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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO


CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
ESCOLA DE SERVIÇO SOCIAL
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SERVIÇO SOCIAL

O valor da fome no Brasil:


Entre as necessidades humanas e a reprodução do capital
(Tese de doutorado)

Leile Silvia Candido Teixeira

Rio de Janeiro, maio de 2015.


1

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO


CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
ESCOLA DE SERVIÇO SOCIAL
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SERVIÇO SOCIAL

O valor da fome no Brasil:


Entre as necessidades humanas e a reprodução do capital
(Tese de doutorado)

Tese de doutorado apresentada à banca de


defesa de tese do programa de Estudos
Pós-graduados em Serviço Social da Escola
de Serviço Social da Universidade Federal
do Rio de Janeiro, sob orientação do Prof.
Dr. Carlos Montaño, como critério parcial
para obtenção do título de Doutora em
Serviço Social.

Rio de Janeiro, maio de 2015.


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O valor da fome no Brasil: Entre as necessidades humanas e a


reprodução do capital

Leile Silvia Candido Teixeira

Tese de doutorado submetida à comissão julgadora nomeada pelo Programa


de Pós-Graduação da Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio
de Janeiro, como parte integrante dos requisitos necessários à obtenção do
grau de doutora.

Aprovada por:

___________________________________________
Orientador: Dr. Carlos Eduardo Montãno

___________________________________________
Dr. Lavínia Davis Rangel Pessanha (ENCE/IBGE)

___________________________________________
Dr. Newton Narciso Gomes Junior (ESS/UnB)

___________________________________________
Dr. Raquel Santos Sant’Ana (ESS/UNESP)

___________________________________________
Dr. Mauro Luis Iasi (ESS/UFRJ)

Rio de Janeiro, maio de 2015.


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TEIXEIRA, Leile Silvia Candido.


O valor da fome no Brasil: Entre as necessidades humanas e
a reprodução do capital/ Leile Silvia Candido Teixeira. Rio de
Janeiro: UFRJ/ESS
2015
253p
Tese – Universidade Federal do Rio de Janeiro, ESS.
1- Fome 2 - Alimento – 3 Necessidades Humanas 4 –
Política de Combate à Fome no Brasil
(Doutorado – UFRJ/ESS)
À minha avó Orsanta!
4

A minha avó Orsanta!

Por todas as rosas que comeste


alimentando de curiosidade e
poesia minha memória!

Aos meus pais Maja e Benê!

Por dedicarem a vida a


produzir alimentos,

Quando cultivar a terra era


aprender a agradecer a
natureza pelo calor da
comida.

E Zelar de animais o meio


para aprender de onde vinha
o que nos mantinha vivos.

Entre a fabricação da farinha


e a ordenha do gado um
longo caminho até a feira...
Foram tantas madrugadas
estreladas, que aos poucos
fui entendendo porque me
chamaram Noite!

Pela delicadeza do cotidiano


preenchido de músicas e
causos entre amanheceres
orvalhados e poentes
luminosos!

Esse estudo é para vocês,


com um pedido de desculpas
por minhas ausências!
5

RESUMO

A tese apresentada a seguir tem como objeto de estudo o valor da fome


no Brasil e sua particularidade na análise da organização da política de
combate à fome nos governos do Partido dos Trabalhadores (PT), de 2003 a
2014. A fome é apreendida como a ingestão insuficiente e/ou inadequada de
alimentos que leva a deterioração do estado de saúde e/ou desenvolvimento
produtivo e social dos homens. Sua satisfação é realizada pelo consumo de
alimentação adequada às necessidades nutricionais e sociais humanas,
histórica e socialmente determinadas possibilitando o desenvolvimento do
humano. O homem é entendido como um Ser Social que se caracteriza por se
autoconstruir como gênero no processo de satisfazer suas necessidades.
O método de análise utilizado permite compreender o homem como um
Ser Social que se caracteriza pela autoconstrução como gênero ao satisfazer
suas necessidades por meio do trabalho. Algumas questões são necessárias
para a delimitação do objeto, são elas: 1) Qual é o valor da fome na reprodução
do capital? 2) Como o padrão de desenvolvimento do capitalismo no Brasil
incide sobre o problema da fome? 3) Como está organizada a política de
combate à fome no Brasil? A hipótese dessa pesquisa é que a fome na
atualidade é funcional ao sistema capitalista, não sendo possível superá-la
enquanto a produção e a reprodução da vida estiverem submetidas à lógica de
acumulação do capital. A metodologia sustenta-se na pesquisa bibliográfica e
documental, com utilização de fontes secundárias.
Na análise da organização da política de combate à fome nos governos
do Partido dos Trabalhadores, nota-se que a fome possui valor político. Na
análise da situação alimentar no país, é possível apontar: a persistência da
fome; a mudança de um perfil de desnutrição para a obesidade – no que se
refere ao estado de saúde da população – e a funcionalidade da fome para a
reprodução do padrão de acumulação do capital influenciado pela economia do
agronegócio. Os resultados apontam, portanto, para a necessidade de
superação da ordem sociometabólica do capital caminho para a real resolução
do problema da fome.
6

Ao fim da análise, afirma-se que a fome é desvalor para o humano e


fonte de valor para o capital, enquanto o alimento é valor para o humano e, sob
a forma mercadoria meio de valorização para o capital. Sob a forma de
mercadoria o alimento pode tornar-se desvalor para o humano.

Palavras-chave: fome, alimento, necessidades humanas, reprodução do


capital, política de combate à fome.
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RESUMEN

La siguiente tesis tiene como objeto de estudio el valor del hambre en


Brasil y su particularidad en el análisis de la política de combate al hambre en
los gobiernos del Partido de los Trabajadores (PT), de 2002 a 2014. El hambre
es aprendida como la ingestión insuficiente y/o inadequada de alimentos que
lleva al deterioro del estado de salud y/o desarrollo productivo y social de los
hombres. Su satisfacción es realizada por el consumo de alimentación
adecuada a las necesidades nutricionales y sociales humanas, histórica y
socialmente determinadas posibilitando el desarrollo de lo humano. El hombre
es entendido como un Ser Social que se caracteriza por autoconstruirse como
género en el proceso de satisfacer sus necesidades.
El método de análisis utilizado permite comprender al hombre como un
Ser Social que se caracteriza por la auto construcción como género al
satisfacer sus necesidades por medio del trabajo. Algunas cuestiones son
necesarias para la delimitación del objeto, siendo ellas: 1) ¿Cuál es el valor del
hambre en la reproducción del capital?; 2) ¿Cómo incide el patrón de desarrollo
del capitalismo en Brasil sobre el problema del hambre?; 3) ¿Cómo está
organizada la política de combate al hambre en Brasil? La hipótesis de esta
investigación es que el hambre en la actualidad es funcional al sistema
capitalista, no siendo posible superarla mientras la producción y la
reproducción de vida estén sometidas a la lógica de acumulación del capital. La
metodología se sustenta en la investigación bibliográfica y documental, con
utilización de fuentes secundarias.

En el análisis de la organización de la política de combate al hambre en


los gobiernos del Partido de los trabajadores, se nota que el hambre posee
valor político. En el análisis de la situación alimentar en el país, es posible
apuntar: la persistencia del hambre; el cambio de un perfil de desnutrición para
la obesidad – en lo que se refiere al estado de salud de la población – y la
funcionalidad del hambre para la reproducción del patrón de acumulación del
capital influenciado por la economía del agro negocio. Los resultados apuntan,
por lo tanto, para la necesidad de superación del orden socio metabólico del
capital.
8

Finalizando el análisis, se afirma que el hambre es desvalor para lo


humano y fuente de valor para el capital, mientras que el alimento es valor para
lo humano y, como mercancía, es un medio de valorización para el capital, y
puede transformándose así desvalor para lo humano.

Palabras clave: hambre, alimento, necesidades humanas, reproducción del


capital, política de combate al hambre.
9

ABSTRACT

The following thesis has as an object of study the value of hunger in


Brazil and its particularity in the analysis of politics for combating hunger in the
governments of the Workers Party (PT), from 2003 to 2014.

Hunger is learned as the inadequate food ingestion as the deterioration


of health status and / or the productive and social performance of individuals.
The satisfaction is accomplished by eating adequate food to human nutritional
and social needs, historical and socially determined for the human
development. The human being is understood characterized by the auto-
construction as gender in the fulfillment of its needs.

The analysis method used allows to understand man as a Social Being


characterized by the auto-construction as gender in the fulfillment of its needs
through work. Some issues are necessary in order to define the object, those
are: 1) What is the value of hunger in the reproduction of capital? 2) How does
the pattern of development of capitalism in Brasil influences the problem of
hunger? 3) How is the politic of combating hunger being organized in Brazil?
The hypothesis of this research is that hunger is currently functional to the
capitalist system, not being possible to overcome it while the production and
reproduction of life are subject to capital accumulation logic. The methodology
is based on bibliographic and documentary research, using secondary sources.

In the analysis of the organization of the politic of combat to hunger in


governments from the Workers Party (PT), it is noted tha hunger has a political
value. In the analysis of the food situation in the country, it is possible to point
out: the persistence of hunger; the shift of a profile from malnutrition to obesity -
regarding the state of health of the population – and the functionality of hunger
to the reproduction of the pattern of capital accumulation influenced by
economy of agribusiness. The results point, thus, to the need of overcoming the
socio-metabolic order of capital, path to the true solution of the hunger problem.
10

At he end of the analysis, it is stated that hunger is worthlessness for


the human and value source for the capital, while food is value for the human
and, in the form of commodity, is the way of valorization for the capital,
becoming, however, worthlessness for humans.

Keywords: hunger, food, human needs, reproduction of capital, politics to


combat hunger
11

AGRADECIMENTOS

“Eu não ando só, só ando em boa companhia”


Vinicius de Moraes

Antonio Cândido (2003) dizia que o caipira origina-se do homem livre


que avança pelo interior do Brasil. É solitário em seu cotidiano rural, mas os
momentos importantes da vida são resolvidos no coletivo. Desde os mutirões
para plantio, construção de casas, às festas das colheitas, às folias de reis
embaladas pela viola e a catira, o caipira desenvolve um jeito de viver gregário
que se consolida na cozinha, maior cômodo da casa, onde em meio ao arroz
com pequi e guariroba; pamonhadas e galinhadas, a vida se desenvolve
regada a causos e cantorias.
Talvez por ser caipira eu não saiba andar sozinha, e, ainda, por ser
caipira me identifique tanto com Brecht em seu poema “perguntas de um
operário que lê”. Ao pensar os agradecimentos dessa tese impossível para mim
não reconhecer que quem explica a teoria, empresta o livro, corrige o texto, é
tão importante quanto quem segura o cotidiano, preparando a comida, ou
oferecendo a bebida na hora certa, pois ao final, sem “uma cachaça ninguém
segura esse rojão”. Seguem meus agradecimentos e um abraço carinhoso.
A minha família, Maja, Benê, Lenea, Rogério, Fernando, Eduardo,
Maitha e à pequena Ana Luísa, vocês são meu prumo, a luz que ilumina o
caminho e me mantém caminhando.
À Glaucia Lelis, por me acompanhar desde o primeiro dia de aula no
Serviço Social até o ponto final dessa tese. Pela vida que se desenrola junto,
nos estudos, no trabalho, nas escolhas. Por seguir sendo, “colo que acolhe
braço que envolve, palavra que conforta, silêncio que respeita, alegria que
contagia, lágrima que corre, olhar que acaricia, desejo que sacia, amor que
promove”.
Ao Jair, pelo abraço reconfortante, por me ajudar a cuidar do
envelhecimento da cachaça, pela deliciosa catchupa e por partilhar a melhor
cachaça de Cabo Verde, feita por seu pai.
Ao Marcelo, por “estar sempre em estado de poesia”, pelos sonhos
partilhados e realizados, pelos quadros e gráficos da tese, por garantir o arroz
12

com pequi nessas terras do Rio de Janeiro e por me ensinar a fazer feijoada e
embalar os domingos em volta dos amigos e do samba e da cozinha.
Ao Rodrigo. Já disse muitas vezes que minha vida se divide em antes e
depois de ti, e assim o é! Contigo descobri São Paulo e contigo desvelo o Rio
de Janeiro, trouxeste “brilho para essa cidade”. Pensar a profissão contigo,
entre vinhos, rizzottos e lasanhas maravilhosas, me acalenta a vida! Obrigada
por partilhar sua família: Maria Lúcia, Beto, Letícia, Rodolfo, Flora, a vó e José
Mariano que nunca se esquece de abastecer a casa com cachaça de engenho!
À Paula Kapp, pela vida partilhada cotidianamente em casa, no trabalho,
nos concursos, no doutorado. Pela galinha com polenta e as histórias das
receitas da vó. Mas especialmente por me ensinar a caminhar pelas
montanhas e seguir sempre “rumo ao Everest”!
À Paula Lopes, ter você por perto deixa uma sensação de aconchego,
obrigada por estar sempre tão pronta a me ouvir e discutir comigo todas as
questões da vida.
A Tati, por seu “estou aqui” que resolve todos os problemas, por seu
sorriso que convida à vida. Obrigada pela boa música que trazes ao meu
cotidiano, por tanto choro e chorinho, pelas rodas de samba e pela convivência
com Thadeu.
À Haidée, pela leveza que imprimes nesse nosso tempo de Rio de
Janeiro e por todas as receitas novas que encontras.
À Ana, por cuidar com tanto carinho da casa e ir aos poucos se
encantando pelos livros, abrigada pelo convívio!
Ao Leandro (Butter), à Fernanda Freitas e a Tatiana (Tata), pela
amizade e pelo sorriso que espalham em minha vida, também, por partilhar as
mães de vocês: Tereza, Sandra e Tânia e deixar o Rio de Janeiro, com jeito de
minha casa, obrigada pelos bolos, doces, feijoadas que tornam a vida mais
palatável!
Ao Alex, Augusto, Olívia, Flavinho, Fernanda Salvador, Cristina Maria,
Maria Grossi, Ângela, Sandrinha, Maria Paixão, Sueli, Alessandra Castro,
Omari, Walderez, a gente não faz amigos, reconhecê-os.
À Marilene Coelho, minha trajetória profissional é impensável sem você!
Desde a orientação do trabalho de conclusão de curso na graduação, ao
convite para trabalhar contigo na Universidade Católica de Goiás,
13

acompanhaste de perto todos os movimentos que fiz no Serviço Social. As


seleções de trabalho, os concursos para as Universidades, o mestrado, a
seleção do doutorado, os rumos do estudo da tese! Obrigada especialmente
pelas leituras do meu material, por contribuir com meu amadurecimento
intelectual, por me incentivar a estudar. Poder contar contigo é fundamental
para minha vida e para meu estudo. Obrigada também pela participação na
banca de qualificação e na banca de avanço de tese!
Ao Alan pela amizade e pela leitura do meu material sua contribuição é
indispensável!
Aos colegas do curso de Serviço Social da Universidade Federal
Fluminense, Rio das Ostras, pela coerência com que conduzem o trabalho
docente, pela convivência de dois anos e meio. Adorei trabalhar com vocês!
Ao Rani, por encontrar um caminho para o estudo, por ser um exemplo
de dedicação ao conhecimento.
Ao Wanderson, pela inspiração para estudar, por mostrar o rumo do
debate, pelas inúmeras indicações de livros, textos, por ler o que escrevo
sempre com tanta generosidade, cuidado, atenção e leveza. A beleza de poder
contar contigo é indescritível.
Aos colegas da Escola de Serviço Social da UFRJ, especialmente aos
colegas do Departamento de Política Social e Serviço Social Aplicado, pela
liberação de um ano das atividades docentes para conclusão desse estudo de
doutorado.
Ao Cezinha e ao Henrique por todos os livros, incentivos e conversas,
obrigada por estarem atentos ao meu processo de estudo.
Ao Gustavo, pois tua leveza e companheirismo tornam o cotidiano
possível, é lindo trabalhar contigo!
À Luana, pelo incentivo e pela presença intensa nesses anos de
doutorado e de trabalho na UFRJ!
A Elaine, Maristela, Beto, Adriene, Fábio Marinho e Felipe Addor por
partilharem comigo estudos e projetos, por embarcarem na aventura da
produção de audiovisuais convictos de que será possível fazê-lo.
Ao Celsinho e ao Stefano por me fazerem acreditar, uma vez mais, que
é possível construir desde a universidade uma intervenção que dispute os
projetos societários.
14

Aos professores Lavínia, Newton, Mauro e Raquel, por acompanharem o


desenvolvimento desse estudo em conversas sobre o tema, em leituras,
correções, sugestões, orientações. As contribuições de vocês foram decisivas
para minha compreensão sobre o tema. Obrigada por comporem a banca de
avaliação final.
Aos funcionários do programa de pós-graduação em Serviço Social, pela
paciência e cuidado nos encaminhamentos do doutorado.
Ao Carlos Montaño, por acompanhar na condição de orientador o
desenvolvimento desse estudo.
15

LISTA DE SIGLAS

ABEPSS Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço Social


ANVISA Agência Nacional de Vigilância Sanitária
BM Banco Mundial
BPC Benefício de Prestação Continuada
BPC Benefício de Prestação Continuada
BPC Benefício de Prestação Continuada
CAISAN Câmara Interministerial de Segurança Alimentar e Nutricional
CEPAL Comissão Econômica para América Latina e Caribe
CFP Companhia de Financiamento da Produção
CIBRAZEM Companhia Brasileira de Armazenamento
CLT Consolidação das Leis Trabalhistas
CNBB Conferência Nacional dos Bispos do Brasil
COBAL Companhia Brasileira de Alimentos
CONAB Companhia Nacional de Abastecimento
CONSEA Conselho de Segurança Alimentar
CONTAG Confederação dos Trabalhadores da Agricultura
CPT Comissão Pastoral da Terra
CRAS Centros de Referência de Assistência Social
CREAS Centros Especializados de Assistência Social
CTRIN Comissão de Compra do Trigo
DDT Dicloro Difenil Tricloroetano
DTRIG Departamento do Trigo
EBIA Escala Brasileira de Insegurança Alimentar
EMBRAPA Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária
EMBRATER Empresa Brasileira de Assistência Técnica e Extensão Rural
ENDEF Estudo Nacional de Despesa Familiar
EUA Estados Unidos da América
FAO Food end Agriculture Organization
FMI Fundo Monetário Internacional
GATT Acordo Geral de Tarifas e Comércio
GGTOX Gerência Geral de Toxicologia
IAA Instituto do Açúcar e do Álcool
IBAMA Instituto Brasileiro de Meio Ambiente
IBASE Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas
IBC Instituto Brasileiro do Café
IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
IDA Ingestão Diária Aceitável
IMC Índice de Massa Corporal
IPPUR-UFRJ Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano
LDB Lei de Diretrizes e Bases da Educação
16

LMR Limite Máximo de Resíduos


LOSAN Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional (LOSAN)
MAPA Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento
MASTER Movimento dos Agricultores Sem Terra
MDA Ministério do Desenvolvimento Agrário
MDB Movimento Democrático Brasileiro
MDS Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome
MS Ministério da Saúde
MST Movimento dos Trabalhadores Sem Terra
MST Movimento dos Trabalhadores Sem Terra
OMC Organização das Nações Unidas
OMS Organização Mundial da Saúde
ONU Organização das Nações Unidas
PAA Programa de Aquisição de Alimentos
PAM Programa Alimentar Mundial
PARA Programa de Análise de Resíduos de Agrotóxicos
PBF Programa Bolsa Família
PCB Partido Comunista Brasileiro
PETI Programa de Erradicação do Trabalho Infantil
PFZ Programa Fome Zero
PGPM Política de Garantia de Preços Mínimos
PLANSAN Plano Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional
PMDB Partido do Movimento Democrático Brasileiro
PNAD Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios
PNDS Pesquisa Nacional de Demografia e Saúde da Criança e da Mulher
PNRA Plano Nacional de Reforma Agrária
POF Pesquisa de Orçamentos Familiares
PPS Partido Popular Socialista
PR Partido da República
PSB Partido Socialista Brasileiro
PSDB Partido Social Democrata Brasileiro
PT Partido dos Trabalhadores
PTB Partido Trabalhista Brasileiro
PUC-RJ Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
SAN Segurança Alimentar e Nutricional
SCFV Serviços de Convivência e Fortalecimento de Vínculos
SCI Simpósio Científico Internacional
SEBRAE Serviço Brasileiro de Apoio a Micro e a Pequenas Empresas
SELIC Sistema Especial de Liquidação e de Custódia
SISAN Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional
SISVAN Sistema de Vigilância Alimentar e Nutricional
SNCR Sistema Nacional de Crédito Rural
SUAS Sistema Nacional de Assistência Social
SUASA Sistema Unificado de Atenção à Sanidade Agropecuária
17

TSE Tribunal Superior Eleitoral


UEPG Universidade Federal de Ponta Grossa
UERJ Universidade Estadual do Rio de Janeiro
UFES Universidade Federal do Espírito Santo
UFF Universidade Federal Fluminense
UFJF Universidade Federal de Juiz de Fora
UFMA Universidade Federal do Maranhão
UFMT Universidade Federal do Rio de Janeiro
UFRJ Universidade Federal do Rio de Janeiro
UFSC Universidade Federal de Santa Catarina
UnB Universidade de Brasília
Unicamp Universidade Federal de Campinas
USP Universidade de São Paulo
18

LISTA DE QUADROS

2.1. Consumo de agrotóxicos e fertilizantes nas lavouras do Brasil, 2002 a


2011 54
2.2. Classificação e efeitos e/ou sintomas agudos e crônicos dos
agrotóxicos 156
2.3. Disposição de hectares por partido político no Brasil 158

3.1. Prevalência de déficit de altura nas crianças menores de 5 anos de


idade por situação de domicílio, segundo as Grandes Regiões –
período 2008-2009 206
3.2. Comparativo entre desnutrição e excesso de peso em crianças
atendidas no Programa Bolsa Família, Brasil – 2008-2012 207
3.3. Prevalência de déficit de altura nas crianças entre 5 a 9 anos de idade
por situação de domicílio, segundo idade e sexo – período 2008-2009 209
3.4. Comparativo entre o déficit de peso na população brasileira entre 5 e
9 anos de idade, 10 e 19 anos de idade e mais de 20 anos de idade,
por sexo e região – 1975,1989 e 2009 211
3.5. Descrição da situação de segurança alimentar segundo a PNAD 2009 221
19

LISTA DE GRÁFICOS

2.1. Série histórica da distribuição da população brasileira segundo a


138
condição de domicílio 1950 a 2010
2.2. Produção agrícola brasileira de produtos selecionados – 1995 a 2013 139
2.3. Produção de cana-de-açúcar brasileira – 1995 a 2013 140
2.4. Consumo de agrotóxicos e fertilizantes nas lavouras do Brasil, 2002 a
155
2011

3.1. Comparativo entre o salário mínimo nominal e necessário, Brasil – 2003-


194
2014
3.2. Evolução das despesas de transferência de renda diretamente às
199
famílias em condição de pobreza e extrema pobreza
3.3. Participação do programa de transferência de renda com
condicionalidades – Bolsa Família – no total de despesas da função
200
assistência social
3.4. Participação da ação transferência de renda diretamente às famílias em
condição de pobreza e extrema pobreza no total de despesas da função
200
assistência social
3.5. Índice de déficit de peso da população feminina brasileira – 1975, 1989 e
212
2009
3.6. Índice de déficit de peso da população masculina brasileira - 1975, 1989
212
e 2009
3.7. Excesso de peso da população feminina brasileira por faixa etária –
213
1975, 1989 e 2009
3.8. Excesso de peso da população masculina brasileira por faixa etária –
214
1975, 1989 e 2009
3.9. Obesidade da população feminina brasileira – 1975, 1989 e 2009 214
3.10. Obesidade da população masculina brasileira – 1975, 1989 e 2009 215
20

SUMÁRIO

Introdução................................................................................................... 21

Capítulo I – A fome tem uma saúde de ferro, forte, forte como quem
come: o valor da fome entre as necessidades humanas e a reprodução
do capital..................................................................................................... 35
1.1. O fundamento ontológico dos valores........................................ 46
1.2. O valor do alimento na relação com a satisfação das
necessidades humanas.................................................................... 58
1.3 Malthus e Engels: o problema da população e da produção de
alimentos........................................................................................... 66
1.4. Trabalho, valor e exploração....................................................... 72

Capítulo II – Com açúcar sem afeto: a produção de commodities e a


reprodução do capital no Brasil.................................................................... 95
2.1 Dependência e superexploração................................................. 98
2.2. Elementos da formação social brasileira: latifúndio e violência
no campo........................................................................................... 103
2.3. A modernização conservadora na agricultura no período pós-
segunda guerra.................................................................................. 122
2.4. A dinâmica de produção das commodities: das forças
produtivas às forças destrutivas......................................................... 146

Capítulo III – O valor da fome no Brasil: entre o combate à fome e o


fetiche da redução da pobreza..................................................................... 160
3.1. Do Programa Fome Zero ao Programa Bolsa Família: a
assistencialização das políticas sociais............................................. 167
3.2. A fome e o fetiche da redução da pobreza: entre as
necessidades humanas e a reprodução do capital ........................... 185
3.3. A centralidade do Programa Bolsa Família na Política de
Assistência social nos governos do PT.............................................. 195
3.4. Tendências da transição nutricional no Brasil: desnutrição e
obesidade........................................................................................... 202

4. Considerações finais.............................................................................. 224


5. Referências bibliográficas..................................................................... 236
6. Anexos..................................................................................................... 253
21

INTRODUÇÃO

O primeiro princípio do
socialismo, seu princípio
básico e fundamental: quem
não trabalha não come!

Lenin
A Fome (carta aos operários de Petrogrado)

O tema dessa tese é o valor da fome. Pensar a fome a partir da


categoria valor tem um objetivo preciso: perseguir as razões pelas quais a fome
persiste, insiste, sobrevive, forte, forte como quem come. O intuito é não
desviar os olhos do problema, desvelando sua aparência em busca da
essência das determinações econômicas, sociais e políticas que o sustentam.
A existência de fome, da fome absoluta, da morte por inanição como
ainda se vê na África, Ásia e parte da América Latina, da fome como um
fenômeno coletivo como estudava Josué de Castro, na entrada do século XXI,
é um insulto à inteligência, à capacidade de organização da classe
trabalhadora, dos camponeses. A fome comove, movimenta solidariedades,
gera organizações, debates, avanços científicos, avanços produtivos, mas,
sobretudo, a fome gera lucro, dominação, sustenta um complexo sistema
agroindustrial-militar1 (POLLAN, 2007).
A hipótese de pesquisa é que a fome na atualidade é funcional ao
sistema capitalista e, assim o sendo, não será superada enquanto a produção
e a reprodução da vida estiverem submetidas à lógica de acumulação do
capital. Com isso, é preciso, de pronto, esclarecer que são nítidas as
mudanças no fenômeno da fome tratadas ao longo da exposição. Nessas
mudanças, entretanto, prevalece a forma sobre o conteúdo, muda a aparência
do fenômeno, mas não sua essência.
A fome é uma tragédia. A ausência de alimentos, a fraqueza absoluta
leva a um estágio de torpor tal que impede o raciocínio, a busca da autonomia,
o horizonte da liberdade, elimina a capacidade produtiva. É desumana em sua

1
O termo militar vinculado ao sistema agroindustrial justifica-se por sua dependência de
combustível fóssil para ser distribuído: “um quinto do petróleo consumido nos Estados Unidos
vai para a produção e o transporte de comida” (POLLAN, 2006, p. 94).
22

pior acepção. E é desumana, pois a submissão a longos períodos de fome


reaproxima o homem da barreira natural, colocando-nos diante do nosso
estatuto animal, do qual é necessário se afastar para desenvolver o Ser Social
(MARX, 2002; 2012; LUKÁCS, 2012; 2013).
Na dinâmica das relações sociais engendradas no capitalismo, a fome
está intimamente relacionada à lei geral de acumulação capitalista. Por um
lado, por que o padrão de reprodução do capital, na particularidade do
complexo sistema agroalimentar industrial, submete países de capital
dependente ao mercado internacional de alimentos regulando-o com a fome, e
ainda expulsar do processo produtivo camponeses de suas terras. Por outro
lado, a fome atinge visceralmente os trabalhadores que compõem a
superpopulação estagnada (MARX, 2006), pois como o sistema
sociometabólico do capital transforma o alimento em mercadoria, e para
acessar mercadorias o trabalhador precisa vender sua força de trabalho, se
não consegue fazê-lo não possui meios para adquirir os alimentos necessários
à satisfação de sua necessidade a se alimentar.
Nesse estudo considero a fome como a ingestão insuficiente e/ou
inadequada de alimentos que leva à deterioração do estado de saúde e/ou
desenvolvimento produtivo e social dos homens. Sua satisfação é realizada
pelo consumo de alimentação adequada às necessidades nutricionais e sociais
humanas, histórica e socialmente determinadas, possibilitando o
desenvolvimento do humano. O homem é entendido como um Ser Social que
se caracteriza por se autoconstruir como gênero no processo de satisfazer
suas necessidades.
Esse modo de compreender a fome é fundamentado nos estudos de
Josué de Castro (1960; 1961; 1965; 1974; 1980) que distinguia a fome absoluta
(a completa inanição) e a fome oculta (insuficiência alimentar). Sustentava ser
essa última ainda mais grave, uma vez camuflada sob a forma de má
alimentação. A fome oculta de Castro corresponde, no debate contemporâneo,
ao aspecto da desnutrição provocado pela ingestão insuficiente de alimentos, e
às doenças provocadas por uma alimentação inadequada. A desnutrição pode
ter outras causas que não necessariamente a insuficiência de alimentos, por
isso os conceitos são distintos (MONTEIRO, 2003). A Política Nacional de
Segurança Alimentar e Nutricional, utiliza a noção de Segurança e Insegurança
23

alimentar e nutricional, nela está contido o debate sobre a fome, porém,


também os demais aspectos relacionados ao problema, que serão
desenvolvidos ao longo da exposição.
O tema da fome não pode ser abordado sem seu par dialético: a
necessidade humana à alimentação. Dessa forma, apreender a lógica da
produção, distribuição e consumo de alimentos é importante para desvelar o
problema da fome na atualidade, ressaltando a particularidade da formação
sócio-histórica brasileira e do padrão de acumulação e reprodução do capital
que se estabelece com a revolução burguesa no Brasil (MARINI, 2005;
OSORIO et al. 2012; FERNANDES, 2005).
Marx (2012, p. 127), ao iniciar seus estudos sobre a gênese do
homem, explica que a fome é uma carência natural que se satisfaz como um
objeto externo ao homem é “a carência confessada de meu corpo por um
objeto existente fora dele indispensável à sua integração”. Ocorre que o
homem não retira imediatamente da natureza o que necessita para satisfazer
suas necessidades. Esse processo ocorre pelo trabalho, categoria fundante do
Ser Social. O trabalho é atividade humana pela qual o homem realiza sua
interação sociometabólica com a natureza, a fim de satisfazer suas
necessidades, ato pelo qual transforma a natureza e transforma sua própria
natureza, se transforma em Ser Social. Esse processo que se constitui por
meio da teleologia, objetivação e universalização, coloca para o humano a
questão das alternativas e das escolhas, do útil e do não útil, dos valores e dos
desvalores. O valor é compreendido como uma categoria ontológico-social,
logo, o critério para o desenvolvimento dos valores não é apenas a realidade
dos mesmos, mas também sua possibilidade.
Nesse processo de satisfazer suas necessidades o homem cria novas
necessidades cada vez mais complexas. No que se refere à necessidade à
alimentação, à medida que o homem vai desenvolvendo diferentes formas de
alimentar, que envolve o que comer e como comer, desencadeia-se um
processo rico e complexo que envolver a história das agriculturas (MAZOYER;
ROUDART, 2008), a história da alimentação e da comida (FLANDRIN;
MONTANARI, 1998; FERNÁNDEZ-ARMESTO, 2004); a história da cozinha e
24

do ato de cozinhar (POLLAN, 2013; WRANGHAN, 20092).


A solução da contradição dialética fome-alimentação situa-se no campo
da satisfação das necessidades humanas. A forma de satisfazê-las se modifica
no tempo, no espaço, no desenvolvimento da cultura, processo que nele
mesmo gera novas necessidades sempre mais complexas. Há, entretanto, um
conjunto de necessidades humanas imprescindíveis.

As próprias necessidades naturais de alimentação, roupa,


aquecimento, habitação, etc. variam de acordo com as condições
climáticas e de outra natureza de cada país. Demais, a extensão das
chamadas necessidades imprescindíveis e o modo de satisfazê-las
são produtos históricos e dependem, por isso, particularmente, das
condições em que se formou a classe dos trabalhadores livres, com
seus hábitos e exigências peculiares (Marx, 2003b, p. 200-201 grifos
do autor).

Sendo assim, o tema da fome torna-se especialmente intrigante, pois


se apresenta desde os primórdios do desenvolvimento humano como questão
a ser solucionada. Entretanto, a despeito de todo o desenvolvimento das forças
produtivas, da técnica e da ciência, a fome não só não desaparece como um
problema para o humano, como inclusive assiste-se ao aumento do número de
famélicos em algumas partes do globo. A África Subsaariana, segundo relatório
da FAO (2014), no biênio 1990-1992 possuía 176 milhões de pessoas em
situação de fome e no biênio 2012-2014 apresenta 214 milhões de pessoas
famélicas, um acréscimo de 21,6%.
É nesse mesmo cenário que o Brasil deixa de figurar no mapa da fome
a partir de 2014 (FAO, 2014). Desvelar a aparência desse fenômeno é a busca
desse estudo que, para tanto, precisa remeter-se à discussão dos fundamentos
do modo de produção capitalista e confrontá-lo com os valores postos para o
homem como gênero, rebatendo no modo como a questão da alimentação e
seu par dialético, a fome, se entrecruzam, na estratégia de combate à fome
implementada pelo governo brasileiro.
Para a análise do fenômeno, a fome será situada na dinâmica da

2
Antropólogo, sua tese afirma que o ato de cozinhar nos tornou humanos. Esse estudo
trabalha com outra referência teórica que argumenta ser o trabalho o que transforma o homem
em um Ser Social.
25

reprodução do capital, considerando o valor como categoria central,


apreendendo-o em seu aspecto econômico, mas também em sua gênese, em
seu aspecto ontológico-social, como elemento orientador da ação dos sujeitos
na constituição do Ser Social.
Compreendo o valor considerado em seu aspecto econômico, a partir
de Marx (2003), como trabalho humano corporificado em determinado produto
que possui valor de uso para a satisfação das necessidades humanas. No
modo de produção capitalista, a satisfação das necessidades é intermediada
pela mercadoria. A mercadoria, que é veículo de valor,

revela seu duplo caráter, o que ela é realmente, quando, como valor,
dispõe de uma forma de manifestação própria, diferente da forma
natural dela, a forma de valor de troca; e ela nunca possui essa
forma, isoladamente considerada, mas apenas na relação de valor ou
de troca com uma segunda mercadoria diferente (MARX, 2003, p.
82).

O valor é compreendido por Marx (2003, p. 615) como “forma objetiva


do trabalho social despendido para produzir uma mercadoria”. O valor de uma
mercadoria é medido pela magnitude do trabalho que ela contém.
Com esses parâmetros, o valor da fome para o Brasil será apreendido
na particularidade da formação sócio-histórica brasileira e sua inserção no
capitalismo de forma dependente (MARINI, 2005), processo que responde a
uma dinâmica desigual e combinada (LOWY, 2014)3, com a particularidade da
formação de uma autocracia burguesa (FERNANDES, 2005), que conduzirá o
país à economia do agronegócio (DELGADO, 2012a).
Os pressupostos para construir as questões ao objeto são os
seguintes:
1) As necessidades humanas ao serem satisfeitas atendem a uma
legalidade social que possui primazia sobre as determinações naturais. Isso
ocorre porque a forma humana de satisfazer suas necessidades é intermediada
pelo complexo do trabalho como fundante do Ser Social;
2) Produção e consumo formam uma unidade dialética na qual o

3
O conceito de desenvolvimento desigual e combinado na relação entre a Revolução Burguesa
que teve curso na Europa no século XVIII e o que se passou em outros países que possuem
uma Revolução Burguesa de via não clássica é desenvolvido a partir das reflexões de Leon
Trotsky (1879-1940).
26

momento predominante é a produção. Assim, é imprescindível investigar a lei


geral de acumulação do capital para apreender a persistência da fome na
atualidade;
3) O Brasil insere-se no modo de produção capitalista de forma
dependente, com um pilar da economia centrado na produção agropecuária,
isso implica que um dos campos de confronto explícito entre capital e trabalho
esteja no campo: agronegócio versus trabalhadores do campo (assalariados e
camponeses);
4) O Brasil busca resolver o problema da fome por meio do pacto entre
as classes e da intervenção da política social, com destaque para o Programa
Bolsa Família (PBF).
A partir desses pressupostos, as questões postas ao objeto são as
seguintes: 1) Qual é o valor da fome na reprodução do capital? 2) Como o
padrão de desenvolvimento do capitalismo no Brasil incide sobre o problema
da fome? 3) Como está organizada a política de combate à fome no Brasil?
O estudo tem como objetivo geral desvelar os determinantes do valor
da fome no processo de acumulação capitalista e suas particularidades no
Brasil. E como objetivos específicos: 1) Analisar os fundamentos filosóficos da
necessidade humana a se alimentar e sua conexão com os valores em sua
gênese; 2) Apreender os determinantes da fome e do processo de produção de
alimentos inseridos na lógica da produção de mercadorias por meio dos
fundamentos da economia política; 3) Apreender os elementos determinantes
do capitalismo no Brasil, no que se refere à particularidade da fome, produção
de alimentos, na formação socioeconômica nacional; 4) Analisar a estratégia
de combate à fome dos governos petistas.

Os caminhos do estudo

A despeito de que meu objeto de estudo tenha estreita relação com a


forma de reprodução material da minha origem familiar, é durante o doutorado
que essa ideia de estudar o tema começa a ganhar forma ao me deparar com o
livro “Geografia da Fome” (1980), de Josué Apolônio de Castro (1908-1973)4 e

4
Josué de Castro, escritor, médico, professor, parlamentar, embaixador, presidente da
Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação (FAO), foi para o mundo,
27

com o cinema novo de Glauber de Andrade Rocha (1939-1981).


Identifico similitude em alguns traços das biografias desses
pensadores, a busca por interpretar o Brasil, a força que o tema da fome tem
em suas obras e a luta para que o fenômeno deixasse de ser um tema proibido
em Josué de Castro (2003)5, não é diferente do que expõe Glauber Rocha, em
seu manifesto “Estética da Fome” (1965), ao afirmar que o brasileiro passa
fome e tem vergonha de dizê-lo, de expressá-lo em seus filmes.
Por meio de Josué de Castro e Glauber Rocha começo a apreender o
modo como o debate público sobre a fome ganha contornos no Brasil, e de um
tema proibido é transformado em importante bandeira de campanha eleitoral
para a Presidência da República.

há mais de 50 anos, lutar [pelo fim da fome]. Saiu do Recife, onde nasceu no ano de 1908 (...)
e morreu na cidade de Paris em 1973, “de exílio” (SOARES, 2003). Segundo Ziegler (2013, p.
120), “Por três vezes, Castro foi indicado para receber o Prêmio Nobel: uma para o Nobel de
Medicina, duas para o Nobel da Paz. Em plena Guerra Fria, recebeu em Washington, o Prêmio
Roosevelt da Academia Americana de Ciências Políticas e, em Moscou, o Prêmio Internacional
da Paz. Em 1957 recebeu a Grande Medalha da Cidade de Paris, a mesma concedida antes a
Pasteur e a Eistein”. Soares (2003, p. 7) afirma que “respeitado em todo o mundo, reconhecido
até hoje nos círculos acadêmicos, trata-se o ilustre pernambucano de um quase desconhecido
para a imensa maioria da população brasileira”.
5
A fome, “um tema proibido”, é o título de um livro editado 10 anos após a morte de Josué de
Castro (1908-1973) e que contém seus últimos escritos. O tema é tratado dessa forma, pois a
produção de Josué de Castro faz referência ao tabu ao abordar a fome como tal em sua época.
Para Anna Maria de Castro (2003, p.13) “Josué de Castro sempre soube que o tema por ele
escolhido, a luta contra a fome, era bastante perigoso, um verdadeiro tabu. E foi acreditando
que poderia romper com esse tabu e construir uma teoria e uma prática capazes de vencer o
fenômeno da fome que travou o bom combate de sua vida. Pagou com o exílio, com a tristeza,
com a saudade”. O trecho se refere ao exílio de Josué de Castro. O autor estava na lista dos
10 primeiros brasileiros que deveriam deixar o país na ocasião do golpe militar de 1964. Morreu
no exílio após solicitar por algumas vezes permissão para regressar ao país. Mesmo após sua
morte a família teve muita dificuldade para conseguir que o autor fosse enterrado no Brasil
(TENDLER, 2004). Outro elemento sobre o tema controverso entre as décadas de 1940-1960
encontra-se nos filmes de Glauber Rocha. O diretor apresenta uma tese no ano de 1965 em
Gênova, por ocasião do debate sobre o cinema novo brasileiro, no qual expressa sua
convicção de que esse movimento do cinema nacional é um movimento que trata da fome e
por isso é rechaçado no Brasil: “de Aruanda a Vidas Secas, o cinema novo narrou, descreveu,
poetizou, discursou, analisou, excitou os temas da fome: personagens comendo terra,
personagens comendo raízes, personagens roubando para comer, personagens matando para
comer, personagens sujas, feias, descarnadas, morando em casas sujas, feias, escuras; foi
esta galeria de famintos que identificou o cinema novo com o miserabilismo tão condenado
pelo Governo, pela crítica a serviço dos interesses antinacionais, pelos produtores e pelo
público – este último não suportando as imagens da própria miséria. Este miserabilismo do
Cinema Novo opõe-se à tendência do digestivo, preconizada pelo crítico-mor da Guanabara,
Carlos Lacerda: filmes de gente rica, em casas bonitas, andando em carros de luxo: filmes
alegres, cômicos, rápidos, sem mensagem, de objetivos puramente industriais. Estes são os
filmes que se opõem à fome, como se na estufa e nos apartamentos de luxo, os cineastas
pudessem esconder a miséria moral de uma burguesia indefinida e frágil ou se mesmo os
próprios materiais técnicos e cenográficos pudessem esconder a fome que está enraizada na
própria incivilização (ROCHA, 1965).
28

No percurso da pesquisa inicio pela produção do Serviço Social sobre


a fome e percebo que a temática foi muito pouco desenvolvida pela profissão.
A reflexão da profissão concentra-se na questão agrária, sobretudo nas
relações de trabalho vinculadas à produção rural com destaque para os
estudos de Iamamoto (2006) e Sant’Ana (2012) sobre a questão ambiental,
com alguns volumes especiais em revistas. Além de estudos sobre a questão
da pobreza com destaque para o balanço da produção da profissão realizado
por Siqueira (2013); e da Assistência Social por Boschetti (2003) e Mota (2005,
2012, 2013). Além de alguns estudos sobre os movimentos sociais no campo,
especialmente o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST).
A partir disso, pesquisei a produção das revistas da área de Serviço
Social6 sobre os temas da fome, segurança e insegurança alimentar. Localizei
o texto do professor Faleiros (2013) “Fome, pobreza e exclusão social: desafios
para o governo e a sociedade”, que na realidade apresenta uma discussão
sobre pobreza, datada da década de 1990. O restante refere-se ao período dos
governos petistas. O resultado foram dez artigos, dos quais cinco foram
escritos por assistentes sociais.
Silva, A. (2005), no texto “Do combate à fome à política de seguridade
alimentar”, aborda o tema a partir de Josué de Castro e analisa que a
problemática da fome está diretamente ligada à situação da renda da
população: quanto menor a renda pior a condição de acesso ao alimento e,
portanto, a situação de fome. O autor rechaça a ideia de que a fome seja
produto da falta de informações sobre a alimentação – que levaria a uma
composição errada da dieta e, portanto, fome em sua dimensão de fome
oculta. Silva distingue segurança alimentar de seguridade alimentar e ressalta

6
A revista “Serviço Social e Sociedade”, primeira revista especializada em Serviço Social que
circula desde 1979 e encontra-se atualmente no número 114, foi pesquisada em sua
integralidade, assim como a revista “Temporalis”, cuja edição é vinculada à Associação
Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço Social (ABEPSS). Todas as demais revistas foram
consultadas em seus acervos digitais, são elas: “Argumentum” (Universidade Federal do
Espírito Santo – UFES); “Em Pauta” (Universidade Estadual do Rio de Janeiro – UERJ);
“Libertas” (Universidade Federal de Juiz de Fora – UFJF); “Katalysis” (Universidade Federal de
Santa Catarina – UFSC); “O Social em Questão” (Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Janeiro PUC-RIO); “Emancipação” (Universidade Estadual de Ponta Grossa – UEPG); “Praia
Vermelha” (Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ); “Política Pública” (Universidade
Federal do Maranhão – UFMA); “Ser Social” (Universidade de Brasília – UnB); “Serviço Social e
Saúde” (Hospital das Clínicas – Universidade de Campinas – Unicamp) cuja última edição foi
em 2011; as demais encontram-se ativas.
29

que o primeiro conceito tem origem na situação da guerra. Propõe a utilização


do conceito de seguridade alimentar para abarcar a abrangência exigida pela
perspectiva de combate à fome. Conclui ressaltando a relevância da
constituição de um marco legal para o combate à fome que estava em curso
quando da redação de seu artigo.
Já Silva, M. (2005) em seu texto “Participação social nas políticas de
segurança alimentar e nutricional” tem como preocupação central a
participação popular e sua incidência nas decisões sobre as políticas públicas.
O texto, datado de 2005, aponta o início do que será a unificação dos
programas de repasse de renda no Programa Bolsa Família (PBF). A análise,
todavia, tem foco na necessidade de fortalecimentos dos mecanismos efetivos
de controle social que permitam a incidência da participação popular na
formulação da política de Segurança Alimentar e Nutricional (SAN).
Outro artigo relacionado ao Serviço Social é de Ribeiro (2006). A
autora analisa os conceitos de cidadania, direitos, pobreza e assistência social
vinculados ao Programa Fome Zero (PFZ). O texto tece uma crítica à
concepção de cidadania implícita no PFZ e no vínculo que estabelece entre a
assistência social e a pobreza ao reduzir a fome à falta de renda para acessar
alimentos, ainda que, o documento não faça alusão à política de assistência
social, como faz à política de previdência.
O texto “Segurança Alimentar: a abrangência do Programa Bolsa
Família (PBF) no município de Vila Velha – ES”, de Nogueira (2008), traz uma
análise da implementação do programa Bolsa Família em Vila Velha, no
Espírito Santo. Destaca sua concepção de fome como “doença social”, dada
sua característica biológica, ainda que reconheça que a fome ocorra na
abundância de alimentos. O autor analisa a fome no Brasil como uma
continuidade histórica que se inicia no período colonial. Sustenta também que
no Brasil a fome sempre foi tratada de forma emergencial e sem consistência
de política social.
No texto “Acesso à alimentação como direito social no Brasil –
implicações para a sociedade e para o sistema de informações”, Gomes Junior,
et al. (2010) problematizam os indicadores de aferição da situação de
segurança alimentar no Brasil, considerando que a política pública necessita de
informações consistentes para ser formulada. O texto analisa 5 mecanismos de
30

levantamento de dados sobre os indicadores sociais e a importância de utilizá-


los em conjunto e aprimorá-los.
Araújo et al. (2011) discutem o caso da unidade Natal-RN do Projeto
Café do Trabalhador e refletem sobre a necessidade de políticas de acesso a
alimentos para os trabalhadores. Neste texto, os autores identificam uma
mobilização social no Brasil para a solução do problema alimentar. Isso ocorre
desde antes da primeira ação governamental na direção do planejamento para
o enfrentamento à fome com o Serviço de Alimentação da Previdência Social,
datado de 1947, em uma suposta linha de continuidade que culmina no
Programa Bolsa Família. Essa análise retilínea da política me parece muito
complicada, haja vista que o Estado brasileiro atravessou fases distintas
marcadas por avanços e retrocessos nesse período. O restante do texto volta-
se para a análise do projeto de desjejum oferecido pela prefeitura. Busca
analisá-lo pela perspectiva da Segurança Alimentar e Nutricional (SAN).
D’avila e Silva (2011), no texto “Segurança alimentar e
desenvolvimento local: uma análise dos resultados do Programa de Aquisição
de Alimentos (PAA) em Minas Gerais”, cuja análise centra-se na
implementação do programa no norte de Minas, consideram a importância do
programa, sua existência desde 2003, sua implementação até 2008 e sua
incidência no avanço em relação à Segurança Alimentar e Nutricional. O texto
parte dos estudos de Josué de Castro, afirmando que o autor discutia a
importância de se manter os camponeses no campo, produzindo alimentos. A
fome, para as autoras, está vinculada à questão da pobreza, ainda que não se
confunda com ela.
Garajau e Afonso (2014) discutem o programa Cozinha Comunitária
por meio de uma reflexão do direito humano à alimentação. Compreendem a
fome e a insegurança alimentar como violações de direitos e ressaltam que o
Programa Cozinha Comunitária é o maior programa de Segurança Alimentar e
Nutricional (SAN) do país. Para tanto, informam que existem “em âmbito
nacional, hoje, 611 unidades (sendo 409 em funcionamento), 109 unidades de
Banco de Alimentos (sendo 73 em funcionamento); e 150 unidades (sendo 90
em funcionamento com modalidades de Restaurante Popular)”, de onde
inferem que o Programa Cozinha Comunitária é o programa com maior
expressão na política de SAN. Como o público atendido pelo Programa é o
31

mesmo da assistência social, o texto sugere a necessária articulação entre as


políticas referidas (GARAJAU; AFONSO, 2014, p. 13-14).
Pesquisei também a produção de teses e dissertações, seguindo os
arquivos que estão disponíveis para consulta on line nos programas de pós-
graduação em Serviço Social7. Foram localizados sobre o tema fome e
segurança/insegurança alimentar quatro dissertações de mestrado (GUERRA,
2009; CABRAL, 2013; BATISTA JUNIOR, 2013; PAIVA, 2014); e três teses de
doutorado (GOMES JUNIOR, 2007; PINHEIRO, 2009; GOMES, 2012).
O tema da fome, como pode ser visto, bem como a política social
estruturada para combatê-la, ainda é recente na reflexão do Serviço Social. A
profissão acumulou significativa produção sobre política social, assistência
social e pobreza8, mas estudou pouco a fome como fenômeno distinto. Ainda
que seja imprescindível compreender que em uma sociedade de classes,
comandada pelo capital, na qual parcela significativa da classe trabalhadora
não possui condições concretas para vender no mercado sua força de trabalho,
a submissão à fome é inevitável. A fome tem raízes mais profundas no modo
de produção capitalista. No Brasil, a forma utilizada pelo governo para
responder a situação centra-se na estratégia de repasse de dinheiro para a
população em extrema pobreza, ação que reorienta a política de assistência
social e faz com que a profissão concentre sua reflexão sobre a política.
A partir desse monitoramento sobre a produção do tema na área de
Serviço Social, foi incorporada a reflexão de outras áreas de conhecimento,
como sociologia, nutrição, enfermagem, medicina, jornalismo, buscando
articulá-la com a reflexão do Serviço Social. Assim, é possível compreender a

7
Segundo informações da Coordenação de Pós-Graduação da ABEPSS (Gestão 2015-2016),
existem atualmente 29 programas de mestrado na área do Serviço Social e 12 programas de
doutoramento espalhados nas cinco regiões do Brasil. Parte desses programas tem o banco de
tese depositado no arquivo geral da Universidade, o que dificulta a pesquisa por área. Outros
não possuem todos os arquivos disponíveis. Alguns programas disponibilizam apenas o título e
o resumo. De toda forma, verifiquei todos os programas informados pela ABEPSS.
8
Sobre o tema da pobreza, existe um debate intenso na literatura tanto liberal quanto socialista
(MONTAÑO, 2012). O tema é fundamental para o Serviço Social (SIQUEIRA, 2013) e para a
apreensão do estudo em questão. Este estudo compreende a pobreza como um fenômeno
inerente ao modo de produção capitalista e originário da lei geral de acumulação capitalista
(MARX, 2003c). A fome apresenta-se, também, como uma das expressões da “questão social”
(NETTO, 2001b), organicamente vinculada à pobreza absoluta, porém, não restrita a ela.
32

fome como expressão da “Questão Social”9 e que exige uma intervenção


estatal, via política social, no marco de uma sociedade capitalista.
Ocorre que, ao apreendermos o tema da fome e da produção de
alimentos como fundamental para a dinâmica do modo de produção capitalista,
a assistencialização da política de Segurança Alimentar se explicita com outra
dramaticidade e desvela a funcionalidade da fome para a própria lógica de
acumulação do capital.
Ainda que os estudos sobre o Programa Bolsa Família e a assistência
social sejam fundamentais, parece-me que, ao eleger a pobreza como
categoria para a análise, o Serviço Social deixa de particularizar a fome como
categoria específica e a discussão sobre segurança alimentar fica subsumida
para a profissão.
Nesse aspecto, refletir com acuidade sobre a lógica da política de
combate à fome é tarefa imperiosa ao Serviço Social, sobretudo, dado o
acúmulo que a profissão possui no debate crítico acerca da política social em
geral e da política de assistência social especificamente.
O que a estratégia do Programa Bolsa Família indica ao tornar-se o
motor do combate à fome no Brasil é que a assistencialização da política social
continua sendo um tema fundamental no debate da profissão.
Esse é o caminho percorrido até chegar à tese, na trilha da análise da
particularidade da “questão social” no Brasil realizadas por Iamamoto (2007) e
inquirindo os determinantes da inserção do Brasil no capitalismo (MARINI,
2005; OLIVEIRA 2006; FERNANDES, 2005; DELGADO, 2012a). Nesse
percurso chego ao debate acerca da organização da política de combate à
fome nos dois governos de Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2006/2007-2010) e
no primeiro governo Dilma Rousseff (2011-2014).
Os procedimentos metodológicos utilizados na pesquisa foram
pesquisa bibliográfica e pesquisa documental com utilização de dados
secundários.
Na pesquisa bibliográfica os autores que apresentaram maior
9
A expressão surge com a explicitação dos conflitos oriundos do fenômeno do pauperismo
massivo provocado pela primeira onda de industrialização na Europa Ocidental e a reação a
ela provocada pela classe trabalhadora. O termo é usado entre aspas em função da sua
naturalização pelo pensamento conservador que a desvinculou de “qualquer medida tendente a
problematizar a ordem econômico-social estabelecida; trata-se de combater as manifestações
da ‘questão social’ sem tocar nos fundamentos da sociedade burguesa” (NETTO, 2001, p. 44).
33

incidência para a análise, organizados por tema, foram: 1) fome, nos estudos
de Castro (1982, 1961) e Ziegler (2013); 2) a relação entre as necessidades
humanas e a reprodução do capital, nos estudos de Marx (2003, 2006, 2012 e
Lukács (2012, 2013); 3) a relação do sistema agroindustrial e os efeitos sobre a
alimentação humana, nos estudos de Pollan (2007, 2008, 2010) e Fernández-
Armesto (2004); 4) a compreensão do mercado da fome, nos estudos de
Mandelay (2003), Ziegler (2013) e George (1978); 4) os determinantes da
inserção brasileira no capitalismo, especialmente com os estudos de Marini
(2005, 2012) e Delgado (2001, 2010, 2012a); 5) a análise da organização da
política de combate à fome no Brasil, nos estudos de Iasi (2006), Mota (2005,
2012) e Lula (2003; 2013); 6) a análise da situação nutricional, nos estudos de
Monteiro (1995; 2003; 2009) e Batista Filho (2008).
Na pesquisa documental considerei o documento do Programa Fome
Zero (PFZ) e o marco legal do Sistema Nacional de Segurança Alimentar e
Nutricional (SISAN) especialmente para verificar a organização da política.
Os dados secundários pesquisados se referem às informações do
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), no que se refere à
produção agropecuária nacional e a disposição da população brasileira em
domicílios. E a situação da fome no Brasil foi verificada por meio do aspecto da
insegurança alimentar que é como a informação se apresenta nos
levantamentos do IBGE. Os documentos do IBGE utilizados foram a 1)
Pesquisa de Orçamento Familiar (POF), de 2009, no suplemento:
“Antropometria e Estado Nutricional de Crianças e Adolescentes e Adultos no
Brasil”, para verificar a situação de desnutrição e de sobrepeso da população
brasileira; e no suplemento: “Análise do consumo alimentar pessoal no Brasil”,
com o objetivo de apreender qual é a composição alimentar dos brasileiros; 2)
Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD), de 2009, no suplemento
“Segurança Alimentar no Brasil 2004-2009”, que mede a percepção da
insegurança alimentar dos brasileiros; 3) o Relatório de Avaliação da Evolução
Temporal do Estado Nutricional de Crianças de 0 a 5 anos beneficiárias do
Programa Bolsa Família (PBF) acompanhadas nas condicionalidades de
saúde, feito pelo Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome
(MDS) e pelo Ministério da Saúde (MS), para comparar com os dados
nacionais de desnutrição infantil, essa informação é relevante pois o efeitos da
34

desnutrição infantil possuem incidência decisiva do desenvolvimento ulterior


dos sujeitos (MONTEIRO, 1995; 2003; 2008).
O estudo está exposto em três capítulos. O primeiro capítulo trata do
valor da fome entre as necessidades humanas e a reprodução do capital. Nele,
as necessidades humanas e a reprodução do capital são analisadas por meio
da categoria valor, e, cotejada com a unidade dialética fome-alimentação na
relação da satisfação das necessidades humanas e da reprodução do capital.
O capítulo dois versa sobre a particularidade do padrão de acumulação do
capitalismo no Brasil em seu caráter dependente e especializado na
exportação de commodities agrominerais, o que implica em um significativo
poder do latifúndio nas relações políticas e econômicas brasileiras e,
consequentemente, seus efeitos para a produção de alimentos. O capítulo três
trata da organização da política de combate à fome nos governos do Partido
dos Trabalhadores (PT), analisando-a com o debate acumulado na profissão
sobre a assistencialização das políticas sociais, o capítulo traz informações
sobre a situação da fome no Brasil, por meio da análise das informações
disponíveis veiculadas pelo IBGE e pelo Ministério de Desenvolvimento Social
e Combate à Fome (MDS).
35

CAPÍTULO I

A fome tem uma saúde de ferro, forte, forte como quem come: o valor da
fome entre as necessidades humanas e a reprodução do capital

Sem fastio, com fome de tudo.

Passando por cima de tudo e de todos


A fome universal sempre querendo tudo
E com o tempo inteiro a seu favor
Um pulo nessa imensidão de famintos.

Sem leite nem pra pingar no expresso do dia


Não vejo a hora de comer já salivando
O estômago fazendo festa em alto volume
Daqui da fome da pra ver o que acontece.

A fome tem uma saúde de ferro,


Forte, forte como quem come.

Sem fastio, com fome de tudo!

A única verdade debaixo desse som


Em carne viva se apresenta
Ninguém quer comer agora pro gosto chegar depois
Daqui da fome da pra ver o que acontece
A fome tem uma saúde de ferro
forte como quem come!
Canção “Fome de Tudo”, do disco homônimo da banda
Nação Zumbi, 2007.
36

A fome persiste! Essa talvez seja a constatação atordoante contrastada


pelo fato de que, atualmente, produzimos alimentos para 12 bilhões de
pessoas, e somos 7 bilhões ao todo (ZIEGLER, 2013; VIVAS, 2012). Alguns
questionamentos são importantes diante deste quadro: por que o problema da
fome é tão intenso numa época em que a produção de alimentos equivale ao
dobro da população mundial? Como se alimenta essa população? Qual é o
mecanismo que faz com que a fome resista, dure e persista entre as
expressões da questão social que afligem a humanidade? O que se passa com
nossa capacidade humana de responder concretamente às nossas
necessidades também concretas?
A Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura
(FAO)10, responsável por mapear a situação da fome, no mundo, informa que
no interstício 2011-2013, 842 milhões de pessoas, ou seja, um em cada oito
habitantes do planeta sofriam de fome crônica (FAO, 2013). Em 2014 esse
número equivaleu a 805 milhões de famélicos (FAO, 2014). Uma criança com
menos de 10 anos morre de fome a cada 5 segundos. A fome em escala
mundial é convertida em massacre cotidiano, tornando-se um mecanismo
violento de eliminação de contingentes populacionais (ZIEGLER, 2013).
Ziegler (2013) aborda a temática de forma simples. Para ele, a comida
(ou o alimento), seja qual for sua origem (animal, vegetal ou mineral), é
ingerida por seres humanos com fins energéticos e nutricionais e, em seu
conjunto, compõe o que se chama de alimentação. A alimentação, portanto, é a
energia vital do homem, medida em uma unidade energética chamada
quilocaloria, que permite avaliar a quantidade de energia que o corpo humano
necessita para se reconstituir. Essa quantidade varia com idade, sexo, clima,
atividade física e com a natureza do trabalho que a pessoa realiza.
A Organização Mundial de Saúde (OMS) estabelece como parâmetro
mínimo 2.200 calorias diárias necessárias para um adulto viver. A ausência de
calorias e nutrientes provoca a fome e leva à morte. Assim, a morte por fome
torna-se algo extremamente doloroso.

A agonia é longa e provoca sofrimentos insuportáveis. Ela destrói


lentamente o corpo, mas também o psiquismo. A angústia, o

10
Food and Agriculture Organization, na sigla em inglês.
37

desespero e um sentimento de solidão e de abandono acompanham


a decadência física.
A subalimentação severa e permanente provoca um sofrimento agudo
e lacinante do corpo. Produz letargia e debilita gradualmente as
capacidades mentais e motoras. Implica marginalização social, perda
de autonomia econômica e, evidentemente, desemprego crônico pela
incapacidade de executar um trabalho regular. Conduz
inevitavelmente à morte (ZIEGLER, 2013, p. 32).

Cabe destacar que uma criança que não recebeu alimentação


adequada até o quinto ano de vida não consegue recuperar sua capacidade
cognitiva, ainda que seja bem alimentada posteriormente.
Dentre as doenças decorrentes da fome está a noma. Segundo Ziegler
(2013) seu significado está vinculado ao ato de devorar e talvez seja o símbolo
mais contundente dos efeitos da fome. A noma devora o rosto das crianças que
sofrem de fome, especialmente de crianças entre um e seis anos de idade.

Primeiro, o rosto da criança incha e, em seguida, a necrose destrói


gradualmente todos os tecidos moles. Na sequência, os lábios e as
bochechas desaparecem e se abrem buracos na face. Desfeito o
osso orbital, os olhos perdem sustentação. A mandíbula deixa de
mover-se. As retrações cicatriciais deformam o rosto. A contração da
mandíbula impede que a criança abra a boca. A mãe, para introduzir
nela um caldo feito com milho, quebra alguns dentes da criança (...)
tem a vã esperança de que esse caldo impedirá a morte do filho. A
criança, com o rosto esburacado e a mandíbula travada, não tem
condições de falar. A mutilação da boca não lhe permite articular as
palavras. (...) A doença tem quatro consequências maiores: a
desfiguração do rosto (pela destruição), a impossibilidade de comer e
de falar, o estigma social e, em cerca de 80% dos casos, a morte
(ZIEGLER, 2013, p. 92-93).

Para as crianças que sobrevivem resta a cirurgia. Alguns médicos na


África tentam restaurar os rostos desfigurados das crianças em hospitais mal
equipados. A doença tem relatos antigos, há vestígios da sua existência desde
a Antiguidade e especialmente durante a idade média europeia. Ainda assim, a
noma não consta na lista de doenças da OMS, que se recusa a pautar sua
inclusão, pois há muitas doenças na lista de controle (ZIEGLER, 2013).
Assim como Josué de Castro, Ziegler (2013) faz a distinção entre fome
estrutural e fome conjuntural. A primeira é própria de países cuja estrutura de
produção é insuficientemente desenvolvida. A fome se reproduz
biologicamente, mães subalimentadas dão à luz crianças famélicas. A fome
38

conjuntural é provocada por catástrofes naturais e guerras. Para a população


atingida por essas tragédias organiza-se a ajuda humanitária internacional.
Cabe ressaltar que a fome também é uma arma de guerra e foi a
estratégia utilizada pelo exército alemão, italiano e finlandês durante o cerco a
Leningrado (atual São Petersburgo) que durou quase três anos (LOWE, 2000).
A política alimentar era um eixo da estratégia de guerra alemã. Anos antes de
iniciar a guerra a Alemanha desenvolveu uma rigorosa disciplina de produção e
estocagem de alimentos por meio de um organismo especialmente criado para
isso – os Reichnaehrstand – e com a implementação da indústria “dos
substitutos alimentares”, os erstz, nascia a moderna indústria da comida pronta
e a noção de segurança alimentar (CASTRO, 1961, p. 419).
Por outro lado, a expansão alemã pelo território europeu obedecia a
uma política da “fome organizada”

Conforme palavras pronunciadas em 1940 pelo líder trabalhista do


Reich, Robert Ley, ‘uma raça inferior necessita de menos espaço,
menos roupa e menos alimento do que a raça alemã’. Os povos
colaboradores, emprenhados em tarefas de importância vital, ou
militar, para a segurança da Alemanha, recebiam uma alimentação
que lhes permitia manter certa eficiência no trabalho; já os inimigos
eram limitados a um regime de privação intensa, que lhes tirava toda
a combatividade, sendo que certos grupos raciais, como o dos
judeus, eram submetidos a um regime de verdadeiro extermínio
(CASTRO, 1961, p. 420-421).

