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Visão da cidade do Rio de Janeiro na Obra “O Cortiço” de Aluísio

Azevedo.

A cidade do Rio de Janeiro na passagem do século XIX para o XX sofreu uma


série de transformações urbanísticas, visando sua modernização, que incluía a remoção
de habitações precárias do novo centro comercial, cultural e político brasileiro. Os
cortiços eram o exemplo típico dessas habitações, abordada por Aluísio Azevedo na
obra referida, consideradas o antro da imundície e da criminalidade. Em “O cortiço”
Azevedo busca retratar aspectos da vida cotidiana da capital carioca a partir dos setores
mais pobres da população, descrevendo não apenas o meio em que viviam, mas também
categorias humanas, oferendo uma visão negativa, suja, espontânea e animalesca da
cidade, denunciando as péssimas condições dos setores menos privilegiados e como
perpetuavam a situação de pobreza. É preciso uma leitura crítica da forma caricatural e
tendenciosa em que Aluísio Azevedo escreve o romance, porém, também é necessário
considerar que o autor deixa entrever uma imagem do que foi o Rio de janeiro nesse
período, a qual nós podemos relacionar com as atuais favelas cariocas.

Aluísio Tancredo Gonçalves de Azevedo (1857-1913) nasceu em São Luís,


Maranhão, onde estudou e trabalhou como caixeiro e guarda livros, também mostrando
grande talento para as artes. Chegou ao Rio de Janeiro em 1876 matriculando-se na
Imperial Academia de Belas Artes e atuando como caricaturista em jornais para se
manter. Em 1878, retornando a São Luís se torna jornalista num jornal abolicionista, e
começa a escrever romances, como “O mulato”. Em 1881 volta para a capital,
escrevendo “O cortiço” em 1890. Ingressa na diplomacia em 1895, viajando para vários
países, quando falace em 1913 em Buenos Aires, Argentina. O autor é considerado
grande representante do movimento literário naturalismo, marcado pelo seu
determinismo social e biológico que explicam os comportamentos e vícios humanos. Na
obra aqui analisada, é possível perceber sua tendência de reduzir os grupos ao meio em
que viviam e comparar suas ações a instintos e formas de vida animal. Em muitas
passagens percebemos o uso exagerado desses recursos estilísticos, que ao mesmo
tempo em que romantizam e modificam sua configuração, proporcionam um
entendimento mais apurado da visão do autor sobre o que descrevia.

O cenário do livro é o cortiço que leva o nome de São Romão, fazendo alusão ao
personagem João Romão, proprietário português que ergueu suas casas, através do
dinheiro suado da escrava Bertoleza e de materiais de construção roubados de canteiros
de obras dos arredores. João Romão era um vendeiro que pela obsessão que tinha em
enriquecer, vivia economizando ao máximo e se privando de tudo e jamais tirava folga
da venda que construíra, enganando os fregueses e expandindo seu terreno. Logo
começa a descrever a quantidade de pessoas que começaram a viver naquelas habitações
insalubres. Em que se amontoavam, em locais estreitos, apertados, se multiplicavam
naquele local, úmido das roupas no varal, sujo, promíscuo, e barulhento.

“E, mal vagava uma das casinhas, ou um quarto, um canto onde coubesse um colchão,
surgia uma nuvem de pretendentes a disputá-los... E aquilo se foi constituindo numa grande
lavanderia, agitada e barulhenta... E naquela terra encharcada e fumegante, naquela umidade
quente e lodosa, começou a minhocar, a esfervilhar, a crescer, um mundo, uma coisa viva, uma
geração, que parecia brotar espontânea, ali mesmo, daquele lameiro, e multiplicar-se como
larvas no estêrco.” (p. 33)

As casas cresciam de forma desordenada, com materiais improvisados,


desonestos, fruto de roubos. A atmosfera retratada por Aluísio era de que tudo ali era
desorganizado, sem planejamento, surgia espontaneamente, com poucos recursos,
espremia-se lutando pela sobrevivência, tanto o componente material como o humano.
A venda de Romão acumulava variados artigos e funções, misturava objetos de
ferragens, com roupas, porcelanas e brincos; fornecia tudo aos moradores, servia
almoço, bebidas, e o português ainda concedia empréstimos a juros. Não havia uma
clara separação dos ofícios, era vendedor, credor e locatário. O terreno esbarrava na
residência de outro português, o Miranda, porção que Romão não conseguiu adquirir a
tempo, em que havia uma disputa e uma tensão pelo território. No final havia uma
pedreira, também pertencente a João Romão, que tornava o ambiente ainda mais
barulhento.

