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O ENSINO INDUSTRIAL-MANUFATUREIRO NO BRASIL:

ORIGEM E DESENVOLVIMENTO
Luiz Antônio Cunha

Introdução 2

O ensino de ofícios no império escravocrata 3

As escolas republicanas de aprendizes artífices 13

Os Pioneiros da Educação Nova e a dualidade 25

SENAI: iniciativa pública, controle privado 32

A unificação hegemonizada 40

A profissionalização fracassada no 2o grau 48

A profissionalização na LDB-96 e seus


desdobramentos 53

A auto-privatização do SENAI 58

Uma nova estrutura educacional ? 64

Bibliografia 65

Faculdade de Educação - UFRJ


Departamento de Administração Educacional

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INTRODUÇÃO

O ensino industrial-manufatureiro é um tema que tem sido quase ignorado nos estudos
sobre a gênese e as transformações da educação brasileira. Quando comparado com
outros temas, como o ensino superior, o ensino secundário e até a educação física, o
ensino industrial-manufatureiro aparece em nossa bibliografia como definida mais pela
omissão do que pelo conhecimento produzido a seu respeito.

Esse “espaço vazio” se explica, pelo menos em parte, pelo fato de que os historiadores da
educação brasileira se preocupam, principalmente, com o ensino que se destina às elites
políticas e ao trabalho intelectual, deixando o trabalho manual em segundo plano.
Quando a preocupação é com a “educação popular”, são focalizados programas e
atividades extra-escolares, notadamente os de iniciativa de organizações não
propriamente educativas. Nessas condições, o trabalho manual acaba sendo percebido,
em termos educacionais, em função da carência de educação geral, seja da mera
alfabetização, seja da escolarização obrigatória, mas incompleta.

Neste texto pretendo inverter tal pontos de vista, para tratar, afirmativamente, do ensino
industrial-manufatureiro, enquanto destinado ao trabalho manual. Em conseqüência,
ficarão de fora (ou serão mencionados de passagem) os segmentos também destinados à
educação profissional como os cursos superiores e as instituições dotadas de uma certa
ambigüidade, como as escolas técnicas de nível médio.1

Este texto trata dos processos de educação profissional no âmbito artesanal,


manufatureiro e industrial. Deixa de lado, portanto, os processos desenvolvidos na
produção agro-pecuária, na pesca, no comércio e nos serviços. A despeito dessa restrição
voluntária, considero que a educação artesanal, a manufatureira e a industrial têm uma
grande relevância para as demais porque elas foram assumindo, ao longo do tempo, um
papel de modelo para todas as outras. Neste sentido, os modelos de educação profissional
para todos os setores da produção passaram a ser buscados, por exemplo, nas escolas de
aprendizes artífices (criadas em 1909), nos centros de formação profissional do SENAI
(instituição criada em 1942) e nas escolas técnicas da rede federal (criadas também em
1942). Esse tipo de projeção pode ser apontado, especialmente, pelos seus efeitos
profundos sobre todo o sistema educacional na reforma decorrente da Lei de Diretrizes e
Bases do Ensino de 1o. e 2o. Graus (lei 5.692/71) e na criação do sistema paralelo de
educação profissional (decreto 2.208/97), que serão focalizados nos capítulos seguintes.

1- Embora seu currículo, seus destinatários e os postos para os quais formam sejam nitidamente de trabalho
intelectual, tanto o pensamento ingênuo quanto o sofisticado situam as escolas técnicas no âmbito do
trabalho manual.

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Antes de entrar diretamente no tema deste texto, vale a pena uma ou duas palavras sobre
alguns dos termos empregados acima.

A educação artesanal desenvolve-se mediante processos não sistemáticos, a partir do


trabalho de um jovem aprendiz junto a um mestre de ofício, em sua própria oficina, com
seus próprios instrumentos, e até mesmo morando em sua casa. Ajudando o mestre em
pequenas tarefas, que lhe são atribuídas de acordo com as exigências da produção, o
aprendiz vai dominando, aos poucos, o ofício. Se existe alguma norma reguladora da
aprendizagem artesanal, ela tem a ver com o controle que as corporações de ofício
exercem sobre o mercado de trabalho. Segundo algumas dessas normas, os mestres de
ofício ficam obrigados a obedecerem a critérios como o de número máximo de
aprendizes, tempo de aprendizagem, e outros.

A educação industrial desenvolve-se mediante processos sistemáticos e estritamente


regulamentados, destinados a produzir uma formação padronizada, de resultados
previsíveis e controláveis, em geral voltada para um grande número de jovens. A
educação profissional se desenvolve, de um modo geral, em ambientes especializados
como escolas e centros de formação profissional. Mesmo quando ocorre dentro de uma
fábrica, ela possui essas características. Os pressupostos da educação industrial são os
mesmos da produção fabril, isto é, a grande divisão do trabalho, particularmente a
separação entre a concepção, a gerência e a execução; a propriedade dos locais e dos
instrumentos de trabalho não é dos trabalhadores, assim como não são de sua propriedade
os produtos. Enquanto que na educação artesanal a finalidade, ao menos tendencial, é
que o aprendiz possa a vir a ser um mestre de ofício, que abra sua própria oficina, na
educação industrial a finalidade é a ocupação de um posto, como trabalhador assalariado,
numa divisão complexa de trabalho.

A educação manufatureira, por sua vez, ocupa uma posição intermediária entre as duas
outras. É o caso de processos educacionais orientados tanto para o trabalho artesanal
quanto para a produção industrial, ainda que incipiente. Um bom exemplo são as escolas
de aprendizes artífices, pelo menos nos primeiros anos, que ministravam um ensino
orientado tanto para atividades artesanais (como a sapataria) e industriais (a tornearia
mecânica). A serralheria era um ofício, ensino nessas escolas, que poderia servir tanto
para o artesanato quanto para a indústria.

O ENSINO DE OFÍCIOS NO IMPÉRIO ESCRAVOCRATA

Desde o início da colonização do Brasil, as relações escravistas de produção afastaram a


força de trabalho livre do artesanato e da manufatura. O emprego de escravos como
carpinteiros, ferreiros, pedreiros, tecelões, etc, afugentavam os trabalhadores livres dessas
atividades, empenhados todos em se diferenciar do escravo, o que era da maior
importância diante de senhores/empregadores, que viam todos os trabalhadores como

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coisa sua. Por isso, dentre outras razões, as corporações de ofícios (irmandades) não
tiveram, no Brasil Colônia, o desenvolvimento de outros países.

Com efeito, numa sociedade onde o trabalho manual era destinado aos escravos (índios e
africanos), essa característica "contaminava" todas as atividades que lhes eram
destinadas, as que exigiam esforço físico ou a utilização das mãos. Homens livres se
afastavam do trabalho manual para não deixar dúvidas quanto a sua própria condição,
esforçando-se para eliminar as ambigüidades de classificação social. Aí está a base do
preconceito contra o trabalho manual, inclusive e principalmente daqueles que estavam
socialmente mais próximos dos escravos: mestiços e brancos pobres.

Vejamos, a propósito, uma passagem de carta escrita por um observador da vida colonial,
argumentando contra os malefícios da escravidão:

"Por outro princípio são prejudiciais os negros no Estado do Brasil, e é que como
todas as obras servis e artes mecânicas são manuseadas por eles, poucos são os
mulatos e raros os brancos que nelas se querem empregar, sem excetuar aqueles
mesmos indigentes, que em Portugal nunca passaram de criados de servir, de
moços de tábua, e cavadores de enxada. Observa-se que o que aqui vem servindo
algum ministro é só bom criado enquanto não reflete que ele em casa de seu amo se
emprega naquele serviço que nas outras só são da repartição dos negros e povos
mulatos, motivo por que começa a perseguir logo o amo para que o acomode em
algum emprego público que não seja da repartição dos negros e tão publicamente
os empregam alguns amos, que se vêem perseguidos e mal servidos que os põem no
meio da rua; se porém os amos se demoram em dar este despacho, os criados se
antecipam, tendo por melhor sorte o ser vadio, o andar morrendo de fome, o vir
parar em soldado e às vezes em ladrão, do que servir um amo honrado que lhes
paga bem, que os sustenta, os estima, e isto por não fazerem o que os negros fazem
em suas casas." (Vilhena, 1921, p. 139-140)

Essa atitude parece ter sido comum tanto à colonização portuguesa quanto à espanhola na
América. É o que sugere uma das Cartas Persas, de Montesquieu, numa passagem onde o
filósofo francês satiriza o orgulho da pele branca que os homens livres, mas “invencíveis
inimigos do trabalho”, tinham de sua própria ociosidade:

"Um homem dessa importância, uma criatura assim perfeita, não trabalharia nem
por todos os tesouros do mundo, e jamais se arriscaria, por uma vil e mecânica
indústria,2 a comprometer a honra e dignidade de sua pele. Pois deve-se saber que,
quando alguém tem algum mérito na Espanha - como, por exemplo, quando pode
acrescentar às qualidades de que já falei a de ser dono de uma espada longa, ou a de
ter aprendido com o pai a arranhar um violão desafinado - pára de trabalhar: sua
honra exige o repouso de seus membros. Quem fica sentado dez horas por dia
alcança assim metade a mais de consideração do que alguém que passa apenas

2
- Atenção para o significado do termo indústria que, no século XVIII, correspondia a aptidão, arte,
engenho, inteligência, diligência.

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cinco horas sentado, porque é nas cadeiras que se adquire nobreza." (Montesquieu,
1991, p. 135-136)

Os dois textos transcritos acima sugerem que a rejeição era menos diante do trabalho
manual do que à condição social daqueles que o exerciam - os escravos e seus
descendentes -, que não tinham o mesmo sinal étnico da liberdade e da dignidade - a cor
da pele.

Assim, se havia a destinação do trabalho pesado e sujo (manual, evidentemente) ao


escravo havia, ao mesmo tempo, atividades manuais que os brancos livres queriam que
ficassem preservadas para si. Nesses casos, as corporações de ofício faziam normas
rigorosas, até mesmo com apoio das câmaras municipais, impedindo ou pelo menos
desincentivando o emprego de escravos como oficiais. Em decorrência, procurava-se
"branquear" o ofício, dificultando-o a negros e mulatos. Mouros e judeus, dotados,
também, de características étnicas "inferiores", eram arrolados nas mesmas normas
restritivas, embora fosse improvável que seu número no artesanato do Brasil colônia
merecesse cuidados especiais.

Com esse propósito, o compromisso de 1752 da Irmandade de São José (carpinteiros e


pedreiros) do Rio de Janeiro, além de proibir sua entrada, dizia:

"Todo irmão em que se notar raça de mulato, mouro ou judeu, será expulso da
Irmandade sem remissão alguma. O mesmo se estenderá de suas mulheres tendo
qualquer das sobreditas faltas."

Com o tempo, o rigor foi diminuindo, sendo a "falta" de características étnicas


apropriadas compensada por esmolas especiais à irmandade: comprava-se a branquitude.
A propósito, uma informação da Irmandade de São José, datada de 1820, é bem
elucidativa. A mesa da corporação informava um requerimento feito por um oficial
marceneiro, "pardo e de baixa condição", ao Senado da Câmara do Rio de Janeiro,
pedindo para ser examinado, de modo que pudesse obter o grau de mestre e abrir oficina
própria. A informação reafirmava aquela exigência de que para alguém ser examinado no
ofício de marceneiro e abrir loja precisava ser membro da Irmandade de São José, o que
era vedado a quem tivesse traço da "raça de mulato, mouro ou judeu". Caso contrário, só
poderia exercer o ofício enquanto assalariado de um mestre de ofício/irmão da entidade.
Mas, nesse caso, a irmandade, "conduzida pelo espírito de beneficência", estipulou uma
esmola especial para que o oficial mulato fosse aceito como irmão e, em decorrência,
pudesse ser examinado e abrir loja: enquanto os irmãos brancos pagavam 2$000 de taxa
de exame, os de "qualidade repugnante" ficavam obrigados a pagar 19$200, o que, no
entanto, não lhes dava direito a ocupar os cargos da irmandade.

Disputa análoga ocorreu na área da saúde, embora esse termo seja anacrônico quando
empregado para designar uma atividade profissional no período colonial. Até a
transferência da sede do reino português para o Brasil (1808), não havia ensino de
medicina e de cirurgia na Colônia. Todos os físicos eram formados na Europa - em
Coimbra e em Montpellier (França).

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Nessa época, o cuidado com a saúde era atribuição de curandeiros. A pequena quantidade
de médicos e cirurgiões se somava à sua subordinação social aos senhores da terra. Em
1794, no Rio de Janeiro, então sede do vice-reinado, havia apenas 9 físicos e 29
cirurgiões-barbeiros. Estes se submetiam a provas de habilitação nas práticas de sangria,
sarjação, aplicação de ventosas e extração de dentes, e eram os maiores concorrentes dos
físicos. Em termos da prestação de serviços, essa concorrência era especialmente danosa
para os físicos, pois aqueles freqüentemente não tinham escolaridade alguma, eram de
origem social baixa, havia até mesmo escravos e pretos forros entre eles. Competindo
com os médicos (formados em faculdades), diminuíam o prestígio destes, conspiravam
contra sua pretensão de remuneração "compatível" com sua formação e dificultavam o
reconhecimento social do saber obtido na Europa, justamente numa época em que os
conhecimentos científicos passavam a ser amplamente empregados pela medicina
(microscópios, vacinas...). Não bastasse essa concorrência direta dos cirurgiões-
barbeiros, a arte da cura era também praticada por outros profissionais, como os
boticários, os "anatômicos", os "entendidos", os "curiosos", sem falar nos já mencionados
curandeiros. A partir da criação de cadeiras para o ensino de medicina e de cirurgia no
Rio de Janeiro e na Bahia (origem das faculdades), os profissionais de nível superior
desenvolveram uma longa e difícil luta pelo controle do “mercado” da arte da cura, o que
conseguiram pela atuação do Estado na regulamentação da profissão e pela proibição do
charlatanismo, definido como crime pelo código penal.

Essa disputa mostra que uma atividade que exige o uso habilidoso das mãos - a cirurgia -
pode ter baixo ou alto prestígio, conforme seja desenvolvida por uma ou por outra
categoria social. No Brasil, ela passou a ter prestígio tão mais alto quanto mais exclusiva
foi a categoria social que a praticava. É interessante notar que, atualmente, a consciência
social não considera a cirurgia como "trabalho manual", mesmo que seu praticante tenha
nas mãos seu principal instrumento.

Tanto no caso dos carpinteiros como no dos físicos, a defesa do branqueamento contra o
denegrimento da atividade era, então, o complemento dialético do desprezo pelo trabalho
exercido pelos escravos (pelos negros). Uma e outra expressavam, ideologicamente, não
a discriminação do trabalho manual das demais atividades sociais, simplesmente, mas,
sim, a daqueles que o executavam.

É por isso que considero mais correto dizer que foi a rejeição do trabalho vil (isto é: reles,
ordinário, miserável, insignificante, desprezível, infame) que levou ao preconceito contra
o trabalho manual. Se um dado trabalho manual não fosse socialmente definido como vil,
ele não seria objeto de rejeição, como acontece, atualmente, com o trabalho do cirurgião.

Assim, não é de se estranhar que certas ocupações não atraíssem muitas pessoas para
desempenhá-las. O resultado foi o trabalho e a aprendizagem compulsório(a): ensinar
ofícios a crianças e jovens que não tivessem escolha.

Desde os tempos coloniais, quando um empreendimento manufatureiro de grande porte,


como os arsenais de marinha, por exemplo, exigiam um contingente de trabalhadores não

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disponíveis, o Estado coagia homens livres a se transformarem em artífices. Não fazia
isso, decerto, com quaisquer homens livres, mas com aqueles que social e politicamente
não estavam em condições de opor resistência: como na formação das guarnições
militares e navais, prendiam-se os miseráveis. Procedimentos semelhantes eram adotados
para com os menores destinados à aprendizagem de ofícios: os órfãos, os abandonados,
os desvalidos, que eram encaminhados pelos juizes e pelas Santas Casas de Misericórdia
aos arsenais militares e de marinha, onde eram internados e postos a trabalhar como
artífices, até que, depois de um certo número de anos, escolhessem livremente onde,
como e para quem trabalhar.

Uma instituição exemplar foi o Colégio das Fábricas, instituição criada em 1809 no Rio
de Janeiro para abrigar os órfãos da Casa Pia de Lisboa, trazidos na frota que transportou
a família real e sua comitiva para o Brasil. Eles aprendiam diversos ofícios com artífices
que vieram na mesma frota.

Se o Colégio das Fábricas não foi o primeiro estabelecimento de ensino profissional no


Brasil, nem mesmo o que primeiro abrigou órfãos com esse propósito, ele foi a referência
para os outros que vieram a ser instalados.3 O padrão foi começar com o ensino de
ofícios, em geral fora do estabelecimento (no cais, no hospital, nos arsenais militares ou
de marinha). Mais tarde, foi acrescido o ensino das "primeiras letras", depois todo o
ensino primário.

Mas, a formação do segmento educacional voltado para o ensino de ofícios esteve sempre
apartado do segmento voltado para a educação geral. Essa separação original fica bem
ilustrada com a criação da Escola Real das Ciências, Artes e Ofícios.

Em 1816, o embaixador de Portugal na França recebeu a incumbência de recrutar uma


missão artística para o Brasil. Dirigida pelo cavalheiro Joachin Lebreton, presidente da
seção de Belas Artes do Instituto de França, a missão era composta de 10 artistas que
atuavam nas áreas de arquitetura, escultura, pintura e gravura. Vieram, também, alguns
oficiais mecânicos: um serralheiro, um ferreiro, dois carpinteiros de carros e dois
curadores de peles e curtidores.

Logo após desembarcar, Lebreton escreveu uma carta ao Ministro do Reino propondo a
criação de uma escola que tivesse um setor para o ensino das Belas Artes e outro para as
artes mecânicas, articulados ambos pelo aprendizado do desenho. Seriam utilizados no
ensino os artistas franceses que vieram na missão, com a ajuda de pelo menos um artista
português, e os oficiais mecânicos que os acompanharam. Lebreton propunha, também, a
vinda da Europa de 100 operários dos mais diferentes ofícios. Após o aprendizado de

3- O tema deste texto leva a deixar de lado as iniciativas joaninas na área agrícola. Pautada pela concepção
mercantilista, que enfatizava a agricultura e o comércio "internacional" como fonte da riqueza das nações,
o governo do príncipe João criou o Jardim Botânico do Rio de Janeiro - uma verdadeira estação agrícola
experimental - e seu congênere da Bahia, assim como escolas de agricultura em diversas províncias.
Embora minoritária, a iniciativa de educação manufatureira do Colégio das Fábricas prenunciava a
orientação que viria a se mostrar predominante, pelo menos na esfera ideológica, a partir das primeiras
décadas do século XX: o industrialismo voltado para o mercado interno.

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disciplinas como desenho de figura e de ornatos, aritmética e geometria prática, os alunos
seriam encaminhados para ateliês práticos, montados pelos operários franceses, onde
seguiriam o processo de aprendizagem pelos padrões tradicionais: auxiliando o artífice
em tarefas cada vez mais complexas, até que fosse considerado tão capaz quanto o
mestre, mediante processos mais ou menos formalizados.

Dois meses depois de feita a sugestão, uma carta régia mandava criar a Escola Real das
Ciências, Artes e Ofícios, com a dupla finalidade proposta por seu idealizador. No
entanto, a instituição não chegou a funcionar. Em 1820, ela foi substituída pela Academia
de Artes (logo depois qualificada de Belas, em oposição às artes mecânicas que ficaram
relegadas às instituições assistenciais, a exemplo do Colégio das Fábricas).

Algumas décadas se passaram até que surgiram novas instituições


assistenciais/educacionais voltadas para a formação de artífices.

Entre 1840 e 1856, foram criadas as Casas de Educandos Artífices por 10 governos
provinciais, que adotaram o modelo de aprendizagem de ofícios vigente no âmbito
militar, inclusive os padrões de hierarquia e disciplina. Algumas décadas mais tarde
(1875), o mais importante estabelecimento desse tipo, o Asilo dos Meninos Desvalidos,
foi criado no Rio de Janeiro. Os “meninos desvalidos” eram os que, de idade entre 6 e 12
anos, fossem encontrados em tal estado de pobreza que, além da falta de roupa adequada
para freqüentar escolas comuns, viviam na mendicância. Eles eram encaminhados pela
autoridade policial a esse asilo, onde recebiam instrução primária, seguida de disciplinas
especiais (álgebra elementar, geometria plana e mecânica aplicada às artes; escultura e
desenho; música vocal e instrumental) e aprendiam um dos seguintes ofícios: tipografia,
encadernação, alfaiataria, carpintaria, marcenaria, tornearia, entalhe, funilaria, ferraria,
serralheria, courearia ou sapataria. Concluída a aprendizagem, o artífice permanecia mais
três anos no asilo, trabalhando nas oficinas, com o duplo fim de pagar sua aprendizagem
e formar um pecúlio que lhe era entregue ao fim do triênio.

No período imperial, enquanto que as instituições criadas, mantidas e administradas pelo


Estado voltavam-se, predominantemente, para a formação compulsória da força de
trabalho manufatureira a partir dos miseráveis, as iniciativas de particulares eram
destinadas, principalmente, ao aperfeiçoamento dos trabalhadores livres, os que tinham
disposição favorável para receber o ensino oferecido.

A partir de meados do século XIX, com o aumento da produção manufatureira no Brasil,


começaram a ser organizadas sociedades civis destinadas a amparar órfãos e/ou ministrar
ensino de artes e ofícios. Os recursos dessas sociedades provinham, primeiramente, das
quotas pagas pelos sócios ou doações de benfeitores. Sócios e benfeitores eram membros
da burocracia do Estado (civil, militar e eclesiástica), nobres, fazendeiros e comerciantes.
O entrecruzamento dos quadros de sócios com os quadros da burocracia estatal permitia a
essas sociedades se beneficiarem de dotações governamentais, as quais assumiam
importante papel na manutenção das escolas de ofícios. Houve, também, sociedades que
tinham nos próprios artíficies seus sócios. Mas, essas sociedades só subsistiram quando

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conseguiram organizar um quadro de sócios beneméritos que as dirigiam e mantinham
com seus próprios recursos ou com subsídios governamentais que atraíam.

As mais importantes sociedades desse tipo foram as que criaram e mantiveram liceus de
artes e ofícios. O primeiro desses liceus surgiu no Rio de Janeiro, em 1858.

Em 1857 foi organizada, na capital do país, a Sociedade Propagadora de Belas-Artes, por


iniciativa do Coronel Francisco Joaquim Bethencourt, ex-aluno e professor da cadeira de
arquitetura da Academia de Belas-Artes.O principal objetivo dessa sociedade de direito
civil era o de "fundar e conservar o Liceu de Artes e Ofícios, em que se proporcionasse a
todos os indivíduos, nacionais e estrangeiros, o estudo de belas-artes e sua aplicação
necessária aos ofícios e indústrias, explicando-se os príncipios científicos em que ela se
baseia."

Os recursos materiais necessários ao funcionamento do liceu resultavam de doações dos


sócios, em dinheiro e em mercadorias, e, principalmente, de subsídios do Estado,
conseguidos, também, pelos sócios, muitos deles altos funcionários da burocracia do
Estado ou parlamentares.

Mas, é provável que parcela substancial dos recursos do liceu resultasse de subsídios
governamentais, conseguidos pelos sócios diretamente (quando eram, também, altos
funcionários) ou indiretamente, através de discursos na assembléia, campanhas na
imprensa e solicitações pessoais.

