têm como base um modo de produção com relação
especificamente doméstica (Meillassoux, 1976). Na questão de situar as
relações de parentesco, recusa a solução apontada por Godelier de analisar
o parentesco com função múltipla. Na sua análise da economia ‘primitiva’,
Meillassoux distingue formas de organização social diferentes, com leis
próprias e conceitos específicos. Assim, poderíamos caracterizar o modo de
produção doméstico como uma sociedade em que a distinção fundamental
está na diferença de idade e sexo, não havendo antagonismo de classe,
detendo os mais velhos os meios de produção e o controle de acesso às
mulheres. É um governo baseado na gerontocracia. Neste tipo de formação
social a mulher, muitas vezes, é o principal trabalhador agrícola. Neste caso,
havia uma relação íntima entre produção e reprodução (6).

A sociedade existe em função do número de mulheres férteis e do resultado


de seu trabalho produtivo na agricultura. O viés da questão do poder está na
capacidade de os mais velhos controlarem: as trocas de mulheres com
outras comunidades (a mobilidade matrimonial); o número de crianças
nascidas por cada esposa (a filiação); e a cooperação dos mais jovens na
produção.

De um grupo de produtores a outro, ocorre uma circulação constante de


‘adiamento’ e ‘restituição’, compreendendo sementes e subsistência cedidas
pelos mais velhos aos grupos de produtores mais jovens. Os mais velhos
têm a função de armazenar o produto, garantindo o ciclo produtivo e a
reprodução do grupo.
Esse tipo de formação social não se altera, no essencial, com a escravidão.
Os escravos servem para aumentar a população controlada pelos decanos e
são encontrados nas mesmas funções dos membros livres, numa situação
em que o parentesco permanece dominante e a escravidão é um dos muitos
tipos de dependência. Além dos escravos, existem os dependentes por
penhor e por idade, todos sob o controle dos mais velhos da linhagem.
Normalmente, os homens controlam várias mulheres, penhoradas, escravas
e livres. Independente disto exige-se o dote para a realização do casamento.
É necessário fazer o ‘pagamento’ à família da mulher e aquele que tenha
filhas ou sobrinhas (dependendo se matrilineares ou patrilineares) pode
obter alguma riqueza e melhorar sua posição através dos arranjos
matrimoniais.

Para se livrar ‘do pagamento por uma noiva’, um homem pode casar-se com
uma escrava ou penhorada, sendo neste último caso a dívida cancelada.
Uma escrava com um homem livre faz parte da família e, depois de ter
filhos de um homem livre, torna-se uma ‘dependente livre’. Uma escrava
casada com um escravo, no entanto, mantém seu status de escrava.
Mulheres e escravos nascidos na família são, com o tempo, assimilados e
raramente vendidos. Muitas vezes desempenham tarefas domésticas, mas
podem assumir funções de responsabilidade. A segunda geração dos cativos
já será mais integrada à comunidade.

Esta forma de subordinação nas sociedades africanas, para alguns, pode ser
apresentada como uma instituição que congrega a ‘marginalidade’ de
determinada população (Miers & Kopytoff, 1977). Os que defenderam esta
formulação preferem ‘escravidão’ a escravidão, a principal ênfase recaindo
na confrontação dos conceitos escravidão/liberdade. Esta dualidade se
caracteriza como uma maneira Ocidental de aproximar-se dessa relação de
submissão. A mentalidade ocidental tende a englobar tudo que se apresenta
como submissão neste rótulo de escravidão. Às vezes, tais rótulos se
adequam a alguns traços, mas no geral não se encaixam no caso africano.
Percorrendo os meandros da dicotomia escravidão/liberdade, no relativo à
sociedade africana, uma pessoa pode ser vendida ou comprada e, logo
depois, incorporada a uma determinada comunidade, integrando-se de
maneira diferente das pessoas nascidas naquela mesma comunidade. A
partir daí, surgem os primeiros limites a possíveis analogias com o modelo
Ocidental de escravidão. A própria noção de ‘vendável’ não era sempre
aplicada aos escravos, mas muitas vezes o era às pessoas livres. Assim,
segundo este enfoque, para entender, ou melhor, aproximar-se do que seria
esta ‘escravidão’ africana, necessitamos ressaltar o exato contexto das
questões dos ‘direitos pessoais’ nestas culturas. Esses direitos eram objeto
de negociações entre comunidades, ou no interior de uma determinada
comunidade. Não seria adequado identificar a escravidão a partir do
atributo ‘propriedade’ especialmente na África, onde os direitos pessoais
não eram facilmente separáveis de outros direitos de posse. Tais direitos —
incluindo direitos sobre o trabalho, sexualidade e procriação — eram
definidos pelas leis e pelos costumes.

Do ponto de vista dessa linha de interpretação, a posição de ‘escravo’


africano só pode ser compreendida estudando-se os canais pelos quais
fluíam esses direitos; mais ainda, sua articulação com o sistema de
parentesco predominante e com o casamento africano, o que nos daria uma
noção dos mencionados direitos no interior dessas sociedades. Diante desta
perspectivas é fundamental, na tentativa de equacionar a questão, descartar
a noção de propriedade. Os direitos pessoais eram negociáveis, sendo a
transferência desses direitos uma prática comum entre os africanos. Muitas
vezes, uma pessoa ou grupo de pessoas se submetia a outra comunidade,
normalmente em troca de mercadoria ou dinheiro.

Os grupos de parentes podiam dispor dos seus membros com possibilidades


de transferência de mulheres, crianças e escravos, envolvendo pagamento e
a noção de venda. Para observador ocidental, direitos de parentesco não
podem ser adquiridos por ‘compra’. Daí a dificuldade de perceber que,
entre os africanos, tanto pessoas ‘livres’ como ‘escravas’ podiam ser
‘propriedade’.

Para este tipo de análise, o ponto de partida para explicar a escravidão


africana seria entender esses mecanismos internos (parentesco, aquisição de
esposas, adoção de crianças) que marginalizam alguns dos membros da
sociedade e incorporaram os estrangeiros como escravos. Está implícito
nestas afirmações o pressuposto de que a escravidão foi um processo
contínuo de incorporação dos elementos não integrados às estruturas
fundamentais dessas sociedades, tais como parentesco, linhagem e etnia.
Para esses autores é impossível aplicar o termo ‘liberdade’ no contexto
africano.

Outra análise que trouxe valiosa contribuição e importante matéria de


reflexão foi apresenta por Lovejoy no seu estudo da escravidão na África
(Lovejoy, 1983). O autor não recorre a eufemismo e prefere utilizar os
termos escravos, escravidão e status. Sua imediata preocupação é a
definição desses termos e a sua relação com outras formas de submissão.
Procura situar a posição escravo/livre nas sociedades africanas e identificar
outros status intermediários nesta dicotomia.

A escravidão, segundo Lovejoy, era um meio de negar aos estrangeiros os


direitos e privilégios numa sociedade, de modo que eles pudessem ser
explorados com objetivos econômicos, políticos e sociais. A ausência de
parentesco seria o traço mais comum na distinção entre um escravo e um
não-escravo, enfatizada pela distância a que eram levados os escravos em
relação ao seu local de origem, acentuando assim a sua procedência
estrangeira.

Quanto à circulação dos cativos nestas comunidades, o artigo de Pierre-


Philippe Rey sobre três grupos étnicos da região do Kongo demonstra esta
ocorrência em sociedade linhageiras (Rey, 1975). As descrições tradicionais
mostram estes escravos passando de uma etnia a outra. Nestes estudos de
caso, a análise desta circulação permite apreender o movimento dos
escravos do interior para o litoral. O indivíduo, excluído de sua linhagem,
circulava entre várias comunidades sem ser inserido na produção. Em um
dado momento, ele era reintegrado a uma unidade de produção em outra
linhagem e perdia o status de escravo ou cativo. A exclusão da produção
nunca era definitiva, a não ser a partir do tráfico de escravos, quando o
cativo era inserido na produção da economia colonial nas Américas.

Retomando o enfoque de Lovejoy, a definição de estrangeiro seria uma das


características para identificação do escravo. Ele aponta, também, o tripé
em que a escravidão está baseada: violência, trabalho e propriedade. A
guerra, o sequestro, as razias eram as formas mais comuns de escravização,
não invalidando outros procedimentos, como o religioso e o judiciário. Os
escravos não estavam somente alocados nas tarefas produtivas: existiam
escravos desempenhando cargos políticos e sociais em todos os setores da
sociedade. A escravidão era uma entre várias formas de trabalho
dependente. Coexistiam, então, outros tipos de trabalho ao lado da
escravidão: servidão, clientela, trabalho assalariado, penhor, trabalho
comunal.

O autor nega a particularidade, americana, asiática ou africana, da


escravidão, sendo esta uma forma determinada de exploração. Em caso
particular da escravidão ocorrem semelhanças e diferenças, dependendo de
lugares e épocas.

Quando a estrutura básica da economia de uma sociedade depende do


escravo, temos o caso de uma sociedade escravista. A partir daí Lovejoy
constrói os seus argumentos para demonstrar em que momento poderia se
chamar uma sociedade de escravista, ressalvando, porém, que a simples
presença do escravo ou da escravidão não determinava necessariamente que
esta sociedade fosse escravista. O autor distingue três situações ao tratar as
culturas africanas: a escravidão como um traço marginal sem importância,
como uma instituição central ou como um modo de produção, podendo
ocorrer uma transformação da escravidão de um traço marginal para uma
instituição central, chegando a um modo de produção baseado na
escravidão.

O caso de Daomé entre os séculos XVII e XIX é um exemplo que encontra


certo consenso entre os historiadores como tendo a maior semelhança com
o escravismo americano. Num ensaio em que estuda o Daomé pré-colonial,
caracterizado com um modo de produção escravista, Roberta Kilkeny faz
algumas ressalvas às abordagens dos autores anteriormente mencionados
quanto à escravidão africana (Kilkeny, 1981). Primeiramente questiona a
pouca atenção dada à origem da escravidão na África. Considera que
aqueles autores em geral minimizaram esta questão ao argumentarem que a
procura de uma possível causa da escravidão fora do continente seria negar
qualquer dinamismo interno ao continente. Mas para Kilkeny, tal posição
leva a perder de vista o relacionamento dialético existente entre o
desenvolvimento (e subdesenvolvimento) da África e o capitalismo
emergente a partir do século XV.

Na discussão sobre a escravidão africana esbarra-se na dificuldade de se


chegar a uma definição satisfatória entre os especialistas. Tal fato é
compreensível, na medida em que as definições que se conhecem evocam
mais um aspecto da escravidão (a característica de estrangeiro, propriedade,
liberdade etc.) em detrimento de outros traços gerais. Aponta-se a
possibilidade de remeter ao contexto de estudos de casos específicos, a
saber, onde e quando ocorre o fenômeno da escravidão. E diante das muitas
ambiguidades que sugerem os termos definidores da relação de
subordinação na realidade africana, muitos autores têm adotado nomes de
origem local do escravo. É o caso de Miller e outros que concebem a
escravidão em termos de estruturas de parentesco inseridas numa sociedade
de linhagem (Miller, 1977).

Toda essa discussão sobre o tráfico Atlântico e escravidão africana trouxe


enriquecedoras contribuições para os estudos da história da África como um
todo, e pré-colonial em especial.

A  escravidão, vista pela última geração de africanistas, trata o tráfico de


escravos entre africanos e europeus a partir de um contexto de mudança
social na África em que um conjunto de elementos tornaram-se
indispensáveis: demografia e economia, incluindo preços, quantidade,
composição social e sexual, e exportação. Esses fatores articulados à
estrutura social africana determinada se conjuga com os dados empíricos
(7). Além disso, o estudo do tráfico levantou a questão do impacto da
escravidão entre as mulheres africanas. As pesquisas apontam que o número
de mulheres envolvidas com a escravidão, entre escravas e usuárias, foi
muito maior do que o de homens no continente africano. Outro dado
importante, a demanda por mulheres na escravidão africana sempre foi
maior do que na escravidão Atlântica. Até então, essa tendência era
justificada pela necessidade de homens na América pelo trabalho pesado.
No continente africano quem trabalha na agricultura são as mulheres. A
hipótese que se tem considerado, para esse caso, tem sido de uma provável
estratégia por parte da elite africana em guardarem as mulheres e cederem
os homens para o tráfico Atlântico. Como vimos em análises anteriores, são
elas membros fundamentais da estrutura das sociedades pré-coloniais,
objeto valioso para assegurar a produção e a reprodutividade das
comunidades.
Uma outra arena do debate, nos Estudos Africanos, foi a história da
formação do estado e classes, principalmente pela década de 80 à fora. O
registro generalizado dos debates sugere linhas de análise movendo-se em
torno de pesquisa histórica concreta, de situações com intricadas relações
entre produção e reprodução com os seus vários mecanismo de mudanças
de apropriação de bens e as origens de hierarquização de relações de
gêneros (Tadesse, 1981, p. 359). Esse debate tem trazido contributo
fundamental à complexidade das respostas africanas aos tipos de dominação
nos contatos com os europeus. A discussão foi aberta colocando no centro
os termos produtividade e reprodutividade, a partir da história do trabalho
considerando o impacto da escravidão para o caso das mulheres, na história
da África pré-colonial (8).

Hoje a historiografia africanista, com temas emergentes, como a história das


mulheres, da agricultura, vida urbana, história da doença mental na África,
das epidemias, das guerras, faz parte de uma historiografia internacional,
porém, resguardando suas singularidades. Á história das enfermidades, por
exemplo, tem sido um tema constante entre historiadores da África do Sul
do pós- apartheid (Birmingham. 1995, pp43).
© by Selma Pantoja 2000 

Todos os direitos reservados ao autor

Editoração eletrônica: Victor Tagore

Revisão: Autor

Capa: Selma Pantoja, Adriana Brito e Victor Tagore

Ilustrações: Ezio Bassani. Quaderni Poro 4 "I desendi dei monoescritti


arladi dei padre Giovanni Antonio Cavazzi da Montecuccolo", 1987 

Cópias cedidas pelo historiador John Thorton

P19n Pantoja, Selma

Nzinga Mbandi: mulher, guerra e escravidão / Selma Pantoja. — Brasília :


Thesaurus, 2000.

180 p. il. color.

CDU 967.3 CDD 967

ISBN 85-7062-199-X
Todos os direitos em língua portuguesa, no Brasil, reservados de acordo
com a lei. Nenhuma parte deste livro pode ser reproduzida ou transmitida
de qualquer forma ou por qualquer meio, incluindo fotocópia, gravação ou
informação computadorizada, sem permissão por escrito do autor. 

THESAURUS EDITORA DE BRASÍLIA LTDA. SIG Quadra 8, lote 2356


- CEP 70610-400 - Brasília, DF. Fone: (061) 344-3738 - Fax: (061)344-
2353

www.thesaurus.com.br- Endereço eletrônico: thesauru@gns.com.br

Composto e impresso no Brasil Printed in Brazil


PREFÁCIO

Este livro tem origem na minha dissertação de mestrado, iniciada em 1984 e


finalizada em 1987, quando escolhi por tema a História de Angola no
século XVII. A década de oitenta foi prolifera nas contribuições para a
historiografia, com as discussões sobre escravidão e escravismo no Brasil.
Aproveitando o silêncio sobre as questões na área dos Estudos Africanos,
no nosso meio acadêmico, apresentei uma temática africana em torno da
escravidão e do escravismo. No centro da questão destaquei a importância
de uma mulher africana, percorri os caminhos que a levaram ao poder e às
guerras nesse contexto.

Anos depois, com tese de doutorado, artigos e livro em produção como


trabalho de pós-doutorado, com base nos arquivos portugueses e africanos,
passei a reunir informações que dariam condições de uma reformulação do
meu texto de 1987, introduzindo os novos debates sobre o tema. Daquela
época até hoje, novos campos emergentes tomaram conta da cena
historiográfica brasileira, como o debate em torno da história das mulheres
e da questão de gênero. Novas metodologias podem contribuir com a
temática poder/mulher.

O estudo da escravidão tomou formas e caminhos diversos, com a última


geração de africanistas, apontando da necessidade que as pesquisas tendam
a um estudo com uma visão atlântica, um universo só, que englobe as duas
margens do Oceano. Optei por manter a estrutura do texto de 1987, com
pequenas modificações informando da situação atual quanto a bibliografia
mais recente. 

 
APRESENTAÇÃO

Desde menino, ouço falar na rainha Ginga. Nas conversas de calçadas e de


cozinha, ela surgia, ora como a mulher do rei do Congo, ora como sua
adversária. Nesta congada, desfilava sob um grande guarda-sol colorido, ao
lado do rei; naquela, soava apenas o seu nome de inimiga, e mantinha-se
oculta ou distante — e bela, e irresistível, e terrível. O que eu não ignorava
é que ela não era personagem de fábula, mas existira em carne e osso, em
inteligência e vontade, trezentos anos antes de minha infância, e fora uma
das mais finas e hábeis políticas de quem aprendi a história.

Não lhe conto a vida, porque é isto o que faz Selma Pantoja neste livro. E
não só lhe narra a existência corporal e terrena, como explica o mundo que
lhe foi dado e como procurou obstinadamente preservá-lo e protegê-lo da
expansão da Luanda portuguesa, usando em sua resistência tanto a violência
dos exércitos quanto a diplomacia do adiamento e da conformidade. Se seus
dotes de negociadora e sua habilidade impiedosa no uso da força
impressionaram os europeus, não causaram menor impacto entre seus
súditos e seus adversários africanos, a quem deu guerra e escravizou.

Foram alguns daqueles que ao lado dela ou contra ela lutaram, os que
embarcaram o seu mito pela primeira vez num navio negreiro e o trouxeram
para o Brasil. E não permitiram que ela morresse neste lado do Atlântico,
mas sim, que continuasse viva na boca e nas festas do povo, por toda a
parte, até mesmo na Fortaleza de minha meninice, onde os negros se
contavam pelos dedos de poucas mãos. Eram tão raros, que, nos maracatus,
as moças e os rapazes, brancos, cafuzos e caboclos, se pintavam de preto.
Antes, porém, de serem vendidos para o Sul ou de se confundirem, pela
mestiçagem, nas camadas populares, os africanos e seus descendentes
deixaram na memória de todos a figura da rainha irredutível de Andongo,
Matamba e Cassanje.

Selma Pantoja a traz de volta do mito para a história e a recoloca na sua


parte da África, no seu tempo. Entre os bantos; e, neles, entre os ambundos;
e nestes, entre os andongos. Descreve-nos os seus vizinhos (os congos e os
lundas) e os modos de vida que lhes eram comuns ou distintos. Fala-nos das
mudanças, dos desafios e dos traumas causados pela instalação dos
portugueses no Congo e em Luanda e das respostas que lhe deram
ambundus, jagas e imbangalas. Analisa o tráfico de escravos português e
suas consequências sobre as estruturas políticas e sociais dos povos da
região, principalmente os andongos, assim como as transformações que
provocou na escravidão tradicional. Mostra como os africanos, em especial
a rainha Ginga, procuraram utilizar em seu favor a disputa militar entre
lusitanos e holandeses. E, ao fazer história de Angola, contribui para
ampliar o entendimento da história do Brasil.

Pois o Brasil parcialmente se povoou com as campanhas que os portugueses


então empreenderam — e muitas delas não passavam de razias para prear
gente — e com as guerras que contra eles e contra outros grupos africanos a
rainha Ginga promoveu. Os cativos dessas lutas não desceram nas praias
brasileiras sem memória — e basta olhar ao derredor para disso ter certeza.
Trouxeram com eles um passado que continua nosso. Só que teimamos em
não ir procurá-lo onde se encontra, quase convencidos de que os
escravizadores tiveram êxito e lograram desumanizar as suas vítimas, e de
que o negro se reinventou a si próprio no Brasil.

Tome-se, por exemplo, o auto popular que tem, em muitas de suas versões,
a rainha Ginga como personagem presente ou encoberta: a congada. Não
tenho dúvidas sobre as influências portuguesas, na forma como se
organizaram as falas e os versos, na roupagem e em muito mais. Todavia,
noto que rei, rainha e altos dignitários vêm cobertos por grandes guarda-
sóis — o símbolo mais evidente do poder em boa parte do continente
africano. E lembro — e isto é mais importante — que os dois partidos
adversários, dispostos um frente ao outro, repetem uma cerimônia festiva
que se realizava quando ascendia ao poder, no Congo, um novo rei. Todos
os anos, pela mesma época, era ela reencenada, com os dois grupos a
simularem, dançando e a cruzar lanças, uma batalha.

Os africanos e os seus descendentes não reproduziram no Brasil tudo o que


deixaram nas suas terras de origem (como, aliás, tampouco os portugueses,
ainda que estivessem na posição de senhores). Escravos de distintas nações,
reunidos ao acaso, não o poderiam ter feito. Viram-se obrigados a modificar
cerimônias, costumes e comportamentos, a converter-se, quase sempre
parcialmente, a modos de vida que não eram os deles, a adaptar os seus
valores aos dos brancos, aos dos crioulos e de outros africanos que ao
derredor prevaleciam. Mas, entre os negros, a maioria não se impunha em
tudo e sempre. Se aqui predominavam hungus, pendes ou andongos,
aparentados linguística e culturalmente, um grupinho coeso de fons podia
convencê-los a sacrificar a um vodu daomeano.

No Brasil, compuseram-se novas etnias, criaram-se novos etnônimos e


ampliou-se a abrangência de alguns daqueles que só se aplicavam na África
e uma pequena grei. Passamos a distinguir entre angolas, benguelas,
cabindas, jejes, minas, moçambiques, nagôs. Aquele a quem os outros
chamavam nagô sabia-se, contudo, ijebu, ijexá, oió ou queto, sem recusar
seu novo nome. Que assim tenha sido, não seria matéria de surpresa, se
estudássemos mais a história da África. Pois lá as nações não eram estáticas
e se formavam e refaziam por soma e aglutinação de grupos diferentes ou
por ruptura e clivagem. Como, de resto, em quase todo o mundo. Os
imbangalas, de cujos rituais e organização militar a rainha Ginga se
apossou, são exemplo disso.

Os africanos — repito — não reproduziram as suas Áfricas no Brasil. Mas


as trouxeram consigo e delas nos impregnaram. E de tal modo, com
tamanha extensão e intensidade, que não nos explicamos sem elas. Durante
três séculos, os navios negreiros alimentavam o Brasil de gente — e, sem
estudarmos o que se passou nas diversas regiões da África, em cada
momento desses trezentos anos, não saberemos de onde, como e porquê
foram determinados povos, e não outros, os que se trouxeram à força para o
Brasil. Durante mais de três séculos, o Atlântico não passou de um rio, e
entre as suas margens trocaram-se sem cessar bens e experiências. Por isso,
no lado de cá, por muito tempo, fundiu-se o ferro à africana; e no de lá, uma
casa de farinha de mandioca é em tudo idêntica a uma brasileira, herdada
dos tupis.

Ainda crianças, estudamos na escola quem foram Pedro o Grande e


Catarina II da Rússia, mas não aprendemos nada sobre aquele Mbemba
Nzinga também chamado Afonso I, nem sobre o obá Osemwede, que foi
quem primeiro mandou um embaixador reconhecer a independência do
Brasil, nem sobre o rei Guezô do Daomé, nem sobre o poeta, teólogo e líder
fulo Osmã dan Fodio, cuja guerra santa derramou na Bahia, no início do
século XIX, uma grande quantidade de iorubas e houçás, nem sobre quem
era o angola a quiluanje, o oni de Ifé, o alafim de Oió, o damel de Caior,
nem sobre como se moviam os seus exércitos, e se organizavam os seus
estados, e, dentro deles, as classes sociais e a família. Retemos na memória
o sistema europeu dos três afolhamentos, mas ignoramos como era a
agricultura nas distintas regiões da África. Tampouco nos ensinam como
cada grupo comerciava com os vizinhos e à longa distância. Ou como vestia
cada nação. Ou vivia a sua gente. E, no entanto, essa gente é nossa
ancestral, e as suas histórias tiveram mais influência sobre a nossa história e
sobre o que hoje somos do que todos os reis da França.

Dito isso, fica evidente a importância deste livro de Selma Pantoja sobre a
rainha Ginga. Recebi os seus originais com alegria. E com alegria ainda
maior o colocarei na minha estante, ao lado daqueles poucos, pouquíssimos
volumes que os brasileiros escreveram sobre a África. Que não se demore
um outro. Que Selma Pantoja nos dê logo a obra que promete sobre a
condição da mulher, ao longo do tempo, em Angola. Afinal, África é uma
palavra feminina e, no Brasil, deveria ser sinônimo de mãe-pátria.

Alberto da Costa e Silva


INTRODUÇÃO

A história da África, antes da chegada dos europeus, chamamos história


pré-colonial. O nosso interesse pelo tema foi consequência de um período
de experiência profissional em país africano que, diríamos, acentuou nossa
relação com aquele continente. Essa mesma experiência nos colocou sob
uma nova perspectiva, a historiografia africana.

O elo comum do assunto proposto com a história do Brasil está na


colonização portuguesa. O período de maior relacionamento do Brasil com
a África, especialmente a África Central Ocidental, deu-se justamente na
época do escravismo brasileiro. A historiografia brasileira é marcada,
porém, pela insuficiência do estudo das relações Brasil-África e ressente-se
de uma quantidade maior de trabalhos nesta área.

A análise das contribuições e trocas recíprocas Brasil-África permitirá uma


visão clara de muitos aspectos de nossa história. Por exemplo, para um
adequado estudo do que foi a sociedade escravista brasileira, seria desejável
estender a análise até as sociedades de onde foram retirados os africanos
escravizados no Brasil. Portanto, o estudo objetivo das relações passadas,
Brasil-África, forçosamente remete ao melhor exame dessas formações
sociais.

O nosso estudo tem como objetivo, de uma maneira geral, avaliar o caráter
específico da organização e do desenvolvimento histórico das sociedades do
litoral angolano no século XVII. Para tal, tentamos caracterizar a divisão
interna desta sociedade levando em conta o surgimento de grupos
privilegiados; o significado das estruturas de parentesco e linhagens; as
formas de concepção do poder. Mais especificamente, ao longo desta
análise, tratamos de investigar com maior precisão as funções do escravo e
em que categorias ele se enquadra nas estruturas sociais.

Por outro lado, preocupamo-nos em situar o tráfico Atlântico — como fator


externo — no contexto da África e avaliar o seu peso e as suas
consequências nas estruturas sociais africanas.

Este livro visa a um público brasileiro que, pela escassez de publicações e


produção na área de Estudos Africanos em língua portuguesa, se vê sem
acesso a este tipo de informação. Portanto, um primeiro intuito será de
divulgação da história da África e, mais especialmente, da História de
Angola. 
2. POVOS E SOCIEDADES DA
REGIÃO DA ÁFRICA CENTRAL
OCIDENTAL

Os Bantu e os não-Bantu
Os povos situados ao norte do rio Zambeze, ao sul da floresta equatorial e ao
centro da região de savanas são predominantemente população de língua
Bantu. Sabe-se, através das peças arqueológicas, gravuras e pinturas
rupestres, que os primeiros habitantes desta região foram os bosquímanos,
povos caçadores e coletores. A partir do primeiro milênio da nossa era, os
bosquímanos foram deslocados pelas migrações Bantu, dispersando-se para
o sul de Angola. Os Bantu, poderíamos assinalar, introduziram a agricultura
e a metalurgia na região da África Central.

