A história do continente africano foi sempre construída e repassada através de
um olhar eurocêntrico. A obra de Alberto da Costa e Silva “A África explicada aos meus filhos” através de um modelo, organização e linguagem próprias, facilita o entendimento dos acontecimentos, das culturas, das geografias e da multiplicidade étnica de um Continente complexo, desconstruindo estereótipos e muitas ideias deturpadas sobre a África. Por discutir questões importantes, defendendo a historicidade e reconhecendo o valor e complexidade dos povos africanos, se tornou um livro referencial para uma compreensão mais ampla e menos superficial da história africana. Alberto da Costa e Silva é poeta, historiador e membro da Academia Brasileira de Letras. Nascido em São Paulo em 1931, se tornou doutor pela Universidade Obafemi Awolowo (ex-Universidade de Ifé, Nigéria, 1986) e pela Universidade Federal Fluminense (2009), e já escreveu inúmeros títulos, tais como A manilha e o libambo (2002), Um rio chamado Atlântico (2003), Francisco Félix de Souza, mercador de escravos (2004), Castro Alves, um poeta sempre jovem (2006), entre outros, sem contar a produção aqui analisada, destinada ao público infanto-juvenil. Esta é estruturada em dez capítulos enumerados em primeira, segunda, até decima conversa. A linguagem de fácil entendimento, feita em diálogos, em forma de entrevista com perguntas e respostas, facilita a leitura e torna seu conteúdo mais acessível, didático e claro aos diferentes públicos. Na obra é possível perceber que são tratados temas, como geografia, cultura, economia, entre outros, buscando desconstruir certos estereótipos sobre sua vegetação, sobre a compreensão do espaço, dos rios e animais que habitam o Continente, dos ofícios praticados, e sobre religião, sempre acompanhando uma detalhada descrição dos costumes de diversos povos. O livro se inicia com uma reflexão sobre a África atual, depois começa a contar sobre os reinos antigos, as organizações políticas nos primeiros séculos, e depois passa para as relações dos europeus e africanos nos XV-XVIII. Os acontecimentos e informações são levantados não obedecendo a uma ordem cronológica linear formal, mas, com alguns retornos e adiantamentos, no panorama geral, é notável a passagem do tempo até chegar, nos últimos capítulos, no imperialismo do XIX, e por fim, a África na atualidade. A proposta do livro se relaciona a difusão de um conteúdo de fácil entendimento, para leitores leigos, que proporcione uma visão mais ampla do Continente Africano, desmontando as barreiras construídas pela visão eurocêntrica e sensos comuns que formaram a imagem que se tem e é reproduzida sobre a África. Discorrer sobre sua história, a fim de, realmente como sugere o título da Obra, “explicar” essa porção continental de forma que seja possível um conhecimento menos deturpado e mais profundo do território e dos povos que ali habitam. Nas primeiras conversas fica evidente a grande diversidade geográfica e os contrastes apresentados pelo continente, o que desmonta uma suposta unidade ou homogeneidade constantemente reproduzidas. A visão da África escassa e desértica é desconstruída para dar lugar a um Continente repleto de diversidade e contrastes. Existem grandes desertos, como também florestas enormes, estepes, planícies e planaltos, zonas alagadas, savanas, lugar de clima predominantemente frio, e noutras quentes, na África do Sul o clima é temperado. A natureza abriga uma grande quantidade de espécies animais, o leão, leopardo, girafa, zebra, rinoceronte, também hienas, guepardos e antílopes. As descrições e informações trazidas pela obra sobre as prósperas atividades econômicas, a existência de diferentes organizações políticas, complexo conhecimento artístico-cultural, de técnicas agrícolas e de mineração, metalurgia, produção têxtil, entre outras, demonstram que as sociedades africanas estão muito longe das imagens generalizadas de uma África tribal, faminta e em decadência. Em relação à economia, além de diversa, possui fartura nas áreas que não são atingidas, por exemplo, por um desastre natural ou guerra. A caça e coleta de raízes, frutas e mel são atividades relacionadas aos pigmeus do Congo e os sãs ou bosquímanos na região da África do Sul de clima semi-árido. A agricultura consiste numa das bases da economia africana; os africanos dominavam complexas técnicas agrícolas, se utilizavam da irrigação, rotação de culturas, adubagem e construção de plataformas nas encostas, entre outras. Também se utilizam da criação de gado como os povos cóis ou hotentotes, fulas e massais. Outras atividades econômicas eram a mineração, a metalurgia e a produção têxtil. O ouro era encontrado tanto no leito dos rios como nas minas nas regiões de Bambuk e Buré (alto Níger). A Núbia também era uma grande produtora desde o século XVI a.c no qual fornecia o precioso metal ao Egito. Desde 600 a.c os africanos dominavam as técnicas da metalurgia do ferro, sendo considerado de qualidade superior aos dos