A importância dos subsídios do Estado pode ser percebida no fechamento das aulas do
liceu, de 1864 a 1867, porque lhe foram negadas as verbas prometidas. As aulas só
reabriram quando o liceu passou a contar de novo com subsídios orçamentários. Mesmo
assim, os recursos eram insuficientes: quando instalou um curso de desenho para "as
jovens e senhoras" , em 1880, foi necessário fazer uma campanha na imprensa para pedir
auxílios financeiros "a toda a população".

Assim, parece que o Liceu de Artes e Ofícios do Rio de Janeiro era um projeto educativo
não completamente assumido pelo Estado. Entretanto, isso não impediu que outros
"mecenas", provavelmente pertencente à sua própria burocracia, doassem recursos ao
liceu não recursos financeiros, mas a sua própria força de trabalho. Era o caso dos
professores, todos eles lecionando gratuitamente. Doação importante, a ponto de levar
um ministro de Estado a afirmar que "na dedicação patriótica desses beneméritos, pois
todos servem gratuitamente, repousa a vida e o futuro deste útil estabelecimento."

O liceu começou a funcionar em 1858, no ano seguinte ao da fundação da Sociedade


Propagadora de Belas-Artes. Seu regimento dizia qual o principal objetivo: "O Liceu de
Artes e Ofícios instituído pela Sociedade Propagadora das Belas-Artes tem por missão
especial, além de disseminar pelo povo, como educação, o conhecimento do belo,
propagar e desenvolver, pelas classes operárias, a instrução indispensável ao exercício
racional da parte artística e técnica das artes, ofícios e indústrias."

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Os cursos eram, em princípio, abertos, fechados apenas aos escravos. Dizia o regimento:
"O ensino será gratuito, não só para os sócios e seus filhos, mas para todo e qualquer
indivíduo, livre ou liberto, que não tiver contra si alguma circunstância que torne
incoveniente a sua admissão, ou o constitua impossível ao estabelecimento". Para
facilitar o acesso, além de gratuitas, as aulas deveriam ser dadas à noite, "à exceção das
que forem incompatíveis com o uso da luz artificial".

O ensino das artes deveria ser completado em oficinas especiais,"dirigidas por mestres
competentes, nas quais os alunos aplicarão a teoria ou preceitos que tiverem aprendido
nas aulas ao fabrico dos seus artefatos". Entretanto, a insuficiência de recursos retardou
bastante a abertura de oficinas. Até o fim do Império, o liceu dispunha, além das salas de
aula, apenas de um gabinete de física, um laboratório de química mineral e outro de
química orgânica.

Parafraseando Suckow da Fonseca, pode-se dizer que o liceu era só de artes, não de
ofícios, pois não dispunha de oficinas.

Foi só em 1889 que o Visconde de Ouro Preto, conselheiro do Império e ministro do


último Gabinete, conseguiu reunir os recursos necessários à criação das primeiras
oficinas.

O advento do regime republicano foi benéfico para o liceu. Os novos dirigentes do


Estado criaram mecanismos jurídicos e fiscais que ampliaram as isenções e facilitaram as
doações à sociedade mantenedora. Assim, mesmo tendo suas instalações destruídas por
um incêndio, em 1893, o liceu pôde se recuperar, ampliar o número de alunos e oferecer
cursos mais ligados à produção fabril, em particular no setor das artes gráficas, cujas
oficinas foram inauguradas em 1911.

O Liceu de Artes e Ofícios de São Paulo foi, como o do Rio de Janeiro, criado por uma
sociedade civil. Em 1873, foi fundada na capital paulista, a Sociedade Propagadora da
Instrução Popular, com 131 sócios inscritos. Os membros de sua primeira diretoria eram
pertencentes, ao mesmo tempo, à burocracia do Estado e ao parlamento, conforme o
padrão seguido pela congênere carioca.

O objetivo da Sociedade era, primeiramente, a difusão do ensino primário numa época


em que ele era ainda bastante restrito. O fato de não ter sido criado pelo Estado era
motivo de orgulho: "A Propagadora é a obra do povo, pelo povo e para o povo." Decerto,
não era o mesmo o povo que instalava a sociedade, o que ministrava as aulas, o que as
recebia e o que delas se beneficiava direta ou indiretamente. Confudidos todos, via-se a
"iniciativa popular" como força propulsora da igualdade, da civilização e do progresso.

A primeira atividade concreta da Sociedade foi a instalação das aulas do curso primário,
que começaram a funcionar já em 1874. Elas eram noturnas, gratuitas e a Sociedade
distribuía aos alunos livros, penas, papel e tinta. As disciplinas, lecionadas inicialmente
para cerca de 100 alunos, eram as seguintes: primeiras letras,caligrafia, aritmética,
sistema métrico e gramática portuguesa.

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Em 1882, a Sociedade instalou uma nova escola noturna, o Liceu de Artes e Ofícios de
São Paulo, com o objetivo de" ministrar ao povo os conhecimentos necessários às artes e
ofícios, ao comércio, à lavoura e às indústrias" . O ensino primário seria, a partir dessa
data, não só mantido como ampliado. Prometia-se a criação de novos cursos de comércio
e agricultura, bem como, no próprio liceu, de aulas adicionais de portugês, francês,
inglês, geografia, cosmografia, história universal, história pátria, história da arte e da
indústria, estética, higiene, anatomia, psicologia, direito natural e constitucional,
economia política.

Além das contribuições de seus sócios, a Sociedade recebia donativos regulares da Loja
Maçônica América, donativos de sócios beneficiários e, a partir de 1884, passou a ser
subsidiada pelo governo da província.

As precárias estatísticas dão conta que 9.608 alunos passaram pelas aulas da sociedade,
de 1873 a 1893. No período que vai de 1885 a 1888, os dados estão discriminados por
ano. Foi o seguinte o número de alunos do Liceu de Artes e Ofícios de São Paulo nesse
período:

1885 - 511 alunos


1886 - 594 alunos
1887 - 680 alunos
1888 - 738 alunos

A proclamação da república foi bastante propícia ao desenvolvimento do liceu paulista.


Muitos de seus sócios, republicanos, ocuparam cargos de destaque no governo estadual,
fazendo com que as doações e os subsídios crescessem. Nos últimos anos do Império, as
subvenções do governo provincial montavam a 12 contos de réis, anualmente. Em 1896,
elas saltaram para 50 contos e não pararam de crescer.

O Liceu de Artes e Ofícios da Bahia foi criado 14 anos depois do liceu do Rio de Janeiro,
mas por um caminho diferente. A sociedade mantenedora do liceu bahiano, como a do
pernambucano, contava com a participação de artífices, embora não dispensasse, como as
demais, o subsídio governamental.

Não foi possível precisar o grau de participação dos artífices na criação do Liceu de Artes
e Ofícios baiano. Uma fonte diz que ela foi criada "por iniciativa dos operários, sob o
prestígio oficial do Desembargador João Antônio de Araújo Freitas Henrique". Outra
fonte afirma que ela foi fundada pelo desembargador, "de acordo com o grupo de artistas
nacionais e estrangeiros, residentes na Bahia e fora dela"; já outra fonte coloca toda
iniciativa de criação do liceu em Freitas Henrique. O desembargador, também
conselheiro e presidente da província, visaria à formação profissional dos filhos de
escravos, libertos pela Lei do Ventre Livre, de iniciativa do Visconde do Rio Branco
(1871). Os estatutos da Sociedade teriam sido encomendados por Freitas Henrique a
Frederico Marinho de Araújo, considerado o advogado dos escravos e criador das
sociedades libertadoras surgidadas na Bahia a partir de 1870.

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De uma maneira ou de outra, a fundação da Sociedade Liceu de Artes e Ofícios contou
com a participação de artífices. Foram eles que aprovaram, em assembléia na Sociedade
Montepio dos Artistas, os estatutos, embora o liceu acabasse sendo criado por decreto do
presidente da província, Joaquim Pires de Machado Portella, a 9 de março de 1872, e
inaugurado a 20 de outubro. Em 3 de novembro deste ano, mais de 200 oficiais
compuseram uma lista com os 15 mais votados. Enviada a lista ao presidente da
província, este tirou dela o nome de Freitas Henriques, feito presidente do Liceu de Artes
e Ofícios da Bahia por novo decreto.

A Sociedade, em cujo quadro se alistaram 159 sócios efetivos no primeiro ano de


existência, tinha dois grandes objetivos: "1) promover a instrução técnica e profissional, a
par da instrução literária para seus membros e filhos destes; 2) observar a prática da
fraternal beneficência". Este segundo objetivo consistia em prestar amparo financeiro aos
sócios, quando estivessem doentes ou inválidos, além de auxílio às famílias para enterro
dos associados. Em troca desses benefícios e da instrução, eles pagavam uma jóia e
mensalidades. Os alunos que não fossem filhos dos sócios receberiam instrução gratuita,
contrapartida do liceu ao subsídio governamental.

Em 3 de maio de 1873, foram abertos os cursos, em sede provisória. Os 146 primeiros


alunos, quase todos filhos de sócios, matricularam-se nas aulas de primeiras letras,
desenho, álgebra, geometria aplicada à arte, francês, inglês, latim, geografia, história e
gramática filosófica. As aulas funcionavam nos períodos diurno e noturno, sendo a de
desenho a mais procurada.

A partir daí, a instituição cresceu bastante em quantidade e qualidade. Ainda na década


de 1870, por decreto de Pedro II, passou a denominar-se Imperial Liceu de Artes e
Ofícios da Bahia.

Mas, a julgar pela opinião de um presidente da província, não foram os artífices os


responsáveis por esse crescimento. Seu comentário a respeito do relatório do vice-
presidente do Liceu de Artes e Ofícios é elucidativo:

"Apenas há inscritos, como sócios efetivos, 159 artistas. Lamenta o vice-presidente


em seu relatório que não tenham eles pressurosos se alistado a prestar a
coadjuvação e esfoços, de que tanto carece esta recente sociedade, para cerca-se do
prestígio, e superar as dificuldades naturais em começo. E com razão é feita essa
queixa pela vice-presidência; porquanto, se não forem os artistas os primeiros a
pugnar de alma e coração pela prosperidade desse belo Instituto; se não
apresentarem o escudo de uma união sincera contra os embaraços ante os quais
muitas dessas associações têm naufragado, como esperar que os poderes do Estado
e o público lhe dispensem a proteção de que não podem prescindir? O apelo do
vice-presidente é justo, e confio que não será em vão: que as artes, que nos países
civilizados, dando tanta expansão à indústria e ao comércio, profusamente
concorrem para benefício da humanidade e glória dos Governos e dos povos, não

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perderão por certo por indiferentismo de seus cultores nesta província o ensejo de
se propagarem com esplendor por meio do Liceu de Artes e Ofícios."

Em 1891, a sociedade contava com 1.704 sócios, sendo 1.607 efetivos, 16 beneméritos e
81 honorários. Neste ano, o liceu já funcionava na sede própria, antigo Solar dos Condes
da Ponte (Paço Saldanha), onde havia cinco oficinas: escultura, encadernação,
marcenaria, douração e pintura decorativa.

Apesar da multiplicação do quadro de sócios efetivos-fonte dos candidatos potenciais ao


ensino do liceu-, do número de disciplinas e da instalação de oficinas, o ensino
propriamente profissional deixava muito a desejar, pelo menos até o fim do período
imperial. É o que se deduz de relatório do vice-presidente da província, depois de
destacar os grandes serviços que o Liceu de Artes e Ofícios estava prestando "à
população":

"É entretanto para lamentar que o ensino oficinal , que é um dos fins principais da
instituição, constitua ainda a parte mais imperfeita e insuficiente do ensino no liceu.
Dado em quatro oficinas que o estabelecimento possui, tem sido pouco produtiva a
despesa com ela feita, por terem os respectivos mestres perdido o interesse pela arte
e pelo desenvolvimento de seus discípulos, segundo declara o diretório, chegando
as ditas oficinas, pela falta de trabalho escolhido, caprichoso, constante e bem
encaminhado, a não poder competir com as oficinas externas".

Essa queixa, que viria a se repetir vezes sem conta, aponta para a dificuldade de se
manterem oficinas para o ensino de ofícios fora do ambiente e das relações vigentes na
produção. Foi esse o caso do desinteresse dos mestres, acomodados a um emprego que
não dependia da produção orientada para o lucro de um empreendedor privado? Esse
desinteresse dos mestres teria algo a ver com o desinteresse dos artífices em se filiar em à
associação? Seriam um e outro formas diferentes do mesmo fenômeno, a rejeição da
força de trabalho manufatureira em assumir a reprodução ampliada de sua própria
condição social ?

No período do Império, tanto as iniciativas do Estado voltadas para o ensino de ofícios,


quanto as das sociedades civis, eram legitimadas por ideologias que pretendiam: a)
imprimir a motivação para o trabalho; b) evitar o desenvolvimento de idéias contrárias à
ordem política, de modo a não se repetir no Brasil as agitações que ocorriam na Europa;
c) propiciar a instalação de fábricas que se beneficiariam da existência de uma oferta de
força de trabalho qualificada, motivada e ordeira; e d) favorecer os próprios
trabalhadores, que passariam a receber salários mais elevados, na medida dos ganhos de
qualificação. Ao fim do Império, com a chegada ao Brasil dos padres salesianos, um
novo elemento ideológico foi incorporado a esse conjunto - o do ensino profissional
como antídoto ao pecado.

Essas instituições e essa ideologia constituíram o legado do Império à República, no que


se refere ao ensino de ofícios manufatureiros.

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AS ESCOLAS REPUBLICANAS DE APRENDIZES ARTÍFICES

Foi dos positivistas que partiu a primeira manifestação havida no regime republicano
com respeito à formação da força de trabalho, particularmente no tocante à aprendizagem
de ofícios manufatureiros.

Logo após a proclamação da República, ainda em dezembro de 1889, Raimundo Teixeira


Mendes, um dos principais dirigentes do Apostolado Positivista, entregou ao "cidadão
ministro da guerra" Benjamin Constant um memorial em nome de cerca de 400 operários
das oficinas do governo no Rio de Janeiro. Ele continha um plano para "incorporar à
sociedade o proletariado a serviço da República", como modelo a ser seguido por todos
os empregadores. Propunha medidas como o estabelecimento do salário-mínimo, a
remuneração adicional em função da produtividade, o descanso semanal, as férias
remuneradas, a aposentadoria, a redução da jornada de trabalho para sete horas, as
licenças para tratamento de saúde, a regulamentação da aprendizagem de ofícios, e
outras.

O memorial faz referência a dois problemas de ordem geral, que afetariam a sociedade
como um todo. Primeiro, as necessidades da produção, em particular a crescente
demanda da indústria moderna que "vai exigindo do proletário cada vez maior instrução
para bem manejar as máquinas". Segundo, as necessidades do Estado, que, "exigindo que
cada cidadão cumpra espontaneamente o seu dever, vão impondo a cada um maior grau
de moralidade e de instrução para a prática e o conhecimento do mesmo dever". Os
proletários não poderiam, então, ser "moralizados" nem "instruídos" devido a diversos
impedimentos materiais e suas repercussões morais: a mulher precisava trabalhar para
ajudar a sustentar a prole e, assim, não tinha tempo nem disposição para "educar os
filhos, amparar os anciãos e confortar os esposos"; os filhos precisavam trabalhar para
viver, não sobrando ocasião para serem educados; os velhos não podiam ser amparados
em meio a uma existência miserável, deixando, então, de ser, no lar, "o melhor incentivo
para educar-nos e manter-nos no culto e na dedicação da Pátria".

A solução para ambos os problemas consistiria em "dignificar a pobreza, eliminando dela


a miséria". Para isso, seria preciso que houvesse uma nova concepção de salário, não
mais entendido como a paga do trabalho, mas, sim, como o "subsídio livremente dado
pela sociedade a cada cidadão, a fim de poder este manter a família, que é a base de toda
a ação cívica". As famílias ricas é que livremente, deveriam sustentar as famílias pobres,
em nome da sociedade, de modo que estas pudessem prestar os serviços que a Pátria e a
Humanidade exigissem delas. Se assim se fizesse, a Ordem e o Progresso estariam
assegurados. A Ordem, porque ao dever dos ricos de darem subsídio aos proletários,
corresponderia o dever destes de limitar suas pretensões ao seu destino. O Progresso, pois
o trabalho é um dos deveres produtivos dos proletários.

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A operacionalização da proposta consistiria na divisão do salário a ser pago a cada
trabalhador em duas partes. Uma (o salário mínimo) deveria ser suficiente para garantir
as finalidades morais resultantes da capacidade do chefe de manter, apenas com seu
trabalho, todos os demais membros de sua família, permitindo à esposa e aos avós
cumprirem seu papel moralizador. A segunda parte deveria ser variável, de acordo com a
produtividade individual, de modo que se mantivesse a "justa emulação entre os
trabalhadores" e se garantisse a "perfeição e agilidade dos operários".

No que concerne à aprendizagem de ofícios, os positivistas defendiam que as oficinas do


Estado deveriam ter apenas aprendizes maiores de 14 anos. Eles só compareceriam às
oficinas para seu trabalho/estudo durante quatro horas por dia, cinco dias por semana. Os
aprendizes que tivessem algum membro da família trabalhando nessas oficinas não
receberiam nenhum pagamento. Os demais receberiam uma quantia tal que, somada ao
salário do chefe da sua família, resultasse num valor igual à parte fixa do salário pago
pelo Estado aos seus operários. Os aprendizes seriam admitidos mediante requerimento
de suas mães e depois de prestarem concurso sobre as matérias ensinadas nas escolas
primárias públicas.

O memorial manifestava a preocupação para com o tempo livre para os aprendizes


absorverem a educação materna, no sentido da moralização; de assegurar a instrução
primária, instituindo o concurso para ingresso; de pagar-lhes apenas o necessário para a
complementação do salário de seu pai, evitando a tentação de alguns enriquecerem às
custas do trabalho dos aprendizes; de valorizar a função das mães como educadoras, tanto
no lar como no encaminhamento da instrução profissional dos filhos.

Essas medidas não foram aceitas pelo governo, mas, indiretamente influenciaram o
decreto que limitou o emprego de menores nas fábricas da capital federal e na
transformação do Asilo de Meninos Desvalidos no Instituto de Educação Profissional.
Vejamos seus pontos principais.

O decreto nº 1.313, de 17 de janeiro de 1891, pretendia "impedir que, com prejuízo


próprio e da prosperidade futura da pátria" fossem "sacrificadas milhares de crianças",
proibindo o trabalho de menores de 12 anos, de ambos os sexos, nas fábricas do Distrito
Federal. Fazia exceção para as tecelagens, que podiam empregar crianças de 8 a 12 anos,
a título de aprendizado. Mesmo assim, estas tinham seu tempo de trabalho limitado de 3 a
4 horas diárias, conforme a idade. As meninas de 12 a 15 anos e os meninos, de 12 a 14,
só poderiam trabalhar sete horas por dia, nunca mais de quatro horas consecutivas. Para
todos os menores de 15 anos ficava proibido o trabalho noturno, assim como nos
domingos e nos feriados nacionais, mesmo que fosse na limpeza das oficinas. O decreto
descia a minúcias no tocante às condições higiênicas e de segurança, vedando a operação
de certas máquinas e a manipulação de produtos explosivos e corrosivos. Para a garantia
do cumprimento desses dispositivos, criava-se o cargo de inspetor geral, diretamente
subordinado ao Ministério do Interior, com o poder de aplicar multas aos infratores.

Na mesma direção de retardar o ingresso das crianças na força de trabalho e de propiciar


maior eficácia na socialização familiar, o decreto 722, de 30 de janeiro de 1892,

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transformou o Asilo de Meninos Desvalidos no Instituto de Educação Profissional,
incorporando a ele a Casa de São José, outra entidade assistencial pública. As crianças
menores de 14 anos não podiam mais ser encaminhadas às instituições de aprendizagem
profissional, devendo ser abrigadas em estabelecimentos a eles destinados. Os maiores de
14 anos deveriam percorrer toda a série dos ofícios, depois do que escolheriam um para
se especializarem, conforme suas inclinações.

Como contraparte dessa instituição pública e carioca, destacou-se outra, privada e


paulista.

Embora criado em 1882, como entidade educacional privada, a ascensão do Liceu de


Artes e Ofícios de São Paulo deu-se em 1896, já no regime republicano e federativo. Isso
aconteceu dois anos após a inauguração da Escola Politécnica no estado, quando doações
significativas foram feitas pelo governo paulista, na forma de subsídios financeiros e bens
imóveis.4 Um amplo prédio foi construído, passando a ser ocupado em 1900, permitindo
a ampliação do número de alunos e a instalação de diversas oficinas. Nesse arrancada,
desempenhou um papel especial o arquiteto Ramos de Azevedo, professor da Escola
Politécnica, que, no liceu, foi vice-diretor (1900 a 1917) e diretor (1917 a 1928).

Em 1905, o Liceu compreendia: 6 classes para o ensino de primeiras letras, língua


portuguesa, aritmética e noções de álgebra, de geometria e de contabilidade; 5 classes
para o ensino de desenho com aplicações às artes e às indústrias; 1 classe para o ensino
de modelagem em barro, gesso, etc; 3 classes para a instrução profissional, abrangendo o
corte e a sambladura de madeiras para aplicação na carpintaria, marcenaria e ebanistaria,
a talha de ornamentação em relevo sobre madeiras, a união e o curvamento de ferro para
aplicação na calderaria, na forjaria e na serralheria.

As vagas que se abriam nas atividades especificamente escolares eram preenchidas ao


início de cada semestre, mas, nas oficinas, a entrada podia acontecer em qualquer época
do ano. O aluno era admitido numa oficina como aprendiz, recebendo as noções gerais
sobre a tecnologia correspondente à especialização escolhida antes de sua admissão. O
aprendiz era colocado ao lado de um operário adulto a quem começava por auxiliar, na
expectativa de se tornar um artífice efetivo como ele. Recebia, de início, um pequeno
salário, que ia aumentando até alcançar o de um trabalhador comum. As oficinas foram
montadas como verdadeiros estabelecimentos industriais, com a contabilidade organizada
à sua imagem. Para que os resultados financeiros não fossem negativos, procurava-se
produzir mercadorias vendáveis, assim como aceitavam-se encomendas remuneradoras.

A articulação entre os professores da Escolas Politécnica e os professores e dirigentes do


Liceu de Artes e Ofícios de São Paulo, que não tem similar em nenhum outro ponto do
país, foi da maior importância para o surgimento do SENAI, já nos anos 40, como
veremos adiante.

4- No triênio 1906/1908, o Liceu recebeu 284 contos de verbas do governo estadual, 21 contos da
prefeitura municipal e apenas 15 contos da contribuição dos sócios da entidade mantenedora, a Sociedade
Propagadora da Instrução Popular. Mesmo assim, a participação de particulares não foi desprezível: em
1910, o liceu recebeu o oferta de fornecimento gratuito de energia elétrica para as oficinas.

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Em 1909, o Brasil passava por um surto de industrialização, quando as greves de
operários foram não só numerosas, como articuladas, umas categorias paralisando o
trabalho em solidariedade a outras, lideradas pelas correntes anarco-sindicalistas. Neste
contexto, o ensino profissional foi visto pelas classes dirigentes como um antídoto contra
a "inoculação de idéias exóticas" no proletariado brasileiro pelos imigrantes estrangeiros,
que constituíam boa parte do operariado.