A fome como estratégia de guerra segue presente na história mais


recente. Zigler (2013) destaca o programa Petróleo por Alimentos imposto ao
povo iraquiano entre 1991 e 2003. O programa permitia a Saddam Hussein
vender, no marco da guerra do golfo, a cada seis meses, petróleo. O
pagamento era feito em uma conta bloqueada no banco de Nova Iorque que
permitia ao governo iraquiano comprar no mercado mundial bens
indispensáveis à sobrevivência da população.
Muito rapidamente o comitê de sanções recusou as solicitações de
importação de alimentos e remédios, justificando que eles também poderiam
ser utilizados como armas militares. Assim, “segundo as estimativas mais
comedidas, 550.000 crianças iraquianas morreram por subalimentação entre
1996 e 2000” (ZIEGLER, 2013, p. 233).
39

A organização da cooperação internacional para áreas de guerra


também encobre os problemas com o massacre da fome. O principal programa
de apoio humanitário no que se refere à fome é o Programa Alimentar Mundial
(PAM), subsidiado pelos países signatários da ONU, especialmente os EUA,
que durante muito tempo repassavam a ajuda em espécie e, assim, escoavam
parte da sua produção de alimentos – recentemente o fazem com dinheiro. Os
países europeus também contribuem com o programa que organiza a compra,
estocagem e distribuição de alimentos nas áreas de conflito bélico. Por isso,
em 2002, o alto comissariado norte-americano bombardeou por duas vezes o
depósito de alimentos do PAM, em Kandahar (Afeganistão), e impôs ao país
um bloqueio alimentar (ZIEGLER, 2013).
Para além de estratégia de guerra, a fome atinge especialmente as
populações pobres rurais e pescadores, já que “atualmente, dos 1,2 bilhões de
seres humanos que, segundo os critérios do Banco Mundial, vivem na ‘extrema
pobreza’ (ou seja, com uma renda diária inferior a 1,25 dólar11), 75% vivem nos
campos (ZIEGLER, 2013, p. 39). Assim, os mais pobres dos pobres são os
trabalhadores que se alojam na zona rural por diferentes razões.
Cabe notar a incidência dessa realidade sobre a capacidade produtiva
camponesa. O que se está afirmando é que a maioria das pessoas com fome
no mundo são camponeses produtores e vendedores de alimentos, ou seja,
fazem parte do resultado de um processo. Segundo Mazoyer e Roudart (2010),
a relação da produtividade entre a agroindústria e a agricultura camponesa
passou de 1 contra 10 no período entre guerras, para 1 contra 2000 no final do
século XX.
A fome atinge todo o globo terrestre e está assim distribuída: dos
805,3 milhões de famélicos identificados pela FAO, para o ano de 2014: 525,6
milhões estão na Ásia; 226,7 milhões na África; 37 milhões na América Latina e
Caribe; 14,6 milhões estão em países “desenvolvidos12” e 1,4 milhões na
Oceania (FAO, 2014).

11
Os valores atualizados para a linha de miséria e indigência do Banco Mundial é $1,25 e para
a pobreza $2,00 (LOUREIRO et. al. 2010).
12
A FAO trabalha com os conceitos de países desenvolvidos e em desenvolvimento. Essa tese
utiliza outra perspectiva teórica para balizar a análise: países de economia central e países de
economia dependente. Esse assunto será abordado no segundo capítulo.
40

No que tange a população mundial, os dados elaborados pela FAO até


2007 apontam o seguinte: “Ásia, 4,03 bilhões (ou seja, 60,5% da população
mundial); África, 925 milhões (14%); Europa, 731 milhões (11,3%); América
Latina e Caribe, 572 milhões (8,6%); América do Norte, 339 milhões (5,1%), e
Oceania, 34 milhões (0,5%)” (ZIEGLER, 2013, p. 49).
Vale observar que o método de coleta de dados sobre a fome, utilizado
pela FAO, é construído sobre indicadores estatísticos. Ziegler (2013) descreve
simplificadamente como é feito. O primeiro passo é estabelecer para cada país
o recenseamento da produção de bens alimentares, a importação e exportação
de alimentos, especificando o conteúdo calórico e obtendo, assim, a
quantidade de calorias disponíveis. O segundo passo é estabelecer para cada
país a estrutura demográfica e sociológica da população, ou seja, estabelecer
as necessidades calóricas que são variáveis. Em seguida, os estatísticos
correlacionam os indicadores agregados, obtendo os déficits calóricos globais
para cada país e fixando a quantidade teórica de pessoas subalimentadas.
Como os dados não informam a distribuição de calorias no interior de
cada país agregam-se aos dados, pesquisas com amostras dirigidas para
afinar as informações13.
Segundo Ziegler (2013), pesquisadores como Bernand Maire e Francis
Delpeuch criticam essa forma de estabelecer a população famélica. Um dos
argumentos é que, sobre essa forma, são determinados os déficits em termos
de calorias, mas não em termos de micronutrientes, como carências de
vitaminas, proteínas, minerais, que podem levar à cegueira, mutilações e
morte. Logo, chega-se ao número de pessoas em subalimentação e não em
má alimentação. Os pesquisadores questionam também a qualidade das
estatísticas oferecidas pelos países para o cálculo da FAO.
Isso resulta na tendência de que o problema é muito mais grave do que
anuncia a FAO. Fundada em 1946, no bojo das ações pós Segunda Guerra
Mundial, A FAO é uma agência da Organização das Nações Unidas (ONU) que

13
Voltarei a esses instrumentos de aferição da fome no último capítulo. Nenhum deles é
suficiente para precisar o fenômeno, de modo a ser avaliado apenas em uma tendência. A
tendência para todo o mundo é que a fome reduza, exceto para a África onde a fome tem
aumentado nos últimos anos. A condição sob a qual a fome diminui, como no caso do Brasil, é
eixo central de análise desse estudo.
41

surgiu um ano e meio antes, em 1945. Ao ser criada a FAO, expunha assim
suas atribuições:

1. A organização reúne, analisa, interpreta e difunde todas as


informações relativas à nutrição, à alimentação e à agricultura. No
presente Ato, a palavra agricultura engloba a pesca, os produtos do
mar, as florestas e os produtos da exploração florestal;
2. A organização estimula e, se necessário, recomenda toda ação de
caráter nacional e internacional que interesse: à pesquisa científica,
tecnológica e social e econômica em matéria de nutrição, alimentação
e agricultura; à melhoria do ensino e da administração, em matéria de
nutrição, alimentação e agricultura, bem como a divulgação de
conhecimentos teóricos e práticos relativos à nutrição e à agricultura;
à conservação dos recursos naturais e à adoção de métodos
aperfeiçoados, comercialização e distribuição de produtos
alimentares e agrícolas; à instituição de sistemas eficazes de crédito
agrícola no plano nacional e internacional; à adoção de uma política
internacional, no que toca a acordos sobre produtos agrícolas. Art. 01
do ato constitutivo da FAO (ZIEGLER, 2013, p. 225-226, grifos do
autor).

Porém, quem determina a política agrícola e a política de segurança


alimentar no mundo atualmente, segundo Ziegler (2013), longe de ser a FAO,
ou a soberania nacional, é o capital financeiro internacional e as agências que
o representam: Banco Mundial (BM) e a Organização Mundial do Comércio
(OMC). Isso ocorre por uma dinâmica que será detalhada no próximo capítulo.
A título de exemplo, da complexidade da ação do comércio internacional de
alimentos e seus efeitos sobre a fome, George (1978) elege a Nestlé, que por
essa época era a segunda maior agroindústria do mundo, como a responsável
pela desnutrição infantil e pela morte de crianças africanas, ao encorajar as
mães a substituírem o leite materno pelo leite artificial, criando algo que ficou
conhecido nos hospitais como “síndrome de lactogêneo”.

O Dr. Henri Dupi, que passou grande parte da sua carreira ensinando
saúde pública na África, ficou espantado, em 1970, ao ver mães na
Costa do Marfim dando Nescafé a criancinhas de 19 a 20 meses. Os
seus alunos explicaram-lhe que a seguinte mensagem era transmitida
três vezes por dia, através da rádio nacional: ‘Nescafé torna os
homens mais fortes, as mulheres mais alegres e as crianças mais
inteligentes’. Essas mães africanas estavam simplesmente pondo tal
‘conselho’ em prática. O Dr. Dupin por vezes sente que está travando
uma batalha perdida – o orçamento publicitário da Nestlé é muito
maior do que o orçamento anual da Organização Mundial de Saúde
(GEORGE, 1971, p. 170).
42

No Brasil, atualmente, a Nestlé estabelece algumas estratégias


contundentes para a venda dos seus produtos. No Norte do país possui um
supermercado flutuante que navega pelos rios e chega às populações
ribeirinhas, que, com recursos do programa Bolsa Família compra da Nestlé a
imitação de comida com a qual engana a fome (RENNER, 2012; DEBORD,
2000).
Para além da indústria de substâncias alimentares prontas, o sistema
agroalimentar engloba o sistema de sementes transgênicas, adubos químicos,
agrotóxicos, distribuição (rede de supermercados) e transporte. Atualmente,
dez sociedades, dentre as quais a Aventis, a Monsanto, a Pionner e Syngenta,
controlam um terço do mercado mundial de sementes, com

volume estimado em 23 bilhões de dólares por ano, e 80% do


mercado mundial de pesticidas, estimado em 28 bilhões de dólares.
Dez outras sociedades, entre as quais a Cargill, controlam 57% das
vendas dos 30 maiores varejistas do mundo e representam 37% das
receitas das 100 maiores sociedades fabricantes de produtos
alimentícios e de bebidas. E seis empresas controlam 77% do
mercado de adubos: Bayer, Syngenta, BASF, Cargill, DuPont e
Monsanto (ZIEGLER, 2013, p. 152).

Ainda segundo Ziegler (2013), essas sociedades influenciam


decisivamente as organizações internacionais e a quase totalidade dos
governos ocidentais. A argumentação no que tange ao direito humano à
alimentação e à fome é a seguinte: reconhecem a tragédia da fome e
sustentam que ela ocorre devido à baixa produtividade da agricultura mundial,
ou seja, os bens disponíveis são insuficientes para alimentar toda a população.
A solução, portanto, é investir em industrialização, leia-se, restringindo a
pequena propriedade improdutiva e descapitalizada e mobilizando tecnologias
avançadas. Em outras palavras, sementes transgênicas, fertilizantes químicos
e agrotóxicos são somados ao livre mercado de maquinarias agrícolas. Com
produtos disponíveis no mercado, resta ao trabalhador, conseguir dinheiro para
adquirir os produtos!
Madelay (2003) informa que a liberalização do comércio e a redução de
barreiras alfandegárias para bens manufaturados está na agenda internacional
desde a década de 1940. No ano de 1947, 23 países assinaram o Acordo
43

Geral de Tarifas de Comércio (Gatt), que tinha como prerrogativa impor um


conjunto de regras para o comércio internacional a fim de torná-lo um ambiente
seguro e previsível. Entre os anos 1947 e 1979, ocorreram 7 rodadas de
negociação do Gatt. Em 1986 ocorreu a rodada do Uruguai, na qual os países
membros resolveram incluir a agricultura entre os temas. Essa rodada de
negociações cria a Organização Mundial do Comércio (OMC).
O autor sustenta que a liberação da agricultura já começara
intensamente na década de 1980 com os programas de ajuste estrutural do
Fundo Monetário Internacional (FMI) e do Banco Mundial (BM), que obrigavam
os países em “desenvolvimento” que quisessem empréstimos no Banco a
realizarem ajustes econômicos, dentre os quais, incluíam-se, por exemplo, a
não estocagem de alimentos (MADELEY, 2003).
Ao terminar a rodada Uruguai em 1993, vários acordos estavam
assinalados, dos quais sobressai o acordo sobre a agricultura, realizado
basicamente entre Estados Unidos e União Européia. O acordo previa que os
países se comprometessem a reduzir as tarifas sobre a importação de
alimentos em 36% ao longo de 6 anos, iniciando em 1995. Para os países em
“desenvolvimento” a redução era de 24%, podendo ser feita ao longo de 10
anos e, na mesma proporção, cortando subsídios à exportação. O acordo
insidia também sobre os subsídios públicos aos agricultores, reduzindo-o em
20% para os países desenvolvidos e em 13,33% para os países
subdesenvolvidos. Na verdade, ocorreu o contrário. O nível geral de subsídio à
agricultura nos países ocidentais pulou de 182 bilhões de dólares em 1995,
quando surgiu a OMC, para US$ 280 bilhões em 1997 e US$ 362 bilhões em
1998 (MANDELAY, 2003, p. 68-69).
Esse quadro é detalhado no estudo de George (1978). A autora
denuncia a política de subsídios à agricultura por parte dos EUA e informa
como a estratégia de abrir mercados para os produtos agrícolas produzidos no
país implica em regulação do mercado de alimentos e, portanto, na regulação
da oferta e da demanda de produtos e, por conseguinte, na fome.
O comércio internacional de alimentos, nas bases liberais postas pela
OMC, implica diretamente na fome nos países pobres. O mecanismo funciona
da seguinte forma: os países pobres importam produtos produzidos na União
Européia e nos Estados Unidos, com alta tecnologia e intensos subsídios
44

governamentais e, portanto, podem chegar aos países importadores, a


princípio, com baixo custo. Uma vez que existem produtos com preço muito
reduzido no mercado, a produção camponesa é incapaz de competir com
esses produtos, e é destruída pela concorrência. Quando já não há
concorrência interna, os preços dos produtos alimentícios aumentam e parcela
da população não consegue mais acessá-los.
Ziegler (2013, p. 174) destaca que 37 dos 54 países da África possuem
economias centralmente agrícolas. O FMI concede moratórias temporárias ou
refinanciamento das dívidas aos países, desde que os mesmos se ajustem às
normas do Fundo, implicando na redução dos gastos com saúde, educação e
eliminação de subsídios aos alimentos de base14 e auxílio direto às famílias.
Informa o autor, a título de exemplo, que no Níger, o FMI exigiu a privatização
do Departamento Nacional de Veterinária. Isso resultou no aumento exorbitante
do custo das vacinas, agora fornecidas por sociedades transcontinentais
privadas. A consequência é a morte dos rebanhos e a pobreza absoluta das
famílias que passam a habitar as favelas das cidades costeiras.
O FMI também tem como tarefa expandir os mercados do Sul às
sociedades transcontinentais privadas de alimentação. Por isso, explica Ziegler
(2013, p. 174):

No hemisfério Sul, o livre-comércio carrega o rosto repugnante da


fome e da morte.
O Haiti é hoje o país mais miserável da América Latina e o terceiro
país mais pobre do mundo. Ali, o alimento de base é o arroz. Ora, no
início dos anos 1980, o Haiti era autossuficiente em arroz,
trabalhando sobre planaltos ou nas planícies úmidas, os camponeses
autóctones estavam protegidos do dumping estrangeiro por um muro
invisível: uma tarifa aduaneira de 30% incidia sobre o arroz
importado.
Durante os anos 1980, porém, o Haiti passou por dois planos de
ajustamento estrutural.
Sob o dikat do FMI, a tarifa protetora foi reduzida de 30% para 3%.
Fortemente subsidiado por Washington, o arroz norte-americano
invadiu então as cidades e aldeias haitianas, destruiu a produção
nacional e, por consequência, as condições de vida de centenas de
milhares de rizicultores.
Entre 1985 e 2004, as importações haitianas de arroz –
essencialmente norte-americano, cuja produção é largamente
subsidiada pelo governo – saltaram de 15.000 a 350.000 toneladas
por ano. Simultaneamente, a produção local de arroz desabou: caiu
de 124.000 para 73.000 toneladas.

14
Alimento de base é uma referência ao alimento que compõe em cada cultura o alicerce
alimentar, como é o caso do arroz e do feijão no Brasil.
45

Desde inícios dos anos 2000, o governo haitiano teve de gastar um


pouco mais de 80% dos seus escassos recursos para pagar suas
importações de alimentos. E a destruição da rizicultura provocou um
êxodo rural em massa, com o superpovoamento de Porto Príncipe e
de outras grandes cidades do país, acarretando a desintegração dos
serviços públicos.
Logo a sociedade haitiana se viu abalada, debilitada e mais
vulnerável que antes sob o efeito dessa política neoliberal. E o Haiti
tornou-se um Estado mendicante, submetido à lei do estrangeiro.
Golpes de Estado e crises sociais sucederam-se ao longo dos últimos
vinte anos.
Em tempos normais, os nove milhões de haitianos consomem
320.000 toneladas de arroz por ano. Quando, em 2008, os preços
mundiais do arroz triplicaram, o governo não pôde mais realizar
importações suficientes. Então, a fome sitiou a Cidade do Sol.

A entrada das grandes empresas do complexo sistema agroalimentar


nos países de economia dependente implica na expulsão das populações
camponesas que são imediatamente submetidas à fome. Na Índia, cresce as
situações de suicídio dos camponeses que não conseguem mais sobreviver de
suas terras (ZIEGLER, 2013).
É nesse mundo torturado pela guerra e pela fome que a FAO e o
governo petista anunciam que o Brasil não figura mais no mapa da fome.
Segundo o discurso oficial, isso ocorreria devido à política de combate à fome
implementada pelo governo, que ganha repercussão mundial e, eleita como
política modelo para o combate à fome no mundo, como sustento no capítulo III
esse anuncio encobre elementos fundamentais do processo, mas o resultado,
comemorado pelo governo e pela FAO, sustenta José Graziano Silva na
presidência do organismo internacional para os anos 2012-2015, com
sucessão garantida para o próximo triênio15.
Ao assumir a presidência da FAO José Graziano informava que para
resolver o problema da fome no mundo falta vontade política, vontade que,
aparentemente, nos sobra no Brasil.
Ocorre que o Brasil é atualmente o terceiro maior exportador de
produtos alimentares do mundo, atrás apenas dos Estados Unidos da América
e da União Europeia. Isso faz com que o sistema agroindustrial constitua um
setor econômico fundamental para a compreensão da relação que o país
estabelece com o mercado internacional e com a reprodução do capital.

15
Fonte: http://nacoesunidas.org/brasileiro-jose-graziano-e-candidato-unico-para-chefiar-fao-
eleicoes-sao-em-junho/ acessado em 15 de março de 2015.
46

Dessa forma, o percurso desse estudo exige apreender a lógica de


valorização do capital nesse setor produtivo, observando, por um lado, que o
alimento possui valor de uso que responde a uma necessidade humana
imprescindível, e que ao ser transformado em mercadoria necessita de um
mercado consumidor. Por outro lado, o alimento encontra-se dentre os
elementos que compõem o custo dos bens-salário – a redução do seu custo
interfere diretamente no salário necessário para a reprodução da mercadoria
força de trabalho.
Entendo que se trata, de uma discussão eminentemente da ordem do
valor. Do valor econômico e do valor para o desenvolvimento do humano.
Pensar a fome em seu par dialético, a alimentação, é refletir qual o valor do
alimento para o processo de constituição do Ser Social e qual o valor do
commodity, do alimento em sua forma mercadoria, para a valorização do
capital. A partir dessas reflexões será possível apreender o sentido da
organização da política de combate à fome no Brasil.

1.1. O fundamento ontológico dos valores

Essa dinâmica de desenvolvimento do humano que se autoconstrói


como tal em um processo ininterrupto, complexo, dialético, na busca pela
satisfação de suas necessidades por meio do trabalho, implica em um
constante dever-ser do trabalho na transformação do homem em homem.
Como já foi dito, o trabalho transforma o sujeito que trabalha, é o “autêntico
devir homem do homem”. Isso significa, se tomamos o lado objetivo do
trabalho, como

um domínio da consciência sobre o elemento instintivo puramente


biológico, visto do lado do sujeito, isso implica uma continuidade
sempre renovada de tal domínio, e uma continuidade que se
apresenta em cada movimento singular do trabalho como um novo
problema, uma nova alternativa, e que a cada vez, para que o
trabalho tenha êxito, deve terminar com uma vitória da compreensão
correta sobre o meramente instintivo (LUKÁCS, 2013, p.79-80).

Nesse processo de autoconstruir-se como homem “observamos que o


ato decisivo do sujeito é seu pôr teleológico e [na] realização deste, fica
47

imediatamente evidente que o momento categorial determinante desses atos


implica o surgimento de uma práxis caracterizada pelo dever-ser” (LUKÁCS,
2013, p. 98).
Como a ação do sujeito é orientada para um fim, inverte-se a
determinação biológica para a qual o passado determina o presente em função
dos desdobramentos causais. No pôr de um fim, “o fim vem (na consciência)
antes de sua realização e, no processo que orienta cada passo, cada
movimento é guiado pelo pôr do fim (pelo futuro)” (LUKÁCS, 2013, p. 98).
Intimamente ligado ao problema do dever-ser está o problema do valor.
O dever-ser enquanto determinante da práxis subjetiva no processo de trabalho
só cumpre papel determinante porque o que se pretende é valioso para o
homem, logo, o “valor não poderia tornar-se realidade em tal processo se não
estiver em condições de colocar no homem que trabalha o dever-ser de sua
realização como princípio orientador da práxis” (LUKÁCS, 2013, p. 106). Há
uma interdependência entre dever-ser e valor que os coloca como integrantes
do mesmo processo.
O dever-ser e o valor são duas categorias interdependentes “porque
ambas são momentos de um único e mesmo complexo comum”. O valor
influencia predominantemente sobre o pôr do fim, é por ele que se avalia o
produto realizado, a objetivação do trabalho. O dever-ser é um regulador do
processo, é por ele que se avalia o que se poderia alcançar (LUKÁCS, 2013, p.
106).
A fonte da gênese do valor é a transformação ininterrupta da estrutura
do próprio ser social. Desta transformação surgem os pores que realizam o
valor, nesse sentido, todo valor autêntico é um momento importante no
complexo fundamental do ser social, na práxis social. O próprio processo de
reprodução do ser social é um complexo e uma síntese de atos teleológicos
inseparáveis da aceitação ou da rejeição de um valor, ainda que isso só se
realize se objetivado no real. Os homens fazem sua história, mas não a fazem
em condições escolhidas por eles. Isso se desdobra no fato de que os homens
respondem às alternativas concretas que lhes são apresentadas a cada
momento como possibilidade, como alternativa, mas o fazem de forma mais ou
menos consciente, mais ou menos acertada: nisso está implícito o valor.
(MARX; ENGELS, 2002; MARX, 1998; LUKÁCS, 2013)
48

O fundamento objetivo de todo valor está na elaboração de faculdades


e das necessidades humanas:

só se pode falar de valor no âmbito do ser social; no ser inorgânico e


no orgânico, o desenvolvimento pode produzir formas mais
elaboradas em seu ser, mas seria algo puramente verbal designar
como valor aquilo que se elaborou. Só na medida em que o
desenvolvimento do ser social, em sua forma ontologicamente
primária, ou seja, no campo da economia (do trabalho), produz um
desenvolvimento de faculdades humanas, só então é que seu
resultado, como produto da autoatividade do gênero humano, ganha
caráter de valor, o qual se dá conjuntamente com sua existência
objetiva e é indissociável dela (LUKÁCS, 2012, p. 348).

Afirma-se, dessa forma, que, ao investigar a base ontológica última de


um valor qualquer, chega-se à explicitação de faculdades humanas, resultado
da própria atividade humana. O trabalho é a atividade orientada a um fim pela
qual o homem realiza escolhas, e nessas escolhas estão implícitos os valores,
orientados a objetivar no real algo que satisfaça as necessidades humanas.
Cabe notar, todavia, que essa capacidade de fazer escolhas dos
homens está condicionada às condições historicamente determinadas. “Os
homens fazem sua própria história, mas não a fazem como querem; não a
fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se
defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado” (MARX, 1986, p.
17).
A objetivação no real, exteriorização dos valores contidos nas escolhas
humanas, materializa-se em algo que possui valor de uso para a satisfação das
necessidades. O valor de uso existe quando determinada coisa possui utilidade
para o humano. Valores de uso são encontrados diretamente na natureza,
como o ar, a terra, a água. Mas, ainda assim, pode-se notar que a maioria dos
valores de uso surge do trabalho mediante a transformação de objetos naturais
em bens úteis à vida humana. Em se tratando do trabalho, o valor de uso
distingue-se de outras categorias da economia somente por ser objetivação do
metabolismo da sociedade com a natureza e, nesse aspecto, “constitui-se um
dado característico de todas as formações sociais, de todos os sistemas
econômicos, não está sujeita – considerada na sua universalidade – a
nenhuma mudança histórica” (LUKÁCS, 2013, p. 107-108).
49

Na gênese ontológica do valor, partimos do fato de que o trabalho


produz valores de uso (bens), isso coloca em pauta a questão da alternativa e
da utilidade (útil – não útil) para a satisfação das necessidades que são
elementos ativos do ser social. No problema da objetividade do valor é possível
perceber seu conteúdo de afirmação do pôr teleológico, se pressuposta a
realização correta do valor. Nesse sentido, a “concreção da relação de valor
deve receber um acento particular (...) devemos sublinhar o caráter sócio-
ontológico de ‘se...então’: uma faca tem valor se corta bem etc.” (LUKÁCS,
2013, p. 111).
Esse caráter sócio-ontológico de ‘se...então’ constitui-se em uma chave
de análise fundamental para relacionar a resposta ao problema da fome, via
substâncias alimentares, no atual estágio da sociedade capitalista: comida
pronta industrializada que se caracteriza pela imitação de comida e não por
alimento em si, com altas doses de açúcar, sal e gordura, respondem
atualmente pela epidemia de obesidade mundial e pelos problemas de saúde
daí decorrentes, um “alimento” que provoca a morte, não pode ser em
substância um alimento, não atende à necessidade humana a se alimentar.
(POLLAN, 2007, 2008; DEBORD, 2000; BATISTA FILHO, 2008).
Seguindo esse raciocínio, podemos dizer que, para o sujeito que
trabalha um objeto produzido só será valioso quando serve corretamente e de
maneira adequada à satisfação da necessidade a que se refere. Assim, “o valor
que aparece no trabalho enquanto processo que reproduz valor de uso é sem
nenhuma dúvida objetivo”. Dessa forma, a satisfação da necessidade pode ser
demonstrada e comprovada como válida (LUKÁCS, 2013, p. 111).
O valor tem uma relação indissolúvel com o caráter alternativo nas
escolhas sobre os meios e os fins na práxis social. O mundo natural não
conhece os valores, identifica apenas os nexos causais e as transformações
por eles ocasionadas. Na realidade, o papel efetivo dos valores limita-se ao ser
social. Uma vez que os valores respondem a uma determinação “se...então”
que é posta pelas alternativas, seus resultados não são meras objetivações
mas, ao contrário, “é sua objetividade no interior do ser social que decide
acerca da correção ou falsidade dos pores alternativos orientados para o valor”
(LUKÁCS, 2013, p. 118).
50

Significativo notar que as alternativas orientadas para a realização de


valores assumem muitas vezes formas conflitantes e em alguns momentos
esses conflitos são insolúveis, especialmente quando as alternativas de um
conflito não estão apenas entre o “quê” e o “como” da decisão, mas sim, funda-
se em uma determinada práxis como conflito entre valores concretos, dotados
de validade concreta, em situações em que a alternativa está orientada a uma
escolha entre valores que se opõem mutuamente. Tem-se a situação de visões
de mundo conflitantes e excludentes entre si. Apresenta-se, assim, a
contraposição entre valor e desvalor.

Quanto mais se desenvolve o trabalho, mais extensas se tornam as


representações do valor a ele relacionadas. E de um modo mais sutil
– e sobre um plano mais alto – se coloca o problema de saber se
uma dada coisa, num processo que se torna cada vez mais social e
complexo, é adequada ou não à autorreprodução do homem. Este é o
meu ponto de vista sobre a fonte ontológica daquilo a que chamamos
valor. Da contraposição entre valor e desvalor surge agora uma
categoria inteiramente nova, que se refere àquilo que na vida social
pode ser uma vida significativa ou sem significado (LUKÁCS, 1969, p.
27-28).

Há nesta passagem o elemento central para o argumento desse


estudo. No mundo dos homens, na constituição do processo de humanização,
coloca-se a possibilidade de escolhas, do útil e do não útil, que desde o
primeiro ato de trabalho se complexifica, construindo o mundo dos homens.
Mas esse processo coloca em curso a questão do valor e do desvalor também
no que se refere a auto-reprodução do homem, no sentido de uma vida
significativa de atributos humanos.
Ter a possibilidade de escolhas e estas escolhas serem atribuições de
valor não significa que as escolhas sejam corretas e que a vida humana se
organize necessariamente sobre o valor, pelo contrário, a possibilidade de
escolher pelo desvalor está posta a todo o tempo. “O princípio de
homogeneização está dado pelo fato de que esses valores, do ponto de vista
formal, são precisamente isto: valores” (LUKÁCS, 2012, p. 412).
A objetividade dos valores funda-se como componente movente e
movido do conjunto do desenvolvimento social, ainda que contraditoriamente,
em alguns momentos, estejam em oposição aberta com a própria base
51

econômica e, muitas vezes, em contradição entre si. Não significa, portanto,


que se possa estabelecer uma hierarquia de valores, tampouco que se possa
cair em uma perspectiva relativista.

O valor (...) contribui para que permaneça viva, pelo menos em parte,
nas perguntas e nas respostas, uma tendência à autenticidade, já
que, inclusive, a alternativa de determinada práxis não se expressa
somente em dizer ‘sim’ ou ‘não’ a um determinado valor, mas também
na escolha do valor que forma a base da alternativa concreta e nos
motivos pelos quais se assume esse pôr (LUKÁCS, 2013, p.125).

O contínuo processo de desenvolvimento do humano, fundado no


trabalho, no desenvolvimento das forças produtivas e nas lutas sociais, cria
uma heterogeneidade que sob determinadas circunstâncias pode entrar em
contradição. O próprio desenvolvimento econômico ao provocar
transformações substantivas na estrutura social, faz surgir formas
qualitativamente diversas, por exemplo, a passagem do feudalismo para o
capitalismo. Nessas circunstâncias “verificam-se necessariamente alterações
qualitativas na estrutura e na constituição das esferas de valor não
econômicas” (LUKÁCS, 2012, p. 410-412).
A questão do que tem valor e do que contém desvalor, por sua vez,
está posta em cada pôr teleológico.

Mas algo diverso ocorre quando se trata dos próprios conteúdos e


das próprias formas de valor. Em determinadas sociedades, eles
podem encontrar-se em relação de antagonismo com o processo
econômico, o que ocorreu efetivamente nas mais diversas fases do
desenvolvimento econômico e, de forma bastante acentuada,
igualmente no capitalismo (LUKÁCS, 2012, p. 419).

Isso ocorre, pois no estágio de desenvolvimento social concreto é que


se busca dar respostas também concretas. Há, todavia, “uma dependência no
que se refere à possibilidade de formulação, à qualidade e ao conteúdo das
perguntas e das respostas”, tendo em vista que o desenvolvimento econômico
é nele mesmo muito desigual, e

pressupõe um ser social como também, ao mesmo tempo e com a


mesma necessidade ontológica, produz o ponto de partida para
52

novos juízos de valor, a dependência pode, nesse sentido,


concretizar-se de tal modo que um sistema de valores não
econômicos negue radicalmente e desmascare como contrários ao
valor os fenômenos derivados de um estágio do desenvolvimento
econômico (LUKÁCS, 2012, p. 411-412).

Nesse tensionamento, as respostas possíveis dadas pelos sujeitos


possuem um campo mais amplo cuja “intenção [...] pode estender-se da
atualidade imediata até englobar diretamente os problemas do gênero humano,
ou seja, podem produzir efeitos no dia de hoje mais igualmente no futuro
distante”, ainda que o ponto de partida seja dado pelo estágio concreto do
desenvolvimento econômico que, em última instância, determina a forma e o
conteúdo do valor (LUKÁCS, 2012, p.412).
Essa contradição entre os valores que englobam os problemas do
gênero humano e a base material de reprodução social coloca o debate do
comunismo como horizonte para a transformação da sociedade e à
necessidade da emancipação humana.
Se tomamos a produção do alimento como eixo de reflexão do
complexo do trabalho é simples notar como, desde uma resposta imediata à
uma necessidade imediata, o homem construiu um sistema complexo que
transforma a necessidade biológica em necessidade social. Sacia a
necessidade do corpo de conseguir energia para se reproduzir, mas
desenvolve também os sentidos humanos, as relações sociais, a cultura, as
tradições, os cultos, as artes. Forma os sentidos humanos.

A formação dos cinco sentidos é um trabalho de toda a história do


mundo até aqui. O sentido constrangido à carência prática, rude,
também tem apenas um sentido tacanho. Para o homem faminto não
existe a forma humana da comida, mas somente a sua existência
abstrata como alimento; poderia ela justamente existir muito bem na
forma mais rudimentar, e não há como dizer em que esta atividade de
alimentar-se distingue da atividade animal de alimentar-se (MARX,
2012, p. 110).

Não é necessário para esse estudo uma síntese da história da


alimentação, da cozinha ou da comida. Mas elencar alguns desses processos
pode ser válido a título de ilustração das escolhas e das soluções concretas
53

que o homem forjou ao longo da sua história, como forma de resolver o


problema da fome e da alimentação. Para Marx (2008, p. 246),

A fome é a fome, mas a fome que se satisfaz com carne cozida, que
se come por meio de uma faca ou de um garfo, é uma fome muito
distinta da que devora carne crua com ajuda das mãos, unhas e
dentes. A produção não produz, pois, unicamente o objeto do
consumo, mas também o modo de consumo, ou seja, produz objetiva
e subjetivamente. A produção cria, pois, os consumidores.

A história da humanidade é cravejada por guerras, construções de


impérios, dominação de um povo por outro, distinções entre estamentos e
classes. Para Marx e Engels (1998, p. 04), “a história de todas as sociedades
até hoje é a história das lutas de classes”. No interior desse processo de lutas e
contradições a questão da fome e da alimentação também aparecerá como
forma de dominação e de distinção.
No que se refere ao desenvolvimento humano acerca do ato de comer,
Fernández-Armesto (2004, p.32) aponta três momentos decisivos: o
desenvolvimento da agricultura e domesticação de animais, o intercâmbio
colombiano e a comida industrializada. Porém, antes de chegar na agricultura é
importante notar que é decisivo no processo de alimentação humano a
domesticação do fogo e o desenvolvimento do ato de cozinhar. Alguns autores,
como Wrangham (2010) sustentam, inclusive, que o ato de cozinhar é que nos
tornou humanos. Ainda que não haja concordância com essa tese, é
indiscutível o significado do cozimento para o desenvolvimento das
potencialidades humanas.
Os primórdios da agricultura e da domesticação de animais remontam
ao período neolítico, antes do qual o homem vivia da caça e da coleta, ou seja,
da relação direta com o que a natureza era capaz de fornecer como alimentos.
Para relembrar o quanto essa transformação é recente na história do mundo
natural, estima-se que a vida tenha começado a se desenvolver na terra há 3,5
bilhões de anos. Nesse período registra-se cerca de 500.000 espécies de
vegetais e um milhão de espécies animais, dentre as quais se encontra o homo
sapiens sapiens, um onívoro que, desenvolveu capacidade de trabalho, o
possibilita ao homem uma vantagem indiscutível sobre as demais espécies
54

animais. Assim, o homem é capaz de se adaptar a qualquer clima e a uma


infinidade de possibilidades alimentares.
Nós, o homo sapiens sapiens, aparecemos no planeta entre 50 e 200
mil anos atrás, segundo diversas e divergentes versões. A agricultura data de
10 mil anos atrás, modificando a forma de vida do homo sapiens sapiens, mas
também a maior parte dos ecossistemas do planeta (MAZOYER; ROUDART,
2010).
Essa capacidade de modificar os ecossistemas, após a agricultura e a
domesticação de animais, faz com que os alimentos humanos se tornem cada
vez mais cultivados, artificializados e distintos de sua forma original, permitindo
ao homem povoar e ocupar toda a extensão do planeta, mas provocando
efeitos na natureza e também, na saúde das pessoas (MAZOYER e
ROUDART, 2010, p. 70).
O ato de cultivar, que vem do latim cultus (FERNÁNDEZ-ARMESTO,
2004) nas sociedades antigas, colocava o alimento no lugar do sagrado. A
constituição da sociedade se vinculava ao ciclo do plantio e da colheita, assim
como a preparação do alimento constituía-se em momentos fundamentais da
sociabilidade de diversos povos.
Há uma diversidade de alimentos que podem ser acessados pelo
homem. Dentre eles, um grupo especial se destaca, pois se constituíram como
alimentos base da alimentação, se classificam em cereais, raízes e tubérculos.
Deles dependeram a sobrevivência de civilizações inteiras.
Dentre os grandes cereais, encontra-se o trigo (Vale do Rio Jordão,
Galileia), o centeio (Oriente, próximo ao redor do Cáucaso), a cevada
(Mesopotâmia antiga, Grécia, Tibete), o milhete (África Ocidental, China), o
arroz16 (sudeste asiático, no que seria atualmente a Índia e o Paquistão) e o
milho17 (México, civilização Maia e Asteca). Civilizações inteiras dependeram
de um, dentre esses alimentos base, para sua sobrevivência. Dentre os

16
“Os problemas da origem e difusão do arroz são essenciais para o entendimento da história
mundial. O arroz fornece cerca de 20% das calorias e 13% das proteínas que as pessoas
consomem hoje no mundo, sendo o produto alimentício básico para mais de 2 bilhões de
pessoas” (FERNANDEZ-ARMESTO, 2004, p.147-148).
17
Voltaremos ao milho mais adiante por sua importância econômica na atualidade. Cabe
ressaltar, porém, que o milho sozinho é um alimento incompleto em termos nutritivos e é
complementado nessa região com o feijão.
55

tubérculos, destacam-se o cará (Sudeste Asiático), a mandioca e a batata


(América do Sul).
O intercâmbio alimentar também tem uma longa história, que passa
pelas migrações, pelas conquistas de território, pela necessidade de adaptação
a mudanças climáticas. Fernández-Armesto (2004) identifica, entretanto, um
momento na história da humanidade em que esse intercâmbio se intensifica ao
ponto de modificar a estrutura alimentar mundial. Esse processo ocorre com a
expansão marítima em busca das especiarias indianas, mas se intensifica com
a ação dos Europeus sobre a América Latina.
Foi assim que a batata – um produto regional andino – ganhou
centralidade na alimentação europeia; a batata-doce alcançou a China, o arroz
chegou até o Brasil e o tomate (originário da América Central) passou a ser a
base da culinária italiana. Após o intercâmbio colombiano, pelo menos um dos
alimentos ou ingredientes consumidos diariamente por determinada sociedade
é originário de outra parte do globo (FERNÁNDEZ-ARMESTO, 2004; POLLAN,
2008).
Ainda que esse intercâmbio alimentar tenha provocado modificações
na cultura alimentar e, em algumas situações, provocado distúrbios
alimentares, o processo de socialização em torno da comida e a riqueza da
diversidade da alimentação humana, em certa medida, estava assegurado. A
diversidade da forma e do conteúdo da alimentação comprova a riqueza da
humanidade nesse eixo do desenvolvimento de suas potencialidades.
Na realidade existem dietas alimentares de diferentes tipos no mundo.
Em comum possuem a característica de se equilibrar ao longo do tempo
consolidando uma forma tradicional de se alimentar em cada lugar onde é
exigido paladar e olfato apropriados. Cabe notar também que o ato de comer é
eminentemente social. Os homens comem juntos, e esse dado não é menor no
desenvolvimento da humanidade. Ao redor da mesa repassam-se valores,
aprende-se a fazer escolhas e a respeitar as escolhas dos outros: nos
humanizamos, nos universalizamos.
Mas não é apenas para satisfazer a necessidade imediata que o
homem produz. Essa capacidade do homem de se universalizar e de se
socializar, dada primeiramente pelo trabalho, faz de si um Ser capaz de se
tornar um ser genérico consciente. O homem produz universalmente, livre da
56

sua necessidade imediata, produz a si mesmo e reproduz a natureza inteira, e


é nessa condição de ser livre com o seu produto que o homem pode produzir
segundo as leis da beleza (MARX, 2003). Ou seja, o homem não produz
apenas submetido à carência física imediata, ele produz inclusive
completamente livre dessa carência. Essa característica humana eleva suas
necessidades para além da carência e, ao fazê-lo, produz um gênero humano.
Essa afirmativa torna-se fundamental para o argumento desse estudo: a
alimentação precisa responder às necessidades humanas, nutricionais e
sociais.

É verdade que também o animal produz. Constrói para si um ninho,


habitações, como a abelha, castor, formiga etc. No entanto, produz
apenas aquilo de que necessita imediatamente para si ou sua cria;
produz unilateral[mente], enquanto o homem produz universal[mente];
o animal produz apenas sob o domínio da carência física imediata,
enquanto o homem produz mesmo livre da carência física, e só
produz, primeira e verdadeiramente, na [sua] liberdade [com relação]
a ela; o animal só produz a si mesmo, enquanto o homem reproduz a
natureza inteira; [no animal] o seu produto pertence imediatamente ao
seu corpo físico, enquanto o homem se defronta livre[mente] com o
seu produto. O animal forma apenas segundo a medida e a carência
da species à qual pertence, enquanto o homem sabe produzir
segundo a medida de qualquer species, e sabe considerar, por toda a
parte, a medida inerente ao objeto; o homem também forma, por isso,
segundo as leis da beleza (MARX, 2012, p. 85).

A história da alimentação demonstra como o homem, a partir da


necessidade material de se alimentar, desenvolve formas cada vez mais
complexas de fazê-lo. Um exemplo das mudanças que se processam na forma
de se alimentar pode ser encontrado nos hábitos dos gregos e romanos na
antiguidade, que realizavam suas refeições deitados. Outro exemplo é a
utilização de utensílios como garfos, facas, pratos e copos nas refeições até o
desenvolvimento da gastronomia e dos restaurantes18 (FRANDRIN;
MONTANARI, 1998; FERNÁNDEZ-ARMESTO, 2004).

18
“As origens do restaurante recuam aos limites da pré-história e da história. Esse tipo de
comércio surgiu com os mercados e as feiras, que obrigavam camponeses e artesãos a
deixarem seu domínio durante um ou vários dias e, portanto, a se alimentarem ao mesmo
tempo que estabelecem ou mantêm relações sociais (...). Por volta de 1765, um certo
Boulanger, dito ‘Champ d’Oiseaux’ ou ‘Chantoiseau’, abre uma butique nas proximidades do
Louvre (...). Vende aí ‘restaurats’ ou ‘caldos restauradores’, isto é, caldos à base de carne,
propícios a restaurar as forças debilitadas. Desde o final da Idade Média a palavra ‘restaurant’
designa esses caldos ricos que incluem carne de aves e boi, diversas raízes, cebolas, ervas e,
57

Símbolo de distinção social, a alimentação como arte tem marco na


corte francesa de Luís XIV, mantendo cozinheiros talentosos e imitando os
pratos servidos na corte. A gastronomia francesa que, por essa época, já
alcançava reputação mundial, é inacessível para a plebe. A revolução francesa
e posteriormente a industrial se encarregarão de ampliar o acesso da
burguesia à alta culinária. O termo restaurante passa a designar o
estabelecimento comercial do restaurateur, em 1835.

longe de suprimir a criatividade culinária e colocar em causa esse


aspecto brilhante da cultura da elite do século XVIII, a Revolução
Francesa permitiu a transferência dessa arte para a burguesia e até
mesmo, parcialmente, para as classes populares, pelo viés de uma
instituição surgida da decadência das corporações (FLANDRIN;
MONTANARI, 1998, p. 759).

O desenvolvimento humano apresenta também a constituição de


estamentos e classes sociais. No interior destes, a alimentação e a forma de se
alimentar também foram usadas para a distinção social, tendo em vista que a
escassez de alimentos determinou a dieta de contingentes populacionais. A
título de ilustração, Elias (1994, p.125-126) descreve, assim, o consumo de
carne durante a idade média:

O consumo de carne pela classe mais baixa, os camponeses, é


também com frequência muito limitado (...) por mera escassez. O
gado é caro e, por isso mesmo, destinado durante longo período
apenas às mesas dominantes. ‘Se o camponês criava o gado’, dizia-
se, ‘era principalmente para os privilegiados, a nobreza, os
burgueses’, não esquecendo os religiosos, que variavam do
ascetismo a, aproximadamente, o mesmo comportamento da classe
alta secular. (...) Um cálculo do uso de carne de vaca em uma corte
do norte da Alemanha em data relativamente recente, o século XVII,
indica um consumo de cerca de um quilo per capita ao dia, além de
grandes quantidades de carne de caça, aves e peixes.

No mesmo sentido está a utilização de utensílios, como garfo e faca e


as regras de como se portar a mesa, prerrogativas para distinguir os hábitos da
nobreza dos hábitos da plebe.

segundo as receitas, especiarias, açúcar-cande, pão torrado ou cevada, manteiga, assim como
produtos de aparência tão insólita como pétalas secas de rosa, passas, âmbar, etc.
(FLANDRIN; MONTANARI, 1998, p. 755).
58

Não é demasiado lembrar que a fome, por essas datas, também atingia
camponeses e plebeus enquanto a nobreza se alimentava de brioche. O
processo de assalariamento e a revolução industrial, todavia, modificarão o
estatuto da fome.
Na transição para a sociedade estruturada sob o modo capitalista de
produção, o debate sobre a alimentação e o crescimento populacional animou
a economia política. O marco da discussão localiza-se em Malthus e em seus
estudos populacionais. A teoria malthusiana, ainda que atualmente seja
rechaçada pela própria realidade, uma vez que já produzimos alimentos
suficientes para alimentar quase o dobro da população mundial, segue tendo
importância, pois sustenta o discurso liberal, na justificativa da não intervenção
estatal nos problemas sociais. Porém, cabe lembrar que Malthus é um grande
inspirador para Keynes que sustentava o problema da economia pela ênfase
dada aos estudos de Ricardo sobre os de Malthus (SZMRECSÁNYI, 1982).

1.2 . O Valor do alimento na relação com a satisfação das necessidades


humanas

As necessidades humanas são construções sociais, mantêm uma


legalidade que não é determinada em última instância pela natureza, ou pela
condição natural, ainda que essa condição seja inalienável.
O processo de satisfação das necessidades humanas possui a
prerrogativa de transformar as necessidades recriando-as ou criando novas
necessidades que passam a ser tão necessárias quanto as “primeiras
necessidades” com as quais o homem lidou nos primórdios de sua história e
em sua constituição como ser social. Há, todavia, necessidades humanas
insuprimíveis e que estão presentes em todos os momentos da história
humana, ainda que a forma de sua satisfação se modifique completamente. A
necessidade, em essência, segue requisitando solução – esse é o caso da
fome e seu par dialético, a necessidade a se alimentar.
O homem é imediatamente um ser natural. Por ser um ser natural, vivo,
está carregado de forças naturais que existem nele como possibilidades e
capacidades, como pulsões. O homem é um ser corpóreo, sensível, objetivo,
dependente e limitado. Uma vez animal, depende de um objeto externo a ele
59

para satisfazer suas necessidades. Ou seja, o homem, para existir, estabelece


uma relação mediada com a natureza e estabelece relações sociais com outros
homens. Em outras palavras, “a natureza não está, nem objetiva nem
subjetivamente, imediatamente disponível ao ser humano de modo adequado”
(MARX, 2012, p. 128).
A forma como o homem satisfaz suas necessidades em seu eterno
intercâmbio com a natureza é o trabalho. No ato do trabalho o homem cria
produtos orientados para a satisfação de suas necessidades humanas e se
constitui como Ser Social. A reflexão sobre as necessidades humanas tem
como ponto de partida a observação de Marx e Engels (2002) de que a história
dos homens começa quando passam a produzir seus meios de existência.
Nessa construção de meios e fins para sua vida material, para satisfazer suas
necessidades, os homens precisam transformar a natureza de forma
consciente, e, ao fazê-lo, transformam-se a si mesmos, transformam sua
própria natureza, tornando-se um Ser Social; constroem-se enquanto homens,
como gênero humano (MARX, 2003; 2012).
A diferença substantiva entre a satisfação das necessidades no homem
e nos demais animais está em que os últimos respondem imediatamente à sua
atividade vital, não se distinguem dela. O homem, ao contrário, faz da sua
atividade vital um objeto da sua vontade e da sua consciência.

A atividade vital consciente distingue o homem imediatamente da


atividade vital animal. Justamente, [e] só por isso, ele é um ser
genérico. Ou ele somente é um ser consciente, isto é, a sua própria
vida lhe é objeto, precisamente porque é um ser genérico (MARX,
2012, p. 84-85).

Ao se relacionar com a natureza por meio da atividade do trabalho,


processa-se uma dupla transformação, o homem se transforma em Ser Social,
posto que é transformado pelo ato de trabalho, desenvolvendo potências que
nele estavam latentes e transformando a natureza sobre a qual atua, como
objeto exterior, sujeitando suas formas ao seu domínio. Nesse ato, transforma
também as formas da natureza em meios de trabalho e em objetos de trabalho,
em matérias-primas: “o homem que trabalha usa as propriedades mecânicas,
60

físicas e químicas das coisas para submeter outras coisas a seu poder,
atuando sobre elas de acordo com seu propósito” (LUKÁCS, 2012, p. 286).
A constituição do Ser Social ocorre por um processo dialético, tendo
início a partir de um salto ontológico que indica uma mudança substantiva,
qualitativa e estrutural do modo de Ser e que não se dá por continuidade – o
salto é uma ruptura, uma negação do momento anterior. A existência da
ruptura não significa que o processo de constituição do Ser Social não tenha
sido longo, com formas de transição, que contém a transformação de um ser-
em-si em um ser-para-si e a superação tendencial das formas e conteúdos
naturais em formas e conteúdos cada vez mais sociais (LUKÁCS, 2007, 2012).
A ruptura ocorre porque não se pode perceber o elo de transição nesse
processo. Implica também em perceber que o surgimento do gênero humano
não configura uma necessidade da evolução biológica, tampouco um
desdobramento da genética: “foi uma autêntica ruptura nos mecanismos e
regularidades naturais, uma passagem casual como a da natureza inorgânica à
orgânica e foi precedida, certamente, de modificações ocorrentes numa escala
temporal de largo curso”. Esse novo tipo de ser não deve sua particularidade a
condições geneticamente determinadas e é dotado de uma complexidade
“exponencialmente maior que a verificável na natureza (inorgânica e orgânica)”
(NETTO; BRAZ, 2006, p. 36; LESSA 2007).
Pode-se definir o sujeito que trabalha, o homem que se torna homem
pelo trabalho, como um ser que dá respostas, nesse sentido, as atividades
laborativas exercidas pelos homens surgem como respostas que buscam
solucionar a necessidade material que provoca a ação. Essa relação, todavia,
não é imediata e quanto mais caminha o homem em sua história, tanto mais
complexa são as respostas dadas (LUKÁCS, 2007, p. 229).

O homem torna-se um ser que dá respostas precisamente na medida


em que, paralelamente ao desenvolvimento social e em proporção
crescente, ele generaliza, transformando em perguntas seus próprios
carecimentos e suas possibilidades de satisfazê-los, bem como na
medida em que, nas suas respostas ao carecimento que a provoca,
funda e enriquece a própria atividade com estas mediações,
frequentemente bastante articuladas. Desse modo, não apenas a
resposta, mas também a pergunta são um produto imediato da
consciência que guia a atividade (LUKÁCS, 2007, p. 229).
61

Esse processo de encontrar respostas para solucionar suas


necessidades é realizado de forma crescentemente mediatizada. O elemento
mediador dessa relação é o complexo do trabalho, da linguagem e da
consciência. Ainda que a produção material da vida dependa das condições
que os homens encontram para realizá-la, ao fazê-la, os instrumentos
utilizados e a própria necessidade levam a outras necessidades – a produção
dessas necessidades é o primeiro ato histórico humano, como espécie que se
reproduz consolidando relações sociais (MARX; ENGELS, 2002; MARX 2012).
Os homens produzem e reproduzem a vida, a sua pelo trabalho, e a de
outros seres humanos pela reprodução da espécie. A produção da vida
aparece, agora, sob uma dupla relação: por um lado, como uma relação
natural, por outro, como uma relação social – social no sentido em que se
estende à ação conjugada de vários indivíduos (MARX; ENGELS, 2002).
O homem, porém, nada pode criar sem a natureza, sem o mundo
exterior sensível. A natureza é a matéria sobre a qual o trabalho humano se
efetiva. É a partir da natureza e por meio dela que o trabalho humano produz. A
natureza oferece os meios de vida, no sentido em que oferece os objetos sobre
os quais o trabalho é exercido. O trabalho não pode existir sem objetos nos
quais se exerça e também oferece, por outro lado, os meios de vida no sentido
mais estrito, isto é, o meio de subsistência física do trabalhador mesmo
(MARX, 2012).
O complexo do trabalho é apresentado dessa forma com prioridade
ontológica diante dos demais complexos que compõem o humano. Apreender a
argumentação sobre o princípio de prioridade ontológica é importante para
dirimir mais adiante contendas quanto à prioridade do econômico sobre outros
aspectos constitutivos da vida social. Em Lukács, o princípio de prioridade
ontológica não se submete a uma lógica hierárquica idealista. Segundo o autor,

quando atribuímos uma prioridade ontológica a determinada categoria


com relação a outra, entendemos simplesmente o seguinte: a
primeira pode existir sem a segunda, enquanto o inverso é
ontologicamente impossível. É o que ocorre com a tese central de
todo materialismo, segundo a qual o ser tem prioridade ontológica
com relação à consciência. (...) Mas disso não deriva nenhuma
hierarquia de valor entre ser e consciência. Ao contrário, toda
investigação ontológica concreta sobre a relação entre ambos mostra
62

que a consciência só se torna possível num grau relativamente


elevado do desenvolvimento da matéria. (...)
Quando Engels, em seu discurso fúnebre a Marx, fala do ‘fato
elementar [...] de que os homens precisam em primeiro lugar comer,
beber, ter um teto e vestir-se, antes de ocupar-se de política, de
ciência, de arte, de religião etc.’, ele está falando exclusivamente
dessa relação de prioridade ontológica (LUKÁCS, 2012, p. 307-308).

Segundo Lukács (2013, p.43), “a essência do trabalho humano


consiste no fato de que, em primeiro lugar, ele nasce em meio à luta pela
existência e, em segundo lugar, todos os seus estágios são produto de sua
autoatividade” na busca em satisfazer suas necessidades.
A prioridade ontológica do trabalho nasce da constatação de que todas
as outras categorias necessárias ao entendimento do ser social como tal só
possuem propriedades que se desdobram no ser social já constituído. O
trabalho tem, em sua essência ontológica, um caráter de transição. Ele é inter-
relação entre o homem (sociedade) e natureza, tanto a natureza inorgânica,
como a orgânica. Essa inter-relação assinala a transição do homem que
trabalha do ser meramente biológico para o ser social. Ainda que o estatuto
natural seja irrevogável, a legalidade social é determinante na constituição do
Ser Social e consequentemente na forma de satisfação das necessidades.
O trabalho em primeira instância, como atividade vital, vida produtiva,
aparece para o homem apenas como um meio de satisfação da necessidade
de manutenção da existência física, mas a vida produtiva, para o humano, deve
ser mais que isso, ela precisa aparecer como vida genérica, como vida que
constitua o homem enquanto gênero. “A vida engendradora de vida. No modo
da atividade vital encontra-se o caráter inteiro de uma species, seu caráter
genérico, e a atividade consciente livre é o caráter genérico do homem”.
(MARX, 2012, p. 84).
Esse ato humano de trabalho, capaz de inserir na natureza algo que
não existia anteriormente é criador de valor de uso, ou seja, é compreendido
como algo útil, que apresenta utilidade para determinada finalidade do
desenvolvimento humano (MARX, 2003). Cabe destacar que o trabalho
isoladamente obedece a uma abstração do real: a sociabilidade, a divisão do
trabalho, a linguagem, a consciência, “surgem do trabalho, mas não numa
63

sucessão temporal claramente identificável, e sim, quanto à sua essência,


simultaneamente” (LUKÁCS, 2013, p. 44).
É pela realização do trabalho que surge para o humano a questão dos
fins e dos meios, portanto, a questão das escolhas. O impulso para o pôr do fim
nasce de uma necessidade social e precisa satisfazer tal necessidade. Esse
embate entre os meios e os fins é fundamental para entendermos a questão do
valor e o desenvolvimento do ser social.
O pôr do fim nasce de uma necessidade humana, mas para que ela se
torne um autêntico pôr do fim, é necessário investigar os meios para se fazer,
ou seja, é necessário ter conhecimento sobre a natureza suficiente para
realizá-lo. Até que isso ocorra, o pôr do fim permanece apenas como projeto
utópico, “uma espécie de sonho, como o vôo foi um sonho desde Ícaro até
Leonardo e até um bom tempo depois” (LUKÁCS, 2013, p. 56-57).
No processo singular do trabalho, o fim define os meios, porém, se o
processo de trabalho for considerado em sua continuidade, no seu
desenvolvimento histórico no interior dos complexos reais do ser social, essa
relação aparece com certa inversão em sua hierarquia, ainda que isso não
possa ser pensado de forma absoluta.
É importante notar que a investigação da natureza, indispensável ao
trabalho, concentra-se antes de tudo na preparação dos meios. Eles são a
garantia social de que o resultado final do processo de trabalho seja garantido
pela continuidade da própria experiência de trabalho e de seu desenvolvimento
ulterior. Assim, o próprio processo de trabalho impulsiona o conhecimento mais
adequado dos meios (ferramentas) e, em alguns casos, esse conhecimento
passa a ter mais importância que a satisfação da necessidade nela mesma (pôr
do fim) (LUKÁCS, 2013).
O processo de descrição do ato do trabalho, tal qual realizado aqui, na
trilha do pensamento de Lukács, indica uma categoria qualitativamente nova
em relação ao mundo estritamente natural que é o pôr teleológico como
resultado ideado e desejado. No trabalho, o fim é teleologicamente posto, mas
também toda a cadeia causal que o realiza deve transformar-se em
causalidade posta. Reafirma-se que tanto o meio quanto o objeto de trabalho
são, em si mesmos, coisas naturais e, portanto, sujeitos à causalidade natural.
Somente no pôr teleológico recebem o pôr socialmente existente no processo
64

de trabalho (LUKÁCS, 2013), de forma que a estrutura ontológica do processo


do trabalho desdobra-se diante de uma cadeia de alternativas, “ainda que nas
fases de desenvolvimento relativamente baixas do processo de trabalho as
alternativas singulares se tornem, pelo hábito, reflexos condicionados e, assim,
possam ser realizadas de forma ‘inconsciente’”.
Observa-se que, na sua origem, todo reflexo condicionado foi objeto de
uma decisão entre alternativas. Isso é válido para o desenvolvimento da
humanidade e para o desenvolvimento de cada indivíduo específico que só
passa a realizar reflexos condicionados aprendendo, repetindo. Ainda assim,
no princípio de tal processo estão precisamente as cadeias de alternativas
(LUKÁCS, 2013).
Mais uma vez essa alternativa é completamente distinta da alternativa
no mundo natural, pois sempre se volta para o sujeito, transformando-o:

A alternativa social, (...) por mais profunda que seja sua ancoragem
no biológico, como no caso da alimentação ou da sexualidade, não
permanece fechada nessa esfera, mas sempre contém em si a
referida possibilidade real de modificar o sujeito que escolhe.
Naturalmente, também aqui se verifica – em sentido ontológico – um
desenvolvimento, já que o ato da alternativa possui também a
tendência de afastar socialmente as barreiras naturais (LUKÁCS,
2012, p. 343).

O afastar-se das barreiras naturais, o deixar a animalidade pela


atividade consciente do trabalho, é um processo que se intensifica
inexoravelmente e apresenta tendência à universalidade. As novas formas do
ser, todavia, só podem resultar de forma gradual, no salto de transição e depois
dele permanecem “em constante competição com as formas inferiores do ser
das quais surgiram e que – inevitavelmente – constituem sua base material,
mesmo quando o processo de transformações já chegou a um nível bastante
elevado” (LUKÁCS, 2013, p. 73-74).
Com as alternativas, as escolhas sobre os meios e os fins e o
desenvolvimento da consciência é possível pensar na questão da liberdade em
termos de um germe ontológico. Essa gênese ontológica da liberdade aparece
pela primeira vez na realidade em função das alternativas dentro do processo
de trabalho. Ao entender o trabalho em seu caráter originário, como produtor
65

de valores de uso, a intenção que determina o caráter da alternativa fica clara.


Ainda que desencadeada por necessidades humanas, orienta-se para a
transformação de objetos naturais em bens úteis ao desenvolvimento do ser
social, do processo de humanização.
O trabalho aqui é tomado apenas em seu caráter originário, constitutivo
de valor de uso, como meio pelo qual o homem se relaciona com a natureza,
pois dessa maneira se podem mostrar aquelas categorias que nascem de um
modo ontologicamente necessário daquela forma originária e que, por isso,
fazem do trabalho o modelo de práxis social em geral (LUKÁCS, 2013).
O trabalho revela, portanto, no plano ontológico, uma dupla dimensão.
Em sua generalidade demonstra que uma práxis só é possível a partir do pôr
teleológico de um sujeito, esse pôr, todavia, implica conhecimento do pôr dos
processos naturais-causais. Em outra dimensão, trata de uma relação
recíproca e preponderante entre homem e natureza e que pode ater-se às
categorias que nascem a partir daí.

Qual é, porém, o seu conteúdo ontológico essencial? À primeira vista,


parecerá um pouco surpreendente se dissermos que nela o momento
predominante é constituído pelo seu caráter marcadamente cognitivo.
É claro que o primeiro impulso para o pôr teleológico provém da
vontade de satisfazer uma necessidade. No entanto, esse é um traço
comum à vida tanto humana como animal. Os caminhos começam a
divergir quando entre necessidade e satisfação se insere o trabalho, o
pôr teleológico. E nesse mesmo fato, que implica o primeiro impulso
para o trabalho, se evidencia a sua constituição marcadamente
cognitiva, uma vez que é indubitavelmente uma vitória do
comportamento consciente sobre a mera espontaneidade do instinto
biológico quando entre a necessidade e a satisfação imediata seja
introduzido o trabalho como mediação (LUKÁCS, 2013, p. 78).

A transformação opera-se, assim, no ser que trabalha – “autêntico devir


homem do homem – é a consequência ontológica necessária do objetivo ser-
propriamente-assim do trabalho” (LUKÁCS, 2013, p. 79). O trabalho demonstra
como o homem, ao atuar sobre a natureza e transformá-la, se autotransforma e
transforma sua própria natureza, desenvolvendo suas potencialidades latentes.
No ato do trabalho existe um domínio da consciência sobre o elemento
instintivo puramente biológico. Se tomado pela perspectiva do sujeito, esse
domínio apresenta-se sempre em uma renovada continuidade em cada
movimento singular de trabalho como um novo problema, uma nova alternativa,
66

que para se objetivar e realizar seu objetivo iniciado no pôr teleológico


implicará em uma compreensão cada vez mais correta sobre o natural, o
meramente instintivo, sobre os afetos e as necessidades humanas (LUKÁCS,
2013).
O trabalho possui características que o diferem de qualquer outra
atividade natural: primeiramente ele é realizado por meio de instrumentos de
trabalho, que mediatizam a relação entre o homem e o objeto do trabalho;
segundo, se realiza por meio de acúmulo de conhecimentos e não por meio de
realizações genéticas; terceiro, o trabalho atende a um número ilimitado de
necessidades e as formas de fazê-lo também são ilimitadas (MARX, 2003;
NETTO; BRAZ, 2006).
O trabalho implica em um movimento indissociável em dois planos: um
subjetivo, pois o trabalho é uma atividade que articula a capacidade teleológica
e a causalidade dada num processo de síntese para responder a determinada
finalidade; e um plano objetivo – a transformação da natureza – que ocorre
quando o ser humano objetiva, projeta na realidade o que antes havia
previamente idealizado, surgindo o objeto do trabalho. Essa objetivação projeta
na natureza algo que ainda não existia nela, ou seja, transforma o real e insere
nele nova causalidade, causalidade posta (MARX, 2003; LUKÁCS, 2013;
LESSA, 2002; NETTO; BRAZ, 2006).
O Ser Social caracteriza-se por

realizar atividades teleologicamente orientadas, objetivar-se material


e idealmente, comunicar-se e expressar-se pela linguagem articulada,
tratar suas atividades e a si mesmo de modo reflexivo, consciente e
autoconsciente, escolher entre alternativas concretas, universalizar-
se e socializar-se (NETTO; BRAZ, 2006, p. 41).