europeus. Fundiam diversos metais, utilizando bronze e latão, que no Benim se ligavam às esculturas. Também se destaca a fabricação de joias de ouro e prata feitas pelos axantes. Em relação à produção de tecidos, os tecelões produziam panos de algodão de excelência que desde o século XII era exportado para a Europa, e mais tarde, no XVI seria vendido também no Brasil. No norte da Nigéria teciam-se também lãs de ovelha e de camelo, e em Congo e Angola, a ráfia. Eram posteriormente tingidos, recebiam bordados, como na Etiópia e com os mandigas, nupes e hauçás, ou ainda aplicações de imagens, como era de costume no antigo reino do Daomé (República do Benim). Assim, o autor busca demonstrar a potência, qualidade e variedade da economia africana, superior que a europeia em muitos aspectos, desconstruindo a imagem de uma economia atrasada e deficiente. Os africanos aproveitavam produtos e conhecimentos de outros lugares, porém apenas o que era considerado útil. Assim, o autor Alberto da Costa e Silva demonstra que não se deve avaliar o desenvolvimento de uma sociedade através do que era símbolo de evolução na Europa. Os povos do Norte pouco se interessaram pelo carro, que não podiam ser utilizado na areia do deserto, mas tão logo adotaram as redes americanas como forma de locomoção. Esse exemplo demonstra que as técnicas e aparatos que se dispõe num determinado meio tem muito mais relação com as condições e necessidades geográficas do local, que a natureza impõe, do que propriamente conhecimento. Outra importante contribuição da obra foi atentar para a diversidade de organizações políticas existentes na África, desmontando uma visão homogênea e generalizante de um Continente “tribal”. Havia impérios que se estendiam por várias nações, reinos que compreendiam uma ou mais nações, e organizações menores comparadas às cidades-estados gregas. O poder pertencia a uma ou mais famílias reais acompanhadas por uma aristocracia. Mas também existiam povos, como os ibos, que não possuíam reis e as aldeias eram governadas por um concelho de chefes das famílias ou por sociedades secretas mascaradas que puniam aqueles que transgrediam a ordem. Muitas sociedades eram rigidamente estratificadas cuja posição social era determinada pelo nascimento, em outras vigorava o mérito, e noutras ainda, a riqueza, e finalmente havia as que não possuíam desigualdades nas quais só se distinguiam os jovens dos mais velhos. Os primeiros reinos africanos surgiram por volta de cinco mil anos, sendo Egito, o reino de Cuxe (Núbia) e de Axum, os primeiros que se tem registro, seguidos de tantos outros, como o reino de Gana e Benim. As cidades africanas também contavam com grande esplendor e construções impressionantes, inclusive aos olhos europeus que se surpreenderam com as largas avenidas do Benim e a grande muralha de Ijebu-Ode. As esculturas do Benim é um grande exemplo da riqueza cultural africana. Muitos europeus, de início, demoraram a reconhecer sua qualidade. Esse é um ponto importante, pois demonstra como a alteridade deturpa a visão do outro, impedindo de perceber a beleza artística das esculturas africanas simplesmente porque se distinguia do padrão europeu, e isso pode ser deslocado para outra tantas dimensões em que o olhar eurocêntrico foi incapaz de notar a cultura africana em todo seu valor apenas por ser diferente. Posteriormente conseguem valorizar essa arte, assim como as estátuas de madeira feitas no Congo, e especialmente as esculturas de ancestrais e as máscaras de danças rituais dos povos sem estado, e tão distintos dos europeus, mas que foram estudadas por Derain, Picasso, Matisse, Modigliani, Bracusi, Braque, Kirchner, que as utilizaram para aprendizado. Outro importante fator cultural da África ressaltado pelo autor é a quantidade e diversidade de línguas faladas em seu território que chega a quase dois mil línguas. O hauçá e o suaíli são faladas em extensa área por grande número de pessoas, sendo que outras alcançam uma proporção pequena e regional. Dentro de uma nação podem ser faladas muitas línguas, estas muito diferentes entre si ou muito semelhantes. Grupos vizinhos também podem trazer valores e formas de vida muito distintas. Como no caso dos iorubás que veneravam o nascimento de gêmeos, enquanto antigamente entre os ibos, esse acontecimento era condenado. Práticas rituais como os suicídios e sacrifícios humanos não eram compreendidos e eram vistos de forma negativa pelos europeus. Mas o autor da obra esclarece como isso não os afasta dos próprios antigos gregos, por exemplo, assim como comparam seus ritos ao cerimonial das missas católicas para demonstrar que isso fazia parte da cultura daquele povo, da mesma forma que os rituais católicos também faziam. A religião é outro campo em que estereótipos são derrubados. A questão dos cultos aos orixás, por exemplo, que se tem uma imagem como se fossem largamente difundidos, e na verdade consiste numa crença muito restrita, ligada aos iorubás. Em contrapartida, o culto dos mortos e a crença