Embora eufemístico, a justificativa ao decreto de criação das escolas de aprendizes


artífices anunciava esses objetivos ideológicos:

"O aumento constante da população das cidades exige que se facilite às classes
proletárias os meios de vencer as dificuldades sempre crescentes da luta pela
existência; (...) para isso se torna necessário, não só habilitar os filhos dos
desfavorecidos da fortuna com o indispensável preparo técnico e intelectual, como
fazê-los adquirir hábitos de trabalho profícuo, que os afastará da ociosidade, escola
do vício e do crime." (grifo meu)

Convergente com essa ideologia conservadora havia outra, progressista - a do


industrialismo. Ela consistia na atribuição à indústria de valores como progresso,
emancipação econômica, independência política, democracia e civilização. Seus adeptos
atribuíam à indústria a função de elevar o Brasil ao nível das nações civilizadas, pois ela
permitiria ao país possuir os atributos próprios dos países da Europa e dos Estados
Unidos. Só a indústria poderia resolver os problemas econômicos que afligiam o Brasil,
pois só ela seria capaz de propiciar o desenvolvimento das forças produtivas, estabilizar a
economia e levar o progresso a todas as regiões.

Ademais, o ensino industrial era entendido pelos industrialistas como um poderoso


instrumento para a solução da "questão social". Mesmo com a intensificação dos
conflitos sociais, os industrialistas brasileiros diziam que o Estado deveria cogitar do
ensino obrigatório antes mesmo de instituir leis sociais. Ao lado do esperado efeito
moralizador sobre as classes pobres, o ensino industrial era tido como dotado de outras
virtualidades corretivas. Era o que defendia João Pinheiro, importante líder industrialista
mineiro, em 1906, quando presidente de seu estado, ao propor a criação desse tipo de
ensino para combater o bacharelismo que estaria grassando entre as camadas médias.

A tradução dessa ideologia em medidas de política educacional esteve ligada à atuação


decisiva de Nilo Peçanha. Enquanto Presidente do Estado do Rio de Janeiro, ele baixou
um decreto criando, em 1906, cinco escolas profissionais - três para o ensino
manufatureiro (em Campos, Petrópolis e Niterói) e duas para o ensino agrícola (em
Paraíba do Sul e Resende). Elas foram inspiradas no Instituto Profissional Masculino, da
capital federal, nova denominação do Asilo de Meninos Desvalidos (depois Instituto de
Educação Profissional).

Em 1909, já Presidente da República, Nilo Peçanha baixou o decreto 7.566, de 23 de


setembro, criando 19 escolas de aprendizes e artífices, situadas uma em cada estado. Essa

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escolas formavam, desde sua criação, todo um sistema escolar, pois estavam submetidas
a uma legislação específica que as distinguia das demais instituições de ensino
profissional mantidas por particulares (fossem congregações religiosas ou sociedades
laicas), por governos estaduais e diferenciava-se até mesmo de instituições mantidas pelo
próprio governo federal. Em suma, as escolas de aprendizes artífices tinham prédios,
currículos e metodologia didática próprios; alunos, condições de ingresso e destinação
esperada dos egressos que as distinguiam das demais instituições de ensino elementar.

A constituição desse sistema assumiu contornos mais nítidos a partir de 1919, com a
incorporação da Escola Normal de Artes e Ofícios Venceslau Brás, destinada a formar
professores para as escolas de aprendizes artífices. Esse contornos foram avivados a
partir de 1931, quando a administração educacional diferenciou-se, já no âmbito do
Ministério da Educação e Saúde, com a criação da Inspetoria do Ensino Profissional
Técnico que, por sua vez, deu origem a outros organismos de âmbito e competência
progressivamente ampliados.

Vou apresentar, em seguida, as características das escolas de aprendizes artífices


enquanto sistema.

Foram criadas, então, 19 escolas, uma em cada unidade da federação.5 As exceções


ficaram com o Distrito Federal e o Rio Grande do Sul. Naquele, o decreto dizia já existir
o Instituto Profissional Masculino, e o Rio Grande do Sul, por sua vez, dispunha do
Instituto Parobé, unidade da Escola de Engenharia de Porto Alegre, ambas instituições
com organização e propósitos semelhantes aos que se determinava para as novas escolas.6

Todas as escolas de aprendizes artífices se situavam nas capitais dos estados, com a
exceção do Rio de Janeiro, que teve a sua localizada em Campos, cidade natal do
Presidente da República.7

A localização de cada escola na capital do estado (com a mencionada exceção do Rio de


Janeiro), mostra uma preocupação mais política do que econômica. A população estava
muito desigualmente distribuída pelas unidades da federação, assim como as atividades
manufatureiras, que se concentravam no Distrito Federal e em São Paulo. O primeiro já
dispunha de uma instituição do mesmo tipo que o segundo veio a receber, em igualdade
de condições com estados onde a atividade manufatureira era incipiente, como os do
norte, do nordeste e do centro-oeste. Essa preocupação política se manifestou, ainda, na

5- Algumas escolas foram instaladas nos prédios onde funcionavam estabelecimentos mantidos pelos
governos estaduais (cedidos por estes), herdeiros, por sua vez, das casas de educandos artífices do período
imperial.
6- Um decreto federal de 1911 incorporou ao sistema das escolas de aprendizes artífices o Instituto Parobé.
7- Há informações que dão conta de que essa preferência por sua cidade natal não se deveu a uma
referência nepotista de Nilo Peçanha, mas às vicissitudes da pequena política fluminense, pois o Presidente
do Estado do Rio de Janeiro Alfredo Backer não se dispôs a oferecer ao governo federal facilidades físicas
para a instalação da escola na capital do estado, diante do que a Câmara Municipal de Campos adiantou-se
em sediar o estabelecimento de ensino. Aliás, o Presidente fluminense, sucessor de Nilo Peçanha, extinguiu
duas das escolas profissionais criadas por ele, alegando falta de recursos e inadequação aos objetivos para
os quais tinham sido criadas.

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localização de cada escola sempre na capital do estado, sede do poder, mesmo quando as
atividades manufatureiras estavam em outra cidade, como Juiz de Fora (e não Belo
Horizonte), em Minas Gerais; e Blumenau (e não Florianópolis), em Santa Catarina.

Por baixo da capa legitimadora da ideologia industrialista (entre outras, a exemplo do


assistencialismo), havia interesses mais palpáveis, em termos políticos, como o reforço
do mecanismo de cooptação de setores locais da oligarquias pelo governo federal,
controlado pelas frações latifundiárias das classes dominantes, ligados à agricultura
cafeeira. Dito de outro modo: as escolas de aprendizes artífices constituíram uma
presença do governo federal nos estados, oferecendo cargos aos indicados pelos políticos
locais e vagas para meninos a serem preenchidas com os encaminhados por eles. A
contrapartida não seria difícil de imaginar: o apoio político ao bloco dominante no plano
federal.

Enquanto que as escolas de aprendizes artífices obedeceram a um movimento centrífugo,


pois foram instaladas de modo disperso, uma em cada estado, mesmo nos menores, o
processo de industrialização apresentava uma tendência centrípeta. Não só as novas
fábricas tendiam a se localizar no centro-sul, principalmente em São Paulo, como,
também, para lá se transferiam atividades manufatureiras antes desenvolvidas em outras
regiões do país.

A finalidade manifestamente educacional das escolas de aprendizes artífices era a


formação de operários e contramestres, através de ensino prático e conhecimentos
técnicos necessários aos menores que pretendessem aprender um ofício em "oficinas de
trabalho manual ou mecânico que forem mais convenientes e necessários ao estado em
que funcionar a escola, consultadas, quanto possível, as especialidades das indústrias
locais". Como parte integrante de cada escola de aprendizes artífices, foram criados
cursos noturnos obrigatórios, um primário (para os analfabetos) e outro de desenho (para
os alunos que dele precisassem).8

Cada escola de aprendizes artífices deveria possuir até cinco oficinas de trabalho manual
ou de mecânica, conforme a capacidade do prédio escolar e as especialidades das
indústrias locais, a juízo do governo (primeiro do Ministério da Agricultura, Indústria e
Comércio, e após 1930, do Ministério da Educação e Saúde). Desde 1918, o diretor de
cada escola poderia criar mais oficinas, desde que tivesse recursos para isso, e dispusesse
de pelo menos 20 candidatos ao ofício correspondente.

Em 1926, a Consolidação dos dispositivos concernentes às escolas de aprendizes


artífices, promulgada em portaria do Ministro da Agricultura, Indústria e Comércio,
inspirada nos trabalhos do engenheiro João Luderitz, estabeleceu um currículo comum
para todas as escolas do sistema. A situação vigente até então foi duramente criticada,
especialmente o despreparo dos diretores para ocupar os cargos que exigiam experiência

8- Posteriormente, a obrigatoriedade desses cursos se estendeu a todos os alunos: em 1911, o de desenho, e


em 1918, o curso primário. Eles passaram para o período diurno, ficando o período noturno reservado para
os cursos de aperfeiçoamento (a partir de 1918), destinados aos operários que já se encontrassem no
mercado de trabalho.

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no ensino de ofícios. Por isso, a padronização (matérias a serem ensinadas e o modo de
ensiná-las) visava compensar a improvisação dos diretores e dos professores.

O currículo seria cumprido em 6 anos, distribuídos da seguinte maneira:

- Curso de adaptação, com 3 anos, preparatório ao curso seguinte. Nos dois primeiros
anos, enquanto os alunos eram alfabetizados ou completavam as matérias do curso
primário, faziam trabalhos em couro e em tecidos. No terceiro ano, dedicavam-se a
trabalhos em madeira, chapa de metal e massa plástica.

- Curso técnico-profissional, com 3 anos, onde os alunos escolhiam uma das seguintes
especializações: marcenaria, entalhe ou carpintaria, funilaria, serralheria-forja, mecânica
ou fundição, impressão ou composição gráfica, modelagem ou estuque em artes
decorativas.

Os alunos visados eram a “infância desvalida", conforme o texto do decreto de criação, e


os "desfavorecidos da fortuna", segundo a Consolidação de 1926. Os requisitos de
admissão eram os seguintes: sexo masculino; idade de 10 anos no mínimo e 16, no
máximo; não sofrer de moléstia infecto-contagiosa; não ser portador de defeito físico que
inabilitasse para o aprendizado do ofício.

Uma medida inovadora trazida pelo regulamento de 1926 foi a industrialização das
escolas de aprendizes artífices. Essa medida consistia em orientar a produção das oficinas
para o mercado, cabendo aos alunos remuneração conforme seu trabalho, não por uma
diária, como até então se fazia. Vejamos a justificativa apresentada por Luderitz:

"A primeira razão [da industrialização, LAC] é de natureza técnica, visto não ser
possível que um aluno artífice, nem tão pouco artista, aprenda a arte ou o ofício,
sem nele praticar, tal qual como dele se vai exigir na concorrência da vida real, isto
é, fazendo obra perfeita, no mínimo tempo possível; sem tal adestramento sairia da
escola um simples curioso e nunca um aspirante a profissional; a segunda, é de
ordem econômica, por não se poder exigir nas atuais condições de dificuldades de
vida, que tem de enfrentar o pobre e mesmo o remediado, não se poder, dizia-se,
exigir que os pais consintam aos filhos permanecerem na escola além dos 12 anos;
com esta idade não se tendo a veleidade de fazer do filho um doutor, mandando-o
para os cursos secundários, de humanidades, exige-se dele que comece a ganhar a
vida, empregando-se, alguns mesmo em misteres subalternos."

Na prática, a industrialização das escolas de aprendizes artífices consistia na aceitação


pelos diretores de encomendas de órgãos públicos ou entidades privadas que forneciam a
matéria prima e pagavam a mão de obra e outras despesas. Com os recursos recebidos, as
escolas pagavam aos alunos pelo trabalho realizado e, aos contramestres, uma
percentagem do resultado pelo trabalho fora das horas regulamentares. Previa-se que as
escolas auferissem um lucro de 20% calculado sobre o custo da obra encomendada.
Quando o vulto do empreendimento o justificasse, os diretores ficavam autorizados a
contratar diaristas, de preferência ex-alunos.

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A industrialização das escolas de aprendizes artífices, junto com a introdução da
merenda escolar (esta em 1922), foi responsável pela diminuição da grande evasão dos
alunos, que deixavam as escolas tão logo adquiriam os rudimentos da prática de um
ofício.

A distribuição das matérias previstas pela Consolidação de 1926 era a seguinte, em


número de aulas por semana:

1º ano
Leitura e escrita 8
Caligrafia 2
Contas 6
Lição de coisas 2
Desenho e trabalhos manuais 15
Ginástica e canto 3
TOTAL 36

2º ano
Leitura e escrita 6
Contas 4
Elementos de geometria 2
Geografia e história pátria 2
Caligrafia 2
Instrução moral e cívica 1
Lição de coisas 2
Desenho e trabalhos manuais 16
Ginástica e canto 3
TOTAL 38

3º ano
Português 3
Aritmética 3
Geometria 3
Geografia e história pátria 2
Lição de coisas 2
Caligrafia 2
Instrução moral e cívica 1
Desenho ornamental e de escala 8
Aprendizagem nas oficinas 18
TOTAL 42

4º ano
Português 3

21
Aritmética 3
Geometria 3
Rudimentos de física 2
Instrução moral e cívica 1
Desenho ornamental e de escala 6
Desenho industrial e tecnologia 6
Aprendizagem nas oficinas 24
TOTAL 48

1º ano complementar
Escrituração de oficinas e correspondência 4
Geometria aplicada e noções de álgebra e trigonometria 4
Física experimental e noções de química 4
Noções de história natural 3
Desenho industrial e tecnologia 9
Aprendizagem nas oficinas 24
TOTAL 48

2º ano complementar
Correspondência e escrituração de oficinas 3
Álgebra e trigonometria elementar 2
Noções de física e química aplicada 3
Noções de mecânica 2
História natural elementar 2
Desenho industrial e tecnologia 9
Aprendizagem nas oficinas 27
TOTAL 48

O estágio pré-vocacional da prática de ofícios estava incluído na matéria "desenho e


trabalhos manuais" dos dois primeiros anos. A matéria aprendizagem nas oficinas, nos 3º
e 4º anos e no 1º ano complementar compreendia os rudimentos dos nove ofícios que
cada escola poderia oferecer. Finalmente, a matéria aprendizagem nas oficinas, no 2º ano
complementar, consistia na especialização no ofício escolhido pelo aluno.

A aplicação das normas disciplinares prescritas nos regimentos das escolas de aprendizes
artífices podia levar certos diretores a aplicar punições rigorosas. Na escola do Pará, por
exemplo, as faltas dos aprendizes eram comunicadas ao Conselho Disciplinar - uma
espécie de tribunal, formado por professores, contramestres e alunos dos dois últimos
anos, escolhidos pelo diretor - que convocava o aluno faltoso para que fizesse sua defesa
em dia determinado. O conselho punia ou absolvia. Entre as penas, duas se destacavam: o
"quarto escuro" e a exclusão. Esta se processava mediante uma cerimônia de caráter
militar de humilhação, onde o punido formava junto com os demais no pátio da escola.
Ao toque da banda marcial, ele era despido do uniforme por um de seus colegas, e em
seguida, acompanhado de um professor, fazia a última visita a todas as dependências da
escola, terminando no portão da saída. A população presenciava a cerimônia, tendo dela
conhecimento por edital publicado na imprensa local.

22
O corpo docente das escolas de aprendizes artífices era bastante heterogêneo. Os
professores das matérias de caráter geral provinham do magistério primário, sem o menor
conhecimento do que seria necessário ensinar aos alunos de uma instituição de ensino
profissional. Já os mestres das oficinas eram práticos, sem conhecimento das bases
teóricas do seu ofício e desprovidos de preocupações pedagógicas.

De acordo com os diretores dos órgãos do Ministério da Educação voltados para o ensino
profissional, a solução para esse grave problema só viria com a instalação de um
estabelecimento de ensino especialmente destinado à formação de docentes para a parte
propriamente profissional do currículo.

Em 1917, a Prefeitura do Distrito Federal criou a Escola Normal de Artes e Ofícios


Venceslau Brás, com a finalidade de preparar professores, mestres e contramestres para
os estabelecimentos de ensino profissional, assim como professores de trabalhos
manuais, para as escolas primárias da municipalidade. Começando a funcionar no ano
seguinte, em 1919 um acordo entre a União e a Prefeitura determinou que essa escola
passasse para a jurisdição do Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio, ampliando
sua área de atuação para todo o território nacional.9

Para os alunos do sexo masculino, a Escola Normal de Artes e Ofícios Venceslau Brás
oferecia (pela reforma curricular de 1924) cursos nas especialidades de madeira, metal e
eletricidade; para os de sexo feminino, as especialidades de economia doméstica, costura,
chapéus; para todos eles, artes decorativas e atividades comerciais. Os cursos, com
duração total de 6 anos, incluíam as seguintes matérias: português e educação cívica;
matemática aplicada às indústrias; geografia industrial e história das indústrias; desenho a
mão livre e geométrico; francês; física e eletricidade; química industrial; história natural;
higiene; pedagogia; contabilidade industrial; estenografia e datilografia; modelagem e
trabalhos manuais.

Os alunos deveriam ter idade mínima de 12 anos, ausência de moléstia infecto-


contagiosa, e deveriam se submeter a exames de ingresso. Os egressos das escolas de
aprendizes artífices, concluintes dos 4º, 5º e 6º ano, seriam admitidos, sem exame, aos 1º,
2º e 3º anos dessa Escola Normal, respectivamente. Os concluintes do 5º ano do curso de
cada especialidade recebiam o diploma de contramestre e os do 6º ano, o de professor,
ambos exigindo prova didática. Os portadores desses diplomas teriam prioridade na
nomeação para os estabelecimentos de ensino profissional da União.

Ao contrário do que se esperava, a Escola Normal de Artes e Ofícios Venceslau Brás teve
pouca valia para a elevação da qualidade do corpo docente das escolas de aprendizes
artífices. A maioria dos seus alunos era do sexo feminino, que buscavam qualificação nas
especialidades mais comerciais do que manufatureiras, além de serem muito poucos os
seus egressos que se dispunham a se transferir para as cidades onde aquelas escolas

9- A escola funcionou até 1937, quando foi demolida para dar lugar à Escola Técnica Nacional, depois
denominada "Celso Suckow da Fonseca", seu diretor por muitos anos.

23
estavam localizadas. Menos viável ainda foi utilizá-la como local de estágio ou
aperfeiçoamento dos professores em atividade.

No primeiro ano de funcionamento (1910) as escolas de aprendizes artífices receberam


cerca de 2 mil alunos. Nos 33 anos de sua existência, passaram por elas 141 mil alunos,
uma média de cerca de 4.300 por ano. No último ano de funcionamento dessas escolas
(1942), havia estabelecimentos com um número diminuto de alunos. Apenas duas delas
tinham um corpo discente da ordem de quatro centenas de alunos. Sete escolas tinham
menos de 200 alunos, duas com menos de 100. Elas atingiram o volume máximo de
alunos na década de 20, após o que entraram em decadência. Os ofícios que eram
ensinados em todas elas eram os de marcenaria, alfaiataria e sapataria, mais artesanais do
que propriamente manufatureiros, o que mostra a distância entre os propósitos
industrialistas de seus criadores e a realidade diversa de sua vinculação com o mundo do
trabalho fabril.

Poucas eram as escolas de aprendizes artífices que tinham oficinas para o ensino de
ofícios propriamente industriais, de emprego generalizado. No entanto, em São Paulo, as
condições de crescimento da produção industrial, aliadas à emulação do Liceu de Artes e
Ofícios, levaram a um maior esforço de adaptação das oficinas às exigências da produção
fabril. Desde os primeiros anos de existência, a escola de aprendizes artífices paulista era
uma das poucas que ofereciam ensino de tornearia, mecânica e de eletricidade. Como as
demais, ela mantinha oficinas voltadas para o artesanato, a exemplo da carpintaria e das
artes decorativas, mas era das poucas que não ensinavam os ofícios de sapateiro e
alfaiate, existentes na grande maioria de suas congêneres.

Dito tudo isso, cabe a pergunta: qual foi o alcance das escolas de aprendizes artífices ?

Se formos avaliá-las pelos objetivos pelos quais foram criadas, a resposta será negativa.
Não se pode afirmar que elas contribuíram para o desenvolvimento industrial, pois
estavam, em geral, muito distantes dos pólos industriais, nos quais havia instituições que,
como o Liceu de Artes e Ofícios de São Paulo, bem cumpriam essa missão. Ademais, é
duvidoso que elas tivessem formado, na origem, a força de trabalho migrante para o
Centro-Sul. Quando as exigências de formação sistemática de operários qualificados
surgiram, nos anos 30, não foram as escolas de aprendizes artífices que responderam às
demandas, mas as instituições criadas especialmente para apoiar a expansão das
ferrovias.

No que se refere à obtenção da hegemonia pretendida pelos industrialistas, o fracasso


seria previsível pelo pequeno volume do alvo educacional: 4 a 6 mil alunos numa força
de trabalho da casa das centenas de milhares na indústria. Para que se pudesse esperar por
mudanças significativas, seriam necessárias mais do que duas dezenas de escolas, alem
de terem maior porte.

Por outro lado, antes mesmo que se desenvolvessem meios e modos tendentes à obtenção
da hegemonia, mediante a educação profissional, a repressão policial tomou a frente na
contenção dos movimentos dos trabalhadores, chegando à expulsão dos líderes quando

24
estrangeiros. A mudança da constituição das próprias classes trabalhadoras, com a
migração de sucessivos e maciços contingentes de nordestinos para o Centro-Sul,
diminuiu o peso relativo das frações experientes nas lutas sociais, favorecendo, em
contrapartida, a incorporação das massas no cenário político do populismo. A tutela
imposta pelo regime de Vargas aos sindicatos de trabalhadores acabou por diluir as
orientações ideológicas que socialistas e anarquistas tinham construído na Primeira
República.

OS PIONEIROS DA EDUCAÇÃO NOVA E A DUALIDADE

A primeira medida posta em prática para eliminar a dualidade do sistema educacional -


ensino profissional X educação geral - foi feita no Distrito Federal (Rio de Janeiro), na
primeira metade dos anos 30. Anísio Teixeira foi seu principal protagonista.

Com Getúlio Vargas na chefia do Governo Provisório, foi desencadeado um processo de


intervenção estatal no campo educacional sem precedentes na história do país. No curto
período de seis meses (de novembro de 1930 a abril de 1931) foi criado o Ministério da
Educação e Saúde e foram baixados decretos que alteraram significativamente o ensino
secundário, o ensino superior e o ensino comercial, criaram o Conselho Nacional de
Educação e incluíram o ensino religioso no currículo das escolas públicas primárias,
secundárias e normais.

Por outro lado, em dezembro de 1931 (poucos meses, portanto, depois dessas medidas) a
Associação Brasileira de Educação promoveu, no Rio de Janeiro, a IV Conferência
Nacional de Educação, evento que veio a ter um significado inédito no processo de
autonomização do campo educacional.

Os educadores congregados na ABE estavam divididos diante de várias questões, mais


enfaticamente no que dizia respeito ao ensino religioso nas escolas públicas, ainda que
facultativo. Grosso modo, os católicos, os autoritários e os simplesmente conservadores
receberam com entusiasmo o decreto presidencial, enquanto que os liberais e socialistas o
repudiaram. No entanto, esse conflito permaneceu latente até que o próprio Vargas, em
discurso na abertura da Conferência, conclamou os educadores presentes a definirem as
bases para uma política educacional para o Brasil.

Parece que esse apelo teve o propósito de explicitar e aprofundar a divisão dos
educadores, questão que o Ministro da Educação Francisco Campos conhecia bem como
Diretor de Instrução Pública de Minas Gerais no governo de Antônio Carlos de Andrada.

