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RESENHA DO LIVRO: SILVA, Alberto da Costa e.

A África explicada aos meus


filhos. Rio de Janeiro: Agir, 2008.

A história do continente africano foi sempre construída e repassada através de


um olhar eurocêntrico. A obra de Alberto da Costa e Silva “A África explicada aos
meus filhos” através de um modelo, organização e linguagem próprias, facilita o
entendimento dos acontecimentos, das culturas, das geografias e da multiplicidade
étnica de um Continente complexo, desconstruindo estereótipos e muitas ideias
deturpadas sobre a África. Por discutir questões importantes, defendendo a historicidade
e reconhecendo o valor e complexidade dos povos africanos, se tornou um livro
referencial para uma compreensão mais ampla e menos superficial da história africana.
Alberto da Costa e Silva é poeta, historiador e membro da Academia Brasileira
de Letras. Nascido em São Paulo em 1931, se tornou doutor pela Universidade Obafemi
Awolowo (ex-Universidade de Ifé, Nigéria, 1986) e pela Universidade Federal
Fluminense (2009), e já escreveu inúmeros títulos, tais como A manilha e o libambo
(2002), Um rio chamado Atlântico (2003), Francisco Félix de Souza, mercador de
escravos (2004), Castro Alves, um poeta sempre jovem (2006), entre outros, sem contar
a produção aqui analisada, destinada ao público infanto-juvenil. Esta é estruturada em
dez capítulos enumerados em primeira, segunda, até decima conversa. A linguagem de
fácil entendimento, feita em diálogos, em forma de entrevista com perguntas e
respostas, facilita a leitura e torna seu conteúdo mais acessível, didático e claro aos
diferentes públicos.
Na obra é possível perceber que são tratados temas, como geografia, cultura,
economia, entre outros, buscando desconstruir certos estereótipos sobre sua vegetação,
sobre a compreensão do espaço, dos rios e animais que habitam o Continente, dos
ofícios praticados, e sobre religião, sempre acompanhando uma detalhada descrição dos
costumes de diversos povos. O livro se inicia com uma reflexão sobre a África atual,
depois começa a contar sobre os reinos antigos, as organizações políticas nos primeiros
séculos, e depois passa para as relações dos europeus e africanos nos XV-XVIII. Os
acontecimentos e informações são levantados não obedecendo a uma ordem cronológica
linear formal, mas, com alguns retornos e adiantamentos, no panorama geral, é notável a
passagem do tempo até chegar, nos últimos capítulos, no imperialismo do XIX, e por
fim, a África na atualidade.
A proposta do livro se relaciona a difusão de um conteúdo de fácil
entendimento, para leitores leigos, que proporcione uma visão mais ampla do
Continente Africano, desmontando as barreiras construídas pela visão eurocêntrica e
sensos comuns que formaram a imagem que se tem e é reproduzida sobre a África.
Discorrer sobre sua história, a fim de, realmente como sugere o título da Obra,
“explicar” essa porção continental de forma que seja possível um conhecimento menos
deturpado e mais profundo do território e dos povos que ali habitam.
Nas primeiras conversas fica evidente a grande diversidade geográfica e os
contrastes apresentados pelo continente, o que desmonta uma suposta unidade ou
homogeneidade constantemente reproduzidas. A visão da África escassa e desértica é
desconstruída para dar lugar a um Continente repleto de diversidade e contrastes.
Existem grandes desertos, como também florestas enormes, estepes, planícies e
planaltos, zonas alagadas, savanas, lugar de clima predominantemente frio, e noutras
quentes, na África do Sul o clima é temperado. A natureza abriga uma grande
quantidade de espécies animais, o leão, leopardo, girafa, zebra, rinoceronte, também
hienas, guepardos e antílopes.
As descrições e informações trazidas pela obra sobre as prósperas atividades
econômicas, a existência de diferentes organizações políticas, complexo conhecimento
artístico-cultural, de técnicas agrícolas e de mineração, metalurgia, produção têxtil,
entre outras, demonstram que as sociedades africanas estão muito longe das imagens
generalizadas de uma África tribal, faminta e em decadência. Em relação à economia,
além de diversa, possui fartura nas áreas que não são atingidas, por exemplo, por um
desastre natural ou guerra. A caça e coleta de raízes, frutas e mel são atividades
relacionadas aos pigmeus do Congo e os sãs ou bosquímanos na região da África do Sul
de clima semi-árido. A agricultura consiste numa das bases da economia africana; os
africanos dominavam complexas técnicas agrícolas, se utilizavam da irrigação, rotação
de culturas, adubagem e construção de plataformas nas encostas, entre outras. Também
se utilizam da criação de gado como os povos cóis ou hotentotes, fulas e massais.
Outras atividades econômicas eram a mineração, a metalurgia e a produção
têxtil. O ouro era encontrado tanto no leito dos rios como nas minas nas regiões de
Bambuk e Buré (alto Níger). A Núbia também era uma grande produtora desde o século
XVI a.c no qual fornecia o precioso metal ao Egito. Desde 600 a.c os africanos
dominavam as técnicas da metalurgia do ferro, sendo considerado de qualidade superior