Para alcançar esse desenvolvimento, o Ser Social o faz como um


complexo de complexos que contém complexos globais constituídos, por sua
vez, por complexos parciais, sendo mais que mera totalidade, ou seja, “é uma
universalidade potencialmente capaz de conscientemente dirigir sua história”.
Dentre esses complexos estão: a linguagem, o direito, a arte, a religião, a
filosofia (LESSA, 2007, p. 91; LUKÁCS, 2013).
67

Nesse processo de se autoproduzir estão contidos os valores em seu


fundamento ontológico e o valor econômico – o produto útil para a satisfação
das necessidades.

1.3. Malthus e Engels: o problema da população e da produção de


alimentos

A discussão sobre a fome tem como marco um texto escrito pelo inglês
Thomas Robert Malthus (1766-1834) publicado, anonimamente, pela primeira
vez em 1798 e intitulado “Ensaio sobre o princípio da população 19”. Nesse
documento, Malthus (1982a) sustentará que não seria possível produzir
alimentos suficientes para alimentar a população existente e crescente, busca
as causas para o problema e indica soluções. Para tanto, parte de dois
postulados que crê, são insuprimíveis, diz ele:

Creio que posso razoavelmente colocar dois postulados:


Primeiro: que o alimento é necessário à existência do homem.
Segundo: que a paixão entre os sexos é necessária e permanecerá
aproximadamente em seu presente estado. (...)
Supondo, então, meus postulados como garantidos, digo que a
capacidade de crescimento da população é infinitamente maior do
que a capacidade da terra de produzir meios de subsistência para o
homem.
A população, quando não obstaculizada, aumenta a uma razão
geométrica. Os meios de subsistência aumentam apenas a uma
razão aritmética. Uma ligeira familiaridade com números mostrará a
imensidade da primeira capacidade comparativamente à segunda.
(MALTHUS, 1982a, p. 56-57).

Logo, há para Malthus (1982a) um problema grave que deve ser


enfrentado pela sociedade: o excesso de pessoas incapazes de se sustentar,
ou seja, a população pobre. Esse problema se agrava com o concurso da
solidariedade filantrópica por meio da execução da lei dos pobres. Para o autor,
a lei de amparo aos pobres prejudicava a condição de pobreza da população,
19
Thomas Robert Malthus (1766-1834) nasceu na Inglaterra e pertencia à aristocracia rural
inglesa. Formou-se em matemática pelo Jesus College da Universidade de Cambridge. Aos 27
anos é admitido como pesquisador da Universidade de Cambridge, em 1796 torna-se curador
de uma paróquia em Albury, publica o ensaio anonimamente em 1798, posteriormente o
reformulará muitas vezes (1806, 1807, 1817 e 1824). Malthus informa no prefácio que o
segundo ensaio é muito diverso do primeiro (SZMRECSÁNYI, 1982). As premissas, no entanto,
sempre continuam as mesmas.
68

já que por um lado permitia o aumento da população pobre sem aumentar a


comida necessária a sua manutenção, por outro, as provisões consumidas nas
casas de trabalho por parcela da sociedade que não era valiosa, diminuía a
porção de alimentos que por outra parte poderia ser consumida pelos membros
industriosos e valiosos da sociedade (MALTHUS, 1982b).
Ao receber auxilio, os pobres se casam e aumentam a população.
Aumentando a população, aumenta-se a demanda por alimentos e os preços
sobem, assim, a capacidade de compra de parte dos trabalhadores que
conseguem vender sua mão de obra diminui. O próprio salário diminui, pois a
oferta de mão de obra reduz o montante pago pelo serviço (MALTHUS, 1982a).
Insiste Malthus (1982a) que as leis de amparo aos pobres constituem-
se em um erro grosseiro contra a humanidade, por isso é preciso desestimular
o casamento das pessoas que não conseguem alimentar seus filhos. Existe
carência de alimentos e excesso de população, logo, a solução para a
diferença matemática entre a produção de alimentos e o crescimento
populacional é conter o segundo. Isso se daria pelo controle ao casamento dos
pobres e a moralização da relação sexual, incluindo os obstáculos positivos de
controle natural.

Os obstáculos positivos à população incluem todas as causas que


tendem, de alguma forma, a abreviar prematuramente a duração da
vida humana, tais como as ocupações malsãs, o trabalho árduo e a
exposição às intempéries; alimentação e vestuário insuficientes e
ruins, decorrentes da pobreza; mau tratamento das crianças;
excessos de todo tipo; grandes cidades e manufaturas; toda a série
de doenças comuns e epidêmicas; guerra, infanticídio, pestes e fome.
Destes obstáculos positivos, aqueles que parecem provir das leis da
natureza podem ser chamados exclusivamente de miséria; e aqueles
que desencadeamos sobre nós mesmos, tais como as guerras, os
excessos de todo tipo e muitos outros que estariam em nosso poder
evitar, são de natureza mista. Eles nos são trazidos pelo vício e suas
consequências são a miséria (MALTHUS, 1982c, p. 174, grifos
nossos).

Na lógica do pensamento de Malthus (1982c), a pobreza e a miséria


existem por leis da natureza e, assim, são obstáculos positivos à diminuição da
população. Sem regular o nascimento e a sobrevivência das pessoas
incapazes de sustentar suas famílias, os trabalhadores laboriosos também
serão colocados às portas da fome.
69

Esse texto de Malthus recebe uma crítica contundente de Engels


(1981), publicada em fevereiro de 1844, em Paris, na revista Anais Franco-
Alemães: “Esboço para a crítica da economia política”. Diante do problema do
pauperismo absoluto da classe trabalhadora, Engels (1981) questiona o
processo econômico e chama a teoria da população de tão insensata quanto a
contradição entre riqueza e misérias simultâneas. Segundo o autor:

A força produtiva de que a humanidade dispõe é incomensurável. A


capacidade de rendimento da terra pode ser aumentada ao infinito
pelo emprego do capital, do trabalho e da ciência. Segundo o cálculo
dos economistas e estatísticos mais capazes (...). O capital cresce
diariamente, a força de trabalho aumenta com a população e a
ciência submete cada vez mais ao homem a força da natureza. Esta
capacidade ilimitada de produção, manipulada com consciência para
o interesse de todos, reduziria em breve ao mínimo o trabalho que
incumbe à humanidade; abandonada à concorrência, faz a mesma
coisa, mas no interior desta oposição: uma parte do país é cultivada
da melhor maneira, enquanto a outra – na Grã-Bretanha e na Irlanda,
trinta milhões de acres de boas terras – fica abandonada. Uma parte
do capital circula com uma velocidade inacreditável, a outra fica morta
em caixa. Uma parte dos trabalhadores opera de catorze a dezesseis
horas diárias, enquanto a outra fica na mais completa inatividade e
morre de fome. Ou, então, a distribuição desenrola-se no tempo da
seguinte maneira: hoje, o comércio vai bem, a procura é muito
significativa, tudo funciona, os trabalhadores matam-se na sua
atividade; amanhã, há estagnação, a agricultura já não rende, vastas
extensões de terra ficam abandonadas, o capital imobiliza-se no meio
da circulação, os trabalhadores não têm emprego e o país inteiro
sofre com demasiada riqueza e demasiada população (ENGELS,
1981, p. 73, grifos nossos).

De forma que, para Engels (1981), o que produz fome no Capitalismo,


diferente da teoria da população de Malthus, é própria dinâmica do modo de
produção. Ao debater com o texto de Malthus, Engels (1981) dirá que o
economista inventa a teoria para adequar o fato a ela. Como há homens a mais
eles devem ser suprimidos de uma forma ou de outra, ou por morte violenta, ou
por fome. Nas palavras do autor,

Já que os pobres, precisamente os excedentes, não há nada a fazer


por eles senão levá-los a uma morte por inanição da forma mais
suave possível; é preciso convencê-los de que não se pode alterar
nada e que toda a sua classe só tem o recurso de uma reprodução
tão limitada quanto possível ou, se isso for viável, sempre será
melhor criar uma instituição estatal para matar sem dor as crianças
70

20
dos pobres, como propôs Marcus – por conseguinte, cada família
trabalhadora tem o direito de ter dois filhos e meio; quantos vieram a
mais, serão mortos sem dor. Dar esmola seria, então, um crime, visto
que significa sustentar o acréscimo da população excedente
(ENGELS, 1981, p. 74).

Engels classifica essa teoria como infame, como terrível blasfêmia


contra a natureza e a humanidade, afastando em sua argumentação toda e
qualquer dúvida sobre a fraqueza e a ignomia da tese de Malthus. Contra ela,
Engels (1981, p. 78), se levanta:

No combate, o vencedor é o mais forte, e, para antecipar o resultado


desta luta, a propriedade fundiária e o capital são, cada um deles,
mais fortes que o trabalho, porque o trabalhador tem de trabalhar
para viver, enquanto o proprietário fundiário pode viver das suas
rendas e o capitalista dos seus lucros e, em caso de necessidade, da
propriedade fundiária capitalizada ou do capital. Por consequência,
ao trabalho cabe apenas um mínimo vital, os meios de subsistência
em estado bruto, ao passo que a maior parte dos produtos se reparte
entre o capital e a propriedade fundiária. Ademais, um trabalhador
mais forte afasta o mais fraco do mercado, o grande capital afasta
aquele que é menor, a grande propriedade fundiária afasta a
pequena. A prática confirma esta conclusão. As vantagens que os
grandes fabricantes e comerciantes têm sobre os pequenos, as da
grande propriedade fundiária sobre a propriedade de um só acre são
conhecidas. A resultante disso é que, mesmo em condições
ordinárias, o grande capital e a grande propriedade fundiária
absorvem, segundo a lei do mais forte, o pequeno capital e a
pequena propriedade, naquilo a que se chama concentração da
propriedade. Durante as crises agrícolas e comerciais, esta
concentração faz-se de forma muito mais rapidamente que a
pequena, porque uma parte menor da renda deve ser deduzida a
título de despesas de exploração. Esta concentração de bens é como
todas as outras, uma lei imanente da propriedade privada; as classes
médias estão, progressivamente, destinadas a desaparecer, até que
o mundo esteja dividido em milionários e proletários indigentes, em
grandes proprietários fundiários e em jornaleiros miseráveis. Todas
as leis, toda a divisão da propriedade fundiária, toda eventual
explosão do capital nada poderão fazer com relação a isto: aquele
resultado deve surgir e surgirá se não ocorrer uma transformação
total das relações sociais, uma fusão dos interesses opostos, uma
liquidação da propriedade privada.

Segundo Netto (2004), Engels destaca que, na Inglaterra desse


período, o capitalismo encontrava-se plenamente instalado em sua forma

20
Pseudônimo do autor de um panfleto divulgado na Inglaterra por volta de 1840, em que se
faz a publicidade da teoria de Malthus. Nota de Engels.
71

industrial-concorrencial. Um sistema que em sua origem apresentava


características de crises cíclicas. Nas palavras de Netto (2004, p. 33),

um sistema de organização da produção que já revela a sua


ciclicidade crítica – as depressões de 1825-1826, 1836-1837, 1839-
1842 (...) – e que articula uma ordenação societária típica: a
urbanização acelerada e a dramática polarização social.
A concentração fundiária, operada na segunda metade do século
XVIII, forneceu os braços de que a indústria necessitava, alterando
bruscamente a distribuição da população – se, em 1770, 40% dos
ingleses residiam nos campos, aí só permanecem, em 1841, 26%
deles. As cidades crescem notavelmente: em 1750, só 2 delas
aglomeravam mais de 50 mil habitantes; em 1801, esse número era
de 8 e, em 1851, de 29 (e 9 tinham mais de 100 mil habitantes). Pari
Passu, a evolução da população do Reino Unido registra um ritmo de
crescimento antes inimaginável: triplica entre 1750 e 1850, duplica
entre 1800 e 1850. O crescimento demográfico e a urbanização
conectam-se diretamente à industrialização – evidencia-o a hipertrofia
das cidades industriais que, em apenas quarenta anos (1801-1841),
sofrem o seguinte acréscimo no seu número de habitantes:
Manchester – 35 mil/353 mil; Leeds – 53 mil/153 mil; Birmingham –
23 mil/181 mil; Sheffield – 46 mil/111mil. Por outro lado, a mesma
industrialização deflagra movimentos migratórios de tipo novo; no
caso inglês, é enorme o contingente de irlandeses que chegam como
força de trabalho industrial (NETTO, 2004, p. 33-34).

Esse quadro de emergência da cidade moderna, explica Netto (2004),


demonstra a polarização social cujo maior expoente é a generalização da
miséria. Nos anos 40 do século XIX, 10% da população inglesa era qualificada
como indigente. Imerso nos meios operários, Engels terá uma visão
privilegiada do processo em curso,

entre finais de 1843 e inícios de 1844 (...) redige o ensaio – que,


depois, Marx, a quem o texto causou um impacto decisivo,
consideraria ‘um esboço genial’ – esboço de uma crítica da economia
política. (...) No seu Esboço (...), o jovem Engels prolonga a evidente
inspiração ética dos utópicos, mas situa a crítica da sociedade
burguesa fora do âmbito da economia política que lhe é própria. Ele
demonstra que e como esta economia é a expressão ideológica do
estado de coisas vigente e funda a sua análise na investigação da
mesma. Utilizando procedimentos dialéticos, o jovem Engels
historiciza as categorias econômicas e revela o seu condicionalismo
histórico-social. Focaliza a propriedade privada dos meios de
produção como o eixo da sociedade burguesa e põe a concorrência
como o seu fenômeno característico. Examina os fatos econômicos
com um agudo senso de totalidade: procura localizar o seu
encadeamento, as suas interações, as suas contradições e,
principalmente, a sua essencial unidade. Observa a
complementariedade concorrência/monopólio, denuncia o caráter
mistificador da teoria malthusiana etc. e, na sequência da sua
72

argumentação, afirma a existência de leis históricas imanentes e


invioláveis, necessárias a produção capitalista – a lei da concorrência,
da centralização do capital, da crise periódica, da pauperização das
massas. Ao mesmo tempo, assevera que a produção burguesa está
condenada a curto prazo – a polarização social que engendra a
revolução proletária que a suprime (NETTO, 2004, p. 37).

Base para o desenvolvimento da crítica marxista sobre a estrutura,


lógica e desenvolvimento do capital, essas primeiras formulações de Engels
serão desenvolvidas na obra ulterior de Marx, especialmente no Capital.
Quanto à teoria da população, Oliveira (1976) ressalta que não existe uma
teoria marxista da população e que a recusa de Marx da “lei de população
Malthusiana” é a enunciação da própria “lei” da população em Marx, para
quem, “todo modo histórico de produção tem suas leis próprias de população,
válidas dentro de limites históricos. Uma lei abstrata da população só existe
para plantas e animais, e apenas na medida em que esteja excluída a ação
humana” (MARX, 2006, p. 735).
No modo de produção capitalista, o que o especifica é sua forma de
gerar valor a partir da apropriação da força de trabalho humana empregada nas
relações sociais de produção que não é retribuída para o trabalhador que a
gerou, isto é, o modo de produção capitalista se especifica pela produção de
mais-valia e por sua forma de apropriação da mais-valia gerada. Esse é o
processo de valorização do capital e tem como pressuposto a produção e a
reprodução de uma população para o capital, uma população que esteja à
disposição como força de trabalho a serviço da valorização do capital
(OLIVEIRA, 1976).
É a forma de gerar valor em cada modo de produção que explicita as
relações sociais de produção e, portanto, a relação entre modo de produção e
população.

Do ponto de vista, pois, da população para o capital, a pesquisa que


se requer não é a de procurar determinar o conjunto da população da
qual emana a força de trabalho, mas exatamente o contrário, isto é, o
de examinar de que modo a geração de forma de trabalho ou de uma
população para o capital determina e influi sobre o conjunto da
população (OLIVEIRA, 1976, p. 17, grifos do autor).
73

Desse modo, é a produtividade e a reprodução do capital que


determinarão os índices de mortalidade e de fertilidade da força de trabalho. É
também a reprodução do capital que determinará a quantidade e a qualidade
do alimento disponível para a força de trabalho.

1.4. Trabalho, valor e exploração

O valor, quando o pensamos dentro da dinâmica da sociedade


capitalista, apresenta-se como uma unidade contraditória entre valor de uso e
valor de troca. O estudo do desenvolvimento econômico destaca que, ao tempo
em que cresce a sociabilidade humana e com ela afastam-se as barreiras
naturais, aumenta incessantemente, em ritmo cada vez mais intenso, a
quantidade de valores produzidos e, com isso, diminui-se também
incessantemente a quantidade de trabalho socialmente necessário exigido na
produção. “Em termos econômicos isso significa que, enquanto a soma de
valor aumenta, o valor dos produtos singulares diminui constantemente”
(LUKÁCS, 2012, p. 343-344).
A Lei do valor emerge do modo de produção capitalista, e sua
formulação será feita por Marx, em “O Capital”. As condições históricas para
essa formulação são postas quando o acúmulo de riquezas nas nações coloca
a questão de como ela é gerada. “Essa descoberta [do valor] só é possível
numa sociedade em que a forma mercadoria é a forma geral do produto do
trabalho, e, em consequência, a relação dos homens entre si como
possuidores de mercadorias é a relação dominante” (MARX, 2003, p. 82).
A primeira formulação21 de que a riqueza de uma sociedade provém do
trabalho foi realizada por Smith (1982, p. 35), em seu “Inquérito sobre a riqueza
das nações”, texto de 1776. Segundo o autor,

o trabalho anual de cada nação constitui o fundo que originalmente


lhe fornece todos os bens necessários e os confortos materiais que
consome anualmente. Esse fundo corresponde à produção imediata
do trabalho ou do que se pode comprar de outras nações com essa
produção. De forma que, a nação será mais ou menos bem suprida

21
Netto e Braz (2006) dirão que a primeira vez que o valor foi relacionado ao trabalho data de
1738 em um panfleto de autor desconhecido.
74

de acordo com a relação estabelecida entre a quantidade do que se


produz e os que consomem essa produção.

Acrescenta o autor que a proporção da produção em cada nação deve


ser regulada ou determinada por duas circunstâncias: pela habilidade, destreza
e bom senso na execução do trabalho; pela proporção entre os que executam
trabalho útil e os que não o executam. Ainda sobre o trabalho, Smith (1982, p.
63) dirá:

o trabalho foi o primeiro preço, o dinheiro de compra original que foi


pago por todas as coisas. Não foi por ouro ou por prata, mas pelo
trabalho, que foi originalmente comprada toda a riqueza do mundo; e
o valor dessa riqueza, para aqueles que a possuem, e desejam trocá-
la por novos produtos, é exatamente igual à quantidade de trabalho
que essa riqueza lhes dá condições de comprar ou comandar.

Além da referência ao trabalho como gerador de valor, Smith (1982, p.


57) tratará da necessária cooperação entre os homens. Uma vez

estabelecida a divisão do trabalho, é muito reduzida a parcela de


necessidades humanas que pode ser atendida pela produção
individual do próprio trabalhador. A grande maioria de suas
necessidades, ele a satisfaz permutando parcela do produto do seu
trabalho que ultrapassa seu próprio consumo, por aquelas parcelas
da produção alheia de que tiver necessidade.

Contudo, Smith (1982) não formula a lei do valor, ela será formulada
por David Ricardo no texto “Princípios de Economia Política e Tributação”, de
1817 (NETTO; BRAZ, 2006; TEIXEIRA, 2004). Segundo Teixeira (2004), Smith
estava preocupado em investigar a natureza da causa da riqueza e Ricardo
interessado em investigar a distribuição da riqueza entre as classes sociais:
proprietários de terra, trabalhadores assalariados e capitalistas.
Em Ricardo, diferentemente de Smith, o valor está no trabalho contido
na mercadoria. Ricardo observa, ainda, que, a magnitude desse valor se
resolve em dois componentes: “1) no quantum de trabalho despendido na
produção de uma mercadoria e 2) no quantum de trabalho incorporado nos
meios de produção e que entra, também, na formação do valor dessa
mercadoria” (TEIXEIRA, 2004, p. 48).
75

Os clássicos da economia política avançam até a formulação do


trabalho como gerador de valor e consequentemente da riqueza social, porém,
não conseguem explicar a disparidade da acumulação e distribuição de riqueza
fundada sob a propriedade privada – pois esta não é uma questão relevante
para esses autores. Para Smith, a propriedade é natural, é produto de uma
propriedade natural que nasce com os homens: seu trabalho. É acumulada por
meio de gerações que trabalham duramente e deve ser protegida pelo Estado.

A fartura dos ricos excita a indignação dos pobres, que muitas vezes
são movidos pela necessidade e induzidos pela inveja a invadir a
posse daqueles [proprietários]. Somente sob a proteção do
magistrado civil, o proprietário dessa propriedade valiosa (...) pode
dormir à noite com segurança (SMITH, apud TEIXEIRA, 2004, p. 77).

Ricardo elaborará de forma mais complexa essa questão, justificando


a renda da terra pela qualidade do solo e o lucro do capitalista pela restituição
ao capital empregado, ambos vistos como um estatuto natural. Segundo
Teixeira (2004, p. 78),

o lucro e a renda da terra têm um estatuto natural, fundando no que


se poderia chamar de uma acumulação primitiva pessoal de capital.
Aqueles que trabalham e acumularam tornaram-se, no presente, os
proprietários das terras e do capital; os que esbanjaram e dissiparam
os frutos do seu trabalho amargaram o pecado de terem que
trabalhar para os primeiros, em troca de um salário. Estes têm todo o
direito de exigir de seus trabalhadores uma recompensa, na forma de
lucro ou renda, pelo suor que tiveram de derramar para construir o
seu patrimônio. Portanto, a apropriação privada do lucro e da renda
da terra não constitui nenhuma exploração. Pelo contrário, é um justo
direito daqueles que tanto se sacrificaram no passado para hoje, com
seu patrimônio, dar trabalho e assim propiciar os meios de
subsistência para aqueles que não fizeram o mesmo que eles.

Acerca da economia política clássica, Marx demonstra com seus


estudos que ela se apresenta como a expressão ideológica da autoalienação
humana diante da sociedade capitalista. Ademais de reconhecer a importância
de Smith e Ricardo, Marx especifica a contradição posta na economia política,
na qual o trabalho aparece como tudo, de onde se derivam todas as categorias
econômicas, porém o trabalhador, que é portador da força de trabalho, aparece
como desprovido de todo valor. Ao partir da compreensão dessa unidade
76

contraditória entre a importância do trabalho e sua nulidade, Marx se dedica à


análise do modo de produção capitalista e da forma social que o corresponde,
explicitando o “caráter dilacerado e contraditório do capitalismo, mostrando
como, nesta formação social, o trabalho aliena o trabalhador do seu próprio
trabalho, torna o homem alienado do homem, da natureza, do gênero humano”
(LUKÁCS, 2007, p. 183).
Marx (2003b) demonstrará que a acumulação primitiva de capitais está
fundada antes na expropriação violenta de propriedades de terra, na
exploração de força de trabalho ao limite da morte e não em um processo
harmônico de acúmulo pelo trabalho. E resolverá a teoria do valor,
mensurando-a pelo tempo de trabalho socialmente necessário investido na
produção da mercadoria. A problemática da apropriação privada da riqueza
explica-se pela mais-valia – valor excedente criado no processo de trabalho
que é expropriado pelo proprietário dos meios de produção.
Na sociedade capitalista, o trabalho é moldado de tal forma que se
apresenta como exterior ao trabalhador, e não exteriorização dele, não
pertencendo à sua essência, portanto, ele não se afirma no trabalho, antes se
nega nele, não se sente bem, mas infeliz, não desenvolve energia mental e
física livre. Não se trata de trabalho voluntário, mas compulsório, não é
satisfação de necessidade, mas apenas um meio para satisfazer necessidades
fora dele (MARX, 2012).
O processo de organização do trabalho no modo de produção
capitalista apresenta uma crescente complexificação e divisão do trabalho,
sempre impulsionado pelo desenvolvimento das forças produtivas sob o
comando do capital.
Nesse estágio do desenvolvimento das forças produtivas o que
determina a grandeza do valor, “é a quantidade de trabalho socialmente
necessária ou tempo de trabalho socialmente necessário para a produção de
um valor de uso”. Por tempo de trabalho socialmente necessário se entende “o
tempo requerido para produzir-se um valor de uso qualquer, nas condições de
produção socialmente normais existentes e com o grau social médio de
destreza e intensidade do trabalho” (Marx, 2003, p. 61).
É importante notar que em Marx (2003) uma coisa pode ser valor de
uso sem ser valor de troca. Isso acontece quando algo é útil para o ser
77

humano, mas não decorre do trabalho, como o ar, por exemplo. Porém, o
contrário não se aplica, “nenhuma coisa pode ser valor se não é objeto útil; se
não é útil, tampouco o será o trabalho nela contido, o qual não conta como
trabalho e, por isso, não cria nenhum valor” (MARX, 2003, p. 63).
O trabalho, como explicitado no tópico anterior, como criador de valor
de uso, “como trabalho útil, é indispensável à existência do homem – quaisquer
que sejam as formas de sociedade –, é necessidade natural e eterna de
efetivar o intercâmbio material entre o homem e a natureza e, portanto, de
manter a vida humana”. Infere-se daí que a força humana de trabalho cria
valor, mas não é valor. Ela torna-se valor à medida que se objetiva em algum
objeto que satisfaça necessidades humanas (MARX, 2003, 65 e 73).
O esforço do autor é demonstrar como a força de trabalho produz mais
valor do que ela necessita para sua reprodução e como ela mesma torna-se
uma mercadoria no processo de produção capitalista.

Em todos os estágios sociais, o produto do trabalho é valor de uso;


mas só um período determinado do desenvolvimento histórico, em
que se representa o trabalho despendido na produção de uma coisa
útil como propriedade ‘objetiva’, inerente a essa coisa, isto é, como
seu valor, é que transforma o produto do trabalho em mercadoria. Em
consequência, a forma simples de valor da mercadoria é também a
forma-mercadoria elementar do produto do trabalho, coincidindo,
portanto, o desenvolvimento da forma-mercadoria com o
desenvolvimento da forma valor (MARX, 2003, p. 83).

Esse valor contido da mercadoria só se realiza se posta em circulação.


Ou seja, estabelece-se um mercado de trocas:

de qualquer modo, no mercado de mercadorias apenas se


confrontam os possuidores de mercadorias, e o poder que exercem
uns sobre os outros é somente o que deriva de suas mercadorias. A
diferença material das mercadorias é o motivo material da troca, e
torna seus possuidores reciprocamente dependentes, enquanto cada
um deles tiver em suas mãos não o objeto de suas necessidades,
mas o das necessidades do outro. Além dessa diversidade material
entre seus valores de uso, só existe mais outra diferença entre as
mercadorias: a que se verifica entre sua forma natural e a
transformada, entre mercadoria e dinheiro. Assim, os possuidores de
mercadorias se dividem em vendedores, os que possuem
mercadoria, e compradores, os que possuem dinheiro (MARX, 2003,
p. 191).
78

Marx (2003) detalhará o argumento sobre o qual o dinheiro se torna


capital e o modo como esse dinheiro, ao final do processo de produção da
mercadoria, é acrescido de valor. Isso ocorrerá, pois, o capitalista, detentor
dos meios de produção, encontra no mercado, na esfera da circulação, uma
mercadoria que é capaz de gerar valor: a capacidade de trabalho ou a força
de trabalho.
Marx (2003, p. 197) destaca sua compreensão acerca da força de
trabalho: “por força de trabalho compreendemos o conjunto das faculdades
físicas e mentais existentes no corpo e na personalidade viva de um ser
humano, as quais ele põe em ação toda vez que produz valores de uso de
qualquer espécie”.
Decorre dessa explicação o duplo caráter da liberdade em Marx. Para
que a força de trabalho apareça como mercadoria no mercado é necessário
trabalhadores livres: livres para dispor de sua força de trabalho e vendê-las;
porém, livres também de qualquer outra possibilidade de existência. Em outras
palavras, livres da possibilidade de satisfazer suas necessidades humanas de
qualquer outro modo que não seja vendendo sua força de trabalho.
No modo de produção capitalista a satisfação das necessidades
humanas passa inexoravelmente pela mercadoria. Os efeitos dessa forma
social recairão sobre a classe trabalhadora no sentido de submeter a
possibilidade de sobrevivência à venda da força de trabalho, modo pelo qual o
trabalhador acessa a mercadoria e, por meio dela, busca satisfazer suas
necessidades.
Sob o comando da reprodução do capital, entretanto, o trabalho
adquirirá outras características que implicarão diretamente na capacidade
humana de satisfazer suas necessidades mais elementares. Quando a riqueza
socialmente produzida é apropriada privadamente, distinguem-se os homens,
essencialmente, em duas classes sociais antagônicas: os trabalhadores e os
capitalistas.
Sob o sistema de reprodução do capital as necessidades são reduzidas
e homogeneizadas. Para o trabalhador que vende a força de trabalho, sua
necessidade deixa de ser necessidade humana para ser necessidade básica,
ou seja, para manter-se em condição de produzir.
79

O ponto de partida de Marx (2008, p. 237) é o modo como os


indivíduos produzem em sociedade, e assim se produzem como indivíduos.
“Quando se trata, pois, de produção, trata-se da produção em um grau
determinado do desenvolvimento social, da produção de indivíduos sociais”.
Toda produção é a apropriação da natureza por um indivíduo; cada forma de
produção cria suas relações de direito, suas formas de governo próprias.
Cabe notar, todavia, que o ato de produção é ao mesmo tempo
produção e consumo. O indivíduo que no ato produtivo desenvolve suas
faculdades, também as consome durante o mesmo processo, consome
inclusive suas forças vitais, por outro lado, todo o ato de produção consome
meios de produção que foram utilizados ou que se desgastaram.
Mas o consumo, por sua feita, também é imediatamente produção.
“Parece bastante claro que na alimentação, por exemplo, que é uma forma de
consumo, o homem produz o seu próprio corpo” (MARX, 2008, p. 244-245),
mas o produz no interior das relações de produção capitalista como meios de
vender sua força de trabalho. Por outro lado, a forma como o trabalhador
consome é também consumo de mercadorias. O próprio trabalhador faz
circular o capital.

Dentro dos limites do absolutamente necessário, o consumo


individual da classe individual trabalhadora, portanto, transforma os
meios de subsistência, proporcionados pelo capital em troca de força
de trabalho, em nova força de trabalho explorável pelo capital,
produção e reprodução do meio de produção mais imprescindível ao
capitalista, o próprio trabalhador. O consumo individual do trabalhador
constitui fator de produção e reprodução do capital, processa-se
dentro ou fora da oficina, da fábrica, etc., dentro ou fora do processo
de trabalho. (...) as bestas de carga saboreiam o que comem, mas
seu consumo não deixa, por isso, de ser um elemento necessário do
processo de produção. A conservação, a reprodução da classe
trabalhadora, constitui condição necessária e permanente da
reprodução do capital. O capitalista pode tranquilamente deixar o
preenchimento dessa condição por conta dos instintos de
conservação e de perpetuação dos trabalhadores. Sua verdadeira
preocupação é restringir ao estritamente necessário o consumo
individual dos trabalhadores, e está muito longe de imitar aqueles
bárbaros sul-americanos que obrigam o trabalhador a substituir na
sua alimentação o menos substancial pelo mais substancial (MARX,
2006, p. 667-668).

A produção é, portanto, uma produção consumidora, pois é sempre,


também, imediatamente consumo. O consumo, por seu lado, também é
80

imediatamente produção. “Sem produção não há consumo, mas sem consumo


tampouco há produção. O consumo dá de uma dupla maneira lugar à
produção” (MARX, 2008, p. 245).
É preciso esclarecer que o produto só o é como tal, ou seja, só se
objetiva no consumo, quando seu valor de uso é realizado. Por outro lado, o
consumo produz a produção, pois é ele que cria a necessidade de uma nova
produção – é seu pressuposto, se produz para satisfazer uma finalidade que é
objetivada no consumo.
A produção, portanto, fornece o objeto exterior do consumo, por outro
lado, o consumo coloca idealmente o objeto para a produção, como
necessidade, como impulso, como fim. O consumo cria o objeto da produção
sob uma forma que ainda é subjetiva. “Sem necessidades não existe produção.
Mas o consumo reproduz a necessidade” (MARX, 2008, p. 246).
No que se refere à produção, pode-se dizer que: 1) a produção fornece
ao consumo seu objeto, e assim, a produção dá lugar ao consumo: não existe
consumo sem objeto a ser consumido; 2) Ao fazê-lo, a produção determina o
caráter do objeto a ser consumido, o objeto é determinado, o que é fornecido
ao consumo é mediado pela própria condição da produção; 3) A produção
também cria a necessidade do consumo, e engendra o sujeito que consome.

A produção não somente provê de materiais a necessidade; provê


também de uma necessidade os materiais. (...). A necessidade do
objeto que experimente o consumo foi criada pela percepção do
objeto. O objeto de arte, e analogamente qualquer outro produto, cria
um público sensível à arte e apto para gozar da beleza. De modo que
a produção não somente produz um objeto para o sujeito, mas
também um sujeito para o objeto (MARX, 2008, p. 246).

Essa dialética entre produção e consumo é fundamental para o


argumento desse estudo. Temos agora o seguinte problema a ser analisado:
se a produção engendra o consumo, reorienta as necessidades, isso implica
afirmar que sobre a ordem do capital as necessidades serão satisfeitas,
também, de forma que respondam a valorização do próprio capital e não
somente às necessidades humanas. O momento predominante é a valorização
do capital e não a satisfação das necessidades humanas. Diante disso, a fome
como um fenômeno que precisa ser eliminado do horizonte da humanidade
81

apresenta-se como um desvalor para o humano, porém, se atende a


valorização para o capital, apresenta-se como um valor para o sistema
sociometabólico do capital (MÉSZÁROS, 2002).
Aqui cabe ressaltar o caráter dialético e contraditório desse movimento.
Entretanto, a primazia na satisfação das necessidades agora se submete a
nova legalidade: a lei de acumulação do capital.
A identidade entre produção e consumo aparece de três formas: 1)
Imediata: “a produção é consumo e o consumo é produção. Produção
consumidora. Consumo produtivo”; 2) Formam um par dialético: uma se
exprime na outra de forma interdependente, são reciprocamente
indispensáveis, ainda que externas entre si; 3) Elas se autodeterminam: a
produção cria materiais para o consumo e o consumo a necessidade para a
produção. “Sem produção não há consumo; sem consumo não existe
produção”. Esses momentos não podem ser tomados de forma isolada
(MARX, 2008, p. 248).

Cada um desses atos é não somente o outro, não somente mediador


do outro, pois cada um, ao realizar-se, cria o outro, realiza-se no
outro. O consumo, em primeiro lugar, não realiza o ato de produção
senão acabando o produto como produto, resolvendo-o, consumindo
sua forma objetiva, independente; fazendo evoluir até a destreza,
pela necessidade da repetição, a disposição desenvolvida no primeiro
ato da produção; o consumo não é, pois, unicamente o ato final
graças ao qual o produto se faz produto, mas também o ato pelo qual
o produtor se faz produtor. Doutro lado, a produção dá lugar ao
consumo porque cria o modo especial de consumo e o estímulo para
o consumo, a própria capacidade de consumo sob a forma de
necessidade. Essa última identidade (...) é muito discutida pela
economia a propósito da relação da oferta e da procura, dos objetos e
das necessidades, das necessidades criadas pela sociedade e das
necessidades naturais (MARX, 2008, p. 248).

Isso implica no fato de que a distribuição da produção é completamente


determinada pela organização da produção. A distribuição é ela mesma um
produto da produção. Não apenas no que se refere ao objeto, já que apenas o
resultado da produção pode ser distribuído, mas também na forma segundo a
qual se participa da distribuição (MARX, 2008).

O resultado a que chegamos não é que a produção, a distribuição, a


troca, o consumo, são idênticos, mas que todos eles são membros de
82

uma totalidade, diferenças em uma unidade. A produção excede-se


tanto a si mesma, na determinação antitética da produção, que
ultrapassa os demais momentos. O processo começa sempre de
novo a partir dela. Compreende-se que a troca e o consumo não
possam ser o elemento predominante. O mesmo acontece na
distribuição dos produtos. Porém, como distribuição dos agentes de
produção, constitui um momento da produção. Uma [forma]
determinada da produção determina, pois, [formas] determinadas do
consumo, da distribuição, da troca, assim como relações recíprocas
determinadas desses diferentes fatores (MARX, 2008, p. 255).

Cabe notar que a interação entre produção e consumo é uma interação


complexa, na qual a produção é ao mesmo tempo consumo e consumo é ao
mesmo tempo produção, formando uma unidade de contrários, uma totalidade.
A produção só se realiza no consumo e o consumo só se realiza na produção.
Vejamos como isso ocorre na relação entre a necessidade humana de
se alimentar e a acumulação de capital no sistema agroindustrial-militar.
Entende-se o processo de acumulação capitalista em Marx como um processo
de exploração da força de trabalho realizado por donos dos meios de produção
com vistas à reprodução ampliada do capital. Nesse processo, a maior parte da
humanidade comparece apenas com sua força de trabalho e obrigatoriamente
necessita se submeter aos donos dos meios de produção para verem suas
necessidades humanas satisfeitas. Essa relação é fundada na divisão social do
trabalho e na exploração e apropriação da mais-valia produzida pela força de
trabalho, agregada ao capital inicial, e que agora acrescido, volta para a
produção em uma dinâmica infindável de crescimento que expele mão de obra
do processo produtivo, ainda que seja ela a base de valor que o permite
crescer.
Avançam-se as forças produtivas e organiza-se um exército industrial
de reserva que vive à margem do processo produtivo. O mecanismo de
reprodução do capital exige a criação do exército industrial de reserva que
concorre com os trabalhadores inseridos no processo de produção, impedindo
o equilíbrio entre força de trabalho e o valor por ela criado. Esses elementos
aliados ao avanço da tecnologia e dos processos de produção provocam uma
constante perda da qualidade de vida da classe trabalhadora (MARX, 2006;
PEREIRA, 2013).
83

Como a forma de satisfação das necessidades humanas sob o modo


de produção capitalista é realizada por intermédio da mercadoria, é importante
entender que a mercadoria é

antes de mais nada, um objeto externo, uma coisa que, por suas
propriedades, satisfaz necessidades humanas, seja qual for a
22
natureza, a origem delas, provenham do estômago ou da fantasia .
Não importa a maneira como a coisa satisfaz a necessidade humana,
se diretamente, como meio de subsistência, objeto de consumo, ou
indiretamente, como meio de produção (MARX, 2003b, p. 57).

Na forma simples de valor a mercadoria é entendida como valor de


uso, ou objeto útil e valor. Há aqui um duplo caráter na mercadoria: como valor,
possui uma forma de manifestação própria, diferente de sua forma natural, a
forma valor de troca; “e ela nunca possui essa forma, isoladamente
considerada, mas apenas na relação de valor ou de troca com uma segunda
mercadoria diferente” (MARX, 2003, p. 82).
O produto do trabalho é sempre valor de uso, mas em determinado
momento do desenvolvimento histórico “em que se representa o trabalho
despendido na produção de uma coisa útil como propriedade ‘objetiva’,
inerente a essa coisa, isto é, como seu valor”, o produto do trabalho se
transforma em mercadoria (MARX, 2003, p. 83).
Sob a forma mercadoria, o valor revela-se como “massa de trabalho
humano homogêneo” e o “trabalho que o cria se revela expressamente igual a
qualquer outro”, como trabalho abstrato. Não é a troca que regula o valor da
mercadoria, como queria crer Smith, mas a magnitude do valor das
mercadorias que regula as relações de troca (MARX, 2003, p. 83).

A forma geral do valor, que torna os produtos do trabalho mera


massa de trabalho humano sem diferenciações, mostra, através de
sua própria estrutura, que é a expressão social do mundo das
mercadorias. Desse modo, evidencia que o caráter social específico
desse mundo é constituído pelo caráter humano do trabalho em geral
(MARX, 2003, p. 89).

22
Reproduz-se aqui a nota 2 feita por Marx (2003, p. 57). Nessa passagem em seu texto:
“Desejo envolve necessidade; é o apetite do espírito e tão natural como a fome para o corpo.
(...) A maioria [das coisas] tem valor porque satisfaz necessidades do espírito.” (Nicholas
Barbon, A discourse on coining the new Money lighter. In answer to Mr. Loche’s considerations
etc. Londres, 1696, p. 2-3).
84

O valor de qualquer mercadoria é determinado pela quantidade de


trabalho materializado em seu valor de uso, pelo tempo de trabalho
socialmente gasto em sua produção. Sob o modo de produção capitalista a
força de trabalho constitui-se em uma mercadoria especial, pois possui a
propriedade de criar valor (MARX, 2003).
É na forma mercadoria que se distingue o trabalho que produz valor de
uso do trabalho que produz valor. Em sua forma capitalista produzirá mais
valor.

O processo de produção, quando unidade do processo de trabalho e


do processo de produzir valor, é processo de produção de
mercadorias; quando unidade do processo de trabalho e do processo
de produzir mais-valia, é processo capitalista de produção, forma
capitalista de produção de mercadorias (MARX, 2003, p. 89).

Na formação do valor dos produtos, os elementos do processo de


trabalho desempenham funções distintas. Os componentes do processo de
trabalho são: “1) a atividade adequada a um fim, isto é, o próprio trabalho; 2) a
matéria a que se aplica o trabalho, o objeto de trabalho; 3) os meios de
trabalho, o instrumental de trabalho” (MARX, 2003, p. 212).
O valor da mercadoria é composto pela transferência de parte do
capital constante existente em matérias-primas e maquinaria e parte do capital
variável consumido da força de trabalho, acrescido do valor criado pela força
de trabalho no processo de produção.
Esse valor acrescido, que Marx (2003) chama de mais-valia, tem sua
taxa calculada pela relação entre trabalho excedente e trabalho necessário.
Taxa de mais-valia é Trabalho excedente/Trabalho necessário e expressa o
grau de exploração do trabalho, que também pode ser expressado em tempo
de trabalho necessário para a reprodução da força de trabalho e tempo de
trabalho excedente ou não pago.
Para aumentar a extração de mais-valia, o capitalista possui alguns
meios: aumento do tempo de trabalho de cada trabalhador individualmente, de
forma que o mesmo trabalhador aumente seu tempo de trabalho diário;
aumento da produtividade, normalmente conseguido por meio de inovação
85

tecnológica. Na primeira situação deixa-se de se incorporar novos


trabalhadores, na segunda dispensa-se trabalhadores do processo produtivo; o
que implica no fato de que “dentro de certos limites, a oferta de trabalho que o
capital pode obter é, portanto, independente da oferta de trabalhadores”, ou
ainda, reduzindo o custo de reprodução da força de trabalho (MARX, 2003b, p.
351).
Isso implica em pensar qual o valor da força de trabalho já que ela
própria é uma mercadoria, porém, uma mercadoria especial, pois é a única
capaz de criar valor. Como qualquer outra mercadoria “O valor da força de
trabalho é determinado (...) pelo tempo de trabalho necessário à sua produção,
e, por consequência, à sua reprodução” (MARX, 2003b, p. 200-201). O valor é,
portanto, a “forma objetiva de trabalho social despendida para produzir uma
mercadoria” (MARX, 2006, p. 615).
É importante ressaltar que a reprodução da força de trabalho passa
pela reprodução corpórea do trabalhador enquanto tal. Como o proprietário da
força de trabalho é mortal, e a mercadoria força de trabalho necessita
reaparecer no mercado, o produtor da força de trabalho precisa procriar. Assim,

A soma dos meios de subsistência necessários à produção da força


de trabalho inclui também os meios de subsistência dos substitutos
dos trabalhadores, os seus filhos, de modo que se perpetue no
mercado essa raça peculiar de possuidores de mercadorias (MARX,
2003b, p. 202).

Em outras palavras, o custo dos bens necessários à reprodução dos


trabalhadores implica diretamente no valor do salário pago para sua
reprodução. Não é casual que a adulteração dos alimentos seja algo presente
na história da revolução industrial. A falsificação do pão na Inglaterra, e com
ela, o pão mais barato, ou a imitação de comida, que é vendida mais barata,
remontam ao século XVIII.
Também entram nos custos da força de trabalho, a educação e todos
os meios de subsistência, incluindo-se os alimentos consumidos diariamente e
que necessitam ser substituídos também diariamente. Para Marx (2003, p.
211), o homem, ao trabalhar, torna-se trabalhador, e o trabalhador é força de
trabalho em ação. A utilização da força de trabalho é, portanto, o próprio
86

trabalho. Aqui o trabalho é considerado na forma de trabalho abstrato, trabalho


sob a forma geral das relações sociais de produção no capitalismo.
Nesse processo, o capitalista busca produzir mercadorias que
precisam ser vendidas e, no final, possa ele adquirir mais dinheiro que
despendeu no início do processo de produção.
Esse valor excedente que aparece no final do processo de produção de
mercadorias é produzido pela ação da força de trabalho no processo de
trabalho, ou seja, pelo trabalho do trabalhador. Ao converter o valor de uso da
sua força de trabalho em valor, o trabalhador recebe em pagamento, um salário
– que deveria ser suficiente para reproduzir sua força de trabalho – porém,
esse salário somente paga parte do tempo que ele despende na jornada de
trabalho. O restante do tempo de trabalho produzirá valor que será agregado
ao valor da mercadoria. Uma vez realizado na venda, na circulação,
transformar-se-á em capital.

O processo de produzir valor simplesmente dura até o ponto em que


o valor da força de trabalho pago pelo capital é substituído por um
equivalente. Ao ultrapassando esse ponto, o processo de produzir
valor torna-se processo de produzir mais-valia (valor excedente)
(MARX, 2003, p. 227).

Esse processo se inicia com a circulação simples de mercadoria e


passa à circulação de capital, em uma dinâmica que só existe num movimento
incessante de expansão e concentração de capitais. Para que ele exista é
necessário que haja condições sociais determinadas, de um lado, como
possuidor dos meios de produção ou de dinheiro e dos meios de subsistência
e, de outro lado, o possuidor da substância criadora de valor, a força de
trabalho, aparecendo no mercado como compradores e vendedores. A
separação entre o produto do trabalho e o próprio trabalho, entre as condições
objetivas do trabalho e a força subjetiva do trabalho é, portanto, o fundamento
efetivo, o ponto de partida do processo de produção capitalista (MARX, 2006,
p. 665).
Essa relação implicará na obtenção das mercadorias necessárias ao
capitalista para o processo de reprodução do capital, de modo que o
trabalhador receba o salário necessário à reprodução da sua força de trabalho
87

e de suas necessidades básicas. Nesse processo o trabalhador realizará dois


tipos de consumo: o consumo produtivo e o consumo individual. No consumo
produtivo consumirá os meios de produção com seu trabalho, transformando-
os em produtos cujo valor é maior que o valor inicial empregado pelo
capitalista; no consumo individual empregará o dinheiro recebido como salário
em meios de subsistência para sua reprodução (MARX, 2006).
Tendo em vista a unidade entre produção e consumo, a questão da
fome e da alimentação do trabalhador aparecerá com dupla determinação: de
um lado, o alimento apresenta-se como uma necessidade humana insuprimível
que compõe o custo dos bens-salário que determinam o custo da força de
trabalho, por outro, a fome e o alimento-mercadoria apresentam-se como um
eixo de desenvolvimento do complexo sistema agroindustrial-militar.
O trabalhador que tem suas necessidades garantidas pela venda da
força de trabalho está submetido ao sistema do capital. A composição do
capital, segundo Marx (2003), ocorre de duas formas: a primeira, denominada
composição, segundo o valor, é determinada pela proporção entre capital
constante (o valor dos meios de produção) e variável (o valor da força de
trabalho, a soma global dos salários); a segunda, denominada composição
técnica, como decomposição do capital em meios de produção e força de
trabalho viva. “[Essa] composição é determinada pela relação entre a massa
dos meios de produção empregados e a quantidade de trabalho necessária
para serem empregados”. A composição orgânica do capital é a relação entre
ambas, na medida em que a composição do capital, segundo o valor, é
determinado pela composição técnica e reflete as modificações desta (MARX,
2006, p. 715).

A reprodução simples reproduz constantemente a mesma relação


capitalista: capitalista de um lado e assalariado do outro. Do mesmo
modo, a reprodução ampliada ou a acumulação reproduzem a
mesma relação em escala ampliada: mais capitalistas ou capitalistas
mais poderosos, num polo, e mais assalariados, no outro. A força de
trabalho tem de incorporar-se continuamente ao capital como meio de
expandi-lo; não pode livrar-se dele. Sua escravização ao capital se
dissimula apenas com a mudança dos capitalistas a que se vende, e
sua reprodução constitui, na realidade, um fator de reprodução do
próprio capital. Acumular capital, é, portanto, aumentar o proletariado
(MARX, 2006, p. 716-717).
88

O sistema sociometabólico do capital implica em que o trabalhador


exista para o desenvolvimento, expansão e valorização do capital e não o
contrário. No curso da acumulação capitalista, ressalta Marx (2006), em função
dos fundamentos gerais do modo de produção, o desenvolvimento da
produtividade do trabalho é a principal forma de impulsionar a acumulação. O
aumento da produtividade, por sua vez, modifica a relação entre a quantidade
de trabalho empregada e a massa dos meios de produção que a força de
trabalho põe em movimento. Contudo, a mudança na composição técnica do
capital resultará na diminuição do fator subjetivo em relação aos fatores
objetivos, refletindo na composição do valor do capital e aumentando a parte
constante em detrimento da parte variável.
Distinguem-se, portanto, acumulação, concentração e centralização,
obedecendo a lei própria de acumulação e reprodução do capital. É importante
ressaltar que no processo de acumulação capitalista sempre se produz uma
população supérflua que se torna excedente, pois ultrapassa as necessidades
médias de expansão do capital (MARX, 2006, p. 733).
Pelo fato de a força de trabalho ser capaz de gerar valor, o capital
acumula-se por meio da apropriação da mais-valia produzida no ato da
produção que, uma vez realizada na circulação de mercadorias, transforma D
em D’. Esse processo se retroalimenta constantemente. O capital, para tanto,
só existe em movimento e precisa constantemente ser reempregado.

O trabalhador realiza dois tipos de consumo. Na produção, consome


meios de produção com seu trabalho e transforma-os em produtos de
valor maior que o desembolsado pelo capital. Este é o consumo
produtivo. Ele é, ao mesmo tempo, consumo de sua força de trabalho
pelo capitalista que a comprou. Por outro lado, o trabalhador emprega
o dinheiro pago para a compra da força de trabalho em meios de
subsistência: este é seu consumo individual. O consumo produtivo e
o individual do trabalhador são, portanto, totalmente diversos (MARX,
2006, p. 666).

O consumo individual do trabalhador que gera o consumo de meios de


subsistência, dentre os quais está o alimento, é também consumo de
mercadorias. Chegamos, então, a terceira revolução alimentar (FERNÁNDEZ-
ARMESTO, 2004). A base dessa discussão é como, sob a orientação da
valorização da capital, o alimento-commodity não é alimento.
89

A evolução do alimento como mercadoria é a base da terceira


revolução alimentar identificada por Fernández-Armesto (2004), e que tem
como fundamento o complexo sistema agroindustrial-militar (POLLAN, 2007).
Dentre suas características estão: produção de alimentos em larga escala via
monoculturas; redução e homogeneização da alimentação humana com
predomínio alimentar do milho e da soja; produção agrícola fundada em
transgênicos, fertilizantes químicos e agrotóxicos; produção de animais em
confinamento alimentados com ração (milho, soja e remédios) e comida
ultraprocessada, substâncias alimentares com aspecto de comida (POLLAN,
2007; 2008; 2010) distribuída via supermercados.
Suas características básicas são a redução da alimentação humana à
basicamente milho e soja, decodificados em substâncias alimentares as mais
diversas, quase todas com aparência de comida. É preciso especificar um
pouco do que se trata esse desastre alimentar.
Um dos aspectos centrais do problema está no fato de que a
agricultura industrial é caracterizada por vastas monoculturas, especialmente,
monoculturas de milho, soja23. O sistema de plantio em monocultura destrói a
diversidade alimentar, ou seja, empobrece a alimentação humana e a reduz a
basicamente milho. Segundo Pollan (2008),

Com o surgimento da agricultura industrial, vastas monoculturas de


um grupo minúsculo de plantas, a maioria cerais, substituíram as
fazendas diversificadas que nos alimentavam. Um século atrás, uma
fazenda de Iowa típica criava e cultivava mais de dez espécies
diferentes de plantas e animais: gado, frangos, milho, porcos, maçãs,
feno, aveia, batata, cerejas, trigo, ameixas, uvas e peras. Agora só
cultua duas: milho e soja. Essa simplificação da paisagem agrícola
leva à simplificação da dieta, que é agora dominada num grau
espantoso por – surpresa – milho e soja. Você pode achar que não
come muito milho e muita soja, mas come: 75% dos óleos vegetais
em sua dieta vêm da soja (representando 20% de suas calorias
diárias) e mais da metade dos adoçantes que você consome vêm do
milho (representado cerca de 10% das calorias diárias) (POLLAN,
2008, p. 131).

O milho, alimento sagrado da cultura Asteca e Maia, passa então a ser


uma das principais mercadorias do sistema agroalimentar. Ao transformar o

23
A cana também tem destaque nesse processo, mas detalharei melhor os problemas
relacionados à ela na particularidade brasileira.
90

milho em milho-mercadoria, perde-se a referência do milho-comida para ser


apenas o “milho tipo 2”, ou o milho “Pionner Hi-Bread 34H31” e todos os milhos
geneticamente modificados. O milho mercadoria não tem mais analogia com o
milho-comida, não há relação entre quem produz a comida e quem a come. O
milho commodity é uma mercadoria reconhecida em todo o mundo, plantada
em qualquer lugar, intercambiável, objeto de especulação e aceita como forma
de capital, mas deixa de ter sabor de milho e nutrientes do milho. Pollan (2007,
p. 68-69) destaca que,

Ainda que o milho de campo n.02 certamente se pareça com o milho


que comeríamos e descenda diretamente do milho que os astecas do
frei Sahagún cultivavam como a fonte da vida, trata-se menos de um
alimento que de uma matéria-prima industrial – e uma abstração. As
sementes são difíceis de comer, mas se deixá-las mergulhadas em
água por várias horas, você descobrirá que seu sabor é mais
diferente do sabor do milho que o de fécula.

O milho é a chave de entendimento desse processo por suas


características. É uma planta que possui grande capacidade de transformar a
energia do sol em calorias, tem uma plasticidade para a hibridização já
descoberta pelos índios, uma disposição de plantio que facilita o uso de
máquinas e dele se pode derivar uma grande quantidade de produtos que
servem à industria de alimentos. Pollan (2007) afirma que, dos 45 mil tipos de
produtos que podemos encontrar em um supermercado, um quarto tem milho
em sua composição.
Para além da história evolutiva do milho, o cereal também é a chave de
entendimento para os transgênicos e para as patentes.

De todos os ambientes humanos aos quais o milho (...) se adaptou, a


adaptação ao nosso próprio ambiente – o mundo do capitalismo
industrial de consumo, ou seja, o mundo do supermercado e das
franquias de fast-food – certamente representa a mais extraordinária
façanha em termos evolutivos já realizada pela planta até hoje. Pois,
para fazer prosperar a cadeia alimentar industrial na extensão em que
conseguiu fazer, o milho adquiriu vários e improváveis dons. Ele
precisou adaptar-se não apenas aos seres humanos, mas também às
suas máquinas, o que conseguiu aprendendo a crescer tão ereto, rijo
e perfilado como um soldado. Precisou multiplicar suas
produtividades com outros pés de milho, em números que alcançam
até 30 mil por meio hectare. Teve que desenvolver um apetite por
combustível fóssil (na forma de fertilizantes petroquímicos) e uma
91

tolerância em relação a vários compostos químicos. Mas, mesmo


antes de vir a dominar esses truques e encontrar um lugar ao sol do
capitalismo, o milho teve primeiro que se transformar em algo nunca
visto no mundo das plantas: uma forma de propriedade intelectual
(POLLAN, 2007, p. 38).

Essa é uma das formulações mais impressionantes e devastadoras da


história do capitalismo e da alimentação, as patentes de sementes e de
nutrientes. Pela primeira vez na história da alimentação um produtor não pode
mais retirar de sua colheita as sementes para o plantio do ano seguinte, ele
passa a depender de uma corporação para fazê-lo. Junto com as sementes
geneticamente modificadas, um pacote tecnológico que engloba fertilizantes
químicos (ou petroquímicos, se preferirmos) e agrotóxicos.
O desenvolvimento desse pacote tecnológico tem fundamento
histórico, e incentivo estatal. “O milho híbrido é a mais gananciosa das plantas,
consumindo mais fertilizantes do que qualquer outro tipo de lavoura”. E a
indústria de fertilizantes e agrotóxicos nada mais é que dos frutos do esforço
norte-americano em adaptar os resíduos industriais da segunda guerra
mundial.

A indústria de fertilizantes químicos (juntamente com a de pesticidas,


derivados de gases venenosos desenvolvidos para a guerra) é o
produto do esforço do governo para adaptar sua máquina de guerra a
propósitos pacíficos. Como costuma dizer em seus discursos a
agricultora e ativista indiana Vandana Shiva, ‘ainda estamos comendo
as sobras da Segunda Guerra’ (POLLAN, 2007, p. 51).

No contrapronto da produção de milho está a produção de soja. A


planta devolve ao solo o nitrogênio que o milho retira em seu desenvolvimento,
e esta é a explicação para o avanço do plantio da soja nos Estados Unidos e
no Brasil. Entretanto, a ciência já encontrou uma forma de recompor no solo o
nitrogênio que o milho retira sem necessitar de um complemento biológico para
isso. O nitrogênio sintético, fixado a base de combustível fóssil, descoberto por
Fritz Haber, Prêmio Nobel, em 1920, por melhorar os padrões da agricultura e
colaborar no processo de desenvolvimento das armas químicas utilizadas pela
Alemanha na primeira guerra mundial, e posteriormente, na segunda, permitiu
definitivamente que o processo industrial chegasse à fazenda.
92

Livre das antigas restrições biológicas, a fazenda podia agora ser


administrada com base em princípios industriais, como uma fábrica
transformando matérias-primas – fertilizantes químicos – em produtos
– o milho. Como a propriedade não precisa mais gerar e conservar
sua própria fertilidade mantendo uma diversidade de espécies, o
fertilizante sintético abre o caminho para a monocultura, permitindo
que o agricultor introduza na natureza a economia de escala e a
eficiência mecânica características de uma fábrica. (...) a fixação do
nitrogênio permitiu que a cadeia alimentar se afastasse da lógica da
biologia para adotar a lógica da indústria. Em vez de comer
exclusivamente das mãos do Sol, a humanidade agora começava a
provar do petróleo (POLLAN, 2007, p. 54).

Com uma quantidade exorbitante de produção de grãos, a saída para a


produção de carnes de diversas espécies (gado, porco, frango e peixe)
também obedece à lógica da produção em grande escala. Realizada em
confinamento, sua dinâmica reside em intensificar a alimentação dos animais
para que possam ser abatidos com o mínimo de tempo possível, e impedi-los
de gastar energia se movimentando. A base da alimentação animal passa a ser
processada por meio de ração que leva em sua composição milho e soja, mas
também grandes quantidades de antibióticos, uma vez que, milho e soja não
são o alimento base de bois e peixes, por exemplo. O processo todo causa
muitos distúrbios nos animais já que modifica completamente sua forma
originária de procriação e alimentação.
Os efeitos são sentidos também pelos humanos. Como a alimentação
dos animais se reduz a milho e soja, a qualidade nutricional dessa carne é
reduzida às possibilidades nutritivas desses alimentos. Ou seja, no final,
estamos comendo todo o tempo milho e soja (POLLAN, 2008).
Em meio aos desastres provocados pela monocultura e pela produção
de animais em confinamento surge um tipo de agricultura voltado para a
produção de alimentos orgânicos, realizados como um nixo de mercado que
busca atender a parcela de consumidores que se atentam para o problema do
envenenamento provocado pela lógica de produção em larga escala. Essas
fazendas de orgânicos, entretanto, utilizam a mesma lógica industrial de
exploração da mão de obra para produzir alimentos.
Por fim, um terceiro tipo de produção de alimentos funda-se na
produção camponesa e na resistência no campo. Tenta opor-se a essa lógica
93

produtiva e resguardar as sementes crioulas a lógica de plantio com


diversidade, sem uso de transgênicos e agrotóxicos e sem exploração de
classe.
Outro elemento fundamental desse processo é a comida pronta que
tem sua origem na história do processamento de alimentos. Este remonta ao
início do século XVIII e teve início com a invenção da comida enlatada, quando
Lazzaro Spallanzani demonstrou que aquecimento e vedação combinados
poderiam garantir a preservação da comida indefinidamente. A invenção foi
utilizada, sobretudo, para garantir comida durante a guerra. Alguns produtos,
entretanto, obtiveram sucesso entre os consumidores. O primeiro deles foi

a sardinha enlatada em Nantes na década de 1820. Em 1836 a


empresa de Joseph Colin já estava produzindo cem mil latas por ano.
Em 1880, cinquenta milhões de latas de sardinhas já estavam
surgindo anualmente das fábricas de enlatados na costa ocidental da
França (FERNÁNDEZ-ARMESTO, 2004, p. 312).

Outro elemento importante foi a descoberta do congelamento e com ele


a invenção dos congeladores que a indústria tratou de colocar à disposição das
cozinhas dos consumidores em todo o mundo. Com o congelamento, “em
1959, os americanos já gastavam 2,7 bilhões de dólares em comida congelada,
inclusive meio bilhão com refeições já prontas do tipo ‘aqueça e sirva’”
(FERNÁNDEZ-ARMESTO, 2004, p. 315).
O processo se massifica como a distribuição via rede de
supermercados, especialmente da década de 1960 para cá, na Europa e nos
Estados Unidos. A junção da comida pronta, enlatada e congelada com a rede
de abastecimento via supermercados, provoca o que Fernández-Armesto
considera a terceira revolução alimentar na história da humanidade, essa,
porém, com resultados danosos para a cultura, a sociabilização, as relações
sociais.
O processo interfere em toda a dinâmica da sociabilidade humana, já
que não é mais necessário cozinhar, não é mais necessário esperar para se
alimentar com outras pessoas, não é mais necessário sequer comer o mesmo
alimento que outro membro da família come. A indústria de alimentos eliminou
e afastou todas as barreiras sociais que se opunham ao individualismo.
94

Destruiu também o rastro entre o que se come e o alimento que


deveria dar origem a ele, a indústria de processados, a base de substâncias
alimentares com aspecto de comida. Trata-se de alimentos “reconstituídos”,
“tipo” alguma coisa, um processo de imitação de comida, que inclusive pode
não ter nada, rigorosamente nada, do alimento a que se refere. É uma
mercadoria cuja base é açúcar, gordura e sal, conservantes e sabores artificiais
(POLLAN 2007, 2008; 2010).
Trata-se de enganar a fome (DEBORD, 2000). Como essas
substâncias ricas em açúcar, gordura e sal não foram capazes de nutrir o corpo
humano e atender sequer a necessidade biológica à alimentação, as pessoas
passaram o comer cada vez mais. E o capital foi capaz de transformar uma
demanda inelástica, que era o estômago humano, em algo sem limites de
expansão. O resultado é uma epidemia de obesidade (POLLAN, 2008). Com
ela um complexo de doenças que vão desde a obesidade em si, ao diabetes
tipos 2, doenças coronárias e se completam com o câncer oriundo do
envenenamento via agrotóxicos, para os quais o desenvolvimento científico
responde com uma infinidade de produtos, mercadorias capazes de prolongar
a vida dos indivíduos, desde medicações à cirurgias bariátricas e estéticas, à
convivência com a diabetes e o câncer.
Por outro lado, essas substâncias alimentares, com aparência de
comida, nada mais são que a comida barata vendida à classe trabalhadora. Em
essência, são reduzidos os custos da reprodução da mão de obra, em um
mundo cujo exército industrial de reserva cresce exorbitantemente. Mas para
ela também é necessário mercado consumidor, especialmente, um mercado
consumidor de milhões de pessoas cuja renda seja suficiente, apenas, para
esse tipo de imitação de comida.
95

CAPÍTULO II

Com açúcar, sem afeto: a produção de commodities e a dinâmica de


reprodução do capital no Brasil.