25
Senão, como entender tal apelo quando já haviam sido baixados decretos tão amplos e
articulados?

As vicissitudes do debate fizeram com que uma proposta não consensual de bases e
diretrizes acabasse sendo divulgada na forma de um manifesto, em março de 1932, três
meses após o término do evento.

A Reconstrução Educacional no Brasil - ao Povo e ao Governo, manifesto firmado por 26


autoproclamados pioneiros da educação nova, foi esboçado em São Paulo por Fernando
de Azevedo e redigido em forma final no Rio de Janeiro. Ao longo de suas obras, o
educador paulista se apresenta, repetidamente, como o redator do Manifesto, apesar da
presença nele de temas e posições não expressas por esse autor, nem antes nem depois.
Por isso, sou levado a crer na produção coletiva do texto ou, então, na inclusão pelo
próprio Fernando de Azevedo, de passagens não defendidas por si, mas por outros
signatários, defensores de posições que faziam parte da tradição socialista. Depois de
uma análise dos textos da época, cheguei à conclusão de que foi Anísio Teixeira o autor
das passagens em questão.

Na época do Manifesto, o campo educacional se dividia numa formação autoritária, que


reunia os católicos, os fascistas e os simplesmente defensores da ordem estabelecida; e
noutra formação, onde estavam os liberais, que lutavam por uma "educação nova". Estes
últimos se dividiam, por sua vez, numa tendência elitista e noutra igualitarista. A esta
última se aliavam raros educadores socialistas, entre "utópicos" e "científicos".

Inspirado em grande parte em John Dewey, o liberalismo igualitarista, que tinha em


Anísio seu maior expoente, apontava a tendência "espontânea" da sociedade capitalista
na perpetuação das iniqüidades, dos privilégios e das injustiças, ao utilizar a educação
escolar justamente para reforçar o status quo. Para combater essas iniqüidades, propunha-
se uma pedagogia da escola nova, materializada na escola como microcosmo da
sociedade, capaz de produzir indivíduos orientados para a democracia, e não para a
dominação/subordinação; para a cooperação, em vez da competição; para a igualdade, e
não para a diferença. Para isso, seria necessário mudar completamente o caráter da
educação profissional, de modo a evitar que ela continuasse sendo um “instrumento para
encarnação do dogma feudal da predestinação”, ou seja, para a perpetuação da divisão da
sociedade em classes. Toda educação profissional precoce (para crianças e adolescentes)
deveria, portanto, ser eliminada, deixando-se que a preparação para as ocupações se
fizesse por meio das próprias ocupações, isto é, no próprio trabalho. Essa seria a
estratégia da reconstrução social pela escola.

Já o liberalismo elitista não punha em causa os males sociais como resultado do


capitalismo. Eles seriam produto da falta de direção adequada dos negócios públicos e
privados, resultado, por sua vez, da inexistência de elites preparadas. O papel que se
esperava da "escola nova" era justamente o de recrutar, selecionar e preparar as elites
para as mais diversas esferas de atuação social. Não se tratava de reproduzir as elites
existentes de forma endogênica, mas, sim, de buscar em todas as camadas sociais os
indivíduos mais talentosos para receberem uma formação especial. Desse modo, a

26
educação das massas seria o complemento da educação das elites. Ou seja: educação das
massas para que delas saíssem elites preparadas e educação das elites para que
educassem as massas. Tal posição foi sempre a de Fernando de Azevedo, jamais a de
Anísio Teixeira. Para este, o que importava era a criação de elites setoriais em cada uma
das atividades e classes sociais.

Vamos dar agora uma olhada no conteúdo do Manifesto.

Num texto composto com idéias contraditórias - o que seria de se esperar num
documento escrito por mais de um autor -, a educação vem definida segundo as
concepções funcionalistas dos durkheimianos Georges Davy e Celestin Bouglé, e ao
mesmo tempo, conforme a tradição socialista na versão marxista. É esta última que
aponta o efeito da diferenciação das classes sociais nas concepções educacionais e a
existência de uma filosofia (pre)dominante, resultante da estrutura de classes. No Brasil,
a filosofia (pre)dominante, o individualismo da escola tradicional, corresponderia aos
interesses da burguesia. Embora essa doutrina tivesse desempenhado seu papel na
formação das democracias e na quebra dos quadros rígidos da vida social, as novas
condições sociais exigiam uma “educação nova”. Definir essa nova doutrina pedagógica
não foi tarefa fácil. Encontramos no Manifesto duas concepções antagônicas sobre ela.

De um lado, dizia-se que ela não se propunha a servir aos interesses de classes sociais,
mas, sim, ao indivíduo, embora fundada sobre o princípio da vinculação da escola ao
meio social. Alargando sua finalidade para além dos limites das classes, a “educação
nova” assumiria sua verdadeira função social com uma feição mais humana: a formação
da “hierarquia democrática” pela “hierarquia das capacidades” recrutada em todos os
grupos sociais.

De outro lado, surpreendentemente, o Manifesto justapõe a escola nova à "escola


socializada", uma concepção nascida nas "usinas" (fábricas, traduzindo o galicismo). O
trabalho seria nela a melhor maneira de se estudar a realidade em geral, tanto quanto de
se estudar o trabalho em si mesmo, como fundamento da sociedade humana. Essa nova
pedagogia teria se organizado para “remontar a corrente” e restabelecer, entre os homens,
o espírito de disciplina, de solidariedade e de cooperação, num processo que “ultrapassa
largamente o quadro estreito dos interesses das classes."

O formato institucional da educação brasileira apresentado pelo Manifesto foi claramente


influenciado pela “escola socializada” que se pretendia implantar. Ao contrário da que
deveria existir, isto é, ao invés de um sistema educacional, haveria, no Brasil, dois
sistemas paralelos e divorciados, como se estivessem fechados em compartimentos
estanques e incomunicáveis, idéia que, aliás, já teria sido expressa por um dos
signatários, não identificado. O sistema de ensino primário e profissional e o sistema de
ensino secundário e superior teriam diferentes objetivos culturais e sociais, constituindo-
se, por isso mesmo, instrumentos de estratificação social. A escola primária e a
profissional serviria à classe popular, enquanto que a escola secundária e a superior, à
burguesia. É aí que o Manifesto localiza a controvérsia sobre o sentido de cultura geral,

27
assim como o momento em que a matéria do ensino deveria diversificar-se em ramos
iniciais de especialização.

Diante dessa situação de iniqüidade, o Manifesto defendia caber ao Estado a organização


dos meios para efetivar o "direito biológico" de cada indivíduo à sua educação integral,
mediante a adoção de um plano geral de educação, de estrutura orgânica, que tornasse a
escola acessível, em todos os seus graus, aos cidadãos a quem a estrutura social do país
manteria em condições de inferioridade econômica, com o fim de obter o máximo de
desenvolvimento, de acordo com suas aptidões. Daí se chegava ao princípio da escola
única, também chamada de unificada e de unitária. Decorreriam dele outros princípios: o
da gratuidade, o da obrigatoriedade e o da laicidade. O texto reconhecia que o princípio
da escola única sofria restrições das circunstâncias sociais. Mas, haveria circunstâncias
que poderiam favorecê-lo. Numa indisfarçada alusão à União Soviética, elas existiriam
"em países em que as reformas pedagógicas estão inteiramente ligadas com a
reconstrução fundamental das relações sociais".

No regime político vigente no Brasil, haveria circunstâncias negativas adicionais para a


efetivação do princípio da escola única. O Estado não teria condições de impedir que as
classes mais privilegiadas assegurassem a seus filhos uma educação de classe
determinada, nas escolas privadas. Mas, dentro do sistema escolar do Estado, esse tipo de
privilégio não teria cabimento. Não bastasse o fato de o Estado não dispor de recursos
financeiros para assumir o monopólio do ensino, ele se encontraria obrigado a incentivar
as instituições privadas idôneas. Assim, no Brasil, o princípio da escola única ficaria
reduzido à escola oficial comum a todas as crianças e jovens, de 7 a 15 anos, que fossem
confiados pelos pais à escola pública.

No plano de reconstrução educacional apresentado pelo Manifesto, a escola secundária


seria o "ponto nevrálgico” da questão da dualidade de sistemas escolares, organizados em
função das classes sociais. Retomando a inspiração socialista, defendia-se aí que a escola
secundária deveria ser unificada para se evitar o divórcio entre os trabalhadores manuais
e intelectuais, o que seria conseguido mediante mudanças curriculares: ela teria os
primeiros três anos voltados para fornecer uma sólida base comum de cultura geral, para
posterior bifurcação. Um ramo teria preponderância na formação intelectual e outro, na
preparação profissional.

Um mês antes da divulgação do Manifesto, o Prefeito Pedro Ernesto assinou, por


proposta de Anísio, o decreto 3.763, de 1o de fevereiro de 1932, e, um mês depois da
divulgação do documento, o decreto 3.864, de 30 de abril de 1932, que completou o
primeiro.10

Ambos os decretos traziam implícita uma crítica forte e frontal à concepção de ensino
secundário da reforma federal de um ano antes, baseada na reforma fascista de Giovani

10- Enquanto que o primeiro decreto instituiu as escolas técnicas secundárias, o segundo reduziu um pouco
suas ambições para adequá-las às condições disponíveis: matérias e oficinas foram agrupadas, assim como
foram extintas as previstas pela reforma Fernando de Azevedo, de 1928.

28
Gentile, na Itália, voltada para a formação de elites condutoras das massas. Para Anísio,
como para o Manifesto, aí estava o “ponto nevrálgico” da questão da educação
democrática. Não teria mais cabimento que o sistema educacional fosse estruturado com
uma escola primária e profissional, para o povo; e uma escola secundária e superior para
a elite. Ou seja, uma educação para o trabalho e uma educação para a cultura. Nas
condições da ciência que Anísio divisava, com o desenvolvimento do método
experimental, não se poderia mais separar cultura e trabalho, nem laboratório e oficina.
Analogamente, não teria cabimento a separação entre a legislação federal para o ensino
secundário “acadêmico” e a legislação estadual ou municipal para o ensino profissional.

Mas, a contenda desencadeada por Anísio contra o Ministério da Educação foi além
dessa concepção geral. Estribando-se no princípio federativo, ele defendia que os estados
e os municípios (inclusive o Distrito Federal, é claro !) tinham condições para oferecer
uma organização educacional mais rica, mais flexível e mais prática às escolas
secundárias do que o ministério podia prever. Por isso, reivindicava para as instâncias
inferiores do Estado maiores competências do que a orientação centralista e
padronizadora do governo provisório estava disposta a admitir.

O ensino secundário deveria deixar de ser definido como um segmento seletivo, rígido e
padronizado, destinado a alguns indivíduos apenas, para se transformar em algo
funcionalmente adaptado aos adolescentes em geral. Ao contrário do ensino primário,
que deveria continuar a ser único, o secundário deveria oferecer uma ampla rede de
programas variados, para se adaptar às diferenças individuais.

Dentro dessa finalidade geral de ser a escola dos adolescentes, o ensino secundário
deveria manter o objetivo social de preparar os quadros médios de cultura técnica e geral
para todos os tipos de trabalho - inclusive o trabalho intelectual. Assim diversificado,
Anísio entendia que a dualidade da educação brasileira deixaria de existir.

Em termos propriamente organizacionais, ele defendia a constituição de instituições


educativas mistas, mantidos os objetivos de ambas as legislações - a federal e a
estadual/municipal. Seriam as escolas técnicas secundárias, juntando duas categorias que
estiveram desde sempre separadas pelo currículo, pelos destinatários e até pelos
ministérios a que estavam afetas. Coerente com a defesa de um ensino primário único, ele
sustentava que todo o ensino profissional deveria “subir” ao nível secundário. Neste
nível, os cursos profissionais seriam ministrados nos mesmos estabelecimentos que o
ensino secundário “acadêmico”. O objetivo não era a introdução de disciplinas “práticas”
no currículo do ensino secundário propedêutico, como já se havia proposto no Brasil. O
curso secundário, conforme o modelo da reforma Campos de 1931, continuaria a existir.
Ao lado dele, haveria “programas laterais”, contando com matérias comuns, de modo a se
alcançar unidade e coesão.11

11- O Diretor do Ensino Secundário na gestão de Anísio Teixeira foi Joaquim Faria Góes Filho. A partir de
1938, ele participou de grupos de trabalho interministeriais que deram origem ao SENAI, instituição da
qual veio a ser diretor regional (RJ) e nacional, por muitos anos.

29
Na prática, haveria dois ciclos nas escolas técnicas secundárias: o primeiro, comum a
todos os alunos, com dois anos de duração (e não três, como queria o Manifesto), e o
segundo, de cinco ou seis anos, ramificado. Um ramo seria o curso secundário
equiparado ao do Colégio Pedro II - o da legislação federal; outro, o curso técnico
industrial12 e outro, ainda, o curso técnico de comércio. Este último seria oferecido em
duas modalidades, uma conforme a legislação federal, outra distinta dela.

O conjunto das escolas técnicas secundárias disporiam de oito oficinas, embora nenhuma
contasse com todo o conjunto. Eram elas: trabalhos em madeira; trabalhos em metal e
mecânica; eletricidade; artes gráficas; agricultura e zootecnia; construção civil; artes
domésticas; artes do vestuário inclusive flores.

Os ofícios que seriam cultivados em cada uma dessas oficinas eram predominantemente
artesanais, embora as de metal e mecânica, e de eletricidade estavam voltadas, mais do
que as demais, para a produção manufatureira ou fabril. Na oficina de trabalhos em metal
e mecânica, os ofícios ensinados eram os seguintes: modelação, fundição, latoaria,
funilaria e estamparia, tornearia, ajustagem, ferraria, serralheria, calderaria, montagem de
máquinas, motores de explosão. Na oficina de eletricidade, os seguintes: instalação e
máquinas elétricas; telegrafia e telefonia; rádio-telegrafia e rádio-telefonia;
eletroquímica. Em todos os casos, o que se buscava era a ligação entre a educação geral e
os trabalhos de oficina, de modo que se evitasse a separação criticada.

Pelo menos em termos de propósitos, havia uma perfeita sintonia entre a doutrina do
Manifesto, no que dizia respeito à crítica da dualidade da educação brasileira, e a
administração do ensino público no Distrito Federal. Não bastasse essa convergência
entre o teor do Manifesto e a legislação carioca, a exposição de motivos do primeiro
decreto defendeu as escolas técnicas secundárias como a maneira de se evitar o divórcio
entre o ensino primário e profissional, de um lado, e, de outro, o ensino secundário e
superior. Esse paralelismo, instrumento de estratificação social, constituiria um perigo
para a democracia.

A notável coincidência entre o conteúdo e até os termos usados no Manifesto e a


exposição de motivos que lhe antecedeu, autoriza a conclusão de que Anísio foi o
signatário (não identificado no documento) que teria feito semelhante análise do caráter
discriminatório e antidemocrático do ensino secundário brasileiro.

Esse posicionamento levou Anísio a ser eleito para a presidência da ABE na IV


Conferência Brasileira de Educação, antes mesmo que aqueles decretos fossem baixados.
Em conseqüência, ele se envolveu de modo direto na articulação das propostas dos
educadores progressistas para a Assembléia Nacional Constituinte instalada em 1933. O
confronto com os católicos e conservadores, que tinham abandonado a ABE, não tardou.
Sem contar com aparato comparável ao da bem sucedida Liga Eleitoral Católica, os

12- Este não era um curso técnico no sentido próprio do termo, já que não se destinava a formar
trabalhadores intelectuais, mas, sim, artesãos e operários com educação geral mais aprimorada do que os
das escolas de aprendizes artífices, que tinham apenas o primário.

30
educadores liderados por Anísio foram severamente batidos na Constituinte. Salvo a
vinculação dos recursos para a educação à receita de impostos, as posições do Manifesto
foram rejeitadas, particularmente a eliminação da dualidade, a predominância do ensino
público e a laicidade na escola pública.

Assim, Anísio ficou bem mais exposto aos ataques de seus oponentes, justamente os que
queriam, também, o fechamento do sistema político. O protelamento da regulamentação
do ensino religioso nas escolas públicas do Distrito Federal, dispositivo então inserido na
Constituição, foi apontado como “prova” de sua orientação comunista. Num processo de
intensa radicalização política, isso não era apenas uma adjetivação equivocada. A
orquestração de católicos e/ou integralistas (como o Padre Helder Câmara, Alceu de
Amoroso Lima e Severino Sombra), na imprensa “partidária” e geral, mostrava a
convergência da pedagogia de Dewey com o comunismo na administração educacional
de Anísio, o que teria ficado ainda mais “evidente” na criação da Universidade do
Distrito Federal. Com efeito, para esta foram convidados professores de diversas
orientações políticas, inclusive notórios socialistas e comunistas. Sua organização sem
similar no país, conferia à formação de professores e à pesquisa científica um lugar
prioritário. Na visão de Anísio, a UDF deveria constituir, ademais, um espaço aberto à
liberdade de pensamento, justamente num momento em que ele estava se estreitando.

A radicalização do processo político impediu que a experiência universitária frutificasse.


Quando a Aliança Nacional Libertadora insurgiu-se, sem sucesso, em novembro de 1935,
a sorte de Anísio foi decidida pelo modo mais desalentador para um homem de ação: a
demissão.

A feroz repressão que se seguiu aos aliancistas, em geral, e aos comunistas, em


particular, alcançou os liberais e os social-democratas, num ensaio do que seria o Estado
Novo daí a dois anos. Percebendo não ter condições de se manter no cargo, Anísio
demitiu-se, em dezembro, e partiu para o interior do país, num exílio interno que durou
até a deposição de Vargas, em 1945 - toda uma década. Na Secretaria de Educação do
DF, ele foi substituído por ninguém menos do que Francisco Campos, o primeiro
ministro da educação e depois da justiça, que viria a ser o autor da Constituição
outorgada em 1937. Na reitoria da Universidade do Distrito Federal, seu lugar foi
ocupado por ninguém menos do que Alceu de Amoroso Lima, que acabou por ser o
liquidante da instituição. Uma parte da UDF foi incorporada à Universidade do Brasil,
outra parte foi simplesmente extinta.13

As escolas técnicas secundárias do Distrito Federal foram alteradas em 1937, revertendo-


se praticamente ao “divórcio” da situação anterior. O ensino secundário de caráter
propedêutico foi revalorizado e os cursos profissionais foram afastados dele, reforçados
em suas especificidades. No entanto, o ensino profissional permaneceu no nível pós-
primário, situação que veio a ser generalizada pela “lei” orgânica do ensino industrial, de
1942. Esta “lei”, junto com sua congênere do mesmo ano, relativa ao ensino secundário,

13- Trinta anos depois, Anísio viria a ser destituído da reitoria de outra universidade no Distrito Federal,
por outro golpe de Estado, desta vez da Universidade de Brasília, que também ajudara a criar.

31
moldaram a dualidade social no ensino médio de acordo com o formato impresso por
Gustavo Capanema, o Ministro da Educação do Estado Novo: o ginásio e o colégio para
as “individualidades condutoras” e as escolas profissionais para as “classes menos
favorecidas”. Aqueles dando acesso irrestrito à candidatura ao ensino superior e estas
permitindo a inscrição nos exames vestibulares apenas dos cursos “compatíveis”.

SENAI: INICIATIVA PÚBLICA, CONTROLE PRIVADO

Veremos, neste item, como a aprendizagem sistemática foi institucionalizada no SENAI,


no contexto da reforma educacional empreendida pelo Ministro da Educação Gustavo
Capanema.

Desde o início do século, as empresas ferroviárias mantinham escolas para a formação de


operários destinados à manutenção de seus equipamentos, veículos e instalações. A
primeira delas, a Escola Prática de Aprendizes das Oficinas, foi fundada em 1906, no Rio
de Janeiro, na Estrada de Ferro Central do Brasil. As práticas de ensino eram, no entanto,
assistemáticas.

A grande densidade de estradas de ferro no Estado de São Paulo, ligando as frentes de


expansão cafeeira ao porto de Santos, criou condições para que, na década de 20, as
atividades de ensino de ofícios das empresas ferroviárias fossem centralizadas.

A iniciativa pioneira de aprendizagem sistemática teve início em 1924, com a criação da


Escola Profissional Mecânica no Liceu de Artes e Ofícios de São Paulo. Quatro empresas
ferroviárias que operavam nesse estado14 fizeram um acordo com o Liceu, pelo qual
enviariam cada uma dois aprendizes para freqüentarem um curso de quatro anos,
realizando estágio nas oficinas de uma delas, situadas na capital. O ensino de ofícios
visado pelo acordo apresentava duas inovações que vieram a ser difundidas
posteriormente: a utilização das séries metódicas15 e a aplicação de testes psicotécnicos
para seleção e orientação dos candidatos aos diversos cursos.

14- Eram elas: a Estrada de Ferro Sorocabana, a São Paulo Railway, a Companhia Paulista de Estradas de
Ferro e a Companhia Mogiana de Estradas de Ferro.

15- As séries metódicas ocupacionais resultaram da aplicação do método do ensino individual ao estudo
dos ofícios industriais, realizado no SENAI. As tarefas consideradas típicas de cada ofício foram
decompostas em operações simples, compreendendo quatro fases: 1) estudo da tarefa; 2) demonstração das
operações novas; 3) execução da tarefa pelo educando; e 4) avaliação. As tarefas são atribuídas aos
aprendizes de acordo com o grau crescente de complexidade e conforme o ritmo individual de aprendizado.
Os conhecimentos de caráter geral (científicos e tecnológicos) são ministrados na medida da necessidade

32
Na criação da Escola Profissional Mecânica, teve papel destacado o engenheiro suíço
Roberto Mange, professor da Escola Politécnica de São Paulo, que atuou, também, mais
tarde, nos empreendimentos dela derivados e até mesmo na criação do SENAI. Roberto
Mange e outros engenheiros da Escola Politécnica, entre eles Armando Salles de
Oliveira, destacaram-se na divulgação da doutrina da Organização Racional do Trabalho,
sistematizada por Frederick Taylor, a ponto de, em 1931, fundarem, com o patrocínio da
Associação Comercial e da Federação das Indústrias de São Paulo, o Instituto de
Organização Racional do Trabalho - IDORT. Essa entidade passou a ganhar influência à
medida que os efeitos da crise econômica de 1929 se somavam aos movimentos
reivindicatórios de trabalhadores provocando a diminuição da taxa de lucro. Essa
situação era especialmente crítica nas estradas de ferro, não só porque seus trabalhadores
estavam entre os mais organizados, como, também, devido ao efeito que a elevação dos
custos do transporte acarretava para outras atividades econômicas, particularmente para a
exportação do café.

Para esses problemas, o IDORT apresentava o taylorismo como solução universal,


propugnando o combate à desorganização administrativa das empresas, à utilização
inadequada de matérias primas, de força de trabalho e de energia motriz, assim como
defendendo a implantação de um controle eficiente dos custos. A redução dos custos
permitiria a elevação da produtividade e, em conseqüência, o aumento dos salários pagos
aos trabalhadores, desincentivando os movimentos reivindicatórios. Mas, para que a
produtividade geral se elevasse, seria necessário, também, aumentar a produtividade dos
trabalhadores em termos físicos, para o que seriam indispensáveis os exames
psicotécnicos, permitindo colocar “o homem certo no lugar certo" e selecionar os mais
capazes; e o ensino sistemático de ofícios, apressando e barateando a formação
profissional.