Ali conviviam vários tipos de pessoas com os mais diversos ofícios de origem
popular: lavadeiras, mercadores, vendedores de peixe, trabalhadores da pedreira e
fábricas adjacentes, padeiro, ferreiro, torneiro, tipógrafo, entre outros. Havia também os
“tabuleiros de carne fresca e outros de tripas e fatos de boi”(p. 45). O sardinheiro que passava nas
portas dos moradores tinha que contornar a variedade de gatos que surgiam e o
cercavam atraídos pelo cheiro. Os habitantes do cortiço foram retratados e descritos
com os piores adjetivos, em geral apareciam como pessoas barulhentas, sem caráter,
adúlteras, indolentes, levianas. Ainda aparecem as palavras idiota, feia, grossa,
exagerada, mau humorada e raivosa para denominar algumas mulheres. Os tipos
humanos são bem definidos, além do João Romão, o português oportunista, havia
Estela, a mulher de boa família adúltera, seu marido, Miranda, que se casou para sair da
condição de pobreza para a condição de negociante traído, havia a viúva Dona Isabel, e
a virgem Pombinha, a negra sensual, libertina e muito amada por todos, Rita Baiana, a
Paula, a curandeira, que sabia fazer as rezas e feitiçarias contra as enfermidades.

As cenas do cotidiano são contadas exaltando o calor, o suor, as partes do corpo,


o cheiro do café matinal, as mulheres pendurando gaiolas de papagaios, as rodas de
samba, o trabalho árduo, os gritos, as gargalhadas e discussões, as festas, os choros dos
bebês, e as crianças correndo. A falta de saneamento, água encanada nas residências e
banheiros privados, também aparece no romance naturalista:

“... em volta das bicas era um zunzum crescente; uma aglomeração tumultuosa de machos e
fêmeas. Uns, após outros, lavavam a cara, incomodamente, debaixo do fio de água que escorria da
altura de uns cinco palmos. O chão inundava-se. As mulheres precisavam já prender as saias entre as
coxas para não as molhar; via-se-lhes a tostada nudez dos braços e do pescoço, que elas despiam
suspendendo o cabelo todo para o alto do casco; os homens, esses não se preocupavam em não molhar o
pelo, ao contrário, metiam a cabeça bem debaixo da água e esfregavam com força as ventas e as barbas,
fossando e fungando contra as palmas da mão. As portas das latrinas não descansavam, era um abrir e
fechar de cada instante... e vinham ainda amarrando as calças ou as saias; as crianças não se davam ao
trabalho de lá ir, despachavam-se ali mesmo, no capinzal dos fundos, por detrás da estalagem ou no
recanto das hortas.” (p. 44)

Tanto as bicas, como as latrinas- locais para dejeções, excrementos, urina


ou fezes - eram de uso público. Nesse cenário, havia inúmeras lavadeiras que ali
trabalhavam esfregando as roupas e estendendo nos varais; também ali trabalhavam os
homens encarregados do serviço na pedreira. Existiam carroças com burros que
auxiliavam na retirada dos pedregulhos. Era possível ver um “vestígio de rio” quase
seco pelo sol escaldante, uma ponte de tábuas, uma cobertura velha e simples de telha
onde trabalhavam canteiros- artífice que lavra pedra de cantaria- e logo adiante uma
oficina de ferreiro, uma estrebaria pequena, um depósito de madeira que servia de
oficina de carpinteiro e enfim a pedreira. O cavouqueiro – trabalhador de pedreira –
Jerônimo, muito experiente que apareceu buscando se tornar funcionário de Seu Romão,
denuncia o péssimo serviço que estava sendo desenvolvido no local, qualificando os
empregados como preguiçosos, inexperientes, e indisciplinados.
Nos domingos, o objetivo era aproveitar o máximo do tempo de folga, e nos
festejos, não faltava pessoas, comidas e música. Aluísio Azevedo conta como se faziam
os jantares, em que compartilhavam os diversos pratos e receitas preparadas pelas
janelas das casas. O torneiro Firmo, amante de Rita Baiana, que foi militante, influente
na política, mas que saiu por nunca conseguir um cargo efetivo, também capoeirista,
chega com o tipógrafo Porfiro, seu amigo, alegrando o festejo. Tocavam cavaquinho e
violão. O ambiente descrito era de algazarra, bebedeira e promiscuidade. Apareciam
cães e miseráveis em busca de alimento, pessoas fumando, outros já caiam dormindo e
roncando, sendo o centro da cena o rebolado de Rita.

A relação com a polícia era conflituosa. Pouco entrava nos cortiços, e os


moradores buscavam impedir possíveis intervenções. Algumas vezes falavam de ir fazer
alguma denúncia, como ocorreu quando o marido pegando a mulher em traição tentou
agredi-la e noutra quando um dos caixeiros engravidou uma moça e não queria casar e
nem pagar dote. Mas, em geral, a polícia não era bem vista e nem considerada protetora
da população, como é possível perceber no seguinte trecho:

“A polícia era o grande terror daquela gente, porque, sempre que penetrava em qualquer
estalagem, havia grande estropício; à capa de evitar e punir o jogo e a bebedeira, os urbanos invadiam
os quartos, quebravam o que lá estava, punham tudo em polvorosa.” (p.140.)