na reencarnação são muito comuns na maioria das religiões africanas, pois há grande valorização dos ancestrais, o que não é muito difundido. Outro ponto importante se refere à própria construção da história do Continente, muito baseada nas visões eurocêntricas. O olhar africano e suas atuações foram apagadas pela interpretação subjetiva e hegemônica europeia, que subtraíram as riquezas, as culturas, as grandes civilizações africanas para classificar o continente como bárbaro e incivilizado, e principalmente pagão, o que justificou sua exploração dos povos que ali viviam. Importante notar como o autor faz questão de citar as resistências e lutas africanas que se opuseram ao imperialismo, reações pouco mencionadas que leva a crer numa submissão pacífica. Outro ponto destacado na obra foi o fato dos europeus, até o XIX principalmente, mas após também, terem que o negociar o tempo todo com os reinos africanos, dependendo muito da autorização desses chefes para atuar no território, o que demonstra que havia lideranças africanas que permitiam, por exemplo, o comércio de escravos, e que os europeus não possuíam tanta autonomia e poder como supunha uma leitura mais superficial. Atentando para as transformações ocorridas no Continente ao longo do tempo, remontando as sociedades desde a época antiga, a civilização egípcia e a grande potência cartaginense, descrevendo modificações econômicas, culturais e políticas de uma grande variedade de reinos e povos com distintas organizações, até o reforço da presença europeia que provocariam também grandes mudanças no interior da África, o autor atesta a historicidade do Continente, indo contra correntes do século XIX e as teorias de Nietzsche que associava a ausência de história a uma suposta e incorreta imutabilidade. Através da leitura da obra, infere-se que esse equívoco que percebe o continente “parado no tempo” está associado ao próprio desconhecimento de seu interior pelos europeus, já que suas relações com os africanos se reduziram a trocas pela Costa e ao litoral, contatos bem superficiais, pois os grandes reinos africanos, como o Congo, não permitiam uma interiorização europeia. Este é outro esclarecimento importante trazido pela obra. Após defender sua existência, foi importante ampliar o entendimento que se fazia dessa história, desmontando inverdades, trazendo novos elementos para compreender as relações e conceitos como alteridade e identidade. A obra oferece informações de como as sociedades se organizavam e como a inserção europeia modificou as antigas práticas, como a própria escravidão, que pela demanda e alianças entre povos europeus e africanos se intensificou e provocou o aumento dos conflitos internos. A forma como julgamos uma cultura parte muito de um olhar etnocêntrico, assim o autor procura demonstrar que não é possível utilizar parâmetros externos para avaliar o desenvolvimento de outro povo, pois esses não são compatíveis à realidade e valores próprios de outra cultura. Assim denuncia o julgamento eurocêntrico em que foi baseada a construção da imagem do africano, o que levou a interpretações e formulações históricas equivocadas. O entendimento da coexistência de diversas identidades foi importante para a compreensão do quadro de guerras internas e alianças externas, que se justifica pelo fato de que outro povo do continente era tão diferente quanto os europeus ao olhar das sociedades africanas, não havia a ideia de grupo único e pertencimento de escala continental. Assim, a obra aqui analisada traz grandes contribuições para a compreensão do Continente africano, com a negação da sua imutabilidade, atestando a existência de sua história, e servindo para desconstruir estereótipos que criaram uma visão homogênea da África, assim como a associação com a miséria e subdesenvolvimento que é tomado de forma generalizada. Importante também foi atentar para a alteridade e a existência de identidades, assim como repensar a forma como foi produzida a história africana, através de um olhar eurocêntrico sem conceber os próprios habitantes do Continente como sujeitos e atuantes nos processos e acontecimentos. A afirmação da multiplicidade cultural, étnica e geográfica também foi um fator relevante para modificar as visões simplistas referentes à porção continental africana. A forma como o livro foi organizado, não satisfaz muito as tendências atuais de valorizar e dar visibilidade a história e estudos de povos africanos específicos, já que estes aparecem ao longo do texto, não estando presente nos títulos. Porém, atende ao objetivo de fazer uma história geral da África destinada ao público infanto-juvenil, com sua linguagem fácil em forma de conversas. Desta maneira, a obra se demonstra muito importante para a compreensão da história africana sendo sua leitura crucial para desmistificar uma imagem distorcida e há muito tempo reproduzida do Continente. Referências bibliográficas:
SILVA, Alberto da Costa e. A África explicada aos meus filhos. Rio de Janeiro: Agir, 2008.