Para o ensino sistemático de ofícios, lançava-se mão das séries metódicas, já aplicadas
com sucesso no Liceu de Artes e Ofícios; para os exames psicotécnicos, os
procedimentos desenvolvidos por Henri Pieron, do Instituto de Psicologia da
Universidade de Paris, e Léon Walter, do Instituto Rousseau da Universidade de
Genebra, que deram cursos em São Paulo e tiveram suas obras traduzidas. Os exames
psicotécnicos serviriam, também, para evitar a contratação de "agitadores", medida
convergente com a adoção de fichas de identificação datiloscópica destinadas a evitar a
reentrada nos quadros das empresas de trabalhadores despedidos por razões político-
ideológicas ou outras.

A experiência da Escola Profissional Mecânica teve efeitos multiplicadores na Estada de


Ferro Sorocabana, empresa estatal, cuja direção, imbuída da doutrina taylorista,
encontrava-se empenhada em melhorar os resultados econômicos e enfrentar a
concorrência do transporte rodoviário. Não lhe bastando o envio de alguns aprendizes ao

das tarefas praticadas, e à medida em que são executadas. Como apoio ao aprendiz existe material didático
específico, compreendendo, principalmente: folhas de tarefa, que dizem o que fazer; folhas de operação,
que dizem como fazer; e folhas de informação tecnológica, com a indicação dos conhecimentos de
matemática, física, química e outros, necessários à realização da tarefa.

33
Liceu de Artes e Ofícios, essa empresa organizou um Serviço de Ensino e Seleção
Profissional - SESP, em 1930, incorporando as práticas pedagógicas e psicotécnicas que
se divulgavam e se aplicavam, antes mesmo da criação do IDORT.

O SESP deu partida a um padrão de articulação pedagógica que persistiu por pelo menos
seis décadas. Mediante acordo entre a direção da Estrada de Ferro Sorocabana e a
Diretoria Geral de Ensino do Estado de São Paulo, a Escola Profissional de Sorocaba,
oficial, forneceria o ensino de conteúdo geral aos aprendizes, enquanto o ensino
propriamente profissional seria desenvolvido nas oficinas da empresa.

Cinco cursos eram ministrados no SESP: O curso de ferroviários, com quatro anos de
duração, para as seguintes especialidades: ajustador, torneiro-fresador, caldeireiro,
caldeireiro-ferreiro, ferreiro, eletricista, operador mecânico. O curso de aperfeiçoamento,
para o pessoal já empregado nas oficinas, compreendendo disciplinas como português,
matemática, desenho técnico, higiene, prevenção de acidentes, e outras. O curso de
tração, para os foguistas e maquinistas; o curso de telégrafo e iluminação, para os
aprendizes que já possuíssem formação profissional mecânica equivalente à 3ª série do
curso de ferroviários, completando-a com mais um ano de aprendizagem. O curso de
tráfego, visando a especialização dos departamentos de movimento e telégrafo,
ensinando desenho e matemática. Nos seus 10 anos de existência, o SESP ministrou
cursos a 2.400 trabalhadores.

O aprofundamento da experiência do Liceu de Artes e Ofícios pelo SESP propiciou a


extensão da aprendizagem sistemática a outras empresas ferroviárias do Estado de São
Paulo. O projeto de um Centro Ferroviário de Ensino e Seleção Profissional - CFESP foi
elaborado por Roberto Mange e apresentado pelo IDORT às empresas ferroviárias e ao
governo do estado, recebendo grande apoio do interventor, justamente o idortiano
Armando Salles de Oliveira, como, também, da parte daquelas. O CFESP, criado por
decreto em 1934, era constituído pelas ferrovias do Estado de São Paulo, com recursos
oriundos do governo e das próprias ferrovias, contando com administração autônoma. O
governo estadual colaborou com os recursos materiais e humanos do SESP e professores
para o ensino de caráter geral. A direção do Centro era constituída de dois delegados do
governo estadual e um de cada companhia que aderisse ao empreendimento.

As atividades do CFESP iniciaram-se com a adesão de cinco empresas ferroviárias


paulistas. Prestava-lhes serviços de seleção, de assistência técnica e de coordenação da
aprendizagem sistemática nas escolas profissionais existentes junto às oficinas gerais, em
diversos pontos do estado, oferecendo as instalações do SESP, em Sorocaba e em São
Paulo, para uso comum. Em 1942 havia 16 escolas profissionais nas ferrovias paulistas,
todas ligadas ao CFESP.

Outras empresas vieram a aderir ao Centro, para o que concorreu a Associação Brasileira
de Engenharia Ferroviária na divulgação dos resultados alcançados. Em 1942, já haviam
se associado nove ferrovias situadas fora do Estado de São Paulo.

34
O CFESP distinguia-se, substancialmente, das escolas de aprendizes artífices em vários
aspectos. Primeiro, a clientela restrita (filhos de ferroviários, principalmente) e a
formação para utilização também restrita (as estradas de ferro). Nas escolas de aprendizes
artífices, os alunos eram, invariavelmente, órfãos e outros "desvalidos", oriundos do
lumpen-proletariado, mais interessados na comida gratuita do que no aprendizado
propriamente. Segundo, a associação do Estado com as empresas, a fim de formar pessoal
para todas elas. O Estado era útil às empresas como fornecedor de recursos e garantidor
das regras de jogo. Nas escolas de aprendizes artífices, mantidas totalmente pelo Estado
para a formação de operários para as empresas, era difícil para aquele perceber as
demandas destas. As empresas, por sua vez, tinham dificuldades de influir sobre o ensino
devido à interveniência da burocracia educacional e dos padrões curriculares rígidos,
quase uniformes. Enquanto as escolas de aprendizes artífices não possuíam uma
pedagogia própria para o ensino de ofícios, limitando-se aos padrões artesanais da
prática, a Escola Profissional Mecânica, do Liceu de Artes e Ofícios, o SESP e o CFESP
tinham nas séries metódicas a espinha dorsal de uma pedagogia que se mostrou eficaz no
atingimento dos objetivos almejados.16

Embora as atividades do CFESP se desenvolvessem rapidamente em São Paulo,


irradiando-se pelas ferrovias de outros estados, foi só com a adoção de um projeto
industrialista de desenvolvimento, pelo Estado Novo, que foram dados os primeiros
passos para a generalização da aprendizagem sistemática a nível nacional. Vejamos como
se deu essa generalização.

A Constituição outorgada de 1937 continha um artigo que definia o papel do Estado, das
empresas e dos sindicatos (ditos econômicos) na formação profissional das "classes
menos favorecidas". Dizia o artigo 129:

"O ensino pré-vocacional e profissional destinado às classes menos favorecidas é


em matéria de educação o primeiro dever do Estado. Cumpre-lhe dar execução a
esse dever, fundando institutos de ensino profissional e subsidiando os de incitava
dos estados, dos municípios ou associações particulares e profissionais. É dever das
indústrias e dos sindicatos econômicos criar na esfera de sua especialidade, escolas
de aprendizes destinados aos filhos de seus operários ou de seus associados. A lei
regulará o cumprimento desse dever e os poderes que caberão ao Estado sobre
essas escolas, bem como os auxílios, facilidades e subsídios a lhes serem
concedidos pelo poder público."

Não se sabe ainda como esse dispositivo apareceu na Constituição, já que ela foi
elaborada por juristas sem prévia experiência educacional, a não ser no ensino regular

16- As séries metódicas, assim como a colaboração Estado-empresa e escola-oficina foram utilizadas, mais
tarde, em todo o país pelo SENAI. Quando da criação desta instituição, em 1942, o CFESP foi a ele
incorporado, constituindo a Divisão de Transportes e o núcleo de todo o Departamento Regional de São
Paulo. O criador do Centro, Roberto Mange, foi o primeiro diretor do DR/SP do SENAI. Italo Bologna,
também diretor do Centro, dirigiu o DR/SP por muitos anos, como, também, o Departamento Nacional. A
influência do pessoal do CFESP incidiu, mais tarde, também, sobre o sistema de ensino industrial, no
âmbito do próprio Ministério da Educação.

35
não profissional. Todavia, não me parece fora de propósito supor a inspiração remota no
projeto de lei apresentado pelo deputado Graco Cardoso à Câmara, em 1927, um dos
diversos que viam no ensino profissional uma espécie de panacéia para os mais diversos
problemas sociais, econômicos e culturais. O artigo 22 desse projeto dizia:

"Os diretores de fábricas, explorações ou empresas industriais ficam obrigados a


encaminhar aos cursos profissionais ou de aperfeiçoamento os menores, analfabetos
ou não, colocados como aprendizes nos diferentes estabelecimentos, sob pena de
multa que pelo Executivo será fixada."

O projeto não foi aprovado, mas a obrigação proposta acabou por vingar por outros
meios. Cumpria, agora, ao Estado, dar forma ao dispositivo constitucional.

O Ministério da Educação, através da Divisão de Ensino Industrial, elaborou, em 1938,


um projeto de regulamentação desse dispositivo constitucional. Estipulava-se a criação
de escolas de aprendizes industriais mantidas e dirigidas pelos sindicatos dos
empregadores e pelos estabelecimentos industriais. As escolas teriam oficinas próprias
destinadas à prática dos aprendizes, isto é, dos trabalhadores maiores de 14 e menores de
18 anos. Os cursos durariam de 8 a 16 horas semanais, em horário coincidente com o
período de trabalho, remunerando-se a atividade produtiva do menor. Cada empresa
industrial teria a obrigação de empregar um número de trabalhadores menores igual ou
superior a 10% do efetivo total de operários. Ao Estado caberia a tarefa de manter escolas
de aprendizes onde os sindicatos e as indústrias não fossem capazes de fazê-lo. Os
Ministérios da Educação e do Trabalho fiscalizariam as empresas e aplicariam sanções às
infratoras.

Além desse projeto relativo ao aprendizado dos menores que trabalhavam, o Ministério
da Educação elaborou outro, referente aos menores não trabalhadores, de 11 a 14 anos de
idade, sob a responsabilidade dos sindicatos dos empregados. Projetava-se a criação de
escolas pré-vocacionais destinadas aos filhos ou irmãos de operários sindicalizados que
idealmente houvessem terminado o curso primário com 11 anos, e não tivessem atingido,
ainda, a idade mínima para o ingresso na força de trabalho.

As escolas seriam mantidas com recursos do imposto sindical, geridos conjuntamente por
representantes dos sindicatos e dos Ministérios da Educação e do Trabalho.

O primeiro projeto foi enviado, ainda em 1938, à Confederação Nacional da Indústria e à


Federação das Indústrias do Estado de São Paulo, presididas, respectivamente, por
Euvaldo Lodi e Roberto Simonsen. Eles se manifestaram contrários, devido às despesas
que as empresas teriam de arcar com o pagamento dos salários dos aprendizes e dos
mestres, com os gastos de instalação e de operação das oficinas. Os líderes industriais
não perceberam o quanto o anteprojeto atenderia aos seus próprios interesses a médio e a
longo prazo, ou priorizaram o lucro imediato - de um modo ou de outro, nada de
contribuir financeiramente para a formação profissional da força de trabalho que eles
próprios empregavam. É provável que a formação recente do capital industrial ainda não
lhes tivesse propiciado aos industriais uma visão dos seus interesses coletivos um pouco

36
além do curto prazo. Por outro lado, a situação dos industriais de crescente dependência
diante dos favores governamentais, em termos fiscais, alfandegários e creditícios, não
encorajava uma resistência ativa ao projeto. Assim, aquelas entidades optaram pela
resistência passiva, simplesmente não respondendo à consulta ministerial.

Diante disso, o governo baixou o decreto-lei 1.238, em 2 de maio de 1939, obrigando as


empresas a manterem cursos de aperfeiçoamento profissional para adultos e menores.
Com essa medida, pretendia-se assegurar aos trabalhadores, fora do lar, condições mais
favoráveis e higiênicas para a sua alimentação e propiciar-lhes, ao mesmo tempo, o
aperfeiçoamento profissional. Para tanto, as empresas com mais de 500 empregados (de
todos os setores econômicos) ficavam obrigadas a reservar locais para a refeição dos
trabalhadores e a promoverem o aperfeiçoamento profissional não só dos menores, como
no projeto rejeitado, mas, também, dos adultos.

A reação dos empresários passou, então, da forma passiva para a forma ativa, recusando-
se a cumprir as determinações do decreto. Diante disso, o próprio Presidente da
República, Getúlio Vargas, lhes teria dito que ou eles aceitavam assumir a formação
profissional prevista pela Constituição, incluindo o custo financeiro, ou o governo
manteria a forma definida pelo último decreto. Poderia haver até mesmo a atribuição da
gestão de todo o sistema aos sindicatos dos trabalhadores. Sem melhor alternativa, a CNI
e a FIESP consentiram e assumiram como criação sua o Serviço Nacional de
Aprendizagem Industrial - SENAI, que resultou do decreto-lei 4.048, de 22 de janeiro de
1942.17

Houve, decerto, pelo menos uma concessão importante por parte do governo: a estrutura
federativa do SENAI, em tudo contrária ao centralismo do Estado Novo.

Vale a pena focalizar um fato sócio-político importante: o suporte da consciência de uma


classe social pode estar fora dessa classe. No caso do SENAI, vimos como os industriais
não só não foram os elementos ativos em sua criação, como, também, resistiram todo o
tempo à instituição da aprendizagem sistemática associando escola e trabalho, assim
como à remuneração dos aprendizes. Apesar disso ser do seu próprio interesse, foi
preciso que o Estado, utilizando um poder arbitrário, típico do regime autoritário, os
obrigasse a assumir a instituição. Constatada a funcionalidade do SENAI para os
interesses dos industriais, eles rescreveram a história, de modo a colocar-se como os
autores da idéia.

Vejamos, agora, como a aprendizagem industrial foi contraposta à outra modalidade de


ensino industrial.

A "lei" orgânica do ensino industrial (decreto-lei 4.073, de 30 de janeiro de 1942) trouxe


como principal inovação o deslocamento de todo o ensino profissional para o grau médio.
O ensino primário passou a ter, então, conteúdo exclusivamente geral.

17- Participantes dos acontecimentos entrevistados por mim forneceram a base para essa interpretação
contrária às versões oficialmente divulgadas.

37
O deslocamento do ensino profissional para o grau médio teve a função principal de
permitir que a própria escola primária selecionasse os alunos portadores de ethos
pedagógico mais compatível com o prosseguimento dos estudos. As escolas de
aprendizes artífices recrutavam os alunos provavelmente menos preparados e dispostos a
prosseguir a escolarização, devido à sua origem social/cultural. Depois dessa medida,
mesmo que o ensino industrial recrutasse os piores dentre os concluintes do ensino
primário urbano, seu potencial de aprendizagem seria, certamente, muito superior ao dos
"desvalidos" da situação anterior. Isso só foi possível, no entanto, após o crescimento da
rede de escolas primárias mantidas, principalmente, pelos estados e municípios.

Ao contrário das modalidades de recrutamento das escolas de aprendizes artífices, de


forte conteúdo ideológico ligado ao assistencialismo, as novas escolas industriais
previam a realização de "exames vestibulares" e de testes de aptidão física e mental. A
pobreza deixava de ser, então, critério suficiente para o aprendizado de um ofício,
embora não perdesse seu caráter implicitamente necessário. A aptidão para o ofício,
incluindo aí as atitudes consideradas adequadas para o desempenho de uma atividade
industrial qualquer, passava a ser um fato prioritário na admissão.

O 1º ciclo do ensino industrial compreendia os cursos industrial básico, de mestria,


artesanal e de aprendizagem. Os cursos de mestria e de artesanato tiveram duração
efêmera ou nunca funcionaram, e não se encontram registros deles nas estatísticas do
Ministério da Educação. O curso industrial básico era desenvolvido nas escolas
industriais em regime seriado, durante 4 anos letivos. Cada aluno praticava um ofício nas
oficinas e nos laboratórios da escola, e assistia aulas de cultura geral, cujo conteúdo era
uma parte reduzida do previsto para o 1º ciclo do ensino secundário.

A aprendizagem estava prevista na "lei" orgânica de modo a integrar o conjunto mais


abrangente do ensino industrial, enquanto uma das suas modalidades, no 1º ciclo, mas, de
um modo tal que fosse regulada por legislação específica. Estipulava-se que os
empregadores seriam obrigados a manter menores, em regime de aprendizagem, naquelas
atividades cujo exercício exigisse formação profissional, a serem definidas pelo governo,
mediante portarias do Ministério do Trabalho. A aprendizagem deveria ser conduzida
metodicamente, em escolas mantidas pela indústria junto às oficinas ou nas suas
proximidades, durante o horário de trabalho e sem prejuízo do salário. Sua duração seria
de 1 a 4 anos, abrangendo disciplinas de cultura geral e cultura técnica. Previa, também,
de modo implícito, a subordinação dessas escolas de aprendizagem a "serviços", numa
alusão ao recém-criado Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial.18

A "lei" orgânica distinguia, com nitidez, as escolas de aprendizagem das escolas


industriais. Estas eram destinadas aos menores que não trabalhavam, enquanto que as
outras, pela própria definição de aprendizagem, aos que estavam empregados. Mas, havia
outra distinção importante. O curso de aprendizagem era entendido como uma parte da

18- A "lei" orgânica previa que os cursos de aprendizagem pudessem ser também desenvolvidos nas
escolas industriais e técnicas mediante convênio com empresas ou com "serviços".

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formação profissional pretendida pelo curso básico industrial. É o que diz o trecho
seguinte: "Os cursos industriais [básicos] são destinados ao ensino, de modo completo, de
um ofício, cujo exercício requeira a mais longa formação profissional." ("lei" orgânica do
ensino industrial, art 9º, parágrafo 1º). Em contrapartida, "os cursos de aprendizagem são
destinados a ensinar, metodicamente, aos aprendizes dos estabelecimentos industriais, em
período variável, e sob regime de horário reduzido, o seu ofício." (idem, art 9º, parágrafo
4º).

Mais tarde, foi introduzida uma modificação na "lei" orgânica que reforçou essa
concepção da aprendizagem com formação parcial. Permitia-se aos concluintes dos
cursos de aprendizagem, de dois anos de duração, no mínimo, a matrícula na segunda
série do curso básico industrial (do ofício correspondente), mediante a prestação de
exames vestibulares.19

Essa subordinação não se deveu apenas a uma concepção pedagógica muito particular a
respeito da superioridade do ensino de ofícios em escola, onde o "ambiente fabril" era
mais uma alegoria do que uma realidade viva. Ela expressa um conflito entre a pretensão
do Ministério da Educação de controlar todo o ensino industrial, inclusive a
aprendizagem, e a orientação da Presidência da República, partidária do seu controle
pelas entidades patronais via Ministério do Trabalho. O fato de os projetos da "lei"
orgânica e do SENAI terem sido levados pelo Ministro Gustavo Capanema ao Presidente
no mesmo dia (5 de janeiro) e assinados em dias diferentes, o decreto-lei de criação do
SENAI (22 de janeiro) antes da "lei" orgânica (30 de janeiro), é resultado da mediação de
Vargas na solução desse conflito.

As escolas de aprendizes artífices foram enquadradas na “lei” orgânica e deram origem


às escolas industriais da rede federal. Algumas dessas escolas, as que ofereciam também
o 2o. ciclo do ensino industrial, passaram a denominar-se escolas técnicas federais. A
Escola Normal de Artes e Ofícios Venceslau Brás, situada no Rio de Janeiro, perdeu essa
finalidade pedagógica específica, dando lugar à Escola Técnica Nacional, mais tarde
denominada “Celso Suckow da Fonseca”.

A UNIFICAÇÃO HEGEMONIZADA

19- A "lei" orgânica, em sua formulação original previa a possibilidade de articulação entre o curso de
aprendizagem e o restante do sistema de ensino. O aprendiz que terminasse o curso e desejasse continuar
seus estudos, mesmo que fosse no âmbito do ensino industrial, deveria candidatar-se à admissão na
primeira série do curso básico. A posterior permissão de ingresso deles na 2ª série foi saudada pelos
educadores da época como medida de grande alcance em termos de democratização do ensino, pois "abriria
as portas da universidade aos simples aprendizes" (Suckow da Fonseca, 1961, 1º vol, p. 292). Esse
entusiasmo foi ainda maior quando, em 1950, uma portaria ministerial facultou aos concluintes de cursos
de aprendizagem do SENAI, com 3 anos de duração, a matrícula nos cursos técnicos industriais do 2º ciclo.
Todavia, essa portaria foi revogada sem ter produzido os efeitos esperados.

39
O sistema SENAI, concebido no contexto da "lei" orgânica do ensino industrial, de 1942,
como um apêndice, passou, depois de duas décadas, a ocupar uma posição hegemônica
no que se refere à formação de operários qualificados. Demonstrando, pelo seu próprio
funcionamento, a inviabilidade das escolas industriais (1o ciclo), produziu duas
conseqüências da maior importância. Primeiro, reforçou a orientação dos educadores
liberais no sentido de transformar o currículo da escola industrial, tendendo a fundi-la
com a escola secundária. Segundo, passou a ocupar exatamente o mesmo lugar previsto
pela "lei" orgânica para a escola industrial com as vantagens operativas da flexibilidade
curricular e da relativa autonomia diante da pesada máquina burocrática do Ministério da
Educação.

Nos 19 anos que se seguiram à promulgação da "lei" orgânica do ensino industrial e à


criação do SENAI, as escolas que ofereciam cursos básicos industriais se multiplicaram:
de 97 em 1942, passaram a 340 em 1961. As matrículas, entretanto, não aumentaram na
mesma proporção: de 10,8 mil alunos, passaram a 20,3 mil, no mesmo período. Isso
significa que a expansão se fez à base de estabelecimentos de pequeno porte, o que deve
ter produzido dois tipos de resultados combinados: o elevado custo médio por aluno e a
restrição dos cursos devido à impossibilidade de multiplicação das oficinas.

A expansão do ensino industrial resultou de um notável esforço estatal: em 1961, das 340
escolas existentes, 310 eram públicas. Dentre estas, 162 eram mantidas pelo governo
federal e 108 só pelo governo do Estado de São Paulo. Isso não foi por acaso, já que a
concentração nesse estado de grande parte do parque industrial fazia com que o ensino de
ofícios manufatureiros assumisse alta prioridade nas políticas educacionais dos governos
paulistas. Ao contrário da concentração das escolas estaduais, o governo federal
distribuía suas escolas por todas as unidades da federação, herança ainda das escolas de
aprendizes artífices.

Numa avaliação sumária, é duvidoso que o 1o ciclo do ensino industrial tivesse


contribuído de modo significativo para a formação da força de trabalho demandada pela
indústria. Vamos aos indicadores dessa suposição.

A rigidez da "lei" orgânica do ensino industrial, estabelecendo previamente os cursos, os


currículos e os modos de funcionamento das escolas, padronizando os cursos básicos
industriais, impedia a adaptação do ensino às transformações da economia, em especial
na década de 50, quando foram implantados setores inteiros (construção de automóveis,
de navios, de vagões ferroviários, de aparelhos eletrodomésticos, etc) e outros foram
muito expandidos (como a produção e a distribuição de energia elétrica, a extração de
minérios, a siderurgia, etc). As novas ocupações surgidas com as transformações da
economia dificilmente seriam desempenháveis pelos operários formados segundo
currículos desenhados no início da década anterior, quando a política governamental de
industrialização ainda estava nos seus princípios.

40
Não bastasse a rigidez determinada pela lei, a teia burocrática impedia que as escolas
industriais pudessem funcionar satisfatoriamente.20 Por fim, mas não em último lugar, as
altas taxas de evasão tornavam ainda mais caro e improdutivo o funcionamento dos
cursos básicos industriais. Para se ter uma idéia da dimensão da evasão das escolas
industriais da rede federal, para uma matrícula total média, nos anos 50, da ordem de
18.500 alunos, o número médio de concluintes era de 2.800 por ano, o que dava uma taxa
média de 15%, baixíssima para um curso de quatro anos de duração.