Quando ocorreu uma invasão no dito cortiço, muitas casas foram destruídas,
tendo os pertences quebrados, e João Romão junto com os residentes ficaram no
prejuízo. Além dessas tensões, havia ainda outros conflitos, que vinham dos contrastes
que conviviam. Primeiro do seu Romão, dono de tudo, perante aquela população
desvalida. Segundo, do vizinho, Miranda, que tinha um padrão de vida melhor e quando
ganhou o título de Barão, até Romão sentiu inveja do negociante. As diferenças levaram
a uma discussão, entre Miranda e os moradores do cortiço, que via com indignação o
crescimento daquelas habitações pobres e barulhentas logo ao lado de sua casa.
Conflitante também foi a criação de outro cortiço, na mesma rua, chamado “Cabeça-de-
Gato”, que João Romão logo viu como concorrente e tratar como grande rivalidade,
juntamente com os moradores de seu cortiço.

Aquele lugar transformava a todos que ali residiam, segundo o autor, mudou o
português Jeronimo, muito disciplinado e comprometido com sua família, que ao ver, se
apaixonou por Rita, se tornando preguiçoso, disposto a bebedeira e festas, e que chega a
abandonar sua esposa e filha. A Pombinha, virgem e bondosa, se entrega à prostituição.
Assim, também aparece como se perpetuava a pobreza, com esposas largadas, com
filhos herdando o ofício dos pais, e até a prática da prostituição. Havia no interior do
cortiço uma divisão entre portugueses e brasileiros, que fica evidente quando Piedade,
portuguesa abandonada por Jerônimo, briga com Rita, amante de seu marido, em que
portugueses torcem para Piedade, enquanto brasileiros ficam ao lado de Rita. Também é
marcante as rixas desenvolvidas pelos cortiços, em que nutre-se um ódio entre as
pessoas de um, com as do outro, a ponto de motivar agressões e até ocasionar uma
guerra, quando os “cabeças-de-gato” resolvem vingar a morte de Firmo, indo contra os
chamados “carapicus” (moradores do São Romão), saindo pessoas feridas e até uma
criança morta.

No final, Aluísio vai retratar a prosperidade do cortiço de São Romão e a ruína


do “Cabeça-de-Gato”. O primeiro recebeu uma reforma, adquirindo iluminação de três
lampiões, seis latrinas e torneiras de água, e três banheiros, passando a abrigar pessoas
de outra categoria social:

“...começavam a vir estudantes pobres...surgiram contínuos de repartições públicas, caixeiros


de botequim, artistas de teatro, condutores de bondes, e vendedores de bilhetes de loteria.” (p.225)

Todos esses trabalhadores passaram a habitar no cortiço renovado, após um


incêndio provocado por uma moradora, sendo que até o sobrado de João Romão foi
reformado se tornando uma construção imponente. Esses homens e mulheres residiam
ali, próximos de seus trabalhos; as festas e os barulhos diminuíram, enquanto que no
“Cabeça-de-Gato” os barulhos e confusões só aumentavam, assim como as intervenções
policiais.

Assim, a imagem retratada por Aluísio de Azevedo sobre a vida no cortiço de


São Romão, era de uma cidade suja, precária, barulhenta, sem organização, que crescia
de forma desordenada e improvisada. Era habitada por pessoas desonestas, barulhentas,
promíscuas e adúlteras. Sem saneamento básico, água encanada, ou iluminação – que
apenas alcança alguma melhoria no final do romance – constituíam áreas marginais,
anti-higiênicas, cuja única face do poder público que comparecia, às vezes e de forma
conflituosa, era a polícia – chamados de urbanos – que parecia agir com agressividade e
desdenho diante daquela população pobre que formava a camada trabalhadora da
sociedade, vistos como incivilizados, comparados com animais muitas vezes pelo autor.
O próprio dono do cortiço visava se destacar e tinha repulsa dos inquilinos que lhe
enriquecia. Os conflitos com outros cortiços, entre os próprios desvalidos, e depois o
gradual distanciamento do São Romão em relação ao “Cabeça-de-Gato”, buscando se
diferenciar com melhorias, menos confusões e abrigando camadas menos miseráveis,
demonstra como se davam as hierarquias entre os espaços marginais. Por fim, o
cotidiano árduo, a realidade dura das enganações, traições, abandonos, desilusões, e o
próprio meio, que o autor coloca como fator principal, que transformava e degenerava
as pessoas, atuavam para a perpetuação da pobreza. A falta de segurança, a instabilidade
da situação de vida dos moradores, à mercê da polícia, do proprietário oportunista, de
incêndios, de guerras com vizinhos, tudo oferecia uma atmosfera de incerteza e medo
àquela população que crescia de maneira desregrada. Entre algumas folgas, rodas de
samba, e festas, consideradas antros da promiscuidade e bagunça, os habitantes
buscavam o lazer, reforçar amizades, traçar uma rede de sociabilidade e de ajuda, que
minimizasse o trabalho árduo e as condições precárias em que se encontravam.
BIBLIOGRAFIA

AZEVEDO, Aluísio. O Cortiço. São Paulo, Livraria Martins Editora, 1972.

Academia Brasileira de Letras- Aluísio Azevedo:


www.academia.org.br/academicos/aluisio-azevedo/biografia

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