aos dos europeus. Fundiam diversos metais, utilizando bronze e latão, que no Benim se
ligavam às esculturas. Também se destaca a fabricação de joias de ouro e prata feitas
pelos axantes. Em relação à produção de tecidos, os tecelões produziam panos de
algodão de excelência que desde o século XII era exportado para a Europa, e mais tarde,
no XVI seria vendido também no Brasil. No norte da Nigéria teciam-se também lãs de
ovelha e de camelo, e em Congo e Angola, a ráfia. Eram posteriormente tingidos,
recebiam bordados, como na Etiópia e com os mandigas, nupes e hauçás, ou ainda
aplicações de imagens, como era de costume no antigo reino do Daomé (República do
Benim). Assim, o autor busca demonstrar a potência, qualidade e variedade da
economia africana, superior que a europeia em muitos aspectos, desconstruindo a
imagem de uma economia atrasada e deficiente.
Os africanos aproveitavam produtos e conhecimentos de outros lugares, porém
apenas o que era considerado útil. Assim, o autor Alberto da Costa e Silva demonstra
que não se deve avaliar o desenvolvimento de uma sociedade através do que era
símbolo de evolução na Europa. Os povos do Norte pouco se interessaram pelo carro,
que não podiam ser utilizado na areia do deserto, mas tão logo adotaram as redes
americanas como forma de locomoção. Esse exemplo demonstra que as técnicas e
aparatos que se dispõe num determinado meio tem muito mais relação com as condições
e necessidades geográficas do local, que a natureza impõe, do que propriamente
conhecimento.
Outra importante contribuição da obra foi atentar para a diversidade de
organizações políticas existentes na África, desmontando uma visão homogênea e
generalizante de um Continente “tribal”. Havia impérios que se estendiam por várias
nações, reinos que compreendiam uma ou mais nações, e organizações menores
comparadas às cidades-estados gregas. O poder pertencia a uma ou mais famílias reais
acompanhadas por uma aristocracia. Mas também existiam povos, como os ibos, que
não possuíam reis e as aldeias eram governadas por um concelho de chefes das famílias
ou por sociedades secretas mascaradas que puniam aqueles que transgrediam a ordem.
Muitas sociedades eram rigidamente estratificadas cuja posição social era determinada
pelo nascimento, em outras vigorava o mérito, e noutras ainda, a riqueza, e finalmente
havia as que não possuíam desigualdades nas quais só se distinguiam os jovens dos
mais velhos.
Os primeiros reinos africanos surgiram por volta de cinco mil anos, sendo Egito,
o reino de Cuxe (Núbia) e de Axum, os primeiros que se tem registro, seguidos de
tantos outros, como o reino de Gana e Benim. As cidades africanas também contavam
com grande esplendor e construções impressionantes, inclusive aos olhos europeus que
se surpreenderam com as largas avenidas do Benim e a grande muralha de Ijebu-Ode.
As esculturas do Benim é um grande exemplo da riqueza cultural africana. Muitos
europeus, de início, demoraram a reconhecer sua qualidade. Esse é um ponto
importante, pois demonstra como a alteridade deturpa a visão do outro, impedindo de
perceber a beleza artística das esculturas africanas simplesmente porque se distinguia do
padrão europeu, e isso pode ser deslocado para outra tantas dimensões em que o olhar
eurocêntrico foi incapaz de notar a cultura africana em todo seu valor apenas por ser
diferente. Posteriormente conseguem valorizar essa arte, assim como as estátuas de
madeira feitas no Congo, e especialmente as esculturas de ancestrais e as máscaras de
danças rituais dos povos sem estado, e tão distintos dos europeus, mas que foram
estudadas por Derain, Picasso, Matisse, Modigliani, Bracusi, Braque, Kirchner, que as
utilizaram para aprendizado.
Outro importante fator cultural da África ressaltado pelo autor é a quantidade e
diversidade de línguas faladas em seu território que chega a quase dois mil línguas. O
hauçá e o suaíli são faladas em extensa área por grande número de pessoas, sendo que
outras alcançam uma proporção pequena e regional. Dentro de uma nação podem ser
faladas muitas línguas, estas muito diferentes entre si ou muito semelhantes. Grupos
vizinhos também podem trazer valores e formas de vida muito distintas. Como no caso
dos iorubás que veneravam o nascimento de gêmeos, enquanto antigamente entre os
ibos, esse acontecimento era condenado.
Práticas rituais como os suicídios e sacrifícios humanos não eram
compreendidos e eram vistos de forma negativa pelos europeus. Mas o autor da obra
esclarece como isso não os afasta dos próprios antigos gregos, por exemplo, assim como
comparam seus ritos ao cerimonial das missas católicas para demonstrar que isso fazia
parte da cultura daquele povo, da mesma forma que os rituais católicos também faziam.
A religião é outro campo em que estereótipos são derrubados. A questão dos cultos aos
orixás, por exemplo, que se tem uma imagem como se fossem largamente difundidos, e
na verdade consiste numa crença muito restrita, ligada aos iorubás. Em contrapartida, o
culto dos mortos e a crença na reencarnação são muito comuns na maioria das religiões