Os diagnósticos desse problema apontavam como causas da alta evasão dos alunos dessas
escolas o insuficiente equipamento de ensino, o corpo docente improvisado e a carência
de metodologia didática apropriada ao ensino de ofícios. Mas, não deixavam dúvida
quanto à causa principal: os alunos deixavam a escola tão logo aprendiam os rudimentos
do ofício para ingressarem precocemente no mercado de trabalho.

Para minorar esse problema, os administradores das escolas industriais da rede federal
solicitavam ao governo permissão para remunerarem os alunos pelos trabalhos realizados
nas oficinas, quando se tratasse de encomendas realizadas a título de adestramento,
medida essa, aliás, que foi repetidamente introduzida e retirada das escolas de aprendizes
artífices nos anos 10 e 20. Mais uma vez, as dificuldades burocráticas impediam a adoção
dessa medida.

Tudo isso tinha a ver com a persistente concepção das escolas profissonais - inclusive as
industriais - como destinadas a “desvalidos” e delinquentes, fazendo-as uma mistura de
asilo e centro correcional. Os alunos que eram matriculados nelas não tinham disposições
favoráveis à aprendizagem de ofícios, ampliando, assim, a insuficiência dos recursos
materiais, humanos e organizacionais.

Se o fim da década de 50 encontrou as escolas industriais no ponto mais baixo do seu


prestígio, não se pode dizer que a situação do SENAI estivesse isenta de problemas, por
encontrar dificuldade em responder às demandas, de grandes dimensões e bastante
diversificadas, geradas pelo novo surto de industrialização, no auge do processo de
substituição de importações. É dessa época o aparecimento das iniciativas tendentes à
difusão do treinamento em serviço, da introdução do método TWI (training within
industry = treinamento em serviço) e da regulamentação dos acordos de isenção,
providências que amadureceram na década seguinte.21

Apesar dessas dificuldades, as escolas do SENAI, quando comparadas com as de ensino


industrial das redes públicas, evidenciavam de modo patente a inferioridade destas. A
autonomia que lhes faltava, a adesão de alunos motivados (e remunerados), a
possibilidade de organizar cursos conforme as demandas locais, o entrosamento com os

20- Embora as escolas industriais da rede federal tivessem ganho autonomia administrativa, didática e
financeira em 1959, isso de pouco adiantou, pois o 1º ciclo do ensino industrial já se modificava
rapidamente, como veremos a seguir. No entanto, a autonomia foi muito importante para as escolas
técnicas (2o ciclo do ensino industrial).
21- Os acordos de isenção resultaram de iniciativas de ensino profissional nas grandes empresas, que
dispensavam a atuação do SENAI.

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empresários/consumidores da força de trabalho qualificada eram qualidades do SENAI
cuja carência, nas escolas industriais, mostrava a necessidade urgente de modificar os
cursos básicos, senão acabar com eles. Essas alternativas já não eram heresias, como no
tempo do Estado Novo. Administradores do SENAI eram chamados cada vez mais
freqüentemente a participar de comissões de estudos e até mesmo a ocupar cargos de
direção no Ministério da Educação, onde não escondiam sua opinião nesse sentido.

Por mais forte que tivesse sido a demonstração “técnica” da inviabilidade das escolas
industriais, correlativa à viabilidade dos centros de formação profissional do SENAI, um
importante fator, agora de caráter ideológico, teve grande importância para a redefinição
do papel das primeiras. Foi a volta dos educadores liberais ao governo, com o fim do
Estado Novo, Anísio Teixeira à frente. Para eles, tão ou mais importante do que expandir
o sistema educacional existente, tratava-se de eliminar as restrições incompatíveis com
uma sociedade democrática que - imaginavam - a educação ajudaria a construir. Entre as
maiores das restrições, estava a dualidade escolar, que o Estado Novo redefiniu e a
política educacional do Distrito Federal tentou modificar na administração Pedro
Ernesto/Anísio Teixeira, em 1931/35, mediante as escolas técnicas secundárias.

Em 1950, foi promulgada a primeira "lei de equivalência", que estabelecia o mesmo valor
do curso básico industrial em relação ao curso ginasial secundário, para efeito de ingresso
no curso colegial secundário. Esse foi o primeiro passo para a transformação dos cursos
básicos industriais, de portadores de um conteúdo quase que exclusivamente profissional,
para um conteúdo cada vez mais geral, abrindo, assim, caminho para a sua própria
extinção ao fim da década de 50.22

Neste mesmo ano, uma portaria ministerial (no 15, de 31 de janeiro de 1950) determinou
que os concluintes dos cursos de aprendizagem do SENAI, de três anos de duração,
poderiam se matricular nos cursos técnicos industriais, isto é, no 2o ciclo desse ramo de
ensino. A medida foi considerada como tendo grande alcance democrático, pois os
artífices poderiam não só se tornar técnicos, como, também, depois disso, candidatar-se
aos cursos superiores. Até então, os egressos dos cursos de aprendizagem do SENAI, se
pretendessem prosseguir nos estudos, deveriam ingressar num curso básico industrial, na
série compatível com os estudos anteriores, mesmo assim, só depois de exames
aferidores. Concluído esse curso, poderiam candidatar-se ao curso técnico. Mas, a
portaria foi revogada, antes mesmo de ter produzidos resultados concretos. As
informações disponíveis dão conta de que a revogação da portaria resultou da pressão dos
diretores das escolas técnicas industriais, que temiam a queda da qualidade do ensino,
presumidamente pelo “empobrecimento” cultural dos candidatos provenientes dos cursos
de aprendizagem.

A lei 3.552, de 16 de fevereiro de 1959, de iniciativa do Ministério da Educação, e o


decreto que a regulamentou, 47.038, de 16 de outubro do mesmo ano, introduziu

22- A iniciativa pioneira de se garantir equivalência dos cursos de ensino médio foi do Deputado Jorge
Amado, na primeira legislatura na vigência da Constituição de 1946. O projeto foi, no entanto, arquivado,
devido à cassação de seu mandato, em 1948, resultado da supressão do registro do Partido Comunista no
ano anterior.

42
modificações importantes nas escolas da rede federal, mas permitiu às mantidas pelos
estados, pelos municípios e por particulares continuarem seguindo a "lei" orgânica de
1942, bem como as normas estaduais e municipais. Entretanto, a "adaptação" ao novo
regulamento tinha um apelo irresistível: os diplomas só poderiam ser registrados no
Ministério da Educação se as escolas estivessem adaptadas às novas normas.

No que dizia respeito ao curso básico industrial, verificou-se uma mudança completa de
objetivos. De "destinado ao ensino, de modo completo, de um ofício que requeira a mais
longa formação profissional" ("lei" orgânica), passou a ser um "curso com as
características de curso secundário do primeiro ciclo e com orientação técnica". Deixou
de ser um curso com várias especialidades, para se tornar um único curso não
especializado, com os seguintes objetivos, com relação ao educando:

"a) ampliar os fundamentos de cultura;


b) explorar aptidões e desenvolver capacidades;
c) orientar, com a colaboração da família, na escolha de oportunidades de trabalho
ou de estudos ulteriores;
d) proporcionar conhecimentos e iniciação em atividades produtivas, revelando,
objetivamente, o papel da ciência e da tecnologia no mundo contemporâneo."

Enquanto a "lei" orgânica determinava que o curso básico formasse operários


qualificados e, em segundo plano, candidatos aos cursos técnicos, a nova legislação
deslocou a formação profissional para o 2º ciclo (então a nível técnico), mantendo os
cursos de aprendizagem com aquela função específica. Com isso, deixaram de existir as
superposições de funções dos dois tipos de curso. Os principais pontos que passaram a
marcar suas diferenças foram os seguintes:

a) o curso industrial seria de cultura geral; as práticas de oficina teriam o objetivo de


servir de suporte à cultura geral e, também, de permitir futuras opções profissionais; o
curso de aprendizagem seria profissional, objetivando a formação de operários
qualificados.

b) o curso industrial seria dominantemente propedêutico ao 2º ciclo, fosse ao curso


secundário, fosse ao curso técnico industrial; o curso de aprendizagem seria terminal, seu
valor propedêutico seria dificultado pelos exames de verificação da capacidade do aluno,
de modo a classificá-lo na série adequada do curso industrial e, especialmente, no
secundário.

c) no curso industrial, as práticas de oficina seriam politécnicas e no de aprendizagem,


monotécnicas; neste, as práticas seriam desenvolvidas em termos metódicos, enquanto
que, no primeiro, não haveria exigência de que fossem exclusivamente deste tipo. No
mais, a nova legislação confirmou as determinações relativas à aprendizagem.

De um modo geral, a legislação de 1959 fez com que o curso industrial perdesse o seu
caráter profissional e o curso de aprendizagem fosse reconhecido como o único adequado
à formação de operários qualificados, perdendo a posição subordinada que lhe era

43
atribuída pela "lei" orgânica. Tinha início o reconhecimento da hegemonia detida pelo
SENAI na formação profissional.

Novas mudanças na legislação aprofundaram esse realinhamento. O decreto 50.492, de


25 de abril de 1961 completou a lei de 1959, trazendo como principais inovações a
significativa mudança na denominação do curso básico industrial para ginásio industrial;
a especificação do número de horas dedicadas à prática de oficina (6 a 12) no total do
tempo semanal de atividades educativas (33 a 44 horas); previa, também, a possibilidade
dos estabelecimentos de ensino secundário transformarem seus cursos em ginásios
industriais. Aproveitando esta possibilidade, o Estado de São Paulo transformou nove de
seus ginásios secundários em ginásios vocacionais, segundo o modelo estabelecido pelo
decreto de 1961, que serviram de modelo para experiências que vieram a ser feitas neste
como em outros estados.

Apesar dessa relativa antecipação da descaracterização profissional do ensino industrial,


1º ciclo, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (1961) foi além e deu um
novo passo para a unificação de todos os ramos do 1º ciclo do ensino médio. Dizia o art.
44, parágrafo 2º: "Entre as disciplinas e práticas educativas de caráter optativo no 1º e 2º
ciclos, será incluída uma vocacional, dentro das necessidades locais."

A partir desse momento, além do curso industrial ir paulatinamente tendendo a se


identificar com o secundário, este, por sua vez, iniciou um deslocamento na direção
daquele, embora modesta, com a introdução, no seu currículo, de uma disciplina
vocacional.

Nesse processo de unificação, o Ministério da Educação desempenhou um papel ativo.


De 1961 a 1965, a Diretoria do Ensino Secundário fez sucessivos projetos de ginásios
denominados "modernos", "orientados para trabalho" e "polivalentes", nos quais era
ostensiva a inspiração nas escolas técnicas secundárias do Distrito Federal de 1932/35.
Só que, agora, a referência direta à educação norte-americana, sem as menções
socialistas, propiciava maior apoio simbólico e garantia financiamento internacional. Se
os nomes diferiam, sua estrutura curricular era praticamente a mesma.

Nas duas primeiras séries predominavam as disciplinas de caráter exclusivamente geral,


ao lado de disciplinas vocacionais, destinadas apenas a sondar aptidões: artes industriais
ou técnicas agrícolas, conforme a economia da região onde cada estabelecimento de
ensino se localizasse. Nas duas últimas séries aumentava a carga horária destinada às
disciplinas vocacionais. Os alunos, orientados, escolheriam uma das seguintes áreas:
artes industriais, técnicas agrícolas, técnicas comerciais, educação para o lar, ou o
aprofundamento dos estudos gerais. Essas disciplinas vocacionais teriam o objetivo de
continuar a sondagem de aptidões, de modo mais aprofundado, a fim de basear a escolha
de cursos propriamente profissionais ou cursos gerais, no 2º ciclo, caso os alunos
prosseguissem seus estudos; caso contrário, facilitariam seu rápido treinamento numa
ocupação específica, já em serviço.

44
A necessidade de um novo tipo de ginásio encontrava justificativa mais em termos
político-ideológicos do que econômico-ocupacionais ou psicopedagógicos. Era comum
encontrar-se, nos textos que procuravam legitimá-lo, o apelo à experiência norte-
americana como fonte de inspiração. Nos Estados Unidos vigeria como postulado
político a idéia de que o caráter democrático da sociedade é função da sua capacidade de
oferecer a todas as crianças, independentemente de origem social, iguais oportunidades
para o desenvolvimento de suas potencialidades. Para isso, desenvolvia-se, nesse país,
uma escola secundária única, mas diversificada segundo as diferentes opções vocacionais
oferecidas em cada estabelecimento de ensino.

A declaração de um membro do Conselho Federal de Educação mostra a preferência


pragmática para a fusão dos ramos do 1o ciclo do ensino médio, sem as justificativas que
os educadores liberais reeditaram ao voltarem ao governo, após o Estado Novo:

“Acreditamos que, segundo o espírito da Lei [de Diretrizes e Bases da Educação


Nacional, de 1961], poderíamos marchar para um ginásio único, deixando-se a
especialização dos diversos ramos para o 2o ciclo. Teríamos a unificação do 1o
ciclo da escola média num tronco comum, cuja finalidade seria, antes de tudo, dar
educação geral para todos, e suficientemente flexível para oferecer opções que, sem
especializar, pudessem introduzir o aluno em áreas vocacionais a serem
prosseguidas no colégio [no 2o ciclo do ensino médio] diversificado e
especializado.” (Sucupira, 1963, p. 48)

O alinhamento ideológico prevalecente entre os educadores facilitou o financiamento da


USAID-United Agency for Intenational Development para os programas do MEC de
reforma do ensino ginasial, especialmente após o golpe de 1964. Em 1965 foi assinado
um convênio entre essas entidades, pelo qual a agência norte-americana se comprometia
a contratar nos EUA um certo número de técnicos para, junto a igual número de
brasileiros, formarem a Equipe de Planejamento do Ensino Médio - EPEM. Essa equipe
prestaria, então, assistência técnica às unidades da federação, na medida das solicitações.

Dois anos depois, estava pronto um plano para a construção de 276 ginásios orientados
para o trabalho em quatro estados (Rio Grande do Sul, Bahia, Minas Gerais e Espírito
Santo) e de um ginásio-modelo nas capitais de 18 estados e no Distrito Federal. Em 1968,
foi realizado outro convênio entre o MEC e a USAID prevendo a alocação de recursos
externos para a realização do plano. Para complementá-lo e supervisionar a sua execução
foi criado no mesmo ano o Programa de Expansão e Melhoria do Ensino - PREMEN, que
se responsabilizaria, também, pelo treinamento e aperfeiçoamento de professores para as
disciplinas vocacionais.

Mas, esse processo não terminou aí. Após o golpe de Estado de 1964, o processo de
unificação formal do sistema de ensino deu o passo mais longo. Dois pareceres do
Conselho Federal de Educação, de 1969, recomendavam a revisão da LDB,

45
principalmente no que se referia aos ensino primário e ao médio.23 Em setembro desse
ano foi instituído por decreto presidencial um grupo de trabalho para propor a reforma do
ensino fundamental, que se estenderam ao 2º grau. Em agosto de 1970, o grupo de
trabalho apresentou um anteprojeto de lei que, depois de discussões com grupos
selecionados de especialistas, foi encaminhado ao Congresso Nacional. Em agosto de
1971, foi promulgada a Lei (5.692) de Diretrizes e Bases do Ensino de 1º e 2º Graus.

A nova lei previa que suas inovações seriam implantadas de modo gradual, na medida da
disponibilidade dos recursos humanos, materiais e didáticos dos sistemas de educação.
Suas principais inovações foram as seguintes:

a) Extensão da escolaridade obrigatória de quatro para oito anos, correspondendo à


faixa etária de 7 a 14 anos. Os antigos ensinos primário e médio, 1º ciclo, seriam
fundidos, compondo o chamado ensino fundamental ou de 1º grau. O ensino de 2º grau,
correspondendo ao antigo ensino médio, 2º ciclo, continuaria com três anos de duração
(ou quatro, havendo estágio).

b) A escolaridade obrigatória seria inferior a oito anos quando houvesse falta de


recursos do Estado para oferecer oportunidades educacionais e/ou necessidade dos alunos
ingressarem mais cedo no mercado de trabalho - era a “terminalidade real”.

c) O ensino de 1º grau, nas quatro primeiras séries, teria seu currículo composto
exclusivamente de disciplinas de conteúdo geral: nas quatro últimas, o número de
disciplinas vocacionais, destinadas à sondagem de aptidões e iniciação para o trabalho,
seria tanto maior quanto mais elevada a série, generalizando-se o modelo dos ginásios
orientados para o trabalho. O ensino de 2º grau seria compulsoriamente profissional, não
se admitindo ramos paralelos, mas, sim, cursos distintos, desdobrados a partir de um
núcleo comum. (do ensino de 2o grau trataremos no próximo item)

d) A nova concepção do ensino supletivo abrangia tanto a suplência de


escolarização regular para os que não a concluíram em idade própria, quanto o
suprimento de conhecimentos, técnicas e habilidades para os que seguiram o ensino
regular no todo ou em parte.

No que concerne a aprendizagem industrial, a nova lei previa que esses cursos seriam
concebidos como ensino supletivo da modalidade suprimento. Como modificação
relevante, nota-se apenas a exigência de que os aprendizes tivessem concluído as 8 séries
do ensino de 1º grau, a menos que se tratassem de atividades "transitórias", alusão a um
período de ajustamento às determinações previstas.

23- O ensino superior havia sido objeto de profundas modificações pela lei 5.540, de 28 de novembro de
1968, a chamada lei da reforma universitária que, junto com os pareceres do CFE relativos à pós-
graduação, foram decisivos para mudar a feição institucional e curricular no ensino de 3º grau.

46
Vamos focalizar, agora, a reforma do ensino de 1o, no que dizia respeito ao segundo
segmento, isto é, às quatro últimas séries, ao resultado da fusão dos ramos secundário e
“profissionais” do ginásio.

A finalidade do segundo segmento do 1o grau passou a ser, então, a sondagem de


aptidões e a iniciação profissional. Para comentar isso, vou focalizar as artes industriais,
mais valorizadas do que as técnicas comerciais, as técnicas agrícolas e a educação para o
lar no currículo do ensino de 1o grau.

As artes industriais previstas pelo currículo não eram industriais, mas, isto sim,
artesanais: trabalho manual com madeira, metal, cerâmica e outros materiais, com os
alunos utilizando ferramentas simples para cortar, dobrar, encaixar, unir, polir e coisas
assim, para produzir pequenos objetos. Ora, a tendência do processo de trabalho, no
Brasil como em todo o mundo, já era, na década de 70, no sentido da destruição do
artesanato pela indústria mecanizada e até mesmo automatizada, onde não há lugar para o
artesão. O operário é inserido numa linha de produção na qual opera máquinas e
equipamentos feitos sob medida, não tendo, como o artesão, condições de fabricar todo o
produto. Não se trata de fabricar fogões a lenha, mas, sim, computadores. Diante disso,
cabe a pergunta: que utilidade tem iniciar os alunos em trabalhos artesanais se eles vão se
inserir em linhas de produção que dispensam qualificações artesanais ?

Além do mais, não tem sentido a prática de atividades artesanais para sondar as aptidões
dos alunos para cursos técnicos a nível de 2o grau. Os técnicos industriais projetam e
detalham projetos, desenham, administram, controlam custos e qualidade, supervisionam
grupos de pessoas. Devem ter informação e às vezes, até mesmo conhecimento e a
habilidade dos operários. Em nenhum caso, sua formação implica o domínio das tais artes
industriais, que não passam de técnicas artesanais.

A PROFISSIONALIZAÇÃO FRACASSADA NO 2O GRAU

Embora situada no mesmo quadro político-ideológico da reforma do ensino de 1o grau, a


profissionalização no ensino de 2o grau resultou de diferentes determinações.

O projeto de se acabar com os cursos clássico e científico, que só preparavam para os


exames vestibulares, tornando profissionalizante todo o ensino colegial (o 2o ciclo do
antigo ensino médio ou de 2o grau) nasceu da preocupação de conter a procura de vagas
nos cursos superiores, em especial nas universidades públicas.

A procura por cursos superiores vinha crescendo no Brasil desde os anos 40,
impulsionada pela inviabilização dos pequenos negócios empreendidos pelas camadas
médias, correlativamente ao crescimento das burocracias do setor público e do setor
privado. A redefinição do papel da mulher no trabalho, valorizando-se cada vez mais sua

47
atividade produtiva extra-doméstica, constituíu outro fato que impulsionava o aumento
da procura de vagas nas escolas superiores de todas as especialidades.

Essa demanda se dirigia principalmente às instituições públicas, por oferecerem ensino


de melhor qualidade e por serem gratuitas (ou quase), já que os jovens das camadas
médias procuravam caminhos para minimizar os custos de seus projetos de ascensão
social. Mas, ao contrário do populismo em vigor no governo João Goulart, o governo
instalado pelo golpe de Estado de 1964 não se dispunha a servir aos projetos das camadas
médias. Suas políticas destinavam-se a conter essa demanda de ensino superior, em
especial nas universidades públicas, cujos orçamentos não deveriam aumentar. Além
disso, temia-se que o crescimento do número de formados pudesse provocar problemas
graves, por não haver empregos compatíveis com as expectativas de ascensão social:
teríamos advogados-balconistas, professores-datilógrafos e outras situações
potencialmente geradoras de insatisfação contra o regime que acabava de se instalar.

O arrocho nos exames vestibulares não foi considerado como uma alternativa válida,
porque o número de “excedentes” crescia a cada ano, nas universidades públicas,
evidenciando a existência de um obstáculo que poderia ser capitalizado politicamente
pelos opositores do regime.

Medidas como a departamentalização, o tempo integral de professores, o regime de


créditos e a divisão do currículo em um ciclo básico e outro profissional deveriam
convergir na minimização do custo da matrícula adicional. Essas medidas seriam
completadas por outras que não chegaram a ser efetivamente implantadas, como o
vestibular unificado por região (exceto no Rio de Janeiro e nas universidades estaduais
paulistas). O vestibular classificatório visava retirar a base jurídica da pretensão dos
“excedentes” de obterem vaga em instituição pública. A fragmentação da graduação
(licenciaturas curtas e cursos de engenharia operacional) acabaram tendo outro sentido, o
de oferecimento de cursos de mais baixo custo.

Essa motivação econômico-financeira não foi a única a orientar a reforma universitária.


No que diz respeito à adoção do regime de tempo integral para professores, por exemplo,
outras motivações foram importantes, como o interesse profissional dos próprios
docentes e a prevalência, na intelectualidade brasileira, de uma concepção de
universidade que se contrapunha ao diletantismo que vigorava desde os primórdios do
ensino superior no país.

As escolas técnicas industriais eram o festejado modelo do novo ensino de 2o grau


profissionalizante. Elas não eram muitas, ao fim dos anos 60. Apenas algumas dezenas,
mas gozavam de alto conceito, muitos dos seus ex-alunos conseguiam bons empregos ou
ingressavam em cursos superiores de alta qualidade, especialmente nas escolas de
engenharia. Pretendia-se generalizar esse modelo, sem pensar no fato de que o sucesso de
algumas dezenas de escolas, com alguns milhares de alunos apenas - e só para o setor
industrial - não tinha de dar certo, necessariamente, com todas as escolas de 2o grau, com
mais de dois milhões de alunos, em todos os setores da economia. Alguns
administradores educacionais sabiam disso, mesmo dentro do Ministério da Educação,

48
mas foram silenciados pelos atuais dirigentes, convencidos da nova função do 2o grau: o
ensino profissionalizante.24

Com base, então, nas recomendações de um grupo de trabalho especialmente constituído,


o governo enviou ao Congresso um projeto de lei que tornava universal e
compulsoriamente profissional todo o ensino de 2o grau. Acabavam os cursos clássico e
científico; acabavam, também, a especificidade das escolas técnicas industriais e das
escolas normais, pois seus cursos seriam, como os de todas as demais escolas,
profissionalizantes, isto é, conferiam aos alunos uma habilitação profissional como
técnico ou auxiliar técnico.