Precisamos urgentemente acabar com essas falsas garantias,


Com o adoçamento das amargas verdades.
É à população que se pede que assuma os riscos
que os controladores de insetos calculam.
A população precisa decidir se deseja continuar o caminho atual,
E só poderá fazê-lo quando tiver em plena posse dos fatos.
Nas palavras de Jean Rostand,
‘a obrigação de suportar nos dá o direito de saber’.
Raquel Carson, Primavera Silenciosa, 2010, p. 28

Meu pai tinha falecido na carta vinha dizendo chão


As terras que ele deixou minha mãe acabou Embora saia uma guerra
perdendo para um grande fazendeiro que Vou matar ladrão de terra
abusava dos pequeno Dentro da minha razão
Meu sangue ferveu na veia quando eu fiquei
sabendo Negar terra pros caboclo ai ai
Invadiu as terra minha É negar pão pros nossos filhos ai ai
Tocaram minha mãezinha Tirar a terra dos caboclo ai ai
Pra roubar nossos terreno É tirar o Brasil dos trilho ai ai

Eu voltei pra minha terra foi com dor no Nós tava de onze a onze na parada nesse
coração dia
Procurando meu direito eu entrei num Os pobre é carta baixa e os rico são as
tabelião manilha
Quase que também caía nas unha dos Foi uma chuva de bala só capanga que
gavião corria
Porque o dono do cartório protegia os Foi pela primeira vez que o dinheiro não valia
embrulhão O barulho acabou cedo
Me falou que o fazendeiro Entregaram foi de medo
Tinha rios de dinheiro Terras que me pertencia
Pra gastar nesta questão
Na cerca de minha terra ai ai
Respondi no pé da letra não tenho nenhum Quem mexer ninguém imagina ai ai
tostão Os arame são de bala ai ai
Meu dinheiro é dois revólveres e bala no E os mourão de carabina ai ai
cinturão
Se aqui não tiver justiça para minha proteção Ladrão de terra
Vou mandar os trapaceiro pra sete palmo de Jacó e Jacozinho.
96

Iniciei o capítulo anterior sustentando a argumentação de que a fome


persiste, mas, talvez mais atordoante que constatar a permanência da fome seja
constatar para onde nos levou a produção de alimentos sob o comando do
sistema sociometabólico do capital. Pois aqui estamos! Presos na teia do
agronegócio, cada brasileiro consome em média 5,2 litros de veneno por ano.
Esse veneno, reconhecido como agrotóxico e defendido pela bancada ruralista –
determinante nos rumos da política nacional –, envenena a água, o solo, o ar, os
corpos humanos, o leite materno, provoca câncer. O alimento-mercadoria,
produzido sob a lógica do agronegócio, provoca sérios agravos à saúde e pode
nos levar à morte (CARNEIRO et al. 2015).
Desde a invasão das terras dos povos originários das Américas, nosso
desenvolvimento socioeconômico está vinculado a produtos alimentícios.
Também é uma de nossas contradições que seja justamente com a cana, que
produz o açúcar responsável por adoçar os paladares europeus, que se mescla
uma história de usurpação, violência física, sexual e assassinatos, uma cultura do
medo – impossível de digerir.
O açúcar de cana existe desde a Antiguidade. Foi difundido pelos Árabes
durante a idade média, chegando a cultivar a cana-de-açúcar nos territórios
conquistados pelos mulçumanos. Os cristãos tiveram contato com a especiaria
durante as cruzadas, mas como se tratava de uma mercadoria cara e difícil de ser
obtida, era prescrita por médicos; produto encontrado em boticários, ou utilizada
como tempero. É o desenvolvimento do comércio e a expansão marítima que
darão impulso à comercialização do açúcar ao longo dos séculos XVI, XVII e
XVIII, quando se mistura à história do chocolate e do café24 – dois estimulantes
fundamentais na nascente revolução industrial (FLANDRIN; MONTANARO,
1998).
O comércio do açúcar é determinante do deslocamento dos monopólios
orientais de especiarias para o ocidente.

A mudança começou com o açúcar porque, único entre os condimentos


exóticos apreciados pelos paladares da cristandade latina, esse
adoçante podia ser plantado no Mediterrâneo com relativa facilidade. O

24
Comercializado ao longo dos séculos XVII, XVIII e XIX (FLANDRIN; MONTANARO, 1998;
FERNÁNDEZ-ARMESTO, 2004).
97

açúcar normalmente não é classificado como uma especiaria nos dias


atuais; quando muito, é considerado uma especiaria anômala, posto que
quase não tem perfume; na Idade Média, porém, ele era um condimento
exótico, que só podia ser obtido a um custo comercial alto. Ficou
provado, no entanto, que era tecnicamente possível para os mercadores
explorarem o açúcar de uma nova maneira, evitando o caro papel das
especiarias, plantando-o eles próprios. (...) O primeiro engenho de
25
açúcar [foi aberto] na Hispaniola e começou a lenta transferência da
26
indústria para as Américas (FERNÁNDEZ-ARMESTO, 2004, p. 236,
grifos do autor).

O empreendimento da exploração das colônias latinas foi fundamental. É


com a plantação da cana e o processamento via engenho que se inicia a
formação de uma estrutura agrária no Brasil. Já na década de 1960 o açúcar volta
a tomar vulto com a discussão do Proálcool (SANT’ANA, 2012), agora mais
recentemente, pós governo do PT, em função dos agrocombustíveis. Somam-se a
isso as lavouras de milho e soja e a criação de gado e frango, determinando o
que e como produzir no Brasil atualmente.
Esse capítulo tem como objetivo tratar da particularidade da formação
econômica e social do Brasil que incide sobre as expressões da “questão social” e
explicita os determinantes do problema da fome. Tomo a particularidade da
formação econômica e social nacional pela discussão dos padrões de
acumulação do capital referenciando-me na teoria da dependência (MARINI, 2005
OSORIO, 2012). O eixo de análise é o lugar do Brasil na divisão social e técnica
do trabalho mundial e a consolidação do modelo agroexportador de commodities
(alimentares e minerais) dialeticamente vinculado ao consumo de insumos
agrícolas transferidos dos países de capitalismo central.
O argumento central é este: quem define em última instância a lógica de
combate à fome no Brasil é a dinâmica de acumulação de capital cujo pilar está
na economia do agronegócio.

25
Ilha que atualmente corresponde ao território do Haiti e de São Domingos.
26
“O uso do açúcar se popularizou tanto que o médico de Henrique II revelou em 1560 que ‘o
açúcar é usado no lugar do mel. (...) Não há quase nada hoje em dia que se prepare para o
estômago que seja sem açúcar. O açúcar é agregado na panificação e misturado com o vinho. O
gosto e a salubridade da água melhoram com o açúcar. A carne é salpicada com açúcar, bem
como o peixe e os ovos. Não fazemos mais uso do sal do que do açúcar” (FERNÁNDEZ-
ARMESTO, 2004, p. 236-237).
98

2.1. Dependência e superexploração

Raciocinar sobre a problemática da fome e a necessidade humana de se


alimentar implica em voltar os olhos para um dado acerca da realidade: a
humanidade, seja em qual modo de produção for, precisará dar respostas a
temas, como: uso do solo, uso da água, produção de alimentos e sistema de
abastecimento27. Uma vez que todos esses aspectos, no modo de produção
capitalista, ou como argumenta Mészáros (2002), no sistema sociometabólico do
capital, estão a serviço da valorização do capital, a fome aumenta ou diminui;
modifica sua aparência ou apresenta-se da sua forma mais visceral à medida que
o capital necessita resolver seus problemas de acumulação.
A dinâmica de reprodução do sistema sociometabólico do capital obedece
a uma dinâmica desigual e combinada, na relação entre as nações do globo
(LOWY, 201428; MÉSZÁROS, 2002). Essa dinâmica condiciona a satisfação das
necessidades humanas às necessidades de valorização do capital. Isso ocorre
pois a natureza do capital o torna

total e poderosamente hostil a aceitar [a realização de] todos os tipos [de


objetivos que modifiquem a estrutura sistêmica] que não se ajustam à
rede estabelecida da segunda ordem de mediações, não importando
quão vitais foram os interesses humanos em suas raízes (MÉSZÁROS,
2002, p. 185, grifos do autor).

Há diferenças, obviamente, entre o padrão de acumulação do capital nas


diferentes nações. Ferreira e Luce (2012, p. 17) informam que a noção de padrão
de acumulação do capital é uma categoria de análise que se refere ao conjunto
de “regularidades do movimento do capital no tempo histórico e em espaços
geoterritoriais definidos, no contexto da economia do sistema político mundial e
como nível de abstração intermediário entre as formações sociais e o sistema

27
Não é possível, no marco desse estudo, detalhar os problemas que circulam o abastecimento
no Brasil, entretanto, o tema é crucial para o entendimento da fome e das estratégias para superá-
la.
28
O conceito de desenvolvimento desigual e combinado na relação entre a Revolução Burguesa,
que teve curso na Europa no século XVIII e que se expandiu para outros países da via não
clássica, é desenvolvido a partir das reflexões de Leon Trotsky (1879-1940).
99

mundial”. Não deixando de lado a tensão existente entre capital transnacional e


Estados Nacionais (MÉSZÁROS, 2002).
Os autores da teoria marxista da dependência partem da lógica da
reprodução, do estudo dos ciclos do capital e da particularidade do
desenvolvimento do capitalismo na América Latina, para identificar entre nós os
seguintes padrões históricos: “1) padrão agromineiro exportador; 2) padrão
industrial e suas subfases; (...) 3) novo padrão exportador de especialização
produtiva” no qual nos encontramos (FERREIRA; LUCE, 2012, p. 18).
O convite da teoria da dependência é analisar as condições da formação
sócio-histórica dos países da América Latina, apreender as determinações da
particularidade do desenvolvimento do capitalismo nessa região do globo e sua
relação com o sistema em seu conjunto, nas composições nacionais e na relação
internacional (MARINI, 2005).
Desde a colônia, passando pelo império, a América Latina, e nela, o
Brasil, fornecem produtos agrícolas e minerais para a Europa. Ao avançar para a
gênese do capitalismo, a América Latina irá se desenvolver “em estreita relação
com o capitalismo internacional” (MARINI, 2005, p.140). A revolução industrial
que se processa na Europa corresponde ao período da independência política
dos países latinoamericanos. Essa independência mantida sobre a base da
estrutura política e administrativa originária do período colonial faz com que um
conjunto de países, dentre os quais o Brasil, aumentem sua dependência para
com a Inglaterra, aumentando também a relação comercial de exportação de
produtos de bens primários em troca de manufaturas de consumo. Com isso, é
estabelecida uma relação da América Latina com os centros capitalistas
europeus, a partir de uma estrutura bem definida: a divisão internacional do
trabalho, com implicações diretas no desenvolvimento da região (MARINI, 2005).

Em outros termos, é a partir de então que se configura a dependência,


entendida como uma relação de subordinação entre nações formalmente
independentes, em cujo marco as relações de produção das nações
subordinadas são modificadas ou recriadas para assegurar a reprodução
ampliada da dependência (MARINI, 2005, p. 141).
100

A formação da grande indústria moderna dependeu, em grande medida,


dos produtos agrícolas fornecidos pelos países da América Latina. A importação
de produtos alimentares e insumos de origem agropecuária permitiu que parcela
da classe que deveria ser empregada nesses serviços na Europa pudesse ficar à
disposição da industrialização.
Assim, de um lado, a América Latina supria a função de criar uma oferta
mundial de alimentos – “condição necessária da sua inserção na economia
internacional capitalista” – e, de outro lado, se apresentava como mercado para
matérias-primas industriais, ambos fundamentais para o capitalismo nascente.
Fundamentais, pois a condição de provedor de alimentos que a América Latina
ocupa para a Europa permite que a taxa de exploração da força de trabalho
aumente em função da desvalorização dos bens-salário que compõem a
reprodução da classe, dentre os quais, o alimento é decisivo (MARINI, 2005, p.
143).
Um dos elementos essenciais da relação de dependência dos países está
na extração da mais-valia relativa. Marini (2005, p. 146) lembra que

A determinação da taxa de mais-valia não passa pela produtividade do


trabalho em si, mas pelo grau de exploração da força de trabalho, ou
seja, a relação entre o tempo de trabalho excedente (em que o operário
produz mais-valia) e o tempo de trabalho necessário (em que o operário
reproduz o valor de sua força de trabalho, isto é, o equivalente ao
salário). Só a alteração dessa proporção, em um sentido favorável ao
capitalista, ou seja, mediante o aumento do trabalho excedente sobre o
necessário, pode modificar a taxa de mais-valia. Para isso, a redução do
valor social das mercadorias deve incidir nos bens necessários à
reprodução da força de trabalho, os bens-salário.

Ou seja, ao fornecer os alimentos indispensáveis para a reprodução da


classe trabalhadora em larga escala e com baixos preços, a América Latina
subsidia o aumento da mais-valia relativa nos países industriais, fundamental para
o processo de acumulação do capital.
Outro elemento importante é a produtividade do trabalho que permite a
uma nação apresentar preços de produtos abaixo do preço de seus concorrentes,
sem necessariamente baixá-los significativamente, pois as condições de
produção dos outros países contribuem para fixar o preço dos produtos no
101

mercado, o que gerará um lucro extraordinário sobre a produtividade do trabalho.


O contrário ocorre entre nações que trocam bens que as outras não podem
produzir, ou não podem produzir sob as mesmas condições – o que implicará na
possibilidade da venda de produtos por um preço maior que seu valor,
configurando troca desigual.
Porém, a superexploração do trabalho a partir da América Latina é a
essência desse processo. Marini (2005, p. 156) identifica três mecanismos pelos
quais isso ocorre: o aumento da intensidade do trabalho, o aumento da jornada de
trabalho e a redução do consumo dos trabalhadores abaixo do seu limite normal.
Esses mecanismos reunidos configuram uma forma de produção fundada
exclusivamente na maior exploração dos trabalhadores e não no desenvolvimento
das capacidades produtivas. Isso ocorre devido ao baixo nível de
desenvolvimento das forças produtivas em relação aos países de capitalismo
avançado, mas também, pela especificidade das atividades desenvolvidas na
divisão internacional do trabalho, que cabe à América Latina.

Além disso, importa assinalar que, nos três mecanismos considerados, a


característica essencial está dada pelo fato de que são negadas ao
trabalhador as condições necessárias para repor o desgaste de sua
força de trabalho: nos dois primeiros casos, porque lhe é obrigado um
dispêndio de força de trabalho superior ao que deveria proporcionar
normalmente, provocando assim seu esgotamento prematuro; no último,
porque lhe é retirada inclusive a possibilidade do estritamente
indispensável para conservar sua força de trabalho em estado normal.
Em termos capitalistas, esses mecanismos (que ademais podem se
apresentar, e normalmente se apresentam, de forma combinada)
significam que o trabalho é remunerado abaixo do seu valor e
correspondem, portanto, a uma superexploração do trabalho (MARINI,
2005, p. 156-157).

Um exemplo de como esse quadro se processa de forma dramática


encontra-se na produção da cana. Ao tomarmos como referência o quadro da
canavicultura desenvolvido no Brasil a partir da década de 1960, encontraremos
no trabalhador migrante (IAMAMOTO, 2001) ou no trabalhador residente
(SANT’ANA, 2012), um processo de exploração do trabalho que chega a vias da
eliminação física dos trabalhadores, pondo a condição de trabalho análogo à
escravidão. Sant’Ana (2012) destaca que a regra do trabalho no corte da cana é o
adoecimento expresso por vômitos, mutilações, dores no corpo e a
102

impossibilidade de faltar ao trabalho que naturalizam o passar mal, a doença e a


fadiga muscular levando à morte por cãibras (NOVAES, 2013).
É por meio da dinâmica da acumulação e, portanto, da dinâmica da
superexploração do trabalho que a América Latina se insere na economia
capitalista mundial (MARINI, 2005).

Na economia capitalista clássica, a formação do mercado interno


representa a contrapartida da acumulação de capital: ao separar o
produtor dos meios de produção, o capital não só criou o assalariado,
isto é, o trabalhador que só dispõe de sua força de trabalho, como
também criou o consumidor. De fato, os meios de subsistência do
operário, antes produzidos diretamente por ele, são incorporados ao
capital, como elemento material do capital variável, e só são restituídos
ao trabalhador quando este compra seu valor baixo a forma de salário.
Existe, pois, uma estreita correspondência entre o ritmo da acumulação
e o da expansão do mercado. A possibilidade que tem o capitalista
industrial de obter no exterior, a preço baixo, os alimentos necessários
ao trabalhador, leva a estreitar o nexo entre a acumulação e o mercado,
uma vez que aumenta a parte do consumo individual do operário
dedicada à absorção de produtos manufaturados. É por isso que a
produção industrial, nesse tipo de economia, concentra-se basicamente
nos bens de consumo popular e procura barateá-los, uma vez que
incidem diretamente no valor da força de trabalho e portanto – à medida
que as condições em que se dá a luta entre os operários e os patrões
tende a aproximar os salários desse valor – na taxa de mais-valia
(MARINI, 2005, p. 167-168).

O próprio processo de intensificação da industrialização da América


Latina responde ao período pós segunda guerra e à necessidade de expansão do
capital concentrado nas mãos de grandes corporações imperialistas. Esse modelo
de expansão requer novos territórios e, no caso da América Latina, a
possibilidade de superexploração do trabalho é atrativa. O próprio
desenvolvimento do progresso técnico e da maquinaria requisitou a intensificação
do processo de industrialização em outras partes do globo,

na medida em que o ritmo do progresso técnico reduziu nos países


centrais o prazo de reposição do capital fixo praticamente à metade,
colocou-se para esses países a necessidade de exportar para a periferia
equipamentos e maquinário que já eram obsoletos (MARINI, 2005, p.
174).
103

Assim, a industrialização dos países latino-americanos obedece a uma


nova divisão internacional do trabalho, na qual são transferidos para os países
dependentes etapas inferiores do processo de produção industrial, enquanto os
países imperialistas se encarregam das etapas mais avançadas, sobretudo, do
monopólio da tecnologia (MARINI, 2005).

Não podendo estender aos trabalhadores a criação de demandas para


bens supérfluos, e se orientando antes para a compressão salarial, o que
os exclui de fato desse tipo de consumo, a economia industrial
dependente não só teve que de contar com um imenso exército de
reseva, como também se obrigou a restringir aos capitalistas e camadas
médias altas a realização das mercadorias supérfluas. Isso colocará, a
partir de certo momento (que se define nitidamente em meados da
década de 1960), a necessidade de expansão para o exterior, isto é, de
desdobrar novamente – ainda que agora a partir da base industrial – o
ciclo de capital, para centrar parcialmente a circulação sobre o mercado
mundial (MARINI, 2005, p. 179).

Nota-se, de toda forma, o modo como o processo de amadurecimento do


capitalismo na América Latina e no Brasil, especificamente, obedece ao fluxo de
acumulação de capitais dos países de capitalismo central. A dinâmica da
produção de alimentos como vetor econômico é fundamental na história da
formação sócio-histórica brasileira e determinante na composição da nossa
organização social, desde o Brasil colônia, ainda que esse processo tenha
dinâmicas muito diferenciadas na atualidade.
A pista que se persegue aqui é como a estrutura fundiária nacional,
organizada sobre o poder econômico e político do latifúndio explicita uma das
particularidades da formação capitalista brasileira. Por esse caminho é
imprescindível apreender também a constituição do Estado no Brasil, seu papel
no sistema sociometabólico do capital, e como este se consolida como Estado
burguês sem romper com o poder do latifúndio.

2.2. Elementos da formação social brasileira: latifúndio e violência no campo

Refletir sobre a formação socioeconômica brasileira é constatar que a


conquista territorial e o conflito agrário caminharam de mãos dadas, desde a
expulsão e massacre dos povos originários, à conflitos de repercussão nacional,
104

como Canudos (1893-1898), Contestado (1912-1916) e Juazeiro-CE (1889-1934).


Essas ações têm forte apelo místico e acontecem nos marcos da sociedade
oligárquica da Republica Velha, atravessando os conflitos mais recentes que vão
delineando a questão agrária, como as Ligas Camponesas, Trombas e Formoso,
Eldorado dos Carajás: “o conflito e os problemas agrários informam a marcha
contínua de formação do campesinato brasileiro” (DELGADO, 2012b, p. 12).
Na apropriação das terras, mais que um direito estabelecido em lei,
encontra-se como traço comum a força e a violência, seja pelo Estado e suas
armas, seja por milícias privadas.

O direito agrário, conquanto justificador de jure dos direitos da


propriedade no moderno Estado-Nação, evoluiu dos conceitos de
sesmaria (regime colonial) – posse precária (1822-1950) – terra
mercantil (Lei da Terras 1850-1984) para terra bem social (Estatuto da
Terra e Constituição de 1988), sem que de fato ao longo desses mais de
cinco séculos de conquista patrimonial se tenha revertido o caráter
central da grande propriedade territorial na estrutura fundiária brasileira
(DELGADO, 2012b, p. 12).

A literatura que busca interpretar a formação histórica e socioeconômica


brasileira, desde a reflexão da esquerda cuja base teórica sustenta-se na leitura
marxista (PRADO Jr, FERNANDES), aos estudos vinculados à Cepal
(FURTADO), quanto aos autores de cunho conservador (FREYRE e VIANNA), até
a análise da sociologia (LEAL, QUEIROZ), no que pese, suas diferenças,
apontam, ora com contundência, ora como constatação, o caráter latifundiário e
violento da nossa formação nacional.
Prado Júnior explica que na formação do Brasil a agricultura teve uma
presença fundante na economia, centrada em três elementos: a grande
propriedade, a monocultura e o trabalho escravo (PRADO JÚNIOR, 2011). Um
dos elementos pelos quais Prado Júnior (2011) explica o surgimento dessa
estrutura agrária está no perfil do colono europeu, especificamente português,
que se desloca para essas terras.

não é o trabalhador, o simples povoador; mas o explorador, o empresário


de um grande negócio. Vem para dirigir: e se é para o campo que se
encaminha, só uma empresa de vulto, a grande exploração rural em
espécie e em que figure como senhor, o pode interessar. Vemos assim
105

que, de início, são grandes áreas de terras que se concedem no Brasil


aos colonos. Salvo a exceção da colonização de açorianos em Santa
Catarina e no Rio Grande do Sul, isso já no século XVIII, e em poucas
outras instâncias, que no conjunto representam quantidades
desprezíveis, as sesmarias, designação que teriam as concessões, se
alargam por espaços muito grandes, léguas e léguas de terra (PRADO
JÚNIOR, 2011, p. 124).

A política da metrópole soma-se aos interesses dos primeiros colonos de


origem nobre ou muito vinculados à nobreza.

tal política se orienta desde o começo, nítida e deliberadamente, no


sentido de constituir na colônia um regime agrário de grandes
propriedades. Não lhe ocorreu, a não ser no caso tardio e excepcional já
citado dos açorianos, como também não ocorrerá a nenhum dos
donatários, que partilharam um momento seus poderes soberanos, a
ideia de tentar sequer um regime de outra natureza, uma organização
camponesa de pequenos proprietários (PRADO JÚNIOR, 2011, p. 124-
125).

A economia da grande propriedade é erigida sob a base da monocultura


de gêneros de grande valor comercial e, portanto, muito lucrativos (PRADO
JÚNIOR, 2011). A essa produção em grande escala se somará o trabalho
escravo. O autor explica que não havia população disponível em Portugal para se
instalar uma colônia com trabalho livre, tampouco era essa a orientação
econômica dos colonos que imigravam para essas terras, diferentemente da
população da Grã-Bretanha que se deslocava para a América do Norte em busca
da constituição de um outro país, quase sempre fugindo da fome.

Completam-se assim os três elementos constitutivos da organização


agrária do Brasil colonial: a grande propriedade, a monocultura e o
trabalho escravo. Esses três elementos se conjugam num sistema típico,
a ‘grande exploração rural’, isto é, a reunião numa mesma unidade
produtora de grande número de indivíduos; é isso que constitui a célula
fundamental da economia agrária brasileira. Como constituirá também a
base principal em que assenta toda a estrutura do país, econômica e
social. Note-se aqui, embora isso já esteja implícito no que ficou dito
acima, que não se trata apenas da grande propriedade, que pode
também estar associada à exploração parcelária; o que se realiza então
pelas várias formas de arrendamento ou aforamento, como é o caso, em
maior ou menor proporção, de todos os países da Europa. Não é isso
que se dá no Brasil, mas sim a grande propriedade mais a grande
exploração, o que não só não é a mesma coisa, como traz
106

consequências, de toda ordem, inteiramente diversas (PRADO JÚNIOR,


2011, p. 127, grifos do autor).

Em outra perspectiva teórica, Freyre (2007) descreve como ocorria a


unidade produtiva dentro da fazenda de cana-de-açúcar quando analisa a
produção e a vida em torno da casa-grande e da senzala, da plantação da cana e
do engenho, da unidade produtiva que tem o branco como comandante da
produção e o escravo negro como sustentáculo da produção. Para Freyre (2007,
p. 36),

A casa-grande, complementada pela senzala, representa todo um


sistema econômico, social, político: de produção (a monocultura
latifundiária); de trabalho (a escravidão); de transporte (o carro de boi, o
banguê, a rede, o cavalo); de religião (o catolicismo de família, com
capelação subordinado ao pater famílias, culto dos mortos etc.); de vida
sexual e de família (o patriarcalismo poligâmico); de higiene do corpo e
da casa (o ‘tigre’, a touceira de bananeira, o banho de rio, o banho de
gamela, o banho de assento, o lava-pés); de política (o compadrismo).

Essa estrutura social muito brevemente estudada por Freyre (2007), em


sua particularidade, no Engenho, explicita traços que explicam algumas das
características da formação sócio-histórica brasileira que, sob a base do latifúndio
e do poder do homem, branco e português, sustenta uma miscigenação cunhada
no estupro e uma produção baseada na violência.
Ainda sobre a formação do latifúndio no período colonial, Oliveira
Vianna,29 em “Populações meridionais no Brasil” (1973), desenvolverá uma
análise acerca dessa estrutura fundiária erigida na colônia a partir da exploração
portuguesa. Para o autor a estrutura fundiária brasileira, constituída na órbita do
latifúndio impedirá, inicialmente, a formação das cidades e a transição do país
para o capitalismo. Segundo Vianna (1973), o latifúndio se constitui ao longo do
Brasil colônia como uma unidade produtiva autônoma. Todas as necessidades
eram produzidas dentro do latifúndio. Invoca o que chama de máxima dos antigos
fazendeiros: “Nessa casa só se compram ferro, sal, pólvora e chumbo. São estes,

29
Oliveira Vianna (1883-1951), formado em Direito em 1924, foi consultor do Ministério do
Trabalho, Indústria e Comércio entre 1932 e 1940, em 1937 foi eleito para a Academia Brasileira
de Letras. Intelectual conservador é, segundo Vieira (2010), um dos responsáveis pelo caráter
corporativista do Governo Getúlio.
107

realmente, os quatro únicos produtos que o grande domínio não pode produzir”
(VIANNA, 1973, p. 123-124 grifos do autor). O autor não desconhece, todavia,
que ao redor do latifúndio havia uma população de trabalhadores livres. Para
sobreviver dependiam diretamente do latifúndio. Essa relação de dependência
também está na base do compadrio, identificado por Freyre (2007).
Prado Júnior (2011) observa a existência da mineração. A partir do século
XVIII, segundo o autor, será organizada sobre a mesma estrutura da agricultura:
produção em grande escala e grandes unidades operadas por escravos. Quanto
ao setor extrativista, localizado quase exclusivamente na Amazônia, mas ainda
aqui, ressalvadas a questões de sazonalidade e a liberdade de transitar em
território vasto, a organização do trabalho também registrará que, “o empresário,
embora não seja proprietário fundiário como o fazendeiro e o minerador, dirige e
explora, como estes, uma numerosa mão de obra que trabalha para ele e sob
suas ordens” (PRADO JÚNIOR, 2011, p. 128).
A ênfase da análise do autor é que toda a produção desenvolvida na
colônia ocorre a partir da grande unidade produtiva, seja agrícola, mineradora ou
extrativa. O centro da argumentação está no fato de que a colônia existe somente
para satisfazer os interesses da metrópole e que, ao final de 300 anos, está
visceralmente ligada aos interesses da Europa, existindo apenas para fornecer
mercadorias para esta.

A agricultura é o nervo econômico da colonização. Com ela se inicia – se


excluirmos o insignificante ciclo extrativo do pau-brasil – e a ela deve a
melhor porção de sua riqueza. Numa palavra, é propriamente na
agricultura que assentou a ocupação e exploração da maior e melhor
parte do território brasileiro. A mineração não é mais que um parênteses;
de curta duração, aliás (PRADO JÚNIOR, 2011, p. 130).

Durante os 3 séculos do Brasil colônia, não foi apenas a cana-de-açúcar,


todavia, a responsável pela economia colonial. Na agricultura, dentre os demais
produtos, Prado Júnior (2011) destaca o algodão produzido no Maranhão e
responsável por sua apresentação no cenário econômico nacional, ademais da
exportação de função da indústria têxtil inglesa nascente.
108

O cacau também é um produto que tem expressão, sobretudo, na região


da Bahia. O interior do país é colonizado em função da mineração e da pecuária.

Só com a agricultura, a colonização não teria penetrado o interior; e é


por isso que até o século XVII os portugueses continuavam a ‘arranhar o
litoral como caranguejos’. São a mineração e a pecuária que tornaram
possível e provocaram o avanço. A primeira por motivos óbvios: o valor
considerável do ouro e dos diamantes em pequenos volumes de peso
anula o problema do transporte. A segunda, para empregar a pitoresca
fórmula do mesmo autor que acabei de citar acima, ‘porque os gados
não necessitam de quem os carregue, eles são os que sentem nas
longas marchas todo o peso dos seus corpos (PRADO JÚNIOR, 2011, p.
139).

É relevante registrar no estudo de Prado Júnior (2011) a informação de


que, além de ter uma economia fundada na agricultura extensiva, no que se
refere ao cuidado com a terra nada foi feito. Nenhum sistema de irrigação ou de
fertilização com esterco de animais ou com a bagaceira da cana foi realizado. Os
instrumentos também eram os mais rudimentares, restringindo-se quase sempre
à enxada. Também não era conhecido o uso da bagaceira como combustível. O
autor chama a atenção para a dificuldade de absorver novas tecnologias no
processo produtivo.
Furtado (1972) reafirma em suas análises muitas premissas contidas em
Prado Júnior, tais como: a existência de abundância de terras, a quase
inexistência de mão de obra, o clima tropical ou subtropical que irá constituir. O
autor denomina a produção do período de empresa agrícola – uma grande
unidade de exportação que se impõe como a forma predominante e quase
exclusiva de organização produtiva. Para Furtado (1972, p. 93, grifos do autor),

O Brasil é o único país das Américas criado, desde o início, pelo


30
capitalismo comercial sob a forma de empresa agrícola. Não se trata,
como na América Hispânica, de conquista. Pouco havia a conquistar ou
a pilhar. Foi a pilhagem que permitiu, na América Hispânica, a

30
Existe um rico debate na literatura sobre o pré-capitalismo que, para Furtado, era “capitalismo
comercial”. A crítica à noção de “capitalismo comercial” ressalta que essa perspectiva abrange o
entendimento do capitalismo enquanto um modo de circulação, ao invés de um modo de
produção. Alguns autores sustentam que o pré-capitalismo na América Latina foi o escravismo
colonial. Não é possível aprofundar esse debate no texto, mas é necessário registrar a
inadequação da noção de “capitalismo comercial”, por isso a deixo entre parênteses.
109

aventureiros praticamente sem posses, acumular riquezas e transformar-


se em poderosos senhores.

Nota-se que, para Furtado, o Brasil se constitui na relação direta com o


“capitalismo comercial”. Aqui se apresenta um elemento que é alvo de rica
discussão entre pensadores nacionais, ou seja, o caráter da produção no Brasil
Colônia e Império. Furtado sustentará que

A importância da empresa agromercantil, no Brasil, está em que ela


marcará decisivamente a estrutura da economia e da sociedade que se
formarão no país. Esta formação, é bem verdade, esteve longe de
constituir um processo linear, pois irradiou de dois polos relativamente
autônomos: a empresa agromercantil do século XVI e a empresa mineira
do século XVIII (FURTADO, 1972, p. 94).

A relevância da empresa mineira, entretanto, não tem o mesmo peso da


agromercantil. Surge como um parêntese dentro da outra estrutura, recebendo
dela o instituto da escravidão. Responde pela aceleração do processo de
acumulação e povoamento, mas não altera o quadro institucional básico. Já a
pecuária surge na esteira das outras duas e como forma de resolver problemas
originários do processo produtivo como, por exemplo, o transporte de cargas.
Além do fornecimento de carnes, sua expressão também é muito inferior à
empresa agromercantil. Porém, responde de certa forma pela estabilização das
atividades econômicas no conjunto podendo, nas fases de depressão, absorver
mão de obra. Cabe notar aqui que o declínio da mineração gerará uma população
que viverá nas terras com uma agricultura de subsistência.
O trânsito para o período imperial contém características similares ao
período colonial.

Na região de mineração, o declínio da atividade principal deu lugar não


somente ao deslocamento de população para as frentes pecuárias, mas
também à formação de uma agricultura principalmente de subsistência, a
qual procurava localizar-se nas proximidades dos caminhos de tropas
que comunicavam com os principais centros urbanos.
A economia principalmente de subsistência, no Brasil, assume assim
duas formas: o domínio pecuário que se vê privado de mercados e tende
a fechar-se sobre si mesmo, e o pequeno produtor agrícola ou sitiante
que ocupa terras que ainda não foram alcançadas pela empresa
agromercantil. Essas atividades, se bem que secundárias do ponto de
110

vista econômico, tiveram marcada significação na formação da


sociedade brasileira (FURTADO, 1972 p. 96).

Furtado adentra aqui a questão dos homens livres que sobreviviam à


margem do que para ele era a empresa agrícola. Esse é outro elemento
importante para a discussão dos autores que estudam esse momento:

Dificilmente se pode exagerar a importância, na formação da sociedade


brasileira, da acaparação das terras pela pequena minoria responsável
pela instalação da empresa agromercantil, que assegurou a ocupação do
território. Convém assinalar que, nas condições que prevaleciam no
início da ocupação, a terra era bem de ínfimo valor. A instalação da
empresa agromercantil dependia principalmente de capacidade
financeira. Explica-se, assim, que as primeiras concessões de terras
hajam sido feitas a homens que dispunham de recursos para
empreender a instalação de tais empresas. Dessa forma, a classe
dirigente é, desde o início, formada por homens economicamente
poderosos. Não se tratava de pequenos plantadores de anil, como nas
Antilhas, e sim de homens que imobilizavam quantias consideráveis em
instalações importadas e em escravos não menos custosos. Contudo, é
no controle da propriedade de terra que essa classe dirigente encontrará
o instrumento poderoso que lhe permitirá conservar o monopólio do
poder. Os homens livres que chegaram ao país como artesãos, soldados
ou simples aventureiros foram de uma ou outra forma transformados em
dependentes da classe de grandes proprietários (FURTADO, 1972, p.
97-98).

Ainda sobre o que chama de empresa agromercantil, Furtado (1972)


ressalta que ela se instala no vazio, com mão de obra externa e raramente
complementando-a com a população indígena, e avança com violência na
garantia dos seus interesses econômicos. Na região do café o empreendimento
agrícola avança com escravos e exércitos, expulsando sitiantes e posseiros que
intentavam organizar uma vida comunitária. É verdade que a expulsão desses
sitiantes nem sempre foi totalmente pacífica. Se bem estivessem incapacitados
para ‘resistir ao mecanismo jurídico da apropriação da terra pelo mais forte’,
algumas vezes os sitiantes esboçavam resistência (FURTADO, 1972, p. 100).
Nas raízes da formação do Brasil, dentre os autores das mais variadas
concepções teóricas, o consenso só existe em torno da importância e do poder do
latifúndio. Esse poder econômico e político também determina a correlação de
forças entre a pequena propriedade rural, que sobreviveu ao longo dos anos no
embate com esse poder.
111

Nesse aspecto da construção do poder vinculado ao proprietário de terra,


dois estudos são relevantes: um foi realizado por Victor Nunes Leal (1975) 31,
outro por Maria Isaura de Queiroz (1957). Leal (1975) centra-se nas relações de
poder estabelecidas entre o município e o sistema representativo brasileiro,
investigando o fenômeno do coronelismo32 e sua influência no poder, sobretudo,
municipal. Para o autor, o coronelismo está ligado diretamente a formação da
propriedade privada rural brasileira e sua decadência econômica, ou seja, a
relação entre coronéis e propriedade privada rural é direta, entretanto, é da perda
do poder econômico que esses fazendeiros construirão seu poder político.
A patente de coronel foi criada em 1831 juntamente com a Guarda
Nacional que substituía as antigas milícias do período colonial. Essa patente
correspondia a uma hierarquia que significava o comando municipal ou regional e
seu titular era portador de prestígio econômico ou social, porém, raramente não
se tratava de um proprietário rural.
Leal (1975, p. 20) concebe o “coronelismo”

como resultado da superposição de formas desenvolvidas do regime


representativo a uma estrutura econômica e social inadequada. Não é,
pois, mera sobrevivência do poder privado, cuja hipertrofia constituiu
fenômeno típico de nossa história colonial. É antes uma forma peculiar
de manifestação do poder privado, ou seja, uma adaptação em virtude
da qual os resíduos do nosso antigo e exorbitante poder privado têm
conseguido coexistir com um regime político de extensa base
representativa (LEAL, 1975, p. 20).

Está intimamente ligado ao latifúndio e dele deriva um conjunto de formas


secundárias de poder, como o mandonismo, o filhotismo, o falseamento do voto e

31
O livro editado sob o nome “Coronelismo, enxada e voto”, em 1949, é uma segunda edição
como o título modificado do estudo de Leal que na primeira versão se intitulava “O municipalismo
e o regime representativo no Brasil”, publicado em 1948 (LAMOUNIER, 1999).
32
Faoro (1997, p. 637), em seu estudo sobre o aspecto patrimonialista na formação social
brasileira, acredita que o coronelismo é também uma expressão desse traço da formação social.
Para o autor, “O coronelismo, o compadrazzo latino-americano, a ‘clientela’ na Itália e na Sicília
participam da estrutura patrimonial. Peças de uma ampla máquina, a visão do partido e do sistema
estatal se perdem no aproveitamento privado da coisa pública, privatização originada em podres
delegados e confundida pela incapacidade de apropriar o abstrato governo instrumental (Hobbes)
das leis. O patrimonialismo pulveriza-se num localismo isolado, que o retraimento do estamento
secular acentua, de modo a converter o agente público num cliente, dentro de uma extensa rede
clientelista. O coronel utiliza seus poderes públicos para fins particulares, mistura, não raro, a
organização estatal e seu erário com os bens próprios”.
112

a desorganização dos serviços públicos (LEAL, 1975). Desse modo, a


constituição do coronelismo e a organização do poder a partir de seus interesses
impedem, inclusive, a instituição de uma ordem pública.
Ao escrever sobre as classes sociais no início do século XX, Leal (1975)
informa que não há numerosas classes médias nas cidades do interior e menos
ainda no campo. Colonos, parceiros e pequenos sitiantes pouco se distinguem do
trabalhador assalariado, uma vez que eles próprios frequentemente trabalham por
salário.
No intento de compreender a influência dos fazendeiros, Leal (1975, p.
26) destaca alguns aspectos importantes da formação da liderança local e alguns
aspectos da sociedade rural, cujo problema no conjunto centra-se na
concentração da terra. A formação da pequena e média propriedades explica-se
por alguns fatores:

33
1) colonização oficial, cujo principal objetivo (...) era formar uma
reserva de mão de obra para os fazendeiros; 2) colonização particular,
de menor relevo que a primeira, procurando ambas criar condições
capazes de atrair correntes migratórias; 3) proximidade das grandes
fazendas, a cuja ilharga se desenvolvia a pequena propriedade como
depósito de braços para a grande lavoura; 4) decomposição da fazenda,
pelo esgotamento da terra, pela erosão, pelas pragas, pelas crises
econômicas etc.; 5) influência dos grandes centros urbanos, cujo
abastecimento exige produção de artigos de subsistência incompatíveis
com a agricultura extensiva. Ao tratar da decadência da fazenda, o autor
notou, ainda, um pouco fora do lugar, a presença da pequena
propriedade nas zonas em que ‘o regime da fazenda’, encontrando terras
inferiores, não fez mais que passar, abrindo espaço para o retalhamento
e instalação da pequena propriedade.

Segundo o raciocínio de Leal (1975, p. 35), a uma população rural


paupérrima – ainda que distribuída em segmentos distintos, proletariado rural,
parceiro, pequeno proprietário – segue-se um sistema eleitoral em que a
manipulação e compra de voto ocorrem, também, em função da pobreza da
população. Nesse ambiente os chefes locais custeiam as despesas com a
eleição, “documentos, transporte, alojamento, refeições, dias de trabalho
perdidos, e até roupa, calçado, chapéu para o dia da eleição, tudo é pago pelos

33
Victor Nunes Leal enumera os fatores referentes à propriedade rural a partir da obra de Caio
Prado Júnior “Distribuição da propriedade fundiária no Estado de São Paulo”.
113

mentores políticos emprenhados na sua [eleitor rural] qualificação e


comparecimento” (LEAL, 1975, p. 35).
Esses chefes políticos demonstram, também, interesse em
melhoramentos do lugar: a escola, o correio, a igreja, o posto de saúde, a luz
elétrica, dentre outras, dependem do esforço desses chefes. Se há, entretanto,
poder, por um lado, nos benefícios que esses sujeitos são capazes de capitanear
para o município, “aquele que pode fazer o bem se torna mais poderoso, quando
está em condições de fazer o mal. E aqui o apoio do oficialismo estadual ao chefe
do município, seja por ação, seja por omissão, tem a máxima importância” (LEAL,
1975, p. 47), ou seja, a força policial, diretamente vinculada ao chefe local, a seu
serviço, garantem as ameaças e violência que desempenham função primordial.

A regra é o recurso simultâneo ao favor e ao porrete. Compreende-se


isso perfeitamente, quando se considera a situação dominante no
Estado, o que interessa é consolidar-se com o mínimo de violência. A
não ser um desequilibrado, ninguém pratica o mal pelo mal: em política,
principalmente, recorre-se à violência, quando outros processos são
mais morosos, ou ineficazes, para o fim visado (LEAL, 1975, p. 47-48).

Aqui se manifesta ainda o paternalismo, cuja contraparte é, nos termos de


Leal (1975), negar pão e água ao adversário. As relações se organizam entre
proteger os amigos e, para tanto, o limite entre o legal e o ilícito torna-se tênue ou
entra-se diretamente no campo da ilegalidade com a justificativa da solidariedade
partidária, formando uma concepção de que em política “só há uma vergonha:
perder”. Assim, o filhotismo contribui frequentemente para desorganizar a
administração municipal. A outra face do filhotismo é o mandonismo que se
manifesta na perseguição aos adversários: “para os amigos pão, para os inimigos
pau”. Raramente existe cordialidade entre chefes locais e adversários.
Para Leal (1975), essa ordem política implicará na cultura política da
classe dominante de descrença quanto aos valores democráticos que, para o
autor, não é de ordem pessoal, está profundamente vinculado à nossa estrutura
econômica e social. Soma-se a isso uma população inculta, a utilização de
dinheiro, bens e serviços do governo para as eleições, a dependência do
114

fazendeiro, impedindo o contato do trabalhador rural diretamente com os partidos.


A relação entre governo e população rural passa pelo dono da terra (LEAL, 1975).
Essa arbitrariedade é orquestrada também com a anuência do governo
estadual,

os chefes municipais governistas sempre gozaram de uma ampla


autonomia extralegal. Em regra, a sua opinião prevalece nos conselhos
do governo em tudo quanto diz respeito ao município, mesmo em
assuntos que são da competência privativa do Estado ou da União,
como seja a nomeação de certos funcionários, entre os quais o delegado
e os coletores. É justamente nessa autonomia extralegal que consiste a
carta branca que o governo estadual outorga aos correligionários locais,
em cumprimento da sua prestação no compromisso típico do
‘coronelismo’. É ainda em virtude dessa carta branca que as autoridades
estaduais dão o seu concurso ou fecham os olhos a quase todos os atos
do chefe local governista, inclusive a violências e outras arbitrariedades
(LEAL, 1975, p. 51 grifos do autor).

Na interpretação de Leal (1975), entretanto, esse poder é resultado muito


mais da decadência dos senhores rurais do que do poder deles. É da ampliação
da representação e do voto que permitiram que se instituísse um poder vinculado
ao universo eleitoral e não apenas à produção organizada na fazenda. Esse
poder tenderia a desaparecer com a consolidação da democracia representativa.
Em sentido diverso, seguem os estudos de Queiroz (1957). A autora,
trabalhando com a dialética entre rural e urbano (BOAS, 2009), aponta para uma
perspectiva de busca pela compreensão da dimensão da cultura.
Para Queiroz (1957), o poder vem realmente da figura do mandão local.
Ele é o elemento determinante da estrutura de poder da política brasileira. O
período estudado por Queiroz é o mesmo estudado por Faoro (1997) em sua
investigação sobre o patrimonialismo na cultura brasileira, ou seja, o período que
vai do Brasil colônia ao governo Vargas. A autora identifica, assim como Faoro
(1997), uma linha constante na formação da estrutura de poder nacional, porém,
essa linha constante é de ordem diversa da informada por Faoro (1997). Ela se
organiza a partir do mandonismo local, caracterizado pelo patriarcado.

A linha constante era a grande influência do mandonismo local em três


fases diferentes da vida do país; sua permanência em épocas
sucessivas provinha da permanência de uma estrutura social baseada
no latifúndio e no que se poderia chamar de ‘família grande’.
115

Paralelamente ao mandonismo, que se afirma em todas as ocasiões


como o poder mais forte, veio se desenvolvendo também um poder
central. Este não é senão uma tentativa durante a colônia. Durante o
império, confunde-se com o mandonismo local; o amálgama localismo-
centralismo, nessa época efetuado, não permitiu a muitos historiadores
perceber que sob a camada nova dos bacharéis que a nacionalização
administrativa atraia aos postos de mando, a mola verdadeira da política
continuava sendo o mandonismo local; daí a ênfase demasiada que se
dá em geral à influência do poder central nos acontecimentos do
período. Finalmente, durante a primeira república, o poder central
principia a se desvencilhar do coronelismo e a constituir uma força
independente com a qual é preciso contar; chega mesmo a um equilíbrio
de forças, e governo central e mandões políticos tratam-se de potência a
potência (QUEIROZ, 1957, p. 194).

Ao acompanhar o desenvolvimento histórico nacional, a autora não


desenvolverá a hipótese de que o poder se instituiu de “cima para baixo”, pelo
contrário, ela acredita que desde a colônia as autoridades do Reino tiveram que
“entrar em acomodação com o poder dos habitantes ou com eles lutou e saiu
vencida” (QUEIROZ, 1957, p. 198). Para ela, a Coroa apenas ratificou as vitórias
dos colonos, já que os nativos participavam do governo, ao contrário das colônias
espanholas. Desde a montagem dos engenhos, que eram empreendimentos de
altos custos realizados apenas por quem tivesse posses, organizavam-se os
sesmeiros. Impossibilitados de montar o engenho, os sesmeiros se tornavam
tributários dos senhores ricos, fornecendo a cana para moer e pagando com parte
da safra, formando, assim, uma espécie de clientela do Engenho.
Para Queiroz (1957), é instituído um patriarcado não apenas pelos laços
de sangue familiares, mas também, pelo favor, pelo compadrio. Segundo Bôas
(2009), a parentela é um conceito-chave na obra de Maria Isaura, embora o
conceito seja muito utilizado na sociologia. Para a autora, o modo da parentela
brasileira ocorria de forma sui generis na família que, para além dos laços
consanguíneos, era formada por aliança e pelos laços sobrenaturais que
legitimavam o compadrio.
A marca da violência é outra característica fundamental desses
senhores de engenho chamados pela autora de “chefes de bandos armados”
(QUEIROZ, 1957, p. 199). A base da economia já era a agricultura que, ligada
em parte à propriedade e à cana-de-açúcar, disseminava os colonos pelos
engenhos formados por duas camadas, os agricultores – os ‘senhores de
116

engenho’ – vindos do Reino e com posses e o simples colono que pedia uma
sesmaria e tornava-se dependente do Senhor de engenho por não possuir
moenda.
Todos esses colonos e senhores, entretanto, participavam das
assembleias da Câmara como ‘homens bons34’ (QUEIROZ, 1957, p. 201) e
tinham, portanto, vida política. As decisões da Câmara Municipal refletiam as
preocupações do senhor rural em defender seus interesses privados. Não havia
separação entre uns e outros, uma vez que a realidade econômica, política e
social da colônia era representada pela figura dos proprietários rurais (QUEIROZ,
1957, p. 202).
Assistia-se, então, a terríveis lutas entre as famílias durante toda a
Colônia, atravessando o Império e, em alguns lugares, chegando até nossos dias
e, portanto, mantendo a estrutura patriarcal da família. Nessas discórdias, o
governo-geral ora mediava o conflito, ora participava da luta, condenando a outra
família. Cessado o conflito, entretanto, independente do lado vitorioso, o governo
imediatamente a ele aderia e o sustentava (QUEIROZ, 1957, p. 206).
Essa linha de argumentação permanecerá por todo o texto da autora,
desde a colônia até o período republicano. Para ela, o poder era exercido por
grupos familiares locais, articulados sob a figura de um mandão local, chefe do
poder local, que se organizava sobre uma estrutura patriarcal, familiar, cujos laços
eram fortalecidos pelo poder econômico, pela amizade e pelo compadrio, de
modo que a população se beneficiasse dessa estrutura, apoiando-a e
consolidando-a. Essa estrutura da sociedade implicará nos Estados e no governo
central como reprodução de um movimento com origem na família patriarcal,
estabelecendo uma relação com o público que mantém seus interesses privados
assegurados pelo uso da violência.
Na passagem do período imperial para o republicano, cabe destacar a Lei
de Terras (Lei n.601, de 18 de setembro de 1850), um marco de segurança
jurídica aos precários títulos de terras dos latifundiários em relação à Coroa, ao
governo central, proibindo a ocupação de terras devolutas que não fosse pela
compra. Na realidade, instaurou-se um regime de violência e arbitragem no

34
O primeiro autor a formular a análise dos “homens bons” da colônia foi Prado Jr (2006), em
“Evolução política do Brasil colônia e império”.
117

campo. A lei de terras legalizou o latifúndio no país, por um lado e instituiu, por
outro, a “grilagem”,

atividade muito lucrativa que consiste em forjar títulos de propriedade de


grandes extensões de terras vagas para vendê-las a grandes
fazendeiros ou em desalojar, pela violência ou pela via de chicanas
judiciais, posseiros estabelecidos por conta própria em terras vagas, mas
desprovidas de título de propriedade (SAMPAIO JUNIOR., 2010, p. 399).

É possível observar como as relações sociais no meio rural brasileiro se


formam por meio da violência. A violência física, entretanto, convive com outra
violência, a construção de laços sociais de favor e de compadrio que expressam,
sob a base violenta das relações, uma forma de sobrevivência.
Schwarz (2000) utiliza-se dos escritos de Machado de Assis para
apreender um elemento constitutivo da população brasileira, a utilização do favor
como forma de construir as estratégias políticas. Essa é uma pista importante
para este estudo, pois implica em desvelar algo que está, para a população
usuária, intrínseco na política de assistência social, caracterizando-se por um
matiz assistencialista, estágio mais agudo de uma política problemática em sua
essência.
Ao retomar o período Imperial, o autor dirá que, embora a relação
produtiva fundamental seja escravocrata, sustenta ele, o nexo efetivo da vida
ideológica não era esse, e, sim, compreender o país como um todo, ou seja, o
problema do monopólio da terra.
Além da relação óbvia de produção estruturada entre senhor e escravo, o
homem livre durante o império constitui-se como um dependente, um agregado
que vive do favor do proprietário de terra. Essa característica atravessará toda a
história do Brasil. Diz Schwarz (2000, p. 16) que, “com mil formas e nomes, o
favor atravessou e afetou no conjunto a existência nacional, ressalvada sempre a
relação produtiva de base, esta assegurada pela força.”
Para o autor, o favor é a mediação universal pela qual se camufla a
relação de violência proveniente da esfera da produção. A partir dela muitos
autores buscarão interpretar o Brasil, “involuntariamente disfarçando a violência,
que sempre reinou na esfera da produção” (SCHWARZ, 2000, p. 17). O favor
118

torna-se, assim, um padrão particular de relação, é a forma prática da


dependência pessoal. A exceção torna-se a regra. A cultura é toda interessada na
remuneração e nos serviços pessoais. No que tange à relação com a Europa, dirá
o autor, não estávamos para ela como o feudalismo estava para o capitalismo, ao
contrário, éramos tributários da colonização e um resultado das relações
comerciais.

Resumindo, um movimento em que de baixo para cima se trocam


serviços por apreço, enquanto que, em sentido inverso, mas sem que a
conexão entre os dois momentos se explicite, o apreço se traduz em
benefícios materiais. (…)
O resultado surpreendente de tanta sensibilidade moral é o imobilismo.
De fato, é melhor que fiquem todos em seu lugar e conheçam a sua
condição. Não porque a diferença social seja justa ou porque a tradição
a justifique, mas porque os mediadores do movimento – o obséquio, bem
como o desejo de subir – são ainda mais degradantes (SCHWARZ,
2000, p. 185).

Segundo Schwarz (2000), forja-se uma cultura do se não possuo, estou


próximo a quem possui. E uma liberdade que consiste em andar de carona na
arbitrariedade alheia. Para o autor, há uma cultura do favor e da arbitrariedade, e
que tem como determinante a formação econômica que, fundada desde o império
na relação entre senhor e escravo, consolidou um núcleo de homens livres que só
participaram do sistema ao se vincularem, pelo compadrio e apadrinhamento,
com os detentores do poder econômico e político.
Em traços gerais, os elementos da estrutura agrária brasileira apontados
na sessão seguem na transição nacional para o capitalismo. Com a consolidação
da burguesia, em curso desde o final do período imperial, antes mesmo do fim da
escravidão, parte das fazendas de café paulistas passam a utilizar mão-de-obra
imigrante e assalariada para o plantio, processo que se intensifica ao longo da
República Velha. Consolida-se um Estado que, atrelado aos interesses do capital,
antecipa a revolução para não perder poder, sob a máxima mudar para
permanecer (FERNANDES, 2005).
Fernandes (2005) destaca que não existe um único modelo democrático-
burguês de transformação capitalista. É necessário, contudo, investigar: “1) como
se concretizará, histórico-socialmente, a transformação capitalista; 2) o padrão
119

concreto de dominação burguesa (...); 3) quais são as probabilidades que tem a


dominação burguesa de absorver os requisitos centrais da transformação
capitalista” (FERNANDES, 2005, p. 337-338).
Na dinâmica do capitalismo dependente, sustenta Fernandes (2005), à
medida que se aprofunda a transformação capitalista, cada vez mais as nações
de capitalismo central necessitam de parceiros sólidos na periferia dependente, o
que formará uma burguesia articulada e forte para “saturar todas as funções
políticas autodenfensivas e repressivas da dominação burguesa” (FERNANDES,
2005, p. 342).
Para a formação brasileira, isso contribuirá com

Um poder que se impõe sem rebuços de cima para baixo, recorrendo a


quaisquer meios para prevalecer, erigindo-se a si mesmo em fonte de
sua própria legitimidade e convertendo, por fim, o Estado nacional e
democrático em instrumento puro e simples de uma ditadura de classe
preventiva. Gostemos ou não, essa é a realidade que nos cabe observar,
e diante dela não nos é lícito ter qualquer ilusão. O máximo que se
poderia dizer é que a democracia e as identificações nacionalistas
passariam por esse poder burguês se a transformação capitalista e a
dominação burguesa tivessem assumido (ou pudessem assumir), a um
tempo, outras formas e ritmos históricos diferentes (FERNANDES, 2005,
p. 346 grifo do autor).

Essa burguesia nacional é formada também com a consolidação das


relações de produção capitalistas na agricultura. Tem início nas fazendas de café
paulistas e também com o trabalho migrante que se espalha pelo Brasil após a
década de 1930, sendo consolidada no período da ditadura civil-militar,
constituindo, assim, uma modernização conservadora. A base econômica que se
inicia sob o período da industrialização nacional (1930-1980) não suprime o
capital que se expande na empresa agrícola (FERNANDES, 2005; DELGADO,
2010).
Consolida-se no Brasil um Estado autocrático-burguês, sob um consenso
democrático-oligárquico que assume a forma de cooptação sistemática e
generalizada e uma “corrupção intrínseca e inevitável do sistema de poder. (...)
Desse ângulo, a autocracia burguesa leva a uma democracia restrita típica, que
se poderia designar como uma democracia de cooptação”. (FERNANDES, 2005,
p. 416). Assiste-se, na análise de Fernandes (2005), a uma burguesia
120

dependente, lutando por um capitalismo dependente. Em suas mãos,

o particularismo agressivo e a violência ‘racional’ só se voltam para um


fim: a continuidade do tempo econômico da revolução burguesa, ou seja,
em outras palavras, a intensificação da exploração capitalista e da
opressão de classe, sem a qual ela é impossível (FERNANDES, 2005, p.
417).

Essa formação da burguesia nacional consubstancia-se em uma dinâmica


de contrarrevolução preventiva. Essa estrutura, todavia, não se mantém
indiscriminadamente. A contrarrevolução perde sua base material nas relações de
classe burguesas e volta a ser uma expressão dos estratos burgueses
ultraconservadores, deslocados da sociedade de classe inclusiva, e que terá
expressão em um Estado autocrático burguês.
É com o Estado Novo (1937-1945), todavia, que as condições para a
criação do Estado Burguês são consolidadas. Isso implica na criação de
instituições políticas e econômicas e padrões de valores sociais e culturais de tipo
burguês. “Enquanto manifestação e agente das rupturas estruturais internas e
externas, a revolução implicou a derrota (não se trata propriamente de liquidação)
do Estado Oligárquico” (IANNI, 2009, p. 27, grifo do autor).
O período getulista é característico da relação com a democracia que se
consolida no Brasil. Um governo que começa com a tomada de poder (1930), em
seguida institui um golpe de Estado (1937) e um governo ditatorial, seguido de
retorno ao poder por eleição e por meio do voto popular (1951). O governo Vargas
é responsável pela estruturação das políticas de Estado para o desenvolvimento
do capitalismo no Brasil, desde a consolidação da indústria de base, contribuindo
para o fortalecimento das demais indústrias, como a siderurgia e a estruturação
do Conselho Nacional do Petróleo. Outro legado deste período é a CLT –
Consolidação das Leis Trabalhistas (1943), a Criação dos Institutos
especializados em setores produtivos agrícolas, como café, cacau, açúcar, trigo 35.

35
O governo Vargas criou em 1931, o Conselho Nacional do Café, o Instituto do Cacau da Bahia;
em 1933, o Departamento Nacional do Café, o Instituto do Açúcar e do Álcool; em 1934 foram
criados o Conselho Federal do Comércio Exterior, o Instituto Nacional de Estatística, o Código de
Minas, o Código de Águas, o Plano Geral de Viação Nacional, o Instituto de Biologia Animal; já em
1944 temos a criação do Conselho Nacional de Política Industrial e Comercial e o Serviço de
Expansão do Trigo (IANNI, 2009).
121

Porém, foi a partir da consolidação do Conselho Federal do Comércio Exterior


“que o governo construiu uma nova compreensão das condições e possibilidades
emergentes na economia brasileira, como um subsistema do capitalismo mundial”
(IANNI, 2009, p. 40).
No que se refere ao debate do desenvolvimento, Ianni (2009) identifica
um movimento pendular entre duas principais vertentes, uma primeira
denominada de estratégia de desenvolvimento nacional, que predomina nos anos
1930-1945, 1951-1954 e 1961-1964, seu pressuposto é o projeto de capitalismo
nacional; a segunda, chamada de estratégia de desenvolvimento dependente,
predominou nos anos 1926-1950, 1955-1960 e 1964-1970, e reconhece a
hegemonia norte-americana preconizada pela interdependência (SEGATTO;
SEGATTO, 2009).
A perspectiva desenvolvimentista que Ianni denomina de estratégia de
desenvolvimento nacional tem forte influência do pensamento cepalino, cujo
expoente nacional é Celso Furtado. No que tange ao debate da questão agrária a
lógica sustentada é de que foi possível desenvolver o capitalismo no Brasil
fundamentado no grande latifúndio. Essa tese, no âmbito da Cepal, é refutada
posteriormente por Oliveira (2006) em seu texto “Crítica à razão dualista”, no qual
sustenta que a forma capitalista brasileira se estabelece justamente sob essa
estrutura agrária.
A perspectiva para o período seguinte da história Nacional é o
fortalecimento da Ditadura civil-militar, o que Delgado (1985, 2001, 2012b, 2012a)
chama de desenvolvimentismo-estruturalista, tendo como maior expoente Delfim
Netto.
Não é de se estranhar, portanto, que o modelo capitalista consolidado no
Brasil seja o capitalismo monopolista fortemente vinculado aos interesses norte-
americanos. Capital monopolista é a fase imperialista do capital, isto é, o domínio
do capital financeiro que ocorre a partir da fusão do capital bancário com o capital
industrial, de modo que supera a fase concorrencial, emergindo os monopólios e
a estrutura oligopolística (BARAN; SWEEZY, 1966).
Para Netto (2001), no início da década de 1960 assiste-se a uma crise da
forma da dominação burguesa como resultado das demandas gestadas pelo
desenvolvimento do próprio padrão de desenvolvimento capitalista.
122

Aos estratos burgueses mais dinâmicos abriam-se duas alternativas: um


rearranjo para assegurar a continuidade daquele desenvolvimento,
infletindo as bases da sua associação com o imperialismo, pela via da
manutenção das liberdades políticas fundamentais ou um novo pacto
com o capital monopolista internacional (nomeadamente o norte-
americano), cujas exigências chocavam-se com posições tornadas
possíveis exatamente pelo jogo democrático. No primeiro caso, além de
conjunturais traumatismos econômicos, a reafirmação hegemônica da
burguesia haveria de concorrer com projetos alternativos (...) de direção
de sociedade. No segundo, ademais da garantia sem alterações
substantivas do regime econômico capitalista, estava dada a evicção, a
curto prazo, do problema da hegemonia, com a hipertrofia do conteúdo
coativo da dominação. Sabe-se em que sentido os setores burgueses
resolveram os seus dilemas: deslocaram-se para o campo da
antidemocracia (NETTO, 2001a, p. 26, grifo do autor).

A modernização da agricultura no Brasil ocorrerá, dessa feita, na relação


com o capitalismo monopolista, orientada pela parcela ultraconservadora da
classe burguesa e sob a Ditadura civil-militar. A repressão e o extermínio de
camponeses nesse período é documentada no livro “Lutas camponesas
contemporâneas: condições, dilemas e conquistas” (FERNANDES et al., 2009).