Na sua atividade produtiva, os Bantu apresentavam uma certa uniformidade:


praticavam no geral a agricultura itinerante. Por conta deste aspecto
econômico, viviam em busca de novas terras (Vansina, 1965, p. 19).

Os agricultores Bantu, por volta de 1400, já tinham estabelecido núcleos às


margens dos rios.

As precárias condições para a prática agrícola em consequência das


prolongadas estações secas explicariam a distribuição dessa população em
relação aos fatores climáticos. A concentração da população e a estruturação
das comunidades se deu em função de fatores como a existência de fontes
d’água (Miller, 1983, v. l, p. 121-3).

As regiões como os vales do rio Zaire e do médio Kwango constituíram


centros populacionais importantes. Outros locais de concentração da
população foram o curso do rio Kunene, o baixo Kubango, o alto Zambeze e
os afluentes do Kasai.
Os Bantu complementavam a sua atividade principal — a agricultura — com
a caça, a pesca, a coleta e o comércio. Utilizavam o fogo como preparação
dos terrenos para a agricultura: a chamada queimada. No século XV, estes
povos chegaram a desenvolver um tipo de agricultura semiperene ou perene.
A irrigação dos grandes rios e as terras periodicamente alagadas
condicionavam o tipo e a dimensão da agricultura.

Cabia às mulheres a maior parte do trabalho na atividade agrícola. Eram elas


que semeavam, colhiam e preparavam a terra; os homens derrubavam as
matas, limpavam o terreno e construíam as casas e os artefatos. A caça e a
pesca desempenhavam papéis importantes para a sobrevivência dessas
comunidades. Características marcantes deste tipo de sociedade são a pouca
divisão social do trabalho e a quase nenhuma especialização.

Estes povos conheciam o regime de descendência matrilinear, patrilinear e


ainda a descendência dupla. A matrilinearidade está associada à comunidade
original da mulher, sendo a filiação por intermédio das irmãs ou filhas dos
homens da comunidade. O tio materno tem autoridade sobre os filhos das
suas irmãs. Esta regra de descendência não estabelece os laços principais de
parentesco entre a mãe e os seus filhos, mas entre o irmão e os filhos desta.
O regime patrilinear ocorre quando a descendência de uma mulher está
associada à comunidade do marido, estabelecendo a relação pai-filho. A
descendência dupla seria a forma mista de compartilhar os laços maternos e
paternos (Meillassoux, 1977, p. 48).

Com base na aldeia podem-se distinguir vários tipos de organização política.


Cada aldeia tem origem numa linhagem, constituindo-se, por vezes, em um
conjunto de linhagem principal, e em outros casos, às aldeias correspondem
dimensões de chefias e o papel político do chefe é limitado: representa as
chefias e têm algumas obrigações religiosas, com insignificante participação
no processo político (Vansina, 1965, p. 4-5).

Caçadores e agricultores
Angola é parte da África Central Ocidental, região que compreende os
seguintes países: os Camarões, O Gabão, a República Democrática do
Congo, República Popular do Congo e a Zâmbia.
Á África Central Ocidental é uma zona formada por desertos, pela floresta
Equatorial e por savanas, áreas cujas especificidades são pertinentes ao
estudo da fixação humana (mapa 3). O norte da região inclui a floresta
úmida equatorial até o rio Congo; no sul estão as franjas semidesérticas do
Kalaari. Característica do desenvolvimento da região no passado foi a
expansão dos povos de língua Bantu. Hoje em dia quase toda a população da
África Central Ocidental é de origem Bantu. O início dessa expansão,
provavelmente, foi consequência da busca de áreas de ocupação mais
favoráveis para a sobrevivência. A população autóctone, pressionada, não
tinha como se defender contra os migrantes, agricultores que conheciam o
ferro.

Em toda a África Central Ocidental havia, antes da chegada dos ancestrais


dos Bantu, caçadores e coletores, conhecidos como bosquímanos. Estes
primeiros habitantes viveram na floresta por muitos milênios até adquirirem
suas atuais características. Eram grupos pequenos, isolados, nômades, cada
grupo possuindo sua própria língua. Não se conhece a língua originária
desses povos e a maioria da sua população foi absorvida pela grande
expansão dos povos de língua Bantu. Se, por um lado, os primeiros
habitantes da África Central Ocidental sofreram a influência linguística dos
Bantu, por outro, estes últimos tiveram que aprender técnicas de caça com
estes caçadores especializados. Em épocas de calamidades climáticas ou de
qualquer outro desastre da colheita os agricultores tomavam-se nômades,
caçadores e coletores (Vansina, 1984, p. 140-3; Birmingham, 1983, p. 1/29).

Os grupos Bantu chegaram em massa com seus cultivos e técnicas


metalúrgicas, o que abalou profundamente a maneira de viver dos povos
caçadores e coletores. As grandes migrações Bantu resultaram num violento
impacto no modo de vida dos antigos caçadores. O povo San, por exemplo,
vive nas áridas terras do sudeste de Angola e da Namíbia.

A África Central Ocidental foi ocupada, inicialmente, pelos Bantu


ocidentais, em pequenas migrações sucessivas. A rota da expansão pode ser
reconstruída, em parte, com o apoio das pesquisas arqueológicas, escavando
os vestígios neolíticos e, pela localização dos grupos linguísticos.

Grupos de língua Bantu cruzaram as altas terras do interior dos Camarões e


foi a primeira expansão desse ramo ocidental. Esses Bantu se expandiram
depois ao longo da costa, em direção ao norte e ao sul. Outros estenderam-se
na sua maioria entre a floresta e a savana, próximo ao rio Mbam (mapa 2).

No centro dos Camarões, os agricultores cruzaram o rio Sanga e se dirigiram


às terras férteis da floresta. Um grupo voltou-se para leste indo além do rio
Kadei em direção à floresta e à savana. Outros, caminhando para o sul e
encontrando ricas savanas e florestas, chegaram ao médio Ogwe, na região
do Gabão. Deste grupo, um novo ramo dos Bantu seguiu em direção ao oeste
e chegou ao sudeste do atual Zaire. Tratava-se do grupo Lualaba-Atlântico,
que, por sua vez, se subdividiu: o primeiro bloco foi em direção à floresta e
às savanas até atingir o baixo Zaire, enquanto outros grupos se
estabeleceram ao longo do rio Kwango, em Angola. Os que chegaram ao rio
Kwango ocuparam áreas florestais entre o rio Kuilo e Kasai. Numerosos
traços do neolítico foram encontrados no baixo Zaire. As regiões entre os
rios eram arenosas, pedregosas e sujeitas a estiagem. O nível de
conhecimento técnico dos Bantu permitiu-lhes, porém, estabelecerem-se
entre os vales dos rios e nas galerias das florestas.

Todos esses deslocamentos evidenciam que na África Central Ocidental a


população sempre foi extremamente dispersa. As zonas das savanas foram
sempre mais povoadas que a zona da floresta. Ainda que favorecida pelos
cursos d’água que tornam possível a agricultura, o solo da floresta é pobre e
pantanoso. Sua vegetação densa com altas árvores criava obstáculos à
agricultura, favorecendo a especialização na caça (Birmingham, 1983, p. 3).

Há cerca de quatro mil anos, aproximadamente, os agricultores da região dos


Camarões iniciaram a expansão e difusão da sua prática agrícola,
implementada ainda pelo uso do ferro em toda a África Central Ocidental,
iniciada há mais ou menos três mil anos (Birmingham, 1983, p. 13-15).

A atividade agrícola mais antiga na África Central (9) com vistas à produção
de alimentos foi a cultura do inhame (10), para cujo cozimento empregava-
se óleo de palmeiras cultivadas na zona de florestas. A cultura de cereais se
deu basicamente nas savanas, enquanto que a cultura de tubérculos ocorreu
na floresta. A introdução do uso do ferro na agricultura teve um efeito
explosivo, com a população agrícola crescendo e se expandindo para os
lados das savanas e dos lagos. O cultivo da banana, segundo Vansina, data de
época anterior ao ano 1000. A difusão da metalurgia, facilitando a abertura
de clareiras nas florestas úmidas, área ideal para a plantação da banana,
permitiu essa cultura, essencial para a dieta alimentar dos Bantu até o
advento do milho e da mandioca. A banana se adaptou melhor que o inhame
e as palmeiras à zona da floresta úmida, pois dispensava a preparação do
solo e tinha um bom rendimento na colheita (Birmingham, 1983, p. 12-13).

A cultura de cereais significou outra etapa na produção de alimentos e foi


um processo complexo, não linear em termos de tempo e espaço. O seu
desenvolvimento, na maioria das vezes, foi em conjunto com culturas
relativamente simples de outros vegetais. O plantio de cereais se inicia com
a domesticação de grãos como o sorgo agreste. Outro processo paralelo ao
cultivo de alimentos foi a domesticação de animais. O norte da África
Central foi pioneiro na domesticação de galinhas, cabras, carneiros e gado
bovino. A produção dos derivados do leite já era uma antiga habilidade
conhecida pelos Bantu desta região. Originalmente, a prática da pastorícia
foi uma atividade vinda da região norte do continente e o sal, decisivo para o
consumo de grãos, passou a ser um produto altamente valorizado nas trocas
entre essas comunidades.

Por volta do século XV, a África Central já tinha uma agricultura importante
ao longo das margens dos rios e das savanas. As altas terras do interior de
Angola, por exemplo, possibilitaram o surgimento de uma zona
desenvolvida e um crescimento significativo da população. A região de
savanas em direção a leste, pelos seus vales férteis, foi outra área escolhida
pelos agricultores (Vansina, 1984, p. 140-41).

A história do sul da África Central difere da história das zonas norte e oeste.
Aí o gado se desenvolveu em maior escala, porque esta região não estava
infestada pela tsé-tsé e, além disto, a produção do cobre na Zâmbia e, a partir
do ano 1000, a mineração do ouro no Zimbabwe, contribuíram para sua
riqueza.

A zona nordeste da África Central, por volta do ano 1000, entre o baixo
Upemba e o alto Zaire, distingue-se por um razoável crescimento
demográfico e pelo desenvolvimento do nível técnico das comunidades. Os
habitantes do lago Kisale, por exemplo, fabricavam cerâmica em diferentes
estilos, e comunidades pesqueiras exploravam os lagos, fabricavam canoas
para carregar os peixes, que depois de secos, eram enviados a mercados
distantes. O contato do Kisale com o exterior trouxe das regiões norte e sul o
sal e o cobre (Birmingham, 1983, p. 19).

A zona oeste da África Central teve uma população caracteristicamente


dispersa. A produção do cobre no nordeste do rio Zaire e de Angola não
chegou a ter grande importância.

Na maior parte dessas sociedades, o processamento do minério de ferro


tomou o aspecto de um ritual sagrado. Em algumas comunidades os fornos
eram mesmo colocados em um ponto central da aldeia ou, então, em local
secreto. O ferreiro, o mestre do ferro, tinha um tão alto prestígio que, por
vezes, originava rivalidades com o mestre caçador na disputa por maior
poder na coletividade. Com o tempo, o ferreiro se transformou no mais
importante artesão da aldeia.

Os instrumentos de pedra e ferro usados pela população Bantu no segundo


milênio comprovam a expansão da agricultura entre os Bantu mesmo antes
de 1100 de nossa era: a agricultura já era praticada, exceto em regiões
próximas ao deserto do Kalahari e alguns pontos da floresta. A população ao
sul da floresta dedicava-se ao cultivo do sorgo, alguns tubérculos e cereais.
A metalurgia do ferro, do cobre, a cerâmica, a tecelagem da ráfia e a
extração do sal eram então técnicas artesanais comuns na região (Vansina,
“L’Afrique Equatoriale et l’Angola: 1100-1500”, ex. mim. p.6; Vellut, Ob.
cit. p. 2-4).

Com grande prática da agricultura de cereais e o constante uso do ferro, os


Bantu estabeleceram-se nesta região, dispersando-se em direção à floresta e
ao litoral. Viviam em aldeias e se organizavam em linhagens matrilinear e
patrilinear, enfraquecida pelo regime de residência virilocal (regra de
residência pela qual o casal vive com a família do marido), que fortalecia a
estrutura aldeã (Vansina, L’Afrique Equatoriale et., p. 6).
O poder dos chefes políticos locais baseava-se no princípio territorial. O
chefe era aquele que primeiro ocupava uma determinada terra (Vansina,
L’Afrique Equatoriale et... p. 7). A estrutura política da aldeia permite,
através de um excedente, que o chefe se afaste da produção. Inicialmente,
era impossível deslocar da produção o patriarca e alguns conselheiros. Mas,
com o tempo, um excedente cada vez maior era necessário para manter fora
da produção não só o soberano como também os conselheiros (Id. ib. p. 7-8).
Os Mbundu e as linhagens
A complexidade do sistema político de alguns grupos levou à construção de
estados organizados em confederações de linhagens.

O estudo dos Mbundu, centrado no estado do Ndongo constituiu um


exemplo, além dos bakongos, de unidade política da região. Pode-se
acompanhar a sua construção histórica por meio das mudanças
institucionais. A grande análise até hoje feita sobre os Mbundu, sem dúvida
nenhuma, se encontra na obra de Miller em 1976. Num território complexo e
desafiador, das linhagens, parentescos e da tradição oral sua obra sugere
novas atitudes com revisões de abordagens convencionais da historiografia
até então.

Os limites para as fronteiras do espaço de população Mbundu, dados por


Miller aos falantes Mbundu, são: entre o rio Longa a sul e o Bengo a norte;
para leste o rio Luhando no sul até a parte inferior do Kambo. As fronteiras
sul parecem ter sido mais fixas. Os grupos Mbundu centrais incluíam os
Lenge, os Ndongo, os Songo, os Mbondo, os Pende, os Hungu, os Libolo
(Mapa 4).

Anterior à chegada dos europeus ocorreram muitas alterações que


impossibilitam definir divisões étnicas profundas e antigas. Portanto, a não
generalização da idéia de unidade e homogeneidade, que apressadamente
sempre nos ocorre fazer, de um povo Mbundu como um único grupo e
língua, próximo da idéia de ‘nação’ é a primeira lição que se retira da obra
de Miller.

No estudo das formações sociais da região da África Central Ocidental o


importante é destacar alguns traços básicos dessas sociedades. São povos de
diversas etnias, com predominância do regime de descendência matrilinear,
estruturados em linhagens (11), sendo comum entre eles o sistema do dote.

O preceito principal entre os mbundu era a idéia de igualdade. Toda


população que vivia junta deveria ter laços de parentesco. Na linhagem,
tratando-se de grupo de parentes unilinear, os seus membros se
identificavam como um corpo constituído e aceitavam a direção dos mais
velhos. Qualquer estudo que se coloque do ponto de vista da ideologia
subjacente àqueles povos, se prenderá às origens da ideologia linhageira. A
ideologia, neste caso, está ligada ao parentesco e à oposição anciãos/ jovens
dentro das comunidades. Nas comunidades mbundu existiam muitos
dependentes em situação de desigualdade. Vansina afirma que o status de
escravo desmascara a ideologia da igualdade (Vansina, 1980).

O estabelecimento da estrutura linhageira parece ter resultado da chegada


dos agricultores Bantu nesta região. O crescimento demográfico e a sua
contrapartida — a escassez de terras férteis — conduziram a população a
uma constante procura de terras ainda não exploradas. Esta situação serviu
para aumentar o número de dependentes. Por outro lado, as secas periódicas
teriam sido outra fonte, à medida que populações famintas se colocavam sob
a proteção de uma determinada chefia (Miller, 1981, p. 44).

Obter um número significativo de dependentes (crianças, mulheres,


prisioneiros de guerra, endividados, condenados por crimes, penhorados etc.)
seria a garantia de controle da mão-de-obra. Para isso poderiam lançar mão
de troca de mulheres ou fazer alianças entre os mais velhos de diferentes
grupos. Constituíam-se, assim, grupos vizinhos, que mantinham um sistema
de trocas, garantindo deste modo o acesso de cada grupo ao controle de mão-
de-obra. A poligamia, no caso, servia como um canal de apropriação do
trabalho feminino, além daqueles outros tipos de dependentes. Nestas
sociedades as mulheres e os escravos estariam na última escala do poder. No
tocante à região que estudamos, Cavazzi afirma que, no campo, a maior
parte dos trabalhos cabia às mulheres e aos escravos (Cavazzi, 1965, p. 85),
e que quando os senhores morriam, seus escravos e mulheres eram
enterrados com eles (Cavazzi, 1965. p. 124-5).

O conflito no sistema de linhagem ocorria pela competição por mulheres e


outros dependentes. Formava-se o que se convencionou chamar de
comunidades de parentesco segmentada porque, em consequência da falta de
trabalhadores, de mulheres e da necessidade de expansão das terras por parte
dos mais jovens, ocorriam disputas entre anciãos e jovens, resultando em um
novo segmento (Miller, 1981, p. 46).
A região do litoral da África Central, no século XVI, viu crescerem os
estados centralizados (Mbundu, Kongo). Estes novos estados vão se apoiar
na ideologia linhageira ao tentar superar a autonomia das chefias locais; por
outro lado, as comunidades tentam defender direitos e privilégios em relação
a esta centralização. Os soberanos dos novos estados pautam-se pela
preservação dos privilégios dos mais velhos contra os jovens e estrangeiros.
A tendência será de formar pequenos estados em relação aos grandes estados
do século XV, aparecendo a fragmentação, portanto, como a tônica dos
séculos XVI e XVII (Miller, 1981. p. 52).

Sociedades linhageiras
Estas sociedades africanas tinham uma forma de organização social e
política mais complexa do que se pensa. As instituições sociais, em sua
maior parte, se baseavam no sistema de parentesco: relação em que duas
pessoas são parentes, descendem de um ancestral comum e a dominância
desse sistema passa a caracterizar essas sociedades. O termo parentesco no
sentido em que o empregamos aqui é utilizado principalmente como uma
relação social no interior destes grupos e também como uma relação de
parentesco consanguínea. Se discute hoje da centralidade do parentesco nas
sociedade africanas, o caso aqui estudado se configura tratar de uma forma
básica da organização social.

Entre alguns grupos a descendência se dá pela linha paterna e neste caso


considera-se a filiação por meio do homem ficando a mulher associada à
comunidade onde vive o marido. Este sistema de parentesco é chamado
patrilinear. Outras vezes a filiação está associada à comunidade da mãe,
descende-se das irmãs ou filhas do homem da comunidade. O tio materno
tem maior autoridade sobre o filho da irmã do que o marido desta. A este
sistema de parentesco chama-se matrilinear. Em outras palavras, a
patrilinearidade se estabelece entre pai e filhos da esposa e a
matrilinearidade não se estabelece entre a mãe e seus filhos, mas entre o
irmão da mãe e os filhos desta. Então, às vezes, os tios têm mais autoridade
sobre os sobrinhos do que o pai, e a relação entre primos muitas vezes é mais
forte do que entre irmãos. Todos são sobrinhos de alguém e descendem de
um fundador de alguma linhagem, isto é, um grupo de parentes organizados
segundo um sistema de filiação. As sociedades dos Mbundu são
predominantemente matrilineares e linhageiras. Mas apesar do princípio de
contar o parentesco e herança através das mulheres a maior forma de
autoridade fica com os homens.

Toda linhagem tem um antepassado comum e, portanto, todos são parentes


desse fundador, formando uma linha de descendência direta. Na África
Central Ocidental, o sistema predominante de parentesco era o matrilinear. E
os agrupamentos humanos se baseiam em formas linhageiras de organização.
Fator importante se pensarmos nos pequenos estados Mbundu. Sobrepondo a
esses laços linhageiros uma rede de instituições, horizontais, verticais e
transversais, recobria e unia os diversificados grupos sociais Mbundu. Como
demonstrou Miller a presença de diversificadas instituições foi central para o
desenvolver da história política dos Mbundu. 
3. ANGOLA: ASPECTOS DO
MUNDO NATURAL

Os caminhos fluviais e oceânicos


Os rios e os mares sempre foram áreas de demarcação do domínio dos
povos. Ao contar a história dos Mbundu, antepassados dos angolanos no
século XVII, esses meios de transportes de mercadorias e homens, como se
poderia esperar estavam sob controle dos soberanos africanos. O alto mar
pertencia aos europeus com suas técnicas européias. Mas o litoral com
viagens costeiras, os caminhos dos rios em contato direto com o interior, ou
ainda, por meios de conexões, estavam e se mantiveram por tempos sob o
controle restrito dos reis africanos. As passagens por essas vias dependiam
de negociações que requeriam tempo e paciência por parte dos europeus
que por muitas vezes não souberam esperar e pagavam custos altos por
guerras desastrosas, que por sua vez, nem sempre resolviam a questão
restando a negociação.

A região onde se concentra nosso estudo, corresponde ao atual território de


Angola. Localizada ao sul da floresta equatorial, área de transição entre a
África Central e a Meridional. É banhada pelo oceano Atlântico a oeste
(uma costa com a extensão aproximada de 1600 quilômetros); faz fronteira
ao norte com República Popular e a Democrática dos Congos; a leste
limita-se com a Zâmbia e ao sul com a Namíbia.

Este território pode ser delimitado, do ponto de vista hidrográfico, por


quatro grandes bacias: as bacias do Zaire, do Kwanza, do Cunene e do
Zambeze. Esta abundância de sistemas hidrográficos no território angolano
favoreceu a fixação humana na região. Na região norte angolana está
situado o rio Kwanza (formando a maior bacia hidrográfica inteiramente em
território angolano) que tem cerca de 900 quilômetros de extensão e
deságua no oceano Atlântico. Esses rios são os principais sistemas de
comunicação que davam acesso aos mercados e às feiras. A população do
litoral, baseava sua sobrevivência na pesca, agricultura e prática da
pastorícia. Utilizavam a navegação de cabotagem ao longo da costa com
embarcações construídas com instrumentos de ferro extraídos, das minas
localizadas na floresta próximas a embocadura do Kwanza. A partir de
grossos troncos de árvores fabricavam as suas embarcações em que
percorriam em direção ao interior o rio Kwanza.

Situado no norte angolano, o rio Zaire tem uma extensão de,


aproximadamente, 150 quilômetros navegáveis; é considerado o maior rio
da África em caudal. A maior parte do curso deste rio está em território
congolês. Outros rios, ainda no norte angolano, correm em direção ao
oceano Atlântico e formam bacias hidrográficas menores. Junto ao Kwanza,
o rio Zaire fazia as conexões das rotas fluviais e oceânicas, conectava
pontos distantes do interior para o Atlântico (12). As viagens de cabotagens
aconteciam entre a barra do Kwanza e a foz do rio Zaire, como descreveram
os primeiros portugueses que pisaram a região.

A bacia do Kuango, pertencente à região norte, juntamente com o Zaire e o


Kwanza constituem os três maiores rios do norte angolano. Mais para leste
encontra-se o rio Kasai, afluente do Zaire, que delimita a fronteira leste
angolana.

Na região sudeste o sistema hidrográfico mais característico é o rio


Zambeze que nasce em Angola e chega até o Índico. Na parte sul de
Angola, o Cunene — que corre em direção norte-sul e nasce na região de
Huambo — forma a principal bacia hidrográfica. O rio Cubango é outro
importante rio da região sul, correndo em direção norte-sul e tendo na sua
margem esquerda os afluentes mais importantes.

Além de outros rios da região sul temos o Coriango, que corre em direção
norte-sul e tem um curioso sistema hidrográfico, na maior parte de sua
extensão forma correntes subterrâneas, que afloram somente em curtas
extensões. Este fenômeno é conhecido como mulolas ou malongas.

Os rios angolanos, em sua maior parte, não são navegáveis e as grandes vias
são, principalmente, o Zaire e o Kwanza. E como veremos, estes dois rios
foram fundamentais formando sistemas de transportes de pessoas e
mercadorias com o litoral Atlântico, antes e depois da chegada dos
europeus àquele litoral.

O clima e seus históricos mal-entendldos


A descrição do clima africano foi o vilão da história desde que os primeiros
portugueses chegaram ao litoral e por meio dos rios penetraram o sertão
africano, até os detetores do colonialismo.

O momento de conhecer e dominar aquela natureza parecia não chegar


perante cada europeu que tombava, vítima do clima africano. Criou-se uma
série de mitos justificadores dos males que passavam, ou pensavam passar,
os brancos no meio-ambiente africano. O clima serviu para justificar o que
os portugueses consideravam de errado ao adentrar cultura africana a
dentro. Luanda será conhecida pela ‘tumba do homem branco’ e o
comportamento e sexualidade pareciam se alterar frente esse ‘insalubre
clima’. O caso não se aplicou somente ao litoral Ocidental da África, de
qualquer jeito, a literatura a respeito é abundante.

Que clima é esse?

O clima da região angolana sofre influência da diversidade de solos, do


relevo e do sistema hidrográfico. Outros fatores contribuem para
modificação climática em Angola, como é o caso da latitude e da corrente
fria de Benguela. O clima é do tipo intertropical com sub tipos climáticos:
clima equatorial litorâneo, com temperaturas úmidas e alta pluviosidade;
clima subtropical do litoral, influência pela corrente fria de Benguela; clima
tropical continental, com temperaturas altas e constantes, grande umidade e
abundantes chuvas; e clima planáltico na região sul.
Em Angola se distinguem duas estações: uma seca e fresca, ou de cacimbo,
outra de chuvas e temperaturas quentes. A pluviosidade aumenta quando
nos afastamos do litoral, na costa as chuvas são curtas, no interior chegam a
1800 mm. por ano.

No litoral norte o clima é úmido e quente, transitando para clima equatorial


litoral, e mais para o sul o clima é tropical de variações térmicas. O clima
tropical predomina na região e na parte interior central. No litoral este clima
torna-se mais suave, influenciado pelo oceano; na região planáltica, o fator
altitude modifica o clima, que transita para temperado, propício às
atividades agrícolas. Ao sul, as precipitações tornam-se nulas: é o deserto.

O litoral, quanto à vegetação, é uma zona árida e arenosa ao longo de toda


extensão. De Benguela, em direção ao norte, a vegetação aumenta e o solo é
próprio para agricultura, principalmente do norte do Kwanza para o interior.
A região costeira apresenta altitude superior a 1000 metros e a vegetação é
influenciada pelo clima e pela natureza do solo. Nas regiões úmidas existe
uma vegetação tropical com grande diversidade de espécies; o mesmo
acontece com a vegetação de transição para o deserto e no planalto do
interior.

O  relevo compreende três regiões: a zona litorânea retilínea; a encosta de


planalto, com montanhas paralelas à costa; e o planalto (13).