Com isso, o MEC imaginava resolver dois problemas ao mesmo tempo. Primeiro,
resolver a suposta grande carência de profissionais de nível médio, de todas as
especialidades, cujos cargos estariam sendo ocupados por pessoas sem a formação
apropriada, simples “práticos”, ou por pessoas escolarizadas demais, como engenheiros,
por exemplo, que estariam, então, subutilizados. Os cargos de profissionais de nível
médio não estariam sendo preenchidos por pessoas com formação adequada - os técnicos
e os auxiliares técnicos - porque não haveria cursos profissionais em quantidade
suficiente. Em consequência, os egressos do 2o grau, dos cursos de caráter geral, o
clássico e o científico, eram “obrigados” a se candidatarem a cursos superiores, em busca
de formação profissional. Daí o congestionamento dos vestibulares. Com a
profissionalização universal e compulsória, os estudantes já sairiam do 2o grau com uma
habilitação profissional e procurariam logo um emprego, o que não seria difícil, já que o
surto de crescimento econômico (o “milagre brasileiro”) seria duradouro, garantindo
empregos e salários a todos. Segundo, desviar para o mercado de trabalho parcela
significativa dos vestibulandos potenciais, antes mesmo de sua candidatura aos cursos
superiores das universidades públicas.

Mas, a realidade era bastante diferente desse quadro idealizado.

Os engenheiros estavam ocupando o lugar dos técnicos não porque faltavam técnicos
devidamente qualificados, mas porque faltavam empregos para engenheiros, e estes
venciam aqueles na competição pelos cargos de nível médio. E não era por outra razão
que muitos dos concluintes dos cursos técnicos industriais acabavam indo para uma
escola de engenharia, em busca de um diploma (nem sempre de uma qualificação) que os
habilitasse a disputar em melhores condições os cargos que lhes eram destinados como
técnicos.

Além do mais, o sistema educacional brasileiro não foi capaz de implantar, nem
parcialmente, uma transformação como a pretendida, por falta de recursos humanos e
materiais. Mesmo se houvesse recursos para isso, não seria possível para as escolas
oferecerem habilitações profissionais conforme as mudanças da economia nas regiões
24
- Em 1969, os encontros que antecederam a V Conferência Nacional de Educação (cancelada, a
propósito, pelo Ministério da Educação que a promovia) enfatizaram a educação geral no ensino de 2o
grau, até mesmo para que se conseguisse propiciar adequada formação profissional, cada vez mais
realizada nos próprios locais de trabalho.

49
onde se localizavam, como era a pretensão do Ministério da Educação. Como definir o
perímetro do mercado de trabalho influenciado por uma dada escola ? O bairro ? O
estado ? O país inteiro ? Como saber onde os jovens vão trabalhar depois de quatro anos,
quando se formarem, ainda mais num país como o Brasil, onde 40% da população de
segundo grau de escolaridade morava em estado diferente do que nasceu ? Como
quantificar a procura de técnicos de uma dada especialidade numa economia
essencialmente anárquica, como a capitalista, e cronicamente em crise, como a brasileira
? Além do mais, a divisão técnica do trabalho não se faz por critérios estritos e
simplificados por nível de escolaridade. Os requisitos educacionais para a ocupação dos
cargos são estabelecidos pelas empresas conforme critérios variados, que vão desde tirar
vantagem das condições da oferta conjuntural de profissionais com os diversos níveis de
escolaridade, até a divisão política (sindical) da força de trabalho.

Sancionada a lei 5.692, de agosto de 1971, parecia que pela primeira vez na história do
país o ensino de 2o grau teria uma finalidade própria, diferente da mera função
propedêutica - a preparação para os exames vestibulares.

Mas, a implantação desse novo modelo foi muito diferente do que se pensava.

As caras escolas privadas, ciosas dos interesses imediatos de sua clientela, inventaram a
profissionalização faz-de-conta: já que seus alunos estavam mesmo interessados era no
curso superior, fantasiavam de “curso técnico de análises clínicas” o currículo das turmas
orientadas para o vestibular de medicina; de “tradutor-intérprete”, para o de letras; de
“mecânica”, para o de engenharia; e outras “soluções” dessa ordem. A maioria das
escolas privadas nem se preocupavam com esse tipo de disfarce, tamanha era a certeza de
que ficariam a salvo dos supervisores das secretarias estaduais de educação, em geral
dirigidas pelos próprios empresários de ensino ou seus prepostos.

O Conselho Federal de Educação parecia moldar o próprio mercado de trabalho com seus
pareceres. O de número 45/72 relacionou 130 habilitações para técnicos e auxiliares
técnicos. Em certos casos, previam-se várias ocupações “típicas” de um mesmo setor.
Para a indústria de tecidos, por exemplo, previam-se oito habilitações: técnico têxtil,
técnico em fiação, técnico em tecelagem, técnico em malharia, técnico em acabamento
têxtil, desenhista de padronagem, auxiliar de laboratório têxtil em fibras e tecidos,
auxiliar de laboratório têxtil em química. Novas habilitações, com seus currículos
mínimos específicos, foram sendo acrescentadas à lista original. Em agosto de 1974, o
número de habilitações do ensino de 2o grau já chegava a 158, algumas delas aprovadas
apenas para certas unidades da federação.

Nas redes públicas de ensino, os estragos foram tremendos.

As escolas normais, onde eram preparados professores para o ensino primário (as quatro
primeiras séries do 1o grau), foram desativadas, transformado seu curso em apenas mais
uma habilitação do elenco oferecido pelas escolas, para onde iam os alunos que, por suas
notas mais baixas, não conseguiam vagas nas turmas de habilitações mais atraentes. Essa

50
forma de recrutamento mais o currículo enfraquecido da habilitação provocou danosas
consequências na qualidade do ensino público de 1o grau.25

As escolas técnicas industriais da rede federal sofreram menos os efeitos da lei 5.692/71,
mas isso por sua capacidade de resistirem à implantação da reforma. As das redes
estaduais não tiveram igual sorte. Os certificados de seus cursos valiam, agora, o mesmo
que os conferidos pelos cursos improvisados das outras. Não foram poucas as escolas
técnicas estaduais, de longa tradição num ensino de alta qualidade, que foram
transformados em “centros interescolares”, onde os alunos das demais eram
“apresentados” a máquinas, instrumentos, equipamentos, num rodízio que não era
suficiente para o ensino profissional, nem dava espaço para a continuação do ensino que
elas desenvolviam há muito tempo. O mercado de trabalho para o técnico industrial
piorou com isso, ao invés de melhorar.

A política de profissionalização universal e compulsória no ensino de 2o grau encontrou


resistências generalizadas. Embora o regime autoritário não encorajasse a expressão de
desagrado diante do que era determinado pelo governo, os estudantes receberam de má
vontade o acréscimo de disciplinas (as profissionalizantes) e a diminuição das que
supunham que fossem precisar no exame vestibular real ou imaginário; os proprietários
de escolas privadas reclamavam do acréscimo de custo, mesmo se o ensino por eles
oferecido fosse profissionalizante apenas na fachada; os empresários, de quem se
esperava que recebessem os estudantes para estágio, não abriam as portas de suas
empresas devido aos problemas que os estudantes supostamente iriam levar para a rotina
da produção; os professores das escolas técnicas mais antigas temiam a desvalorização do
diploma de técnico que outorgavam, diante da enxurrada de diplomas homônimos, mas
de conteúdo completamente diferente; etc.

As resistências ganharam força quando a crise do “milagre econômico” eclodiu em fins


de 1973. Essa crise, provocada pelas contradições internas ao próprio modelo de
desenvolvimento e à súbita elevação dos preços do petróleo no mercado internacional,
dividiu as classes dominantes e as próprias bases militares do regime quanto aos rumos
do desenvolvimento. Isso levou o governo empossado em 1974 a empreender uma
política de distenção, que conduzisse à abertura, na tentativa de incorporar novos
segmentos à sua base social. Para isso, impunha-se a modificação de políticas setoriais
que geravam tensões. No caso do Ministério da Educação, a profissionalização universal
e compulsória era o principal alvo da distensão.

O próprio Ministério da Educação deu o primeiro passo nesse sentido, em mensagem ao


CFE, na qual incorporava algumas críticas à profissionalização. O conselho, numa
ardilosa “reinterpretação” da lei 5.692/71, emitiu parecer onde mantinha o “ideal” do
ensino profissionalizante, mas redefinia seu conteúdo, permitindo o aumento da carga das
disciplinas de caráter geral.

25
- Se for somado o efeito dos baixos salários na auto-seleção negativa dos candidatos ao magistério,
encontraremos aí os principais fatores responsáveis pela deterioração do ensino público em nosso país.

51
Além da formação de técnicos e auxiliares técnicos, o ensino profissionalizante de 2o
grau passava a visar, para a maior parte dos alunos, principalmente à educação geral,
com algumas tinturas de informação tecnológica, correspondentes a alguns setores da
produção. Além da multidão das habilitações específicas já aprovadas, foram
incorporadas “habilitações básicas” em agropecuária, cinco habilitações para a indústria e
quatro para o comércio e os serviços.

Nesse novo quadro, a divisão estrita entre a parte geral e a parte especial do currículo
ficou difusa pelo reconhecimento de que há disciplinas da parte de educação geral que
podem ser consideradas instrumentais para uma habilitação profissional, constituindo
parte da formação especial. No caso da habilitação básica em agropecuária, por exemplo,
a parte de formação especial do currículo compreendia 1.050 horas, assegurando a
predominância da formação especial sobre a educação geral. No entanto, apenas 600
dessas 1.050 horas (27% da carga horária do currículo pleno) correspondiam a disciplinas
que poderiam ser consideradas propriamente profissionalizantes (agricultura, zootecnia,
economia e administração agrícola). As demais 450 horas da carga de formação especial
deveriam ser preenchidas com disciplinas instrumentais (desenho básico, química,
biologia, física e programas de orientação profissional) que não são outra coisa senão
educação geral, somada às que o núcleo comum do currículo já previa.

Essa profissionalização pela metade não agradou a ninguém.

Depois de estudos promovidos pelo Ministério da Educação, em associação com


universidades, o governo enviou ao Congresso um curto mas incisivo projeto de lei, logo
aprovado, alterando profundamente a lei 5.692/71. Em 1982, quando se realizaram as
eleições diretas para o governo dos estados, já não era mais politicamente possível ao
CFE mudar uma lei por um mero parecer. Era preciso outra lei.

A qualificação para o trabalho, objetivo do ensino do ensino de 2o grau, segundo a lei


5.692/71, foi substituída pela preparação para o trabalho, pela lei 7.044/82, um termo
impreciso, que mantém, na letra, a imagem do ensino profissionalizante, mas permite
diferentes arranjos. A lei da reforma da reforma retirou de uma vez por todas a
obrigatoriedade da habilitação profissional no 2o grau, mesmo a tal habilitação básica.
Agora, o ensino de 2o grau poderia ensejar uma habilitação profissional.

Voltamos ao ponto de partida em situação pior do que estávamos. As escolas públicas de


2o grau foram desorganizadas, seus currículos transformados numa mistura disforme de
concepções. As escolas técnicas industriais, por terem conseguido manter um ensino de
mais alta qualidade, em termos de educação geral e de educação profissional, viram-se
procuradas por crescente número de estudantes que pouco ou nenhum interesse tinham
por seus cursos propriamente técnicos. Desorganizado o ensino público de caráter geral
nas redes estaduais de 2o grau, e deteriorada sua qualidade, esses estudantes viam nas
escolas técnicas industriais a única maneira de terem acesso a um ensino gratuito que lhes
propiciava uma adequada preparação para os exames vestibulares aos cursos superiores.

52
Fracassada, então, a política de profissionalização universal e compulsória no ensino de
2o grau, a função contenedora que dela se esperava não chegou a ser desempenhada. A
tentativa de conter os candidatos ao ensino superior teve de ser providenciada neste grau
mesmo, mediante a elevação das barreiras dos exames vestibulares. Ao mesmo tempo,
procurou-se incentivar os cursos superiores de curta duração, em especial os da área
tecnológica (na área do magistério o fenômeno foi outro), mas apartando os cursos e os
estudantes das universidades, confinando-os em certas escolas técnicas federais, então
promovidas a centros federais de educação tecnológica. Os concluintes desses cursos
deixaram de receber o título de “engenheiros de operação”, fonte de tantas aspirações
frustradas, para serem chamados de “tecnólogos”, categoria que procurava marcar a
separação dos técnicos de nível médio e dos engenheiros (propriamente ditos).

Paralelamente a essas mudanças, o SENAI entrou no ensino técnico de 2º grau com muita
força, mediante a instalação de escolas especializadas, em direção radicalmente oposta à
das escolas técnicas da rede federal, que formavam profissionais mais generalistas.
Ademais, desde a década de 70, a alteração das técnicas produtivas e da composição da
força de trabalho industrial levaram essa instituição a modificar sua ênfase, priorizando
os cursos rápidos para adultos, visando menos à formação de operários qualificados (via
aprendizagem) do que a dos semi-qualificados, para usar a nomenclatura que informou
sua criação.

Em suma, as mudanças na política educacional relativa ao 2o grau que, num primeiro


momento, resultaram da política para o ensino superior, obrigou esta última a mudar
quando aquela fracassou e foi redefinida.

A PROFISSIONALIZAÇÃO NA LDB-96 E SEUS DESDOBRAMENTOS

A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, 9394, de 23/12/96, traz uma


concepçäo claramente profissionalizante do ensino médio. Näo no sentido lato que se
generalizou com a lei 5.692/71, quando o ensino profissionalizante passou a significar
ensino profissional, sem os preconceitos negativos que lhe eram atribuídos.

No item II das finalidades do ensino médio (nova denominação do ensino de 2o grau), na


nova LDB, a "preparação para o trabalho" aparece antes da "preparação para a
cidadania". Não bastasse isso, a continuação do item refere-se exclusivamente à
profissionalização: "de modo a ser capaz de se adaptar com flexibilidade a novas
condições de ocupação ou aperfeiçoamento posteriores" - é claro que isso não diz
respeito à "preparação para a cidadania" !

Depois de apresentar a finalidade do ensino médio voltada para a formação ética e a


autonomia intelectual, a LDB retorna à profissionalização, agora de modo surpreendente:
no item IV, o ensino médio é apresentado como tendo a finalidade de propiciar "a
compreensão dos fundamentos científico-tecnológicos dos processos produtivos".

53
Acrescenta, ainda, que isso deverá ser feito "relacionando a teoria com a prática, no
ensino de cada disciplina".

No mesmo sentido, a lei determina que os conteúdos e as formas de avaliação serão


organizados de tal forma que, ao final do ensino médio, o educando demonstre "domínio
dos princípios científicos e tecnológicos que presidem a produção moderna". No
referente ao currículo, a seção do ensino médio diz que suas diretrizes destacarão "a
educação tecnológica básica", além do "processo histórico de transformação da sociedade
e da cultura". Essas expressões parecem evocar a pretensão de uma educação politécnica
(sem empregar tal expressão), tal como foi proposta ainda durante o processo de
elaboração da Constituição de 1988.

Passemos, agora, ao capítulo da educação profissional.

A primeira coisa que chama a atenção é a configuração de todo um sistema paralelo de


ensino, apesar da ampliação conceitual (educação ao invés de ensino). A segunda coisa
que chama a atenção é que se trata de um segmento com objetivos propriamente
profissionais, em oposição ao ensino médio, com pretensões profissionalizantes. Com
efeito, a educação profissional “conduz ao permanente desenvolvimento de aptidões para
a vida produtiva”.

Ainda em apoio à imagem de um sistema paralelo, o capítulo em questão diz que o aluno
matriculado ou egresso (voltaremos a essa disjuntiva mais adiante) dos três níveis de
ensino (fundamental, médio ou superior) "contará com a possibilidade de acesso à
educação profissional", tanto quanto o trabalhador em geral, jovem ou adulto.

Não bastasse isso, a LDB diz que a educação profissional será desenvolvida em
articulação com o ensino regular, vale dizer que não se confunde com ele nem se
desenvolverá de forma integrada com o ensino regular, como pretende a "pedagogia
politécnica" e outras concepções pedagógicas que valorizam currículos integrados, onde
a educação propriamente não se encontre dissociada da educação geral, daquilo que a
seção do ensino médio parece chamar de teoria.

Que diferença fantástica entre a seção do ensino médio e o capítulo da educação


profissional ! Enquanto a primeira fala de relacionamento entre teoria e prática com tanta
ênfase que deveria ser feita em cada disciplina, o capítulo da educação profissional
parece ter orientação oposta, apresentando-a como ocorrendo simultânea ou
posteriormente à educação geral (o aluno matriculado ou egresso...).

No curto capítulo da educação profissional, as escolas técnicas mereceram especial


atenção, pelo menos no que elas não têm de específico: o oferecimento de cursos não
técnicos, abertos à comunidade, condicionada a matrícula à capacidade de
aproveitamento, não necessariamente ao nível de escolaridade. Vamos nos concentrar um
pouco mais nas escolas técnicas.

54
Por causa das mudanças na estrutura do ensino, desde o início dos anos 50, as escolas
técnicas industriais da rede federal (também as da rede estadual paulista) ganhavam
prestígio e viam aumentar o número dos que as procuravam, a ponto de terem de fazer
exames de seleção, por vezes com relação candidatos/vaga equivalente à dos cursos
superiores mais procurados.

Tão grande foi esse prestígio que, em 1971, foi nelas que se inspirou a reforma instituída
pela lei 5.692, que, como vimos, foi um retumbante fracasso. Enquanto isso, crescia o
efeito da participação privada na gestão dos sistemas estaduais de ensino. Secretários da
educação e membros dos conselhos estaduais, nos quais os empresários do ensino
chegaram a constituir a maioria, quando não a totalidade, administravam o ensino público
legislando em causa própria: em proveito do setor privado de ensino e em detrimento do
setor público. À medida que o ensino público se deteriorava por força de uma
administração sem rumo ou do mero descaso, o setor privado enchia-se de alunos,
oriundos de famílias que podiam pagar por mensalidades crescentes em estabelecimentos
de ensino especializados na preparação para os cursos superiores.

Nesse período, as escolas técnicas industriais, em especial as da rede federal continuavam


a receber um número cada vez maior de candidatos. Como elas conseguiram preservar-se
diante das tentativas de transferência para as redes estaduais e das tentativas de
dissolução em centros interescolares, permaneceram como um espaço de ensino público
gratuito e de alta qualidade, em meio à deterioração geral do 2o grau. Nessa situação, sua
função propedêutica (preparação para o ensino superior) cresceu em relação à função
profissional, se não a sobrepujou.

Depois, então, da valorização das escolas técnicas industriais e de sua supervalorização, a


ponto de serem as inspiradoras da lei 5.692/71, elas foram transformadas em vilãs,
acusadas de perdulárias e desencaminhadoras dos seus alunos. Para resolver esse
“problema”, desde a segunda metade dos anos 70 foram elaboradas propostas que
pretendiam fazer com que só pudessem entrar nas escolas técnicas os alunos que não
poderiam ou não queriam fazer cursos superiores. Na política educacional desenvolvida
desde 1995, essas propostas foram incorporadas pela legislação.

Destinada pela LDB-96 para os alunos matriculados no ensino médio ou dele egressos, a
educação profissional foi configurada pelo decreto 2.208/97 como um sistema paralelo.
Com efeito, a articulação entre ambos foi concebida entre dois sistema distintos.
Enquanto sistema distinto do ensino médio, a educação profissional será composta de três
níveis, onde a preocupação com os cursos técnicos se expressa na maioria absoluta dos
artigos.

O nível básico26 foi destinado à qualificação, requalificação e reprofissionalização de


trabalhadores, independentemente de escolarização prévia, em cursos não sujeitos a
regulamentação curricular. É aqui que se enquadram os cursos de aprendizagem do

26
A nomenclatura será causa de confusão, pois o nível básico da educação profissional é bem distinta do
ensino básico, conforme a LDB-96.

55
SENAI, assim como os cursos mais breves que a instituição ministra, e, também, os
cursos que as escolas técnicas da rede federal foram instadas a oferecer, atuando na área
típica daquela instituição patronal. A propósito, as instituições de ensino profissional
públicas e as privadas sem fins lucrativos, apoiadas financeiramente pelo Poder Público,
deverão oferecer, obrigatoriamente, cursos profissionais de nível básico, abertos aos
alunos das redes públicas e privadas de educação básica, assim como aos trabalhadores
com qualquer nível de escolaridade.27

O nível técnico foi destinado a proporcionar habilitação profissional aos alunos


matriculados no ensino médio ou dele egressos. Os cursos técnicos terão organização
curricular própria, independente do ensino médio, sendo ministrados de forma
concomitante ou seqüencial a este. Assim, ficou terminantemente proibido oferecer um
curso técnico integrado com o ensino médio, a não ser nas escolas agrotécnicas, uma
exceção mencionada, mas não definida. A única articulação admitida entre ensino médio
e ensino técnico, ainda assim, a posteriori, seria o aproveitamento neste de até 25% do
total da carga horária mínima, de disciplinas profissionalizantes cursadas naquele. Os
currículos das habilitações técnicas poderão ser organizadas em módulos, os quais terão
caráter de terminalidade, dando direito a certificados de qualificação profissional
específica. Num intervalo de cinco anos, tais módulos poderão ser aproveitados para a
composição de um certificado de habilitação profissional de nível técnico, que deverá ser
conferido pelo estabelecimento que ministrou o último dos módulos.

O nível tecnológico, o mais imprecisamente definido de todos, foi destinado aos egressos
do ensino médio e técnico, em cursos de nível superior na área tecnológica. Os diplomas
correspondentes serão de tecnólogo nas respectivas especialidades.

A portaria mencionada acima, no 646/97, destinada exclusivamente às escolas técnicas da


rede federal, estabeleceu que estas poderão oferecer no máximo a metade das vagas de
1997 para o ensino médio. Nos cinco anos seguintes, cada escola deverá aumentar de
50% o número de vagas oferecidas nos cursos técnico e médio.

A rede de escolas técnicas federais deverá se constituir em centros de referência, ficando


com sua expansão limitada em termos do número de estabelecimentos. A portaria fez
referência a artigo de medida provisória28 que determina a expansão da oferta de ensino
técnico, mediante a criação de novas unidades escolares por parte da União, em parceria
com os estados, os municípios, o setor produtivo ou organizações não-governamentais,
que serão responsáveis pela manutenção e gestão dos novos estabelecimentos de ensino.

27
Foi o que chamei de senaização das escolas técnicas federais, já que estas ocupariam o espaço dos
centros de formação profissional SENAI.
28
Trata-se da medida provisória 1.549-29, de 15 de abril de 1997, que reformulou a organização da
Presidência da República e dos ministérios. Ela acrescentou parágrafos à lei 8.948/94, que instituiu o
Sistema Nacional de Educação Tecnológica, que já se supunha ultrapassada pelos fatos e pela legislação
posterior. A lei rediviva transformava todas as escolas técnicas federais em CEFETs e criava um Conselho
Nacional de Educação Tecnológica, que seria paralelo ao Conselho Nacional de Educação. A medida
provisória suprimiu essa transformação, mas a lei 9.131/95, que criou o CNE, não revogou a lei do ano
anterior, nem os artigos que tratam do CNET.