2.3. A modernização conservadora na agricultura no período pós-segunda


guerra

O ciclo de industrialização brasileira (1930-1980) apresenta-se sob


diversos matizes. A intensificação da consolidação do capitalismo no Brasil pós
década de 1930 forja as condições para a transformação técnico-econômica da
agricultura e ocorrendo, principalmente, no período de 1965-1980, considerado o
auge da modernização conservadora (DELGADO, 2001, 2012a).
A modernização conservadora da agricultura intensifica-se no período da
segunda guerra mundial. Os primeiros conflitos de terra no Brasil surgem em
meados da década de 1950 e, dentre eles, destacam-se as Ligas Camponesas
(CASTRO, 1965) e o confronto de Trombas e Formoso (CUNHA, 2009). Segundo
Delgado (2001), os conflitos são elementos centrais da “questão agrária”.
A tensão vivida pelo campo neste período pôde também ser sentida pelo
cancioneiro popular da época, com a música “Ladrão de Terra”, de Jacó e
Jacozinho, que conta a história da expulsão de uma família camponesa de suas
123

terras no Pontal do Paranapanema. O cancioneiro explicita, desse modo, o clima


do período: “Na cerca de minha terra, Quem mexer ninguém imagina, Os arame
são de bala, E os mourão de carabina”. Mas além da revolta individual o processo
de conflito no campo se organizou nesse período. Cabe explicitar brevemente o
problema.
Na década de 1950, no norte do Estado de Goiás, acontece a revolta de
Trombas. Pressionados pelo processo de grilagem de terras os camponeses
organizam uma resistência armada. O Estado apoia os fazendeiros e envia força
militar contra os camponeses que resistem e conseguem a posse das terras.
Organiza-se uma associação de trabalhadores e os conselhos de córregos.
Desse processo de luta, José Porfírio de Souza é eleito deputado Estadual pelo
PTB-PSB, posteriormente, desaparece em Brasília durante a Ditadura civil-militar.
O PCB participou ativamente desse processo e Porfírio militou no partido por 8
meses36 (CUNHA, 2009).
No mesmo período, o PTB ajuda a fundar o Movimento dos Agricultores
Sem Terra (MASTER), no Rio Grande do Sul. Brizola tenta implementar a reforma
agrária no Estado inserido na proposta nacional e popular (MELO, 2014).
Na região nordeste surgem as Ligas Camponesas sob a direção de
Francisco Julião, com a participação de Miguel Arraes, especialmente na região
de Pernambuco e da Paraíba37. A primeira organização das ligas camponesas
tem início no Engenho Galileia, Sociedade Agrícola e Pecuária dos Plantadores
de Pernambuco, que logo é conhecida como Liga Camponesa, inspirando o
movimento nessa região do país até ser interrompido pelo golpe civil-militar
(MELO, 2014).
Castro (1965) conta a história do nascimento das ligas camponesas. O
autor afirma que no Engenho Galileia os trabalhadores do engenho se
organizaram em associação para conseguir caixão para enterrar os mortos, uma
vez que, com a morte de um trabalhador, o caixão era emprestado pela prefeitura
para o velório, mas necessitava ser devolvido após o enterro do defunto. A
36
Sobre o tema, sugerimos um documentário: “Cadê Profiro”, disponível em
http://www.youtube.com/watch?v=-TCZb9O44kQ, dirigido por Hélio Brito. 2004, 52 min.
37
Sobre a organização das Ligas Camponesas na Paraíba, região de Sapé e o confronto com o
Estado, um excelente documentário não só pelo registro, mas pelo fato de ter sido interrompido
pela ditadura militar é “Cabra Marcado para Morrer”, de Eduardo Coutinho.
124

repressão do dono do Engenho à organização dos trabalhadores gerou o


acirramento do confronto e o movimento das Ligas Camponesas.
Na região de Minas Gerais os conflitos com fazendeiros foram liderados
por Chicão. O movimento ocorreu por que os fazendeiros tentavam expulsar os
posseiros das terras e descumpriram os acordos de divisão da produção (MELO,
2014).
Esses conflitos gerarão um debate sobre a “Questão Agrária” que,
segundo Delgado (2001, 2010), foi sistematizado especialmente na década de
1960. O autor identifica quatro centros de reflexão nesse período: 1) oriunda do
Partido Comunista Brasileiro (PCB), na qual destaca Prado Júnior. (196038,
196239), Ignácio Rangel e Alberto Passos Guimarães; 2) outra vinculada ao setor
reformista da Igreja Católica, que se opunha de alguma forma ao debate
comunista; 3) Uma reflexão oriunda da Comissão Econômica para a América
Latina (CEPAL), especialmente com Furtado, e 4) um grupo de economistas
conservadores da Universidade de São Paulo (USP), liderados por Delfim Netto e
por Roberto Campos.
As reflexões de Prado Júnior (1981) giram em torno do fato de que a
concentração de terra e as circunstâncias decorrentes dessa concentração
beneficiam uma reduzida minoria em detrimento de uma “elevada percentagem
de populações reduzidas a um dos mais baixos níveis de existência humana de
que se tem notícias no mundo de nossos dias” (PRADO, JÚNIOR, 1981, p. 16).
Para essa massa de trabalhadores era necessário melhorar as condições de vida,
de assalariamento e estendendo a legislação rural ao campo, como cerne de
respostas à questão agrária. O autor ressalta, todavia, a dualidade existente no
meio rural brasileiro que, de um lado, objetiva produtos de alta expressão
comercial e, de outro, a economia de subsistência.
Para Rangel (2011), a crise agrária é resultado simultaneamente da
superprodução (ou da escassez de produtos agrícolas, conforme o caso) e da
superpopulação, não sendo expressão de um superpovoamento e, sim, da
38
Texto contribuição para a análise da questão agrária no Brasil, publicado originalmente na
Revista Brasiliense, n.28, março/abril de 1960.
39
Texto nova contribuição para a análise da questão agrária no Brasil, publicado originalmente na
Revista Brasiliense, n.43, setembro-outubro, 1962. Para esse estudo utilizei as versões publicadas
no livro de Prado Júnior (1981) sobre a questão agrária.
125

formação do excedente de “mão de obra” não absorvido pelo enquadramento


institucional vigente no sistema econômico, de modo que a solução para o
problema seria a mudança do enquadramento institucional. Para quem,
sucintamente, o autor indica como soluções:

a) mudança da estrutura agrária, com o fito de criar condições mais


propícias para a expansão das atividades secundárias e terciárias do
complexo rural, reduzindo assim o excedente médio de bens agrícolas
levados ao mercado por cada família camponesa, o que permitira
aumentar o número de famílias no setor agrícola sem concomitante
aumento da oferta de bens agrícolas e sem quebra, antes com elevação,
do nível de vida das massas camponesas; b) incremento, alternativo ou
concomitante, do comércio exterior e da procura urbana de mão de obra,
com o objetivo de absorver a superpopulação agrícola e superpopulação
rural (RANGEL, 2011, p. 197).

O debate da Cepal protagonizado por Furtado (2011) é sistematizado no


documento do Plano Trienal de Desenvolvimento Econômico (1963-1965)
elaborado por Furtado em 1962, a pedido do presidente João Goulart, quando da
nomeação de Furtado como Ministro extraordinário do planejamento, ministério
que acabava de ser criado. O diagnóstico do plano sobre o problema agrário
informava sobre a pobreza rural e a concentração de terras que

todos os estudos e investigações sobre as causas do atraso relativo da


agricultura brasileira, da sua baixa produtividade, e da pobreza das
populações rurais, conduzem, unânime e inevitavelmente, à identificação
das suas origens na deficiente estrutura agrária do país, a qual se
constitui no mais sério obstáculo à exploração racional da terra, em
bases capitalistas e com um permanente aprimoramento tecnológico da
atividade agrícola, e que viria emprestar à produção agropecuária a
flexibilidade reclamada pelo processo de desenvolvimento da economia
nacional e pelo rápido crescimento da população.
O traço marcante dessa estrutura agrária arcaica e obsoleta, que conflita
perigosamente com as necessidades sociais e materiais da sociedade
brasileira, está na absurda e antieconômica distribuição de terras já
incorporadas ao mercado nacional, ainda que só de maneira formal
(FURTADO, 2011, p. 315).

O plano sustentava ser difícil conceber a produção razoavelmente


eficiente em áreas de terras com menos de 50 hectares, mas também que a
administração de propriedades com mais de 1.000 hectares impedia a
administração e a exploração racional dos estabelecimentos. O plano buscava
126

manter a taxa de crescimento do Produto Interno Bruto no nível de 7% ao ano e,


para tanto, a agricultura deveria realizar esforços para

a) Expandir a produção de alimentos em escala compatível com o


crescimento potencial da demanda, e ajustá-la às modificações na
estrutura do consumo ocasionadas pelo aumento da renda da
população; b) Corrigir as distorções e deficiências observadas no setor
especializado em produtos de exportação; c) Aumentar a produção e a
qualidade das matérias-primas para o mercado interno. (FURTADO,
2011, p. 331).

As propostas do Governo João Goulart, portanto, previam a ampliação do


direito às terras dos posseiros, arrendatários e trabalhadores agrícolas por meio
da desapropriação de terras consideradas necessárias à produção de alimentos,
“que não sendo utilizadas ou que estejam sendo utilizadas para outros fins, com
rendimento inferiores a média estabelecida regionalmente” (MELO, 2014).
Segundo Delgado (2001), o debate da igreja foi o menos sistematizado,
estava presente em cartas e nos documentos internos, denunciava a injustiça
social e a exclusão social. Esse debate exerceu significativa influência no
contexto político e social da época e teve importante papel na organização do
sindicalismo rural brasileiro, bem como na conceituação da propriedade fundiária
legitimada pelo princípio da função social. “Por outro lado, pesou fortemente no
discurso e na prática eclesial uma disputa de espaço com a esquerda
protagonizada pelo PCB, cujas estratégias de organização dos trabalhadores
rurais e de defesa da Reforma Agrária foram assumidas competitivamente pelo
episcopado” (DELGADO, 2001, p. 160).
O quarto elemento sistematizado por Delgado (2001) é o debate da
economia da USP, especialmente comandando por Delfim Netto, que publica no
período, vários textos sobre a questão, escolhendo na leitura de Delgado
simultaneamente “um foco para ataque, uma leitura para a Reforma Agrária e
uma proposta de modernização agrícola que mais adiante dominaria o debate
agrário dos anos 70 e 80” (DELGADO, 2001, p.161).
A tese a ser refutada pelos uspianos é a tese cepalina, explicitada no
Plano Trienal de 1963. A “questão agrária”, elaborada pela tese cepalina é
diferente da elaborada por Prado Júnior. Para os cepalisnos, a “questão agrária”
127

diz respeito à adequação da demanda e da oferta agrícola na agricultura. A busca


dos economistas da USP é demonstrar, dentre outros aspectos, que a estrutura
agrária e as relações de trabalho no meio rural não são problemas relevantes
para o desenvolvimento econômico, uma vez que as condições para tal estavam
cumpridas “a saber: liberação de mão de obra a ser utilizada no setor industrial,
sem diminuir a quantidade produzida de alimentos; criação de mercado para os
produtos da indústria; expansão das exportações; financiamento de parte da
capitalização da economia!” (NETTO, 1963, 85 apud DELGADO, 2001, p. 161).
O debate se desloca, contudo, para o lugar da agricultura no
desenvolvimento econômico. Delgado (2001) ressalta que a tese de Delfim Netto
é a tese da “modernização sem reforma” e foi o caminho escolhido pelo golpe
civil-militar que, dentre inúmeras outras coisas, cortou o debate da questão
agrária pelo “argumento” da força.

É preciso situar o pensamento econômico hegemônico no Brasil a partir


do golpe de 1964 para entender o debate sobre ‘agricultura e
desenvolvimento’, todo ele calcado no pensamento funcionalista norte-
americano com respeito aos papéis clássicos da agricultura no
desenvolvimento econômico. As chamadas cinco funções da agricultura:
liberar mão de obra para a indústria; gerar oferta adequada de alimentos;
suprir matérias-primas para indústrias; elevar as exportações agrícolas;
transferir renda real para o setor urbano estavam impregnadas na
imaginação dos economistas conservadores da época, e também na de
alguns críticos do sistema, de forma que somente se reconheceria
problemas ou crise agrícola onde algumas dessas funções não
estivessem sendo sistemática e adequadamente atendidas (DELGADO,
2001, p. 161-162).

Dentre os economistas uspianos, cabe destacar ainda, Roberto Campos,


Ministro do Planejamento e da Coordenação Econômica, no primeiro governo da
ditadura, o governo Castello Branco (1964-1967), que trabalhou na elaboração do
Estatuto da Terra. O Estatuto colocava em curso a direção da política do governo
Castelo Branco no sentido de transformar as relações no campo numa forma
particular de desenvolvimento do capitalismo (MELO, 2014).
A perspectiva da “reforma agrária” para Roberto Campos deveria fugir da
influência socialista e coletivista e fundar-se: 1) sobre a modernização capitalista
das relações no campo; 2) sobre a perspectiva de que a desapropriação das
terras não deveria ser obecessivamente considerada o único instrumento da
128

reforma agrária; 3) o foco era transformar o latifúndio improdutivo em produtivo,


isso poderia ser conseguido com a taxação das terras improdutivas; humanização
das relações no campo; investimento em crédito, assistência e política de preços.
O Estatuto da Terra não colocou limites para a propriedade rural (MELO, 2014).

Porém, o Estatuto da Terra é muito mais drástico em relação à pequena


propriedade do que ao latifúndio. Campos com seu Estatuto da Terra
pretendia o estabelecimento do negócio empresarial no meio rural. O
minifúndio deveria tornar-se empresa. Do mesmo modo, o latifúndio
deveria ser submetido às pressões fiscais, mediante impostos altos para
que a utilização da terra obedecesse a um padrão empresarial (MELO,
2014, p. 191).

Segundo Melo (2014), o Estatuto da Terra, entretanto, não foi


completamente implementado ainda mesmo sob o governo Castelo Branco,
sofrendo modificações em função das forças contrárias no interior do próprio
governo. Os demais governos da ditadura civil-militar desconsideraram o
problema agrário. As desapropriações não foram realizadas, nem o imposto
territorial rural tornou-se inexpressivo.
A modernização conservadora40 no campo, contudo, foi executada. Para
se implementar era necessário, “em primeiro lugar, do nível técnico da mão de
obra; em segundo, do nível de mecanização; em terceiro lugar, do nível de
utilização de adubos; finalmente, de uma estrutura agrária eficiente” (DELGADO,
2001, p. 163).
É muito importante ter em conta que a modernização conservadora na
agricultura brasileira implementada pela ditadura civil-militar nasce com a derrota
do movimento pela reforma agrária. A integração técnica entre indústria e

40
Segundo Melo (2014, p. 198, grifos do autor), a modernização que ocorreu no campo no período
da ditadura de modernização excludente “evidencia-se (…) uma vez que a progressividade da
produção não significou a extensão na melhoria social. Ao contrário, o incremento produtivo
resultou na exclusão de parte dos trabalhadores e pequenos proprietários, visto que as mudanças
estiveram centradas na produção capitalista. Sendo assim, a modernização efetivada não pode
ser nomeada de conservadora, mas sim excludente, porque tal transformação não foi apenas
conservante das desigualdades. Na medida em que se modernizou as relações de produção no
campo, afetou-se os meios de subsistência e o modo de vida de camponeses e pauperizados.
Ademais, essa mudança impediu a incorporação de parte expressiva da força de trabalho ao
progresso social, ao recusar a extensão dos direitos trabalhistas ao proletariado rural. Portanto,
reconhecer que houve o processo de exclusão implica considerar que as desigualdades foram
ampliadas, o que resultou no agravamento do pauperismo.
129

agricultura ocorreu na Europa Ocidental e nos EUA no início do século XX e foi


estabelecida no Brasil com o golpe de 196441, articulada sobre o Sistema
Nacional de Crédito Rural, a partir de 1965 (DELGADO, 2012a).
A expressão “agroindústria”, segundo George (1978), ganha vulto em
meados da década de 1950

e coincide com a viragem para a organização vertical, por parte de certas


companhias gigantes, capazes de controlar toda a produção de
alimentos, do campo à mesa. Essas grandes organizações têm o que
gostam de chamar o ‘conceito do mercado total’ e o estão aplicando
tanto nos países ricos como nos subdesenvolvidos. O professor Ray A.
Golberg, da Escola de Administração de empresas, de Harvard,
escolheu como sua especialidade a ‘agroindústria’. Define-a como ‘toda
a produção de inputs agrícolas, operações de produção nas fazendas, e
o armazenamento, processamento e distribuição de mercadorias
agrícolas e alimentos processados (GEORGE, 1978, p. 149).

Delgado (2012) reforça que a transformação técnica na produção rural e a


constituição dos complexos agroindustriais, no Brasil, são processos históricos
interligados, mas distintos no tempo e no espaço. No que tange à transformação
técnica, já nas primeiras décadas pós-segunda guerra observa-se o incremento
da frota de tratores e do uso de fertilizantes químicos. A utilização de tratores
aumenta de 8.372 unidades em 1950, passando para 61.345 unidades em 1960,
um aumento de 7 vezes, e para 143.309 unidades em 1970, ou seja, mais que o
dobro da década anterior.
Isso responde a uma transferência de tecnologia já apontada
anteriormente por Marini (2005) na análise do capitalismo depende. Segundo
George (1978), no pós-guerra, muitas empresas Americanas começam a se
especializar em produtos agrícolas, como fertilizantes, pesticidas e tratores. É o
caso da Massey-Ferguson que declara estar o Brasil dentre os países que mais
geram lucros. Para a autora, o que importa na análise dessas empresas é que

No contexto das crises mundiais de fome, são as que usam a terra e o


trabalho do país que as ‘acolhe’, para produzir alimentos – raramente pra

41
Algumas mudanças que se processam na agricultura do país pós-64 já estavam em curso na
agricultura paulista (DELGADO, 2012a).
130

atender às necessidades locais, quase sempre para exploração aos


mercados dos países desenvolvidos (GEORGE, 1978, p.150).

Com a indústria processadora de produtos rurais, porém, informa Delgado


(2012a), o setor agrícola, a indústria de bens de capital e os serviços de apoio
(rede de transporte e abastecimento) se constituem em complexos ou sistemas
agroindustriais interligados. Esses sistemas já estavam amadurecidos nos EUA
na década de 1960, sendo consolidado no Brasil ao longo do tempo.
George (1978, p. 158) destaca que

os fornecedores de alimentos processados escolhem cuidadosamente os


seus mercados. Também investem em produção local, em países com
renda per capita relativamente alta, onde os consumidores possam ser
ensinados a preferir alimentos semielaborados a artigos naturais. Esses
consumidores serão, assim, capazes de absorver mensagens
publicitárias, o que implica certo nível de alfabetização e certo número de
aparelhos de televisão. Portanto, os principais mercados para os
processadores de alimentos norte-americanos são o Canadá, a Grã-
Bretanha, a Alemanha Federal, o México e o Brasil.

Delgado (1985) apresenta uma interpretação do que foi esse período de


modernização da agricultura brasileira. Para o autor, um período marcado pelo
crescimento acelerado da industrialização, urbanização e um forte comércio
exterior agrícola. Modifica-se a base técnica da produção rural, o incremento de
insumos (fertilizantes, defensivos, corretivos, sementes melhoradas, combustíveis
líquidos), maquinário agrícola (tratores, colhedeiras, implementos, equipamentos
de irrigação, dentre outros) e consolidação de um sistema de crédito rural. Por
outro lado, ocorre uma integração entre a produção primária de alimentos e
matérias-primas e os ramos industriais. Soma-se a esse processo a manutenção
da estrutura da propriedade territorial, ou seja, é realizada sob a forma do
latifúndio em detrimento da pequena propriedade.
Esse processo que se intensifica até a década de 1970 caracteriza-se por
uma intensa intervenção estatal nesse setor produtivo, como: montagem de um
sistema de crédito e das políticas de comércio exterior e de preço; montagem de
um aparato de pesquisa e desenvolvimento voltado para o desenvolvimento do
sistema agroindustrial, cujo matiz é desenvolvimentista-estruturalista. São
131

exemplos instituições como a Empresa Brasileira de Assistência Técnica e


Extensão Rural (Embrater), funcional entre 1975 e 1990, a Empresa Brasileira de
Pesquisa Agropecuária (Embrapa), criada em 1973; e a estruturação de uma
política fundiária que favorece a propriedade rural.
Para Delgado (1985), a integração do complexo agroindustrial não ocorre
apenas no que tange ao aspecto da integração técnica agricultura-indústria.
Um outro eixo de análise, tão importante quanto a integração técnica do
complexo produtivo é o que o autor denomina de integração de capitais. Abrange
a diversificação e a ampliação das aplicações do grande capital, que persegue
também a valorização financeira dos títulos de propriedade. O capital financeiro,
que “comanda da órbita financeira a centralização e mobilidade do capital,
organiza monopolicamente também os mercados agrícolas e diversifica as suas
aplicações multissetorialmente em busca de uma taxa média de lucro do
conglomerado” (DELGADO, 1985, p. 13). Cabe notar:

O mesmo processo que integra capitais, rejeita crescentemente uma


massa não associável, situada num limite entre 80 e 90% do número de
estabelecimentos rurais. Esses estabelecimentos – situados numa faixa
de contribuição produtiva baixa, em média por pequeno produtor –
albergam a esmagadora maioria da forma de trabalho rural em
condições de vida muito precárias. As portas que se lhes abre
alternativamente no sentido de assalariamento dessa força de trabalho
no restante da economia rural, é muito estreita do ponto de vista
quantitativo e igualmente precária sob o aspecto das condições de vida e
de trabalho (DELGADO, 1985, p. 233, grifo do autor).

Mészáros (2002) afirma que a qualidade de controle sociometabólico não


tolera a intrusão de qualquer princípio de regulação socioeconômica que restrinja
sua dinâmica voltada para a expansão. A expansão é uma maneira
absolutamente necessária de deslocar os problemas e as contradições que
emergem do sistema do capital.
Ressalta-se que a lógica do processo de crescimento capitalista
persegue, antes de mais nada, sua valorização, em um processo integrado que
contempla simultaneamente mercados produtivos e financeiros, que busca abrir
novas fronteiras, revolucionar a técnica e os produtos. Deixa um lastro de
deterioração da vida de pequenos produtores e trabalhadores assalariados. Esse
132

é o movimento típico do capital que submete as mediações de segunda ordem


como uma compressão da qual na há fuga. “Pois elas se interpõem, como
‘mediações’, em última análise destrutiva da ‘mediação primária’, entre os seres
humanos e as condições vitais para a sua reprodução, a natureza” (MÉSZÁROS,
2002, p. 179).

Por seu turno, a ‘modernização conservadora’ avançou como um caudal,


erodindo barreiras, destruindo estruturas produtivas primitivas,
concentrando frutos do processo técnico, num movimento de profunda e
historicamente acelerada rejeição do contingente primitivo de população
rural. A sua crise, que coincide e reflete a crise mais geral da economia,
leva a uma pressão social aguda da massa de população sobrante em
busca de condições humanas mínimas de subsistência, pressão essa
que se traduz, principalmente, como um fenômeno urbano de
subemprego ou desemprego aberto ou pela demanda exacerbada em
busca de proteção dos benefícios do estado-previdência (DELAGADO,
1985, p. 12).

A crise desse projeto revelada no final da década de 1970 coincide com a


crise mais geral do capital, revela problemas econômicos e sociais graves, que se
consubstanciam em uma crise de crédito com efeitos desestabilizadores sobre a
produção agrícola e sobre o complexo agroindustrial como um todo.
A situação econômica do país ao final da ditadura civil-militar é de relativa
desorganização provocada pela recessão de 1982-1983. Para responder ao
quadro econômico, Delfim Netto lança uma estratégia de geração de saldos
comerciais ancorados

basicamente na expansão das exportações de produtos básicos e


agroprocessados, que se ampliam pela nova fronteira agrícola da região
Centro-Oeste. Os saldos comerciais externos, que praticamente haviam
desaparecido de nossa Balança Comercial no período da liquidez
internacional folgada, comparecem agora como variável-chave do
ajustamento externo. Esses saldos comerciais são as principais fontes
de divisas de que o governo fará uso para enviar ‘renda líquida ao
exterior’, requerida pelos credores internacionais (DELGADO, 2010,
p.90).

O período compreendido entre meados dos anos 1980 e os anos 1990 é


um período de transição de dois projetos de economia política voltada para o
setor agrário, o da modernização conservadora e o do agronegócio que se
133

consolida dos anos 2000 para cá. Para Delgado (2012a), dois fatos demarcam a
exaustão do modelo de crescimento econômico do regime civil-militar: a crise
cambial de 1982 e a Constituição Federal de 1988.
A crise cambial levou a medidas conjunturais de ajuste econômico que
configurarão o embrião do sistema de intensificação de exportações de
commodities que se consolidará nos anos 2000. Entre os anos 1982-1983 Delfim
Netto lança uma estratégia de geração de saldos comerciais via expansão de
exportações de produtos básicos e agroprocessados que avançam pela nova
fronteira agrícola do Centro-Oeste (DELGADO, 2001, 2012a).

Mas como esses saldos comerciais são remetidos ao exterior por


exigência das condições comerciais a qualquer custo não é compatível
com o crescimento da demanda interna, que em última instância afetaria
negativamente esses saldos. Por isso, não pode haver recuperação
sustentável no conjunto da economia, mas tão somente de alguns
setores envolvidos nesse arranjo macroeconômico – que inclui o setor
primário da economia. (DELGADO, 2012a).

Ressalta-se que no início da década de 1980 a abertura para o capital


estrangeiro já estava, todavia, consolidada no país. Nesse período, a ditadura
militar inicia um movimento de distensão e a luta popular volta a ganhar vulto e
publicização. Especialmente o movimento social vinculado a setores estratégicos
da economia, como os sindicatos de metalúrgicos do ABC paulista. No meio rural,
os conflitos permaneciam em função do êxodo de 30 milhões de brasileiros que
ocorreu no período e que não se deu passivamente. Muitos trabalhadores
morreram “seja atingidos pela fome na condição de retirantes, seja pela bala do
latifúndio ou da moderna empresa capitalista, na condição de sem-terra”
(SANT’ANA, 2012, p. 24).
A luta pela terra, presente em toda a história brasileira, ganha
particularidade histórica na década de 1980, pela criação do Movimento dos
Trabalhadores Sem-Terra (MST) que unifica diversas bandeiras de luta e ganha
contornos nacionais; a reorganização da Confederação dos Trabalhadores da
Agricultura (Contag) e ação da Comissão Pastoral da Terra (CPT), vinculada à
Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), foram relevantes nos
134

embates e conflitos no campo. Destaca-se ainda, o movimento grevista dos


trabalhadores rurais de Guariba42 (SANT’ANA, 2012).
Delgado (2012) acrescenta que, no que diz respeito aos trabalhadores do
corte da cana com carteira assinada, o número de pedidos de auxílio doença salta
de 2.300 casos no ano 2000 para 6.257 em 2005, um aumento de 172%. No
trabalho industrial do açúcar e do álcool a elevação foi de 1,755 casos em 2000
para auxílio doença e 8.381 em 2005, um aumento de 377%.
Nesse período, em 1985, é lançado o I Plano Nacional de Reforma
Agrária (PNRA). Numa tentativa de retomar as questões postas no debate sobre a
reforma agrária, o plano, todavia, retirava o foco da propriedade da terra ao deixar
lacunas no mecanismo de desapropriação de terras. O plano quase não saiu do
papel. Ao final do governo Sarney em 1989, cerca de 1% das famílias previstas
haviam sido assentadas (SANT’ANA, 2012).
A Constituição Federal de 1988 registra um traço de continuidade com o
Estatuto da Terra no que se refere à função social e algumas diretrizes para a
política agrária e fundiária com referência na política do período da ditadura civil-
militar. Porém, avança ao apontar a proteção ao trabalho rural, limites ao direito
da propriedade fundiária, que se colocam de forma distinta do modelo anterior.
Esses direitos previstos na constituição, como ademais, os direitos
sociais, de forma geral, sofrerão o influxo da implementação de medidas não
liberais (ANDERSON, 2005) no marco de uma contrarreforma do estado na
política social (BEHRING, 2003, 2005) que reorientou a política estatal para a
minimização do Estado e a restrição dos direitos previstos na Constituição.
Delgado (2012a, p.83) identifica nesse período três vertentes que
orientam a política agrícola-agrária: “a herança do projeto de ‘modernização
conservadora’ do período militar; a pressão neoliberal por desregulamentação,
livre comércio e estado mínimo; e a própria vertente normativa do texto
constitucional”.
Nos governos Collor de Mello e nos dois governos FHC são desmontados
os institutos por produtos como o IAA, o IBC e CTRIN-DTRIG, a Embrater, e

42
O movimento eclode em 1985 e é considerado um marco para a organização dos trabalhadores
rurais da região. O conflito alastrou-se por todo o Estado de São Paulo e teve forte repressão dos
poderes públicos. Dentre as reivindicações estavam “a exigência do final do sistema de sete ruas
para o corte de cana, melhorias salariais e condições dignas de trabalho (SANT’ANA, 2012, p. 25).
135

fundem-se três empresas, a CFP, a COBAL e a CIBRAZEM na Conab. Opera-se,


então, o desmonte de uma estrutura de Estado construída desde a Era Vargas e
consolidada no governo civil-militar. Por outro lado, se consolidam os Planos
Anuais de Safra43, planejamento conjuntural da produção e da demanda agrícola
(DELGADO, 2012a).

O mecanismo pelo qual se processou a desmontagem da antiga política


agrícola e comercial, entre 1986 e 2003, é um capítulo relativamente
obscuro do chamado reconhecimento de passivos contingentes, ou
‘esqueletos’ na linguagem popular, que na realidade significa a
transferência para a dívida pública mobiliária federal, de uma enorme
quantidade de débitos privados contraídos junto a bancos públicos ou
bancos privados, sob as condições anteriormente vigentes da política
agrícola e comercial. Esses passivos foram assim transformados,
mediante generosa emissão de títulos da dívida pública, tendo em vista
realizar ‘secularização’ de dívidas vencidas ou perdas e desvios para o
setor rural, mas para vários setores – bancos oficiais, bancos privados,
fundos de pensão privados, INPS/IAPS, BNH, setor elétrico, setor
ferroviário (DELGADO, 2012a, p. 86).

Em 1998 ocorre outra crise de liquidez internacional que afeta a economia


brasileira provocando fuga de capital e forçando mudanças no regime cambial.
“Dessa época em diante, a política do ajuste externo se altera. Recorre-se
forçosamente aos empréstimos do FMI em três sucessivas operações de socorro,
em 1999, 2001 e 2003”, com implicações daí decorrentes (DELGADO, 2001 ).

Nesse contexto, a agricultura capitalista, autodenominada de


agronegócio, volta às prioridades da agenda da política macroeconômica
externa e da política agrícola interna. Isso ocorre depois de forte
desmontagem dos instrumentos de fomento agrícola no período
precedente, incluindo crédito, preços de garantia, investimento em
pesquisa e investimento em infraestrutura comercial, como serviços
agropecuários, portos e malha viária. Isso tudo, aliado à relativa
desvantagem no comércio internacional durante o período do real
sobrevalorizado, adiou o relançamento da modernização técnica sem
reforma para o início do século XXI (DELGADO, 2010, p. 93).

43
“Os ‘Planos Anuais de Safra’ preparados todos os anos pelo Ministério da Agricultura em
interação com o Ministério da Fazenda e anunciados no início do segundo semestre, contêm, no
formato que se mantém há mais de 45 anos, a previsão anual do crédito a ser concedido e as
respectivas condições de financiamento, os preços da garantia, as condições do seguro agrícola e
demais inovações legais pertinentes ao calendário agrícola do ano safra que se está planejando
(DELGADO, 2012a, p. 101).
136

Delgado (2010) observa que o agronegócio na formatação brasileira é


uma associação de grande capital agroindustrial à grande propriedade fundiária.
Essa associação realiza uma aliança estratégica com o capital financeiro,
“perseguindo o lucro e a renda da terra, sob patrocínio de políticas de Estado”
(DELGADO, 2010, p. 93).
No que diz repeito à composição fundiária, já no início do seu governo,
Lula lança o II Plano Nacional de Reforma Agrária, e, nele consta o diagnóstico da
situação da terra, em que o resultado era de 1,7% dos estabelecimentos rurais,
ao todo 69.123, cujas áreas maiores que mil hectares, correspondiam a 43,7% da
área fundiária nacional o que equivale à 183.564,299 hectares. Na outra ponta, de
estabelecimentos com até 25 hectares, o plano registrava 2.440.810 unidades,
cuja área correspondia a 26.601.982 hectares, ou seja, 6,3% da área fundiária.
A concentração fundiária também é um elemento relevante para se
compor o problema da relação de trabalho no campo. Uma grande quantidade de
famílias que vivem em pequenas propriedades acaba por prestar serviços, ou se
integrar na rede de produção da grande fazenda por não ter outra forma de
sobreviver.
É fundamental apreender essa dinâmica segundo a qual o agronegócio
responde às crises do capital e sua demanda por acumulação, e como o Estado
brasileiro estrutura-se para atender ao agronegócio, em primeira instância, e ao
movimento do capital fundamentalmente. A política de governo estruturada para
atender ao agronegócio inicia-se já no segundo governo FHC com ações que
convergiram para

(1) programa prioritário de investimento em infraestrutura territorial com


‘eixos de desenvolvimento’, visando à criação de economias externas
que incorporassem novos territórios, meios de transporte e corredores
comerciais ao agronegócio; (2) explícito direcionamento do sistema
público de pesquisa agropecuária manifesto pela reorganização da
Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (EMBRAPA), a operar em
perfeita sincronia com empresas multinacionais do agronegócio; (3)
regulação frouxa do mercado de terras, de sorte a deixar fora do controle
público as ‘terras devolutas’, mais aquelas que declaradamente não
cumprem a função social, além de boa parte das autodeclaradas
produtivas; (4) mudança na política cambial, que ao eliminar a
sobrevalorização tornaria o agronegócio (associação do grande capital
com a grande propriedade fundiária – sob mediação estatal) competitivo
no comércio internacional e funcional para a estratégia do ‘ajustamento
constrangido’ (DELGADO, 2010, p. 94).
137

Esse ajustamento constrangido encontra espaço de expansão, sobretudo,


na produção de grãos para exportação, especialmente milho e soja.
Desenvolve-se no país também uma agricultura fundada no campesinato,
na agricultura familiar não integrada às cadeias do agronegócio, operando numa
estratégia diferente da tipicamente capitalista. Cria-se uma economia de
subsistência, entendida como “o conjunto de atividades econômicas e relações de
trabalho não assalariado no meio rural que propiciam meios de subsistência a
parte expressiva da população rural” (DELGADO, 2010, p. 96).
Por outro lado o padrão tecnológico envolvido na produção de
commodities alcançado pelo agronegócio limita empregos, expressão da relação
capital-trabalho, e que é muito baixa na produção via agronegócio. A economia do
agronegócio, todavia, possui um significado contundente para a população
disponível para esse trabalho, seja no meio rural ou nas pequenas cidades do
país até 20 mil habitantes. Estas cidades, segundo o censo 2010, correspondem
a mais de 32 milhões de habitantes, cerca de, 16% da população nacional. No
censo de 2002 correspondia a 35% da população, ou seja, em uma década a
população dos pequenos municípios reduziu-se à metade – esse é um dado de
continuidade de êxodo rural, de concentração de população crescentemente nos
aglomerados urbanos (IBGE, 2010).
O gráfico 2.1 apresenta a evolução histórica da relação entre população
rural e urbana no Brasil. Nota-se como em 60 anos inverteu-se e acentuou-se a
característica populacional quanto ao domicílio – essa inversão representa um
impacto para as políticas públicas urbanas, mas, sobretudo, para a produção de
alimentos via pequena propriedade rural.
138

Gráfico 2.1: Série histórica da distribuição da população brasileira segundo a situação de


domicílio - 1950-2010.
180.000,00
160.000,00
140.000,00
120.000,00
100.000,00
80.000,00
60.000,00
40.000,00
20.000,00
0,00
1950 1960 1970 1980 1991 2000 2010

População Urbana População Rural

Fonte: IBGE, censo demográfico 1950/2010. Até 1991, dados extraídos de estatísticas do século XX, Rio de janeiro: IBGE,
2007 no anuário estatístico do Brasil, 1993, vol. 53, 1993. Elaboração própria

Ocorre que, sob o novo processo de modernização técnica da


agropecuária, com o incremento do capital financeiro em uma aliança que
recoloca o grande capital e a grande propriedade fundiária tutelada pelas políticas
públicas, favorece a desmobilização das forças sociais, gera a ampliação de um
“setor de subsistência” e uma massa de trabalhadores desocupados que, para
Delgado (2010), recoloca uma grave e complexa questão agrária. O movimento
camponês se divide, com parte dos setores da pequena agricultura associados ao
agronegócio.
Esse confronto entre duas perspectivas para as respostas à questão
agrária no Brasil, ou seja, a defesa da “reforma agrária” e a defesa da
modernização técnica, é recolocada no segundo governo de Fernando Henrique
Cardoso e se mantém nos governos petistas

quando se constitui uma estratégia de relançamento dos grandes


empreendimentos agroindustriais apoiados na grande propriedade
fundiária, voltados à geração de saldos comerciais externos expressivos.
Essa estratégia, que estivera abandonada pela política macroeconômica
do primeiro governo Cardoso, é adotada por pressão do constrangimento
externo do balanço de pagamentos. Ela relança uma política agrícola de
máxima prioridade ao agronegócio, sem mudança na estrutura agrária
(DELGADO, 2010, p. 81).
139

O esforço de reorganização cambial dos anos 2000 encontrará um


comércio mundial muito receptivo a alguns commodities, dentre eles, (soja e
milho), açúcar-álcool, carnes (bovina e de aves), produtos que ganham
notoriedade da exportação brasileira. Cabe notar, em detrimento da plantação de
alimentos básicos para a população, como arroz e feijão, mandioca que
apresentam queda na área plantada de 1990 para cá, ao contrário da soja, milho
e cana (CARNEIRO et al. 2015). A tabela com os números absolutos dessa
produção encontra-se no anexo 1.
O gráfico 2.2 mostra a evolução da produção agrícola brasileira com
produtos selecionados, entre os anos 1995 e 2013, que correspondem aos dois
primeiros governos FHC, os dois governos Lula e o primeiro governo Dilma
Rousseff. É notório o crescimento da produção de milho e soja, enquanto a
produção de arroz e feijão segue estável ou apresentando queda. Isso ocorre em
função da demanda por milho e soja no comércio internacional, uma vez que os
grãos atendem: à industria de alimentos processados, à ração para animais, à
produção de biocombustíveis. Observa-se ainda que o quantitativo populacional
no Brasil aumenta de 147 milhões em 1991 para 191 milhões em 2010 e está
projetada para 204 milhões em 2015; o que implica na necessidade de
importação de arroz e feijão para suprir a demanda interna de alimentos (IBGE,
2014).
Gráfico 2.2. Produção agrícola brasileira de produtos selecionados – 1995 a 2013

Em toneladas
90.000.000
80.000.000
70.000.000
Arroz (em casca)
60.000.000
Feijão (em grão)
50.000.000
Milho (em grão)
40.000.000
30.000.000 Soja (em grão)

20.000.000 Mandioca

10.000.000 Café (em grão)


0
1995
1996
1997
1998
1999
2000
2001
2002
2003
2004
2005
2006
2007
2008
2009
2010
2011
2012
2013

Fonte: IBGE – Produção agrícola municipal.


Elaboração: Dr. Marcelo Gomes Ribeiro (IPPUR-UFRJ)
140

O gráfico 2.3 mostra a produção de cana-de-açúcar no Brasil entre os


anos 1995 e 2003. Observa-se que em 2003 a produção estava na ordem de 300
milhões de toneladas e atinge quase 800 milhões de toneladas nesse mesmo
ano, dez vezes mais a produção de milho. Não seria exagerado afirmar que a
cana segue como um grande expoente na produção nacional.

Gráfico 2.3 - Produção de cana-de-açúcar brasileira – 1995 a 2013

Em toneladas
900.000.000
800.000.000
700.000.000
600.000.000
500.000.000
400.000.000
300.000.000
200.000.000
100.000.000
0
2000
1995
1996
1997
1998
1999

2001
2002
2003
2004
2005
2006
2007
2008
2009
2010
2011
2012
2013
Fonte: IBGE – Produção agrícola municipal.
Elaboração: Dr. Marcelo Gomes Ribeiro (IPPUR-UFRJ)

A expressão da cana também pode ser observada na área plantada, que


chega em 2013 à 11 milhões de hectares. A produção de soja ocupa 22,7 milhões
de hectares, a de milho 13,6 milhões, a de arroz 2,8 milhões (chegou a 4 milhões
de hectares em 2005), a de feijão 3,7 milhões (chegamos a 4,4 milhões em 2002)
e a de mandioca 1,8 milhões de hectares (já atingimos 2,1 em 2009) (IBGE, Sidra,
2015). Parte da ênfase na produção da cana está vinculada a utilização do
produto para a produção de agrocombustíveis, especialmente o etanol44
(WILKINSON; HERRERA, 2008).

44
Wilkinson e Herrera (2008, p. 10) realizaram um estudo sobre o impacto dos agrocombustíveis e
informaram que a produção de álcool no Brasil data de 1920. Durante a segunda guerra mundial,
dada a dificuldade de importação de combustível fóssil refinado, o álcool era adicionado à gasolina
para uso em veículos leves. Posteriormente, após 1975, o governo Geisel lança o Pró-Álcool que
impulsiona a produção de álcool no país, inicialmente utilizado em veículos leves especialmente
adaptados para esse fim. Por esse período 80% dos produtos a base de petróleo utilizados no
Brasil vinham do Oriente Médio. O setor automobilístico respondeu à demanda e em meados da
década de 1980, cerca de 90% dos automóveis vendidos consumiam álcool. Na segunda metade
da década, todavia, os preços do petróleo caíram drasticamente. O preço do açúcar no mercado
141

A plantação de cana-de-açúcar redefine o uso da terra, assim como a da


soja, milho e pecuária (gado de corte), que se expande em detrimento da
produção de laticínios e plantações de laranja e outras culturas. São elementos
fundamentais para a compreensão da redução da alimentação humana a poucos
produtos, quase sempre a base de milho (WILKINSON; HERRERA, 2008;
POLLAN, 2007, 2008, 2010).
No que se refere à renda da terra, Delgado (2012a) chama a atenção
para a valorização da terra em curso do ano 2000 para cá. Segundo dados do
autor, a terra valorizou-se 10,16% no Brasil/ano, de 2000 a 2007. A renda da terra
é influenciada pelo preço das mercadorias que podem ser produzidas na terra ou
demais rendas possíveis que afetam o valor da terra, logo, a mudança na
demanda por commodities interfere diretamente na renda fundiária e no preço das
terras rurais.

Mas a dinâmica de expansão da renda fundiária para novos e antigos


territórios não é estritamente mercantil, a menos que se considere a terra
como outra mercadoria qualquer, e sua oferta um caso particular de
produção econômica, à semelhança da oferta de quaisquer mercadorias.
Mas como não são teoricamente consistentes essas hipóteses, porque a
terra é recurso natural não produzido pelo homem e sua propriedade
privada caracteriza-se como monopólio de recurso natural, juridicamente
regulado, a renda oriunda da posse ou propriedade é claramente uma
arbitragem público-privada, de captura da renda social, sob regulação
prévia do regime de propriedade (DELGADO, 2012a, p. 99).

Além da renda fundiária, outro elemento importante para a apreensão da


dinâmica da modernização da agricultura brasileira é o Sistema Nacional de
Crédito Rural (SNCR), implantando em 1965 com a Lei do Crédito Rural (Lei

mundial se tornou atraente e a crise econômica no Brasil tornou cada vez mais difícil os subsídios
governamentais à produção de álcool. A produção de cana-de-açúcar foi desviada para a
exportação de açúcar e a falta de álcool no país impactou a indústria de automóveis, até ser
interrompida em 1990. “A produção de cana-de-açúcar aumentou muito em resposta aos
incentivos do programa Pró-Álcool, gerando fortes críticas em torno da concentração de terras, da
expulsão de agricultores familiares, da substituição de culturas alimentares, do tratamento de
trabalhadores rurais e da degradação de comunidades locais pela monocultura em larga escala. A
oposição também centrou-se nos efeitos ambientais negativos da ampliação da cultura da cana-
de-açúcar – em função do uso mais intensivo de insumos químicos, das técnicas de queimada
antes da colheita e da poluição de fontes d’água pelo vinhoto. Todas essas questões resurgem à
luz da atual expansão da produção de álcool”. Os problemas com a produção de petróleo e o
contexto dos acordos do Protocolo de Kyoto impulsionam a busca de combustíveis alternativos. A
indústria de automóveis, por sua vez, responde com o carro flex, introduzido em 2003, que
equivale à aproximadamente 80% das vendas de automóveis.
142

n.4829, de 5 de novembro de 1965), em vigor até a realização de diferentes


arranjos financeiros que repassam recursos públicos para as atividades do setor
rural com subsídios de juros e outras condições favoráveis de crédito bancário
legal, em outras palavras, o financiamento para fomento da modernização da
agricultura é repassado aos cofres públicos.
Esse repasse de recursos públicos para o setor cresceu nos últimos anos
e cabe notar que quase todos os recursos aplicados em crédito rural gozam de
redução de juros. Por exemplo, em 2009, quando a taxa Selic atingiu 12,77%, os
juros para o setor estavam em 6,75%. O repasse de recursos para o setor entre
subvenções de juros do crédito rural, subvenções da política de preços (PGPM) e
subvenções de rolagem de dívida agrária, totalizam entre 2000 e 2010 cerca de
86,6 bilhões de reais (a preços de 2010) (DELGADO, 2012a).
Marini (2012, p. 24) explica que nem todo gasto estatal leva à acumulação
de capital. Isso depende das despesas dentro do gasto público e que são
destinadas propriamente ao capital, tais como gastos que o “Estado realiza para
tornar mais rentável o investimento privado”, como subvenções diretas e indiretas
que podem tomar várias formas com isenções de impostos, manipulação de
preços que, para o autor, são transferência de mais-valia ao capital45.
Ressalta-se ainda o incremento nas exportações vinculadas, no período
de 2000 a 2005. Como exemplo de uma tendência que prevalece, o complexo da
soja teve alta de 125,8 % das exportações; o complexo de carnes, 318,6%; o
complexo sucroalcooleiro, 277,6%, o que revela a expansão da exportação de
commodities e, em paralelo, três processos de inflexão na política agrária

1) Reconstitui-se o crédito público bancário, sob a égide do Sistema


Nacional de Crédito Rural, como principal via de fomento da política
agrícola, associada aos mecanismos de apoio e garantia da
comercialização agropecuária (PGPM);
2) Os preços da terra e dos arrendamentos rurais experimentam uma
substancial inflexão para cima em todas as regiões e para todos os tipos
de terra, refletindo a alta das commodities. Mas esses preços também
são afetados pela forte liquidez bancária, associada às subvenções da

45
Sant’Ana (2012, p. 16), ao estudar as condições de trabalho dos trabalhadores do corte da
cana, e portanto, ao especificar essa produção para aprofundar a reflexão sobre a relação capital-
trabalho, destaca que “presente em solo brasileiro desde os tempos da colonização, a cana-de-
açúcar é uma atividade altamente subsidiada pelo Estado; em determinadas conjunturas o
subsídio é direto: dos cofres públicos para as contas privadas; em outras é indireto: investe-se em
infraestrutura e criam-se as facilidades para a produção, seja do açúcar, seja do álcool.
143

política agrícola e de determinada frouxidão da política fundiária


relativamente à regulação do mercado de terras;
3) Aprofunda-se a inserção externa das cadeias agroindustriais que
manipulam com maior evidência as vantagens comparativas naturais da
matéria-prima principal do seu processo produtivo (DELGADO, 2012a,
p.109).

Há outros elementos fundamentais desse padrão de reprodução do


capital no Brasil que precisa ser pontuado para que possamos tecer as
considerações sobre o valor para as necessidades humanas e o valor para o
capital, considerando a forte dependência da intervenção pública do Estado para
a manutenção dos ganhos de capital do setor e que explicita seu
comprometimento com a reprodução do capital financeiro na agricultura.
O que está em curso, segundo Delgado (2012a), é o reposicionamento da
economia brasileira como um grande provedor de produtos agrícolas e minerais
na nova divisão internacional do trabalho. Considero, amparada nas reflexões da
teoria marxista da dependência, que se trata de um novo ciclo de acumulação do
capital no qual o Brasil corresponde ao padrão agroexportador, com
especialização produtiva em alguns commodities, dos quais destaco, como já
informado anteriormente: soja, cana, milho e carnes. Segundo Osorio (2012, p.
40),

A noção de padrão de reprodução do capital surge para dar conta das


formas como o capital se reproduz em períodos históricos específicos e
em espaços geoterritoriais determinados, tanto no centro como na
semiperiferia e na periferia, ou em regiões no interior de cada um deles,
considerando as características de sua metamorfose na passagem pelas
esferas da produção, e da circulação (como dinheiro, meios de
produção, força de trabalho, novas mercadorias, dinheiro incrementado),
integrando o processo de valorização (incremento do valor e do dinheiro
investido) e sua encarnação em valores de uso específicos (...), assim
como as contradições que esses processos geram.

Para o autor, todavia, cabe considerar como ocorre a fase da produção e


da circulação e reprodução do capital. Na fase produtiva deve-se considerar a
forma como o capital consome a força de trabalho. Nesse aspecto distinguem-se
quatro formas fundamentais: “a compra da força de trabalho abaixo de seu valor;
o prolongamento da jornada de trabalho; o incremento da produtividade do
trabalho; e a intensificação do trabalho” (OSORIO, 2012, p. 54).
144

Sobre esse tema são notórios os estudos de Iamamoto (2006) e Sant’Ana


46
(2012) , ambos sobre o trabalho no corte da cana no Estado de São Paulo.
Iamamoto (2006) faz um estudo sobre a realidade do trabalho na cana no final
dos anos 1980, conta com uma pesquisa de campo realizada entre junho de 1986
e dezembro de 1987. A autora registra a intensificação do trabalho na cana por
meio do controle tecnológico. Um cortador registrou 211 toneladas/mês e como a
média geral é inferior a isso, a empresa separava os trabalhadores que cortavam
maior quantidade de cana em “turmas de elite” para o corte. Esses trabalhadores
destacados se submetiam a jornadas de trabalho entre 11 e 12 horas, com
pequeno repouso. O resultado é o envelhecimento precoce e o adoecimento.
Sant’ana (2012), a partir de um estudo mais recente, destaca que no corte
da cana é utilizado, sobretudo, jovens, com baixa escolaridade, com jornadas de
trabalho de 12 a 15 horas (incluídos deslocamento). Estes trabalhadores recebem
entre 600 e 1.100 reais, uma quantia semelhante ou inferior ao salário do setor há
10 anos. Por outro lado, declaram cortar 18 ou 20 toneladas/dia do produto. Os
problemas de saúde são de tal ordem que, o que se assiste, explicita a eliminação
pelo trabalho. Como não há outro meio de vida, os trabalhadores persistem na
atividade. Ainda que não tenham condições físicas de fazê-lo, o resultado é a
morte precoce. Os trabalhadores registram doenças lombares, musculares,
ósseas, hipertensão arterial e depressão.
Essa junção de prolongamento da jornada, intensidade de trabalho,
baixos salários geram ganhos extraordinários de lucros para o capital. Um
aspecto relevante desse debate é a disponibilidade de mão de obra rural, parte
dela é dada pela dificuldade de permanência na pequena propriedade rural e na
população local, que vive em pequenas cidades como já foi explicitado (OSORIO,
2012; DELGADO, 2012a).

46
Sant’Ana (2012) estuda especificamente a situação de trabalhadores residentes, ou seja,
trabalhadores que vivem no “lugar” do corte de cana, com mais de 35 anos de idade e que
exerceu a atividade de cortar cana por um longo período da sua atividade laborativa. O estudo
toma como trabalhador do “lugar” “aquele que, mesmo não tendo nascido na região, tem um
tempo de permanência e, principalmente, se considera “do lugar” a ponto de não ter mais como
projeto o retorno para seu local de origem; aquele que fechou o ciclo da migração”. (SANT’ANA,
2012, p.13). O estudo é realizado em 15 Municípios de pequeno porte, até 20 mil habitantes, das
seis regiões administrativas de governo de São Paulo. Nesses municípios a economia gira em
torno da cana-de-açúcar, ou seja, os que não são contratados pela usina ficam praticamente sem
outras possibilidades de trabalho.
145

Por outro lado, enquanto circulação de mercadoria, o capital apresenta


três categorias:

A primeira constitui-se de bens de consumo necessário, que podemos


chamar de bens-salário, embora sejam consumidos por operários e
burgueses; (...) são bens de consumo necessário àqueles que entram na
composição do consumo dos trabalhadores e determinam, portanto, o
valor de sua força de trabalho. Não importa que sejam realmente
necessários, basta que sejam consumidos ordinariamente pelos
trabalhadores para que se definam. (...) Em segundo lugar, estão os
bens de consumo suntuário. Esses podem ser, na verdade, bens de
consumo necessário, mas não chegam a constituir um item significativo
do ponto de vista da análise, (...) os automóveis, por exemplo. A terceira
categoria de mercadorias constitui-se de bens de capital, ou seja, as
matérias-primas, os bens intermediários e as máquinas que servem para
a produção tanto de bens de consumo como de bens de capital
(OSORIO, 2012, p. 32-33, grifo do autor).

Osório (2012) informa que uma economia dependente prolonga sua


produção de bens de consumo em função da oferta externa de bens de capital
que pode recorrer. Outro elemento relevante na reprodução do capital e auxiliar
na análise da fome e da produção de alimentos é que a valorização do capital
segue dinâmicas diferentes, a depender do setor produtivo a qual se vincula.

não dá no mesmo valorizar o capital produzindo salsichas e produzindo


canhões, assinala Marx, para enfatizar que o valor de uso da valorização
define as características do capitalismo que será gerado. Os processos
produtivos de um ou outro valor de uso são diferentes, e diferentes são
os consumidores e os mercados de tais produções, assim como as
políticas estatais que daí se originam. Uma economia que sustenta sua
valorização em produtos bélicos estimulará a geração de conflitos e de
guerras para criar mercados para seus produtos (OSORIO, 2012, p. 46).

Esse raciocínio é fundamental para a análise dos demais elementos


vinculados ao complexo sistema agroindustrial que se consolida no Brasil a partir
dos anos 2000. Não se trata aqui de esgotar todos os seus elementos, mas
alguns deles são fundamentais para a apreensão das condições sobre as quais o
governo brasileiro sustenta ter resolvido o problema da fome. Dentre esses
elementos, destaco: produção baseada em sementes transgênicas, defensivos
químicos e agrotóxicos.
146

2.4. A dinâmica de produção das commodities: das forças produtivas às


forças destrutivas

Nos anos 2000, o agronegócio se amplia no padrão de desenvolvimento


brasileiro, sobretudo no que se refere à lógica de produção das commodities, mas
também na política institucional e sua influência na sociedade. A produção de
commodities nesse setor produtivo é realizada com a utilização de sementes
transgênicas, fertilizantes químicos e agrotóxicos.
Cabe especificar, ainda que sucintamente, os problemas vinculados à
utilização de semente transgênica47, fertilizantes químicos e agrotóxicos.
Pessanha e Wilkinson (2005) classificam, segundo a ordem em que surgiram, as
plantas geneticamente modificadas em três gerações:

a) De primeira geração: plantas com características agronômicas de


resistência a herbicidas, pestes (insetos e fungos) e vírus;
b) De segunda geração: plantas geneticamente modificadas com
características nutricionais e funcionais melhoradas;
c) De terceira geração: plantas destinadas à síntese de produtos
especiais, tais como vacinas, hormônios, anticorpos e plásticos
(PESSANHA; WILKISON, 2005, p. 9).

No processo de desenvolvimento dos estudos genéticos com plantas,


surge a semente transgênica, cujo fundamento em essência é a transformação da
semente em uma mercadoria muito especial. O processo em função de que a
semente transgênica rompe a relação entre semente para plantio e o grão
colhido, implica na separação entre o agricultor e o produtor de sementes. Esse
processo somado ao sistema de instrumentos legais, patentes (direitos de

47
“Plantas transgênicas – são aquelas que tiveram sua composição genética modificada em
laboratório mediante técnicas de manipulação genética, como o DNA recombinante. Essa técnica
consiste na extração de um ou mais genes de qualquer espécie (organismo doador – plantas,
animais ou microorganismos) e sua introdução numa cultivar qualquer (organismo receptor). Pela
alteração da sequência de DNA, podem ser modificadas as características de uma planta. Com a
introdução de um gene exógeno produz-se uma quebra da sequência de DNA do organismo
receptor, produzindo sua reprogramação, podendo provocar a produção de novas substâncias ou
apresentar novas funções e/ou características, tais como alterações na resistência a herbicidas,
insetos, pragas e doenças causadas por vírus, bactérias e fungos; alterações na composição
química, por exemplo, na quantidade e qualidade de amido, proteínas, óleos, etc.; alterações em
características fisiológicas, como resistência a condições ambientais adversas (seca, salinidade,
etc.) e prolongamento do período de vida” (WILKINSON, 2000, p. 19-20).
147

propriedade intelectual) possibilitam a apropriação privada de variedades de


sementes que proporcionam grande rendimento (PESSANHA; WILKISON, 2005).
Nessa trilha surgem as sementes terminator, sementes geneticamente
modificadas de forma que se tornam estéreis na segunda geração, ou seja, é uma
semente que não germina! Isso obriga o produtor a cada safra comprar
novamente a semente da empresa que a patenteou. De toda forma, os agentes
que promovem e produzem a semente transgênica detém propriedade intelectual
sobre o produto. Os agentes que promovem a pesquisa, o desenvolvimento e
distribuição dos transgênicos são empresas multinacionais, como: Monsanto,
Syngenta, Bayer, Dupont, Dow AgroScience (ALTIERI, 2012, ZIEGLER, 2013).

A apropriação privada oligopolista da geração, reprodução e distribuição


de sementes híbridas e transgênicas pelas empresas multinacionais com
o controle direto da oferta dos insumos que elas requerem, a
determinação da oferta de matérias-primas para a agroindústria e o
controle efetivo de produtos para o abastecimento alimentar têm
delimitado o tipo, o volume, a diversidade, a periodicidade e a qualidade
dos alimentos que serão oferecidos às populações (CARVALHO, 2013,
p. 40).

O que ocorre, é de fato, o que já previa Pessanha e Wilkinson (2005, p.


23):

A entrada dessas sementes no mercado poderia revolucionar as


estratégias de apropriação privada das empresas sementeiras,
diferenciando definitivamente, por meio de recursos tecnológicos, as
sementes para plantio e os grãos colhidos, retirando totalmente a
autonomia dos agricultores no que se refere à reprodução e à
reutilização da matéria-prima.

O problema em pauta é que a engenharia genética utilizada nas


pesquisas de melhoramento das plantas, orientada para a valorização do capital,
promove uma ciência reducionista que supostamente busca solucionar problemas
ambientais, mas não questiona os pressupostos equivocados que causaram tais
problemas, como as monoculturas ecologicamente insustentáveis desenvolvidas
pela lógica do sistema agroindustrial.
148

O enfoque da transgenia interpreta os problemas agrícolas como sendo


simples deficiências genéticas dos organismos e trata a natureza como
mercadoria. Além disso, não aborda as verdadeiras causas dos
problemas de pragas, mas apenas os sintomas, tornando os agricultores
mais dependentes de herbicidas e sementes produzidas por um setor do
agronegócio que cada vez mais concentra poder sobre o sistema
alimentar (ALTIERI, 2012, p. 52).

Estamos diante dos mecanismos de desenvolvimento do sistema do


capital, que submete a ciência e a técnica à sua lógica de reprodução de tal forma
que a possibilidade de controle que os trabalhadores podem exercer sobre suas
vidas é crescentemente limitada. A criação de uma semente que não germina,
capitaneada para o controle da produção de substâncias alimentares induz à
perda de controle completo dos trabalhadores sobre sua possibilidade de se
alimentar, somada à uma produção com intenso uso de agrotóxicos.
A ciência e a tecnologia estruturadas para garantir a reprodução do
capital já apareciam em Marx (2003, 2006); Mandel (1982) explica que na fase do
capitalismo tardio a ciência e a técnica tornam-se um “ramo do negócio”, que
como qualquer outro negócio, tem como objetivo maximizar os lucros. A ciência e
a técnica postas a serviço do capital, como evidencia a produção de commodities
no sistema agroindustrial, evidencia a capacidade destrutiva do sistema
sociometabólico do capital (MÉSZÁROS, 2002).
Essa estratégia expressa a relação dialética entre fome-alimentação, ou
seja, o complexo desenvolvimento das forças produtivas potencializa a produção
de um alimento que é capaz de envenenar, provocar câncer e não somente de
garantir a reprodução do trabalhador (força de trabalho). O problema não é o uso
da engenharia genética, como muitos apressadamente julgam, o problema é a
lógica sob a qual ela é desenvolvida. A síntese encontrada para a contradição
dialética fome-alimento, na atual dinâmica de reprodução do capital, é a solução
aparente para o problema: o alimento na forma mercadoria envenena, adoece e
provoca morte. Cabe aqui retomar o raciocínio de Josué de Castro (1981) quando
sustenta que a fome oculta é mais grave que a fome absoluta, pois mata
lentamente e não é percebida como fome. Um alimento que envenena, adoece e
provoca morte, não responde às necessidades humanas, nele, prevalece apenas
a forma mercadoria e a valorização do capital.
149

A alienada ‘personificação recíproca’, característica do modo de o capital


controlar o sociometabolismo em todas as suas formas historicamente
conhecidas e possíveis, não é a consequência de se produzir com a
ajuda de uma maquinaria produtivamente mais desenvolvida. É a
necessária alienação do controle de todos os aspectos do processo de
reprodução societária – inclusive o controle da maquinaria produtiva e da
pesquisa científica – do trabalho social dentro da estrutura do ‘sistema
orgânico’ do capital (MÉSZÁROS, 2002, p. 725, grifo do autor).

A lavoura de transgênicos centra-se especialmente em milho e soja,


produtos fundamentais na cadeia produtiva do sistema agroindustrial. A
ampliação da área de produção desses commodities, como afirmado
anteriormente, tenciona a produção dos produtos necessários à alimentação
humana e causa fome, pois expulsa pequenos produtores de suas terras para
reeditar a produção extensiva em larga escala, a base da monocultura, sobre forte
utilização de agrotóxicos como veremos a seguir.
A semente transgênica representa o estágio mais avançado que
assistimos na transformação do alimento em mercadoria. Na realidade não se
trata mais de milho, ou soja, ou qualquer outro produto que poderia ser
identificado como alimento, o milho tipo 2, o milho Bt, o algodão Bt, são apenas
formas de identificarmos qual é a origem industrial da mercadoria.
Pollan (2007) se refere ao estranhamento de ver muito milho jogado no
chão ao redor de um silo de grãos em Jefferrson, Iowa, EUA. Um estranhamento
compartilhado com o engenheiro agrônomo mexicano-americano que o
acompanhava: um milho destinado às fazendas industriais e à fábrica de
processamento que ninguém se preocupa em manter limpa. A dificuldade em
registrar o estranhamento está justamente no fato de que esse milho não é
comida, é um milho-mercadoria, uma commodity. O agrônomo de ascendência
mexicana destaca: “para falar francamente, fiquei um pouco chocado. No México,
mesmo hoje, não se deixa o milho derramar pelo chão; isso seria um sacrilégio”
(POLLAN, 2007, p. 68).

Na realidade, existem vários tipos de milho amontoados juntos naquela


pilha: o Pionner Hi-Bread 34h31 misturado com o genetivamente
150

modificado 33p67 do seu vizinho; milho cultivado com atrazina,


misturado com milho cultivado com metolacloro – ambos defensivos
agrícolas. O milho de campo n.2 é um denominador comum mais baixo;
tudo que essa designação nos revela é que o índice de umidade deste
milho não passa de 14%, e que menos de 5% dos seus grãos exibem
algum dano provocado por insetos. Além disso, trata-se de um grão sem
qualidades; a única coisa que realmente importa é a quantidade
(POLLAN, 2007, p. 69).

Pessanha e Wilkison (2005) registram acidentado percurso judicial no que


diz respeito aos produtos transgênicos no Brasil e que oscilou entre a proibição, a
permissão com certificação, a proibição de alguns produtos e a liberação de
produtos específicos. A tensão exercida pelas empresas vinculadas ao sistema
agroindustrial nesse aspecto ganha a “queda de braços” com os movimentos
sociais e organizações camponesas contrárias às sementes. No momento de
fechamento desse estudo de doutorado já foi aprovado no congresso a lei que
suspende a obrigatoriedade de rotulagem dos produtos transgênicos no Brasil.
Cabe lembrar que a liberação do plantio do eucalipto transgênico ocorreu em
2015.
Segundo Altieri (2012), a área global estimada de transgênicos em 2007
atingia 134 milhões de hectares, em 25 países, dos quais 12 na América Latina,
dentre estes, Brasil, Argentina, México, Chile e Honduras. Para termos uma
unidade de comparação, a maior extensão, em área, que a lavoura brasileira de
soja atingiu 22,7 milhões de hectares, em 2013. Os defensores da tecnologia de
transgênicos

argumentam que essas culturas não só têm aumentado a produção,


trazendo benefícios em termos de segurança alimentar, como também
têm contribuído para reduzir a pobreza e a fome, (...) mitigar as
mudanças climáticas por meio da redução na emissão de gases de efeito
estufa e, mais recentemente, instaurar um modo eficiente de produção
de agrocombustíveis (ALTIERI, 2012, p. 49).