Um harmonioso convívio acontece entre litoral Atlântico de um lado e


deserto do outro, oferecendo uma bela paisagem de contrastes aos seus
observadores. 
4. OS MBUNDU

Os mbundu e seus vizinhos

A história dos Mbundu, como foi visto, está intimamente ligada à trajetória
dos imigrantes de língua Bantu da Idade do Ferro, que se infiltraram por toda
a região da África Central. Esses Bantu, dos quais se originaram os Mbundu,
formaram vários estados ou confederações de estados, cada um adotando
determinado tipo de organização política. Algumas dessas unidades políticas
influenciaram profundamente a história dos Mbundu. Foi o caso do Kongo,
Lunda, Loango. Ao sul do Rio Zaire e a oeste do estado Lunda localizava-se
o território dos Mbundu.

Os primeiros contatos dos europeus nesta região se estabeleceram com o


Kongo, muito antes de qualquer relação com os Mbundu do Ndongo, daí a
necessidade de nos determos um pouco na história do Kongo (mapa 5 e 6).
O Kongo localizava-se na parte norte da atual Angola, região habitada pelos
Bakongo. O seu território limitava-se ao norte pelo rio Zaire, a leste pelo
baixo Kuango, ao sul a fronteira era o rio Loge e, a oeste o Oceano (Mapa
6).

Costuma-se em termos de divisão territorial do Kongo dizer que ele estava


organizado em seis províncias — Soyo, Mbamba, Nsundi, Mpango, Mbata e
Mpemba — nesta situando-se a capital, Mbanzakongo (14). Além dessas
províncias, havia os estados independentes e chefias como os Mbundu do
nordeste de Angola que, possivelmente, pagavam tributos ao soberano, o
Manikongo (Birmingham, 1966, p. 18). Os estados nesta situação eram o
Ndongo, Matamba, Loango, Ngoyo, Dembe, Cakongo, entre outros (Santos,
1964, p. 6).

O Kongo
O Ndongo, onde nasceu Nzinga, era tributário de um grande estado ao norte,
o Kongo dotado de uma complexa organização administrativa, o Kongo
estava dividido em seis unidades, cada uma com um titular nomeado pelo
soberano africano, o Manikongo. A principal função administrativa do
Manikongo e dos chefes locais era a coleta das taxas em diferentes níveis da
sociedade. Além das unidades administrativas, alguns estados independentes
pagavam tributo ao Manikongo, como era o caso do Ndongo.

Na sua organização interna o Kongo apresentava uma distinta separação


quanto à produção e à organização social. Os habitantes das mbanza
(cidades) eram aqueles que virados para outros tipos de atividades se
diferenciavam quanto à visão de mundo, viviam em separado da população
das aldeias e por sua posição na produção formavam uma ‘elite’ étnica.
Politicamente os títulos e as posições estavam com os habitantes das mbanza
(Thornton, 1983, p. 38-445).

Em Mbanzakongo, residência do soberano, os chefes pagavam pontualmente


suas taxas em produtos regionais, como tecidos, sal e couros. A inspeção
fiscal estava a cargo de funcionários. O Manikongo tinha o poder de nomear
e destituir os funcionários com os quais não estava satisfeito, aproveitando
para isto, a cerimônia anual de prestação de contas. Era importante para as
unidades administrativas pertencerem a uma grande e segura comunidade. A
maneira de garantir esses laços era pagar o tributo a um chefe, de forma
pública, através de uma grande festa.

Alguns historiadores consideram que foi para manter esta estrutura


centralizada que os Manikongo, justamente com os mani, fizeram aliança
com os portugueses e se converteram tão rapidamente ao cristianismo. Mas a
presença da religião cristã encontrou uma forte resistência e a cristianização
se operou apenas entre o grupo ‘aristocrático’ congolês. Pode-se dizer que
no século XVI o Kongo era um estado governado por um grupo pertencente
a uma etnia distinta que controlava o comércio a longa distância. Somente
em 1556, na luta contra o Kongo enfraquecido pelos conflitos das facções
internas, o Ndongo consegue a sua completa independência, deixando de
pagar tributo ao manikongo.

Pode-se considerar o Kongo no século XV como um exemplo da estrutura


sócio-política dos estados africanos nesta região, levando-se em conta o
poderio e a extensão congolesa. A aldeia era a unidade política mínima e,
nesta época, já comportava homens livres e alguns cativos ou prisioneiros de
guerra (Vansina, 1965, p. 36). Cada conjunto de aldeias era governado por
um funcionário nomeado pelo Manikongo, que poderia ser substituído
segundo a vontade do soberano. A frente de cada província estava também
um funcionário escolhido pelo Manikongo. No cimo desta escala estava o
senhor africano (Vansina, 1965, p. 33).

Todos os titulares eram denominados mani; alguns tinham funções


específicas como, por exemplo, o manivangu, juiz em adultério e governador
de Mbanzakongo. Os mani formavam um segmento privilegiado na estrutura
do Kongo. Não existia um clã herdeiro para o caso da sucessão ao cargo de
mani Kongo: em princípio, todos os descendentes homens dos Manikongo
podiam reivindicar a sucessão. Algumas vezes o sucessor era eleito por uma
espécie de colegiado composto de nove membros, dos quais o mais
importante era aquele que detinha o direito de veto (Vansina, 1965, p. 34). A
partir de 1504, o direito de sucessão foi restringido aos descendentes do
Manikongo Afonso I (15), o que acirrou o espírito de facção em todos os
pontos da estrutura do poder no estado congolês. Havia alguma exceção,
como a província de Mbata, onde a sucessão era hereditária. A partir de
1512 os conselheiros do Manikongo eram os portugueses, os quais durante o
século XVII conseguiram, de fato, um lugar no colegiado eleitoral com
direito a veto, influindo de forma decisiva na escolha do Manikongo
(Vansina, 1965, p. 35-6).

Não havia exército permanente, embora o Manikongo dispusesse de uma


guarda composta de estrangeiros, talvez escravos. Em caso de guerra, o
exército era convocado pelos chefes de aldeias quando assim ordenassem os
funcionários. Uma guerra prolongada era impossível por falta de
organização e estratégia militar: só em 1575 criaram-se formações militares
especializadas e permanentes (Vansina, 1965, p. 35-6).

O  governo central mantinha-se por meio da cobrança de impostos em


produtos e em trabalho compulsório: o tributo podia ser pago em tecidos de
ráfia, marfim e cativos. Outras fontes de rendimentos eram a cobrança do
direito de alfândega e a pesca das conchas zimbo (que serviam de moeda),
monopólio do Manikongo vindos da ilha de Luanda (16). No comércio um
dos produtos mais importantes era o sal. A palmeira era uma mercadoria
valiosa nas transações: dela se extraía o óleo para cozinhar, se fazia bebidas
alcoólicas e de suas folhas fabricava-se fibras para tecer as roupas.

Além da colheita da palma cultivavam o inhame, a banana e a pimenta. Os


homens usavam peles de animais como roupa e as mulheres raspavam seus
cabelos e enfeitavam-se com panos coloridos na cabeça. As pessoas não
livres podiam cultivar a terra ou prestar serviços para outros. Um homem
poderoso sempre tinha numerosos escravos que capturava nas guerras, os
quais podiam estar alocados em tarefas como as transações comerciais, ou
prestar serviços em mercados distantes para seus senhores (Birmingham,
1966, p. 5)

Explorando a costa africana, uma expedição marítima portuguesa chegou ao


estuário do rio Congo, em 1482. Assim, os portugueses estabeleceram
contatos com o governante do maior estado da África Central — o Kongo.
Os interesses dos portugueses pelo Kongo eram essencialmente comerciais,
sendo secundária a missão de cristianizar.

Comercializavam basicamente ouro, marfim e pimenta. Os lusos levavam


para a costa africana manufaturas da região do Mediterrâneo e,
especialmente, tecidos do norte da África. A introdução dessas mercadorias
facilitou a entrada dos portugueses no Kongo. O consumo e redistribuição
desses produtos entre os Bakongo eram fortemente controlados pelo
soberano: o uso dessas mercadorias exóticas e de ostentação distinguia os
governantes do restante da população. Desenvolveu- se um acentuado gosto
pelos tecidos, mantas de lã, facas de ferro, espelhos, contas e porcelanas
chinesas.

O aumento da autoridade do Manikongo no início do século XVI foi paralelo


às novas ‘contribuições’ dos portugueses, não só em mercadorias, mas
também em artesãos, professores e padres. A princípio amistosas, as relações
luso-bakongo foram declinando à medida que o pretexto da cristianização do
estado africano era posto de lado e expandia-se o comércio de escravos
(Birmingham, 1977, v. 4, cap. 8, p. 329).

Nos primeiros contatos, os Bakongo trocaram presentes com os portugueses


e uma embaixada de quatro africanos foi levada até Lisboa, sendo que o
Manikongo chegou a ser batizado. O mecanismo de captação e venda de
escravos era controlado pelo soberano do Kongo. Já na primeira metade do
século XVI, porém, as relações bakongo-lusas declinavam: são constantes na
vasta correspondência dos Manikongo com a Coroa lusa as queixas sobre o
comportamento ‘degradante’ dos súditos portugueses no Kongo (Delgado,
1948, v. I, p. 154). Na luta pela sucessão ao título de Manikongo havia
grupos pró e contra a presença portuguesa no Kongo. Em 1526, o
Manikongo aponta a grande quantidade de comerciantes portugueses como
causa da miséria de seu povo, pois mesmo pessoas livres eram escravizadas,
não se respeitando nem os membros da aristocracia Kongo (Lopez, 1949, p.
115).

A relação com o mundo europeu aumentou a autoridade e a riqueza do


Manikongo e dos mani. Este grupo privilegiado se envolveu numa busca de
recursos para adquirir mercadorias e serviços (técnicos e professores)
estrangeiros.

Para os Manikongo e a aristocracia bakongo, a única maneira de satisfazer


os seus desejos pelos produtos estrangeiros era utilizar os recursos advindos
do tráfico de escravos. Além do mais, sua sobrevivência política dependia
dele (Birmingham, 1977, v. 4, cap. 8, p. 337). As conchas, tecidos e os
ornamentos de cobre e marfim eram somente símbolos de riquezas, pois a
verdadeira riqueza era o potencial humano de cada comunidade, a
capacidade física de homens e mulheres trabalharem a terra. Os Manikongo
pediam em suas cartas aos dirigentes portugueses que mandassem
professores e técnicos para ensinar os bakongo. Além disso, pagavam (em
escravos) os estudos de jovens africanos em Lisboa.

O historiador Birmingham, mostra que a ‘zona de caça’ preferida era a


região dos Mbundu, ao sul do Kongo, as quais os viajantes no século XVI se
referiam como uma populosa nação (Birmingham, 1974, p. 115).

A exportação das ‘peças’ dava-se pelo porto africano de Mpinda, onde o


Manikongo cobrava imposto por cada cativo exportado. Desde o início do
século, o comércio feito a partir da região da Ilha de Luanda, apesar de
ilegal, era praticado pelos comerciantes portugueses de São Tomé.

Desde o final do século XV o rei de Portugal deu aos comerciantes da ilha


de São Tomé a concessão do litoral do Kongo, que já vinha sendo visitado
por eles há algum tempo. A ilha, colonizada no século XV por famílias
vindas de Portugal, era explorada por donatários. Os comerciantes da ilha,
durante todo o século XVÍ, esforçaram-se por impedir todas as tentativas de
acordo entre os soberanos portugueses e africanos. A lista de sabotagens é
longa, e os navios que vinham de Lisboa com destino ao litoral angolano
trazendo encomendas para os soberanos africanos, sofriam verdadeiras
razias em sua passagem pela ilha. O que chegava ao Manikongo e ao Ngola
eram peças de vestimentas senhoriais, muito apreciadas por aqueles
governantes, vinhos avinagrados, cartas adulteradas. Houve até o caso de
sequestro de representantes do Manikongo. O intercâmbio era interceptado
sempre que não convinha aos interesses daqueles comerciantes.

Em 1512, por meio de um Regimento, o comércio de escravos no litoral do


Kongo tornou-se monopólio real. Isto implicava anulação dos privilégios dos
comerciantes de São Tomé. Os portugueses envolvidos no tráfico de
escravos nesta região dividiam-se em partidários do rei português e
partidários de São Tomé. A luta entre facções intensificava-se à medida que
o comércio de cativos se expandia.

Desde 1504 aproximava-se do Ngola o grupo de comerciantes de São Tomé,


insatisfeito com o monopólio do tráfico imperante no Kongo.
Quando os portugueses chegaram à região do rio Kwanza encontraram os
Mbundu organizados no estado do Ndongo. O soberano desta sociedade
tinha o título de Ngola. A partir daí os lusos passaram a chamar toda a região
ao sul do rio Zaire de Angola.

Inicialmente, o comércio de escravos entre portugueses c africanos era de


colaboração: o acesso dos europeus às rotas comerciais dependia desta
colaboração africana. O tráfico de escravos era mantido pelas guerras entre
os estados africanos mais fortes e os povos menos organizados.

O estado do Kongo, em meados do século XVI, foi invadido pelos grupos


guerreiros dos Yagas, que capturaram e saquearam a capital Mbanzakongo
(São Salvador) em 1560/1569. Os Yaga (ou Jaga) eram povos que habitavam
o interior e que com grande agressividade, atacavam os povos vizinhos. O
fenômeno dos Yagas — período de violentos ataques — foi um golpe para
os chefes locais, os Manikongos e os comerciantes portugueses. Em 1556, na
guerra Kongo-Ndongo, os Yagas, lutaram ao lado dos Mbundu do Ndongo.
É possível que tenha sido a partir daí que os portugueses passaram a chamar
de Yagas a todos os povos que usassem métodos similares de guerra (Oliver
e Atmore, 1981, p. 157).

A invasão do Kongo resultou na desorganização do comércio de escravos


pelo porto de Mpinda. Este século representou o declínio para o Kongo, e a
hegemonia para o Ndongo na região. Este tinha, a princípio, algumas
vantagens em relação ao Kongo: estava situado mais para o interior, não
tendo contato direto com os europeus; mantinha, portanto, suas trocas sem
interferência dos lusos, o que lhe permitia fortalecer-se através do comércio
de escravos.

Os Lunda
O reino Lunda foi outro importante estado situado na região do planalto de
Katanga, a leste dos Mbundu. Formavam- se pequenas famílias que,
inicialmente, viviam em aldeias dispersas. A sua economia era basicamente
de subsistência, mas conheciam a maneira de fabricar instrumentos 66 de
ferro e cerâmica. Durante o século XV o seu território foi invadido pelos
luba, originários da bacia do Lualaba. Esses invasores, detentores de técnicas
metalúrgicas superiores, formaram vários pequenos estados luba. No século
XV, porém, já existiam os estados Lunda (Oliver e Atmore, 1981, p. 7-10),
(mapa 6 e 8). Mais para norte do Kongo estava o reino do Loango. Parece ter
sido fundado antes do Kongo, com um soberano que gozava de poder
centralizado e que, além disto, desempenhava a função mágica de fazer
chover. A região conhecia grandes estiagens, o que levava a população a
trazer presentes ao soberano, na esperança do fim da seca. O Loango estava
dividido em províncias e a língua, o vili, não tem relação com as outras
línguas da África Central Ocidental, tratando-se provavelmente de idioma
originário dos Bantu do leste (Oliver e Atmore, 1981, p. 10) (mapa 8).

Havia longo tempo que os Mbundu mantinham contatos com todos esses
reinos. A tradição oral dos Mbundu sugere que a formação do povo que
originou o Ndongo sofreu influências tanto do Kongo como do Luba.

Por volta de 1500, próximo a um dos afluentes do Kuango, desenvolveram-


se algumas chefias sob o poder dos Pende. Essa população deixou Angola no
século XVI e foi estabelecer-se na região do rio Kasai. A tradição entre os
Pende conta, ainda que uma população formada de pastores e caçadores, que
não utilizava instrumentos de ferro, viveu durante longo tempo nas planícies
de Luanda, onde encontrou povos vindos do norte, liderados por um ferreiro
que ensinou àquela população a agricultura e a fundição do ferro. Estes
migrantes do norte teriam fundado o reino do Ndongo antes da chegada dos
portugueses (Vansina, ex. mim. s/d, p.14-15; Birmingham, 1966, p. 10-11;
Miller, 1976., p.65-68), (mapa 4).

O clã que descendia diretamente dos primeiros agricultores, estabelecidos


numa pequena localidade, era o mais forte. A sua autoridade política advinha
deste princípio e a sua liderança era simbolizada pelo culto a um objeto de
madeira chamado malunga. Os grupos migrantes de ferreiros usavam
insígnias de ferro, chamadas Ngola e fabricavam armas para caçadores c
bandos guerreiros; eram artesãos c comerciantes que se interessavam em
contatar comunidades e pequenos estados. Na região central de Angola, os
povos possuidores da insígnia Ngola entraram em disputa com os portadores
da insígnia malunga para estabelecerem sua autoridade política na região
(Miller, 1976, p. 70 ). O poder, nestas chefias, estava associado ao título de
Ngola. No século XV surgiram, com o crescimento das chefias o estado de
Matamba, que se constituiu entre o rio Kuango e o rio Bengo; e o estado do
Ndongo (Vansina, ex. mim. p.2), (mapa 4 e 8).
Tanto o estado de Matamba como o do Ndongo tinham uma relação
tributária com o grande estado situado ao norte: o Kongo. Dos estados que se
estabeleceram nos arredores, Mbondo, Libolo e Kissama, este produzia o
sal-gema, e no Ndembe localizavam-se as minas de sal. O sal parece ter sido
o artigo mais importante no comércio antes da chegada dos europeus à costa
angolana. O sal extraído na região de Kissama era tido como de melhor
qualidade; era negociado e transportado em barras e se transformou em uma
forma de estocar riquezas. Em torno de Kissama se formou uma importante
rede comercial, para a qual convergiam comerciantes do mais longínquo
interior, em busca de tal produto (Birmingham, 1970, p. 165).

Ondongo dos Mbundu


A  partir dos recentes estudos da tradição oral dos Mbundu (kimbundu),
ampliou-se o conhecimento sobre a história desse povo ao longo dos séculos
XVI-XV1I. Sabe-se que os laços de linhagem entre os Mbundu ocupava
lugar dominante para c desenvolvimento da sua história política. Os
pesquisadores que até hoje estudaram a região (17) acentuam a importância
das linhagens para a compressão da história Mbundu.

Os Mbundu da região Ocidental da África Central parecem ter-se


estabelecido no planalto de Luanda desde o início da Idade do Ferro. Foram
favorecidos por encontrar solos próprios para a agricultura e o pastoreio,
embora houvesse período de escassez de chuvas e ataques da mosca tsé-tsé.

Além da coleta das conchas e da pesca, os Mbundu se dedicavam à produção


do sal. Desde o início do século XVI já existia, porém, alguma atividade
comercial, direcionada para o Kongo. Inicialmente o Ndongo mantinha
pouco comércio com o litoral.

Os grupos Mbundu lutavam para dominar a região e com isso controlar as


linhagens autônomas por meio da introdução de novas instituições. Em
estudos mais recentes os historiadores da região tendem a interpretar essas
lutas não só como resultantes de conquistas militares mas por influências e
conflitos das linhagens que introduzem títulos e insígnias dentre outros
povos linhageiros e passam a ter maior extensão de domínio. São assim,
formadas as inúmeras linhagens hierarquizadas, subordinadas umas a outras
mas de autonomia espacial intensa, já que a tendência a fragmentação era o
comum, surgindo novas linhagens com posições titulares recentes. Resultava
uma dinâmica altamente volátil e, por isso mesmo, de intrincados
malabarismos para o entendimento da sua estrutura política.

As primeiras formas sociais de organização foram as pequenas aldeias,


submetidas aos grupos de parentes, constituindo-se em um conjunto de
irmãos e sobrinhos, formando assim um grupo de filiação. As esposas
residiam com os seus maridos, apesar de pertencerem ao seus grupos
próprios de parentes. Os filhos moravam com suas mães, porém, quando
crescidos, juntavam-se aos tios, na aldeia de parentes da mãe. No geral os
membros mais velhos de um grupo de filiação concentravam-se em uma
aldeia reforçando seu padrão de identidade linhageira. Abaixo de uma
geração de mais velhos vinha uma intermediária de sobrinhos e suas esposas
(filhos de suas irmãs) e uma geração dos mais jovens resultantes desses
casamentos que viviam e eram membros do grupo de filiação de suas
respectivas mães. As mulheres sozinhas retornavam a sua aldeia de origem,
de seus irmãos. As jovens casadas residiam em outras aldeias de seus
maridos. (Miller, 1976; Birmingham, 1966, p. 17-20 e 1977, p. 535-6).

Os rituais eram comandados e preservados por um ancião e só podiam ser


celebrados entre os grupos de parentes. O culto malunga parece ter sido uma
primeira tentativa de estruturar uma unidade política entre os Mbundu.
Constava de pequenas figuras de madeira que eram colocadas nos leitos dos
rios para intercederem junto ao deus do tempo, que tinha a função de fazer
chover. Os responsáveis em preservar o culto usavam sua autoridade para
cobrar tributo e lealdade. Os cultos malunga se restringiram a alguns locais
e, com o tempo, foram substituídos ou incorporados a forças políticas mais
poderosas (Miller, 1976, p. 70-86).

Os membros de uma aldeia, ou de um grupo de filiação, tinham o controle


das suas terras férteis para a prática da agricultura, os rios para a pesca e a
floresta para a caça. Por motivo de esgotamento do solo os agricultores são
itinerantes. Pelo princípio de matrilinearidade os sobrinhos crescidos vão
para a aldeia da mãe, portanto, ficavam um tempo longe de sua linhagem.
Uma linhagem estrangeira poderia viver na aldeia mas não tinha direito de
repassar seus privilégios, herança, a sua descendência. Todo esse padrão de
comportamento refletia uma grande mobilidade de indivíduos entre aldeia-
linhagem.

Era comum a fragmentação das linhagens onde um sobrinho, com a morte


do mais velho do grupo de filiação, poderia se deslocar para outras terras
com membros da sua geração. A memória da linhagem fundadora se
mantinha nessa nova linhagem. (Miller, 1976).

Os títulos e posições dentro das linhagens jogavam papéis importantes para


sua estrutura de centralização política. Assim temos uma série de títulos
considerados perpétuos e de sucessão. Esses títulos eram concedidos a
membros de linhagens vizinhas ou estrangeiras. À ocupação de uma posição
titular correspondia uma serie de usos de insígnias sagradas, com alocadoras
funções de autoridades e responsabilidades perante o grupo de filiação. Essa
linhagem que aceitava os títulos e insígnias (linhagem filha) passa ser
subordinada à linhagem que concedeu os títulos (linhagem mãe). As
concessões posteriores das linhagens filhas vinham as linhagens sobrinhas,
irmãs, tios. Essa era uma das maneiras mais comuns de expansão da
autoridade de um determinado rei em um espaço geográfico determinado.
Esse sistema linhageiro de expansão das instituições pode ser visto no caso
do Ngola Kiluanji do Ndongo por volta do século XVI.

A introdução no Ndongo do ritual dos símbolos chamados Ngola esteve


relacionada diretamente com este período de crescimento econômico c
político. Os soberanos-ferreiros aparecem na tradição Mbundu, nesta época,
como os guardiões dos objetos sagrados ligando este culto ao fabrico do
ferro. A noção de autoridade entre os Mbundu estava relacionada aos
poderes espirituais e estes se conseguiam por meio da posse de objetos
considerados sagrados, um mediador para as linhagens entre os mortos e
vivos. O símbolo Ngola oferecia maior flexibilidade para outras linhagens e
permanecia menos hierarquizado se comparado com os símbolos anteriores
de malunga e mulemba.

Nos espaços Mbundu, o Ngola inicialmente era considerado o protetor das


linhagens frente à invasão dos grupos étnicos estranhos. Cada aldeia buscava
um Ngola protetor para garantir sua autonomia linhageira, portanto os Ngola
eram títulos locais conciliáveis com a autonomia linhageira. O poder do
título de Ngola se inclinou cada vez mais para adquirir influência política c
militar. É por volta do século XVJ que parecem ter surgido formas de
parentesco Ngola. (Birmingham, 1977, v. 3, cap. 7, p. 538). Segundo a
tradição os Samba introduziram os instrumentos de ferro. O mítico rei
Samba Ngola Musuri chegou com a técnica do ferro (ver gravura). Eles
difundiram entre os Mbundu a instituição do Ngola, como novo símbolo
linhageiro (Miller, 1976)

Em meados do século XVI o poder do Ngola Kiluanji já havia se expandido


rapidamente, às custas de um maior controle do comércio, reforçando o seu
poder espiritual e político. O Ngola controlava os depósitos de ferro situados
no vale do rio Lucala e as rotas de comércio que levavam o sal à região do
interior (Miller, 1983, v. I, p. 138). Quando os portugueses chegaram a esta
região encontraram um reino dirigido por um Ngola, com bem sucedida
centralização e controle sobre as linhagens. Um exército que enfrentava os
portugueses além do controle territorial por meio das instituições derivadas
do Ngola, com sentidos políticos diferentes de seu significado original.

É provável que, no início do século, os chefes políticos dos Lunda,


originários do norte da savana, tenham travado contato com os povos
Mbundu no vale do alto Kwanza. Resultou daí uma organização centrada em
campos de guerra chamados quilombos. A participação nos quilombos se
dava especificamente pelo rito de iniciação e não por laços com as
linhagens. Com isto enfraquecia-se o poder das antigas linhagens e
aumentava o do líder guerreiro.

Ainda no século XVI os partidários de Kasanje entre os Lunda criaram uma


espécie de unidade militar chamada Mbangala, e se expandiram na região
Mbundu até o Atlântico. Todos os Mbangala da região do rio Kwanza
abandonaram a sua filiação étnica e os antigos costumes. Os Mbangala
recebiam este nome através de ritos de iniciação que, juntamente com
cuidadoso treinamento militar, estabeleciam severas normas de
comportamento, incluindo o canibalismo ritualístico. As unidades militares
Mbangala se segmentavam frequentemente a partir de novos chefes
guerreiros, que formavam novos regimentos militares. No final do século
XVI os Mbangala alcançaram o litoral Atlântico e entraram em contato com
o tráfico de escravos para o exterior. Os Mbangala atacaram, então, o
populoso estado Ndongo.
Títulos e funções: Ngola, Ngolambole,
Moenelumba, Muenequizoile, Tendala
No Ndongo, o chefe com título mais importante era o Ngola, assistido por
um conjunto de poderosos senhores, cada um com funções específicas.
Assim, Cadornega nos fala da existência do cargo de Ngolambole, que era
uma espécie de comandante de guerra em todo o Ndongo. Cada parte do
território era governada por um chefe local. Ao conselho de paz e guerra,
presidido pelo Ngola, cabiam as grandes decisões. E existia um auxiliar com
o título de Moenelumba, responsável pela residência e outros bens do Ngola.
Ocupando o cargo de ajudante direto, o Muenequizoile cuidava da
alimentação dos assistentes e convidados do Ngola. Mas o cargo de maior
poder depois do Ngola era o do Tendala, tanto na época de guerra como de
paz (Cadornega, 1940, v. 3, p. 29).