africanas, pois há grande valorização dos ancestrais, o que não é muito difundido.
Outro ponto importante se refere à própria construção da história do Continente,
muito baseada nas visões eurocêntricas. O olhar africano e suas atuações foram
apagadas pela interpretação subjetiva e hegemônica europeia, que subtraíram as
riquezas, as culturas, as grandes civilizações africanas para classificar o continente
como bárbaro e incivilizado, e principalmente pagão, o que justificou sua exploração
dos povos que ali viviam. Importante notar como o autor faz questão de citar as
resistências e lutas africanas que se opuseram ao imperialismo, reações pouco
mencionadas que leva a crer numa submissão pacífica. Outro ponto destacado na obra
foi o fato dos europeus, até o XIX principalmente, mas após também, terem que o
negociar o tempo todo com os reinos africanos, dependendo muito da autorização
desses chefes para atuar no território, o que demonstra que havia lideranças africanas
que permitiam, por exemplo, o comércio de escravos, e que os europeus não possuíam
tanta autonomia e poder como supunha uma leitura mais superficial.
Atentando para as transformações ocorridas no Continente ao longo do tempo,
remontando as sociedades desde a época antiga, a civilização egípcia e a grande
potência cartaginense, descrevendo modificações econômicas, culturais e políticas de
uma grande variedade de reinos e povos com distintas organizações, até o reforço da
presença europeia que provocariam também grandes mudanças no interior da África, o
autor atesta a historicidade do Continente, indo contra correntes do século XIX e as
teorias de Nietzsche que associava a ausência de história a uma suposta e incorreta
imutabilidade. Através da leitura da obra, infere-se que esse equívoco que percebe o
continente “parado no tempo” está associado ao próprio desconhecimento de seu
interior pelos europeus, já que suas relações com os africanos se reduziram a trocas pela
Costa e ao litoral, contatos bem superficiais, pois os grandes reinos africanos, como o
Congo, não permitiam uma interiorização europeia. Este é outro esclarecimento
importante trazido pela obra.
Após defender sua existência, foi importante ampliar o entendimento que se
fazia dessa história, desmontando inverdades, trazendo novos elementos para
compreender as relações e conceitos como alteridade e identidade. A obra oferece
informações de como as sociedades se organizavam e como a inserção europeia
modificou as antigas práticas, como a própria escravidão, que pela demanda e alianças
entre povos europeus e africanos se intensificou e provocou o aumento dos conflitos
internos. A forma como julgamos uma cultura parte muito de um olhar etnocêntrico,
assim o autor procura demonstrar que não é possível utilizar parâmetros externos para
avaliar o desenvolvimento de outro povo, pois esses não são compatíveis à realidade e
valores próprios de outra cultura.
Assim denuncia o julgamento eurocêntrico em que foi baseada a construção da
imagem do africano, o que levou a interpretações e formulações históricas equivocadas.
O entendimento da coexistência de diversas identidades foi importante para a
compreensão do quadro de guerras internas e alianças externas, que se justifica pelo fato
de que outro povo do continente era tão diferente quanto os europeus ao olhar das
sociedades africanas, não havia a ideia de grupo único e pertencimento de escala
continental.
Assim, a obra aqui analisada traz grandes contribuições para a
compreensão do Continente africano, com a negação da sua imutabilidade, atestando a
existência de sua história, e servindo para desconstruir estereótipos que criaram uma
visão homogênea da África, assim como a associação com a miséria e
subdesenvolvimento que é tomado de forma generalizada. Importante também foi
atentar para a alteridade e a existência de identidades, assim como repensar a forma
como foi produzida a história africana, através de um olhar eurocêntrico sem conceber
os próprios habitantes do Continente como sujeitos e atuantes nos processos e
acontecimentos. A afirmação da multiplicidade cultural, étnica e geográfica também foi
um fator relevante para modificar as visões simplistas referentes à porção continental
africana.
A forma como o livro foi organizado, não satisfaz muito as tendências atuais de
valorizar e dar visibilidade a história e estudos de povos africanos específicos, já que
estes aparecem ao longo do texto, não estando presente nos títulos. Porém, atende ao
objetivo de fazer uma história geral da África destinada ao público infanto-juvenil, com
sua linguagem fácil em forma de conversas. Desta maneira, a obra se demonstra muito
importante para a compreensão da história africana sendo sua leitura crucial para
desmistificar uma imagem distorcida e há muito tempo reproduzida do Continente.
Referências bibliográficas:

SILVA, Alberto da Costa e. A África explicada aos meus filhos. Rio de Janeiro: Agir,
2008.

Alberto da Costa e Silva / Companhia das Letras:


https://www.companhiadasletras.com.br/autor.php?codigo=02271

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