Os efeitos dos transgênicos podem ser sentidos também na sua interface


com plantas não transgênicas, especialmente, no que se refere à modificação de
vírus e pragas que se tornam mais resistentes na interação com os transgênicos,
151

na produção de toxinas que podem atingir o solo e a água e, portanto,


modificando processos ecológicos.
O impacto que a tecnologia de transgênicos produz, entretanto, não para
por aí, o seu uso obriga a utilização de um pacote tecnológico que inclui
fertilizantes químicos e agrotóxicos que envenenam o solo, a água, o ar, os
corpos dos trabalhadores, que diretamente trabalham nesse setor produtivo, que
vivem a margem de sua produção e que se alimentam direta e indiretamente
desses produtos.
A denúncia contra os efeitos do uso de agrotóxicos na produção de
alimentos é realizada no início da década de 1960, quando Carson (2010) publica
o livro “Primavera silenciosa” e desencadeia uma campanha que baniu dos EUA o
inseticida DDT, por ser cancerígeno. Foi comprovado que uma vez pulverizado,
especialmente nas plantações, os efeitos do agrotóxico poderia chegar a mais de
uma geração. Ao se referir ao uso de agrotóxicos, aqui especialmente inseticidas,
Carson (2010, p. 28) afirmava que

Estamos correndo todo esse risco para quê? Precisamos urgentemente


acabar com essas falsas garantias, com o adoçamento das amargas
verdades. É à população que se pede que assuma os riscos que os
controladores de insetos calculam. A população precisa decidir se deseja
continuar no caminho atual, e só poderá fazê-lo quando estiver em plena
posse dos fatos. Nas palavras de Jean Rostand: a obrigação de suportar
nos dá o direito de saber.

As estratégias para justificar o uso de agrotóxicos são várias, desde


chamá-los de defensivos agrícolas, dissimulando a natureza nociva dos produtos,
ainda que a Lei 7.802/89 oficialize a nomenclatura agrotóxicos para o Brasil.
Outro aspecto dessa retórica da ocultação, sustentada pela blindagem
epistemológica das instituições científicas de abordagem positivista e reducionista
é o uso racional ou uso seguro dos agrotóxicos, somando-se as noções de limite
máximo de resíduos (LMR) ou de ingestão diária aceitável (IDA).

Além de criarem a falsa ideia de que algumas medidas preventivas


eliminam os ricos de intoxicação humana e ambiental, essas
terminologias formam uma blindagem jurídica para as empresas
agroquímicas diante de milhares de casos de intoxicação anuais, cuja
responsabilidade é cínica e convenientemente transferida para as
152

vítimas, sob a alegação de que estas não adotam os procedimentos de


segurança recomendados (CARNEIRO, et alli, 2015, p. 31, grifos do
autor).

O fato é que estamos diante de um acentuado e desesperador processo


de envenenamento humano, dos solos e das águas já ricamente documentado
pela Abrasco no dossiê “Um alerta sobre os impactos dos agrotóxicos na saúde”,
lançado em primeira versão em 2012. Dentre os diversos assuntos tratados no
dossiê, destaco a mudança na legislação sobre os agrotóxicos; o uso de
agrotóxicos na produção de alimentos; e a presença de agrotóxicos no leite
materno, por serem emblemáticos da dimensão do problema que estamos
enfrentando.
O uso de agrotóxicos no Brasil está autorizado pela lei dos agrotóxicos, lei
7.802/89, que entende agrotóxicos e produtos afins, como:

a) os produtos e os agentes de processos físicos, químicos ou


biológicos, destinados ao uso nos setores de produção, no
armazenamento e beneficiamento de produtos agrícolas, nas pastagens,
na proteção de florestas, nativas ou implantadas, e de outros
ecossistemas e também de ambientes urbanos, hídricos e industriais,
cuja finalidade seja alterar a composição da flora ou da fauna, a fim de
preservá-las da ação danosa de seres vivos considerados nocivos; b)
substâncias e produtos empregados como desfolhantes, dessecantes,
estimuladores e inibidores de crescimento (BRASIL, 1989).

A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) é o órgão


responsável pela liberação e fiscalização dos agrotóxicos utilizados no país. Em
função disso sofre forte pressão na sua atuação, no que diz respeito ao uso de
agrotóxicos, que vão desde a exoneração de gestores que denunciam
irregularidades no processo de aprovação de agrotóxicos 48, a alteração na

48
“Após mais de 13 anos de trabalho na Anvisa, Luiz Claudio Meirelles foi desligado da agência
após constatar, apurar e informar irregularidades na concessão dos Informes de Avaliação
Toxicológica de produtos formulados que autorizam o Ministério da Agricultura, Pecuária e
Abastecimento (MAPA) a registrar agrotóxicos no país. Além disso, Luiz Claudio solicitou
providências, aos setores responsáveis da Anvisa, incluindo a própria presidência da agência.
Logo após sua exoneração, Meirelles divulgou carta aberta esclarecendo os fatos, motivações e
preocupações relacionados à sua saída da Anvisa, incluindo graves irregularidades com o
‘deferimento de produtos sem a necessária avaliação toxicológica, falsificação de minha
assinatura e desaparecimento de processos em situação irregular’. No total foram identificadas,
153

metodologia do Programa de Análise de Resíduos de Agrotóxicos (Para) e


demora na divulgação de processo de reavaliação de agrotóxicos (CARNEIRO, et
al. 2015).
Os técnicos da Anvisa denunciam ainda a ação da bancada ruralista na
retirada de competência da Anvisa e do IBAMA, no que se refere à avaliação de
agrotóxicos em vários projetos de Lei em tramitação na Comissão de Constituição
e Justiça da Câmera Federal, até a articulação para a criação de uma agência
nacional de agroquímicos, esvaziando o papel da Anvisa e do Ibama nesse setor.
Um exemplo da gravidade da situação é dado pelo alerta do Deputado
Federal Florisvaldo Fier, conhecido como Dr. Rosinha (PT/PR), em 2 de outubro
de 2013. O deputado denuncia num blog que o Congresso Federal votou e
aprovou no dia 25 de setembro de 2013 a Lei de Conversão (n.25/2013) da
medida provisória 619/2013, que iria então para o Senado. No projeto de Lei se
introduzia três artigos sobre agrotóxicos, n.52, 53 e 54. O artigo 53 dá permissão
para importação, produção, distribuição e comercialização do uso de agrotóxicos
à Instância Central e Superior do Sistema Unificado de Atenção à Sanidade
Agropecuária (SUASA), e concede ao Ministro da Agricultura (MAPA) o poder de
regular essas medidas.

A redação dada ao artigo n.53 permitirá que o ato do Ministro da


Agricultura flexibilize as regras atuais e mesmo que em ‘caráter
extraordinário’ e quando declarado estado de emergência fitossanitário e
zoossanitário’, sob critérios ainda não revelados poderá determinar que
agrotóxicos sejam autorizados em situações que podem atender ao
interesse público (ROSINHA, apud CARNEIRO, et al. 2015, p. 468-469).

A denúncia do deputado trazia à tona a necessidade da sociedade em se


organizar para barrar a aprovação da lei, porém, já havia sido aprovada no dia 01
de outubro de 2013, em turno único do Senado. Cabe notar que a tramitação
durou 4 dias! A lei foi sancionada pela presidente Dilma Rousseff no dia 24 de
outubro de 2013 e regulamentada dia 28 de outubro de 2013!

até a saída do ex-gerente da Gerência Geral de Toxicologia (GGTOX), irregularidades em sete


produtos”.
154

Uma semana depois o MAPA declara a Bahia oficialmente em estado de


emergência fitossanitária em relação ao inseto helicoverpa armigera e
três dias depois, em 7 de novembro, [o governo] autoriza a importação
49
da substância benzoato de emamectina , agrotóxico que não foi
autorizado no Brasil devido ao seu perigo para a saúde humana
(CARNEIRO, et al. 2015, p. 469).

O mercado de agrotóxicos no mundo cresceu nos últimos 10 anos 93%.


No mesmo período, o mercado brasileiro cresceu 190%. Em 2008 o Brasil atingiu
o posto de maior mercado consumidor de agrotóxicos do mundo. Na safra que
envolve o segundo semestre de 2010 e o primeiro semestre de 2011, o mercado
nacional de venda de agrotóxicos movimentou 936 mil toneladas de produtos, das
quais 833 mil toneladas produzidas no país e 246 mil toneladas importadas. Só
para lembrar, a produção total de cana-de- açúcar no Brasil, em 2013, foi de 768
milhões de toneladas, o maior índice dos últimos anos, e as lavouras somadas de
arroz, feijão, milho, soja, trigo, mandioca, cacau e café atingiram 207 milhões de
toneladas (Anexo 1). (CARNEIRO, et al. 2015; IBGE, SIDRA, 2015).
No quadro 2.1 e no gráfico 2.4 é possível notar o avanço do uso de
fertilizantes e agrotóxicos no Brasil.

Quadro 2.1: Consumo de agrotóxicos e fertilizantes nas lavouras do Brasil, 2002 a 2011
2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011
Agrotóxicos
(Milhões de 599,5 634,5 693,0 706,2 687,5 686,4 673,9 725,0 827,8 852,8
litros)
Fertilizantes
(milhões de 4.910 5.380 6.210 6.550 6.170 6.070 6.240 6.470 6.497 6.743
kg)
Fonte: CARNEIRO et al. 2015, p. 52

É importante observar como a relação entre o aumento do uso de


agrotóxicos e fertilizantes varia conjuntamente o que comprova a dinâmica do
pacote tecnológico utilizado para a produção de commodities, que soma ao uso
de sementes transgênicas, fertilizantes químicos e agrotóxicos.

49
O benzoato de emamectina teve o registro na Anvisa solicitado pela Syngenta em 2003. O
pedido foi indeferido em 2007 em função do produto causar perigo à saúde, especialmente
elevada neurotoxidade e suspeita de teratogênese (má formação fetal) (CARNEIRO, et al. 2015,
p. 471).
155

Gráfico 2.4: Consumo de agrotóxicos e fertilizantes nas lavouras do Brasil, 2002 a 2011

900,0 8.000,0

800,0 7.000,0
700,0
6.000,0
600,0
5.000,0
500,0
4.000,0
400,0
3.000,0
300,0
2.000,0
200,0

100,0 1.000,0

0,0 0,0
2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011

Agrotóxicos (Milhões de litros) Fertilizantes (milhões de kg)

Fonte: CARNEIRO et al. 2015, p. 52. Elaboração própria.


Elaboração: Dr. Marcelo Gomes Ribeiro (IPPUR-UFRJ)

Nota-se que a área plantada em 2002 era de 54,5 milhões de hectares e


em 2011, 71,2 milhões de hectares. Dessa forma, o consumo médio de
agrotóxicos aumenta de 10,5 litros por hectare (l/he) para 12 l/he. Esse aumento
está relacionado ao aumento da área plantada de soja transgênica, que amplia o
uso de glifosato, a resistência das “pragas” ao uso dos agrotóxicos (CARNEIRO
et al. 2015).
Mészáros (2002) explica que a destrutividade do sistema sociometabólico
do capital, no que tangencia as questões da destruição da natureza, tais como o
uso de agrotóxicos, demonstram como o incontestável imperativo da proteção
ambiental se revela sob o sistema do capital inadministrável, em virtude da
dinâmica das restrições provocadas pelo processo de produção em vigor.

Os perigos agora se estendem por todo o planeta; consequentemente, a


urgência de soluções para eles, antes que seja tarde demais, é
especialmente severa. Para agravar a situação, tudo se torna mais
complicado pela inviabilidade de soluções parciais para o problema
enfrentado (MÉSZÁROS, 2002, p. 95).

O quadro 2.2 apresenta a classificação e os principais problemas


causados à saúde vinculados ao uso de agrotóxicos. Ressalta-se, dentre eles:
156

efeitos neurológicos, lesões hepáticas, arritmias cardíacas, danos à gestação fetal


(teratogêneses) e cânceres.

Quadro 2.2. Classificação e efeitos e/ou sintomas agudos e crônicos dos agrotóxicos
Praga que controla Grupo químico Sintomas de intoxicação aguda Sintomas de
intoxicação crônica
Organofosforados Fraqueza, cólicas abdominais, Efeitos neurotóxicos
e carbamatos vômitos, espasmos musculares retardados,
e convulsões alterações
cromossomiais e
dermatites de contato
Organoclorados Náuseas, vômitos, contrações Lesões hepáticas,
musculares involuntárias arritmias cardíacas,
Inseticidas
lesões renais e
neuropatias
periféricas
Piretroides Irritações das conjuntivas, Alergias, asma
sintéticos espirros, excitação, convulsões brônquica, irritações
nas mucosas,
hipersensibilidade
Ditiocarbamatos Tonteiras, vômitos, tremores Alergias respiratórias,
musculares, dor de cabeça dermatites, doença
Fungicidas de Parkinson,
cânceres
Fentalamidas - Teratogêneses
Dinitroferóis e Dificuldade respiratória, Cânceres (PCP –
pentaciclorofenol hipertemia, convulsões formação de
dioxinas), cloroacnes
Herbicidas Fenoxiacéticos Perda de apetite, enjoo, Indução da produção
vômitos, fasciculação muscular de enzimas
hepáticas, cânceres,
teratogeneses
Dipiridilos Sangramento nasal, fraqueza, Lesões hepáticas,
desmaios, conjuntivites dermatites de
contato, fibrose
pulmonar
Fonte: CARNEIRO et al. 2015.

Um terço dos alimentos consumidos no país estão contaminados com


agrotóxicos. Segundo amostras coletadas nos 26 estados, realizados pela Anvisa,
63% do total das amostras apresentam contaminação, destas, 28% apresentam
substâncias não autorizadas no país. A contaminação de alimentos por
agrotóxicos no Brasil, segundo as pesquisas da Anvisa, está assim distribuída:
pimentão (91,8%); morango (63,4%), pepino (57,4%); alface (54,2%); cenoura
(49,6%); abacaxi (32,8%); beterraba (32,6%) e mamão (30,4%); arroz (7,4%);
feijão (5,2%). Parte desse veneno é dispersado no ambiente, mas parte acumula-
se no corpo humano (CARNEIRO, et al. 2015).
157

Pesquisadores da Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT)


pesquisaram o leite materno de 62 mães de Lucas do Rio Verde, Mato Grosso,
entre a segunda e a oitava semana após o parto. Encontraram no leite materno
10 substâncias, na maioria das amostras foi detectado mais de uma substância,
todas as amostras apresentaram contaminação de ao menos uma substância
(CARNEIRO, et al. 2015).
O processo produtivo do agronegócio, como venho afirmando, torna-se
uma força destrutiva profundamente danosa ao meio ambiente e à vida humana.
Nele, a capacidade destrutiva do sociometabolismo do capital se apresenta de
forma explícita. Submetido à lógica da commodity e da valorização do capital, o
alimento adquire um potencial agressivo, capaz de adoecer e levar à morte por
envenenamento, por câncer. Nessas circunstâncias, comer, ainda que em
quantidades adequadas, atingindo a quantidade calórica necessária, não atende à
necessidade humana de se alimentar.
Todo o complexo sistema agroindustrial responde à valorização do capital
como vimos e, por isso, necessita de uma estrutura de poder que o faça
permanecer. Essa estrutura de poder é garantida pela bancada ruralista.
Castilho (2012) realizou um estudo sobre a composição da propriedade
da terra dentre os políticos eleitos no Brasil. Para tanto, utilizou a declaração de
bens entregues pelos candidatos eleitos ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE). No
que pese os inúmeros problemas com as declarações – observado pelo autor – a
pesquisa alcança quase 13 mil documentos dos políticos eleitos em 2006, 2008 e
2010 (em função da eleição de Senadores).
O autor começa o livro com uma provocação importante “PMDB, PSDB e
PR lideram o ranking dos partidos cujos políticos possuem mais hectares. Alguém
se surpreenderá com a informação de que os filhos da Arena possuem menos
terras que os filhos do MDB? Ou com o surgimento recente de uma ‘esquerda
latifundiária’, em partidos como o PPS, o PSB e o PT?” (CASTILHO, 2012, p. 11).
No quadro a seguir, Castilho (2012) apresenta a distribuição dessas
terras:
158

Quadro 2.3. Disposição de hectares por partido político no Brasil


Prefeitos Parlamentares*
Partidos
Área % Área %
PMDB 231.891,68 19,98% 95.201,58 21,1%
PSDB 246.638,75 21,25% 42.774,43 9,48%
PR 151.987,79 13,09% 69.571,78 15,42%
PP 145.121,60 12,50% 22.003,24 4,88%
DEM 81.252,98 7,00% 84.450,07 18,71%
PTB 70.888,29 6,11% 22.097,20 4,9%
PT 60.659,99 5,23% 7.548,87 1,67%
PPS 46.806,68 4,03% 5.423,53 1,2%
Total 1.160.422,88 100,00% 451.269,69 100,00%
Fonte: Castilho, 2012.
Nota (*): senadores, deputados federais e estaduais

Castilho (2012) informa que esses dados são referentes à área declarada
dos políticos, que corresponde à 63,6% dos políticos eleitos que declaram possuir
terras. Alguns declaram o valor do imóvel, mas não sua extensão, e outros ainda
são proprietários de empresas que possuem terras. O número da extensão
aumenta progressivamente ao longo do detalhamento da pesquisa à medida que
se desvelam as informações.
É importante notar que a banca ruralista trabalha, ocupa comissões, faz
conchavos políticos. Dos quarenta representantes parlamentares na Comissão de
Agricultura da Câmara, em 2011, 26 possuiam terras, porém, dentre os que não
declaram a propriedade, apenas 4 não defendiam os interesses dos ruralistas em
suas votações. Isso ocorre em função de outro dado relevante para se pensar a
conjuntura política nacional: o agronegócio financia as campanhas50! (CASTILHO,
2012).
Uma dessas empresas é a Friboi. Dentre os 55 candidatos a deputado
federal apoiados pela empresa, 41 foram eleitos (75%). Entre os candidatos ao

50
“Tanto governadores como deputados (estaduais e federais) e senadores receberam, em 2010,
mais de R$ 50 milhões de grandes grupos [do agronegócio]. Somente o Grupo Friboi (JBS) doou
mais de R$ 30 milhões em 2010. Outros doadores de peso no setor agropecuário foram os
seguintes: Cosan (usina de açúcar e álcool, entre outros). Total: R$ 3,08 milhões. Políticos
financiados: 41. Bunge Fertilizantes. Total: R$ 2,72 milhões. Políticos financiados: 40. Cutrale
(suco de laranja). Total: R$ 1,89 milhão. Políticos financiados: 10. Marfrig Frigoríficos. Total: R$
1,2 milhão. Políticos financiados: 17.” (CASTILHO, 2012, p. 148). A quantidade de políticos
financiados correspondem aos que foram eleitos.
159

Senado, 7, dos 8 apoiados. Dos 30 milhões investidos pelo Grupo Friboi, 10


milhões foram para candidatos a governador, em Goiás, o frigorífico financiou a
campanha dos dois principais candidatos ao governo: Íres Rezende (PMDB) e
Marconi Perillo (PSDB).
O processo se repete nos Estados e nos Municípios. Dentre as
informações trazidas por Castilho (2012) é relevante notar que a porcentagem de
municípios onde o prefeito ou o vice possuem terras é de 62, 33% no país, no
Mato Grosso atinge 78,72%.
Essa composição parlamentar é um bom indicador para se pensar as
possibilidades da luta de classes no Brasil e o campo da Política Social. Mészarós
(2002, p. 95) sustenta que

no passado, até algumas décadas atrás, foi possível extrair do capital


concessões aparentemente significativas – tais como os relativos ganhos
para o movimento socialista (tanto sob a forma de medidas legislativas
para a ação da classe trabalhadora como sob a melhoria gradual do
padrão de vida, que mais tarde se demonstraram reversíveis, obtidos por
meio de organizações de defesa do trabalho: sindicatos e grupos
parlamentares. O capital teve condições de conceber esses ganhos, que
puderam ser assimilados pelo conjunto do sistema, e integrados a ele, e
resultaram em vantagens produtivas para o capital durante o seu
processo de autoexploração. Hoje, ao contrário, enfrentar até mesmo
questões parciais com alguma esperança de êxito implica a necessidade
de desafiar o sistema do capital com tal (MÉSZÁROS, 2002, p. 95, grifos
do autor).

A análise do autor é relevante quando se percebe a extensão do problema


alimentar que está em curso na atualidade e seus efeitos sobre a classe
trabalhadora no campo, na cidade e sobre o campesinato.
160

CAPÍTULO III

O valor da fome no Brasil: entre o combate à fome e o fetiche da


redução da pobreza

Para que o homem do campo recupere sua dignidade sabendo que, ao


se levantar com o nascer do sol, cada movimento de sua enxada ou do
seu trator irá contribuir para o bem-estar dos brasileiros do campo e da
cidade, vamos incrementar também a agricultura familiar, o
cooperativismo, as formas de economia solidária.
Elas são perfeitamente compatíveis com o nosso vigoroso apoio à
pecuária e à agricultura empresarial, à agroindústria e ao agronegócio,
são, na verdade, complementares tanto na dimensão econômica quanto
social.
Luiz Inácio Lula da Silva (2003)

E nós não nascemos


Para sermos bonitos, nem radicais.
Nós nascemos para ganhar o poder.
Luiz Inácio Lula da Silva (2013)

Numa fase superior da sociedade comunista, quanto tiver sido eliminada


a subordinação escravizadora dos indivíduos à divisão do trabalho e,
com ela, a oposição entre trabalho intelectual e manual; quando o
trabalho tiver deixado de ser mero meio de vida e tiver se tornado a
primeira necessidade vital; quando, juntamente com o desenvolvimento
multifacetado dos indivíduos, suas forças produtivas também tiverem
crescido e todas as fontes de riqueza coletiva jorrarem em abundância,
apenas então o estreito horizonte jurídico burguês poderá ser
plenamente superado e a sociedade poderá escrever em sua bandeira:
‘De cada um segundo suas capacidades, a cada um segundo suas
necessidades!’ (MARX, 2012, p. 31-32).
161

O objetivo desse capítulo é analisar a organização da política de combate


à fome no Brasil identificando sua tendência a atender as necessidades humanas
ou à reprodução do capital. A proposta desse capítulo é observar como está
organizada a política de combate à fome no Brasil, a situação da fome no país e a
relação entre ambas e as necessidades humanas no processo de reprodução do
capital. Para isso, o solo da análise é a formação socioeconômica do Brasil
exposta no capítulo anterior e que apresenta elementos para a compreensão da
Política Social no país.
Mészáros (2002, p. 606) afirma que “A completa subordinação das
necessidades humanas à reprodução do valor de troca – no interesse da
autorrealização ampliada do capital – tem sido o traço marcante do sistema do
capital desde o seu início”, que corrobora com o complexo sistema agroindustrial
e a particularidade do padrão de acumulação do capital no Brasil, como foi
exposto.
O eixo de argumentação do capítulo sustenta-se no deslocamento da
política de combate a cargo do Ministério Extraordinário de Segurança Alimentar e
Combate à Fome (MESA), para o Ministério de Desenvolvimento Social e
Combate à Fome (MDS), que ocorre já no primeiro ano do Governo Lula. O
deslocamento é sintomático do processo de assistencialização que se processa
na política social desde os anos 1980 (MOTA, 2005, 2008) e explicita a estratégia
do governo de se manter no poder por meio do pacto entre as classes e da
garantia do consumo de massa.
O marco do debate sobre o problema da fome, no Brasil, encontra-se nos
estudos realizados por Josué Apolônio de Castro (1908-1973) e publicados na
década de 1940, sobretudo, seus livros “Geografia da Fome” (1980), datado de
1947 e “Geopolítica da Fome” (1961), datado de 1951. Em um exaustivo estudo
de 25 anos sobre os determinantes da fome no Brasil o autor desenvolve um
método de apreensão do fenômeno que denomina de geográfico. Após estudar
todas as regiões brasileiras, conclui que o fenômeno da fome é generalizado nas
regiões Norte e, sobretudo, no Nordeste. Para o autor, a fome tem suas raízes na
pobreza crônica e no subdesenvolvimento.
Josué de Castro empreende um esforço original em distinguir o fenômeno
fome no Brasil e no mundo, para tanto, o autor cunhará conceitos importantes
162

como fome epidêmica e fome endêmica. Castro compreende a fome epidêmica


como a fome global, aguda e violenta, a inanição absoluta e a fome endêmica
como a fome oculta, a fome parcial, a fome por insuficiência de nutrientes nos
regimes alimentares, que leva lentamente à morte. É assim que o autor explica
que a fome no sertão do nordeste é epidêmica e restrita aos períodos de seca,
mas a fome na Zona da Mata é endêmica, portanto, permanente, estrutural
(CASTRO, 1980; FERNANDES; GONÇALVEZ, 2011).
Seus estudos mostravam um esforço para que o tema da fome deixasse
de ser um tema proibido e ganhasse lugar na política pública. Sua projeção
internacional leva-o a ocupar a presidência do Conselho da FAO no período de
1952-1955 quando este órgão inicia sua ação na temática da fome e da produção
de alimentos (CASTRO, 2003).
Ao deixar a FAO o autor demonstra seu descontentamento com as
possibilidades do trabalho realizado e, sobretudo, com os limites de solucionar o
problema posto pelos interesses econômicos do grande capital estruturado na
política agrícola de alguns países, notadamente os Estados Unidos da América
(EUA). Em seu discurso de despedida da organização Castro declara que o órgão
não foi suficientemente ousado para encarar o problema da fome e buscar sua
solução, ficando na superfície sem atingir a essência (GONÇALVES;
FERNANDES, 2011).
Apesar de partícipe do período desenvolvimentista nacional e agente
orgânico nesse debate, o autor estabelece críticas ferozes ao padrão de
desenvolvimento nacional. Com uma análise que busca nas determinações
econômicas, sociais, políticas e culturais do país a persistência da fome, concluiu
que o problema centrava-se na relação com o capital estrangeiro e a estrutura
agrária nacional.

Orientada a princípio pelos colonizadores europeus e depois pelo capital


estrangeiro, expandiu-se no país uma agricultura extensiva de produtos
exportáveis ao invés de uma agricultura intensiva de subsistência, capaz
de matar a fome do nosso povo (...). Resolveu-se criar nestas terras da
América a indústria do ‘fique rico depressa’ para uns poucos e que foi, ao
mesmo tempo, a ‘indústria da fome’ para a maioria (CASTRO, 1980, p.
281 e 283).
163

O autor compreenderá que a fome e a miséria de algumas regiões do


mundo é o custo social do próprio progresso, “um progresso que a humanidade
toda paga para que o desenvolvimento econômico avance no pequeno número de
regiões dominante política e economicamente no mundo”. Isso leva, segundo
Castro (2011), a uma estratégia irremediavelmente fadada ao fracasso: a luta pelo
desenvolvimento.
A situação, no Brasil, se agrava com o golpe civil-militar de 1964. As
características da revolução burguesa no Brasil e sua expressão autocrática
(FERNANDES, 2005; NETTO, 2001a) restringiram, ainda mais, com o projeto
desenvolvimentista, na década de 1960, orientado pelo Cepal, substituindo-o por
uma perspectiva desenvolvimentista-estruturalista, que redundou em uma
modernização conservadora, ancorada na exportação de commodities.
O poder do latifúndio e da burguesia autocrática nacional (FERNANDES,
2005) impediram a consolidação da democracia burguesa no país e consolidaram
o capitalismo monopolista (NETTO, 2005), sem realizar nenhuma das reformas
que a democracia burguesa havia realizado nos países centrais, como a
democratização da terra e a solução da questão agrária (PRADO JÚNIOR, 2004,
2011; RANGEL, 2011; FURTADO, 2011). Mostraram que o país tem dono e que o
capitalismo no Brasil encontra no Estado seu elemento dinamizador.
Uma vez que o Estado é o indutor da economia, os direitos sociais entram
como eixo estratégico da consolidação do capitalismo no país, pois permitem a
consolidação em seu estágio avançado. Os direitos sociais são positivados pelo
Estado quando este regulamenta o marco legal dos direitos e materializa sua
intervenção no sentido de garanti-los via políticas sociais. No Brasil, o Estado
antecipa a regulamentação da política social como estratégia para a manutenção
da direção política burguesa. Uma das características importantes da política
social no Brasil é que sua estruturação avança, em alguns momentos históricos,
em detrimento dos direitos civis e políticos e sob forte repressão dos movimentos
sociais e dos partidos políticos vinculados ao projeto da classe trabalhadora,
como no período Vargas e na ditadura civil-militar.
Cabe notar também que outra característica do fundamento da política
social no Brasil assenta-se sobre o repasse para o Estado dos custos de
164

reprodução da classe trabalhadora, o que implica em uma política fragmentada e


focalizada (FERNANDES, 2005; BOSCHETTI, 2003; BEHRING; BOSCHETTI,
2006; MOTA, 2005, NETTO, 2005).
Não cabe aqui desenvolver o histórico da política de combate à fome no
Brasil51. Apenas como marco analítico, vale ressaltar que algumas políticas de
combate à fome na atualidade já se apresentam no governo Vargas, como a
política de alimentação escolar. A política social de combate à fome, bem como
várias outras questões pungentes, sofre significativa inflexão durante o governo
militar, a exemplo dos planos nacionais de alimentação e nutrição (I e II)
esboçados por técnicos do Instituto Nacional de Alimentação e Nutrição (INAN) e
do IPEA e que não foram executados como foram planejados até serem
abandonados.
Com o processo de abertura democrática, o debate dobre a questão da
fome ganhará publicidade novamente nas décadas de 1980 e 1990 52. Dentre os
elementos que se somam no debate público sobre a fome, nesse período,
guardadas as devidas proporções e diferenças político-ideológicas, estão: o
surgimento do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST); a rearticulação
dos sindicatos dos trabalhadores rurais; a fundação do Partido dos Trabalhadores
(PT); as ações da Comissão Pastoral da Terra (CPT) vinculadas à Igreja Católica;
campanhas como as do sociólogo Herbert de Souza (Betinho), que organiza a
Ação da Cidadania, contra a Fome, a Miséria e pela Vida.
A política de combate à fome no Brasil se modificará ao longo dos anos.
Ao apresentar, por um lado, rupturas e interrupções – tais como o abandono do
planejamento da política53, desativação de estruturas como o INAN, e, por outro
lado, continuidades, tais como o Programa de alimentação escolar – que tem sua
primeira formulação em 1958 e o Programa de Alimentação do Trabalhador – que
existe desde 1976.

51
Sobre o histórico da política de Combate à Fome no Brasil: Pinheiro (2009); Maluf (2007);
Batista Junior (2013); Belik (2012); Belik et al. (2001).
52
Cabe destacar que o período reflete para o Brasil os efeitos da crise da década de 1970
(Hobsbawm, 1994; Harvey, 1992, Antunes, 1999), os efeitos da década perdida (Matoso, 1995) e
o ideário neoliberal que responde às ações do Estado e à nova fase de acumulação do capital.
53
O primeiro Plano Nacional de Alimentação foi elaborado em 1952, no âmbito da Comissão
Nacional de Alimentação (CNA), criada em 1945 e extinta em 1972, quando se cria o Instituto
Nacional de Alimentação INAN, extinto em 1997.
165

Nota-se que a própria concepção de Política de Combate à Fome se


amplia e passa a incorporar a noção de Segurança Alimentar e Nutricional (SAN),
referendada no debate sobre o direito humano à alimentação adequada54.
Dos estudos de Josué de Castro, a discussão sobre o tema da fome vai
se modificar ao longo do século XX e chegará até sua forma atual no Brasil,
centrada na contraposição entre segurança e insegurança alimentar e nutricional.
O tema da fome começa a ser tratado como um tema de segurança na conjuntura
da saída da crise do capital de 1929 que terá, dentre suas estratégias, a
reconfiguração das políticas agrícolas e sociais nos Estados Unidos, de onde vem
a inspiração para a política de combate à fome brasileira. Ademais de sua história
cunhada pelo vínculo com a situação de guerra do início do século XX, o conceito
de segurança alimentar e nutricional é um conceito polissêmico e sujeito a várias
interpretações (PESSANHA, 1998, MALUF, 2007, SILVA, 2014).
Segundo Maluf (2007), a noção de SAN refere-se ao acesso aos bens
alimentares (alimentos) e à forma como estes são apropriados pelas pessoas. A
ideia aqui é retomada de Castro (1981). O núcleo central está no fato de que os
alimentos são compreendidos como vitais, pois a falta deles, em outros termos, a
fome aguda ou endêmica pode levar à morte. Entretanto, é mais que isso, amplia-
se a compreensão de que a ingestão inadequada de alimentos, ou a ingestão de
alimentos inadequados também pode levar à morte ou ao comprometimento da
saúde de forma severa.
É dessa forma que a má alimentação e os problemas advindos dela
entram na agenda de discussão, como insegurança alimentar, sobretudo, dos
alimentos oriundos da indústria de alimentos. Maluf (2007) defende que a SAN
seja incorporada entre os objetivos que orientam as escolhas estratégicas do
país, na relação com as políticas públicas.
É importante salientar nessa trilha, que SAN diz respeito a toda população
e não somente aos estratos de pobreza. Segundo os autores, existem muitas
definições para SAN, com significados e orientações distintas. Pessanha (1998),
em um estudo detalhado sobre o tema, informa que a noção de SAN envolve
quatro conteúdos: a garantia da produção e oferta agrícola; a garantia do direito
54
Sobre o direito humano a alimentação, consultar: Valente (2002) e Piovesan; Conti (orgs).
(2007); Sobre Segurança Alimentar e Nutricional: Pessanha (1998), Gomes Junior (2007), Maluf
(2007); Rocha et al. (2013);
166

universal de acesso aos alimentos; a garantia de qualidade sanitária e nutricional


dos alimentos consumidos e a garantia de conservação e controle da base
genética do sistema agroalimentar.
Pessanha (1998) e Gomes Junior (2007) entendem a Segurança
Alimentar e Nutricional como uma noção orientadora para as políticas públicas e
não um objetivo. Isso permite uma ampliação da compreensão do problema do
combate à fome via Estado, uma vez que, como orientador de política pública, o
conceito obrigatoriamente implica em uma estruturação distinta da política. Nesse
aspecto,

Segurança alimentar significa garantir, a todos, condições de acesso a


alimentos básicos de qualidade, em quantidade suficiente, de modo
permanente e sem comprometer o acesso a outras necessidades
essenciais, com base em práticas alimentares saudáveis, contribuindo,
assim, para uma existência digna, em um contexto de desenvolvimento
da pessoa humana (PESSANHA, 1998, p. 21).

Essa formulação foi elaborada no Fórum Brasileiro de SAN, em 2003, e


aprovada na II Conferência Nacional de SAN, realizada em Olinda, em 2004.
Explica Maluf (2007) que a formulação brasileira de forma peculiar acrescenta ao
conceito o adjetivo “nutricional” à expressão “segurança alimentar” que já estava
difundida internacionalmente. Isso ocorre para agregar dois aspectos que estão
na base da discussão brasileira de SAN, o socioeconômico e o de saúde e
nutrição, que expressam a perspectiva intersetorial implícita no debate brasileiro.
Para o autor, essa particularidade da discussão brasileira agrega duas dimensões
que são inseparáveis: a disponibilidade de alimentos e a qualidade dos mesmos.
O Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (SISAN)
estruturado atualmente no Brasil incorpora o debate sobre a noção de segurança
e insegurança alimentar e nutricional. Nele, SAN é entendida como

o
Art. 3 A segurança alimentar e nutricional consiste na realização do
direito de todos ao acesso regular e permanente a alimentos de
qualidade, em quantidade suficiente, sem comprometer o acesso a
outras necessidades essenciais, tendo como base práticas alimentares
promotoras de saúde que respeitem a diversidade cultural e que sejam
o
ambiental, cultural, econômica e socialmente sustentáveis. Art. 4 A
167

segurança alimentar e nutricional abrange: I – a ampliação das


condições de acesso aos alimentos por meio da produção, em especial
da agricultura tradicional e familiar, do processamento, da
industrialização, da comercialização, incluindo-se os acordos
internacionais, do abastecimento e da distribuição dos alimentos,
incluindo-se a água, bem como da geração de emprego e da
redistribuição da renda; II – a conservação da biodiversidade e a
utilização sustentável dos recursos; III – a promoção da saúde, da
nutrição e da alimentação da população, incluindo-se grupos
populacionais específicos e populações em situação de vulnerabilidade
social; IV – a garantia da qualidade biológica, sanitária, nutricional e
tecnológica dos alimentos, bem como seu aproveitamento, estimulando
práticas alimentares e estilos de vida saudáveis que respeitem a
diversidade étnica e racial e cultural da população; V – a produção de
conhecimento e o acesso à informação; e VI – a implementação de
políticas públicas e estratégias sustentáveis e participativas de produção,
comercialização e consumo de alimentos, respeitando-se as múltiplas
características culturais do País (BRASIL, 2006).

O SISAN, marco legal sobre o combate à fome no Brasil, avançou


substancialmente nos governos petistas. Do Programa Fome Zero (PFZ) para o
SISAN, entretanto, ocorre uma significativa mudança de direcionamento da
política que é necessário considerar.

3.1. Do programa fome zero ao programa bolsa família: a assistencialização


das políticas sociais

Em janeiro de 2003 quando Luiz Inácio Lula da Silva (Lula) assumiu a


presidência para o primeiro dos seus dois mandatos consecutivos, uma das
principais bandeiras eleitorais do presidente eleito era acabar com a fome no país.
Em seu discurso de posse faz um chamado ao povo brasileiro para a batalha em
torno do inimigo nacional comum: a fome. “Eu desejo, antes de qualquer outra
coisa, convocar o meu povo, justamente para um grande mutirão cívico, para um
mutirão nacional contra a fome” (LULA, 2003).
Da parte do executivo, anuncia-se um programa de Segurança Alimentar
que denomina de “Fome Zero” (PFZ). O referido programa seria a prioridade do
governo. O objetivo do presidente brasileiro consistia em que cada brasileiro
realizasse três refeições por dia – essa era sua missão!
168

defini entre as prioridades de meu governo um programa de segurança


alimentar que leva o nome de ‘Fome Zero’. Como disse em meu primeiro
pronunciamento após a eleição, se, ao final do meu mandato, todos os
brasileiros tiverem a possibilidade de tomar café da manhã, almoçar e
jantar terei cumprido a missão da minha vida (LULA, 2003).

Veja que aqui se expressa uma informação importante da estratégia de


governo com o combate à fome. O que importa é a quantidade de refeições, não
necessariamente o que se irá comer. Ainda, a orientação do governo não parte da
indução de uma estrutura diferenciada de produção que responda ao problema da
fome – a estratégia do governo é uma estratégia de consumo de massa. No
Balanço dos 10 anos do governo em 2013, Lula informa o legado do seu governo:

esse foi o grande legado desses dez anos: nós nos descobrimos para
nós mesmos. Nós não somos mais tratados como cidadãos de segunda
classe. Nós temos o direito hoje de andar de avião, de entrar num
shopping e comprar as coisas que todo mundo sempre quis comprar. E
recuperamos o prazer, o gosto de ser brasileiro, o gosto de amar o nosso
país (LULA, 2013, p. 12).

Vê-se que a redução à cidadania do consumo aparece como a síntese da


análise de Lula sobre o legado da administração do Partido dos Trabalhadores
(PT). Aqui o debate da cidadania como expressão de civis, políticos e sociais,
iniciado por Marshall (1967) e criticado, em perspectivas teóricas distintas, por
Carvalho (2011) e Saes (2000), reduz-se a seu menor denominador: o direito a
comprar mercadorias e reproduzir o capital.
O cidadão-consumidor presente no discurso de Lula, segundo os estudos
de Mota (2005, 2012), passa a ser o sujeito político nuclear da sociedade
regulada pela reprodução do capital. A inflexão para a análise do que se
consubstancia na política social é muito relevante. O Estado passa a assumir
parte dos custos da reprodução da força de trabalho, como condição da
acumulação do capital e utiliza-se do processo deflagrado pelos trabalhadores em
torno das conquistas sociais.
A análise da política social é pensada, dessa forma, na tensão da luta de
classes em que a organização dos trabalhadores interfere diretamente nos
169

ganhos da classe, mas que, mediada pelo Estado burguês, a política social está
sob efeito de uma força desigual e pende sistematicamente para os ganhos do
capital.
Ainda que brevemente, é relevante pontuar algumas questões sobre o
Estado. Tonet (2010), investigando as obras de Marx, “Glosas críticas marginais
ao artigo ‘o rei da Prússia e a reforma social’ de um prussiano”, “Sobre a questão
judaica” e os “Manuscritos econômico-filosóficos”, observa que existem quatro
teses sobre o Estado em Marx.
A primeira é a de que existe uma dependência ontológica do Estado para
com a burguesia. Isso se opõe à tese de que o Estado é o resultado do pacto
social, ou de que o Estado é o princípio superior do ordenamento da sociedade
civil. Para Marx, o Estado tem a sua raiz no antagonismo de classes sociais que
compõe a sociedade civil. A segunda tese afirma que o Estado essencialmente
expressa o interesse das classes dominantes. Na terceira tese está implícita a
ideia de que o Estado é impotente para alterar a sociedade civil:

a degradação da vida dos trabalhadores não é um simples defeito de


percurso, é o resultado ineliminável da forma das relações sociais de
trabalho. Ora, na medida em que o Estado é um instrumento de
reprodução dessas relações sociais, é-lhe vedada a possibilidade de
tomar medidas que eliminem os problemas sociais (TONET, 2010, p. 22-
23).

Já a quarta tese é sobre a extinção do Estado, fundada na convicção de


que, desfeita da sociedade civil, as classes sociais e o Estado perdem sua razão
de ser. Essa concepção tem como pressuposto a convicção de que, uma vez que
o Estado responde à uma forma de dominação de classes, ao se resolver essa
dominação – pela busca da emancipação humana –, o Estado burguês perde sua
necessidade histórica. Dizer isso não implica, todavia, na necessidade e na
importância de emancipação política.
No texto “Glosas Críticas”, Marx (2010, p. 38-39 grifos do autor) explicita
os limites do Estado

Do ponto de vista político, Estado e organização da sociedade não são


170

duas coisas distintas. O Estado é a organização da sociedade. Na


medida em que o Estado admite a existência de problemas sociais, ele
procura situá-las no âmbito das leis da natureza, que não recebem
ordens do governo humano, ou no âmbito da impropriedade da
administração, que é dependente dele. (...) O Estado não pode suprir a
contradição entre a finalidade e a boa vontade da administração, por um
lado, e seus meios e sua capacidade, por outro, sem suprimir a si
próprio, pois ele está baseado nessa contradição. Ele está baseado na
contradição entre a vida pública e a vida privada, na contradição entre os
interesses gerais e os interesses particulares. Em consequência, a
administração deve restringir-se a uma atividade formal e negativa,
porque o seu poder termina onde começa a vida burguesa e seu labor.
Sim, frente às consequências decorrentes da natureza associal dessa
vida burguesa, dessa propriedade privada, frente a essas consequências
a lei natural da administração é a impotência.

Esse limite na administração do Estado é nítido quando se observa a


tentativa do pacto de classes realizado pelos governos do Partido dos
Trabalhadores, como veremos a seguir. No marco da social-democracia o Estado
e mercado se dividem em tarefas que sustentam a reprodução do capital.
Segundo Przeworski (s./a., p. 57),

A estrutura dos sistemas capitalistas instituídos pelos social-democratas


foi a seguinte: 1) o Estado responsabiliza-se pelas atividades que não
são lucrativas para as empresas privadas, mas que se fazem
necessárias para a economia como um todo; 2) o governo regula,
especialmente por meio de políticas anticíclicas, o funcionamento do
setor privado; 3) o Estado, aplicando medidas pautadas pela teoria do
bem-estar, atenua os efeitos distributivos do funcionamento do mercado.

Essa ação do Estado na atenuação dos efeitos distributivos do


funcionamento do mercado é nitidamente a expressão do que se passa na
relação entre as políticas que compõem a seguridade social brasileira e a
ampliação, especialmente, nos governos petistas, da política de assistência
social. A tendência já esboçada desde a década de 1990 implica em uma
ampliação da política de assistência social, especialmente, na manutenção do
consumo de parcela da classe que não acessa ao emprego formal, ao passo que
se processa a privatização das políticas de Saúde e Previdência Social (MOTA,
2005, 2012).
A ampliação da Política de Assistência Social marca uma nova relação
entre a superexploração da classe trabalhadora e a reprodução do capital. A
política de Assistência Social originalmente se destina aos miseráveis, aos
171

inaptos para o trabalho e, por ser assim, é pensada em oposição ao trabalho


(BOSCHETTI, 2003). A ampliação da Assistência e a centralidade que ela ganha
na relação com as demais políticas carrega uma contradição para o interior da
Assistência Social que passa a incorporar estratos da classe, como
desempregados ou subempregados. “Eis porque as classes dominantes invocam
a política de Assistência Social como solução para combater a pobreza e nela
imprimem o selo do enfrentamento ‘moral’ da desigualdade” (MOTA, 2012a).
É nessa trilha que o direito humano à alimentação também se reduz ao
cidadão-consumidor habilitado a comprar alimentos. Esse cidadão-consumidor
que compra alimentos e utiliza para isso recursos repassados diretamente pelo
Estado, atualmente, compõe parcela da população flutuante e parcela da
população estagnada (MARX, 2006) e, nesse aspecto, o Estado, à serviço do
capital, se responsabiliza pela reprodução da classe trabalhadora reduzindo os
custos dos bens-salários. Esse é um dos elementos, como argumentado no
Capítulo II acerca da estratégia de combate à fome dos governos do PT.
Sobre o direcionamento dado pela política de combate à fome nos
governos petistas, José Graziano Silva, atual presidente da FAO, na ocasião de
sua posse em 2012, reforça em sua fala a perspectiva do governo brasileiro
quanto à estratégia de consumo de massa. O combate à fome apresenta-se como
um dos pilares para a credibilidade internacional do país.

No Brasil, há menos de dez anos, já éramos um dos maiores


exportadores de alimentos do mundo e tínhamos 30% da população
sujeita à fome. Precisou vir um cara como o Lula, que tinha passado
fome, para dizer: ‘Olha, vamos dar dinheiro para esse pessoal comprar
alimento!’. Para tanto, foi necessária uma primeira ação emergencial,
porque você não pode pedir a quem tem fome para que espere. Depois,
demos a essas pessoas acesso aos alimentos e procuramos agora
combater essa contradição, pois nosso País não pode continuar a ser o
maior exportador de alimentos do mundo e aceitar a fome dentro dele.
Nós nunca teríamos a credibilidade mundial que temos hoje, se
continuássemos aceitando essa contradição. Adotamos uma série de
saídas emergenciais, para providenciar o acesso à comida para aqueles
que não têm renda, mas veio também um aumento real do salário
mínimo, a criação de 15 milhões de novos empregos, o aumento real da
renda do trabalhador, e um modelo de desenvolvimento mais inclusivo,
mais voltado para a força do mercado interno. Acabar com a fome não é
apenas distribuir alimentos. Ao contrário, uma das razões da fome no
Norte da África foi a quantidade de alimentos que os países receberam
nos anos 1970 e 80, algo que destruiu sua agricultura doméstica. Volto
sempre a insistir que o Fome Zero – um programa tão combatido no
172

começo, porque ninguém entendia – foi fundamental para amarrar uma


série de pontas que estavam soltas. Conectou as pesquisas da
Embrapa, como a melhoria de sementes, que possibilitou a distribuição e
o cultivo no Nordeste por meio de programas de assistência técnica.
Sem um aumento do poder aquisitivo da população não adiantava
produzir, pois não havia quem comprasse e só conquistamos isso
recentemente (SILVA, 2012).

O discurso de José Graziano explicita que o fundamental para o governo


era ativar o mercado interno por meio de políticas compensatórias de
transferência de renda e ampliação do salário mínimo. O centro da política de
combate à fome perde a primazia da produção na unidade entre produção e
consumo para se consolidar na capacidade do cidadão-consumidor de acessar o
mercado.
No plano da assistência social, o que o governo realiza é exatamente o
previsto pelos organismos internacionais, tais como o Fundo Monetário
Internacional e o Banco Mundial. Atende também o debate sobre as ações que o
Estado deve assumir diante da parcela da população que não acessa o trabalho,
garantindo sua capacidade de consumo (MOTA, 2005).
A mediação política para tal feito é justamente o discurso, carregado de
recorrências morais, de acabar com a fome em nome da dignidade humana, de
reparar as injustiças sociais.

Essa é uma causa que pode e deve ser de todos, sem distinção de
classe, partido, ideologia. Em face do clamor dos que padecem o flagelo
da fome, deve prevalecer o imperativo ético de somar forças,
capacidades e instrumentos para defender o que é mais sagrado: a
dignidade humana (LULA, 2003).

Elemento complementar e essencial nesse processo é a posição tomada


no plano da reforma agrária, “pacífica, organizada e planejada”, que apresenta-se
como meio para a produção de alimentos. É, todavia, sintomático que trigo e soja
apareçam no discurso oficial, antes de farinha, arroz e feijão. Isso, portanto, não
parece mera casualidade. O incremento da agricultura familiar aparece
perfeitamente compatível como o vigoroso apoio à agroindústria e ao agronegócio
como complementares. O grande orgulho nacional é a produção e o comércio.
173

Será também imprescindível fazer uma reforma agrária pacífica,


organizada e planejada.
Vamos garantir acesso à terra para quem quer trabalhar, não apenas por
uma questão de justiça social, mas para que os campos do Brasil
produzam mais e tragam mais alimentos para a mesa de todos nós,
tragam trigo, tragam soja, tragam farinha, tragam frutos, tragam o nosso
feijão com arroz.
Para que o homem do campo recupere sua dignidade sabendo que, ao
se levantar com o nascer do sol, cada movimento de sua enxada ou do
seu trator irá contribuir para o bem-estar dos brasileiros do campo e da
cidade, vamos incrementar também a agricultura familiar, o
cooperativismo, as formas de economia solidária.
Elas são perfeitamente compatíveis com o nosso vigoroso apoio à
pecuária e à agricultura empresarial, à agroindústria e ao agronegócio,
são, na verdade, complementares tanto na dimensão econômica quanto
social. Temos de nos orgulhar de todos esses bens que produzimos e
comercializamos.
A reforma agrária será feita em terras ociosas, nos milhões de hectares
hoje disponíveis para a chegada de famílias e de sementes, que brotarão
viçosas com linhas de crédito e assistência técnica e científica. Faremos
isso sem afetar de modo algum as terras que produzem, porque as
terras produtivas se justificam por si mesmas e serão estimuladas a
produzir sempre mais, a exemplo da gigantesca montanha de grãos que
colhemos a cada ano.
Hoje, tantas e tantas áreas do país estão devidamente ocupadas, as
plantações espalham-se a perder de vista, há locais em que alcançamos
produtividade maior do que a da Austrália e a dos Estados Unidos.
Temos que cuidar bem – muito bem – deste imenso patrimônio produtivo
brasileiro. Por outro lado, é absolutamente necessário que o país volte a
crescer, gerando empregos e distribuindo renda (LULA, 2003).

É com essa perspectiva de pacto entre o agronegócio e a pequena


propriedade rural que o governo implementa o Programa Fome Zero (PFZ), em 1º
de janeiro de 2003, sob a responsabilidade do Ministério Extraordinário de
Segurança Alimentar e Combate à Fome (MESA) e pela medida provisória n. 103,
que determinava a criação do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e
Nutricional (CONSEA)55. O MESA se caracterizará como uma assessoria especial

55
O CONSEA de fato foi criado durante o governo Itamar Franco. Quanto à criação do CONSEA,
Valente (2002, p. 74-75) informa que dois avanços se apresentavam nesse momento: “1) O
combate à fome e a miséria passa a ser visto como um problema de Governo e uma questão
estratégica, sua coordenação ficando diretamente vinculada ao gabinete do presidente, e 2) O
objetivo de coordenar as ações governamentais de forma intersetorial, entre os diferentes níveis
de governo, e com as da sociedade civil no sentido de reduzir duplicidades, superposições e de
atingir os objetivos propostos”. Mas com a entrada do governo Fernando Henrique Carsodo, o
conselho foi desativado em 1995. Em 1995 o Governo Fernando Henrique Cardoso assume seu
primeiro mandato e cria imediatamente o Programa Comunidade Solidária (PCS). No marco da
contrarreforma do Estado (BEHRING, 2003a, 2003b) e na política neoliberal (Anderson, 2000), o
debate sobre a segurança alimentar e nutricional restringiu-se ao incentivo para que a sociedade
civil se mobilizasse para resolver o problema. O governo extingue o CONSEA e cria em seu lugar
174

da Presidência da República para viabilizar o processo de mobilização popular de


combate à fome.
É importante ressaltar, contudo, que o documento do Programa Fome
Zero56 (PFZ) já pautava a ação do PT no tema da fome antes que o partido
assumisse a presidência da República. O documento havia sido formulado pelo
PT anteriormente e exposto ao debate público. Nele, a alimentação é tomada
como um direito humano, incorporando o debate expresso no Fórum Brasileiro de
Segurança Alimentar e Nutricional (FBSAN)57. No período

O direito à alimentação é um direito humano básico. Sem ele não


podemos discutir os outros. Sem uma alimentação adequada, tanto do
ponto de vista de quantidade como de qualidade, não há o direito à vida.
Sem uma alimentação adequada não há o direito à humanidade,
entendida aqui como direito de acesso à riqueza material, cultural,
científica e espiritual produzida pela espécie humana (VALENTE apud
SILVA; CAMARGO, 2001, p. 9).

O direito a alimentar-se nesse período era entendido conforme o pacto


Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, segundo o qual “O
direito a alimentar-se significa o direito de estar livre da fome, o direito a um
padrão de vida adequado para assegurar alimentação, vestuário e moradia
adequados e o direito ao trabalho” (SILVA; CAMARGO, 2001, p. 9).
O documento do PFZ ressalta o papel estratégico da agricultura
camponesa em um modelo de desenvolvimento endógeno voltado para o
mercado interno. Propunham também a constituição de um Conselho Nacional de

o Conselho do Programa Comunidade Solidária, presidido pela primeira dama, Dra Ruth Cardoso.
Dilui-se a discussão sobre Segurança Alimentar e se desvia as ações do Estado que, a partir de
então, se recusa a discutir programas de governo (VALENTE, 2002).
56
Sobre a elaboração do documento do Fome Zero, observa-se que sua origem ocorreu a partir
do debate com a sociedade civil. Segundo seus coordenadores, “o texto preliminar foi elaborado a
partir de contribuições de uma centena de especialistas durante mais de seis meses. Foram
realizados três grandes encontros em São Paulo, Fortaleza e Santo André, que reuniram ao todo
mais de 1000 participantes que debateram e contribuíram para a versão preliminar da proposta.
Foram realizados, ainda, vários debates com a participação de técnicos e especialistas de todo o
Brasil. A versão preliminar dessa proposta foi enviada, também, para entidades da sociedade civil,
parlamentares, sindicatos, empresários e especialistas nacionais e internacionais que analisaram
e propuseram modificações ao documento” (SILVA; CAMARGO, 2001, p. 10).
57
Atualmente, Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (FBSSAN). O
fórum existe desde 1998.
175

Segurança Alimentar (CONSEA) e uma Secretaria Especial diretamente ligada à


Presidência da República (SILVA; CAMARGO, 2001).
Já em 1990, a proposta do Programa Fome Zero foi entregue ao governo
Fernando Collor de Melo (1990-1992)58, pela Organização Não Governamental
Governo Paralelo59. O governo Collor, todavia, não acatou a proposta. Após o
impeachment de Collor, o Governo Paralelo reapresentou a proposta ao governo
Itamar Franco (1992-1994). Nesse período, a proposta do Programa Fome Zero
estava assim redigida:

Garantir a segurança alimentar, assegurando que todos os brasileiros


tenham, em todo momento, acesso aos alimentos básicos de que
necessitam. Para isso, a disponibilidade agregada nacional de alimentos
deveria ser suficiente, estável, autônoma, sustentável e equitativamente
distribuída.
As principais propostas foram: geração de empregos, recuperação dos
salários e expansão da produção agroalimentar, com os seguintes eixos
de atuação: a) políticas de incentivo à produção agroalimentar (reforma
agrária, política agrícola e política agroindustrial); b) política de
comercialização agrícola (preços mínimos, estoques reguladores e
gestão de entrepostos); c) distribuição e consumo de alimentos por meio
de medidas de descentralização do setor varejista, controle de preços e
margens, ampliação dos programas de distribuição de alimentos básicos,
d) ações emergenciais de combate à fome (SILVA; CAMARGO, 2001, p.
10).

Cabe notar que a proposta, tal qual está redigida no documento entregue
ao governo Itamar Franco, associa imediatamente segurança alimentar com
acesso e produção de alimentos. Aponta-se para uma política de abastecimento

58
Valente (2002) informa que, durante o governo Collor, o desmonte do pouco que havia de
política de combate à fome foi significativo. Em primeiro lugar, foram extintos o PROAB e o
PROCAB. Até 1992, foram extintos todos os programas de suplementação alimentar dirigidos a
crianças menores de sete anos, grupo alvo, tecnicamente considerado mais vulnerável (PNLCC,
PSA, PCA/PAN, PAIE). Os programas de combate à carências específicas foram colocados em
hibernação, assim como o Programa de Incentivo ao Aleitamento Materno. O único programa
mantido foi o Programa de Combate ao Bócio Endêmico. Em 1992 o Programa Nacional de
Alimentação Escolar funcionou apenas 38 dias do ano escolar que contém 200 dias ao todo. O
Programa de Alimentação do Trabalhador (PAT) teve sua equipe reduzida a um técnico e, no
âmbito do INAN, todos os programas em andamento – exceto algumas atividades de aleitamento
materno – foram desativados.
59
Governo Paralelo é o nome da Organização Não Governamental – embrião do Instituto de
Cidadania – criado pelo PT após as eleições presidenciais de 1989, quando, no confronto do
segundo turno entre Lula e Fernando Collor de Melo, do Partido da Renovação Nacional (PRN),
eleito presidente. O objetivo da ONG era fiscalizar o governo eleito, mas também elaborar estudos
e produzir propostas de políticas sociais e colocá-las à disposição das instâncias de governo
(GOMES JUNIOR, 2007; PINHEIRO, 2009).
176

com controle, tanto da produção quanto da armazenagem. As ações


emergenciais de combate à fome aparecem como última ação, necessária,
porém, não o centro da estratégia de combate à fome.
O documento do Governo Paralelo previa ainda a criação do Conselho
Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA), realizado no Governo
Itamar Franco. Além de uma Reforma Agrária que atingisse 3 milhões de famílias
em 15 anos, era previsto o auxílio para a produção e comercialização de produtos
de pequenos e médios agricultores, o fortalecimento da Política de Alimentação
do Trabalhador (PAT) e a erradicação da desnutrição infantil. Para esse período,
os números utilizados pelo governo e tratados pelos idealizadores do Programa
Fome Zero, indicavam haver no país:

54,4 milhões de pessoas que não possuem renda suficiente para os


gastos básicos como alimentação, vestuário, moradia e saúde, dos quais
cerca da metade, ou 24 milhões de pessoas, não têm renda suficiente
sequer para se alimentar adequadamente. Além disso, verifica-se uma
crescente vulnerabilidade do país em relação à segurança alimentar
diante das constantes oscilações de preços dos alimentos, crescente
dependência de alimentos importados e diminuição dos estoques
públicos de produtos agrícolas (SILVA; CAMARGO, 2001, p. 10).

O que de fato se concretizou no Governo Itamar Franco foi o retorno ao


programa de distribuição de leite60, descentralizado e focalizado nas crianças e
gestantes em risco nutricional; a distribuição de merenda escolar e o fornecimento
de estoques de alimentos do governo para cerca de 2 milhões de famílias
atingidas pela seca. Destaca-se que houve aumento no recurso financeiro
investido nos programas, na proporção do dobro do que existia no governo
anterior. Nesse período, o governo estimava 30 milhões de brasileiros em
situação de insegurança alimentar, menos do que a oposição realizada pelo
Partido dos Trabalhadores identificava (SILVA, 2014).
Nessa conjuntura, realiza-se em 1994 a Primeira Conferência Nacional de

60
O Programa do Leite, como ficou conhecido, é uma referência ao Programa Nacional de Leite
para Crianças Carentes (PNLCC), lançado em 1986, pelo governo José Sarney. O Programa
distribuía tíquetes para que as famílias carentes comprassem 30 litros de leite mensais no
comércio local. O programa foi muito criticado por especialista por seu caráter clientelista,
focalizado e isolado de outras políticas.
177

Segurança Alimentar, em Brasília, com a presença de cerca de 2 mil pessoas. O


tema central da conferência foi: Fome, questão nacional (SILVA, 2014). As
discussões evidenciam, segundo Silva e Camargo (2001), que a concentração de
renda e de terra se constituíam como principais determinantes da situação de
fome e insegurança alimentar no Brasil.

O resultado da Conferência consolidou dois aspectos básicos. O


primeiro, de que o processo de desenvolvimento econômico-social do
país necessita garantir, obrigatoriamente, a segurança alimentar e
nutricional para todos. O segundo aspecto foi a comprovação, na prática,
da exigência de uma articulação entre sociedade civil e governo para
avançar na busca das condições de segurança alimentar, respeitadas
todas as diferenças de papéis de cada parte (SILVA E CAMARGO, 2001,
p. 13).

Ainda que o conjunto da análise da política social no Brasil (BOSCHETTI,


2003; MOTA, 2005; BEHRING; BOSCHETTI, 2006) seja reveladora do caráter
focalizado, fragmentado e descontinuo das ações, é importante ressaltar que a
criação, no governo FHC, do Programa Comunidade Solidária (PCS) representa
um retrocesso. Sua implementação representou um contínuo processo de recuo
do Estado em relação ao debate sobre a questão da fome para medidas fundadas
na ação da sociedade civil, ONG´s ou Organizações Sociais de Interesse Público
(OSIP), reflexo da política de redução do Estado levada adiante por este governo.

O PCS consistia em uma estratégia de articulação e coordenação de


ações descentralizadas de governo no combate à fome e à pobreza,
baseadas no estímulo à participação e ao acompanhamento dos atores
locais. Ele foi concebido sob as diretrizes da focalização e da busca pela
eficiência da ação do Estado e desoneração do orçamento público,
previstas no projeto de reforma institucional sob a responsabilidade do
Ministério das Ações de Reforma do Estado (MARE). Por isso, além da
extinção de órgãos da estrutura de governo, partes significativas dos
serviços sociais passaram a ser transferidas para o setor privado por
meio de parcerias, operacionalizadas por interlocutores entre as ONG’s
(entidades públicas não estatais), organizadas em torno do que se
61
convencionou chamar de ‘terceiro setor’ (SILVA, 2014, p. 27).

61
Sobre o terceiro setor, um estudo minucioso e crítico encontra-se em Montaño (2005).
178

Em seu segundo mandato a partir de 1999, FHC tenta reordenar o PCS,


criando o Programa Comunidade Ativa (PCA) que, na verdade, constituía apenas
uma nova roupagem para o programa anterior e o Programa de Desenvolvimento
Local Integrado Sustentável (PDLIS), com uma lógica de participação local via
Serviço Brasileiro de Apoio a Micro e a Pequenas Empresas (Sebrae), para que
as comunidades elaborassem seus planos locais de desenvolvimento e
estabelecessem as parcerias para executá-los.

O que acorreu de fato é que a estratégia desenvolvida pelo


governo federal, chefiada pela socióloga Ruth Cardoso, focava
demasiadamente na capacidade de regiões pobres e
marginalizadas desenvolverem dinâmicas socioeconômicas
autônomas, com base em parceiros com boa vontade de auxiliar e
investir nos planos e projetos que brotavam dos trabalhos dos
consultores. Pouca coisa avançou (SILVA, 2014).