Os livres e os não-livres
Toda a população, aparentemente, estava submetida ao Ngola, mas havia
diferenças na forma de submissão. Por exemplo, os prisioneiros de guerra
eram considerados cativos e assim trabalhavam um pouco mais do que os
não-escravos. Nem só os prisioneiros de guerra eram escravos. Existiam os
escravos perpétuos, os escravos por dívidas e aqueles que eram punidos por
crimes, adultério e, principalmente, bruxaria. Os órfãos, quando cresciam,
eram vendidos como escravos. Comumente os filhos de escravos já não
precisavam trabalhar tanto e os filhos destes últimos deixavam a condição de
escravos (Cadornega, 1940, p. 30-31).

Um escravo podia acumular bens e com isto tornar-se livre, em outras


situações, chegava a ocupar cargo de confiança. O cativo perpétuo, com a
morte do seu dono, ficava completamente livre. Alguns cativos chegavam à
função de chefes ou conselheiros do Ngola; foi o caso de Ginga Amona, que
chegou a auxiliar direto de Nzinga. Os cativos não estavam inseridos em
qualquer relação de parentesco e, por isto mesmo, estavam ao nível mais
baixo da escala hierárquica da sociedade.

Os cativos formavam uma parte significativa da população do Ndongo e,


juntamente com as mulheres, eram encarregados das tarefas agrícolas.

A produção
O Ndongo era uma sociedade agrária e utilizava instrumentos de ferro no
cultivo da terra. A prática agrícola desta região era o cultivo do solo de
forma primitiva. Com o esgotamento da terra, o agricultor procurava nova
área para se instalar. Havia a irrigação natural das terras, pois era região
relativamente privilegiada em bacias hidrográficas. Apesar disto, era pouca a
quantidade de terras férteis propícias á atividade agrícola. Fatores como as
secas periódicas, os parasitas e as guerras contribuíam para a desorganização
da colheita e para longos períodos de fome.

Os Mbundu dedicavam-se à pesca que complementava a atividade principal,


a agricultura. Tinham uma produção artesanal em tecido de ráfia e faziam
fios, cordas e lonas para sacos da casca dos embondeiros, árvore grande e
grossa (Cavazzi, 1965, p. 31-34).

As mulheres Mbundu dedicavam-se ao trabalho agrícola: semeavam,


colhiam e cuidavam da plantação. Os homens se ocupavam da derrubada das
florestas, da preparação dos terrenos para a lavoura e da queimada. A caça
de animais de grande porte era uma atividade masculina. Além disso, eles
estavam encarregados da construção de residências para a comunidade, de
canoas e barcos, bem como de instrumentos para trabalhar a terra (Cavazzi,
1965, p. 38).

Os primeiros visitantes portugueses ao reino do Ndongo, os missionários,


descreveram a existência de uma malha de mercados que cobria a região que
eles percorreram para chegar à corte do Ngola. Em cada junção de rotas de
comércio se apresentava uma feira com os produtos alimentícios e outros:
era comum os mercados venderem farinha, legumes, sal, ferro (Silva, 1997,
p. 408-9). Produtos originários da pastorícia e do fabrico local formavam a
rede comercial no Ndongo, para abastecer a população e estrangeiros como
os recém-chegados portugueses (18). As feiras neste caso não eram, ainda,
mercados especialmente para o comércio de escravos.

A pesca em alto mar era feita pelos homens, mas a pesca do marisco zimbo,
cujas conchas serviam de moeda nesta região, era tarefa exclusivamente
feminina. Cavazzi, ao descrever o Ndongo, fala dos habitantes que se
vestiam de peles de animais e das mulheres que usavam os cabelos
encrespados, enquanto os homens raspavam a cabeça.

Ainda outra testemunha descreve os Mbundu do Ndongo: “os pretos


costumam raspar a cabeça deixando somente uma ponta de cabelo em cima,
como uma coroa de bispo”, assinalando depois que um gesto cordial, entre
eles, era o bater palmas, uns para outros (Cordeiro, 1881, p. 59).

Nzinga Mbandi e sua época


Na África Central, a história da região de Angola, ao longo do século XVII
sofreu uma grande mudança com a luta pela sobrevivência do estado do
Ndongo. Foi durante o governo de Nzinga Mbandi que o Ndongo viveu sua
fase mais terrível, atacado por dois inimigos simultâneos. De um lado, a
oeste, os portugueses, com atividades militares e comerciais pressionavam
na procura de escravos; do outro, pelo norte e pelo sul, os bandos Mbangala
se lançavam ferozmente contra o Ndongo. Os Mbangala eram populações
nômades que viviam do saque aos outros povos, não se dedicando, portanto,
à produção de alimentos. Coagida pela situação de intermediária no tráfico
de escravos, Nzinga lutou desesperadamente para manter o equilíbrio entre
ser fonte de escravos vindos de seus vizinhos a leste e, ao mesmo tempo,
formar cerrada defesa contra os ataques Mbangala.

Nzinga Mbandi nasceu por volta de 1582 e seu pai era o temido Ngola
Mbandi, chefe do Ndongo, poderoso estado africano habitado,
principalmente, pelos povos Mbundu.
Conta a tradição que, quando o exército de Mbandi voltava de uma de suas
vitoriosas batalhas aprisionou uma africana por nome Chinguela. O Ngola
Mbandi a transformou em sua cativa e com ela teve uma filha, que chamou
Nzinga. Seguindo os costumes de sua gente, alguns dias após o nascimento
da criança, o Ngola pediu aos adivinhos que predissessem o futuro de sua
filha. Os Achinguela profetizaram um futuro terrível e cruel para a filha do
Mbandi. Durante uma noite inteira os Achinguela vaticinaram o futuro da
menina Nzinga. Na sua época — diziam os adivinhos — o povo do Ndongo
sofrerá os ataques dos brancos vindos do mar, os rios transbordarão, a fome
estará por todos os lados, as doenças espalharão a dor e a tristeza.

Mas esta não é a única versão da origem e nascimento de Nzinga. Segundo


um soldado português, Antônio Cadornega, que foi com as tropas
portuguesas para a região de Angola combater o exército do Ndongo, o
Ngola tinha várias mulheres das quais uma era escolhida para ser a principal,
Amvalia Inene, e outra era escolhida como a secundária. Os filhos dessas
recebiam terras para cultivar e delas sobreviverem. Os Ngola escolhiam suas
esposas entre as filhas dos chefes locais mais fiéis ao soberano. Um desses
chefes mandou sua filha ao Ngola Mbandi, que a escolheu como principal.
Desta teve um filho, que o substituiu no cargo de Ngola, e três filhas sendo,
uma delas, Nzinga Mbandi.

Segundo a tradição o Ngola Mbandi considerava a possibilidade de a filha


mais velha, pela sua inteligência e vivacidade, vir a sucedê-lo no cargo de
chefe do povo Mbundu. Sabia antecipadamente das restrições a estas idéias
por parte dos seus conselheiros, os macotas, anciãos que, baseados nos
costumes e tradições Mbundu, auxiliavam o Ngola no governo. Com este
propósito, o Ngola não se descuidou da formação de sua filha mais velha.
Assim, aos cuidados de uma velha muito conhecida em todo o Ndongo,
Nzinga aprendeu os princípios da religião de seu povo. Uma das deusas que
Nzinga aprendeu a adorar foi Temba-Ndumba que segundo a tradição deu
origem ao Ndongo. Cavazzi, padre italiano que viveu nesta região, recolheu
a seguinte tradição a respeito dessa deusa: o chefe Zimbo e sua mulher
Temba-Ndumba percorreram muitos lugares até chegarem à região dos
Mbundu. Fizeram aí aliança com estes povos e, após a morte de Zimbo, sua
mulher Temba assumiu o poder, instituindo princípios rígidos aceitos a partir
daí por estes povos: estabeleceu os ritos de sacrifícios humanos e proibiu os
sacrifícios de mulheres nessas cerimônias, a não ser quando elas
acompanhassem os funerais dos maridos ou dos seus senhores. Foi também
permitido, a partir de Temba-Ndumba, que os chefes levassem suas mulheres
favoritas durante as guerras.

Tanto o soldado Cadornega como padre Cavazzi merecem uma leitura


cuidadosa que por sua vez devem ser confrontadas com outros manuscritos e
a tradição oral para que se apure até que ponto a figura de uma mulher nas
estruturas de poder dos Mbundu significava uma exceção, hipótese de alguns
autores, ou era comum para o estado dos Mbundu o acesso das mulheres às
insígnias e títulos principais, segundo argumentam outros pesquisadores.
Essa questão é das mais polêmicas hoje no estudo da história de Nzinga
Mbandi que ainda não mereceu um estudo mais acurado com fôlego
suficiente para esgotar as fontes possíveis. Como até hoje faltam estudos
mais aprofundados sobre a questão, a resposta fica sem uma hipótese
possível.

Os artigos de Miller, sobre a legitimidade Nzinga, respondido por Thornton,


não chegam a elucidar a questão da legitimidade/feminino, se pelo fato de
ser mulher a contestação se fazia naquele momento, ou não. Se por um lado,
as fontes de época são categóricas na afirmativa: da condição de ser mulher
como um impedimento, por outro, sabemos da existência de precedentes
mitos de fundação femininos e de figuras femininas em toda a história
Mbundu.

Onde e como?
No século XVII não havia uma região ‘angolana’: Angola era como os
portugueses chamavam as sociedades africanas situadas ao sul do rio Zaire, e
isto porque um dos chefes dessas sociedades tinha o título de Ngola.

Na verdade, essa região da África Central, durante essa época, compreendia


várias sociedades. As mais conhecidas pela sua expansão política na região
eram Zaire, Ndongo, Loango, Kuba, Luba entre outras, com ascendências na
região muitas das vezes cm épocas diferentes. O nosso enfoque centra-se em
duas regiões litorâneas: a do rio Congo e a do rio Kwanza.
A região que nos interessa é a do rio Kwanza. Este rio era o principal acesso
ao estado do Ndongo, onde nasceu Nzinga. Algumas versões são contadas a
respeito da origem do Ndongo. A tradição refere-se ao Ngola Mussuri
(significa ferreiro) que teria se enriquecido e submetido todos os seus
vizinhos durante um período de penúria. Nestas sociedades de base agrícola,
a profissão de ferreiro era muito importante, pois se utilizava instrumentos
de ferro no trabalho da terra, além disso, lanças, catanas e facas serviam para
a guerra e para serem trocados por alimentos com outros povos.

A  partir de uma pequena chefia este ferreiro chegou ao título de Ngola. O


Mussuri foi sucedido por sua filha Zundu que, em disputa com sua irmã
Tumbia, morre. Seu sobrinho assumiu então o título de Ngola Kiluanji,
sendo a seguir sucedido pelo Ngola Ndambi, que morreu em 1575. O quinto
Ngola teria sido Kiluanji Kia Ndambi, sucedido por Ngola Kilombo Kia
Kasenda. Esta sequência é extremamente discutível, mas os cronistas da
época concordam na referência ao Ngola que se chamou Mbandi, morreu em
1617 e era o pai de Nzinga Mbandi (19).

A  mulher africana na sociedade pré-colonial, particularmente entre os


Mbundu, ocupava posição de destaque social e econômico. Um assunto
polêmico, ainda hoje, na história da região é o alembamento. Por quase toda
a África Tropical era comum que o marido ‘pagasse’ por suas mulheres, o
chamado dote (20), mas elas tinham o direito de retomar a sua casa para
fugir aos maus tratos e, nestes casos, o marido era ridicularizado pela sua
comunidade. O dote era uma generalização na África Negra, simbolizando a
‘compra da mulher’. Este ‘pagamento’ significava, além de tudo, a
transferência da capacidade produtiva de uma mulher (trabalho e
procriação). O ‘preço’ da noiva constituía um importante caráter legal do
matrimônio; ratificava uma série de alianças incluindo direitos e obrigações
entre a família que cedia a esposa e aquela que a recebia. Em muitos casos
assegurava à mulher a construção de sua casa pelo marido e terras para
cultivar. Quando da dissolução do casamento, a esposa era devolvida à sua
família e o dote ao marido.  Nesta explicação simplificadora pode-se dizer
que a evolução que esse sistema de ‘compra de mulheres’ tem no continente,
ainda hoje, passou aos bens considerados de valor nas sociedades
industrializadas (21).
O  Ngola possuía centenas de mulheres (22) e algumas delas moravam na
mbanza a Ndongo (Coelho, 1994) e respeitando as hierarquias possuíam
direitos e deveres.

O  sistema de matrimônio mais comum na África pré-colonial subsaariana


era a poliginia, forma de casamento em que o homem podia ter diversas
esposas. É comum identificar a poliginia com as formas sociais baseadas na
agricultura de subsistência nas quais as mulheres, além de assegurarem as
atividades domésticas, desempenhavam papel fundamental na agricultura. A
poliginia representava um sistema de exploração da mulher enquanto
produtora e reprodutora, porém permitia que ela tivesse um certo controle
sobre os frutos de seu trabalho (23).

De uma maneira resumida, pode-se apresentar aqui, a discussão sobre o


papel das mulheres na escravidão africana nesse contexto de sociedades
linhageiras e poligâmicas. A respeito da escravidão, ao contrário do que
ocorreu no Brasil e no resto das Américas, a demanda de mulheres foi
sempre maior do que a de homens no mercado interno africano de escravos.
Tradicionalmente se buscou explicar este fato pela condição feminina de
procriação. Do ponto de vista de Claude Meillassoux foi justamente em
função da sua capacidade reprodutora que se dava a submissão da mulher, o
que a tornava, além disso, um elemento submisso também na produção
(Meillassoux, 1976, p. 3-19). A preferência pela escrava justificava-se à
medida que o trabalho produtivo feminino sempre foi predominante em todo
o continente africano. Na África, é comum o trabalho físico pesado, como
tarefa feminina, ao contrário do mundo Ocidental Cristão, em que a imagem
de fragilidade feminina foi sempre incompatível com trabalhos pesados e
atividades guerreiras. Porém, acrescenta Meillassoux, a ‘nobreza’ da mulher
frágil foi sempre esquecida pelas classes dominantes Ocidentais. Pelo que
sugerem Robertson e Klein a importância da mulher na escravidão africana
foi bem maior do que se pode imaginar. Dizem os especialistas que a maioria
dos escravos na África subsaariana era mulheres, mas que os estudos sobre
escravidão africana consideraram escravos exclusivamente os homens. Além
disso, a visão habitual é que os proprietários e usuários de escravos eram, na
maioria, homens. Segundo esses mesmos autores, seria possível afirmar que
a maioria dos proprietários de escravos era homens, mas que uma grande
percentagem de usuários era de mulheres (C. Robertson e M. Klein, 1983, p.
3-19).
Esta perspectiva aponta para a configuração de um contexto em que a
mulher não era somente vítima ou participante passiva na escravidão. As
mulheres livres nestas comunidades, em sua maioria, tinham suas
propriedades separadas das dos seus maridos. A função principal do trabalho
da escrava era, de preferência, produtivo (C. Meillassoux, 1983, p. 45-49).

Uma característica da escravidão feminina era a frequente assimilação da


escrava. Isto, considerando do ponto de vista dessas sociedades agrárias,
resultava de vários fatores, sendo um deles a sua função reprodutora. Por
exemplo, a escrava era sempre incorporada ao grupo quando tinha um filho
do seu senhor. Outro fator seria a ‘socialização submissa’ comum em muitas
sociedades, nas quais as mulheres eram e são ensinadas a obedecer aos
homens. A facilidade de incorporação da escrava se opõe ao caso dos
escravos, que percorriam outros cominhos na busca de sua liberdade, por
exemplo por meio da aquisição de um outro escravo ou de esposas
(Meillassoux, 1983, p. 45-50).

Se, por um lado, as mulheres conseguiam sua liberdade por meio de sua
função reprodutiva, por outro, eram presas por estas mesmas funções ao se
recusarem, frequentemente, a abandonar seus filhos. As mulheres, como em
outras sociedades, cumpriam função não só de reprodutora biológica, mas
também de reprodutora das relações sociais.

Em seus relatos os europeus sempre estranharam o aparente formalismo das


relações familiares entre os africanos e suas esposas, que lhes pareciam
indicar uma ausência de demonstração de afeto entre os pais. É claro, que
tais observadores não tinham acesso à vida privada dos africanos. Os
ocidentais partiam, e ainda partem, de uma imagem ideal de relação
mulher/homem, baseada na organização familiar nuclear, a partir da qual se
constitui sua sociedade (24). Parece mais razoável pensar que esses laços
afetivos não eram tão evidentes ou não se externavam da maneira que
estamos acostumados a vê-los.

Por mais tentador que seja, temos que ter o cuidado de não constituir a
imagem de uma África homogênea, sem as variantes locais e regionais, que
são numerosas. Principalmente para esses casos das relações homem/mulher,
embora, no caso de síntese, as generalizações sejam tão perigosas como
necessárias, como nas reflexões acima mencionadas. 
5. AFRICANOS E
PORTUCUESES NO COMÉRCIO
E NA ESCRAVIDÃO

O encontro de portugueses e Mbundu do reino Ndongo aconteceu na região


de Luanda. Para as populações que tiveram este primeiro contato os
europeus foram comparados aos espíritos errantes, como no litoral da região
do Congo (25) em que a identificação se deu pelo hábito dos europeus de
andarem em transportes gigantes pelo mar, além da cor da pele branca que
associavam aos espíritos dos antepassados. Na análise de Virgílio Coelho
(1997, p. 447-448), os portugueses, chegados ao litoral de Luanda, foram
tratados por ndele que significava um espirito malévolo que passeava pelo
mundo dos mortos e que vinha do mar. Portanto, era natural que fossem
tidos na conta de seres perigosos. Sucedendo entretanto que depois desses
primeiros tempos o termo ndele ficou como designação para identificar O
outro.

Desde 1540 os portugueses tiveram contatos com os soberanos Mbundu,


foram reis africanos que tomaram a iniciativa de buscar contatos com os
europeus. Algumas hipótese são formuladas para saber qual foi a razão
dessa busca dos Ngola do apoio aos portugueses. O detentor do cargo de
Ngola a Kiluanje estaria provavelmente em situação de pressão por parte de
outro grupo de parentes do norte. Seja como for, o socorro pedido aos
portugueses levou vinte anos para chegar. O provável conflito entre as
linhagens do sul e norte parecem ter norteado essa busca de auxílio.
Por volta de 1560 o Ngola Kiluanji aumentou o número de escravos no
reino do Ndongo, provavelmente em função do longo período de seca por
que passou a região. Nesta época o Ndongo já fornecia escravos aos
plantadores de cana-de-açúcar da ilha de São Tomé (Miller, 1983, v. I, p.
139-40).

Neste mesmo ano uma pequena expedição, enviada pela Coroa portuguesa,
chegou à embocadura do rio Kwanza. O capitão era Paulo Dias de Novais,
neto de Bartolomeu Dias. O objetivo era iniciar os contatos comerciais
diretamente com o Ngola. Este último, acreditando que tais contatos lhe
trariam mais poder e riqueza, pediu ao rei luso o envio de padres e
comerciantes, tendo em troca mandado alguns objetos de prata. Pensando
existir fabulosas minas de prata e diante das possibilidades comerciais, a
Coroa lusa encarregou Paulo Dias de Novais da embaixada ao Ndongo,
acompanhado de seus padres. No Kwanza, enquanto aguardavam a
tradicional recepção de boas-vindas do chefe local, residente mais próximo
ao litoral, foram informados de que o Ngola não estava interessado em
recebê-los. Na verdade, o Ngola que fizera o primeiro contato com os lusos
morrera, e o seu substituto não demostrou o mesmo entusiasmo pelos
portugueses. O contexto que os portugueses encontraram era outro: das
disputas entre linhagens do sul e norte, estas últimas pareciam ter a
hegemonia com os títulos independentes. Parecia não haver motivo nenhum
para que o Ndambi a Ngola fosse gentil com os estrangeiros e poderia ser
que o fato da capital situar-se no coração da linhagem do sul traria certa
fragilidade na posição do Ngola perante os estrangeiros (Miller, 1976).

Depois de esperar cinco meses no litoral — durante os quais morreram um


padre e vários tripulantes — para serem recebidos pelo Ngola, Novais
avançou para o interior, pouco se importando com a postura hostil do chefe.
Tanto o historiador Delgado como os escritos da época de Lopez e Pigafetta
justificaram a hostilidade do soberano africano, argumentando que o Ngola
além de estar desiludido com o comportamento dos comerciantes de
escravos, estava naquele momento sob forte influência dos comerciantes da
ilha de São Tomé. Eram conhecidos, provavelmente, o comportamento e a
intervenção dos comerciantes portugueses no Kongo que nesta altura já
estavam perdendo suas privilegiadas posições no interior da corte do
ManiKongo.
Novais conseguiu finalmente chegar à capital Mbundu que foi descrita por
um visitante em 1564 como do tamanho da cidade universitária de Évora.
Relata, também, que nesta época um grande incêndio queimou Angoleme e,
por isso, o Ngola mudou-se para Kabaça (26), futura capital localizada a
160 quilômetros do litoral. Este visitante, o padre Gouveia que ficou preso
na corte do Ngola, descreveu Angoleme como uma cidade cheia de
palmeiras, rodeada por cerca de palha e com cinco ou seis mil casas de
madeira (27). A questão das capitais do estado do Ndongo serem uma em
cada tempo ou itinerantes, espera-se por um estudo mais conclusivo.
Apenas resta afirmar que as capitais estavam sempre estrategicamente bem
localizadas em relação às minas e rotas do sal e das minas de ferro. Foi com
muita tenacidade que o Ngola defendeu esta área contra os avanços
portugueses.

O Ngola não apenas se recusou a ser convertido ao cristianismo, como


prendeu Novais juntamente com o padre Gouveia. Nessas condições Novais
ficou cinco anos em Kabaça, sendo libertado somente quando, ao que
parece, serviu de intermediário junto ao governo português para obter
reforço no combate aos adversários locais do Ngola (Lopez e Pigafetta,
1949, p. 46-7).

Os reis Mbundu teriam passado nesta época por momento de fortes


conflitos internos entre as chefias locais cujas facções disputavam a
expansão de seus domínios. A chegada dos portugueses, neste momento,
serviu como suporte ao Ngola para enfrentar os seus adversários. A facção
derrotada dividiu-se em pequenos grupos guerreiros, que não estavam sob o
poder central do reino do Ndongo e que se dedicavam a atacar o Ngola. Foi
o caso dos Ndembu situados entre a região dos Mbundu e do Kongo e, mais
para o sul, os do Ndala Kisua (Miller, 1983, v. I, p. 46-7).

Em 1575 Novais em Lisboa, recebe a donatária de Angola, iniciada


campanha para obter o monopólio de comercio e encontrar as hipotéticas
minas de prata de Cambambe.

Ralph Delgado aponta a fundação da vila de Luanda em 1575 como o


primeiro passo na conquista militar do Ndongo. Em 1586 um exército
conjugado Kongo-Ndongo-Yagas impôs aos portugueses uma dura derrota.
Tão efêmera foi a aliança entre os africanos que, no final do século, o
exército luso retomou a ofensiva, fundando o forte Massangano na
confluência dos rios Lucala e Kwanza, ponto estratégico para as guerras
subsequentes e grande ameaça para o Ndongo (mapa 4), (cf. Delgado, 1949,
v. I).

Ao longo do século XVII os portugueses combateram o Ndongo na


tentativa de destruir o povo Mbundu, objetivando incrementar o comércio
de escravos. Na luta pelo controle do comércio de escravos, tanto os
governantes africanos como os europeus queriam reservar para si o direito a
este comércio.

Na verdade, os lucros do tráfico justificavam tal monopólio e os


portugueses tiveram de guerrear por todo o século XVII para controlar o
Ndongo. Esta tarefa facilitada, por um lado, pela adesão que conseguiram
dos povos Mbangala, mas dificultada, por outro, pela fabulosa resistência
de Nzinga Mbandi.

A partir de 1611 os portugueses fizeram aliança temporária com os


Mbangala. No período de 1614-1615 a seca favoreceu o aumento do
número dos bandos guerreiros que ajudavam os portugueses no combate ao
Ndongo (Miller, 1983, v. I, p.140; Heintze, 1984).

O início do século testemunhou os grandes avanços dos portugueses na luta


contra o Ndongo, no sentido de aumentar o comércio de escravos em
Luanda. Os portugueses usavam o termo ‘resgate’ ao se referirem ao
aprisionamento dos africanos para transformá-los em escravos nas
Américas, no sentido de estarem retirando-os do mundo africano e
trazendo-os para o mundo cristão, Ocidental.

No estudo sobre a penetração portuguesa do Ndongo, Birmingham descreve


os principais métodos de captura dos escravos. A primeira forma de
aquisição de escravos pelos traficantes se dava diretamente nas ‘feiras’
(locais de venda de escravos, marfim, mel, ráfia, etc.) no interior e nas
fronteiras do Kongo e Ndongo. Os comerciantes, que no início eram
europeus (os pombeiros), passaram a ficar no litoral, enquanto os mulatos,
seus escravos ou forros, iam até as ‘feiras’. Outra maneira de captação se
dava pela cobrança de tributo em cativos aos chefes Mbundu dominados
pelos portugueses. A forma mais direta de captação era através das
expedições militares, destinadas ao ‘resgate’ de negro. Acompanhavam as
expedições os comerciantes que compravam dos soldados os escravos
aprisionados.

Os governantes portugueses, em Luanda, usavam diversos pretextos para


iniciar uma campanha militar, como punir um chefe Mbundu por não pagar
tributo, o que garantia o fluxo de escravos em direção ao porto de Luanda
(Birmingham, 1974, p. 31-34).

No princípio os chefes africanos (sobas) mais próximos se tornavam


tributários dos portugueses de maneira indireta. Desde a época de Paulo
Dias de Novais, os ‘donos’ dessas possessões mantinham a população sob o
controle tributário. Esta prática deu origem à ‘instituição do amo’, como o
interesse pelo cultivo do solo não estava em questão, para os proprietários a
população africana era em si, a verdadeira fonte de seus rendimentos. Cada
chefe local era obrigado a pagar o tributo na forma de escravos (Heintze,
1983, p. 57-8).

Cardonega calculou que saíram mais de dez mil escravos por ano (28) do
porto de Luanda para o Brasil. As consequências para o povo Mbundu
foram desastrosas, como o despovoamento e o desaparecimento de
comunidades inteiras. Cada governador usava métodos mais violentos de
captação de escravos, estabelecia novas fortificações e as lutas locais
forneciam crescente número de escravos para o litoral: a única meta era
aumentar o tráfico de escravos.

Na luta contra os portugueses foi constante a questão das rotas comerciais e


das ‘feiras’. O acesso a elas era o ponto regulador das relações luso-
africanas. As guerras foram apenas uma das suas consequências.
Geralmente, quando um parceiro africano não se comportava dentro dos
padrões esperados (subordinação e tributação) era punido por uma
campanha militar. Outras vezes, as expedições eram devidas à necessidade
de aumentar o número de cativos.