56
A nova legislação realizaria o objetivo de separar o ensino médio e o ensino técnico, de
modo que este fique desprovido por completo de sua antiga função propedêutica, isto é,
preparatória para o ensino superior.

Atenuando um pouco essa política dualista, o parecer 17/97, aprovado pela Câmara de
Educação Básica do Conselho Nacional de Educação, em 3 de dezembro de 1997,
determinou uma mudança nas relações entre o ensino médio e o ensino técnico. Com
efeito, a idéia inicial do MEC, de que o aluno que colecionasse certificados dos módulos
de um dado curso técnico poderia requerer o certificado de técnico na especialidade
correspondente, sem ter cursado o ensino médio, foi barrada no Conselho.

Embora o parecer não contenha a expressão direta do Ministério, que proíbe a existência
de cursos integrados, ele resumiu-se a apresentar sua opinião quanto à dificuldade de
readaptação dos currículos integrados às mudanças do mercado de trabalho29 e a mostrar
as vantagens dos cursos sequenciais (sempre apresentados como o curso técnico depois
do médio) e concomitantes. Os alunos (ao menos parte deles) não ficariam prejudicados
no caso dos cursos sequenciais, pois “dependendo da habilitação, os currículos e horários
poderão continuar sendo organizados de tal forma que o aluno possa estudar e trabalhar,
como ocorre em parte dos casos atualmente.” (parecer 17/97)

O parecer acrescentou outra possibilidade de ligação entre o ensino médio e o ensino


técnico. Além oferta do ensino técnico concomitantemente ao ensino médio ou em
sequência, foi acrescentada outra: a possibilidade de se adotar a forma combinada, isto é,
concomitância e sequencialidade. Neste caso, o ingresso no curso técnico exigeria
matrícula e frequência na 2a. ou 3a. série do ensino médio, “sempre em função dos perfis
de entrada e de saída da habilitação.

O ponto alto do parecer foi, certamente, o de vedar a possibilidade de que o certificado de


técnico pudesse ser outorgado a quem concluísse apenas os módulos correspondentes a
uma dada especialidade, como pretendia a assessoria do MEC nessa matéria. Coerente
com a ênfase da educação geral como condição para uma educação profissional de
qualidade, que abre o texto do parecer, a formulação resultou assim:

“O conjunto dos módulos de determinado curso corresponderá a uma habilitação


profissional e dará direito a diploma de técnico, desde que comprovada a conclusão
do estágio supervisionado, quando exigido, e a conclusão do ensino médio.”
(parecer 17/67, grifo meu)

Portanto, sem o ensino médio concluído antes do curso técnico, ao mesmo tempo em que
ele ou até mesmo depois, nenhum aluno poderia receber o certificado de técnico.

29
“O chamado currículo integrado é extremamente difícil de ser modificado e por isso mesmo acaba se
distanciando cada vez mais da realidade do mundo do trabalho.” (parecer 17/97)

57
A AUTO-PRIVATIZAÇÃO DO SENAI

A LDB nada traz de novo no que diz respeito ao SENAI nem às entidades congêneres de
educação profissional, o que não quer dizer que elas não tenham passado por alterações
profundas, especialmente na que concerne ao setor industrial. Vamos focalizar esse
ponto.

Como vimos mais acima, a rede SENAI cresceu a um ritmo espetacular, modificando-se
em função das ondas de mudanças do setor produtivo. Nos anos 40, iniciou suas
atividades priorizando a aprendizagem industrial, para qualificar o operariado para a
indústria nascente; nos anos 50, foi a vez da modalidade treinamento, correlativa à
industrialização segundo os moldes da grande indústria; nos anos 90, a ênfase recaiu na
polivalência. Nos anos 70, a ênfase na habilitação de técnicos de nível médio resultou
mais da política educacional de profissionalização universal e compulsória no ensino de
2o. grau do que de mudanças efetivas do setor produtivo. Mas, o ambíguo estatuto do
SENAI, uma instituição privada criada por ato estatal, propiciou interpretações que
ameaçaram seu próprio formato institucional. Vamos a elas.

A lei 2.613/55 criou o Serviço Social Rural, sob regime de autarquia que, como tal, era
obrigada a ter seus balanços aprovados pelo Tribunal de Contas da União. Durante a
tramitação no Congresso, essa dependência do SSR ao TCU foi estendida ao SESI, ao
SESC, ao SENAI e ao SENAC.

Essas instituições recorreram da decisão mas, desde então, interpretações conflitantes


reconheceram ora o caráter público daquelas entidades (e sua dependência ao TCU), ora
seu caráter privado (e independência desse tribunal), até que a reforma administrativa
baixada pelo decreto-lei 200/67 resolveu essa pendência, ao menos provisoriamente, ao
determinar que:

“As entidades e organizações em geral, dotadas de personalidade jurídica de direito


privado, que recebam contribuições parafiscais e prestam serviços de interesse
público e social, estão sujeitas à fiscalização do Estado nos termos e condições
estabelecidas na legislação pertinente a cada uma.”

Passando do plano do Estado para o da sociedade, pode-se constatar o surgimento de


novas ameaça ao estatuto privado do SENAI.

O mesmo processo que propiciou a hegemonia dessa instituição no ensino profissional,


no âmbito do setor industrial, criou condições para que o exclusivo controle patronal
fosse desafiado, o que seus dirigentes entenderam como sendo uma ameaça a sua
sobrevivência.
A automatização e a polivalência - pelo menos o anúncio delas como sendo inevitáveis e
generalizadas -, bem como outras formas de reestruturação industrial, levaram à previsão
de que o número de trabalhadores empregados na indústria seria drasticamente reduzido,
mesmo sem “desindustrialização” e até com crescimento da produção. Ainda que seus

58
salários médios tendessem a crescer, previu-se que a receita do SENAI, vinculada à folha
de salários, seria declinante, à medida que esse processo se desenvolvesse. A qualificação
profissional dos trabalhadores requeridos pela indústria (assim como sua escolarização
geral prévia) seria sensivelmente superior ao do operário típico do regime do
fordista/taylorista, o que reduziria em muito a importância da aprendizagem industrial,
razão de ser da contribuição compulsória. Não obstante, a instituição gasta com a
aprendizagem a maior parte dos recursos, enquanto o número de alunos é diminuto nesse
tipo de curso.

Os argumentos em prol do abandono da aprendizagem, reiterados pelos dirigentes e


técnicos do SENAI, aludem aos fatos de que as empresas demandam à instituição
justamente o treinamento, não a aprendizagem (um pouco mais a qualificação). O
paradoxo dessa argumentação reside no fato de que a polivalência é celebrada no
discurso a respeito da mudança no requerimento das empresas em matéria de força de
trabalho. Ora, os rápidos cursos de treinamento (algumas dezenas de horas), altamente
especificados, não poderiam jamais formar para o trabalho polivalente.

Ademais, tem sido sugerido que o requisito de educação geral para os cursos de
aprendizagem passe do fundamental para o médio, embora isso pareça resultar mais do
diagnóstico a respeito da deterioração da qualidade do ensino público do que
propriamente da valorização da elevação do nível dos conhecimentos. Em decorrência, há
quem pense que, neste caso, já se trataria da habilitação profissional, não da
aprendizagem.

A terceirização, a terciarização e a informalização estariam levando a mudanças na


organização das empresas que afetariam igualmente a receita da instituição.

A terceirização consiste na transferência da produção de certos componentes a


fornecedores ou, então na transferência de serviços de apoio para empresas contratadas.
Quando se trata de componentes ou serviços oferecidos por empresas não industriais (ex:
limpeza ou processamento de dados), a contribuição compulsória relativa à força de
trabalho nelas empregada passa do SENAI para o SENAC.30 Já a terciarização significa
a redução absoluta ou relativa da produção industrial, simultaneamente ao crescimento da
produção no setor serviços, como no exemplo mais visível da informática ou das
telecomunicações.31 Também aqui a receita que poderia crescer é a do SENAC, em
detrimento de seu congênere industrial. Não bastasse isso, tem havido um processo de
fragmentação do sistema SENAI, com a montagem de “serviços” próprios para o setor de
transporte rodoviário - o SENAT -, e já há projetos para entidades semelhantes para as
telecomunicações e para a construção civil. A informalização é outro processo que afeta a
contribuição compulsória, já que apenas a folha de pagamento com os trabalhadores

30
Ou nem para o SENAC, já que as empresas subcontratadas têm se caracterizado pelo emprego de
trabalhadores temporários ou disfarçados de trabalhadores por conta própria - é a informalização, que será
comentada adiante.
31
A rigor, a terciarização se dá, também, quando o crescimento do setor serviços é proporcionalmente
maior do que o das atividades primárias e/ou secundárias.

59
regularizados é que serve de base para seu cálculo. À medida que as empresas se recusam
a “registrar” seus empregados, elas deixam de recolher a contribuição devida ao SENAI.

A abertura da economia à concorrência internacional, mediante a drástica redução das


taxas alfandegárias, levaram os empresários a reivindicarem do governo a redução do
chamado “custo Brasil”, isto é, do custo de produção no Brasil, especialmente dos fretes,
dos juros e da força de trabalho. Entre os fatores de custo da força de trabalho cuja
redução tem sido reivindicada estão as contribuições das empresas para o “Sistema S”:
SENAI, SESI, SENAC, SESC, SENAR, SENAT, SEST e SEBRAE. O argumento
corrente é que se as contribuições respectivas deixarem de ser pagas, o custo da força de
trabalho ficaria menor e, das duas uma: aumentaria diretamente o emprego ou reduzir-se-
ia o custo da produção que levaria, indiretamente, a um aumento da produção e do
emprego. De um jeito ou de outro, a redução do “custo Brasil” implicaria a extinção ou
redução da contribuição compulsória para o SENAI.

Mas, o entusiasmo do empresariado para com a extinção ou a redução da contribuição


compulsória destinada ao SENAI e ao SESI, que somam 2,5 % da folha de pagamento
(um pouco mais para as empresas com um contingente superior a 500 empregados), não é
compartilhado pelas entidades que se propõem a representá-los. Isto porque os recursos
daqueles serviços são vultosos, importantes para essas entidades e os ocupantes de seus
cargos, cuja projeção político-eleitoral é significativa. Afinal, o SENAI e o SESI, juntos,
arrecadaram quase R$ 2 bilhões, em todo o país, em 1995. Isso explica a oposição da
confederação e das federações da indústria ao projeto de mudança da legislação
trabalhista de que resultou a lei 9.601, de 21 de janeiro de 1998. Criou-se a figura do
“emprego temporário”, correspondente a uma forte redução dos encargos salariais. As
contribuições devidas ao SENAI e ao SESI foram reduzidas em 50%,32 no caso dos
trabalhadores empregados nesse regime. Os argumentos das entidades patronais, na
oposição ao projeto, no que diz respeito à redução dessas contribuições, apelaram para a
importância da formação profissional para o desenvolvimento industrial.

Durante a Assembléia Nacional Constituinte 1987/88, embora houvesse mais de uma


sugestão no sentido de que as contribuições compulsórias existentes, como a do SENAI e
a do Salário Educação, por exemplo, passassem a incidir sobre o faturamento das
empresas, a reação do “Sistema S” e de certos órgãos da imprensa foi imediata e
contrária. Para a manutenção do mecanismo existente de financiamento dessas entidades
foi desencadeada uma campanha de âmbito nacional que recolheu 1,6 milhão de
assinaturas, a mais apoiada, numericamente, de todo o processo constituinte. Por isso e
por outros tipos de pressão, o mecanismo de financiamento então existente prevaleceu.

Do lado dos trabalhadores, surgiram propostas que defendiam a gestão tripartite do


SENAI e entidades congêneres. Esta seria outra ameaça à instituição.

32
A proposta original do governo era de reduzir de 90% a contribuição ao “Sistema S”, mudada para 50%
por causa das pressões em contrário.

60
Depois que a constituição de 1988 assegurou o status quo do SENAI e seus congêneres
como órgãos privados, nova ameaça surgiu em artigo do projeto de Lei de Diretrizes e
Bases da Educação Nacional, oriundo da Câmara dos Deputados.

Pelo substitutivo Jorge Hage, a gestão patronal do SENAI não se alteraria, mas a
instituição ficaria afeta a um conselho, no qual a participação estatal seria majoritária, e
os empresários igualavam-se aos trabalhadores em número de representantes. Além do
mais, o projeto inovava com a determinação de que os governos estaduais deveriam criar
centros públicos de formação técnico-profissional, financiados com uma contribuição
compulsória das empresas, à semelhança da que beneficia o SENAI, correspondente a
0,5% da folha de pagamento. Seria o setor público entrando diretamente na formação
profissional, pela via dos sistemas estaduais de ensino. Essa idéia foi assumida pela
Central Única dos Trabalhadores, aliás, participante do Fórum Nacional em Defesa da
Escola Pública na LDB. Na resolução relativa à formação profissional, aprovada no 5o
Congresso Nacional da entidade, realizado em São Paulo, em maio de 1994, além de
reivindicar a criação de centros públicos de ensino profissional, à imagem do projeto de
LDB da Câmara, a entidade aprovou a seguinte posição:

“Defender a formulação pública das políticas de formação profissional, com amplo


espaço para a participação dos trabalhadores na definição dos rumos dessa
formação e, em especial durante a fase de formação profissional, orientar os
treinadores no tocante à legislação sobre segurança e medicina no trabalho.
Portanto, a CUT deve reivindicar a sua participação, nos termos da resolução da
OIT que prevê a gestão tripartite (trabalhadores, empresários e Estado), na gestão
de fundos públicos e nas agências e programas de formação profissional de alcance
municipal, estadual, nacional e internacional. (...) Reivindicar a participação dos
trabalhadores e do poder público na elaboração e avaliação de todos os programas e
políticas de formação profissional, bem como na fiscalização da aplicação de todo e
qualquer fundo de natureza pública e dos desenvolvidos nos locais de trabalho.
‘Temos hoje a situação insustentável em que 1% da folha de pagamentos das
empresas é administrado por instituições como o SENAI. Esses recursos, que são
patrimônio público, assim deveriam ser administrados’ (resumo do texto aprovado
no 1o Congresso dos Metalúrgicos do ABC). Nesse sentido, a CUT deve articular
no Congresso Nacional uma emenda constitucional para esse fim, organizando uma
ampla mobilização para sua aprovação. (...) Reivindicar que todos os recursos
compulsórios ou na forma de incentivos destinados à formação e/ou requalificação
profissional sejam considerados e administrados como fundos públicos, com a
participação dos trabalhadores. Constituição de conselhos tripartites (trabalhadores,
governo e empresários) para a gestão de agências de formação profissional
(SENAI, SENAC, SESI, SENAR), ou de outras iniciativas complementares ao
ensino regular de âmbito municipal, estadual, nacional e regional, visando rigoroso
controle fiscal e formalização de processos sistemáticos de avaliação dos serviços
prestados.”

Ou seja: além de reivindicar gerir o SENAI participando (em igualdade de representação


com o governo e o empresariado) dos conselhos da instituição, a CUT pretende que os

61
recursos oriundos da contribuição compulsória possam ser direcionados para outras
entidades.

Diante das ameaças que se delineiam, provindas de dentro e de fora da instituição, a


direção do SENAI tem desenvolvido estratégias de enfrentamento, que, no entanto, não
integram um plano coerente. Ao contrário, contém contradições flagrantes, como
veremos em seguida. A estrutura federativa do SENAI, que possibilita diversos arranjos
de poder, propicia a diversidade de orientação num mesmo nível da instituição, como,
também, e principalmente, entre os diversos níveis da mesma.

A ação mais ambiciosa desenvolvida enquanto estratégia de enfrentamento das ameaças


originou-se da própria direção nacional do SENAI, articuladamente com a Confederação
Nacional da Indústria.

No sentido de assegurar a identificação das diversas instâncias do SENAI com os


objetivos empresariais, os diretores dos departamentos regionais foram substituídos
recentemente, priorizando-se, para ocupar os cargos, empresários no lugar de antigos
funcionários da instituição. Com isso, procura-se garantir que a direção da instituição
mantenha o caráter político e não burocrático, no sentido que Max Weber dá a esses
termos.

No mesmo sentido, a confederação e as federações de indústria estão promovendo a


integração financeira e administrativa com os órgãos a elas vinculados, de modo que será
cada vez mais difícil separar as atividades de umas e outras, no caso em que houver
extinção da contribuição compulsória de alguma delas.33 No caso do SENAI, a orientação
geral é a transferência de toda a atividade de educação geral, em todos os cursos, para o
SESI, priorizando-os sobre os da escola pública.

Tudo somado, é possível afirmar que está em marcha um processo de mudança com
várias velocidades, orientado pelo mercado ou melhor, pela idéia hegemônica do que
seja o mercado. Mas, o efeito inercial do aparato da confederação e das federações, assim
como do próprio SENAI, tendente a manter o status quo, não é nada desprezível. A
trajetória efetiva vai depender, portanto, da resultante de duas forças principais, ambas
internas à instituição: a defesa da contribuição compulsória, reduzindo-se ao mínimo a
aprendizagem, mesmo que isso deixe a instituição exposta à pressão das centrais
sindicais, que pretendem obter a parceria do Estado para exercerem o controle social
sobre o SENAI; e o abandono da contribuição compulsória, partindo-se para a busca de
recursos no mercado e nas parcerias com órgãos públicos em projetos específicos,

33
No entanto, tem havido uma contestação dessa prática pelos tribunais de contas da União, a quem o
SENAI, como as demais entidades do “Sistema S” têm de prestar contas, efeito da ambiguidade original
entre as esferas públicas e privadas. Interpretando a natureza do SENAI como instituição pública, alguns
juizes têm multado diretores regionais por não promoverem licitações para a contratação de serviços. Estes,
por sua vez, recusam-se a adotar essa prática, alegando seu caráter privado. Ademais, as fusões entre as
entidades, inclusive os prédios e as administrações, assim como o regime de “caixa única” têm sido
apontados pelos juizes como prática ilegais.

62
eliminando a aprendizagem dos cursos oferecidos, e enfatizando a assistência técnica e as
consultorias.

De todo modo, parece que a estratégia que tende a prevalecer no enfrentamento de tal
ameaça é o afastamento da área de ambigüidade pública/privada, marca da origem
corporativa do SENAI. Assim, a entidade definiu como seu objetivo estratégico a busca
da auto-sustentação, isto é, a possibilidade de operar no campo da educação profissional
sem contar com a contribuição compulsória. Em consequência, a instituição se
dispensaria de oferecer a aprendizagem industrial, o curso que absorve a maior parte dos
recursos, para se dedicar aos que o mercado parece demandar com maior intensidade, e
para os quais estaria disposto a pagar. Igualmente com a assistência técnica e as
consultorias, áreas novas e promissoras.

Com essa reorientação estratégica, o SENAI parece estar fechando o flanco aberto à
ameaça das centrais sindicais (inclusive dos sindicatos a que estão filiados seus próprios
funcionários) de virem a participar da gestão da instituição, trazendo consigo maior
participação do Estado nos conselhos. Com efeito, se a contribuição compulsória
deixasse de ser cobrada, não haveria mais fundamento para que os trabalhadores, nem o
Estado, participassem dos conselhos do SENAI, em igualdade de condições com os
empresários. A ambigüidade estaria eliminada. De uma instituição de estatuto ambíguo, o
SENAI teria abandonado a base estatal de sustentação, num processo de auto-
privatização.

Mas, nesse movimento de translação sócio-política-econômica, o SENAI assumiria uma


posição de competidor num mercado onde já não é a única opção de formação
profissional, onde a hegemonia que deteve passou a ser questionada. Para tanto, a
instituição se convenceu de que deve competir buscando a “liderança de custos”,
vantagem que seus concorrentes não poderiam alcançar. Quem seriam esses concorrentes
? O próximo item procura identificar um deles.

UMA NOVA ESTRUTURA EDUCACIONAL ?

No que diz respeito ao seu “cardápio de ofertas”, as escolas técnicas federais foram
instadas a ampliar em muito suas atividades. Os longos cursos técnicos de três a quatro
anos de duração, juntando educação geral e educação profissional, seriam substituídos
por cursos técnicos pós-secundários, também chamados de especiais, conforme a
nomenclatura do SENAI. Concluintes do ensino médio, de caráter geral, fariam apenas a
parte profissional de cursos técnicos, de preferência em cursos noturnos. Outra
modalidade prevista é a de egressos do ensino fundamental cursando os módulos
exclusivamente profissionais de cada especialidade, enquanto fariam o ensino médio
paralelamente, na própria instituição ou não.

Outra grande novidade para as escolas técnicas, ao menos as da rede federal, é a ênfase
no que a Secretaria de Educação Média e Tecnológica chama de educação não-formal:

63
formação profissional de curta duração, qualificação profissional, retreinamento de
trabalhadores (inclusive reconversão), capacitação de jovens e adultos para o trabalho. A
tudo isso se soma a orientação para que as escolas atuem na prestação de serviços a
empresas e a agências governamentais, procedimento que se espera gere significativa
receita extra-orçamentária. Todos os cursos seriam montados na forma de módulos, de
modo que possa haver flexibilidade no sistema: entradas e saídas diversas, certificação
parcial e cumulativa.

Ainda que essas medidas não tenham ainda resultado em mudança efetiva no quadro
geral, já é possível perceber seu sentido. É o que chamei de senaização das escolas
técnicas industriais e dos CEFETs. Mas, considerando que a rede federal de ensino
técnico-industrial foi levada a atuar nos cursos básicos do ensino profissional, esse termo
deveria ser revisto. Com efeito, as escolas técnicas receberam o encargo de oferecer
cursos de qualificação profissional, cursos rápidos às empresas e a destinatários que se
apresentem voluntariamente, na ampliação do leque de seus cursos, além de partir para a
geração de receitas próprias. No que diz respeito aos cursos técnicos, eles deixarão de ter
um caráter mais generalista (ex: química), em proveito da maior especialização (como no
SENAI; ex: alimentos e bebidas, cerâmica, plásticos...).

As escolas dessa rede podem estar no rumo de um processo de privatização, por virem a
pautar-se pelas demandas imediatas das empresas e pela busca de recursos financeiros no
mercado, seja pela venda de cursos a quem esteja disposto a pagar por eles (destinatários
individuais e institucionais) seja pela apresentação de projetos às agências de fomento da
educação profissional, em igualdade de condições com outros “competidores”, como, por
exemplo, e principalmente, o SENAI.

Como elemento impulsionador das mudanças dessas instituições, os recursos do Fundo


de Amparo ao Trabalhador desempenharão um papel estratégico. Mesmo constituindo
um forte apelo para o crescimento das ONGs que atuam na educação profissional, os
vultosos recursos do FAT poderão viabilizar, ao mesmo tempo, a auto-privatização do
SENAI e a senaização das escolas técnicas federais e dos CEFETs.

Estaremos assistindo à translação institucional do SENAI, da ambigüidade


público/privada para a nitidez da esfera privada, paralelamente à translação da rede
federal de escolas técnicas, desde a esfera pública propriamente dita para um espaço de
ambigüidade ? Para esta rede, pelo menos em termos de busca de recursos no mercado e
dos padrões de gestão, isso parece já estar se configurando.

Se bem sucedida essa complexa política educacional, estará cumprido o vaticínio de


demolição da herança varguista na formação da força de trabalho, em proveito de um
modelo onde o Estado dedica-se à formulação de políticas, à indução financeira e, talvez,
à avaliação (pelo que se pode deduzir de outras iniciativas no campo educacional), mas
minimiza a execução direta. No limite, o que já foi um jogo de palavras poderá se
transformar em expressão adequada: o ministério não ministra educação (a profissional,
no caso), abrindo espaço para o crescimento do controle privado nesse campo.

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