Ao assumir o governo, conforme dito anteriormente, Lula institui o


Programa Fome Zero (PFZ) e o Ministério Extraordinário de Segurança Alimentar
e Combate à Fome (MESA). Um ano depois de instituí-los o governo desfaz o
MESA, assim como o Ministério da Assistência Social e Promoção Social e cria o
Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS). O ato não
significa um mero rearranjo administrativo. O MDS, responsável pela política de
Assistência Social, passa a ser o articulador do combate à fome, e o Programa
Bolsa Família configura-se, nesse processo, como o principal Programa de
repasse de renda do país.
A ação denota, nessa perspectiva de análise, uma mudança política do
lugar do combate à fome nas ações governamentais. Ao deslocar para a
Assistência Social o governo massifica a sociedade de consumo no intuito de “dar
dinheiro a essa gente para que ela compre comida”, como anuncia José Graziano
Silva, em detrimento das mudanças estruturais que deveriam ser feitas na
produção de alimentos da política de abastecimento no país. A política de
assistência social cumpre, então, o papel de impulsionadora do
consumo/mercado consumidor, via transferência de renda, revelando, assim, a
efetiva centralidade que se atribui a essa política, como favorecedora do capital, a
179

partir da operacionalização de um programa social que, ao mesmo tempo,


contribui na reprodução da classe trabalhadora como tal.
A mudança do Partido dos Trabalhadores (PT) não se faz notar,
obviamente, apenas na política de combate à fome. Iasi (2006), ao estudar as
mudanças processadas no PT, aponta a questão nos seguintes termos:

como compreender um partido de trabalhadores que finalmente chega


ao governo não mais para realizar um governo democrático e popular
que implementaria reformas estruturais que se confundiam com o início
de uma transição socialista, nem mesmo para executar um projeto
anticapitalista, antimonopolista, antilatifundiário e anti-imperialista, mas
para aplicar uma ‘ruptura necessária’ com o neoliberalismo e, ao chegar
ao governo, mantém, naquilo que é essencial, o modelo econômico
neoliberal, o que impede de aplicar até mesmo as modestas reformas
que um ano antes considerava urgentes e inadiáveis? (IASI, 2006, p.
525).

Iasi (2006, p. 530) destaca que o PT surgiu como expressão da


organização do operariado industrial e que se confrontava diretamente com o
capital. O partido colocou “como sua experiência histórica concreta a passagem
das lutas imediatas para lutas mais gerais, das lutas sindicais para as lutas
políticas até a formação de um partido com um caráter classista, anticapitalista e
com uma meta estratégica socialista”. Esse partido passa, imediatamente, a
assumir o poder da “negação ao consentimento”. Segundo Iasi (2006),

As mudanças que se verificam não se operam aleatoriamente, mas no


sentido de recolocar a consciência que se emancipava de volta nos
trilhos da ideologia. Não é, em absoluto, casual que certas palavras-
chave vão substituindo, pouco a pouco, alguns dos termos centrais das
formulações: ruptura revolucionária por rupturas, depois por
democratização radical, depois por democratização e finalmente
chegamos ao ‘alargamento das esferas de consenso’; socialismo por
socialismo democrático, depois por democracia sem socialismo;
socialização dos meios de produção por controle social do mercado;
classe trabalhadora, por trabalhadores, por povo, por cidadãos; e eis que
palavras como revolução, socialismo, capitalismo, classes, vão dando
lugar cada vez mais marcante para democracia, liberdade, igualdade,
justiça, cidadania, desenvolvimento com distribuição de renda (IASI,
2006, p. 535).

No campo do combate à fome, essa passagem apontada por IASI se


180

processa com o deslocamento para o combate à pobreza. O eixo central


transfere-se para a Política de Assistência Social que passa a ser a orientadora,
em última instância, do combate à fome articulado pelo Programa Bolsa Família
(PBF), que ganha centralidade na estratégia eleitoral do governo.
É, contudo, estruturado no país o marco legal do Sistema Nacional de
Segurança Alimentar e Nutricional (SISAN) que será abordado em seguida. O
necessário a ser destacado aqui é que a junção do MESA e do Ministério de
Assistência Social não é mera casualidade. Expressa uma mudança significativa
na orientação da política de combate à fome, no sentido do consumo de massa
potencializado pelo repasse de renda aos extratos da classe pertencentes à
superpopulação relativa. O governo sai do combate à fome para o combate à
pobreza. Essa junção aparece no Plano Nacional de Segurança Alimentar e
Nutricional em vigor no país, vejamos como Campelo62 (apud, BRASIL, 2011)
aponta a questão:

O avanço no debate e na institucionalização da Política de Segurança


Alimentar e Nutricional foi um dos mais expressivos ganhos observados
nas políticas sociais brasileiras dos últimos anos. Foi em torno do tema
da fome, da possibilidade concreta e da urgência ética de sua
superação, que o Brasil começou a desenhar os seus mais importantes
programas de combate à pobreza, como o Fome Zero e o Bolsa Família.
(…) Sabemos que a violação do direito à alimentação é a mais grave
expressão da extrema pobreza. Desta forma, o Plano é, sobretudo, uma
ferramenta poderosa para o alcance da meta de superação da extrema
pobreza no país (CAMPELO apud, BRASIL, 2011, p. 9).

Ao relacionar fome e pobreza na estrutura da política social, e tomar


pobreza sob seu aspecto de renda, como posto na documentação da política de
assistência social o governo simplifica a solução do problema da fome levando-o
para a esfera do consumo de massas.
Cabe notar, porém, o significado da mudança em questão operada pelo
governo do PT. Há um forte componente eleitoral na estratégia estabelecida
pelo governo via Programa Bolsa Família. Singer (2012), ao analisar as
condições eleitorais do PT, informa como a política do partido, ao deslocar a

62
Tereza Campello, atual ministra do Desenvolvimento Social e Combate à fome, na
apresentação do Plano Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional – 2012/2015.
181

estratégia do governo para o combate à pobreza, estabeleceu as bases para


sua manutenção no poder. O autor caracteriza a força eleitoral que o PT
consegue no primeiro governo e que o manterá no poder por quatro mandatos
consecutivos até os dias atuais. A força eleitoral do PT, para Singer, tem
centralidade no combate à pobreza, pois melhora o consumo da parte mais
pobre, sem romper com os interesses do capital. O fenômeno, caracterizado de
lulismo, encontra, na figura de Lula, o realinhamento entre ricos e pobres, entre
lulistas e antilulistas (SINGER, 2012).
Para Singer (2012), o PT se desloca do que denomina de reformismo
forte para um reformismo fraco. Na realidade, o partido alcança o poder
ampliando a aliança com os setores médios da sociedade, mas governa com
uma aliança com a própria burguesia (IASI, 2006, p. 544).
O que ocorre é que o governo operou uma junção ampliada do mercado
interno de massas:

Muita gente da classe média e rica acabou compreendendo. Aqueles


que ironizavam o Programa Bolsa Família, (...) o aumento do crédito
para a agricultura familiar, (...) o programa Luz para Todos e todas a
outras políticas sociais, aqueles que ironizavam dizendo que era esmola,
que era assistencialismo, perceberam que foram milhões de pessoas,
cada uma com um pouquinho de dinheiro na mão, que começaram a dar
estabilidade à economia brasileira, fazendo com que ela crescesse,
gerasse mais emprego e renda. Esta é uma lógica que todo mundo
deveria entender (...). Bem, aí nós estabelecemos uma política externa.
Primeiro: mais agressividade comercial. Nós não temos que ficar
esperando as pessoas virem comprar. Nós temos que sair para vender.
Vocês estão lembrados que, na campanha, eu falava: ‘eu vou querer um
ministro das Relações Exteriores que seja um mascate, um cara que
faça como um desses vendedores aqui em São Paulo, aquele que vai de
casa em casa bater palma, com as sacolinhas de pano. Se em uma não
querem comprar, vai à outra casa’. (LULA, 2013).

O resultado dessa junção é expresso pelos ganhos extraordinários para o


capital, com alguma parcela de ganhos para a classe trabalhadora, sempre
submetida aos interesses do capital.

O que eu guardo é o seguinte: eles nunca ganharam tanto dinheiro na


vida como ganharam no meu governo. Nem as emissoras de televisão,
que estavam quase todas quebradas; os jornais, quase todos quebrados
quando assumi o governo. As empresas e os bancos também nunca
ganharam tanto, mas os trabalhadores também ganharam. Agora,
182

obviamente que eu tenho clareza que o trabalhador só pode ganhar se a


empresa for bem. Eu não conheço, na história da humanidade, um
momento em que a empresa vai mal e que os trabalhadores conseguem
conquistar alguma coisa a não ser o desemprego (LULA, 2013).

O pacto de classes comandado pelo governo providenciou ganhos para o


capital, ampliação do agronegócio e meios para que a parcela da classe que
compõe a superpopulação relativa consumisse, sobretudo, produtos alimentares,
mas também mercadorias tidas como a “linha branca”: geladeiras, fogões,
microondas, máquinas de lavar. Ao programa Bolsa Família soma-se o aumento
do salário mínimo e a ampliação de empregos que alcançam até um salário e
meio – ambos são estratégias de dinamizar o consumo de massa e garantir a
reprodução do capital.
Uma vez exposta a estratégia do governo, cabe notar que o marco
jurídico sobre a Segurança Alimentar e Nutricional avançou no país durante o
governo do PT, impulsionado também pelas Conferências de Segurança
Alimentar e Nutricional e intermediado pelo CONSEA, pela ação dos movimentos
sociais e do FBSSAN.
O primeiro marco regulatório da PNSAN é a lei 11.346, de 15 de setembro
de 2006, que cria o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional
(SISAN), com vistas a assegurar o direito humano à alimentação adequada. Nele
se lê que a segurança abrange:

I – a ampliação das condições de acesso aos alimentos por meio da


produção, em especial da agricultura tradicional e familiar, do
processamento, da industrialização, da comercialização, incluindo-se os
acordos internacionais, do abastecimento e da distribuição de alimentos,
incluindo-se a água, bem como a geração de emprego e da
redistribuição de renda;
II – a conservação da biodiversidade e a utilização sustentável dos
recursos;
III – a promoção da saúde, da nutrição e da alimentação da população,
incluindo-se grupos populacionais específicos e populações em
vulnerabilidade social;
IV – a garantia da qualidade biológica, sanitária, nutricional e tecnológica
dos alimentos, bem como seu aproveitamento, estimulando práticas
alimentares e estilos de vida saudáveis que respeitem a diversidade
étnica e racial e cultural da população;
V – a produção de conhecimento e o acesso à informação; e
VI – a implementação de políticas públicas e estratégicas sustentáveis e
participativas de produção, comercialização e consumo de alimentos,
183

respeitando-se as múltiplas características culturais do país (BRASIL,


2006).

É possível observar que, no primeiro item, a compreensão da segurança


alimentar está associada à produção tradicional e familiar, porém, conjugada com
o processamento, a industrialização, a comercialização, reforçando o comércio
internacional e as com as estratégias de emprego e transferência monetária de
valores. Esta é a síntese do pacto entre as classes, aqui, no marco legal da
política a produção tradicional e familiar é posta em primeiro lugar, porém, a
dinâmica da economia nacional está orientada para o agronegócio.
O Sistema Nacional de Segurança Alimentar é implementado no Brasil e
estruturado pelas seguintes dimensões: 1) Conferência Nacional de Segurança
Alimentar e Nutricional; 2) Conselho Nacional de Segurança Alimentar e
Nutricional (CONSEA); 3) Instituições privadas com ou sem fins lucrativos; 4)
Órgãos e entidades de SAN que atuam em todas as esferas da federação.
Em 2010, o governo avança no marco legal e na institucionalidade da
política, como a incorporação do direito humano à alimentação no artigo 6º da
Constituição Federal. O ingresso da alimentação como direito humano na
Constituição é um marco importante para a política de combate à fome no Brasil,
pois, como direito constitucional torna-se obrigatoriedade do Estado na atenção à
política.
A regulamentação do SISAN, por meio do decreto n. 7272, de 25 de
agosto de 2010, institui ainda a Política Nacional de Segurança Alimentar e
Nutricional (PNSAN) que estabelece os parâmetros para a criação do Plano
Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (PLANSAN). As diretrizes para a
elaboração do PLANSAN são as seguintes:

I – promoção do acesso universal à alimentação adequada e saudável,


com prioridade para as famílias e pessoas em situação de insegurança
alimentar e nutricional;
II – promoção do abastecimento e estruturação adequada e saudável,
com prioridade para as famílias e pessoas em situação de insegurança
alimentar e nutricional;
III – instituição de processos permanentes de educação alimentar e
nutricional, pesquisa e formação nas áreas de segurança alimentar e
nutricional e do direito humano à alimentação adequada;
IV – promoção, universalização e coordenação das ações de segurança
184

alimentar e nutricional voltadas para quilombolas e demais povos


indígenas e assentados da reforma agrária;
V – fortalecimento das ações de alimentação e nutrição em todos os
níveis da atenção à saúde, de modo articulado às demais ações de
segurança alimentar e nutricional;
VI – promoção do acesso universal à água de qualidade e em
quantidade suficiente, com prioridade para as famílias em situação de
insegurança alimentar hídrica e para a produção de alimentos da
agricultura familiar e da pesca e aquicultura;
VII – apoio a iniciativas de promoção da soberania alimentar, segurança
alimentar e nutricional e do direito humano à alimentação adequada em
âmbito internacional e a negociação internacional baseada nos princípios
e diretrizes da Lei. 11.346 de 2006. (BRASIL, 2011)

O Primeiro PLANSAN, sob essa orientação da política, é lançado em


2011, com o planejamento para o período 2012-2015. O plano é de
responsabilidade do MDS, que tem como atribuições elaborar, monitorar, avaliar e
ampliar a composição da Câmara Interministerial de Segurança Alimentar e
Nutricional (CAISAN), que atualmente é composta por 19 ministérios. O MDS é
responsável também por garantir o funcionamento do Conselho de Segurança
Alimentar (CONSEA).
Das oito diretrizes que compõem o plano, desdobram-se 42 objetivos,
organizados em 229 iniciativas e deve funcionar em parceria com organizações
não governamentais (ONG’s) (BRASIL, 2011).
O maior peso quantitativo de atividades está sob a responsabilidade do
MDS, tais como as que se organizam sob o Programa Bolsa Família (PBF) e o
Benefício de Prestação Continuada (BPC). A maioria das iniciativas, 52 delas,
envolve o Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) e a Companhia Nacional
de Abastecimento (CONAB), centradas no apoio à produção da pequena
propriedade rural. Essas ações, em sua maioria, atendem ao debate
sistematizado pelo CONSEA por meio das Conferências Nacionais de Segurança
Nutricional e Alimentação63.

63
Conforme já informado, a primeira conferência foi realizada em 1994, em Brasília, ainda no
marco das articulações oriundas da Ação da Cidadania Contra a Fome, a Miséria e Pela Vida. A
segunda aconteceu em Olinda, dez anos depois, já fruto das ações do governo petista. O objetivo
era “propor diretrizes para o Plano Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, além de avaliar
ações e experiências” (CONSEA, 2009, p. 10). Nesta ocasião foram aprovadas 153 propostas de
ações estratégicas, das quais a principal é a construção da Lei que cria o Sistema Nacional de
Segurança Alimentar e Nutricional. A terceira conferência é realizada em Fortaleza, em 2007. A
partir dessa conferência cria-se a Lei 11.346, de 15 de setembro de 2006, Lei Orgânica de
Segurança Alimentar e Nutricional (LOSAN) que, por sua vez, cria o Sistema Nacional de
Segurança Alimentar e Nutricional (SISAN). A IV Conferência ocorreu em Salvador, em 2011. Seu
185

Destacarei dentro dessas iniciativas às relacionadas ao combate à


pobreza, especialmente as vinculadas ao Programa Bolsa Família. A escolha do
programa para análise justifica-se pela estratégia do governo, no que diz respeito
à fome.

3.2. A fome e o fetiche da redução da pobreza: entre as necessidades


humanas e a reprodução do capital

Conforme explicitado anteriormente, a fome é compreendida como a


ingestão insuficiente de alimentos que leva à deterioração do estado de saúde
e/ou do desenvolvimento produtivo e social dos homens. Cabe, porém, a distinção
entre fome, pobreza e desnutrição, pois, se toda fome se expressa por
desnutrição, nem toda desnutrição é causada pela fome. Monteiro (2003) explica
que a desnutrição, ou as deficiências nutricionais, ocorrem por insuficiência
energética e nutricional, ou ainda, de um inadequado aproveitamento biológico
dos alimentos ingeridos e que pode, inclusive, ser motivado pela presença de
doenças, em particular, doenças infecciosas.
Monteiro (2003), ao fazer a distinção dos três fenômenos, fome,
desnutrição e pobreza, compreende a pobreza, de modo simples, como a
ausência de condições de satisfação das necessidades humanas elementares,
tais como: comida, abrigo, vestuário, educação, assistência à saúde,
normalmente traduzidas operacionalmente em termos de renda, dentro da qual a
extrema pobreza corresponde à indigência e está no patamar da insegurança
alimentar. Assim, para o autor,

Um indivíduo poderá ser pobre sem ser afetado pelo problema da fome
bastando que sua condição de pobreza se expresse por carências
básicas outras que não a alimentação (o instinto de sobrevivência do
homem e de todas as outras espécies animais faz com que suas
necessidades alimentares tenham precedência sobre as demais). A

objetivo geral era “construir compromissos para efetivar o direito humano à alimentação adequada
e saudável, previsto no artigo 6º da Constituição Federal, e promover a soberania alimentar por
meio da implementação da Política e do Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional
(SISAN) nas esferas de governo e com a participação da sociedade (CONSEA 2, 2014, S/P).
186

situação inversa, ocorrência da fome na ausência da condição de


pobreza, ocorre apenas excepcionalmente por ocasião de guerras e
catástrofes naturais. Fome e desnutrição tampouco são equivalentes,
uma vez que, se toda fome leva necessariamente à desnutrição – de
fato, a uma modalidade de desnutrição: a deficiência energética crônica
– nem toda deficiência nutricional se origina do aporte alimentar
insuficiente em energia, ou, sendo mais direto, da falta de comida. Ao
contrário, são causas relativamente comuns de desnutrição, sobretudo
na infância, o déficit específico da dieta em micronutrientes, a higiene
precária na preparação dos alimentos e a incidência repetida de
infecções, em particular doenças diarréicas e parasitoses intestinais
(MONTEIRO, 2003, p. 10).

Burlandy (2010) apresenta uma discussão sucinta do que entende como


debate sobre as concepções de pobreza em curso no Brasil para o debate sobre
a segurança alimentar e nutricional. A autora faz alusão a diferentes concepções
sobre a pobreza para seguir a linha do debate sobre a questão alimentar. Um dos
aspectos que considera é a compreensão de pobreza como insuficiência de renda
para garantir a satisfação das necessidades. Nessa trilha encontra-se Rocha
(2003, p. 9). Para a autora, a pobreza é

Um fenômeno complexo, podendo ser definido de forma genérica como


a situação na qual as necessidades não são atendidas de forma
adequada. Para operacionalizar essa noção ampla e vaga, é essencial
especificar que necessidades são essas e qual nível de atendimento
pode ser considerado adequado. A definição relevante depende
basicamente do padrão de vida e da forma como as diferentes
necessidades são atendidas em determinado contexto socioeconômico.
Em última instância, ser pobre significa não dispor dos meios para operar
adequadamente no grupo social em que se vive.

Nesse sentido, dada a dificuldade de mensurar quais seriam essas


necessidades, o conceito de pobreza passa a ser vinculado à renda, de forma que
o debate explicitado nos países de capitalismo central após a segunda grande
guerra, implicava na noção entre pobreza absoluta e pobreza relativa. A primeira
vincula-se à incapacidade dos indivíduos de satisfazerem suas necessidades
vitais, interpretado por Burlandy (2013) como necessidades nutricionais, e, a
segunda faz referência à diferença entre a condição de vida dos sujeitos em
determinadas sociedades e em relação ao padrão de vida estabelecido para a
mesma.
187

Burlandy (2013) remete a discussão da pobreza relativa para o debate


sobre a cesta básica e a dificuldade de se estabelecer um padrão mínimo
aceitável para se calcular o valor monetário desses alimentos, uma vez que a
composição alimentar adequada para suprir a fome dos sujeitos é muito relativa e
submete-se à questões culturais, climáticas, biológicas e ao gasto energético
necessário para a realização de atividades específicas.
Sobre o tema da pobreza, Siqueira (2013) realizou um significativo e
aprofundado estudo. Há um rico debate sobre o tema que vai desde a literatura
liberal (MALTHUS, 1982b; SMITH, 1982; HAYEK, 1992), que possui como
denominador comum o entendimento de pobreza como o fracasso individual, à
concepções que, produto do subdesenvolvimento social ou individual, deve ser
enfrentada com oportunidades de microcrédito como proposto por Sen e Yunus,
ou ainda, pobreza como uma questão de poder a ser enfrentada por meio do
“empoderamento” dos pobres, até a concepção de pobreza inscrita na perspectiva
crítica, que observa o fenômeno da pobreza como inerente à lei geral de
acumulação capitalista.
Esse estudo entende a pobreza como um fenômeno inerente ao modo de
produção capitalista e originário da lei geral de acumulação capitalista (MARX,
2003; 2006). A fome apresenta-se, também, como uma das expressões da
“questão social” (NETTO, 2001b) organicamente vinculada à reprodução do
capital.
O debate sobre a pobreza no interior da política de combate, todavia, é
apreendido em sua dimensão de renda e, dessa forma, traduzido em pobreza
relativa e pobreza absoluta. Antes de tratarmos da questão salarial e da condição
de satisfação da necessidade humana à alimentação no Brasil, cabem alguns
apontamentos sobre a questão da pobreza.
Retomo a discussão sobre a satisfação das necessidades e a produção
de novas necessidades em um processo contínuo que impulsiona a história da
constituição do homem como Ser Social. O longo processo da história da
humanidade até o modo de produção capitalista explicitará, todavia, um caminho
tortuoso de desenvolvimento das potencialidades humanas. O detalhamento
desse processo foge aos objetivos desse estudo, porém, é fundamental demarcar
a questão a partir do modo de produção capitalista, uma vez que o problema da
188

fome muda de estatuto após a revolução industrial inglesa do século XVIII. Até
aqui, a fome poderia ser atribuída às dificuldades humanas em dominar a
natureza, à produção de alimentos, às catástrofes naturais. No atual estágio do
desenvolvimento capitalista, entretanto, o problema muda de forma e conteúdo, a
transição nutricional aponta para a polarização entre obesidade, caracterizada de
forma simplificada pelo consumo de calorias em demasia, e a desnutrição, no
caso do Brasil, especialmente a prevalência de anemia.
É importante ressaltar que no modo de produção capitalista, o homem
produz de forma estranhada, produz para o capitalista, o dono dos meios de
produção e não se percebe como produtor, não se vê em sua obra. “Da relação
do trabalho estranhado com a propriedade privada depreende-se, além do mais,
que a emancipação da sociedade da propriedade privada, da servidão, se
manifesta na forma política da emancipação dos trabalhadores” (MARX, 2012, p.
88-89). A emancipação dos trabalhadores não diz respeito apenas à eles, mas à
emancipação humana em sua dimensão universal, contrariamente ao que ocorre
na relação do trabalhador com a produção. É na produção que se encontra o
fundamento da opressão humana inteira e de todas as formas de servidão com
consequências e modificações nessa relação fundante.
São as relações sociais de produção que determinam as condições de
satisfação das necessidades humanas. Desse modo, o sistema de necessidades
é alterado no curso das transformações históricas e o modo de produção
determina a condição de satisfação das necessidades, ou seja, no atual estágio
de desenvolvimento do capital, a necessidade humana à alimentação se submete
às condições concretas de satisfação no interir do sistema sociometabólico do
capital.

Todo o sistema de necessidades humanas, junto com suas condições de


satisfação, é radicalmente alterado no curso das transformações
históricas. E, enquanto permanece um desafio aberto a questão da
‘unidade da humanidade ativa com as condições naturais inorgânicas da
sua troca metabólica com a natureza’, sua realização apenas é
concebível no nível mais avançado de intercâmbio produtivo com ambas
as dimensões da natureza. Deve abarcar a natureza ‘externa’,
confrontando o ser humano natural (com suas múltiplas propriedades e
forças adaptáveis, assim como com suas resistências indomáveis), e a
natureza ‘interior’, isto é, a ‘própria natureza da humanidade’ que se
desenvolve historicamente (a qual inclui as condições inorgânicas,
189

naturais, de intercâmbio humano com a natureza) (MÉSZÁROS, 2002, p.


608 grifos do autor).

No modo de produção capitalista, as necessidades humanas, para serem


satisfeitas, precisam ser intermediadas pela mercadoria. O trabalho, portanto,
passa a ser um trabalho estranhado ao homem, à constituição do gênero. O
processo de produzir riqueza torna o trabalhador cada vez mais pobre.

O trabalhador se torna tanto mais pobre quanto mais riqueza produz,


quanto mais a sua produção aumenta em poder e extensão. O
trabalhador se torna uma mercadoria tão mais barata quanto mais
mercadorias cria. Com a valorização do mundo das coisas aumenta em
proporção direta a desvalorização do mundo dos homens. O trabalho
não produz somente mercadorias; ele produz a si mesmo e ao
trabalhador como uma mercadoria, e isto na medida em que produz, de
fato, mercadorias em geral (MARX, 2012, p. 80 grifos do autor).

Submetido às relações sociais de produção do sistema capitalista, o


trabalhador, para conseguir os bens de uso necessários à sua reprodução
material, necessita vender sua força de trabalho e com ela obter o salário. A
venda da força de trabalho passa a ser a mediação fundamental para acessar os
valores de uso necessários à satisfação das necessidades. Isso implica que para
o trabalhador as suas necessidades humanas se reduzem à necessidade
primordial de se tornar um trabalhador cuja força de trabalho seja uma mercadoria
absorvida pelo processo produtivo. Em outras palavras, ele só pode existir
fisicamente ao se constituir como um trabalhador, mas só como trabalhador
inserido no processo produtivo é que pode existir fisicamente.

Quanto mais, portanto, o trabalhador se apropria do mundo externo, da


natureza sensível, por meio do seu trabalho, tanto mais ele se priva dos
meios de vida segundo um duplo sentido: primeiro, que sempre mais o
mundo exterior sensível deixa de ser um objeto pertencente ao seu
trabalho, um meio de vida do seu trabalho; segundo, que [o mundo
exterior sensível] cessa, cada vez mais, de ser meio de vida no sentido
imediato, meio para a subsistência física do trabalhador.
Segundo esse duplo sentido, o trabalhador se torna, portanto, um servo
do seu objeto. Primeiro, porque ele recebe um objeto do trabalho, isto é,
recebe trabalho; e, segundo, porque recebe meios de subsistência.
Portanto, para que possa existir, em primeiro lugar, como trabalhador e,
em segundo, como sujeito físico. O auge desta servidão é que somente
190

como trabalhador ele [pode] se manter como sujeito físico e apenas


como sujeito físico ele é trabalhador (MARX, 2012, p. 81-82).

As relações sociais de produção, no modo de produção capitalista,


implicam em uma contradição insuprimível, quanto mais riqueza o trabalhador
produz, por meio da força de trabalho empregada no processo produtivo, mas
pobre ele se torna. Esse é o fundamento da pobreza e da miséria que orientam a
discussão da “questão social” – um processo de pauperização absolutamente
diferenciado de todos os outros momentos da história dos homens (NETTO,
2001b).
O problema da pobreza só pode ser apreendido sob a lógica da lei geral
de acumulação capitalista (MARX, 2003). O capital tende a aumentar sua
composição orgânica em relação aos fatores subjetivos. Em outras palavras, o
processo produtivo à medida que incorpora avanços tecnológicos expulsa a força
de trabalho do processo, ou seja, aumenta-se o capital constante em relação ao
capital variável. Outro processo implícito na dinâmica de acumulação é a
concentração de capitais, pois o capital entra em concorrência e em contradição
também com capitais individuais. Esse processo dinâmico e contraditório de
valorização do capital tem implicações imediatas na reprodução da classe
trabalhadora, esteja ela inserida no processo produtivo ou à margem dele como
exército industrial de reserva. A concentração e centralização são processos
distintos. A centralização, um processo mais nocivo que a concentração, é a raiz
dos monopólios (MARX, 2003, BARAN; SWEEZY, 1969; NETTO 2005).
Para além do processo de centralização/concentração, outra
característica do processo de acumulação e reprodução do capital ancora-se na
dinâmica no interior da composição orgânica do capital. O movimento de
valorização do capital tende a aumentar o capital constante à custa do capital
variável. Isso significa dizer que o processo produtivo expulsa, constantemente,
trabalhadores de seu interior. Isso obedece obviamente a uma dinâmica que não
é linear e que se modifica com o tempo, espaço e setores econômicos.
Fundamental é compreender que um exército de reserva à margem do processo
produtivo estará sempre à disposição do capital. A composição desse exército de
191

reserva implica diretamente na capacidade de articulação da classe e em seu


poder de confronto com o capital.
O movimento de expulsão ou de absorção da força de trabalho no
processo produtivo depende de diversos fatores, porém, o exército industrial de
reserva não desaparece, o que implica na existência de uma superpopulação
relativa. Essa superpopulação, para Marx (2003), aparece de três formas
distintas. A primeira é a forma flutuante, compõe-se de uma população que ora
está desempregada, ora empregada em diversos setores produtivos. A segunda
diz respeito à população que é expulsa da agricultura, do campo, notadamente
pela inserção da industrialização no setor agrícola. Essa população migra para o
espaço urbano e compõe a superpopulação relativa. E terceiro, a forma
estagnada da superpopulação relativa, composta por trabalhadores irregulares,
precários, subempregados. Essa última forma, a superpopulação relativa
estagnada, divide-se em três partes: os aptos para o trabalho, os não aptos para
o trabalho e os filhos e órfãos de indigentes. Aqui se localiza parcela da classe
que pode ser eliminada pela fome. Como explicitado no primeiro capítulo, esse
público é também o da Assistência Social.
Por outro lado, a existência da pauperização é não só fundamental como
extremamente necessária para a acumulação capitalista. É em função de sua
existência que o capital pode manter baixos os salários dos trabalhadores
empregados. A lei geral de acumulação capitalista implica, fundamentalmente, na
geração e reprodução da miséria e da pobreza. A pobreza é o par dialético da
produção de riqueza sob o capital, de forma que só podem ser superados
conjuntamente.
Nessa perspectiva, o aumento do pauperismo se encontra em razão
direta com o aumento da riqueza socialmente produzida. Ao se analisar a
condição da classe em sua totalidade, observa-se a precariedade das condições
de vida à medida em que se aumenta a produtividade do capital. Isso ocorre,
especificamente, pela forma de extração do valor no interior da dinâmica
produtiva – e está para além do quantitativo recebido pelo trabalhador como
salário. Essa é a base da discussão para a compreensão da pobreza, não como
mera composição da renda, mas como a relação entre produção e apropriação da
riqueza produzida pelo trabalho.
192

Considero, dessa forma, uma redução entender a pobreza apenas como


falta de recursos para acessar bens necessários à reprodução material. A
pobreza está no fundamento da dinâmica de reprodução do capital e somente
será suprimida quando o primeiro deixa de existir.
Daí a mistificação operada no âmbito da política social, e nela, a
assistência social que expressa sua centralidade, no contexto atual, via
transferência de renda, aliando a solução do fenômeno pobreza à mera questão
de repasse de renda.
Dessa contradição entre a produção e a apropriação da riqueza que gera
um pauperismo muito distinto da pobreza existente antes do sistema de produção
sob a ordem do capital, está o cerne da “questão social”. A “questão social” é
apreendida como expressão dos conflitos sociais causados pela massificação da
pobreza oriunda da primeira revolução industrial e a reação da classe
trabalhadora.

O desenvolvimento capitalista produz, compulsoriamente, a ‘questão


social’ – diferentes estágios capitalistas produzem diferentes estágios da
‘questão social’; esta não é uma sequela adjetiva ou transitória do regime
do capital: sua existência e suas manifestações são indissociáveis da
dinâmica específica do capital tornado potência social dominante. A
‘questão social’ é constitutiva do desenvolvimento do capitalismo. Não se
64
suprime a primeira conservando-se o segundo (NETTO, 2005, p. 45).

A classe trabalhadora reage à superexploração do trabalho e à


pauperização inicialmente com levantes violentos, como a quebra de máquinas e
o incêndio de fábricas, depois de forma mais organizada em sindicatos e que
tensionam as respostas do Estado à superexploração do trabalho.
Na fase monopolista, além de respostas ao campo de tensão posto pelo
confronto entre as classes sociais fundamentais, o Estado será requisitado a
intervir na preservação e controle da força de trabalho ocupada e excedente
também em função da necessidade de reprodução capitalista “na malha de óbices
à valorização do capital no marco do monopólio” (NETTO, 2005, p. 26).

64
O tema da “questão social” é desenvolvido por Iamamoto (2001); Pastorini (2010); Bening;
Silvana (2009).
193

A política social se constitui como meio para a intervenção do Estado nas


expressões da “questão social” no marco dos tensionamentos entre capital e
trabalho. Nesse embate, em alguns momentos apresenta ganhos para a classe
trabalhadora ao impor limites à superexploração do trabalho, mas, se constitui
eminentemente como forma de socializar os custos da produção de mercadorias,
transferindo para o Estado a manutenção de parcela da classe que compõe a
superpopulação relativa em condições de vender sua força de trabalho e de
seguir consumindo mercadorias (NETTO, 2005; BEHRING; BOSCHETTI, 2006).
No caso da América Latina, e especialmente do Brasil, dado o padrão
dependente de reprodução do capital, o processo de superexploração do trabalho
se verifica na própria composição salarial.
No Brasil, o salário mínimo foi estabelecido pelo decreto-Lei 399, de
193865, e definido como “a remuneração mínima devida a todo trabalhador adulto,
sem distinção de sexo, por dia normal de serviço e capaz de satisfazer, em
determinada época, na “região do país, as suas necessidades normais de
alimentação, habitação, vestuário, higiene e transporte”.
O mesmo decreto regulamentou também as comissões de salário mínimo
que estabeleceram a cesta básica66 mensal para o trabalhador brasileiro.
Orientada por regiões do país, os produtos previstos na cesta são: carne, leite,
feijão, arroz, farinha, batata, legumes (tomate), pão francês, café em pó, frutas,
açúcar, óleo/banha e manteiga (DIEESE, 2014).
Fundamentado nesse parâmetro e atualizado com o que se define como
salário mínimo na CF 1988, como direito do trabalhador, o

65
O salário mínimo é previsto pela primeira vez no Brasil na Constituição Federal de 1934. A Lei
185, de 14 de janeiro de 1936 cria as comissões de salário mínimo cujo objetivo era estabelecer
para as regiões do Brasil o salário mínimo necessário para suprir a necessidade mínima de
reprodução do trabalhador. Em 1938 é regulamentada a Lei 185 que cria, então, o salário mínimo,
de fato instituído em 1940, com valores diferenciados por regiões. O salário mínimo só será
unificado no Brasil em 1984.
66
A cesta básica foi definida pelo decreto Lei n.399, de 30 de abril de 1938, que regulamentava a
Lei n. 185, de 14 de janeiro de 1936, que instituía o salário mínimo nacional. A cesta básica é
calculada de forma diferenciada nas regiões do Brasil. O cálculo geral para o país tem os
seguintes produtos: carne (6,0 kg), leite (15,0 l), feijão (4,5 kg), arroz (3,0 kg), farinha de trigo ou
mandioca (1,5 kg), café (6,0 kg), batata (6,0 kg), legumes/tomate (9,0 kg), pão francês (6,0 kg),
furtas/banana (90 unid.), açúcar (3,0 kg), banha/óleo (1,5 kg), manteiga (900 gr.).
194

salário mínimo, fixado em lei, nacionalmente unificado, [é] capaz de


atender à suas necessidades vitais básicas e às de sua família com
moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene,
transporte e previdência social, com reajustes periódicos que lhe
preservem o poder aquisitivo, sendo vedada sua vinculação para
qualquer fim (BRASIL, CF. 1988, Ar. 7).

Durante o governo Lula, o salário mínimo registrou ganhos reais de 72%.


Em dezembro de 2014, o salário mínimo nominal era de R$ 724,00 (setecentos e
vinte e quatro reais). O Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos
Socioeconômicos (DIEESE) informa que, no Brasil, 48,2 milhões de trabalhadores
têm rendimentos referendados no salário mínimo, destes, 21.420 são
beneficiários do INSS, 14.309 empregados, 8.022 trabalham por conta própria,
4.204 trabalhadores domésticos e 223 empregadores (DIEESE, 2014).
O Dieese calcula mensalmente o salário mínimo necessário para atender
ao artigo 7 da Constituição Federal e o compara com o salário nominal, o salário
pago no país. O gráfico abaixo apresenta a evolução histórica desses dados entre
2003-2014. Os dados para o salário mínimo nominal estão depreciados para
janeiro de 2014. Os dados para o salário mínimo necessário consideraram
apenas o valor para janeiro de cada ano e não a média anual.

Gráfico 3.1: Comparativo entre salário mínimo nominal e necessário, Brasil – 2003-2014

4000
2.674,88
3500
2.194,76
3000 2.077,15 2.748,22

2500 1.565,61 2.398,82


1.385,91 1.496,56 1.987,26
2000 1.924,59

1500 1.445,39 1.452,28

1000 624,43 690,34


541,87 597,94
397,88 443,97
500
513,6 554,65 624,33 673,25 724
413,27
0
2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014

Salário Mínimo Necessário Salário Mínimo Nominal

Fonte: DIESSE, 2014. Elaboração Própria.


195

O Dieese também acompanha desde 1959 o valor da cesta básica67, que


deveria ser suficiente para um trabalhador se reproduzir. Para o ano de 2014 o
valor médio da cesta básica na cidade de São Paulo foi de R$ 344,91 (trezentos e
quarenta e quatro reais e noventa e um centavos). Se comparamos o salário
nominal com o valor médio da cesta básica, vemos que o custo médio da cesta
básica corresponde a 50% do salário mínimo.
É com esse salário mínimo que o trabalhador brasileiro compra no
mercado seus alimentos. A tendência a comprar o alimento mais barato
encontrado é, obviamente, uma exigência de sobrevivência. O barateamento do
preço dos alimentos ocorre pelo sistema agroindustrial, como exposto nos
capítulos I e II.
A superexploração do trabalho fica muito nítida na análise desses dados.
Ainda que reduzido às necessidades básicas para a reprodução da força de
trabalho, o salário mínimo pago fica muito aquém do que é estabelecido
constitucionalmente e serve de parâmetro histórico conjuntural para a análise.

3.3. A centralidade do Programa Bolsa Família na política de Assistência


Social: a estratégia petista

No plano dos programas de acesso à alimentos para parcela da classe


que não possui emprego, o governo petista criou, inicialmente, o Programa
Nacional de Acesso à Alimentação, conhecido como “Cartão Alimentação” e que

tinha como objetivo gerar uma demanda ampla por alimentos e, em


decorrência disso, aumentar a geração de emprego e renda por meio da
maior circulação local de moeda e da produção local de alimentos, o que
não ocorria eficientemente com os programas anteriores de simples
distribuição de cestas básicas. O Cartão Alimentação serviria também
como ação complementar às demais transferências de renda, como o
Bolsa Escola e o Bolsa Alimentação já em curso (SILVA, 2014. p. 33).

O programa previa o repasse de cinquenta reais por família, valor


estipulado pela CONAB como suficiente para comprar a cesta básica. Em seu

67
O Dieese calcula a cesta básica para 16 cidades brasileiras e não é possível, por meio desses
dados, fazer uma média nacional. Escolhi a cidade de São Paulo como referência em função de
ser a maior cidade em contingente populacional do país.
196

primeiro ano atingiu 1,9 milhões de famílias em 2.369 municípios distribuídos pelo
país.
O debate sobre a necessidade da transferência de renda, no sentido de
garantir o consumo da população, levou à unificação da política de combate à
fome e da política de assistência social. Essa unificação, portanto, coloca sob o
prisma da assistência social a política de combate à fome e no aspecto político-
ideológico reduz o combate à fome ao combate à pobreza.
O Programa Bolsa Família é instituído em 200468, ano em que se elabora
a Política Nacional de Assistência Social (PNAS) e posteriormente se organiza o
Sistema Nacional de Assistência Social (SUAS), regulamentado em 201169. A
estrutura básica do SUAS é composta pelos Centros de Referência de
Assistência Social (CRAS) responsáveis pela gestão do Programa e os Centros
Especializados de Assistência Social (CREAS). Os CRAS são responsáveis pelo
cadastramento e acompanhamento das famílias inseridas no programa.
Segundo a PNAS (2004), em 2004 existiam 56 milhões de brasileiros
abaixo da linha da pobreza e mais de 28 milhões de brasileiros abaixo da linha de
indigência. A resposta articulada pelo governo para reduzir o problema é investir
no repasse direto de recurso; cria-se o Programa Bolsa Família que atualmente
compõe o plano Brasil Sem Miséria. Esse programa, articulado com o aumento do
valor monetário do salário mínimo e a criação de postos de trabalho nessa faixa
salarial, reconfigurará o perfil da pobreza no Brasil.
Em seu início, o Programa Bolsa Família estabelecia como pobres as
famílias que possuíam renda per capita de meio salário mínimo e linha de
indigência, famílias com renda per capita de um quarto de salário mínimo (PNAS,
2004). Atualmente, define a pobreza pela renda familiar per capita entre R$ 77,01
e R$ 154,00 e pobreza extrema pela renda inferior a R$ 77,00 per capita (MDS,
2014).
O dinheiro transferido pelo PBF depende da quantidade de pessoas que

68
O Programa Bolsa Família é instituído pela Lei 10.836, de 9 de janeiro de 2004 e regulamentado
pelo decreto 5.209, de 17 de setembro de 2004.
69
O Sistema Único da Assistência Social (SUAS) é criado oficialmente em 2011, quando o
governo modifica a Lei Orgânica da Assistência Social que incorpora a criação do sistema além de
outras modificações, passando a ser referenciada pela Lei 12.435, de julho de 2011. O SUAS,
todavia, já estava em processo de constituição desde a PNAS de 2004.
197

compõem a família, da idade de seus membros e de sua composição. Há repasse


de dinheiro específico para famílias com crianças, jovens até 17 anos, gestantes e
lactantes. Em 2014 os benefícios estavam assim distribuídos: Benefício básico R$
77,00, concedido às famílias cuja renda é inferior a esse valor per capita.
Benefício variável de R$ 35,00, concedido às famílias com crianças ou
adolescentes de 0 a 15 anos de idade. Benefício variável à gestante de R$ 35,00,
pago apenas durante o período de gestação e realizado por meio do Sistema
Bolsa Família na Saúde. Benefício Variável Nutriz de R$ 35,00, concedido às
famílias que tenham crianças de 0 a 6 meses de vida em sua composição. Esses
benefícios são limitados a 5 por família. Benefício variável vinculado à
adolescente entre 16 e 17 anos de R$ 42,00, limitado em 2 benefícios. O Plano
Brasil Sem Miséria acrescentou um outro dispositivo que é chamado de Benefício
para Superação da Extrema Pobreza, calculado caso a caso e é transferido às
famílias que, mesmo após o recebimento dos outros benefícios, ainda não
atingem uma renda per capita de R$ 77,00 mensais. O valor recebido pelas
famílias é, portanto, variável e calculado situação a situação. A meta do governo é
que nenhum brasileiro tenha menos que R$ 77,00 mensais (MDS, 2014).
O programa prevê também condicionalidades para a permanência no
mesmo. Dentre elas, estão: na área da saúde as famílias são obrigadas a
acompanhar o cartão de vacinação e o crescimento das crianças menores de 7
anos de idade. As mulheres entre 14 e 44 anos também são acompanhadas e, se
gestantes ou nutrizes (lactantes), devem realizar o pré-natal e o acompanhamento
da saúde do bebê. Todas as crianças entre 6 e 15 anos devem estar matriculadas
e com frequência escolar de 85% – vale lembrar que a Lei de Diretrizes e Bases
da Educação (LDB) estabelece 75% como mínimo. Para os adolescentes entre
16 e 17 anos, a frequência mínima volta a corresponder à estabelecida pela LDB.
As crianças e adolescentes até 15 anos que foram retiradas do trabalho
infantil ou que tenham risco de estar nessa situação são encaminhadas para o
Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (PETI) e devem participar dos
Serviços de Convivência e Fortalecimento de Vínculos (SCFV), com frequência
mínima de 85% nas atividades. O monitoramente das condicionalidades prevê: o
cumprimento dos compromissos pelas famílias; responsabilidade do poder público
pela garantia do acesso aos serviços; identificação nos casos de descumprimento
198

às famílias em maior vulnerabilidade.


Vale observar que o valor máximo somado aos benefícios que uma
família pode atingir é de R$ 336,00 (trezentos e trinta e seis reais). Esse valor na
cidade de São Paulo, se confrontado com o valor médio da cesta básica
informado pelo Dieese para o ano de 2014, como exposto, foi de R$ 344,91
(trezentos e quarenta e quatro reais e noventa). Isso significa que, ainda que uma
família consiga atingir o máximo de recurso do programa, não conseguirá o
dinheiro necessário para comprar a cesta básica reconhecida pelo governo como
suficiente para alimentar um trabalhador.
É relevante notar que o parâmetro per capita utilizado pelo governo de R$
77,00 (setenta e sete reais) é quatro vezes e meio menor que o necessário para
atingir o valor da cesta básica. Aqui não é relevante a questão de que exista uma
significativa variação desses valores para outras regiões do país, pois o valor
repassado é insuficiente para alimentar um indivíduo, ainda que com a lógica da
cesta básica estabelecida pelo governo.
Observa-se que a Política de Assistência Social é uma política por
natureza seletiva (BOSCHETTI, 2003), voltada para quem dela necessita. Ocorre
que, com o corte da pobreza em R$ 77,00 reais per capita, o que a política de fato
atinge é apenas a manutenção nos patamares da existência física dos sujeitos,
ainda em níveis de acesso apenas à alimentação, restringindo a Política de
Assistência Social à política de combate monetário à fome.
Ainda assim, observa-se que o número de beneficiários do programa
aumenta significativamente ao longo dos anos, atingindo cerca de 50 milhões de
pessoas em 2014 (MDS, 2014a), juntamente com o aumento do orçamento do
Programa, no gráfico 3.2 pode-se observar a evolução dos gastos com a
transferência direta às famílias beneficiadas no período 2004-2013.
199

Gráfico 3.2. Evolução das despesas de transferência de renda diretamente às famílias em


condição de pobreza e extrema pobreza

Em milhões de R$

Fonte: Portal da Transparência. Disponível em:


<www.portaldatransparencia.gov.br> Acesso em: dez. 2014 e jan./fev. 2015. Elaboração: Prof. Dr. Marcelo
Gomes Ribeiro - IPPUR
Nota: (1) Corrigido pelo INPC, de dezembro de 2014.

É interessante notar ainda a relação entre o orçamento da Assistência


Social e o montante gasto com o PBF, pois é um indicador de como este
programa possui centralidade nessa política. O gráfico abaixo demonstra como,
no período de 2004-2014, mais de 80% do recurso da Assistência Social esteve
voltado para o PBF.
Todas as demais ações, programas e projetos, em 2013, atingiram na
execução, 10% dos recursos, dentre este programas encontram-se, por exemplo,
a Erradicação do Trabalho Infantil e as cozinhas comunitárias o que demonstra
como a prioridade do governo é “dar dinheiro para essa gente comprar comida”
(SILVA, 2012). O objetivo do governo foi atingido, segundo dados do MDS os
usuários gastam 87%, do recurso que recebem do PBF na compra de alimentos70.

70
Fonte:<http://www.brasil.gov.br/cidadania-e-justica/2014/05/bolsa-familia-75-4-dos-beneficiarios-
estao-trabalhando>. Acessado em 15 de março de 2015. Os dados apresentados pelo governo
referem-se a uma pesquisa realizada pelo Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas
(IBASE). Não há detalhamento de como foi realizada a pesquisa.
200

Gráfico 3.3. Participação do programa de transferência de renda com condicionalidades –


Bolsa Família – no total de despesas da função Assistência Social¹

Em %

Fonte: Portal da Transparência. Disponível em: <www.portaldatransparencia.gov.br> Acesso em: dez.


2014; jan./fev. 2015. Elaboração: Prof. Dr. Marcelo Gomes Ribeiro - IPPUR
Nota: (1) Recursos referentes às despesas da União com transferências para Estados, Municípios, Distrito
Federal e diretamente aos cidadãos.

Do recurso destinado ao PBF parte destina-se à gestão, implantação,


monitoramento e avaliação de projetos e, parte, a repasses monetários diretos
aos usuários. O Gráfico abaixo aponta, dentre o orçamento gasto com a Política
de Assistência Social, o que se destina diretamente a repasse monetário para os
usuários. Pode-se notar que plano do orçamento federal, ou seja, o repasse de
recursos para as famílias equivale a 90% do montante do recurso da Assistência
Social.
Gráfico 3.4. Participação da ação transferência de renda diretamente às famílias em
condição de pobreza e extrema pobreza no total de despesas da função Assistência Social¹

Em %

Fonte: Portal da Transparência. Disponível em <www.portaldatransparencia.gov.br> Acesso em: dez. 2014;


jan./fev. 2015. Elaboração Prof. Dr. Marcelo Gomes Ribeiro - IPPUR
Nota: (1) Recursos referentes às despesas da União com transferências para Estados, Municípios, Distrito
Federal e diretamente aos cidadãos.
201

Nota-se que a maior parte do recurso utilizado no programa é destinado


diretamente aos usuários. Somado com a informação anterior de que o principal
recurso da Política de Assistência encontra-se no Programa Bolsa Família,
verifica-se a centralidade do PBF para a Assistência Social.
O MDS informa que 75,4%71 dos beneficiários do programa estão
trabalhando, dado que corrobora a análise sobre a superexploração do trabalho
no padrão dependente de reprodução da capital no Brasil e da socialização dos
custos da reprodução da força de trabalho entre Estado, via políticas sociais e a
burguesia (MOTA, 2005; NETTO, 2005; BEHRING; BOSCHETTI, 2006).
É notória a utilização da Assistência Social como mecanismo de
reprodução do capital.

A assistência social (...) existe historicamente na razão contrária ao


trabalho – essa, ao menos, foi, durante um longo período, a relação
predominante. Isso não elide a constatação de que ambos formam uma
unidade de contrários. Numa perspectiva de totalidade, assistência social
e trabalho são mediações do movimento de reprodução social
determinadas pelas necessidades do capital. (...)
As formas de organização social do trabalho, historicamente,
determinaram a arquitetura das políticas sociais. Isso significa dizer que
o desenvolvimento histórico do trabalho exerce influência direta na
definição do tipo, do conteúdo, dos objetivos e do alcance das políticas
sociais. Portanto, as políticas sociais podem sofrer inflexões de acordo
com o estágio de desenvolvimento da sociedade capitalista, pois a
história do capitalismo é atravessada por formas diferenciadas de
subsunção do trabalho ao capital (SITCOVSKY, 2012, p. 227).

Os estudos de Mota (2005, 2012) explicitaram o fetiche da assistência


social ao ocupar a centralidade da política de Seguridade Social em um
movimento que amplia a Assistência e privatiza a Saúde e a Previdência. A
centralidade da Política de Assistência Social nos governos do PT ampliam
parcela da classe trabalhadora como público da Assistência e assume o
direcionamento da Política de Combate à Fome, impõe ao debate da fome o
fetiche da redução da pobreza.
O volume que adquire o Programa Bolsa Família em cobertura, atingindo
em 2012 mais de 50 milhões de pessoas atendidas, torna cabível afirmar que o

71
Fonte: <http://www.brasil.gov.br/cidadania-e-justica/2014/05/bolsa-familia-75-4-dos-
beneficiarios-estao-trabalhando>. Acessado em 15 de março de 2015. O governo não detalha
como foi elaborada a informação.
202

Programa exerce importante função na proteção social do país. Se ao montante


de pessoas atendidas pelo PBF somarmos o atendimento ao Benefício de
Prestação Continuada (BPC), o número de atendimentos chega à 79 milhões de
pessoas beneficiadas (SITCOVSKY, 2012).
Esse quantitativo populacional é um elemento fundamental para o
entendimento da estratégia de manutenção do poder eleitoral do PT.
Cabe ressaltar que, como a estratégia do governo para acabar com a
fome é o consumo de massa, as variações de preço dos alimentos interferem
diretamente na possibilidade de acessá-los ou não. Os alimentos baratos são
garantidos pela dinâmica do sistema agroindustrial, especialmente, pelo
processamento em larga escala de substâncias alimentares (POLLAN, 2007,
2008).
Como o alimento barato é o alimento altamente processado, cabe verificar
como está a situação nutricional das famílias beneficiárias do Programa Bolsa
Família e compará-las com dados do restante da população brasileira.

3.4. Tendências da transição alimentar no Brasil: desnutrição e obesidade

Para verificar as condições de satisfação das necessidades humanas e a


situação alimentar da população brasileira, foram verificados os dados da
situação alimentar da população levantados pela pesquisa de situação alimentar e
nutricional dos brasileiros como um todo, por meio do estudo da Pesquisa de
Orçamentos Familiares (POF) 2008-200972, em dois documentos distintos:
Antropometria e Estado Nutricional de Crianças, Adolescentes e Adultos no Brasil
e Análise do Consumo Alimentar Pessoal no Brasil.
O Brasil realiza com frequência a Pesquisa de Orçamentos Familiares
que permite verificar como está a situação de segurança e insegurança alimentar.
Segundo Levy-Costa et al. (2005, p. 531),

O Brasil tem realizado POF com alguma regularidade em suas áreas


metropolitanas e por meio delas têm sido avaliada a tendência secular

72
O detalhamento sobre como é organizada a POF encontra-se no anexo 3.
203

de disponibilidade domiciliar de alimentos no País. (...) Embora o


principal objetivo das POF seja o de estimar índices de preços, elas
representam importante fonte de dados da dieta na medida em que
empregam metodologia padronizada de coleta de dados, utilizam
amostragem probabilística, são periódicas e incluem detalhada
mensuração de características socioeconômicas.

A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) 2009, utilizada


nesse, em seu suplemento: Segurança Alimentar no Brasil 2004-2009, utiliza a
Escala Brasileira de Insegurança Alimentar (EBIA)73 para investigar a percepção
sobre a fome e a insegurança alimentar.

A PNAD é realizada através de amostra probabilística de domicílios em


três estágios de seleção. Primeiramente, são selecionadas as unidades
primárias da amostra, os municípios a serem pesquisados. Em seguida,
as unidades secundárias, ou seja, os setores censitários. Por fim, as
unidades terciárias constituídas pelas unidades domiciliares, que podem
ser classificadas como domicílios particulares ou unidades de habitação
em domicílios coletivos. Na seleção das unidades primárias e
secundárias (municípios e setores censitários) é utilizada a divisão
territorial e a malha setorial do Censo Demográfico precedente (GOMES
JUNIOR; PESSANHA; MITCHELL, 2010).

Para verificar o estado nutricional das crianças atendidas no PBF, foi


utilizado o Relatório de Avaliação da Evolução Temporal do Estado Nutricional de
Crianças de 0 a 5 anos beneficiárias do Programa Bolsa Família (PBF).
A literatura especializada informa sobre a dificuldade de se mensurar a
situação de fome ou desnutrição da população. Diante disso, os dados
informados aqui serão lidos como tendências e confrontados com séries
históricas, com estudiosos do tema e com o conteúdo desse estudo.
A necessidade de construir mecanismos de verificação da situação da
fome e da insegurança alimentar, e a dificuldade de fazê-lo, gerou o Simpósio
Científico Internacional sobre Mensuração e Avaliação da Privação de Alimentos
e Subnutrição (SCI) realizado pela FAO. No simpósio foi possível debater e
avaliar os vários métodos apontando seus limites e suas potencialidades
(SANTOS, 2007).

73
A EBIA encontra-se no anexo 2.
204

Cinco métodos são avaliados: 1) o método FAO; 2) as pesquisas de


orçamentos domésticos; 3) pesquisas de ingestão individual de alimentos; 4)
pesquisas antropométricas; 5) pesquisas de percepção de insegurança alimentar
e fome (SANTOS, 2007)74. De forma que,

o método da FAO mediria a disponibilidade alimentar, as pesquisas de


orçamentos domésticos e de ingestão individual de alimentos, o acesso
aos alimentos, o método antropométrico, a utilização dos alimentos e o
método qualitativo, a estabilidade de acesso ou vulnerabilidade à
insegurança alimentar (FAO, apud GOMES JUNIOR; PESSANHA;
MITCHELL, 2010, p. 128-129).

Gomes Junior, Pessanha e Mitchell (2010) apresentam sinteticamente a


avaliação que alguns autores fazem sobre os atributos dos 5 métodos utilizados
para avaliação da fome e da desnutrição e mostram que os métodos não
concorrem entre si, formando aproximações complementares que permitem
captar diferentes aspectos de um conceito multidimensional; as avaliações
apontam tendências por meio de análises temporais e o uso sistemático da
mesma metodologia em estimativas sucessivas que gera dados cada vez mais
confiáveis.
Para os autores, o reconhecimento do direito humano à alimentação na
Constituição Federal, em 2010, coloca para o Estado a obrigatoriedade de
desenvolver políticas que respondam ao direito positivado na legislação. O
reconhecimento do Estado do direito humano à alimentação fortalece a
construção de indicadores para a análise da situação alimentar em que se
encontra o país.
Em função disso, estudiosos têm debatido formas de avançar na
apreensão do fenômeno, porém, todos os métodos, isoladamente, possuem
inconvenientes, de modo que a orientação e a utilização de alguns deles é como
forma de cruzar informações, pois, em síntese, são complementares ao
verificarem aspectos distintos do fenômeno.

74
Santos (2007) apresenta uma descrição detalhada de cada uma delas e dos limites e
possibilidades para sua utilização.
205

Gomes Junior, Pessanha e Mitchell (2010) informam que o Brasil já


possui um conjunto significativo de informações sobre a situação nutricional
consolidados pelas POF e pela PNAD.

A situação das crianças entre 0 a 5 anos de idade:

Monteiro (1995) informa que, para a população infantil, o diagnóstico da


deficiência energética na relação peso/altura é menos sensível para crianças,
uma vez que até 5 anos de idade, casos leves e moderados de deficiência
energética podem se expressar unicamente pelo retardo do crescimento. Isso
ocorre mesmo que o retardo do crescimento por si só não expresse
necessariamente uma alimentação insuficiente, pois pode ser uma manifestação
de todas as deficiências nutricionais da criança decorrentes de práticas
alimentares inadequadas e mesmo de processos infecciosos frequentes. O déficit
de crescimento é utilizado como parâmetro para a análise da situação nutricional
das crianças nessa faixa etária (MONTEIRO, 1995).
Com essa ressalva o autor utiliza a variação do crescimento como
indicador de desnutrição, especialmente para as crianças menores de cinco anos
com alturas aquém de “dois desvios-padrão da altura média esperada para idade
e sexo, de acordo com o padrão internacional de crescimento recomendado pela
Organização Mundial de Saúde – OMS”. Em populações bem-nutridas esses
índices aparecem em proporção não superior a 2-3% da população, que
correspondem a crianças geneticamente pequenas (MONTEIRO, 1995, p. 4).
Monteiro (2009) estudou a situação da nutrição infantil comparativamente
entre 199675 e 200776 e chega a conclusão que a desnutrição infantil está em
declínio no país. A queda para esse período apresenta-se, segundo o autor, na
ordem de 50%. A pesquisa realizada pelo autor aponta, em ordem de importância,
os seguintes fatores como responsáveis pela queda na desnutrição: escolaridade

75
A fonte utilizada pelo autor foi a Pesquisa Nacional sobre Demografia e Saúde (PNDS, 1996).
76
A fonte utilizada pelo autor foi a Pesquisa Nacional de Demografia e Saúde da Criança e da
Mulher (PNDS, 2007).
206

da mãe; poder aquisitivo das famílias (especialmente as mais pobres 77); no


acesso à assistência à saúde e nas condições de saneamento.
O quadro abaixo apresenta o déficit de altura para as crianças brasileiras
abaixo de 5 anos no Brasil, segundo os dados da POF Antropometria.

Quadro 3.1. Prevalência de déficit de altura nas crianças menores de 5 anos de idade¹ por
situação de domicílio, segundo as Grandes Regiões – período 2008-2009.

Prevalência de déficit de altura nas crianças menores de


5 anos de idade (%)
Grandes Regiões
Total Situação de domicílio
Urbana Rural
Brasil 6,0 6,0 6,0
Norte 8,5 8,9 7,7
Nordeste 5,9 6,0 5,7
Sudeste 6,1 6,2 5,5
Sul 3,9 3,7 5,0
Centro-Oeste 6,1 6,1 6,4

Fonte: POF 2008-2009 (antropometria)


Nota (1): Com base na distribuição de referência relativa à crianças de famílias com rendimento total e variação patrimonial
de mais de 1 salário mínimo per capita.

Ressalta-se que a prevalência de déficit de altura para essa faixa etária


no Brasil está muito aquém da recomendação mundial, apresentando para o país
o dobro do aceitável. A situação apresenta-se mais grave na região norte. De
forma que, ainda que o déficit de peso esteja em declínio no país, o índice ainda é
maior que o aceito mundialmente.
Para essa faixa etária, foram utilizadas também as informações da
avaliação nutricional realizada pelo Ministério da Saúde (MS) e pelo MDS,
consolidadas no Relatório de Avaliação da Evolução Temporal do Estado
Nutricional de Crianças de 0 a 5 anos beneficiárias do Programa Bolsa Família
(PBF), acompanhadas nas condicionalidades de saúde pelo Ministério de
Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS) e pelo Ministério da Saúde
(MS), e disponibilizada ao público em abril de 2014.

77
O autor chama a atenção para a dificuldade de se definir pobreza, para ele “de modo bastante
simples, pode-se dizer que pobreza corresponde à condição de não satisfação das necessidades
humanas elementares como comida, abrigo, vestuário, educação, assistência à saúde, entre
outras” (MONTEIRO, 2003, p. 8).
207

Esse relatório foi realizado a partir dos dados do Sistema de Vigilância


Alimentar e Nutricional (SISVAN), do Cadúnico e da folha de pagamentos do
Bolsa Família. Os dados de referência para o PBF cobrem de 2004 a 2012 e os
dados antropométricos apresentam-se de 2008 a 2012. O parâmetro de
comparação é o aceito internacionalmente, como altura e peso para a idade. No
relatório apresentam-se diretamente com a referência à desnutrição crônica e
que, nos estudos de Monteiro (2003, 2005), indicam a situação de fome.
No que diz respeito à desnutrição crônica, os dados apresentam
tendência à queda. O índice, todavia, segue alto. Para crianças de 0 a 2 anos,
apresenta redução de 1,6 pontos percentuais, passando de 17,0% para 15,4%.
Na faixa entre 0 a 5 anos apresenta dois pontos de redução, de 14,2% para
12,2% em 2012. Observa-se que, embora a tendência seja de redução, o
problema da desnutrição nessa faixa etária ainda persiste e o índice é
significativamente elevado, ou seja, a tendência apontada pelo relatório é da
prevalência da fome na faixa etária atendida pelo PBF.
Se por um lado verifica-se a tendência à redução da desnutrição infantil,
por outro, verifica-se a tendência ao aumento do excesso de peso e da
obesidade.
O percentual de crianças com excesso de peso para a faixa etária de 0 a
5 anos acompanhadas pelo PBF, em 2008, era de 12,5% e, em 2012, de 13,1%.
Na faixa de 0 a 2 anos, era 16,6%, em 2008, e passa a 16,8%, em 2012. O
quadro 3.2 traz a relação entre desnutrição crônica e excesso de peso para essa
faixa etária. Ao comparar os anos 2008 e 2012, nota-se que a desnutrição crônica
persiste, mas apresenta queda, ao passo que o excesso de peso apresenta
acréscimo.
Quadro 3.2. Comparativo entre desnutrição e excesso de peso em crianças atendidas pelo
Programa Bolsa Família, Brasil – 2008 e 2012.