Sem os africanos como parceiros, os portugueses não teriam acesso às rotas


comerciais. Mas a continuidade destes contatos levou a um maior controle
de comércio pelos europeus e a uma maior ingerência interna nestas
sociedades Mbundu. Os governantes africanos tinham interesse em manter
contatos comerciais. Pensavam fortalecer-se e, na verdade, perderam o
controle do comércio. Alguns estados realmente se fortaleceram com as
trocas, outros acabaram destruídos. No geral, aquelas sociedades que se
localizavam mais para o interior do continente puderam dar maior
continuidade a este comércio; as outras, mais próximas do litoral sofreram
mais rapidamente o impacto do tráfico Atlântico.

A resistência obstinada de Nzinga, ‘aquela tão belicosa mulher’, como a


descreveu Cadornega, será o grande entrave para o fluxo comercial ao
longo do século XVII. Era preciso, cada vez mais, buscar os cativos no
interior do continente. A diversidade do meio — tipo de clima e doenças —
tornou indispensável a criação dos postos (presídios), em tomo dos quais
funcionavam as ‘feiras’. Mas se estes postos eram situados em território de
algum chefe africano não submisso aos lusos, frequentemente eclodiam os
conflitos. Nzinga significou esta insurgência diante da força militar dos
europeus.
Portugueses contra o Ndonco
No ano de 1617 morreu o pai de Nzinga, o Ngola Mbandi. Os auxiliares
diretos do Ngola morto estavam divididos quanto ao seu sucessor. Os
partidários de Kia Mbandi, irmão de Nzinga, reconheceram-no como
herdeiro do título de Ngola. Nos relatos da época conta- se que, na luta pelo
poder, o irmão de Nzinga mandou executar os seus possíveis inimigos.
Além de mandar matar os velhos conselheiros do Ngola, que eram
partidários de Nzinga, ordenou o assassinato de um futuro candidato ao
título máximo de Ngola, o filho de Nzinga. Esta se refugiou na região
nordeste do Ndongo, local chamado de Matamba. De um ponto de vista
mais realista, Nzinga não teria muitas chances de ficar com o título: em
caso de eleição, segundo as fontes da época, porque as linhagens
tradicionais não admitiriam uma mulher no cargo. Por outro lado, seus laços
de parentesco com o Ngola morto, segundo as mesmas fontes, não eram
definidos o bastante para reivindicar a sucessão. Já vimos que alguns
cronistas asseguram que ela era filha da mulher principal do Ngola; outros,
que era filha de uma escrava. Este último argumento, no entanto, nunca foi
usado contra Nzinga na sua luta pelo poder.

Ainda no começo do ano de 1617, o governador de Luanda declarou guerra


ao Ndongo. Luís Mendes de Vasconcelos, ajudado pelos Mbangala e por
um grupo de mercadores de escravos, abriu hostilidades contra o Ngola Kia
Mbandi (doc. 24, 06/08/1625, Heintze, 1985, p. 197). O período do governo
de Luís Vasconcelos foi de constantes guerras que devastaram o Ndongo.
Subjugou cento e nove chefes africanos, obrigando-os a pagar o tributo,
chamado na época baculamento, na forma de ‘peças da índia’. A causa
imediata foi a transferência do forte Hango para Mbaca, nas margens do rio
Lucala, que seria o ponto limite da penetração militar no interior do
Ndongo. O forte estava a um dia de caminhada da capital Mbundu, e tal
afronta seria objeto de disputa entre os soberanos do Ndongo e o governo
português, que se prolongaria até a segunda metade do século XVII. A
construção do forte Mbaca serviu para intimidar os chefes locais que se
mantinham fiéis ao Ngola e, sobretudo, para abrir o caminho às cobiçadas
minas de prata de Cambambe (doc. 23, 1624, Heintze, 1985, p. 195).

Este posto avançado dos portugueses contribuiu para que o Ngola fosse
pressionado pela própria irmã Nzinga, que capitalizaria politicamente o fato
ao iniciar um aproximação prevendo a reconciliação.

Com o pretexto de que o Ngola Mbandi estimulava a rebelião do soba Caita


Calabalange contra os portugueses, o governador empreendeu uma
campanha militar ao Ndongo. Na verdade a rebelião do soba foi provocada
pelo comandante do forte Hango. Para combater o Ndongo os portugueses
contaram com o apoio dos Mbangala Casa Cangola, Donga e Kasanje ( doc.
23, Heintze, 1985, p. 195-6).

No decorrer dos combates foram capturados africanos, enviados para o


Brasil ou para a América Espanhola como escravos. Um dos resultados
dessa guerra foi a diminuição do comércio com o interior e a extinção de
muitas ‘feiras’.

As residências do Ngola (Vunga, Kabaça) foram invadidas pelos


portugueses, e o Ngola Mbandi refugiou-se na fronteira oriental do Ndongo.
A capital foi destruída e os portugueses tiveram, mais tarde, que reconstruir
o Ndongo para restabelecer o comércio de cativos. O governador de Luanda
impôs o soba Sumba a Ntumba como o novo Ngola. A população Mbundu
recusou obediência ao novo Ngola por ele não ter laços de parentesco com a
linhagem Mbandi.

Foi pedido a Lisboa um apoio militar para fazer frente à resistência e aos
contra-ataques do Ndongo, e também para combater os holandeses, que
passaram a frequentar assiduamente a costa angolana.

Nesta época, o ambicioso governador de Luanda avançava a conquista


portuguesa para o interior, no desejo de unir os territórios da África Austral
sob governo português. Apesar de estarem em consonância com a política
da Coroa portuguesa, tais tentativas de ligar as regiões atuais de Angola e
Moçambique se frustraram.

Enquanto ao norte o grande estado do Kongo agonizava, fragilizado pelas


intrigas e corrupção das diversas facções portuguesas, ao sul, na região de
Benguela, seguindo as instruções régias, Manuel Cerveira devastava as
populações com suas guerras de fazer escravos. Na região central do litoral
angolano o Ndongo resistia.

As campanhas militares se estenderam pelo Bengo, Ambuíla e Caconda. Os


portugueses foram obrigados a combater os antigos aliados Mbangala,
Cangola e Donga (doc. 23, Heintze, 1985, p, 210).

O governador de Luanda preocupava-se em ‘pacificar a terra’, e mais ainda,


normalizar o comércio das ‘feiras’. Depois da degola de vinte e oito sobas e
do aprisionamento de grande quantidade da população, as ‘feiras’ deixaram
de funcionar, bem como o comércio em todo o interior. A região passou por
um longo período de fome em consequência das guerras e de uma época de
secas que durou quatro anos, afetando inclusive a região de Luanda.

No segundo assalto à Kabaça foram aprisionadas a mãe e a mulher principal


do Ngola. A região ficou desabitada, não havendo o quê ou com quem
comercializar e muito menos a quem cristianizar. O Ngola Mbandi fugiu
para a ilha do Kwanza, Quindonga. Com a saída mais tarde das tropas
portuguesas da região, o Mbangala Kasanje ocupou parte do Ndongo.
Diante de tais violências e destruição, que desarticulava o tráfico, o rei
espanhol Filipe IV (período de união das Coroas Ibéricas) tomou posição
contra tais atrocidades e preferiu voltar a uma política de aliança e
contemporização.

Em 1621 o governador de Luanda, João Correia de Souza, iniciou a política


de conciliação com o Ngola Mbandi. Durante os acordos, as irmãs do Ngola
foram levadas à Luanda na qualidade de reféns. O governador esperava
transformá-las em mediadoras do acordo. Foram feitos pedidos ao soberano
africano na intenção de que saísse das ilhas do Kwanza, voltasse para a
capital Mbundu e restabelecesse relações pacíficas com os portugueses.
Como vitoriosos os lusos tinham colocado com título principal Aire a
Kiluanje, de uma outra linhagem, para substituí-lo, mas não conseguiram
que os outros chefes locais lhe prestassem obediência. Os portugueses não
puderam expulsar todos, e Kasanje ainda controlava grande parte do
Ndongo.

A resposta do Ngola foi de que isso dependia, entre outras condições, da


retirada do forte Mbaca, com o que o governador português aparentemente
concordou. Os entendimentos para o acordo de paz começaram com a troca
de embaixadas. Era preciso encarregar dessa importante missão alguém
com grande habilidade de negociação, o Ngola pensou na sua irmã, Nzinga,
que estava em Matamba, onde passara a viver como forma de oposição ao
irmão, por este ter ficado com o título e cargo de Ngola.

Derrotada na luta pelo poder, Nzinga organizou um exército na região de


Matamba e, além disso, adotou alguns ritos e cerimônias do povo dessa
região, os Mbangala. São os quilombos de Nzinga, que passaram a ser
reconhecidos e respeitados por toda aquela região.

Quilombos contra portugueses


Nos quilombos de Nzinga prevaleciam os ritos e costumes dos Mbangala.
Estes eram povos do interior do continente, da região dos Lunda. Mais tarde
deslocaram-se para Oeste e, na sua migração em direção ao litoral,
confrontaram-se com os Mbundu. Os Mbangala, conhecidos pelas suas
habilidades guerreiras, sobreviviam pelos ataques que faziam a outros
povos.

Segundo a tradição oral recolhida pelo padre Cavazzi, era proibido o


nascimento de crianças nos quilombos mas, por outro lado, permitia-se a
incorporação dos prisioneiros de guerra à comunidade.

Os cronistas da época são unânimes na descrição dos Mbangala como


antropófagos que matavam suas próprias crianças. Na verdade, por meio de
pesquisas mais recentes sabemos algo mais sobre a polêmica questão da
origem desses grupos Mbangala (Miller, 1972; Thornton, 1978; Hilton,
1981).

O assassinato de crianças refere-se a um sistema militar de iniciação


conhecido como quilombos; a entrada no quilombo significava o fim dos
vínculos de linhagem e as crianças eram educadas pela comunidade com
formação guerreira, simbolizando o fim dos laços familiares. A adoção
desses ritos incluía várias cerimônias de sacrifícios humanos. Ainda pelas
descrições de Cavazzi sabemos que, ao nascerem nos quilombos, as
crianças eram escondidas e depois reintroduzidas no grupo pelos ritos de
iniciação. As mulheres e as crianças acompanhavam o exército Mbundu e
Mbangala. Estes quilombos impunham às tropas lusas ferrenhos combates e
nem sempre era fácil reconhecer o vencedor das batalhas. Cadornega
chegou a comentar que a cada vitória européia correspondia, no entanto, um
grande número de mortes, de portugueses devido à habilidade dos
quilombos na guerra e ao grande número de soldados africanos de que
dispunham.

Os quilombos de Nzinga eram verdadeiras fortificações protegidas pelos


Mbangala. E mais uma vez Cadornega que destaca o significado destes
quilombos para o exército português:

[...] havendo pelo caminho muitas ocasiões de guerra e reencontros


dispostos e ordenados por aquela valiosa amazona, que não sossega em
buscar os meios de arruinar o poder português, e mais sabendo que nossa
fatiga era toda em buscá-la e fazer-lhe o mesmo que nos deseja fazer [...]
(Cadornega, Ob. cit. v. I, p. 150).

Ditas por um soldado português no século XVII, estas palavras, apesar da


ótica etnocêntrica, demonstram a dupla identificação da figura de Nzinga.
Por um lado, a mulher-demônio, com poderes sobrenaturais e, por outro,
líder elogiada pela capacidade guerreira e pelas manobras políticas que
assustavam os próprios adversários.

Além de fortificações militares, os quilombos eram a residência da


população Mbangala e da ‘rainha’ Nzinga. Mas, antes de tudo, os
quilombos serviam como depósito de escravos a serem comercializados
com os traficantes, e eram os alvos prediletos dos portugueses quando
Nzinga criava dificuldades para o comércio das ‘peças’ (Cadornega, Ob. cit.
p. 14).

Os quilombos brasileiros, considerados uma das maiores manifestações de


resistência escrava no Brasil, possuíam algumas características Mbangala.
Mas eles eram diferentes, no sentido e na função, em relação aos quilombos
da região angolana dos séculos XVII/XVI1I. Embora a etimologia da
palavra quilombo seja kimbundu as semelhanças, para os citados séculos,
não vão muito além. Segundo os testemunhos escritos na época, os
quilombos africanos naquela região eram povoações ou acampamentos
militares que aprisionavam os escravos para vendê-los aos traficantes,
enquanto que os quilombos brasileiros poderiam ser definidos como uma
forma peculiar de resistência ao escravismo no Brasil.

Quanto à organização interna, os quilombos africanos estavam divididos em


vários quarteirões. No centro ficava a residência do chefe e, em volta desta,
as moradas dos principais conselheiros e auxiliares. O Moenelumba residia
também dentro de um quarteirão central que incluía a habitação dos
principais. Um quarteirão, em especial, era supervisionado pelo
Ngolambole e o songo era a unidade militar básica (Cadornega, Ob. cit. p.
344; Cavazzi, Ob. cit. p. 192).
Uma embaixada à Luanda
O Ngola Mbandi sabia da força desses quilombos e por isso fez um longo
caminho até chegar a Nzinga. Os enviados do Ngola chegam em Matamba
para tratar das negociações com a senhora africana e iniciar a campanha de
reconciliação com a irmã, através de boas propostas para o futuro.

Pelo seu lado, Nzinga, deve ter ponderado a necessidade de unir o Ndongo,
para que, durante um período de paz com o inimigo externo, pudesse fazer
frente à luta com o irmão. Agora que ganharia prestígio se conseguisse
assinar um acordo não muito desvantajoso com os portugueses.

Durante as negociações de paz Ndongo-Portugal em 1622, destaca-se a


figura de Nzinga, a irmã do Ngola, que brilhantemente desempenhou suas
funções diplomáticas. A embaixada chefiada por Nzinga impressionou os
portugueses.

Nos relatos, acompanhados de gravuras e pinturas, dos cronistas da época, o


desempenho de Nzinga marcou a tal ponto os seus contemporâneos que os
acontecimentos estão envoltos em lendas, o que torna difícil discernir fato
de ficção.

Segundo estes relatos Nzinga foi recebida, pela segunda vez, em Luanda
com todo o aparato cerimonial de boas-vindas, salvas de canhões e
perfilhação dos soldados portugueses. A entrada na cidade foi triunfal, com
tapetes até o local onde deveria ficar alojada a soberana. Descrevem os
documentos da época que toda a população veio ver e confirmar a
existência real daquela mulher. Na presença do governador, ao se iniciarem
as discussões, Nzinga constatou a existência de somente uma cadeira, na
qual se sentou o governador, para ela restando uma almofada. Rapidamente,
sentou-se no corpo de uma de suas escravas, para não ficar em nível inferior
ao governador (ver gravura da Rainha Nzinga negociando em Luanda).

Neste acordo reafirma-se a independência dos Mbundu, ao se negar o


pagamento de qualquer tributo, garante-se o apoio dos portugueses na
organização do Ndongo mas não se consegue dos lusos a retirada do forte
Mbaca, no centro do território dos Mbundu. Nzinga permanece em Luanda
por algum tempo. Em 1622 foi batizada, segundo consta (29) e com grande
solenidade e muita assistência, recebeu o nome de Ana de Souza. Mas esse
batismo para Nzinga aparentemente devia ser só uma formalidade, ela
permaneceu com a prática de seus cultos (Cadornega, Ob. cit. p. 117;
Brásio, 1952, v. 7, p. 137; Heintze, 1985, p. 201,Cavazzi, 1965).

O Ngola continuou insistindo com os portugueses na mudança do forte


Mbaca, oferecendo em troca ‘peças’, permitindo a entrada dos padres
jesuítas no Ndongo e autorizando a conversão daqueles que assim o
desejassem.

Mas de nada adiantavam essas ofertas de paz do Ngola porque a atenção do


governo de João Correia de Souza estava voltada para a região norte do
Ndongo. A área situada entre os Ndembu e o Kongo, seria o palco das
atenções dos portugueses: primeiro porque em termos de abastecimento de
escravos estava melhor do que o Ndongo; segundo porque havia o desejo
antigo dos portugueses, agora compartilhado pelos espanhóis, de apoderar-
se das minas de cobre do Kongo, na província de Bembe.

A procura de metais preciosos na África vinha se tornando frustrante para


os portugueses. Depois de não encontrarem prata em Cambambe, os
esforços se canalizaram para o cobre no Kongo. A questão era relevante,
pela grande demanda do cobre na Península Ibérica, para a cunhagem de
moeda. Portanto, esforços militares nesse sentido, na África, eram bem-
vindos para o rei espanhol.

O próximo governador (1623), Pero de Sousa Coelho, empreendeu esforços


para chegar a um acordo de paz com o Ndongo, estabelecendo tratados e se
encarregando de expulsar o Mbangala — Kasanje do Ndongo. Com a
instauração do governo de Frei Simão de Mascaranhas nenhum acordo foi
realizado.

À situação interna do Ndongo mostrava-se tensa. A política do Ngola


Mbandi visava à paz com os portugueses. Por um lado, o Mbangala Kasanje
mantinha-se no Ndongo e com isso o Ngola estava enfraquecido
politicamente para retornar à Kabaça; por outro, restava-lhe o interesse dos
portugueses em normalizar o comércio de escravos na área Mbundu.

O novo governador empenhou-se nas guerras na região sul do Kwanza, rota


de comércio de escravos constantemente atacada pelos Mbangala.
Aparentemente estes povos do sul eram aliados do Ndongo, o que
indiretamente funcionava como um ataque ao próprio Ngola.

Coincidindo com um longo período de seca, o Ndongo viveu momentos de


extrema instabilidade política que resultaram na morte do Ngola,
assassinado em 1624. O governo de Luanda retornou à política de aliança
com os Mbangala (Miller, 1983, v. I, p. 140).

Durante a década de vinte os portugueses conseguiram estabelecer aliança


com uma facção da elite Mbundu pró-portuguesa no Ndongo. Com a morte
do Ngola Mbandi, Nzinga ficou como tutora do sobrinho, facilitando o seu
acesso ao título Ngola. Detentora das insígnias reais, Nzinga, com o apoio
de uma facção da realeza, se apoderou do poder. Este ato de usurpação do
título Ngola foi facilitado não só pela instabilidade reinante no Ndongo
como também pela insatisfação de grupos anti-portugueses com a
aproximação do Ngola com os lusos.
6. NZINGAMBANDI NO PODER

Entre os Mbangala e portugueses


Em 1624 morreu o Ngola Mbandi e subiu ao poder do Ndongo Nzinga
Mbandi que, segundo alguns contemporâneos, teria envenenado o irmão
para substituí-lo. Entre 1624 a 1663 o cenário desta região foi dominado
pela figura desta africana.

Luanda, no ano de 1624, e a Coroa portuguesa dirigiam suas forças contra


os holandeses que, neste ano, declararam-lhe guerra, capturaram barcos de
comerciantes e ocuparam Benguela.

Aliada aos Mbangala, Nzinga Mbandi adotou os costumes destes povos,


acolheu os cativos fugidos dos portugueses e convenceu os chefes africanos
sob controle dos lusitanos a juntarem-se a ela. Os portugueses passaram um
ano sem retomar a ofensiva, pois estavam ocupados em defender a vila de
Luanda da ameaça holandesa.

A política do governador Fernão de Sousa foi de incrementar o comércio de


escravos no Ndongo, incentivando a abertura das ‘feiras’, e exercer o
controle de fato sobre os chefes africanos ‘vassalos da Coroa’. Com estes
objetivos o governador pretendia ter sob o seu domínio o Ndongo,
estabelecendo laços de vassalagens. Para Nzinga era inaceitável esta
proposta: a conciliação não incluía, para ela, o Ndongo como tributário dos
portugueses.
O governador de Luanda, diante da necessidade de cooptar, dentre os
africanos, parceiros para reativar o tráfico, manteve uma atitude
aparentemente conciliatória em relação a Nzinga. Datam desta época as
constantes cartas de Nzinga ao governador, dizendo da necessidade de
retirar o forte Mbaca do seu território. Inteligentemente, Nzinga enviava
cartas aos funcionários portugueses em Luanda, sempre na tentativa de
demonstrar que a causa maior dos conflitos com os lusos era a afronta da
construção do forte no ‘coração da nação Mbundu’(ver cartas em anexo).
Por parte do governador as respostas eram positivas, ou porque tencionava
contemporizar com Nzinga até ter condições de enfrentá-la, ou porque
acreditava efetivamente na possibilidade de reabrir as negociações sobre o
forte Mbaca (Brásio, 1952, v. 8, p. 362).

Em 1624 Nzinga Mbandi escreveu ao governador de Luanda pedindo que


ele cumprisse o que seu antecessor havia prometido: mudar o forte Mbaca e
devolver os sobas que estavam sob seu controle tributário. Lembrou-lhe
ainda como foi injusta a guerra imposta a seu irmão pelo governador
anterior. Prometia se retirar das ilhas do Kwanza, retornar a Kabaça,
permitir a entrada dos padres nos seus domínios para cristianizar a
população, além, é claro, de reabrir as ‘feiras’. O governador em Luanda,
informando ao soberano português sobre a carta de Nzinga, sugeriu-lhe
efetuar a mudança do forte pois, sem isto, era impossível a paz (Brásio,
1952, v. 8, p. 141).

Em 22 de agosto de 1625, o governador Fernão de Sousa refere-se, em


relatório, a uma carta de Dona Ana de Souza, senhora de Angola (assim os
portugueses se referiam a Nzinga), na qual a soberana pedia padres para
residirem no Ndongo, prometendo devolver os escravos fugidos dos
portugueses e refugiados no seu quilombo. O governador explicou que estas
constantes fugas significavam grandes prejuízos para os portugueses, pois
fugiam senzalas inteiras, e, muitas vezes, eram perdidos, de uma só vez de
cem a cento cinquenta escravos (Brásio,1952, v. 7, p. 361-63; Heintze,
1995, p. 16-8).

Passava pelos planos do governador a necessidade de que o Ndongo


voltasse a ser um grande fornecedor de escravos. Mas ponderava sobre a
impossibilidade de acordos com Nzinga e urgia, do seu ponto de vista, a
que se buscasse outra solução. Da parte de Nzinga as fugas constantes de
escravos dos portugueses reforçavam o seu contingente militar. Constituía
assim um exército leal, desprovido de laços de linhagem: alguns sobas
‘vassalos’ da Coroa passavam para o seu lado na expectativa de que ela,
com esta força militar, viesse a fazer frente às tropas lusas.

No mesmo relatório de 1625, o governador reconhecia que o poderoso


exército de Nzinga estava constituído de escravos fugidos e, por isso, ela
não os entregaria aos portugueses. Diante disso, pediu ao rei para ‘castigar a
Dona Ana sem muito dano e substituí-la por um Ngola submisso aos seus
interesses’ (Brásio, 1952, v. 7, p. 392).

No ano de 1626 o governador escreveu ao rei dando notícia de que ‘Dona


Ana continua a colocar a conquista da região em perigo’. Alegou a não-
legitimidade de Nzinga no poder, por ser uma mulher, e o fato de ela
sublevar os sobas submissos à Coroa. Aparentemente a atitude do
governador seria, a partir daí, de reabrir as conversações e, até mesmo,
discutir o forte Mbaca (Brásio, 1952, v. 7, p. 355).

Os objetivos de Fernão de Sousa eram manter a unidade do Ndongo, porém,


substituindo Nzinga por um Ngola vassalo da Coroa. A guerra contra
Nzinga foi declarada ‘justa’ e o governador, na intenção de provocar
militarmente Nzinga, convidou o soba Aire Kiluanji à fortaleza de Mbaca.
Nzinga, ameaçada pelas disputas de fronteira, declarou guerra ao seu
vizinho da fortaleza de Mbaca, Aire Kiluanji.

Os portugueses optaram pela política agressiva, decididos a destruir Nzinga.


A primeira medida neste sentido foi expulsá-la do Ndongo e colocar em seu
lugar um chefe submisso aos seus interesses, Aire Kiluanji. A nova capital
do Ndongo, então, passou a ser Maopungo, uma fortaleza natural no interior
das rochas, na descrição de Cavazzi similar a um palácio calcado nas
pedras. O novo Ngola começou por reabrir as rotas comerciais fechadas
desde o ataque português que arrasou o Ndongo.

Os períodos de seca serviram para aumentar a instabilidade interna do


Ndongo. A esperança dos portugueses era instalar o seu domínio,
finalmente, com a escolha e eleição de um rei favorável aos seus interesses.
Nzinga fugiu para Matamba, onde, dizem as fontes, para selar um acordo
político, casou-se com o Mbangala Cangola, tornando-se sua tambaza
(esposa) e, a partir daí, arregimentando os seus aliados, obteve o apoio de
Kissama e do Kongo. As tropas portuguesas se deslocaram para o litoral
pela necessidade de enfrentar a ameaça holandesa. Fortalecida, Nzinga
retornou, então, às ilhas do Kwanza.

Apesar de todo o apoio dado a Aire Kiluanji para transformá-lo em Ngola,


os portugueses não contornaram o problema da legitimidade do poder, que
não era reconhecida pelos chefes locais. Estes não aceitavam alguém
estranho à linhagem Mbandi e, neste caso, as irmãs do Ngola eram as mais
apropriadas para substituir Nzinga (Documento em Heintze, 1985, p. 201).

Durante a guerra imposta ao Ngola Mbandi, as duas irmãs de Nzinga


tornaram-se prisioneiras e, nesta qualidade, estavam em Luanda. Muitos
cronistas da época afirmam que Nzinga nada fazia para negociar a liberdade
das irmãs porque estas eram suas informantes, o que poderia ser possível se
levarmos em consideração o quanto Nzinga era bem informada sobre o que
acontecia e se decidia em Luanda, como deixam ver suas habilidosas
manobras políticas ao longo da correspondência com o caso de uma carta
de sua irmã, presa em Massangano, informando da movimentação das
tropas portuguesas. Quando prisioneira em Luanda, uma de suas irmãs,
Mocambo, era tratada com certas regalias, e podia se movimentar
livremente pela vila.

Enquanto isto, os administradores de Luanda discutiam a possibilidade de o


Ngola ser uma das irmãs, porque a luta era contra Nzinga; porém os jesuítas
— ordem religiosa extremamente influente no período da penetração lusa
na África — sustentavam a posição de manter Aire Kiluanji (Documento
em Heintz, 1985, p. 201).

Aparentemente Nzinga aceitava que uma de suas irmãs ocupasse o cargo de


Ngola, neste caso, prometia até pagar o tributo de cem ‘peças’ por ano. Não
se sabe o que pretendia ela com isto, ou mesmo se pretendia cumprir tais
promessas. A situação na região do Kwanza era de completa rebelião por
parte dos chefes locais, que não aceitavam o Ngola imposto pelos
portugueses. Em Luanda foi capturado e morto o Manilumbo, que
acreditavam ser um espião de Nzinga.
A partir de 1627 rompeu-se a aliança entre Nzinga e Casa Cangola, por este
não concordar com um confronto direto com os portugueses. Em 1629
Nzinga atacou, através de guerrilha, as ‘feiras’ e as rotas comerciais, que
foram novamente bloqueadas; combateu implacavelmente as tropas de
Kiluanji e, para defendê-lo, o exército luso se deslocou de Luanda no
momento em que chegava ao litoral os holandeses. Refugiadas em uma ilha
do rio Kwanza, as forças de Nzinga sofreram grande derrota.

A debilidade da autoridade de Aire Kiluanji ante os sobas e a sua expressa


submissão aos portugueses fizeram com que o Ngola ficasse sem moral
junto à população para presidir os ritos de fecundidade dos campos e fazer
chover. Durante a guerra, Nzinga pôde contar com os sobas das províncias
de Moseque e de Kissama, além dos sobas da região do Kwanza e das ilhas.
Ao que parece, estes sobas nunca estiveram ou só estiveram
temporariamente — sob o domínio português. Mas este tipo de resistência
se caracterizava mais pela posição contra os portugueses do que por um
apoio incondicional ao domínio de Nzinga. Na verdade, o que permeava
esta resistência era o sentimento anti-português na região (Heintze, 1984, p.
38-9).

Os portugueses não tiveram êxito na captura de Nzinga e os chefes Mbundu


continuaram não reconhecendo o Ngola. Nesta época as tropas lusas e a
‘guerra preta’ (30) foram devastadas pela varíola. O exército de Nzinga
também foi vitimado pela mesma doença, inclusive a própria Nzinga. Mas a
luta prosseguiu e Nzinga reconstitui sua força militar na ilha e preparou
uma rebelião geral, estimulando os outros chefes submetidos aos
portugueses.

A partir de 1629 os portugueses constataram que, para acabar com as


guerras, teriam que capturar Nzinga viva ou morta, pois os efeitos dos
ataques por ela perpetrados repercutiam no fornecimento de escravos para o
comércio. Ao longo do ano de 1628, em razão do ataque dos holandeses e
da morte, mais tarde, do comandante Bento Banha, foi adiado o grande
ataque a Nzinga. Somente no final do ano de 1628 o governador Fernão de
Sousa pôde dar início à campanha que daria fim a Nzinga. O ano de 1629,
devido muito mais a incursões das tropas portuguesas pelo Ndongo do que
a um apoio espontâneo a Nzinga, foi marcado por grande resistência dos
sobas e da população em geral. O governador empreendeu, então, um
assalto à ilha do Kwanza, mas Nzinga escapou para a região do Matamba, à
nordeste do Ndongo. A partir desse momento, Nzinga adotou, além dos
ritos, crenças e costumes dos Mbangala, todas suas formas militares nos
ataques.

O Ndongo sem Mbundu: o despovoamento


Durante o século XVII a população Mbundu manteve acirrada guerra contra
a invasão dos portugueses. A região do Kwanza conseguiu manter um certo
grau de independência neste período. Foi justamente através do rio Kwanza
que se deram as primeiras tentativas de penetração portuguesa nas terras do
interior. A maior vítima desta contínua agressão foi o estado do Ndongo: o
confronto militar e o fluxo do tráfico demoliram as suas bases. No século
XVII os testemunhos portugueses e holandeses referem-se a 10.000
escravos retirados de Angola por ano. Esta perda de população se dava,
especialmente entre os elementos mais jovens e foi extremamente alta.
Desde o início da invasão dos portugueses a procura de escravos ocorria na
área central dos Mbundu. Durante o século XVI um padre jesuíta descreveu
a região dos Mbundu como rica e populosa, passado um século, os
capuchinhos a descrevem como uma região deserta e de população dispersa.

O tráfico trouxe não só um esvaziamento demográfico como também um


processo migratório. Os Mbundu fugiram para o sul, indo para o interior da
região de Benguela. Desde o início do século XVII, os povos com
atividades ligadas aos europeus, em consequência das guerras devastadoras,
começaram a afastar-se, mantendo o comércio mas evitando o exército
português que efetuava verdadeiros massacres entre a população africana.
Durante essas guerras matava-se grande parte da população e transformava-
se os prisioneiros em escravos para o trabalho compulsório nas minas e
plantações. Os povos vizinhos de Luanda foram os primeiros a serem
despojados de suas terras, que eram entregues aos soldados veteranos para
serem cultivadas. Essas manobras militares resultaram em destruição das
terras mais férteis. O objetivo era iniciar a chamada exploração e fixação do
solo, como ocorreu no Brasil, com uma diferença valendo para o continente
em geral: havia nessa região uma grande densidade populacional que
impediu a chamada ocupação do solo. Para ocupar era necessário
desocupar. O tráfico de escravos era muito mais vantajoso do que a prática
agrícola que apresentava várias dificuldades: a constante resistência da
população africana, a dificuldade com o clima, e, por último, a chegada dos
holandeses.

Na região sul de Matamba, desde o início do século XVII alguns grupos de


Mbangala começaram a se estabelecer em volta do vale do Kwanza, o que
lhes proporcionava contatos com as rotas comerciais de Luanda. No
processo de fixação, os Mbangala identificavam-se com os Mbundu e
adotavam suas linhagens mas, como estes, tiveram que se manter mais para
o interior, resguardando sua independência ao não ultrapassar a fronteira
com os portugueses.

O possuidor de um importante título entre os Mbangala era o Kasanje, um


chefe que em 1617 ajudou os portugueses na luta contra o Ndongo. Este
chefe, ao se fixar na região entre os rios Lui e Kwango, tomou-se líder de
um estado poderoso e comercialmente forte, o Kasanje, importante
abastecedor de escravos para os portugueses na África Centro-Oeste.

Os Mbangala em aliança com os portugueses tinham especial apreço pelo


vinho, bebida teoricamente proibida de ser vendida no interior. O comércio
de bebida até a primeira metade do século XVII era dominado pelo vinho
português depois dessa época a cachaça, geribita, introduzida pelos
comerciantes da colônia brasileira, entrou em disputa com o vinho dos
comerciantes portugueses. No final do século XVII a cachaça brasileira será
predominante na troca por escravos em terras angolanas (31).

O crescimento de Matamba e Kasanje não foi logo enfrentado pelos


portugueses, pois eles tiveram que se defender de um terceiro inimigo nesta
primeira metade do século: os holandeses.

Na época, concorriam para um quadro demográfico devastador, além das


guerras e secas, as doenças epidêmicas. Destas, a varíola foi o flagelo da
população; a doença se propagava a ponto de despovoar aldeias inteiras
(Carreira, 1977, p. 47-8). Tanto Cavazzi, Cadornega como Elias Corrêa dão
exemplos constantes de vítimas dessas e de outras doenças. As
consequências no tráfico eram, também, desastrosas, pois somente em alto
mar os tumbeiros detectavam o contágio e, aí, a mortalidade era
especialmente alta.

As doenças, como foi o caso da varíola no ano de 1626 dizimaram parte da


população, fazendo com que muitos fugissem para a região de Matamba.
Por outro lado, a falta de alimentos em razão da seca no ano seguinte
completaria o quadro desolador pelo qual transitavam africanos e europeus.

Uma outra espécie de movimentação da população, a fuga dos escravos dos


seus senhores portugueses para não serem levados para as Américas. No,
período de Nzinga, a fuga direcionava-se para a região do Ndongo primeiro,
e depois para Matamba (Heintze, 1995, p. 16-17); em sua carta de
13/12/1665, Nzinga descreve ao governador o quanto pode devolver os
escravos fugidos. Na verdade o número de população que fugia na busca de
proteção junto a Nzinga chegou a ser bem considerável. Pelo menos
significava um bom custo nas despesas para os portugueses. Calcula-se
aldeias inteiras e que era comum a fuga às centenas. Na documentação,
como relatórios do governador Fernão de Sousa, é sempre recorrente falar
em escravos que eram acolhidos pela Nzinga (no Ndongo ou Matamba), e
este fato servia de argumentação para justificar a guerra contra a rainha
Mbundu. Heintze, em sua análise, atribui além da erosão da autoridade
portuguesa no interior, a fuga dos escravos como contributo para opção pela
guerra contra a Nzinga.

Essas fugas de escravos para junto de Nzinga trazia o dilema também de


serem em sua maioria de homens aptos à guerra, fortalecendo sua
capacidade militar com um exército fiel. Em Matamba, como soberana,
Nzinga continuava a manter-se como um atrativo ponto para a fuga de
escravos das regiões sob relativo controle dos portugueses.

Ser rainha na Matamba


Refugiada em Matamba, Nzinga tornou-se soberana da região, embora
estabelecida em Matamba, ela jamais desistiu da intenção de retomar o
Ndongo. Expulsa pelos portugueses, como já foi visto, adotou os rituais dos
Mbangala e se apoderou de Matamba, de onde atacava com seus quilombos.
Por volta de 1633 dedicou-se a atacar o Ngola Kiluanji. Esta luta não se
dava somente sob a forma de investidas diretas, pois Nzinga instigava a
fuga dos cativos e a rebelião dos sobas do Ngola. Em Matamba, na sua
corte, Nzinga tinha apurado gosto pela vestimenta ocidental, e assim tudo
fazia para obter os tecidos europeus, tapetes e joias. Vestia-se, segundo as
descrições dos europeus, como uma senhora européia. Através de suas
cartas, oferecia sempre presentes ao rei português e pedia tecidos e objetos
de adorno (ver carta em anexo). Nas reuniões com os seus conselheiros,
cumpria o protocolo dos soberanos e dirigia o andamento dos trabalhos,
tomando decisões sobre cada assunto. Os chefes locais pagavam os tributos
e contribuíam no trabalho agrícola. Ainda são os cronistas da época que
afirmavam que o seu braço direito era o guerreiro Ginga Amona.

São comuns, em todos os escritos contemporâneos de Nzinga, descrições


dos ritos de canibalismo, dos quais participava toda a população de
Matamba. Os cronistas europeus dedicaram várias páginas ao assunto.
Outro fato sempre relembrado por esses testemunhos é o que eles chamam
de orgias sexuais comandadas por Nzinga. O modo de vida de Nzinga, com
seus costumes, muito escandalizou os observadores europeus. Outro fato
descrito com grande perplexidade e perpassado por comentários moralistas,
são as histórias dos amantes de Nzinga. Contam que ela tinha um séquito de
homens, escolhidos dentre os sobas, e que ela os obrigava a vestir-se como
mulheres e lhes dava um nome feminino. De um ponto de vista pouco
aprofundado do assunto, diríamos que, aparentemente, se tratava de um
caso de poliandria, forma de matrimônio em que uma mulher pode ter mais
de um marido. Neste caso Nzinga teria assumido a forma usual de
casamento na região, a poligamia. A sua ascensão ao poder, pode ser
encarada como um rompimento com as normas estabelecidas pelas
linhagens tradicionais: os macotas não ‘admitiam uma mulher com o título
Ngola’. Tanto no Ndongo, onde para se impor teve que enfrentar as
linhagens tradicionais, como em Matamba, Nzinga usou de força militar
para chegar ao poder. Importante ressaltar que, embora as informações
sejam poucas, a elite dos macotas estava dividida e Nzinga não contava
com a unanimidade daqueles que decidiam sobre os títulos e posições.

Novos parceiros comerciais: os holandeses


Embora entre 1580 e 1640 Portugal estivesse sob o domínio da Coroa
espanhola, as duas monarquias mantiveram em bases nacionais o controle
administrativo das áreas ultramarinas. Os holandeses, oriundos da região
denominada Países-Baixos, lutavam pela sua independência contra o rei de
Espanha. Os holandeses mantinham um forte intercâmbio comercial com as
regiões atlânticas pertencentes às duas coroas ibéricas. Nada mais natural
que, em situação de guerra, atacassem as fontes de riqueza dos ibéricos. No
Brasil, os flamengos estavam extremamente envolvidos com o setor de
comercialização da região produtora do açúcar. Portanto, compreende-se
acontecimentos como a presença da armada comandada por Piet Heyn,
primeiro na Bahia, depois em Pernambuco e finalmente em Luanda, fonte
de abastecimento de mão-de-obra para a produção açucareira. Como se
dizia na época, sem Angola não havia negros, sem negros não havia açúcar.

No ano de 1641, os holandeses tomaram Luanda: a Coroa, para evitar duas


frentes de luta (no interior, Matamba, e no litoral, os holandeses), decidiu
ser ‘injusta’ a guerra contra Nzinga. A partir de 1639, Kasanje e Matamba
receberam embaixadas portuguesas, com promessas de paz, sem resultados
práticos: a luta de Nzinga prosseguiu. No interior do continente, os maiores
inimigos dos portugueses eram Nzinga e Kasanje.

Desde 1633, navios holandeses controlavam Benguela e, a partir de 1639,


os flamengos detinham o controle do estuário do rio Zaire. Em 1641,
Luanda foi efetivamente ocupada pelos holandeses. Para isto, os holandeses
tiveram o apoio dos Kongo, de Nzinga, de Kissama, do Bengo e de todos os
outros inimigos dos portugueses. Ao se retirarem para Massangano, em
1643, os portugueses passaram a contar somente com a fidelidade do Ngola
Kiluanji e de um chefe, Kandonga.
O manikongo esperava vantagens comerciais com a chegada dos
holandeses; Nzinga, além disto, desejava seu apoio político. O Manikongo
já, há muito, mantinha contatos (correspondência) com os holandeses. Em
12 de maio de 1642 o Manikongo, de nome cristão D. Garcia II, escreveu a
Maurício de Nassau, em Pernambuco, propondo uma aliança contra os
portugueses; pediu também reforços contra os lusos, e informações a
respeito da guerra entre Portugal e Espanha (Brásio, Ob. cit., v. 8, p. 584).
No início do ano de 1643, o manikongo escreveu novamente a Maurício de
Nassau, pedindo a deportação do governador de Luanda para o Brasil, e
demostrando, mais uma vez, o desejo de se inteirar da situação entre
Portugal e Espanha. Desde 1639, quando escreveu ao papa Urbano VII,
interessava-se pela situação dos países ibéricos (Brásio, Ob. cit. v. 9, p. 13-
16).

Devido às ações dos missionários e dos comerciantes, os europeus estavam


muito mais informados sobre a África do que os africanos sobre a Europa, o
que não quer dizer que não houvesse tentativas, por parte dos soberanos
africanos, de se inteirarem da conjuntura européia. Foi o caso do
Manikongo que, além de desejar saber do conflito Portugal-Espanha,
enviou no final de 1643 uma embaixada à Holanda para propor um pacto de
amizade com o Príncipe de Orange. Este fato foi denunciado pelo
embaixador português entre os flamengos, observando este que as
Companhias das Índias estavam muito enfraquecidas para aumentarem o
conflito com o rei português.

Bem antes destes contatos houve vasta correspondência entre o Vaticano e


os Manikongo, estes sempre na tentativa de saírem da esfera de controle dos
lusos. A presença holandesa estimulou os projetos de Nzinga de expulsar os
portugueses para reaver o Ndongo e estabelecer relações comerciais mais
vantajosas, com melhores produtos e em melhores condições.

Enfim, tanto os dirigentes Kongo como Nzinga procuraram melhor parceiro


comercial. Para a execução dos seus planos, Nzinga se transferiu com sua
força militar para perto do rio Dande. Mas as expectativas frustraram-se
logo: os holandeses agiram com bastante tolerância em relação aos
portugueses que, refugiados em Massangano, vendiam os cativos que
conseguiam para os holandeses em troca de alimentos. Reduzidos à posição
de intermediários, os portugueses ficaram na situação de qualquer estado
africano em relação ao comércio de escravos.

Numa segunda fase, os holandeses reconheceram a postura de Nzinga,


favorável à expulsão dos portugueses, como a atitude mais sensata. No ano
de 1645 o governador do Brasil, Teles da Silva, enviou reforço militar para
tomar Luanda aos holandeses. A tentativa resultou numa batalha em que
morreram cento e três soldados portugueses num efetivo de cento e sete! No
ano seguinte a guerra, lenta até então, passou a um combate mais ativo. Os
motivos foram, por um lado, o reforço militar vindo do Brasil, que derrotou
Nzinga, expulsando-a do Dande; por outro, um novo aliado dos
portugueses, o imbagala Kasanje, que se tornara importante no
fornecimento de escravos para o tráfico.

Em 1646/48 as forças holandesas, conjugadas a Nzinga, avançaram na


derrubada dos portugueses. Em 1648, as tropas de Massangano foram
vencidas, mas foi questão de pouco tempo, pois chegou do Brasil Salvador
Correia de Sá e Benevides que, com sua armada, tomou Luanda, obrigando
os holandeses a se renderem e partirem. Os chefes africanos tentaram se
defender mas foram massacrados pelas tropas de Salvador de Sá, que
tinham por objetivo restabelecer o tráfico de escravos para o Brasil. Para
isto, após a expulsão dos holandeses, organizou uma campanha militar
punitiva ao Kongo, forçando-o a um acordo de paz com cláusulas
extremamente duras.

Depois da retomada de Luanda, Salvador de Sá permanece na costa


angolana por algum tempo, para pôr ordem na região, incursionando entre
os chefes africanos e praticando verdadeiras razias. Dessa maneira, garantia
a volta ao Rio de Janeiro com bom carregamento de escravos. Além da
missão de liberar o tráfico era proprietário de grandes plantações de cana-
de-açúcar, tencionava reabrir o tráfico para Buenos Aires.

Desta época em diante, governadores e outros funcionários administrativos


provenientes do Brasil ocuparam importantes cargos em Luanda. Na
verdade, estavam em jogo interesses escravistas nesta região e neste
contexto é que se compreende a chegada de Salvador de Sá. As camadas
proprietárias da economia açucareira no Brasil garantiam através de vários
meios os seus interesses, sobretudo o suprimento de mão-de-obra escrava.
Somente a partir daí pode-se entender a identificação administrativa entre
Rio de Janeiro, Recife e Salvador com Luanda. Explica-se, também, o
desequilíbrio existente entre a colônia brasileira e a metrópole, que chegava
a restringir os interesses lusos instalados em Luanda.

Desde 1643, Salvador Correia de Sá e Benevides fazia sugestões à Coroa


portuguesa para a retomada de Luanda: a amizade com os Yagas e o
combate ao Manikongo. Em 1647, Salvador de Sá recebeu a carta régia de
governador de Angola. O ex-governador do Rio de Janeiro, a partir de
então, inicia um longo período de governadores e altos funcionários que
iam diretamente do Brasil para Luanda. A característica marcante desta
administração foi a violência contra a população, sem contemporização
com os chefes africanos, sendo motivada pelo desejo de ativar o tráfico. O
exemplo máximo de tal política foi o governo de Vidal de Negreiros; esta
situação durou até 1666 com o governador ‘brasileiro’ Tristão da Cunha,
que, gerando uma revolta da população branca contra a administração
‘brasileira’, foi expulso de Luanda. Só em 1668 foi nomeado um novo
governador, Francisco de Távora, que chegou em 1669 diretamente de
Lisboa (Almeida, 1978, p. 326).
7. A INTEGRAÇÃO DE NZINGA
AO TRÁFICO ATLÂNTICO DE
ESCRAVOS

Os dois inimigos mais importantes dos portugueses eram, agora, Kongo e


Matamba. A questão era destruí-los ou torná-los aliados para assegurar o
comércio de escravos, e as negociações duraram anos. Quanto ao Kongo,
desde a metade do século XVI vinha tentando manter contatos com outros
estados europeus que não Portugal. A Coroa lusa tentava impedir esses
contatos e os Bakongo percebiam as restrições que lhes eram impostas, mas
por meio dos estudantes africanos em Lisboa, os Manikongo tinham a
noção da conjuntura européia. A partir do final do século XVI, o estado
Kongo se fechou à cultura e à religião portuguesas, fracionado que estava
pelas intrigas dos comerciantes e padres. No século XVII desenvolveu-se
uma hostilidade crescente em relação aos portugueses, daí se
compreendendo as várias tentativas de aproximação com o Vaticano. O
Kongo enviou embaixada a Roma e buscou apoio militar do rei espanhol, já
na época separado da Coroa portuguesa. Quando os holandeses começaram
a frequentar o litoral angolano, o Kongo aliou-se aos flamengos.

Como vimos, após a saída dos flamengos e o restabelecimento dos


portugueses em Luanda, Salvador Correia de Sá fez uma expedição punitiva
ao Kongo, que resultou na imposição de um acordo de paz com indenização
de mil ‘peças’, a entrega das minas de ouro e o monopólio da pesca das
conchas zimbo.
Foi no governo de Vidal de Negreiros que o Kongo sofreu o seu golpe fatal,
com a guerra que o retirou do cenário político da região. Em 1665 a cabeça
do Manikongo foi levada para Luanda. As cisões entre os Bakongo, sem um
poder central forte, tornaram-se fontes de abastecimento do tráfico de
escravos. Apesar de totalmente enfraquecido, o estado do Kongo
continuaria existindo até o século XIX.

O segundo inimigo a ser enfrentado pelos portugueses era o estado de


Matamba. Nzinga assinara um acordo de paz em 1656, pelo qual renunciava
a todos os direitos na região do Ndongo; não se tornava, porém, tributária
de Portugal. Depois disto, Nzinga se afastou do tráfico de escravos, mas os
portugueses tentaram tornar Matamba parceiro comercial em virtude das
dificuldades em satisfazer a demanda de escravos para o Brasil e colônia
espanholas na América, porque não bastavam os escravos dos Mbundu,
Kongo e Kasanje.

O acordo de paz e amizade assinado por Nzinga com os portugueses


incluíra a libertação de sua irmã, prisioneira em Luanda. Em contrapartida,
Nzinga se comprometia a entregar cento e trinta escravos. A soberana de
Matamba converteu-se ao cristianismo, estabeleceu relações comerciais
com os portugueses e aceitou a presença de missionários em seu território.
As negociações visavam, antes de tudo, a regularizar o tráfico de escravos,
abrindo com isto as rotas comerciais que levavam aos mercados internos.
Por outro lado, os contatos diplomáticos com Nzinga reconciliavam os
portugueses com Matamba, atingindo diretamente o Ngola Kiluanji, que
passou a desconfiar desta aproximação Luanda/Matamba.

No decorrer das negociações, Nzinga se aproximou do chefe Mbangala


Kandonga, antigo aliado dos portugueses. O governo de Luanda, ao
suspeitar do fato, mandou chamar Kandonga. As manobras diplomáticas de
Nzinga, ao tentar uma conspiração juntamente com este chefe africano,
foram desmontadas pelos portugueses. Em Luanda discutia-se, por um lado,
o perigo de uma aliança com Nzinga e, por outro, a necessidade de libertar
as rotas do tráfico no interior.

Impelidas por este último argumento, avançavam as negociações de paz.


Frente a isto, entenderam-se as imposições do tratado: conversão à fé
católica, abdicação dos costumes Mbangala e adoção pela população dos
rituais cristãos.

Nzinga aceitou as condições impostas pelos portugueses, pois não podia


contar com outros chefes africanos. Era impossível reorganizar um grande
exército no Ndongo, devido ao despovoamento da região. Além de tudo,
Nzinga já estava com mais de setenta e cinco anos.

Os exércitos: a guerra preta, Uiake


Mbundu e as tropas potuguesas
Ao escrever para o reitor do Colégio de Luanda em 1643, o Manikongo
referiu-se à ‘desigualdade das armas como causa de ter perdido tudo’
(Brásio, Ob. cit., v. 9, p. 16). A luta era desigual entre as forças militares
européias e africanas.

O exército português tinha, na época, recursos materiais superiores aos


africanos, sem dúvida nenhuma, mas também enfrentou sérios obstáculos
quase intransponíveis. A premissa de que um combate desigual trouxesse
uma vitória fácil para os portugueses não se verificou. Para começar, o
número de soldados portugueses era sempre insuficiente para o controle da
população local. As fortificações contavam com um grupo de, no máximo,
mil europeus, dispersos entre as dezenas de pequenas fortalezas próximas
ao vale do rio Kwanza. Além desses soldados contavam com a ‘guerra
preta’.

A estratégia para aumentar o contingente da ‘guerra preta’ era conquistar as


pequenas chefias Mbundu, forçando os chefes locais a uma aliança com o
pagamento de tributo em escravos. Os europeus dispunham de um exército
profissional, enquanto que os estados africanos não tinham exército
permanente, com exceção dos grupos Yaga/Mbangala. As armas de fogo
dos lusos, os mosquetes, a artilharia e as forças navais, além da utilização
do cavalo como transporte, foram recursos extremamente valiosos nas
guerras,
Ser um militar em Angola no século XVII nunca foi um futuro promissor
para um português. Para os que eram designados para o maior cargo,
governador e Capitão-Mor, aquilo não parecia exatamente uma promoção.
Eles chegavam em uma região onde a instabilidade em todos os níveis era o
comum: política, jurídica, econômica etc. Eram poucas as localidades que
se poderia dizer sob controle português. Ainda por cima, os inimigos
estavam em todas as frentes, incluíam os africanos, em geral, e os
portugueses com seus interesses particulares. Os recursos, em termos de
armamentos e soldados, eram escassos (Heintze, 1981). O comércio de
escravo era a medida para todas as coisas e o que valia eram campanhas
militares com pilhagens para se obter escravos, ou seja riquezas. O exército
era pobre, miserável, o soldo em moeda local, panos africanos.

Apesar disso, a margem de recursos era superior, apoiados no


desenvolvimento técnico europeu, os portugueses enfrentaram fortes
barreiras. A primeira foi a resistência das populações africanas à invasão
estrangeira, aliada ao desconhecimento do meio geográfico e das diferenças
climáticas pelos europeus. A barreira natural para a penetração européia foi
a malária, que impunha grandes baixas às fileiras das tropas lusas. Só no
século XIX, com a descoberta do uso do quinino contra a malária, o temor
dos europeus em relação à África diminui e o continente ficou mais
vulnerável.

Onde Angola era portuguesa no século


XVII?
Até a primeira metade do século as áreas de controle efetivo dos
portugueses eram as poucas praças fortificadas. Em 1620 havia os presídios
Muxima, Massangano, Cambambe e Hango. Já um pouco mais tarde, a
documentação faz referência aos presídios de Benguela e Mbaca. Além dos
presídios existiam as capitanias-mores guarnecidas de tropas e no rio
Kwanza utilizava-se, no serviço especial de defesa da navegação, o capitão-
mor do rio (Ferreira, 1979, p. 31 -2). Estas fortificações tinham que se
defender dos africanos e dos portugueses não identificados com os
interesses da Coroa (que eram uma quantidade expressiva). Contavam para
isso com um número reduzido de soldados, armas e recursos financeiros.

Em termos de limites, a Angola portuguesa estendia-se dos rios Dande, no


norte, Longa, ao sul e forte Mbaca no interior.

As atividades de comércio de escravos, marfim e cera inicialmente


aconteciam nas feitorias e, mais tarde, nas ‘feiras’ em volta dos presídios.
Foi ao longo deste século que se proibiu a ida de homens brancos ao sertão
para fazer o resgate, ficando a cargo dos pombos, mulatos e negros forros.
Mais para a região central de Angola alguns sobas estiveram sob o domínio
português, mas somente na segunda metade do século este controle seria
efetivo (Heintze, 1983, p. 56-7).

A forma da administração portuguesa era o controle indireto da população


africana dominada, mas quando necessário se fazia ingerência nos assuntos
internos dos soldados. Cada chefe subjugado passava, através de uma
cerimônia solene de investidura (unda), a ser um ‘vassalo’ da Coroa. No
princípio cada ‘vassalo’ tinha um amo, a quem pagava o tributo. Mais tarde
este tributo passou a se chamar baculamento e a ‘instituição do amo’ foi
abolida.