2008 2012
Faixa etária
Desnutrição Excesso de Desnutrição Excesso de
crônica em % peso em % crônica em % peso em %

0 a 5 anos 14,2 12,5 12,2 13,1

0 a 2 anos 17,0 16,6 15,4 16,8

Fonte: Relatório de avaliação nutricional das crianças acompanhadas pelo PBF – MDS 2014. Elaboração própria. 2014.
208

Essa tendência de decréscimo do quadro de desnutrição e acréscimo do


quadro de excesso de peso aparece para toda a população brasileira. Isso ocorre,
sobretudo, pela inversão na ingestão de alimentos que passa cada vez mais a ser
feita com substâncias alimentares.
O estudo do MDS também traz dados sobre a análise longitudinal dos
indivíduos, ou seja, acompanhou-se o mesmo grupo de indivíduos na faixa de 0 a
5 anos de idade incompletos em 2008, em função da importância dessa idade no
desenvolvimento do sujeito e que tiveram pelo menos mais de um atendimento no
período. O universo da pesquisa totalizou 408.605 (quatrocentos e oito mil,
seiscentos e cinco) sujeitos. Com o passar dos anos, obviamente, esse grupo foi
envelhecendo de forma que, em 2012, contavam com idade entre 4 e 9 anos.
Essa pesquisa também apresenta tendência à queda da desnutrição
crônica, porém, também revela sua persistência. No que se refere à deficiência
nutricional crônica, o índice caiu de 17,%, em 2008, para 8,5%, em 2012,
aproximando-se da média nacional. No que se refere ao excesso de peso, a
queda no corte longitudinal é de 16,4%, em 2008, para 9,6%, em 2012.

População com mais de 5 anos de idade

Para a faixa etária entre 5 e 9 anos de idade, o quadro 3.3 apresenta a


prevalência do déficit de altura. Note-se que o déficit de altura para crianças com
5 anos apresenta uma prevalência de 10%, o que pode indicar situação de fome.
O índice reduz com a idade.
209

Quadro 3.3. Prevalência de déficit de altura nas crianças entre 5 e 9 anos de idade por
situação de domicílio, segundo idade e sexo – período 2008-2009.

Prevalência de déficit de altura nas crianças entre 5 e 9


anos de idade (%)
Idade
Total Sexo
masculino feminino
5 anos 9,9 9,8 10,1
6 anos 6,2 7,1 5,1
7 anos 7,2 8,0 6,3
8 anos 6,1 6,6 5,5
9 anos 5,1 5,1 5,0
Total 6,8 7,2 6,3
Fonte: POF 2008-2009 Antropometria.

O parâmetro utilizado na POF 2008-2009 segue o corte de índice de


massa corporal. Esse índice é definido a partir das informações do Comitê de
Especialistas da Organização Mundial de Saúde (OMS), reunidos em Genebra
em 1993, segundo os quais os índices de IMC inferiores a 18,5 Kg/m2 indicam
nível mínimo de reservas energéticas no adulto. As populações que apresentam
até 5% da população com esse índice não são consideradas populações com
restrições alimentares, pois esse percentual corresponderia à fração da
população que representa os indivíduos magros. Países que apresentam 5% a
9% da população nesse índice caracterizam populações expostas a baixa
prevalência de índices energéticos; populações entre 10% e 19% caracterizam
populações expostas a prevalência moderada de déficits energéticos; populações
que apresentam índices entre 20% e 39% caracterizariam prevalências altas de
déficit energético e mais de 40% abaixo do índice caracterizariam prevalências
muito altas de déficit energético (MONTEIRO, 1995, p. 202).
No quadro 3.4 é apresentado o déficit de peso para a população
brasileira, organizado por faixas etárias entre 5 a 9 anos, 10 a 19 anos e mais de
20 anos, sexo e grandes regiões. Os anos correspondem aos dados
disponibilizados pelo IBGE para 197578, 198979 e 200980. Estão organizados por

78
Dados referentes ao Estudo Nacional de Despesa Familiar (ENDEF) 1974-1975. Nessa
pesquisa não foram considerados a população rural do Norte e do Nordeste.
79
Refere-se a POF 1988-1989.
80
Refere-se a POF 2008-2009.
210

região e por sexo. Em destaque são para os períodos em que a evolução


apresentou aumento do déficit de peso.
O déficit de peso81 entre os adultos está na ordem de 2,7% (1,8% em
homens e 3,6% em mulheres). Porém, para mulheres jovens de 20 a 24 anos de
idade e idosas com mais de 75 anos de idade, a condição de déficit de peso
alcança frequências maiores que 5% da população, 8,3% para as jovens e 5,4%
para as idosas. Como pode ser notado no gráfico abaixo:

81
Para os adultos, a pesquisa considerou o Índice de Massa Corporal – IMC, sem ajustes para a
idade, uma vez que o crescimento linear se encerra aos 20 anos de idade. É considerado déficit
de peso IMC inferior a 18,5 Kg por metro quadrado e admite-se até 5% de indivíduos magros na
população. Excesso de peso é considerado com o IMC maior que 25 Kg por metro quadrado e
obesidade 30Kg por metro quadrado.
211

Quadro 3.4: Comparativo entre o déficit de peso na população brasileira entre 5 e 9 anos de
idade, 10 e 19 anos de idade e mais de 20 anos de idade, por sexo e região – 1975, 1989 e
2009.

Norte
Idade Masculino Feminino
1975 1989 2008-2009 1975 1989 2008-2009
5 a 9 anos 7,9 1,3 4,9 6,4 3,3 3,5
10 a 19 anos 9,5 4,5 3,6 6 2,5 2,5
Mais de 20 anos 7,0 3,2 1,9 15,6 6,3 3,6

Nordeste
Idade Masculino Feminino
1975 1989 2008-2009 1975 1989 2008-2009
5 a 9 anos 6,5 2,9 5,5 5,9 1,9 4,6
10 a 19 anos 11,6 5,4 4,9 6,0 3,2 3,8
Mais de 20 anos 8,4 5,0 2,7 16,7 9,4 4,8

Sudeste
Idade Masculino Feminino
1975 1989 2008-2009 1975 1989 2008-2009
5 a 9 anos 5,8 2,2 3,4 6,1 0,9 3,5
10 a 19 anos 11,0 5,8 3,2 5,5 2,8 2,8
Mais de 20 anos 9,1 4,9 1,4 10,4 5,3 3,1

Sul
Idade Masculino Feminino
1975 1989 2008-2009 1975 1989 2008-2009
5 a 9 anos 3,8 1,1 2,5 3,0 1,1 3,7
10 a 19 anos 6,0 2,2 2,5 2,8 1,4 2,4
Mais de 20 anos 4,8 2,3 1,1 6,7 4,4 2,5

Centro-Oeste
Idade Masculino Feminino
1975 1989 2008-2009 1975 1989 2008-2009
5 a 9 anos 5,5 2,1 5,8 3,9 2,5 4,1
10 a 19 anos 10,5 4,6 3,3 5,0 2,4 2,8
Mais de 20 anos 8,8 3,8 2,0 13,2 6,8 4,0
Fonte: POF Antropometria 2008-2009. Elaboração própria.

De modo geral, a população brasileira como se pode notar, não apresenta


significativos déficits de peso, o que pode informar acesso suficiente à quantidade
de colorias recomendável. É interessante observar, todavia, que a queda do
déficit de peso é acentuada no país após 1975 e a tendência a queda, na
212

verdade, em alguns faixas etárias apresenta tendência à aumentar. O gráfico 3.2


apresenta a evolução do déficit de peso para a população feminina por faixa
etária. É nítido que a queda é significativa no intervalo entre 1975 e 1989,
apresentando aumento no período entre 1989-2008.

Gráfico 3.5. Índice de déficit de peso da população feminina brasileira – 1975, 1989 e 2009.

14,0
11,8
12,0

10,0

8,0 5 a 9 anos
6,4
5,4 10 a 19 anos
6,0
5,1 3,9 20 ou mais
4,0
2,7 3,6
3
2,0
1,5
0,0
1975 1989 2009

Fonte: POF 2008-2009. Elaboração própria.

A tendência é a mesma para a população masculina organizada por faixa


etária, como mostra o gráfico 3.6.

Gráfico 3.6. Índice de déficit de peso da população masculina brasileira – 1975, 1989 e 2009.

12,0
10,1
10,0

8,0
8
5 a 9 anos
6,0 5
4,3 10 a 19 anos
5,7
4,0 4,4 3,7 20 ou mais

2,0 2,2
1,8
0,0
1975 1989 2009

Fonte: POF 2008-2009. Elaboração própria.

Observa-se nos gráficos como a queda é acentuada no período entre


213

1975 e 1989. É contínua a tendência a queda para a população acima de 10


anos, mas apresenta aumento para a população entre 5 e 9 anos de idade. Ou
seja, a redução do déficit de peso é uma tendência que está presente na
sociedade brasileira desde a década de 1970. Essa tendência, de forma geral, se
mantém. Porém, para algumas faixas etárias e regiões do país os dados
apresentam aumento no índice de déficit de peso.
Por outro lado, se de forma geral o quadro de déficit de peso atende à
OMS, e, ressalta-se, atende desde a década de 1970, o excesso de peso na
população é significativo para elucidar a transição nutricional que se passa no
país. O quadro abaixo apresenta o excesso de peso e a obesidade para as faixas
etárias entre 5 e 9 anos, 10 e 19 anos, 20 e acima.
Já o excesso de peso e a obesidade aumentaram significativamente,
tanto para meninos. O excesso de peso chega a 34,8 % e a obesidade 16,6 %.
Já para as meninas o excesso de peso atinge 32% e a obesidade 11,8%. Ou seja,
entre as crianças de 5 a 9 anos no Brasil a tendência à obesidade apresenta
significativo aumento nos 10 anos que vão de 1989 a 2009. O gráfico 3.7
demonstra a evolução do excesso de peso para a população feminina.

Gráfico 3.7. Excesso de peso da população feminina brasileira por faixa etária – 1975, 1989
e 2009.

60,0

50,0 48
41,4
40,0
32 5 a 9 anos
30,0 28,7
10 a 19 anos
20,0 13,9 19,4 20 ou mais
8,6
10,0 11,9
7,6
0,0
1975 1989 2009

Fonte: POF Antropometria 2008-2009. Elaboração Própria.

É nítido que a tendência ao excesso de peso também se inicia na década


de 1970, o que coincide com a característica de modernização conservadora
implementada no Brasil, porém, a tendência se acentua entre 1989 e 2009. O
destaque está para a faixa etária entre 5 e 9 anos, saindo de 8,6 % em 1975 e
214

atingindo 32% em 2009. A mesma tendência se apresenta para a população


masculina, porém, com relativa uniformidade entre as faixas etárias, como pode
ser observado no gráfico 3.8. É relevante notar que para a população adulta o
excesso de peso está na ordem de 50% (48% para a população feminina e 50,1%
para a masculina).

Gráfico 3.8. Excesso de peso da população masculina brasileira por faixa etária – 1975,
1989 e 2009.

60,0
50,1
50,0

40,0
29,9 34,8 5 a 9 anos
30,0
10 a 19 anos
18,5
20,0 15,9 20 ou mais
21,7
10,9
10,0
3,7 7,7
0,0
1975 1989 2009

Fonte: POF Antropometria 2008-2009. Elaboração Própria.

O quadro de obesidade apresenta a mesma tendência de aumento


crescente. Novamente para as meninas entre 5 e 9 anos o período entre 1989 e
2009 apresenta significativo aumento, como pode ser visto no gráfico 3.9 abaixo.

Gráfico 3.9. Obesidade da população feminina brasileira – 1975, 1989 e 2009.

18,0 16,9
16,0
14,0 13,2
11,8
12,0
10,0 5 a 9 anos
8,0 8 10 a 19 anos
6,0 20 ou mais
4
4,0 2,4
1,8
2,0
0,7 2,2
0,0
1975 1989 2009

Fonte: POF 2008-2009 Antromopetria. Elaboração própria.


215

A tendência também se mantém para a população masculina e acentua-


se para os meninos na comparação com as demais faixas etárias. Os dados
indicam um problema grave de saúde para as crianças no país, com tendência a
piorar.

Gráfico 3.10. Obesidade da população masculina brasileira – 1975, 1989 e 2009.

18,0
16,6
16,0
14,0
12,0 12,4
10,0 5 a 9 anos
8,0 10 a 19 anos
6,0 5,4 5,9 20 ou mais
4,0 4,1
2,9
2,0 2,8 1,5
0,0 0,4
1975 1989 2009

Fonte: POF 2008-2009 Antromopetria. Elaboração própria.

É nítido notar que a transição nutricional brasileira acompanha a


tendência mundial do deslocamento do déficit de peso, que pode apontar o
declínio do déficit com uma forte transição para o excesso de peso e à obesidade.
O excesso de peso e a obesidade são responsáveis por 80% da carga de
morbimortalidade nos países de capitalismo central, e mais da metade em países
de capitalismo dependente, das chamadas doenças crônicas não transmissíveis
(BATISTA FILHO, 2008).

Entre esses fatores, destacam-se as variáveis nutricionais,


representadas pela alimentação hipercalórica e seus desvios
específicos: consumo excessivo de açúcares simples, de gorduras
animais, de ácidos graxos saturados, de gorduras trans, ao lado do
sedentarismo crescente, tabagismo, uso imoderado de bebidas
alcoólicas e outras práticas de vida não saudáveis (BATISTA, 2008, p.
248).

A transição nutricional que se processa no Brasil, todavia, guarda uma


contradição que Batista Filho (2008) denomina de paradoxo epidemiológico.
216

A transição nutricional que se desenvolve no Brasil apresenta uma


singularidade notável: o agravamento simultâneo de duas situações
82
opostas por definição: uma carência nutricional (a anemia) e uma
condição típica dos excessos alimentares, a obesidade (BATISTA
FILHO, 2008, p. 248).

Batista Filho (2008) chama a atenção para uma característica singular


desse deslocamento nutricional brasileiro. No país, a obesidade se faz
acompanhar da anemia. O autor realiza uma pesquisa que agrega os dados
publicados sobre o tema no país em pesquisas que atingem o período de 1975 a
2006. O quadro que se apresenta, segundo os estudos do autor, é que 50% da
população brasileira sofre de anemia. Assim, como a obesidade assume
características epidêmicas, também o faz a anemia.

Já a anemia seguiu um curso singular: ao invés de declínio, como as


outras deficiências nutricionais, assumiu características epidêmicas,
tornando-se, em termos de magnitude, o principal problema carencial do
país. Como observação conclusiva, (...) cabe ressaltar as evidências de
que tais problemas de natureza conceitualmente oposta (o
sobrepeso/obesidade e as anemias) passaram a se comportar nos
últimos trinta anos como situações praticamente colineares, o que
configuraria uma tendência claramente conflitante (BATISTA FILHO,
2008, p. 250).

A explicação elencada pelo autor para o que chama de paradoxo


epidemiológico remonta a das expressões do que Pollan (2008) chamou de
nutricionismo. Segundo Batista Filho (2008), durante a década de 1950/1980
predominou o que poderia ser chamado de paradigma das proteínas e calorias. A
desnutrição era pautada no enfoque energético-protéico, primeiramente centrado
na quantidade de proteínas e posteriormente na quantidade de calorias, com uma
extensão complementar aos problemas relacionados a carências de vitaminas. “A
procura de alimentos ou misturas alimentares de elevado valor biológico (protéico)
e baixo custo simboliza bem o pensamento dominante sobre o problema
alimentar/nutricional e os rumos das políticas e das pesquisas para seu
encaminhamento” (BATISTA, 2008, p. 251).

82
A prevalência de anemia foi verificada em mulheres e crianças.
217

Foi o inquérito alimentar realizado no Brasil, Estudo Nacional da Despesa


Familiar (ENDEF-1974/1975), que demonstrou que com uma adequação protéica
por volta de 200%, não era a proteína o fator limitante para a definição da
desnutrição da população, o problema se deslocou então para a questão calórica.

Em relação ao sobrepeso/obesidade, o entendimento básico passa


necessariamente por um balanço energético excessivamente positivo,
configurado no binômio consumo/gasto calórico. No caso do Brasil, os
dois termos desta relação têm se alterado rapidamente, com o
comprovado aumento do consumo alimentar e a redução progressiva
dos gastos calóricos causada pelo crescente sedentarismo da
população. Conta-se, atualmente, uma disponibilidade alimentar de mais
de três mil calorias para uma necessidade estimada pela FAO em 2 mil
calorias per capita/dia. Há, assim, um excedente potencial de cerca de
50% de calorias para cada brasileiro, o que poderia justificar em grande
parte a prevalência de mais de 50% de sobrepeso/obesidade na
população adulta.

Não obstante as evidências sobre os fatores causais das anemias,


poucos estudos valorizam o papel das mudanças alimentares no agravamento
epidemiológico do problema. Para crianças menores de cinco anos foram
realizados estudos em São Paulo e Pernambuco. Os dois estudos chegam a
conclusões semelhantes; o avanço do consumo de leite fluido (leite
industrializado) no aumento das anemias, por dois motivos, provavelmente pela
substituição de outras fontes alimentares mais ricas em ferro e bloqueios parciais
na absorção intestinal do ferro.

O avanço representado pela maior disponibilidade e acesso aos


alimentos em nível familiar e, especificamente, o maior consumo do que
seria um alimento nobre para as crianças, o leite, acabaram atuando
como fatores de risco para mudanças adversas de grande magnitude no
processo nutricional. Essas mudanças se desenvolveram quase
imperceptivelmente, só sendo explicitadas quando o
sobrepeso/obesidade, por um lado, e a anemia, por outro, alcançaram
mais da metade da população de adultos e quase a metade da
população de crianças. Com uma agravante peculiar: o desinteresse por
seu aspecto mais relevante, o substrato alimentar do próprio processo de
transição nutricional (BATISTA FILHO, 2008, p. 254).

Ainda sobre o problema das anemias, Batista Filho e Rissin (2003) fazem
três observações: 1) o declínio da desnutrição em crianças e adultos no país não
218

foi acompanhado pela redução das anemias; 2) Não há diferenças significativas


entre as anemias nas diferentes regiões – o fenômeno é nacional; 3) o quadro do
problema não se restringe às camadas mais pobres da população.
A transição nutricional no Brasil é uma expressão do padrão de
acumulação capitalista no país que, dentre outros fatores, concentrou a
população na zona urbana. Segundo dados do censo de 2010 83, 84,30% da
população brasileira está vivendo nas cidades, enquanto 15,7% vive na zona
rural. A concentração urbana tem consequências diretas sobre a produção de
alimentos e sobre a composição das dietas, em função do estilo de vida
decorrente da industrialização e na alimentação decorrente do sistema
agroindustrial.
Desde a POF 2003-200484 apresenta-se uma tendência crescente à
substituição de alimentos básicos (arroz, feijão e hortaliças) por bebidas e
alimentos industrializados (comida comprada pronta, substâncias alimentares).
Isso aumenta a densidade energética das refeições e causa distúrbios ao
comprometer a autorregulação do balanço energético nos indivíduos, provocando
a obesidade.
Levy et al. (2010) estudaram a prevalência de consumo de açúcar a partir
dos dados da POF 2003-2004 e corroboram a análise de que a maior prevalência
de açúcar na alimentação prejudica a saúde humana. As evidências elencadas
pelos pesquisadores associam o consumo de açúcar à gordura e a redução de
proteínas na alimentação. Ainda sobre a análise da POF 2003-2004, os autores
apontam a incidência da alimentação fora do domicílio e do impacto de, forma
geral, dessa alimentação, o que corrobora à análise da mudança do perfil
nutricional brasileiro para a obesidade.

83
Ver gráfico 2.1
84
Sobre os limites da POF 2003-2004, Levy, Claro e Monteiro (2010, p. 475) apontam que “As
principais limitações a serem consideradas quando se utilizam dados de aquisição domiciliar de
alimentos para avaliação do consumo alimentar das famílias são: (i) a não-consideração dos
alimentos consumidos fora do domicílio; (ii) o desconhecimento da eventual participação de não
moradores nas refeições feitas no domicílio; (iii) a proporção de alimentos adquiridos e não
consumidos (‘desperdícios’); e (iv) a não-consideração do estoque inicial e final de alimentos nos
domicílios estudados. No caso da POF 2002- 2003, soma-se a essas limitações o curto período
(uma semana) de registro das aquisições de alimentos em cada domicílio. Por outro lado, as POFs
“representam importante fonte de dados da dieta na medida em que empregam metodologia
padronizada de coleta de dados, utilizam amostragem probabilística, são periódicas e incluem
detalhada mensuração de características socioeconômicas (LEVY-COSTA, et al., 2005, p. 531).
219

A evolução nas áreas metropolitanas do País evidenciou declínio no


consumo de alimentos básicos, como arroz e feijão, aumentos de até
400% no consumo de produtos industrializados, como biscoitos e
refrigerantes, persistência do consumo excessivo de açúcar e
insuficiente de frutas e hortaliças e aumento no teor da dieta em
gorduras em geral e gorduras saturadas (LEVY-COSTA, et al., 2005, p.
539).

Na análise dos dados da POF 2008-2009ª – consumo de alimentos, a


tendência se mantém como era de se esperar. Martins et al. (2013) analisa os
dados da POF – 2008-2009 que, na comparação com os dados da POF 2003-
2004, os alimentos prontos para consumo passaram de 23,0% das colorias para
27,8%. Isso ocorre pelo aumento dos alimentos ultraprocessados que passam de
20,8% para 25,4% do consumo. Em contrapartida, reduz-se o uso de ingredientes
culinários no período, o que indica que as pessoas estão preparando menos sua
comida.
Martins et al. (2013) distingue alimentos ultraprocessados dos alimentos
processados. Os primeiros são formulações essencialmente da indústria. Na sua
composição não possuem nenhum, ou quase nenhum alimento integral. Já os
segundos alimentos integrais são processados pela indústria e preservados em
sal85, açúcar ou óleo.

Estudos em diferentes países mostram que o conjunto dos produtos


prontos para o consumo, processados ou ultraprocessados, é mais
denso em energia, tem maior teor de açúcar livre, sódio, gorduras totais
e gorduras saturadas, e menor teor de proteínas e fibras quando
comparados a alimentos in natura ou minimamente processados,
combinados a ingredientes culinários. Produtos ultraprocessados
possuem características peculiares que favorecem o consumo excessivo
de energia, como sua frequente comercialização em grandes porções,
sua hiperpalatabilidade, sua longa duração e facilidade de transporte,
que facilitam o hábito de comer entre refeições e fazer lanches
(snacking), além de sua agressiva promoção por meio de persuasivas
estratégias de marketing (MARTINS, et al. 2013, p. 658).

85
Sarno et al. (2013) informa que o consumo de sódio disponível nos domicílios brasileiros, a
partir dos dados da POF 2008-2009 é de 4,7g para uma ingestão diária de 2 mil Kcal. Isso
corresponde a mais que o dobro do limite recomendado para esse nutriente, a maior parte, vem do
sal de cozinha e de condimentos à base de sal, mas é crescente o índice associado a alimentos
processados.
220

Com a finalidade de complementar a análise, verificou-se também os


dados da Pesquisa Nacional de Amostra de Domicílios (PNAD) 2009. A PNAD
utilizou para a verificação da segurança e insegurança alimentar dos brasileiros a
Escala Brasileira de Insegurança Alimentar (EBIA) que atualmente contém 14
questões como pode ser visto no anexo 2. A EBIA foi desenvolvida por técnicos
de 5 universidades brasileiras baseando-se na escala desenvolvida a partir do
indicador Cornell utilizado para pesquisas sobre a fome nos EUA (MDS, 2014).
É importante ressaltar que as perguntas postas na escala que serve de
eixo orientador das respostas dos sujeitos são todas centradas na existência ou
não de dinheiro para comprar alimentos. Dessa forma, uma parte significativa da
população que vive na zona rural e em comunidades indígenas e quilombolas
encontram dificuldades para responder o questionário, uma vez que essas
populações ainda se alimentam diretamente de alimentos produzidos por elas
mesmas ou coletados diretamente na natureza (PNAD, 2010).
Ressalva feita, a EBIA86 compõe o sistema de monitoramento da fome,
cumprindo a orientação do Decreto n. 7.272, de 25 de agosto de 2010 87, quanto
ao acompanhamento e monitoramento da situação de segurança alimentar e
nutricional do Brasil, assim como a POF, a PNAD e o SISVAN. Na EBIA, porém,
diferentemente da POF, na qual o morador descreve o que comeu, o sujeito
informa se sentiu fome ou possibilidade de fome nos últimos três meses.
A EBIA é, portanto, o parâmetro utilizado pelo IBGE, via PNAD, para
verificar a segurança e insegurança alimentar e nutricional dos brasileiros. O
documento entende segurança alimentar e nutricional com as seguintes
dimensões:

disponibilidade do alimento [que] significa a oferta de alimentos para toda

86
A EBIA, base metodológica da pesquisa suplementar, mensura a percepção dos moradores dos
domicílios em relação ao acesso aos alimentos e, além disso, atende à determinação do Art. 21,
do Parágrafo 6º, do mencionado Decreto, ou seja, é um instrumento capaz de “identificar os
grupos populacionais mais vulneráveis à violação do direito humano à alimentação adequada” e
apontar as desigualdades sociais, de cor ou raça e de gênero associadas (PNAD, 2009).
87
O Decreto n. 7.272, de 25 de agosto de 2010 regulamenta a Lei que cria o SISAN, cria a Política
Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (PNSAN) e determina a criação do Sistema de
Monitoramento e Avaliação que deverá contemplar, dentre as várias dimensões de análise de
SAN, o acesso à alimentação adequada e saudável.
221

população e depende da produção, importação (quando necessária),


sistemas de armazenamento e distribuição; o acesso físico e econômico
aos alimentos significa a capacidade de obter alimentos em quantidade
suficiente e com qualidade nutricional, a partir de estratégias cultural e
socialmente aceitáveis, além de depender da política de preços e da
renda familiar; a utilização biológica dos alimentos pelo organismo é o
aproveitamento dos nutrientes, que é afetado pelas condições sanitárias
nas quais as pessoas vivem e produzem sua comida, depende da
segurança microbiológica dos alimentos e pode ser afetado pelos
conhecimentos, hábitos e escolhas sociais (KEPPLE, 2010, p. 5-6 apud
PNAD, 2009 grifos do autor).

Há ainda uma quarta dimensão considerada no documento para a


segurança e insegurança alimentar e nutricional das famílias que é a estabilidade
e que implica no acesso e disponibilidade dos alimentos ao longo do tempo. No
interior da política essa dimensão exige planejamento do poder público e das
famílias na prevenção de problemas crônicos ou sazonais na disponibilidade dos
alimentos.
A PNAD 2009 apresenta um quadro do que é segurança e insegurança
alimentar com o qual baliza a coleta dos dados:

Quadro 3.5. Descrição da situação de segurança alimentar segundo a PNAD 2009.

Situação de 2004 em 2009 em


Segurança Descrição porcentagem porcentagem
Alimentar de domicílios de domicílios
Os moradores dos domicílios têm acesso
Segurança regular e permanente à alimentos de
alimentar (SA) qualidade, em quantidade suficiente, sem 65,1 69,8
comprometer o acesso a outras
necessidades essenciais.
Preocupação ou incerteza quanto ao
Insegurança
acesso aos alimentos no futuro; qualidade
alimentar leve
inadequada dos alimentos resultante de 18,0 18,7
(IA)
estratégias que visam não comprometer a
quantidade de alimentos.
Insegurança Redução quantitativa de alimentos entre os
alimentar adultos e/ou ruptura nos padrões de
9,9 6,5
moderada alimentação resultante da falta de
alimentos entre os adultos.
Redução quantitativa de alimentos entre as
Insegurança crianças e/ou ruptura nos padrões de
alimentar alimentação resultante da falta de
7,0 5,0
grave alimentos entre as crianças; fome (quando
alguém fica o dia inteiro sem comer por
falta de dinheiro para comprar alimentos).

Fonte: IBGE, PNAD 2009. Elaboração própria.


222

A pesquisa foi estimada para 58,6 milhões de domicílios particulares no


ano de 2009, destes, foram considerados dentro do quadro de Segurança
Alimentar (SA), 69,8% ou 40,9 milhões de domicílios. Isso corresponde a uma
população de 126,2 milhões de brasileiros que, por sua vez, implica em 65,8% da
população total do Brasil residente em domicílios. Do restante, 17,7 milhões de
domicílios particulares se encontram em algum grau de Insegurança Alimentar
(IA). Nesses lares vivem cerca de 65,6 milhões de brasileiros. A prevalência de
domicílios com pessoas em situação de IA leve foi estimada em 18,7%, ou 11,0
milhões de domicílios, o que corresponde a 40,1 milhões de pessoas (20,9% da
população residente em domicílios particulares). A situação de IA moderada foi
registrada em 6,5% (3,8 milhões) de domicílios, o que significa 14,3 milhões de
pessoas (7,4% dos moradores) convivendo com limitação de acesso quantitativo
a alimentos. E 5,0% (2,9 milhões de domicílios) apresentaram IA grave, ou seja,
pelo menos uma pessoa do domicílio declarava passar fome no período
investigado. Essa situação atingia 11,2 milhões de brasileiros (PNAD, 2009).
Esses dados, se comparados com os dados de 2004, que eram: IA leve
18%; IA moderada 9,9% e IA grave 7,0%, apresentam redução no quadro de
fome (aqui a fome é percebida como ausência de ingestão de alimentos) (PNAD,
2009).
A PNAD investiga também os bens que existem nos domicílios e o acesso
a saneamento básico. Cabe observar que os domicílios com situação de
Insegurança Alimentar apresentam quantidades crescentes de bens quando se
compara 2004 e 2009. Ou seja, a política de consumo de massa está funcionando
perfeitamente.
No que se refere ao saneamento, a relação é inversamente proporcional à
gravidade do problema, ou seja, quanto maior a insegurança alimentar menor a
acesso a saneamento básico.
Quanto ao rendimento, como era de se esperar, quanto menor a renda
maior a Insegurança Alimentar. Cerca de 55,0% dos domicílios em Insegurança
Alimentar moderada ou grave possuem renda per capita de até ½ salário mínimo
e 1,9% registravam renda per capita de 2 salários mínimos. O relatório observa
também que 13,7% dos domicílios que estão em SA registram renda per capita de
223

½ salário mínimo e 26,2% de mais de 2 salário mínimos (PNAD, 2009).


A escolaridade é um fator importante na situação de segurança e
insegura alimentar. No urbano e no rural, quanto maior o nível de escolaridade
menor a prevalência de insegurança alimentar moderada ou grave.

Em 2004, entre aqueles sem instrução ou com menos de 1 ano de


estudo, 29,2% dos moradores tiveram restrição quantitativa moderada ou
grave de alimentos, para aqueles com 11 a 14 anos de estudo este
percentual era 4,1 vezes menor. Em 2009, houve redução da IA
moderada ou grave em todos os níveis de escolaridade, e embora a
associação tenha se mantido, a razão entre as prevalências para os
níveis de escolaridade citados acima reduziu para 3,4 (PNAD, 2009).

Observa-se, do exposto, que a tendência à redução dos índices de déficit


de peso, déficit de altura já se esboçavam desde a década de 1970, ou seja, a
parcela tributada ao PBF, ou à política salarial, deve ser relativizada.
Todavia, parcela significativa da classe trabalhadora no Brasil continua
afirmando estar em situação de fome, ou em situação de insegurança alimentar.
Porém, é significativo notar a estratégia de consumo de massa como mecanismo
de combate à fome. O problema é deslocado para outra esfera, não mais o déficit
de peso, mas sim, a obesidade somada à anemia. Ou seja, uma obesidade
causada com a desnutrição.
Significativo notar também a tendência à anemia somada à obesidade
que indica problemas graves na alimentação. A transição para a situação de
obesidade é indicadora do consumo de alimentação barata pela população. Já se
apresentava para o Brasil o fato de que a desnutrição estaria reduzindo em todo o
país ao longo das décadas de 1980 e 1990, porém, a situação de fome ainda
persiste. Por outro lado, a estratégia de consumo de massa e de pacto social
executada pelo governo desloca o problema da insegurança alimentar para outro
patamar. De uma população afetada pela falta de alimentos ou pela ingestão
insuficiente deles, como denunciava Josué de Castro, temos agora uma
população que adoecida em função da ingestão de substâncias alimentares
impulsionada pela indústria de alimentos. Ao levar a população à obesidade e
todos os problemas de saúde dela advindos, a forma da indústria de alimentos
não satisfaz a necessidade natural de se alimentar, antes, engana a fome.
224

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

“Não podemos nos permitir desviar os olhos.”


Sebastião Salgado

No estudo sobre o valor da fome no Brasil, entre a satisfação das


necessidades humanas e a reprodução do capital, foram investigadas as
seguintes questões: 1) Qual é o valor da fome na reprodução do capital? 2) Como
o padrão de desenvolvimento do capitalismo no Brasil incide sobre o problema da
fome? 3) Como está organizada a política de combate à fome no Brasil?
Como exposto na Introdução, a fome é compreendida como a ingestão
insuficiente ou inadequada de alimentos que leva à deterioração do estado de
saúde e/ou do desenvolvimento produtivo e social dos homens. Sua satisfação é
realizada pelo consumo de alimentação adequada às necessidades nutricionais e
sociais humanas, histórico e socialmente determinadas, possibilitando o
desenvolvimento do humano. O homem é entendido como um Ser Social que se
caracteriza por se autoconstruir como gênero no processo de satisfazer suas
necessidades.
Antes de retornar às questões, cabe explicitar o modo como é apreendido
o valor da fome e do alimento para a satisfação das necessidades humanas e
para a reprodução do capital. A questão se apresenta, sinteticamente, da seguinte
forma: a fome é desvalor para o humano e sua satisfação possibilitada pelo
alimento é valor. Para o capital, o alimento, em sua forma mercadoria, contém
valor. O processo de valorização do capital pode gerar fome, e o capital pode
utilizar a situação da fome como meio de realizar a circulação de mercadorias.
Nesse aspecto, a fome tem valor para o capital. O alimento e a fome, sob as
formas que possuem valor para o capital, apresentam-se como desvalor para
humano.
O homem é um ser natural e social que, para se reproduzir, estabelece
relações mediadas com a natureza e com outros homens. A forma como o
homem realiza sua relação sociometabólica com a natureza é o trabalho. O
225

trabalho é a atividade humana orientada para um fim que satisfaz necessidades


humanas, transformando a natureza e transformando sua própria natureza. É por
meio do trabalho que o homem se torna Ser Social, se constitui enquanto gênero,
se objetiva, se universaliza (MARX, 2003, 2012; LUKÁCS, 2012, 2013).
No processo de desenvolvimento do trabalho coloca-se para o homem a
questão dos meios e dos fins e com estes a questão das escolhas, do útil e do
não útil. A orientação para essas escolhas volta-se, a princípio, para a satisfação
das necessidades imediatas. Uma vez satisfeitas as necessidades, criam-se
novas necessidades, cada vez mais complexas. Nesse processo, a forma de
satisfazer as necessidades torna-se cada vez mais social, assim como as próprias
necessidades. Esse processo, pelo qual se constitui o Ser Social, permite que o
homem se afaste cada vez mais de sua condição natural e suas necessidades
passam a ser satisfeitas com conteúdo social. O homem afasta paulatinamente as
barreiras naturais, seus atos tornam-se atos cada vez mais sociais, mais
humanos, ainda que a barreira natural seja irrevogável.
No complexo processo de desenvolvimento do Ser Social pelo trabalho
coloca-se para o homem a questão dos valores. O valor para o humano possui
dimensão ontológico-social, assim, o critério para o desenvolvimento dos valores
não é apenas a realidade dos mesmos, mas as possibilidades contidas neles, sua
possibilidade: o vir-a-ser do homem como gênero.
Diante do valor tomado em sua dimensão ontológico-social, em sua
gênese, a satisfação das necessidades precisa se realizar de forma a atender a
condição de “se...então” na perspectiva de constituição do Ser Social, de
constituição da genericidade humana. As respostas para o “se...então”, no que diz
respeito à fome-alimentação, são dadas se a alimentação é adequada ao
desenvolvimento do homem em sua integridade como Ser Social, abrindo
possibilidades para o desenvolvimento pleno de suas capacidades.
Retomo a questão de que a fome se apresenta como desvalor. É assim
inclusive por levar a eliminação física do sujeito. A degradação física e psquíca
provocada pela fome retrocede o humano à condição animal, ou seja, reverte o
processo afastamento das barreiras naturais empreendido pelo homem na
constituição do Ser Social, é um processo de desumanização. Castro (1981)
informa que a fome é uma sensação intermitente, de início prova uma excitação
226

nervosa, anormal, uma extrema irritabilidade e uma exaltação dos sentidos que
“se acendem num ímpeto de sensibilidade” na busca do alimento para a

satisfação do instinto mortificador da fome. Destes sentidos há um que


se exalta ao extremo, alcançando uma acuidade sensorial incrível: é o
sentido da visão. No faminto, enquanto tudo parece ir perecendo aos
poucos em seu organismo, a visão cada vez se vai acendendo,
vivificando-se espasmodicamente (CASTRO, 1981, p. 246).

À medida que a fome se prolonga e se aprofunda, no organismo e na


psique dos sujeitos desenvolve-se um desânimo, uma espécie de letargia no
indivíduo que o impede de realizar qualquer atividade. Esse estado, comumente
chamado de preguiça, nada mais é que o corpo se protegendo da morte ao
economizar energia.
Outro fenômeno que pode exemplificar o regresso à condição natural é o
hábito de comer terra88, presente registrado na história brasileira e em outras
partes do mundo. Ao se debruçar sobre a fome do sertanejo brasileiro, Castro
(1981, p. 243) informa que

não é somente agindo sobre o corpo dos flagelados, roendo-lhes as


vísceras e abrindo chagas e buracos na sua pele, que a fome aniquila a
vida dos sertanejos, mas também atuando sobre o seu espírito, sobre
sua estrutura mental, sobre a sua conduta social. Nenhuma calamidade
é capaz de desagregar tão profundamente e num sentido tão nocivo a
personalidade humana como a fome quando alcança os limites da
verdadeira inanição. Fustigados pela imperiosa necessidade de
alimentar-se, os instintos primários se exaltam e o homem, como
qualquer animal esfomeado, apresenta uma conduta mental que pode
parecer a mais desconcertante. Muda o seu comportamento como muda
o de todos os seres vivos alcançados pelo flagelo nessa mesma área
geográfica (CASTRO, 1981, p. 243).

88
O fenômeno da geofagia ou geomania, hábito ou mania de comer terra. Hábito que, a nosso ver,
traduz quase sempre um tipo de fome específica, não sendo mais que a reação do organismo,
buscando no barro do solo os elementos minerais de que se sente desfalcado. Principalmente o
ferro que existe, sob a forma de hidróxido de ferro, no barro vermelho das terras tropicais, nos
cacos de moringas e nos pedacinhos de tijolo com que se empanturram a gosto os comedores de
terra das várias regiões do mundo. Regiões todas elas de fome crônica em alimentos minerais. A
anemia tropical não é, portanto, uma fatalidade climática; não é um produto do clima agindo sobre
o organismo humano num determinismo inexorável (CASTRO, 1981).
227

A necessidade humana a alimentação, expressa pela carência de um


objeto externo e manifesta no fenômeno da fome é dada pela ingestão de
alimentos. Mas a forma humana de satisfazer essa necessidade, distinta dos
demais animais, é eminentemente social, “A fome é a fome, mas a fome que se
satisfaz com carne cozida, que se come por meio de uma faca ou de um garfo, é
uma fome muito distinta da que devora carne crua com ajuda das mãos, unhas e
dentes” (MARX, 2008, p. 246). A satisfação da fome para o humano é realizada
sob dupla legalidade: a natural (satisfaz a necessidade do corpo em se nutrir
adequadamente) e a social que é historicamente determinada. A forma
socialmente construída para a alimentação humana encontra-se no ato de comer.
“Aqui apresenta-se o caráter irrevogavelmente biológico da fome e de sua
satisfação e, concomitantemente, o fato de que todas as formas concretas da
última são funções do desenvolvimento socioeconômico” (LUKÁCS, 2013, p.
172).
Observa-se que a transição alimentar humana, ao longo da história da
alimentação, tem consequências biológicas concretas, como o cozimento do
alimento, a ingestão de carne e leite, mas “a regulação social do consumo
alimentar inquestionavelmente também o teve” (LUKÁCS, 2013, p. 173).

O ato de cozinhar merece seu lugar como uma das grandes novidades
revolucionárias da história não pela maneira como transforma a comida –
há muitas outras maneiras de fazê-lo –, mas sim pelo modo como
transformou a sociedade. A cultura começou quando o que era cru foi
cozido. A fogueira no campo passa a ser um local de comunhão quando
as pessoas comem ao seu redor. O ato de cozinhar não é apenas uma
forma de preparar o alimento, mas também uma maneira de organizar a
sociedade em torno de refeições em conjunto e de horários de comer
previsíveis. Ele introduz novas funções especializadas e prazeres e
responsabilidades compartilhados (FERNÁNDEZ-ARMESTO, 2004, p.
24).

A alimentação entendida como comida e o complexo que isso significa,


desde a escolha do que plantar ou colher na natureza, a forma de preparo e a
forma de comer em conjunto, representa valor para o humano porque atende a
necessidade natural e irrevogável de reprodução material, mas também ao
desenvolvimento do Ser Social.
228

A fome se resolve com a alimentação (comida). A forma de fazê-lo como já


foi dito é histórica e socialmente determinada, e pode ser realizada sobre uma
variedade de formas. Para termos alimentos é necessário produzi-los. Na
atualidade a produção de alimentos está submetida ao complexo sistema
agroindustrial e sob a forma mercadoria o alimento tem valor para o capital.
O alimento contém valor para o capital, pois sob o modo de produção
capitalista torna-se uma mercadoria. Na forma mercadoria o alimento participa da
valorização do capital sob dois aspectos: 1) É um dos componentes dos bens-
salário, portanto, a redução do preço da mercadoria reduz o custo dos bens-
salário que compõe o salário necessário para a reprodução do trabalho e,
portanto, reduz o salário pago; 2) É uma mercadoria que responde a uma
necessidade humana insuprimível.
O alimento, ao adquirir a forma mercadoria, responde única e
exclusivamente à dinâmica de valorização do capital. Nesse sentido, é a
valorização, portanto, que orienta o que será produzido, em quais condições e
quantidades. A forma de produzir alimentos atualmente é realizada por meio de
um complexo sistema agroindustrial.
No sistema agroindustrial as sementes utilizadas na agricultura são
sementes transgênicas produzidas por meio de um processo tecnológico que
impõe a utilização de fertilizantes químicos e agrotóxicos (herbicidas, inseticidas e
fungicidas) poluindo os solos, as águas e intoxicando os trabalhadores inseridos
no processo de produção. Esse complexo tecnológico concentra-se nas mãos de
poucas empresas, dentre as quais: a Monsanto, a Cargill, a Aventis, a Pionner, a
Syngenta, a Bayer e a Basf. Somente nos Estados Unidos mais de 40 milhões de
hectares são cultivados com sementes transgênicas. Essa produção é realizada
de forma altamente mecanizada, e em razão disso utiliza pouca mão de obra.
A produção se concentra em poucos produtos, especialmente o milho e
soja. Estes produtos são a base para a indústria de produtos alimentícios e de
ração animal. Andrioli e Funchs (2012) afirmam que mais de 30 mil componentes
da indústria de produtos alimentícios e ração animal derivam da soja. Pollan
(2007) afirma que 45 mil itens diferentes no supermercado são, na verdade,
remanejamentos de moléculas extraídas de milho. O milho e a soja são
escolhidos, pois estão entre as plantas mais eficientes transformadores de “luz do
229

sol e fertilizantes químicos em energia de carboidratos (no caso do milho) e em


gordura e proteína (no caso da soja)”; são lavouras alternáveis, pois a soja repõe
o nitrogênio que o milho retira do solo (POLLAN, 2007).
Uma das destinações dessa produção são as fazendas industriais de
produção de carne (gado, frango e porcos). A produção é realizada em
confinamento e sob a forma de ração animal. Pollan (2007, p. 76) informa que

A cadeia alimentar industrial transforma alqueires de milho em bifes.


Como se consegue arregimentar uma criatura tão pouco adequada –
afinal, a vaca é um herbívoro por natureza – para ajudar a dar cabo do
excedente de milho dos Estados Unidos? A maior parte do milho-
commodity americano (cerca de 60% dele ou 54 mil sementes) é – de
longe – aquele destinado a alimentar os animais de criação, e uma
enorme parcela deste vai alimentar especificamente as cerca de 100
milhões de cabeças de gado de corte no país – vacas, touros e novilhos
que, em outros tempos, passavam grande parte de suas vidas pastando
o capim das pradarias.

Cabe detalhar um pouco mais o que ocorre nas fazendas de


confinamento, pois seus efeitos se fazem sentir na natureza, mas também na
alimentação humana, como a criação de gado, por exemplo. Os animais sob
confinamento são alimentados com ração à base, quase sempre, de milho e soja.
Isso traz implicações para a vida do animal – uma vez que o gado come
normalmente capim e, inclusive, por isso, é um ruminante –, mas também para a
alimentação humana – carne produzida a base de milho e soja – que é menos
saudável para a alimentação humana. Ao serem alimentados com ração esses
animais podem ser abatidos em menos tempo, reduzindo o tempo de produção da
mercadoria. Na década de 1950 uma vaca demorava cerca de três anos para ser
abatida, hoje esse tempo gira em torno de 14 a 16 meses. A quantidade de
cabeças é outro problema: animais em grande quantidade sem condições
adequadas e produzindo muito estrume provocam vários tipos de doenças. Em
função disso, a ração animal agrega o que Pollan (2007) chama de uma anomalia
histórica: o antibiótico.
230

É difícil argumentar contra a lógica econômica que faz reunir tantos


animais num único lugar para alimentá-los com milho barato. Ela tornou
tão barata e abundante a carne, que costumava ser um prato especial na
maior parte dos lares americanos, que muitos de nós hoje comemos
carne três vezes por dia. Menos convincente é a lógica biológica por trás
da carne barata. Apesar do pouco tempo decorrido desde a sua criação,
as [fazendas de confinamento] já deram uma razoável contribuição para
aumentar o número de problemas ambientais de saúde: água e ar
poluídos, resíduos tóxicos, novos e mortais agentes patogênicos
(POLLAN, 2007, p. 77).

A outra forma de produção de carne de gado é a produção extensiva, que


ainda responde pela produção de carne do Brasil e foi ampliada sobre a
Amazônia legal, sendo responsável por grande parte da destruição da floresta.
Cabe notar que para se produzir um quilo de carne são necessários 15 mil litros
de água, e isso, obviamente, possui impactos ambientais graves (FAO, 2012).
A outra parte do milho89 e da soja é enviada para a indústria de produtos
alimentícios e vendida sob as mais variadas formas de produtos, processados e
ultraprocessados. Essas substâncias alimentares com aparência de comida
enganam a fome, mas não atendem à alimentação humana.

É verdade que há muito tempo processamos os alimentos para


conservá-los, como quando fazemos picles, fermentamos ou
defumamos, mas o processamento industrial visa fazer muito mais do
que estender a vida e prateleira. Hoje os alimentos são processados de
formas especificamente planejadas para nos vender mais alimentos
aproveitando-se de nossas opções evolutivas, a preferência inata por
doçura, gordura e sal. Essas características são difíceis de encontrar na
natureza, mas são baratas e fáceis para o cientista da alimentação
desenvolver, com o resultado de que o processamento nos induz a
consumir muito mais dessas raridades ecológicas do que seria bom para
nós. ‘Mais gostoso, menos poder de saciar!’, poderia ser o lema da
maioria dos alimentos processados, que são muito mais concentrados
em energia do que a maioria dos alimentos puros: contêm muito menos
água, fibra e micronutrientes, e geralmente muito mais açúcar e gordura,
o que os torna ao mesmo tempo, para cunhar um slogan de marketing:
‘mais engordativo, menos nutritivo!’ (POLLAN, 2008, p. 166).

89
Parte da produção de milho também é utilizada para a produção de agrocombústivel. “Com um
tanque de 50 litros, um carro movido a etanol de milho consome 205 quilos de milho. A mesma
quantidade é suficiente para alimentar uma criança mexicana por um ano. No momento em que
enche o tanque, você tira o alimento de uma criança. É uma consequência direta” (ZIEGLER,
2007).
231

Toda essa produção de grãos, carnes, produtos processados exige


circulação rede de transportes e abastecimento (supermercados). A rede de
distribuição é organizada por meio de carros, caminhões, navios, aviões que
utilizam combustível fóssil por um lado e agrocombustíveis, por outro. Os
agrocombustíveis devoram milhões de toneladas de grãos de milho, trigo e outros
alimentos no processo de sua produção e liberam na atmosfera milhões de
toneladas de dióxido de carbono (ZIEGLER, 2013).
O governo brasileiro se orgulha de não utilizar milho para a produção de
agrocombustível: pois o milho é um alimento! Porém, o vende para os Estados
Unidos que produz agrocombutível com o milho. Por outro lado, o Brasil
transforma cana em etanol. Dentre os inúmeros problemas causados pela
produção de cana no Brasil, dentre os quais, trabalho escravo, destruição de
mananciais de água, está o fato de ocupar terras que poderiam ser utilizadas para
produzir alimentos (ZIEGLER, 2013).
Toda essa produção de alimentos-mercadoria precisa de mercado
consumidor. Esse mercado consumidor é conseguido sob diversos aspectos. Um
deles é ampliar o consumo individual, isso é realizado por meio de algumas
estratégias como, por exemplo, ampliar o tamanho das embalagens dos produtos
alimentícios, o que faz com as pessoas comam mais sem notarem. Outra forma é
modificar a composição desses alimentos no processamento inserindo açúcar, sal
e gordura que são altamente palatáveis e também aumentam o consumo
individual, o resultado desse aumento é a epidemia de obesidade verificada em
todo o mundo e também no Brasil.
A obesidade, por sua vez, desencadeia uma série de doenças, dentre
elas estão as doenças que mais matam no mundo, como diabetes tipo II, doenças
coronárias, acidentes vasculares cerebrais. Para cuidar dessas doenças aprende-
se a conviver com o diabetes, reduzir os estômagos com cirurgias bariátricas,
realizar cirurgias estéticas. São criadas, portanto, necessidades artificiais,
alienadas, distanciadas dos valores para a construção do Ser Social, mas que
respondem à valorização do capital.
Outra forma, e isso é especialmente importante na avaliação do valor da
fome no Brasil, é o aumento do número de pessoas que podem consumir esses
alimentos-mercadorias. A estratégia é manter parcela da classe que se encontra
232

na superpopulação estagnada consumindo, isso pode ser realizado pela


intervenção do Estado por meio de políticas de transferências de recursos
financeiros para trabalhadores que não acessam o trabalho.

As necessidades alienadas e as perversas exigências produtivas da


autorrealização do capital não permitem a criação dos ‘elementos
materiais’ da rica individualidade, universal na sua produção e no seu
consumo’, nem, de fato, o pleno desenvolvimento de necessidades e
potencialidades humanas (...). Pelo contrário, as necessidades artificiais
da destrutiva expansão do capital tendem a competir e, na frequente
ocorrência de incompatibilidades, a suprimir com extrema insensibilidade
até mesmo as mais elementares necessidades da inegável maioria da
humanidade. É compreensível, portanto, que a produção de uma
‘abundância constantemente maior’ se converta num sonho cada vez
mais ilusório – a luz que constantemente se afasta no fim de um túnel
que constantemente se alonga –, apesar do aumento assustador das
forças abstratamente ‘produtivas’ da sociedade, que estão condenadas a
permanecer abstratas e estéreis, ainda mais, contraprodutivas, por
causa da sua inserção social capitalista e sua dissipação destrutiva
(MÉSZÁROS, 2002, p. 695, grifos do autor).

Como disse anteriormente, o alimento, sob a forma mercadoria, atende à


valorização do capital e à sua reprodução. Esse alimento produzido com
transgênicos, fertilizantes químicos e agrotóxicos, por um lado, e
ultraprocessados por outro, não atende às necessidades humanas a se alimentar,
antes, ao contrário, provoca adoecimentos e pode levar à morte, tornando-se,
nesse aspecto, um desvalor para o humano. Ou seja, na forma em que é valor
para o capital, o alimento é um desvalor para o humano.
Cabe agora verificar o valor da fome para a reprodução do capital. Há três
aspectos a considerar: 1) os problemas da obesidade; 2) a fome como
instrumento de dominação; 3) a fome como arma comercial.
No que se refere à obesidade, a hipótese levantada por biólogos é de que
a ausência de nutrientes pode provocar a busca incessante por voltar a comer.
Nesse aspecto, a fome tem valor para o capital.

Ames [renomado bioquímico de Berkeley] acredita, embora não tenha


provado, que as deficiências de micronutrientes podem favorecer a
obesidade. Sua hipótese é que um corpo privado de nutrientes críticos
continuará a comer na esperança de obtê-los. A ausência desses
nutrientes da dieta pode ‘neutralizar a sensação normal de saciedade
após a ingestão de calorias suficientes’, e essa fome insaciável ‘pode ser
uma estratégia biológica para obter os nutrientes faltantes’. Se Ames
233

estiver certo, um sistema alimentar organizado em torno antes da


quantidade que da qualidade tem embutido um círculo vicioso, de tal
maneira que quanto mais se comem alimentos de baixa qualidade, maior
é a vontade de comê-los, numa busca inútil – mas altamente lucrativa –
pelo nutriente que falta (POLLAN, 2008, p. 138).

Essa indicação de Ames corrobora com as análises realizadas por Batista


Filho (2008, 2003) quanto à característica da transição nutricional brasileira que
ocorre vinculada à anemia. O empobrecimento nutricional dos alimentos
provocados pelo sistema agroindustrial leva a um maior consumo de mercadorias-
alimentares, porém, não necessariamente à satisfação da necessidade a se
alimentar.
A fome como instrumento de dominação é utilizada em contextos de
conflitos armados e guerras – é importante ressaltar que o mercado de armas é
um dos mais lucrativos do mundo –. É o que ocorre atualmente na faixa de gaza.
Ali vivem 1,5 milhão de palestinos em 365 quilômetros quadrados. Em 2005, o
Governo de Sharon determinou a evacuação do território. No conflito, a
autoridade palestina assumiu as atividades administrativas. Israel criou, então, um
cerco aos palestinos. Israel controla: o espaço aéreo, as águas territoriais e as
fronteiras terrestres. “Na condição de potência ocupante, Israel deveria respeitar o
direito internacional e renunciar especialmente ao uso de arma da fome contra a
população civil”. Entretanto, em 2008, Israel bombardeou o maior moinho de trigo
– um dos três que ainda funcionavam – e destruiu a usina de tratamento de água
e os diques de contenção de águas, privando Tel-Aviv de água.
A fome é uma arma comercial para a acumulação do capital. O comércio
internacional de alimentos gera fome. Sucintamente, o comércio internacional de
alimentos começa com acordos internacionais de livre comércio. Em países de
economia dependente esses acordos são induzidos pelas relações dos países
com o Fundo Monetário Internacional. Com a entrada de uma grande quantidade
de produtos com preço reduzido nos países, os produtores locais não conseguem
competir com os preços e deixam de produzir. Quando a produção interna de
alimentos cai, os preços aumentam e parcela da população não consegue
acessá-los. Os pequenos produtores não conseguem vender seus produtos. Após
um período de relação com o comércio internacional, ou saem de suas terras ou,
234

em situações mais dramáticas como as da Índia, se suicidam (ZIEGLER, 2013).


A fome tem valor para o capital como instrumento político-ideológico. A
existência da fome e o combate a ela fortalecem o discurso de que não é possível
produzir alimentos sob outra lógica, que não seja o sistema agroindustrial, esse é
um argumento utilizado no Brasil para a produção à base de transgênicos,
fertilizantes químicos e agrotóxicos.
No que se refere ao valor da fome no Brasil, a primeira observação a ser
feita é que como o terceiro maior produtor de commodities alimentares do mundo
o Brasil possui significativa importância no complexo sistema agroindustrial e,
portanto, é partícipe dos efeitos que a reprodução do capital nesse setor produtivo
possui sobre a fome no mundo.
Outro aspecto relevante de se notar é que desde os estudos de Castro
(1981) a fome que é prevalecente no Brasil, é a fome tomada em seu aspecto de
desnutrição. Os estudos dos dados do IBGE sobre a transição nutricional
brasileira apontam que a desnutrição se encontra em declínio desde a década de
1970. Monteiro (2003) informa que para crianças de 0 a 5 anos o número índice
de desnutrição chegou à 50% em 2003 – ano inicial dos governos do PT. Os
dados do acompanhamento da desnutrição crônica em crianças atendidas pelo
Programa Bolsa Família indicam uma redução de apenas 2% no índice na
comparação entre os anos de 2008 e 2012, passando de 14,2% para 12,2%.
Por outro lado, a tendência à obesidade da população se acentua
significativamente no período do governo do PT, o que permite inferir que a
estratégia de repasse de recursos financeiros para a população estagnada, e o
aumento real do salário mínimo, contribuíram, de fato, para a ampliação do
consumo de massa de substâncias alimentares, baratas, prejudiciais à saúde, que
antes enganam a fome tornando o brasileiro em um obeso anêmico.
O padrão de desenvolvimento dependente do Brasil que reedita o
agronegócio como elemento importante da dinâmica da reprodução do capital
continua, pois o processo já existe desde a ditadura civil-militar, expulsando
camponeses e trabalhadores do campo, o que inviabiliza a produção de alimentos
pela pequena propriedade rural, como quer a Política Nacional de Segurança
Alimentar e Nutricional.
O último elemento a ser considerado é que segundo a PNAD 2009, 11
235

milhões de brasileiros seguem em situação de fome e, se tomarmos o parâmetro


da insegurança alimentar, o número atinge 65 milhões, o que indica a persistência
do problema da fome no Brasil.
A análise da organização da política de combate à fome no Brasil,
somada com os dados da transição nutricional que se processo no país desde a
década de 1970 levam à seguinte conclusão. A estratégia de vincular a política de
combate à fome com a política de assistência social submeteu o combate à fome
ao combate à pobreza. Por um lado, não toca na estrutura agrária brasileira
submetida à acumulação do capital via economia do agronegócio de forma que o
incentivo à pequena propriedade rural fica circunscrito aos interesses do
latifúndio, mas, o governo garante, por outro lado, a manutenção do consumo via
Programa Bolsa Família.
No aspecto geral do que se processa com a Assistência Social o que se
verifica é que o público atendido crescentemente incorpora parcelas da classe
que acessam o mercado de trabalho, das mais diferentes formas, esse é um
indicativo claro da superexploração do trabalho e da transferência dos custos de
reprodução do capital para o Estado.
O valor da fome no Brasil entre as necessidades humanas e a reprodução
do capital está no fetiche de combate à fome, via redução da pobreza, como mote
central do modo como se operacionaliza e fundamenta a política de assistência
social, contribuindo assim para a manutenção do governo do PT no poder. Além
disso, garante a reprodução do capital a despeito das necessidades humanas que
no aspecto alimentar transita para um quadro de obesidade anêmica.
Retomo a hipótese enunciada da pesquisa de que “a fome na atualidade
é funcional ao sistema capitalista, e assim o sendo, não será superada enquanto
a produção e a reprodução da vida estiverem submetidas à lógica de acumulação
do capital”. A fome é funcional ao sistema capitalista como arma de dominação
por um lado e, por outro, é uma consequência do padrão de desenvolvimento
fundando no sistema agroindustrial.
236

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ANEXO 1

Produção agrícola brasileira de 1995 a 2013, em toneladas


Produtos agrícolas
1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002
selecionados
Arroz (em casca) 11.226.064 8.652.328 8.351.665 7.716.090 11.709.694 11.134.588 10.184.185 10.445.986
Feijão (em grão) 2.946.168 2.452.036 2.840.243 2.191.153 2.830.915 3.056.289 2.453.681 3.064.228
Milho (em grão) 36.266.951 29.652.791 32.948.044 29.601.753 32.239.479 32.321.000 41.962.475 35.940.832
Soja (em grão) 25.682.637 23.166.874 26.392.636 31.307.440 30.987.476 32.820.826 37.907.259 42.107.618
Trigo (em grão) 1.533.871 3.292.777 2.489.070 2.269.847 2.461.856 1.725.792 3.366.599 3.105.658
Mandioca 25.422.959 17.743.155 19.896.205 19.502.717 20.864.340 23.044.190 22.580.282 23.148.303
Cacau (em amêndoa) 296.705 256.777 277.966 280.801 205.003 196.788 185.662 174.796
Café (em grão) 1.860.269 2.738.391 2.457.025 3.378.731 3.263.704 3.807.124 3.639.138 2.610.524
303.699.49 317.105.98 331.612.68 345.254.97 333.847.72 326.121.01 344.292.92 364.389.41
Cana-de-açúcar
7 1 7 2 0 1 2 6
Continua

Continuação
Produtos agrícolas
2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010
selecionados
Arroz (em casca) 10.334.603 13.277.008 13.192.863 11.526.685 11.060.741 12.061.465 12.651.144 11.235.986
Feijão (em grão) 3.302.038 2.967.007 3.021.641 3.457.744 3.169.356 3.461.194 3.486.763 3.158.905
Milho (em grão) 48.327.323 41.787.558 35.113.312 42.661.677 52.112.217 58.933.347 50.719.822 55.364.271
Soja (em grão) 51.919.440 49.549.941 51.182.074 52.464.640 57.857.172 59.833.105 57.345.382 68.756.343
Trigo (em grão) 6.153.500 5.818.846 4.658.790 2.484.848 4.114.057 6.027.131 5.055.525 6.171.250
Mandioca 21.961.082 23.926.553 25.872.015 26.639.013 26.541.200 26.703.039 24.403.981 24.967.052
Cacau (em amêndoa) 170.004 196.005 208.620 212.270 201.651 202.030 218.487 235.389
Café (em grão) 1.987.074 2.465.710 2.140.169 2.573.368 2.249.011 2.796.927 2.440.056 2.907.265
250

396.012.15 415.205.83 422.956.64 477.410.65 549.707.31 645.300.18 691.606.14 717.463.79


Cana-de-açúcar
8 5 6 5 4 2 7 3
Continua

Continuação
Produtos agrícolas
2011 2012 2013
selecionados
Arroz (em casca) 13.476.994 11.549.881 11.782.549
Feijão (em grão) 3.435.366 2.794.854 2.892.599
Milho (em grão) 55.660.235 71.072.810 80.273.172
Soja (em grão) 74.815.447 65.848.857 81.724.477
Trigo (em grão) 5.690.043 4.418.388 5.738.473
Mandioca 25.349.542 23.044.557 21.484.218
Cacau (em amêndoa) 248.524 253.211 256.186
Café (em grão) 2.700.540 3.037.534 2.964.538
734.006.05 721.077.28 768.090.44
Cana-de-açúcar
9 7 4
Fonte: IBGE - Produção agrícola municipal
Elaboração: Dr. Marcelo Gomes Ribeiro
251

ANEXO 2
Escala Brasileira de Insegurança Alimentar – EBIA

1. Nos últimos três meses, os moradores deste domicílio tiveram


preocupação de que os alimentos acabassem antes de poderem
comprar ou receber mais comida?

2. Nos últimos três meses, os alimentos acabaram antes que os


moradores deste domicílio tivessem dinheiro para comprar mais
comida?

3. Nos últimos três meses, os moradores deste domicílio ficaram sem


dinheiro para ter uma alimentação saudável e variada?

4. Nos últimos três meses, os moradores desse domicílio comeram


apenas alguns alimentos que ainda tinham porque o dinheiro
acabou?

5. Nos últimos três meses, algum morador de 18 anos ou mais de idade


deixou de fazer uma refeição porque não havia dinheiro para comprar
comida?

6. Nos últimos três meses, algum morador de 18 anos ou mais de


idade, alguma vez comeu menos do que devia porque não havia
dinheiro para comprar comida?

7. Nos últimos três meses, algum morador de 18 anos ou mais de


idade, alguma vez sentiu fome, mas não comeu, porque não havia
dinheiro para comprar comida?

8. Nos últimos três meses, algum morador de 18 anos ou mais de


idade, alguma vez, fez apenas uma refeição ao dia ou ficou um dia
inteiro sem comer porque não havia dinheiro para comprar comida?

9. Nos últimos três meses, algum morador com menos de 18 anos de


idade, alguma vez, deixou de ter uma alimentação saudável e
variada porque não havia dinheiro para comprar comida?

10. Nos últimos três meses, algum morador com menos de 18 anos de
idade, alguma vez, não comeu quantidade suficiente de comida
porque não havia dinheiro para comprar comida?

11. Nos últimos três meses, alguma vez, dói diminuída a quantidade de
alimentos das refeições de algum morador com menos de 18 anos de
idade, porque não havia dinheiro para comprar comida?

12. Nos últimos três meses, alguma vez, algum morador com menos de
18 anos de idade deixou de fazer alguma refeição, porque não havia
252

dinheiro para comprar comida?

13. Nos últimos três meses, alguma vez, algum morador com menos de
18 anos de idade, sentiu fome, mas não comeu porque não havia
dinheiro para comprar comida?

14. Nos últimos três meses, alguma vez, algum morador com menos de
18 anos de idade, fez apenas uma refeição ao dia ou ficou sem
comer por um dia inteiro porque não havia dinheiro para comprar
comida?

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