O tributo era cobrado juntamente com outras taxas adicionais, criando uma
situação extorsiva que impedia o ‘vassalo’ de efetuar o pagamento. Sempre
que isto acontecia, seguia-se uma situação de rebeliões e campanhas
punitivas dos portugueses e a população fugia por meio da migração.

No entanto, esses recursos arrecadados com o tributo não iam para a Coroa
no seu total. Ficavam, substancialmente, com os encarregados da coleta
(comandantes dos fortes, feitores do rei, provedores etc.) e com os
governadores. Serviam fundamentalmente para o enriquecimento pessoal
dos funcionários e representantes do estado português.

Na verdade, a coleta do tributo tomava a forma de uma ação de pilhagem. O


pagamento era em escravos, especialmente em ‘peças da índia’. A
população reagia a isto: no lugar de ‘peças da índia’ eram entregues
crianças e velhos. Em outra fase a Coroa sentiu a necessidade de ter maior
controle sobre esses rendimentos e revertê-los aos gastos com a própria
empresa lusa em Angola, já que a estimativa da perda para o tesouro real
era altíssima. Foi no governo de Fernão de Sousa que a Coroa fez a sua
primeira tentativa de manter o controle da conta anual dos tributos pagos
pelos cento e nove ‘vassalos’.

Nzinga, ao se estabelecer em Matamba, defrontou-se com o problema da


legitimidade do poder, pela falta de laços com as linhagens locais. Como no
Ndongo onde, em determinada altura de suas contendas com os
portugueses, a paz era a solução para os conflitos internos — nesse caso,
em Matamba, sua estabilidade política passava pela paz com os
portugueses. Por volta de 1656, Matamba era um importante estado
comercial, e os ‘pombeiros’ chegavam em caravanas trazendo tecidos,
aguardente, tabaco, além de outros objetos de luxo, e retornavam
abastecidos de escravos. Um funcionário português ficava em Matamba
para fazer o controle dos preços das mercadorias. Uma missão de padres
capuchinhos, liderados por Cavazzi, converteu Nzinga e seus auxiliares à fé
cristã.

Nzinga Mbandi morreu em 1663, e Matamba tomou-se o maior


intermediário no tráfico de escravos. O superintendente português
controlava o negócio das ‘peças’, enquanto os ‘pombeiros’ não tinham mais
dificuldades de acesso às ‘feitorias’ localizadas em Matamba. Os
capuchinhos receberam autorização para a construção de igrejas naquele
território.

Nzinga era temida por ter adotado os ritos Mbangala e ter sobrevivido à
varíola e às perseguições dos portugueses: a população, por conta disto, lhe
atribuía poderes sobrenaturais.

Nesta época, houve um maior desenvolvimento da escravidão entre os


Mbundu-Mbangala. As funções dos cativos no processo produtivo não
diferia muito das dos outros membros da comunidade.

Em 20 de fevereiro de 1643 o Manikongo, ao escrever a Maurício de


Nassau, em Pernambuco, ofereceu os portos do seu ‘reino’ para os
holandeses fazerem o comércio. Mas, escrevendo em 23 do mesmo mês e
ano para o diretor do Colégio dos Jesuítas em Luanda, queixou-se de que,
no seu país, a moeda corrente eram as pessoas e que isto causava
devastação no Kongo. Indignado, o Superior dos jesuítas fez com que a
carta chegasse ao rei de Portugal e pediu que castigasse o Manikongo.

As transformações advindas dos contatos comerciais, as guerras que


massacraram a população, o aumento de cativos na comunidade em função
da demanda do tráfico, a escravização de pessoas livres, cada vez mais
frequente, foram as sequelas da expansão e da disputa pelo controle do
comércio de escravos.

Cada comunidade Mbundu subjugada ao domínio português significava


uma interferência direta na organização social daqueles povos, como por
exemplo o combate à poligamia, aos cultos e ritos e às regras de sucessão.
Sem renegar o tráfico negreiro, Nzinga não aceitava as regras impostas
pelos lusos. Na defesa de seus interesses, lutou apoiada em seu poderio
militar e em sua habilidade política para forjar pactos que liderava,
provando a sua tenacidade na busca de regras comerciais mais favoráveis.
Os portugueses impuseram um sistema de monopólio do tráfico, com
preços fixos que limitavam bastante os benefícios auferidos pelos chefes
Mbundu neste tipo de comércio. As campanhas militares do início do
século XVII foram extremamente destrutivas: além da perda de efetivos
humanos com o tráfico, o Ndongo perdia a sua autonomia, com a
construção de fortalezas próximas à capital Mbundu. Os movimentos das
guarnições portuguesas em território Mbundu aceleraram a migração da
população em direção ao sul.

Nzinga lutou contra os portugueses para manter a autonomia do Ndongo, e


contra os grupos Mbangala que saqueavam suas rotas comerciais.

O tráfico Atlântico e os Mbundu


Os estados Mbundu no século XVII tiveram vários pontos de semelhança
no que diz respeito ao seu traço básico: a estrutura de parentesco e as
transformações sociais ocorridas a partir do comércio Atlântico. Receberam
da região do litoral para o interior o impacto da mudança e foi justamente
neste litoral angolano que o tráfico se tornou substancial. A mudança
radical do papel destes estados no tráfico foi paralela à mudança no tipo de
escravos e na escravidão interna. O escravo, de elemento acidental, passou
nestas sociedades a elemento comum. O uso do escravo, para fornecê-lo
como item principal do comércio com os europeus, não seria possível sem
que as lideranças africanas reajustassem os mecanismos internos de
escravização e por outro lado, desenvolvessem canais próprios de apoio ao
crescimento comercial. Neste contexto, os Mbundu se colocavam em
posição estratégica para participar do comércio de escravos e se tornar
grandes fornecedores. Além de ter participado do comércio de mercadorias,
humanas, os Mbundu entraram em contato com o mundo Atlântico
significando intercâmbios através de convivências e familiaridades com
este novo universo.

Desde o final do século XVI os portugueses se estabeleceram na região


litorânea angolana e canalizaram seus esforços para tornar aquela região
uma área de seu completo domínio. Levaram mais que um século de
guerras para conseguirem o seu objetivo.

Antes de se estabelecerem em Luanda, os portugueses mantinham comércio


com o reino do Kongo, a maior fonte de escravos da região, mas que no
início do século entrara em declínio devido a conflitos internos, acirrados
com a ingerência dos mercadores portugueses na política congolesa. A
desintegração política do Kongo, na primeira metade do século, culminou
ao consumar-se numa guerra civil, favorecendo a fundação de um novo eixo
comercial sediado em Luanda. Apesar do declínio do Kongo e suas
respectivas mbanzas, centros do fluxo de escravos, algumas delas como o
Soyo e Mbata mantiveram o comércio através de Luanda, nas antigas
mbanzas, só ocasionalmente a aristocracia congolesa esteve interessada na
obtenção de escravos. Através de cobranças de tributos ou falta de
pagamento das taxas, aprisionava os camponeses, que eram levados para o
comércio de exportação. A aristocracia, entretanto, não soube manter o
comércio do antigo Kongo (Cadornega, 1940, v. 1, p. 257; Birmingham,
1966, p. 80; Heintze, 1985, p. 195-7).

Os portugueses transformaram Luanda no porto principal pelo qual saíam


as cargas de escravos para as Américas. Além de comerciar e ‘expandir sua
fé’, os lusos queriam estabelecer um governo no local, garantidos por sua
superioridade militar. O volume do tráfico de escravos que saía de Luanda
justificava todo este esforço de um século de guerras. Eram anualmente
exportados, através de Luanda, de cinco a doze mil escravos. A região da
África Central foi, durante os séculos XVII-XVIII, a maior na exportação
de escravos para as Américas, cabendo a primazia desse comércio à região
litorânea de Loango, Cabinda e Luanda. Calcula-se que, do total da
exportação de escravos pelo Atlântico, de 1600 a 1800, um quarto coube à
África Central. A partir da década de trinta do século seguinte esta região
predominou sozinha neste tráfico (Lovejoy, 1983, p. 52).

Os estados Mbundu estiveram intimamente relacionados com este


crescimento comercial. Os momentos de ascensão ou baixa de alguns destes
estados implicavam em uma série de interesses conjugados da parte das
lideranças africanas em manejar estes acordos com os portugueses. Kasanje,
Ndongo e Matamba, organizados em linhagens matrilineares, eram os
principais pequenos estados profundamente integrados ao tráfico de
escravos. Para manterem o monopólio do fornecimento de escravos aos
europeus, os comerciantes africanos eram os próprios representantes do
estado. Obrigavam as linhagens ao pagamento de taxas, o que era feito na
forma de entrega de escravos. No caso de recusa a punição era o ataque,
sendo os prisioneiros transformados em escravos.

Por esta época, os povos Mbangalas se expandiram por toda a região


Mbundu. Pela sua prática virulenta de guerras eram temidos pelos Mbundu,
estabelecendo alianças com os portugueses para o fornecimento de
escravos. Seus costumes não se baseavam no parentesco e repeliam,
‘aparentemente’, o sistema de parentesco e a reprodução humana, o que
contrastava profundamente com os hábitos Mbundu e Bakongo, centrados
na linhagem.

O Ndongo e a escravidão
No início do século XVII, o Ndongo era um estado independente e
poderoso. Tinha uma relação estreita com o comércio Atlântico de escravos
estabelecido entre a elite Mbundu e os portugueses no litoral. Neste
momento, o Ndongo era o principal fornecedor de escravos para a região de
Luanda.

Na primeira metade do século XVI foram feitos os primeiros contatos com


os portugueses. Numa das primeiras observações, em 1564, a descrição é
bastante interessante, à medida que nos fornece elementos acerca da
organização interna do Ndongo. São notícias de um incêndio que teve lugar
na capital, Angoleme. Neste ano, o rei se mudou para a nova residência, a
futura capital Kabaça (32). Este tipo de informação já permitia perceber o
Ndongo como um estado centralizado. Na segunda viagem de Paulo Dias
de Novais, o padre Garcia Simões, ao escrever ao provincial de Luanda,
dizia que o Ngola submetia por volta de dez sobas, e que o reino estava
dividido em espécie de ducados, onde grandes senhores tinham poder de
morte e vida sobre os seus ‘vassalos’ (33). O mesmo padre, em 1575,
admirava-se da submissão da população ao Ngola e, por outro lado, da
rigidez das leis, pelas quais qualquer transgressão era punida severamente:

“[...] acho que quase toda essa gente é escrava cativa do rei, por serem
alevantadas cada passo, em que concorrem por suas leis em pena de morte,
por adultérios ou roubos, e em tal caso os vendem se os acham em coisa
sua, pelos não matarem, e sobretudo houve um angola Grande que dizem
sujeitou toda esta gente por armas, donde foram eles cativos. E os senhores
têm vilas e lugares que o mesmo rei lhes dá com alçada, e sendo-lhe
credores e alevantados os sujeitam, de maneira que os podem matar ou os
vender. Também dizem ser certo que, se provar que homem compra ou
vende pessoa livre, será destituído e punido como ladrão com pena de
morte, e que também que as mesmas peças se não são cativas, logo
reclamam e se não deixam vender” (34).

Estas primeiras impressões de que os soberanos africanos podiam fazer o


que bem entendessem dos seus súditos ficaram marcadas fortemente entre
os portugueses. Fortalecendo esta visão, afirma Cadornega que “[...] para o
rei todos eram suas peças e reputados por esses até os do seu próprio
sangue” (Cadornega, Ob. cit. v. 1, p. 29).

As fontes escritas da época sugerem uma escalada de poder e, pairando


acima de todos, a autoridade máxima do Ngola. Mas sabemos, através
dessas mesmas fontes, que um grupo formava um segmento privilegiado
que se encarregava de guardar a tradição da linhagem e decidir sobre a
escolha do Ngola. Como vimos em capítulo anterior tanto Cadornega como
Cavazzi destacam os poderosos além do soberano: o Ngolambole, Tendala,
Muenelumba, Muenequizoile com suas respectivas funções. Deste
segmento muito sabiamente se aproveitaram os portugueses, que quando
queriam submeter determinada região davam especial atenção aos macotas
(35) e sobas (36), pois eles compunham a elite do estado e jogavam as
cartas definitivas do poder. Expressa muito bem esta importância um trecho
do relatório de Fernão de Sousa a seus filhos. No ataque a Nzinga, o
governador aconselhava o capitão-mor a aprisioná-la e, se não conseguisse,
que submetesse os sobas e os macotas por serem estes os que elegiam os
reis, dado que era necessário garantir a não-legitimidade de Nzinga como
rainha (Heintze, 1985, p. 254-5).

Neste mesmo sentido, para legitimar o novo rei, o governador dizia ser
necessário transformar os sobas em aliados do comércio, para que tais sobas
abrissem as ‘feiras’, o comércio e passagem. Portanto, esses conselheiros e
os chefes, os soldados, detinham um espaço importante no processo
decisório, a eles cabendo o ato de legitimar o poder. No caso da escolha dos
comandantes auxiliares de guerra, dependia-se das consultas aos macotas.

No entanto, dois outros segmentos aparecem citados sempre como as


camadas mais submissas aos sobas. Aos chefes locais cabia fidelidade ao
Ngola, mas da sua autoridade sobre a população dependia, em última
instância, o poder do soberano. Esta relação de dominação, que está
expressa na descrição das fontes como os ‘vassalos do Ngola’, toma uma
dimensão manifesta na referência constante de certos grupos sociais, como
são os morindas e os quisicos. A população do Ndongo estava constituída,
pelo que transparece, de quisicos e morindas. Constata-se dos textos que os
quisicos seriam os Mbundu que tinham uma situação social próxima ao que
chamamos de escravos. Enquanto que morindas seriam os não-escravos,
pertencentes às comunidades e considerados, também, ‘vassalos do Ngola’
(Cadornega, Ob. cit. p. 252; Cavazzi, v. 2, p. 252).

Os morindas (murindas) que, em oposição aos quisicos, seriam a população


livre, “São vassalos seus livres que vivem com eles em povoações” (37).
Ou ainda: “As mulheres e filhas e vassalos a que chamam filhos de morinda
que são forros” (Id. ib. nota 134). “Morinda, que pela língua da terra são
vassalos” (Id. ib. nota 135). Para Cadornega toda a população estava
submetida ao Ngola, da seguinte maneira:

“Todos os seus vassalos se dividiam em dois gêneros, uns a que chamam


filhos de morinda que eram tidos por vassalos, e os filhos de quissicos por
peças que eram os que tinham nas guerras" (Cadornega, Ob. cit. p. 29).

Em carta ao governador Fernão de Sousa, em 1624, Nzinga pede a


restituição dos seus quisicos e sobas que o governador, Luiz Mendes, lhe
havia tomado (38). Ainda outro documento afirma a autoridade do Ngola:
“quisicos são povoações cujos moradores são escravos do dito rei [...] (Cx.
1, n. 18, 1612, Angola, A.H.U.). O documento citado nos fornece, contudo,
o elemento quisico como escravo do rei. É em torno dessa autoridade que
parece iniciar-se o processo de poder proveniente das linhagens que
legitimava a escravização.

Apesar da sagacidade encontrada em muitos testemunhos dos séculos XVI


e XVII, eles parecem não alcançar a visão hierárquica do poder nestas
sociedades. Associam todo o poder ao Ngola; os quisicos, entretanto,
dependendo da sua origem, não estariam ao inteiro dispor dos sobas e,
estes, do Ngola. O sistema de descendência, definido a partir da ideologia
linhageira, era o eixo em tomo do qual a relação de poder se estruturava.

A respeito da escravidão, Cavazzi distingue três espécie de escravos no


Ndongo e Matamba:
“Os primeiros, chamados ‘escravos de quisicos’, são filhos naturais de
outros escravos e, como tais marcados com o sinal dos seus donos. Se estes
não forem arguidos de algum crime, ficam quase livres e ordinariamente
não são vendidos. Os segundos são os prisioneiros de guerra, que não só
são marcados e vendidos, como também sacrificados para serem comidos.
Os que pertencem à terceira classe chamam-se ‘escravos do fogo’, e vivem
em perpétuo serviço até a morte do comprador ou enquanto a família deste
sobreviver. Poucos destes escravos são vendidos, pois prefere-se doá-los, o
que afinal é a mesma coisa. Os patrões estimam-nos muito, por serem
julgados obedientes e fiéis” (Cavazzi, Ob. cit. p. 161).

Observa-se aqui que Cavazzi induz a uma possível diferenciação entre


escravos. Aqueles que nunca são vendidos, os que podem ser vendidos e os
escravos perpétuos. Estes Mbundu somente se identificariam com uma
posição semelhante à dos escravos no seu aspecto social, no seu status de
inferioridade, porém, sem grandes obstáculos quanto à acumulação de bens.
Como afirma o próprio Cavazzi, era possível mudar de status, pois muitas
vezes “[...] um escravo pode oferecer um presente a seu dono e este em
troca oferecer um cargo de confiança ao seu escravo” (Id. ib. p. 61). Ou
ainda, como assinala Cadornega no caso do Kasanje, ao enfatizar que daí
vinham as melhores ‘peças’ e que, os desse reino, “quando não tem gentio
apanhado em suas guerras, para fazerem emprego ‘(no caso o autor está se
referindo a sua troca por vinho), vendem dos de seu serviço já doméstico só
para beberem” (Cadornega, v. 2, p. 78-80).

Ilustra ainda a diferença entre o escravo que resulta da presa de guerra e


aquele que chama de doméstico, este último podendo ser o nascido em
cativeiro, endividado etc. Os prisioneiros de guerra eram mais utilizados
para a venda, trocas ou sacrifícios nas cerimônias religiosas ou guerreiras.
Eram estranhos à linhagem, menos ‘obedientes e fiéis’. Também é
significativo que, no período do tráfico Atlântico e mesmo antes, em
algumas regiões, o valor do cativo no mercado aumentava à proporção que
se tomava maior a distância do seu local de origem, o que garantia a sua
falta de vínculo com o grupo de parentesco local.
Para o prisioneiro de guerra estava mais recente em sua memória o ato de
prisão. Todavia, para o escravo doméstico, o ato inicial como forma de
violência não existia, embora ambos estivessem sob o arbítrio do seu senhor
e dele dependessem completamente. Numa última instância o seu senhor
poderia decidir vendê-lo, trocá-lo ou matá-lo.

Veremos que os morindas seriam a população livre entre os Mbundu, pois


não podiam ser escravizados. Quando o capitão-mor informa o governador
sobre o cerco a Nzinga, ele parece reafirmar esta situação. Ao informar
sobre a fuga de Nzinga, dá notícia também da captura de cento e cinquenta
‘peças’, dentre as quais alguns se diziam filhos de morinda. Diz o capitão-
mor: “mandei-os a Maçangano com ordem a Pero de Carvalho que
averiguasse se eram filhos de morinda, e que se o fossem os mandassem
entregar a Dumbo Apebo, e que disso me mandem certidão e modo que
faça fé” (39).

Deve-se atentar para o fato de que, se à primeira vista o status de escravos


não era um diferenciador a nível econômico, por outro, a população
morinda também estava envolvida na atividade produtiva, a saber a
agricultura. No período do Ngola Aire, no poder com apoio dos
portugueses, na intenção de provar que se tinha estabelecido na nova capital
Maopungo, ele diz que “tinha mandado descer sua morinda para arimar por
haver muitos anos que o não fazia [...]” (Id. ib. p. 258).

Os escravos inseriam-se aí, aparentemente, sem ter peso econômico na


comunidade. Eles deveriam trabalhar um pouco mais do que as pessoas
livres e lhes prover um excedente, como explica Vansina (Vansina,
L’Afrique Equatoriale et l’Angola. Ob. cit. s/d). Mas a eles eram negados os
direitos e privilégios. O que os diferenciava dos outros membros era a
ausência de parentesco, o que significava poderem ser explorados pelos
vários setores da sociedade.

Mas se nos cuidamos contra qualquer generalização apressada, ainda assim,


isto nos permite aprender que diferenças entre morindas e quisicos só
transparecem quanto a um determinado status na escala social. A
possibilidade de troca de status ocorria; porém, a marca de inferioridade do
status ocupado antes permanecia. A sua inserção na sociedade não
acontecia da mesma maneira que a das pessoas que tinham nascidas livres.
Assim, um dos argumentos sempre encontrados nas fontes, quando os sobas
negavam a legitimidade do novo rei Ngola Aire, era o fato de ser ele filho
de escravo “nascido em casa do Ngola Mbandi e que é peça de sua filha
Dona Graça Quifunge, que por nascer em casa se não pusera marca, pelo
que nenhum soba dos da casa do rei lhes quer obedecer nem o há de fazer”
(40).

A população que vivia no Ndongo também repudiava o novo Ngola, Aire,


que ‘não haveriam de servir a quem é peça como eles’ (Id. ib. p. 346). É
perceptível, também, que o acesso a certos cargos podia ser limitado para os
que tinham a marca de ascendência escrava. A perda de certas posições de
prestígio poderia ser consequência de uma luta política e/ou respaldada pela
marca de descendência inferior.

Numa época posterior esta situação foi vista quando, em Matamba, por
ocasião da morte de Nzinga, na luta por substitui-la, o comandante Ginga
Amona ascende ao poder, mas os seus adversários, apoiados pelos
portugueses, o derrotam, argumentando contra a sua chegada ao topo do
poder ser ele “filho de uma escrava” (Cavazzi, Ob. cit. p. 357-8). Se, por
um lado, a mobilidade social do status de escravo, a chamada assimilação
não parecia ser muito definida, o ato de emancipação nem sempre era muito
claro, e não tornava alguém livre, mas apenas não escravo. O historiador
Miller refere-se ao ‘mito de assimilação na escravidão africana’,
qualificando a situação de dependente como um início de assimilação. Essa
tendência dependia de lugar e época, pois nem sempre foi o caminho típico
da escravidão linhageira (Miller, 1981, p. 55).

Um sistema definido pelo nascimento, a alteração na posição dentro do


grupo social requeria uma assimilação gradual, só ocorrendo ao longo de
algumas gerações.

Já no século XVIII, Corrêa registra a facilidade de se tornar escravo e a


decadência dos costumes, em consequência da demanda do tráfico externo:
“[...] sendo a venda dos escravos objeto que produziu mais conveniência, é
o cativeiro a pena dos mais insignificantes delitos [...]” (Corrêa, 1937, v. 2,
p.94). A utilização das leis sociais para satisfazer a demanda de escravos
para o tráfico é exemplificada pelo autor quando chama a atenção para a
proliferação do uso da lei quituxe, que previa a perda da liberdade como
punição por atos como esbarrar ou pisar no pé de alguém (Id. ib. p. 19).

Mesmo no século XVII a produção interna da categoria dependente, escrava


ou não, estava relacionada aos costumes, como por exemplo no caso dos
endividados. Aponta Cavazzi: “Quando alguém não paga uma dívida, é
feito um refém de sua aldeia e, se não pagam a dívida pelo seu resgate, este
refém é vendido como escravo” (Cavazzi, Ob. cit. p. 157). Isto chama a
atenção para uma análise das variadas formas de servidão. No contexto das
comunidades Mbundu existia uma diferenciação entre aqueles com status
de escravos e o restante dos membros dessa sociedade. Embora os livres,
morinda, estivessem submetidos ao arbítrio dos senhores, das cobranças das
taxas, limites das leis, costumes, débitos e punições, para o escravo a
situação se apresentava de modo diferente: não tinha que pagar taxas, não
era punido pelos costumes e podia alcançar altos postos na comunidade.

As crises constantes — logo após os contatos com os europeus, a


substituição das antigas linhagens, as tensões e conflitos que caracterizaram
as relações Ndongo-portugueses, não nos permitem analisar com mais
profundidade o processo que conduzia à condição de escravo entre os
Mbundu.

O caso de Nzinga foi exemplar: por meio do apoio de um grupo de escravos


tentou apoderar-se do poder e do título de Ngola. O caminho que
possibilitou a ascensão de Nzinga teve início num ato de seu irmão, ao
nomeá-la para negociar a paz com as autoridades portuguesas, em Luanda.
Na sua trajetória, apoderou-se do título de Ngola, tentando legitimar o seu
poder. Para isto necessitava primeiro do apoio dos mais velhos da linhagem,
os macotas, e dos chefes locais. O que a princípio não conseguiu, pois o
grupo em torno do poder se dividiu, para resolver o problema da ausência
de vínculo de linhagem, tentaria tudo: tomou-se poderosa militarmente,
recorreu aos ritos mbagala e, finalmente, converteu-se ao cristianismo. O
grande apoio de Nzinga foi o seu grupo de escravos, que lhe permitiu
recompor sua força várias vezes destruída. Não existindo uma relação direta
entre estes dependentes e a linhagem, seus cativos não surgiram em função
da antiga escravidão de linhagem, mas formavam grupos específicos que
serviam de apoio político aos Ngola.
Em 1625 o governador Fernão de Sousa, preocupado com a fuga dos
escravos dos portugueses, alerta: “A fuga dos escravos para o Ndongo
ameaça grande perigo, por ser gente de guerra com que Dona Ana se faz
poderosa, e este reino se enfraquece, e dá ânimo aos sobas que são inimigos
conquistados sem fé e verdade” (Brásio, Ob. cit. p. 362).

Muitas escravas eram ‘preferidas’ do rei e a descendência delas contribuía


para a constituição de grupos autônomos de escravos, manejados
politicamente pelos soberanos. Eram auxiliares considerados fiéis pelos
reis, sem laços com as linhagens locais (Miller, 1981, p. 58).

A partir dos meados do século XVII, os reinos africanos escravistas


envolvidos com o comércio Atlântico passaram a se localizar em torno das
rotas que levavam a Luanda. Em tal contexto surgiram as poderosas chefias
militares que se dedicavam de forma impetuosa à busca de escravos, isto
acontecendo por meio dos ataques que faziam aos povos mais vulneráveis,
enquanto que nas áreas mais populosas as chefias Mbangala impunham o
seu poder aos agricultores locais.

Incorporando este tipo de liderança guerreira, Nzinga se deslocou com seu


exército para Matamba. Os líderes Mbangala se estabeleceram no Kasanje.
Como em geral acontecia, estes povos constituíam pequenos estados
segmentados e rejeitavam qualquer tipo de poder central. O problema da
legitimidade do poder voltou a ser colocado para as elites governantes que
imigraram da região do Ndongo. Encontraram uma nobreza local
estabelecida na região e comunidades estruturadas em linhagens.

Nzinga buscou a retomada dos antigos acordos com os portugueses como


garantia de apoio político, enquanto os Mbangala recorreram ao apoio
externo e procuram integrar-se à nobreza regional.

Em nossa análise, um dos aspectos sempre enfatizado pelos textos foi a


importância dada à autoridade do Ngola. Como vimos, esse poder estava
limitado pela própria estrutura do estado com base nas comunidades
linhageiras. O controle por parte dos mais velhos cerceava o poder central,
e este mesmo mecanismo explica a legitimação das diferenças sociais. Os
escravos, as mulheres e outros dependentes estavam subordinados aos mais
velhos, membros legítimos das linhagens. Em qualquer situação, essas
categorias de dependentes explicitavam as diferenças sociais. A existência
da escravidão, mesmo nos seus níveis mais elementares, pressupõe a
estratificação (Goody, 1980, p. 26).

Apesar da distinção entre tipos de escravos (prisioneiros de guerra ou


domésticos), esse status encobria em todos os casos uma relação de
dominação. As diferenças entre morindas e quisicos existiam mesmo no
contexto de uma sociedade como o Ndongo, onde os direitos dos livres
eram extremamente restritos. A distinção entre escravos e livres
permanecia, embora fosse difícil estabelecer esses limites. Contudo, a
relativa liberdade nestes casos assegurava que uns tivessem autonomia
sobre o seu destino e outros, não. A marca da violência estava implícita
nesta relação senhor/escravo. Em que pese, porém, sua legitimidade ou não,
foi sempre um status instável (Id. Ib., p. 28-9).

Apesar do uso intensivo do escravo a partir do tráfico Atlântico, a ideologia


linhageira se manteve. Fatores como períodos de seca, oferta de terras
férteis e o vazio demográfico causado pelos homens adultos exportados,
colaboraram para a continuidade do controle das linhagens, especialmente
na região do Ndongo, de solo pobre e grande instabilidade pluviométrica.
Cadornega faz referência a um período de seca que durou quatro anos, na
região de Luanda. Uma das consequências desse fato era uma conjuntura de
guerra, fome, pilhagem, situação aproveitada pelos portugueses para a
captura de escravos. Estes fatos explicariam a migração da população
Mbundu para as zonas menos áridas e sem guerras.

Como foi visto, no século XVII, na região dos Mbundu, o problema


clássico era a legitimidade do poder central frente às sociedades de estados
segmentados. Os mais recentes estudos sobre estados africanos tendem a
demonstrar que o aumento da centralização na maioria desses sistemas
políticos resultou da expansão e não do crescimento interno. Poderia ser a
difusão pacífica ou violenta o único meio. Esta nova perspectiva tem
colaborado para modificar a visão da dicotomia entre povos com e sem
estado, permitindo conceber a idéia de uma centralização gradativa. O
núcleo do sistema de estados poderia ser encontrado entre as linhagens, nos
grupos de idade na associação de cultos etc.
No seio dos estados segmentados, a partir do comércio externo pelo
Atlântico, a escravidão passou a ser um componente para o crescimento
total da sociedade. 
CONCLUSÃO

A escravidão no Ndongo, até a chegada dos portugueses, ou, pelo menos,


antes daquela região se transformar no principal fornecedor de escravos,
mantinha-se como uma instituição não hegemônica na organização social
dos Mbundu. Os pequenos estados como o Ndongo, anteriormente à
abertura do comércio Atlântico, participavam da compra e venda de
escravos. A escravidão era uma instituição importante dentro da estrutura
de parentesco e linhagem, não sendo porém, essencial no processo
produtivo. Podemos perceber que era, por isto mesmo, tênue o limite que
separava um livre de um escravo. O status de escravo não era nitidamente
definido, mas em qualquer situação este status significava a perda de
direitos e privilégios que, com o tempo, poderiam vir a ser readquiridos.

A meados do século XVII, o uso comercial, de forma intensiva do escravo e


a luta pelo controle do comércio alteraram profundamente esta situação.

Para finalizar, poderíamos dizer que escravidão é sempre uma relação social
específica, seja o escravo ‘doméstico’ ou ‘produtivo’. O historiador Finley a
define como a mais servil da séries das relações de dependência. De
qualquer maneira, é sempre menos confusa esta conceituação se
conhecermos o contexto.

No caso africano, o termo escravo ou escravidão encobre uma série de


imposição de julgamentos de valores ocidentais, desconsiderando as
peculiaridades africanas. Entretanto, em qualquer tentativa de traçar um
quadro comparativo do escravo nos dois lados do Atlântico, justifica-se a
perspectiva de uma relação de caráter universal da exploração escravista.
A pressão do tráfico, por um lado, e as necessidades dos governantes
africanos, por outro, explicariam as mudanças dos mecanismos de produção
e circulação do escravo que por esta época — como se viu — extrapolavam
a capacidade interna dessas comunidades. A sua utilidade na percepção dos
dirigentes africanos assentava-se na idéia de que — exceção para Nzinga na
constituição de um exército fiel de cativos — era fundamental para sua
sobrevivência política se manterem integrados ao tráfico.

Em primeiro lugar é impossível pensar que o processo de abertura do


comércio Atlântico gerou, por si só, total desequilíbrio entre essas
comunidades; pelo contrário, a medida que crescia a demanda por escravos
no litoral, mais se comprometiam os segmentos dominantes africanos com o
comércio de escravos.

Temos ainda a considerar que o escravo desempenhava, na sociedade pré-


colonial Mbundu, papel importante, uma vez que a própria estrutura
linhageira propiciava o surgimento dos dependentes — aqueles que não
tinham laços de parentesco na comunidade. Esta condição de estrangeiro,
basicamente garantia por parte dos mais velhos o controle de tais
indivíduos, o que significava poder e prestígio.

A documentação leva, contudo, à constatação da existência dos quisicos e


morindas, mas não permite situar a relação concreta destes grupos com
outros segmentos; apenas, de maneira muito vaga, percebe-se que são todos
‘vassalos do rei’. Os extremos na escala social são facilmente identificados,
configurando-se os grupos dos macotas e sobas no topo e os morindas e
quissicos no plano inferior.

A população Mbundu não reagiu de maneira uniforme aos contatos com os


portugueses. Enquanto algumas áreas estiveram sob o controle luso durante
quase toda a primeira metade do século, outras conseguiram fugir ao
domínio português até a segunda metade. Kissama, por exemplo, foi um
caso de área conhecida rebelde à penetração européia por toda a primeira
metade do século XVII. Entretanto, em alguns casos, a aliança com o
governo luso se estabeleceu desde o início.

O pensamento de que os soberanos aceitavam qualquer coisa, como


quinquilharias, em troca de escravos, é um mito que deve ser repensado,
considerando-se que nem sempre era bem assim. Dependendo da sua força
política, os governantes africanos exigiam artigos como joias, objetos
esculpidos em ferro, sedas, artesanatos raros, o que para os comerciantes
europeus tinha um custo altíssimo.

Não foi nossa intenção fazer um estudo exaustivo da trajetória política da


Nzinga Mbandi que, acreditamos, está ainda por ser feito, mais sim
exemplificar num determinado momento da existência do Ndongo, os
interesses que presidiram à instituição da escravidão, e acentuar os
mecanismos utilizados, na época, no tráfico de escravos. 
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ANEXOS

CARTAS DE NZINGA MBANDI


“Senhor. Receby a carta de V. Sa., aqual me entregou o Capitão Frois
Peixoto, embaixador de V. Sa., e por ela vejo gosar V. Sa. saude, aqual
nosso Senhor aumente por largos anos, com muita paz e quietação, como
para mim desejo. Eu tenho saude para servir a V. Sa. com larga vontade,
que o tempo amostrará. O dito embaixador chegou tão fraco e maltratado do
caminho, por razão das aguas, o qual mandey logo aposentar e descansar;
dahi a três dias, que foi hu sabado, cinco de dezembro, me deu a embaixada
de V. Sa. em nome de sua Majestade, que Deos guarde, com tanta
autoridade, e propôz com tanto valor, que logo vy me fala verdade em tudo
o que diz, porque estou tão queixosa dos governadores passados, que
sempre me prometerão entregarem minha Irmãa, pela qual tenho dado
enfinitas peças e feito milhares de banzos e nunca ma entregaram mas antes
movião logo guerras, com que me inquietarão e fizerão sempre andar feita
jaga, usando tiranias, como he não deixar crear creanças, por serestilo de
quilombo, e outras cerimônias e todas deixarei e dou a V. Sa. minha
palavra, tanto que tiver religiosos, que me deem bom exemplo a meus
grandes, para que os ensinem a viver na Santa Fé Catholica, assim que
espero que V. Sa. me faça merce mandar o padre Frei Serafim e o padre Frei
João do Carmo, por ser habito, que desejo ver e também me dizem ser bom
pregador, e saber a lingua de Dongo. Com estes dois religiosos pode V. Sa.
fazer-me merce mandar-me minha Irmãa, que com eles vem bem
acompanhada, e autorizada e quando V. Sa. fôr servido que venha mais
alguma pessoa, seja hum soldado, que faz foquetes para com eles festejar
minha Irmãa, querendo Deos também vir um soldado para que sirva de são
Cristão aos Reverendos padres; e tanto que tiver noticia que estaminha
Irmãa na Embaça, partirá desta minha corte o Capitão Manuel Frois Peixoto
a buscala, que a ele compete, pois teve o trabalho de reduzir meus grandes
que tão desconfiados estão de enganos passados, e não pareça a V. Sa. que
merce o capitão Manuel Frois Peixoto pouco louvor, pois chegou a acabar
com eles e comigo, ser esta embaixada verdadeira e não como as passadas,
que tenho dito; e da quem estou mais quixosa he do Governador Salvador
Correia, a qual dey as peças que V. Sa. já saberá e fiz duzentos banzos, por
ver me mandava pessoa, como foi o Capitão Môr Ruy Pegado por
embaixador em nome de Sua Majestade, que Deos guarde, que me
entregarião minha Irmãa e haveria muita paz, entendy que não podia alterar
a palavra Real e por estes enganos e outros ando pelos matos, fora de
minhas terras, sem tem quem informe a Sua Majestade, que Deos guarde,
de meu pouco sossego tendo eu tantos desejos de estar em paz com o dito
senhor e seus governadores; mas todos os os passados virão tratar do seu
proveito, e não do serviço real, de que estão informada, que tanto lhes
encomenda Sua Majestade pois tanto lhe importa este reino a seus reais
direitos e mais importava estando eu sossegada em paz fazendo feiras mais
perto para pombeiros lhes não custar tanto trabalho trazer as fazendas tão
longe e eu gosa-las mais baratas; alfim, espero em Deos que só V. Sa. ha-se
louvar com Sua Majestade, que Deos guarde, de me deixar em paz e
sossegada, e a Quiçama conquistada cousa que nenhu governador fez nem
mereceu tal gloria.

Eu me ofereço para ajudar a V. Sa. na Conquista dela, quando não queria


dar obdiencia, mandarei hum dos meus grandes com mór poder que ser
possa, quando V. Sa. levar gosto. Isto farey em sinal de obdiencia que dou a
Sua Majestade, que Deos guarde, e também dou a minha palavra que, tanto
que chegarem os reverendos padres com minha Irmãa, tratarey logo de
deixar parir e criar as mulheres seus filhos, cousa que até agora não
consenty por ser estilo de quilombo, que anda em campo, o que não haverá,
havendo paz firme e perpetua, e em poucos annos se tornarão minhas terras
a povoar como dantes, por que ate agora me não sirvo senão com gente de
outras provincias e nações que tenho conquistado, e me obdecem como sua
senhora natural com muito amor e outros por temor. Não podia V. Sa.
mandar-me embaixador que mais me alegrasse, que o Capitão Manuel Frois
Peixoto, por saber bem declarar- me tudo pela lingua deste meu Reyno.
Todos meus grandes estão contentes, que dizem que só ele me traz
verdadeira, e fala verdade e tudo o que V. Sa. lhe ordena por seu Regimento
e já me considero com a prenda que desejo e com muita paz e quietação
esses dias que viver que já sou velha e não quero deixar minhas terras,
senão a minha Irmãa, não a meus escravos, que haverá muita ruina enão
saberão obedecer a Sua Majestade, que Deos Grande, e como minha Irmãa
o saberá fazer pois ha tantos annos que assiste com os brancos e he tão coa
christã como me dizem. E não se leve V. Sa. de ditos de moradores que
sempre tratarão de me enemistarem com os governadores passados. E V. Sa.
como parente do senhor governador João Correia de Souza, meu Padrinho
que Deos tem em gloria, me ha-de fazer merce alcançar esta pás, por carta
firmada da mão de Sua Majestade para mais firmeza minha e de meus
grandes para que sosseguem e tratem de cultivar as terras, como dantes. O
Capitão Manuel Frois Peixoto me pediu da parte de Sua Majestade o jaga
Cabuco, por tão bom estilo, que lho não pude negar, posto que tenha dito de
Cabuco muita queixa por me haver destruído minhas terras, razão fora, que
andasse em meu serviço alguns annos para me satisfazer parte de tanta
perda, como meu deus: Contudo são tão grandes os desejos que tenho de
ver mina irmãa, que tanto que ela chegar a esta minha Corte, darei logo
licença ao dito Jaga para que se vá com o Capitão Frois Peixoto quando
partir e que logo esteja as suas ordens. Isto pode V. Sa. ter por certo, como o
socorro que digo darey par a Quissama, se a V. Sa. lhe for necessário e tudo
o mais que me for mandado, amigos, damigos, enemigos denemigos. No
que toca as duzentas peças que V. Sa. me pede pelo resgate da minha irmãa
Dona Barbara he um preço muito rigoroso, havendo eu dado as peças que
V. Sa. já deve saber aos governadores passados e embaixadores, fora mimos
a secretários e creados de sua casa, e a muitos moradores, que ainda hoje
sinto enganos. O queme atrevo a dar a V. Sa., serão cento e trinta peças,
ocento mandarey tanto que estiver minha Irmãa na Embaça e par isso ha-de
ficar em refens o embaixador até que a dita minha Irmãa entre nesta minha
corte, que veja eu a verdade, porque me não suceda o que me tem sucedido
e usarão comigo os governadores passados, e não estranhe V. Sa. querer-me
segurar, he escusar desgostos, suposto que entende ser esta embaixada muio
verdadeira mas meus grandes estão duvidosos, por lhes lembrar o passado.
V. Sa. perdoe ser esta carta tão larga, porque emporta assim. O embaixador
me entregou omimo que V. Sa. me enviou, pelo qual lhe rendo as graças;
estimey muito o copo de madre pérola; V. Sa, senão canse comigo, porque
tudo me sobra nesta minha corte, só de minha Irmãa careço, e com a sua
vinda hei-de servir a V. Sa. muito a seu gosto, como V. Sa. Verá este
portador vay pela posta dar a V. Sa. aviso do que assentey com o
embaixador, e por hir depressa, leva doze peças, não mais, que são para
doces de V. Sa. Matamba minha Corte treze de Dezembro de mil seiscentos
e cincoeta e cinco annos. R. D. Anna de Sousa.”

(Antônio de Oliveira Cadornega. História Geral das Guerras Angolanas.


Lisboa, Agência Geral das Colônias, 1940, v. 2, p. 500-503).

“Faço esta a V. Sa. de filha de Pay, mando este meu criado de minha parte,
que já avisei mais largo na carta que levão os portadores, que saberá V. Sa.
que sou sua filha, por hora não tenho que mandar a V. Sa. como samos
parentes espirituais possa também ter mimo de parte do parentesco, não lhe
por falta de vontade, senão he por não ter com que na mão possa servir; o
nosso Cabuco entregará a V. Sa. huma peça muito boa, que he sinal de
amor; passo a V. Sa. me mande hum brinco muito bom, e mais não tenho
em ponda, se V. Sa. tiver me mande. Não sou largo. Nosso S. Gde. a V. Sa.
hoje doze de janeiro de mil e seis centos cincoenta e sete annos. Rainha
Dona Anna.”

(Antônio de Oliveira Cadornega. História Geral das Guerras Angolanas.


Lisboa Agência Geral das Colônias, 1940, v.2, p. 507).

OS REIS DO NDONGO

Segundo Harveaux, G. L. 

La Tradition Historique des Bapendi Orientaux. Bruxelas, 1954. 


Ngola Ngobe

Ngola Irene Kiluanji (1557?)

Ngola Ndambi Ireni Ndgenge

Ngola Kiluanji Kia Samba

Ngola Nzinga in Bandi

Nzinga Pande (ou rainha Nzinga) (1624-63)

Segundo Cavazzi, G.

Relação Histórica, p. 294-96.

Ngola Kiluanji (Mussuri)

Ndambe Ngola 

Ngola Kiluanji 

Nzinga Ngola 

Kilombo Kia Kasenda 

Mbandi Ngola Kiluanji 

Ngola Mbandi (1617)

Nzinga Mbandi (rainha Nzinga) (1623)


NOTAS DE RODAPÉ

1. A HISTORIOGRAFIA E O
UNIVERSO NEGRO-AFRICANO
(1) A questão ortográfica de como escrever os nomes africanos foi e tem
sido objeto de imensas discussões. Dentro dessas polêmicas há um
entendimento sobre a versão fonética mais próxima a pronúncia. Procurei
uma aproximação do que tem sido escrito pelos historiadores africanistas da
região.

(2) A UNESCO publicou uma coletânea onde se discute a questão do poder


em África: “Le concept de povoir dans l'Afrique Tradictionnelle: Paire
culturelle yoruba”. I. A. Akinogbin; Le pouvoir en Afrique de Pathé
Diagne. Cf. referência completa na Bibliografia Geral.

(3)  Em seu artigo “Algumas formas de hegemonia Africana nas Relações


com os Europeus”, Alfredo Margarido disseca essa questão, de o lugar do
historiador quando conta a História.

(4) Ver por exemplo a coletana organizada por Claude Meillassoux


l'Esclavage en Afrique Précoloniale. Diz-etudes. Paris, François Maspero,
1975. Esta obra polemiza o assunto com algumas propostas do termo cativo
e cativeiro em relação ao período pré-colonial.

(5)  Um bom exemplo é a obra de Jean Suret-Canale. As Sociedades


Tradicionais na África Tropical e o Conceito de Modo de Produção
Asiático. Em C.R.M. O Modo de Produção Asiático. Lisboa, Searra Nova,
1974, p. 111-146 (Universidade Livre).

(6)  Ainda na década de oitenta as perspectivas feministas apontam no


trabalho de Meillassoux um caráter muito esquemático, onde se torna difícil
situações concretas de atuação das mulheres, por exemplo, ver Margaret
Strobel em African Women, Signs, 1988, n.8, p. 109-131; Zenebeworke
Tadesseem Breaking the silence and Broadening the Frontiers of History:
recent studies on African Women, Thor, 1988; Ayesha Meitie Iman em The
Presentation of African in Historical Writing. Retrieving Womens History,
Ber/Unesco, 1991.

(7) Esse tipo de analise, publicado em português, pode ser visto na síntese


feita por Patrick Manning no artigo Escravidão e Mudança Social, Novos
Estudos CEBRAP, n. 21, julho de 1988.

(8)  Resultado desses debates, Women and in África, organizado por C. C.


Robertson e M.A. Klein. Neste livro se analisa o impacto da escravidão
para as mulheres e o seu papel no sistema social com o controle da
reprodução e produção. Para isto foi preciso fazer a conexão: escravidão,
classe, estado e mulheres abrindo um campo bem mais abrangente.

2. POVOS E SOCIEDADES DA REGIÃO


DA ÁFRICA CENTRAL OCIDENTAL
(9) Antigas idéias de difusão da agricultura a partir de um berço no
crescente fértil do Oriente Médio, tiveram que ser modificadas, pois
botânicos afirmaram que muitos dos grãos alimentícios africanos evoluíram
a partir de plantas indígenas” ( J.R. Harlan et al, Origins of African Plant
domestication, 1976). Citado por Birmingham em History in África. 1994,
p. 33.

(10) A domesticação das espécies vegetais selvagens africanas forneceram a


base para o cultivo de grãos como o sorgo, ingrediente da cerveja, papa de
aveia e do pão (T. Lewicki West African Food in the Midle Ages, 1974;
Marvin Miracle, Maize in Tropical África, 1966). Em Birmingham, Ob. cit,
1994, p. 33-34.

(11) Importa acentuar que outras instituições sem parentesco, comoveremos


mais adiante, existiram na região.

3.  ANGOLA: ASPECTOS DO MUNDO


NATURAL
(12) Sobre a temática dos rios e do mar para os povos africanos da região
angolana ver as seguintes obras: John Thornton African and Africans in
Making of the Atlantic World -1400-1680, principalmente no capítulo 1;
Rosa Cruz e Silva, “Contatos e relações dos africanos com o mar à chegada
dos portugueses: Congo e Ndongo”, II RIHA.

(13) Conferir os dados em Grande Enciclopédia Portuguesa Brasileira.


Angola I. Geografia, p. 612-18;

4. OS MBUNDU
(14) Mas existe toda uma discussão sobre a unidade do Kongo que não seria
assim tão centralizado como os cronistas de época descreveram. Por não ser
de nosso interesse imediato não entramos nesses debates. Acho importante
frisar que para a história do Kongo a documentação é muito mais numerosa
do que para a região dos Mbundu. A bibliografia, portanto, é bem extensa,
principalmente, em inglês e francês.

(15) Mbemba-a-Nzinga, segundo soberano congolês batizado, recebeu os


ensinamentos da língua portuguesa e da religião católica dos padres que
chegaram com Rui de Souza em 1495.
(16) A respeito desse provável monopólio sobre a ilha ver os argumentos de
Virgílio Coelho que tende a enfatizar a pouca importância dada pela
população de ilhéus aos búzios a não ser para utilizar como alimentos os
moluscos e a falta de informações, pelas fontes, de como se dava essa
redistribuição dos búzios.

(17) Claro está que tento citar alguns, os mais atuais: D.Birmingham,
Joseph Miller, Virgílio Coelho, Beatrix Heintze, Adriano Parreira.

(18) A historiadora Rosa Cruz e Silva no seu artigo formula uma provável
diferença entre mercados e feiras na época do Ndongo (1997, p. 410).

(19) A respeito da dinastia Ngola no Ndongo a documentação apresenta-se


confusa e escassa em termos de informação (Ver listas em Anexo).

(20) Entendemos o termo dote das seguintes maneiras: “Termo que designa


realidades geralmente muito diferentes das que evoca nas civilizações
ocidentais. [...] trata-se de prestações, em bens ou serviços, fornecidos por
um pretendente, como o apoio dos seus, em reconhecimento do dom da
mulher que é concedida em casamento” (Dicionário Geral das Ciências
Humanas. Lisboa, Ed. 70, 1984, p. 280); “[...] conjunto de bens materiais
e/ou de prestações e exigidas convencionalmente da comunidade que recebe
a mulher pela comunidade que a cede. O dote distingue-se dos arras,
objetos pessoais que a noiva leva para junto do marido e que continuam na
sua posse, e presentes atribuídos a título pessoal por certos parentes”.
(Claude Meillassoux Mulheres, Celeiros e Capitais. Porto, Afrontamento,
1977, p. 105).

(21)  Algumas autoras tem avançado nos estudos do sentido do dote e da


poligamia nas sociedades africanas. Segundo algumas delas, a difusão da
poligamia que se viu em maior expansão no século dezoito no litoral
angolano, explica o acentuado papel da maternidade na vida das africanas
até hoje.

(22) Tido como fator estratégico, já que cada uma, na sua hierarquia, residia
em lugares diferentes.
(23) Uma discussão sobre esses temas pode ser encontrado em: J. Farpart e
K. Staudt (orgs) Woman and lhe Stalen AlVica. Londres, Lynnen Riennen,
1989 (Capítulo I); Maria Rosa Cutrusfelli Woman of Alrica. Rootsol
Oppression. Londres, Zed Book, 1983 (Parte 2); Gwendppyn Mikell
“African Feminism: Toward anew politiesof representation” Feminist
Studies, 21, (summer 1995), p.405-425; M. Maynes, A. VValtner, B. Soland
e U. Strasser (Orgs) Gendcr, Kinship, Power. New York, Routledge, 1996.

(24)  Ver sobre essa questão: Achola O. Pala e Ly Madina La Mujer


Africana en la Sociedad Precolonial. Barcelona, Serbal/UNESCO, 1982, p.
83.

5.  AFRICANOS E PORTUCUESES NO


COMÉRCIO E NA ESCRAVIDÃO
(25) Ver em Antônio Luís Ferronho em “Quando o sagrado se manifesta —
as brancas imagens”. O Confronto do Olhar. O Encontro dos Povos na
época das Navegações Portuguesas. Caminho, Lisboa, 1990. Analisa as
possíveis formas de recepção dos africanos no litoral Ocidental da África e
na região do Congo.

(26) Uma discussão sobre o termo e a situação de capital pode ser vista no


texto do pesquisador angolano Virgílio Coelho “Em busca de Kábàsá: uma
tentativa de explicação da estrutura político-administrativa do ‘reino de
ndongo’”. Em Atas do Seminário Encontro de Povos e Culturas em Angola,
CNCDP, 1997.

(27) Carta do padre Francisco Gouveia para o padre Diogo Mião, 1564. In:
Relação de Angola. Biblioteca Nacional de Lisboa, p. 41-44.

(28)  Segundo Heintze (1995, p. 7), para o século XVII as exportações de


Luanda chegavam a cifra de 10.000 a 12.000 escravos por ano e poucas
vezes foram menos do que 5.000.
(29)  Cadornega diz que sabia do fato pelos mercadores que viviam nesta
época em Luanda.

6. NZINGAMBANDI NO PODER
(30)  Exército sob o controle dos portugueses constituído de africanos
(Cadornega). A maior parte das tropas portuguesas na região era de guerra
preta.

(31) Para este assunto ver os trabalhos de José Curto que cobre o período
aqui estudado e vai até final do período do tráfico, cf. referência na
bibliografia.

7.  A INTEGRAÇÃO DE NZINGA AO


TRÁFICO ATLÂNTICO DE ESCRAVOS
(32) Carta do Padre Francisco Gouveia para o Padre Diogo Mião em 1564.
Relação de Angola. Biblioteca Nacional de Lisboa, p. 41-44.

(33) Ver Coleção de Documentos Luciano Cordeiro, B.N.L., p. 56.

(34)  Carta do padre Garcia Simões para o padre Luiz Perpinhão, 1576,
Relação de Angola. B.N.L.

(35) “gente principal de uma terra sob o poder de um soba”. Homens mais
velhos numa linhagem, conselheiros do soba, entre os mbundu eram os
conselheiros do ngola do Ndongo. Cadornega, tomo 3.

(36) (sova) - régulo, regedor, chefe local. (Domingues Baião O Kimbundo


Sem Mestre); “Título político dos mbundu, que já se encontra nos
documentos mais antigos sobre Angola. Os portugueses utilizam o termo
como significado de chefe de tribo. É erro pelo menos para os séculos XVI/
XVII, a definição que aparece, de vez em quanto, na literatura científica e
que afirma que sobas eram apenas os chefes sob o domínio português
(vassalos), ou os que colaboraram com os portugueses”. Beatriz Heintze,
1985, p. 127.

(37) Documento 20, folha 255, v, s/d, B.A.L., nota 133. Fontes para história
de Angola do Século XVII. Ob.cit. p. 123.

(38) Relatório de Fernão de Sousa. Antônio Brásio Monumenta Missionária


Africana. Ob. cit. v. 2, p. 256

(39) Relatório de Fernão de Sousa. Fontes para História de Angola. Ob. cit.
p. 252.

(40) A ilegitimidade do novo rei do Ndongo, Angola Aire. doc. Fontes para
História de Angola. Ob. cit. p.209 

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