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Uma publicação do
Centro Internacional de Políticas para o Crescimento Inclusivo
Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento Volume 12, Edição no 4 2015
Policy in Focus
EDITORIAL
A Policy in Focus é uma publicação regular do IPC-IG. Esta edição foi desenvolvia
em parceria com o Ministério do Desenvolvimento Agrário do Brasil (MDA) e a O crescente reconhecimento da agricultura
Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), explorando familiar como parte da solução para o
as perspectivas singulares sobre as experiências em agricultura familiar.
04 desenvolvimento sustentável: evidência
Editor-Chefe: Michael MacLennan,
PNUD/Centro Internacional de Políticas para o Crescimento Inclusivo a partir de evoluções recentes
Editores Especialistas Convidados: Thomas Cooper Patriota, Institute of
Development Studies (IDS), Universidade de Sussex, bolsista Capes/Brasil e
Francesco Maria Pierri (FAO)
Gerência de Publicações: Roberto Astorino
A soberania alimentar como marco essencial
Tradução: Leonardo Padovani 09 das políticas públicas para o fortalecimento
Revisão: Valdinea Pereira da Silva da agricultura familiar no Sul Gobal
Produção Editorial e Arte: Rosa Maria Banuth e Flávia Amaral
Assistente Editorial: Manoel Salles
Foto da Capa: José Reynaldo da Fonseca A agricultura familiar na nova agenda
Algumas das fotografias usadas nesta edição foram usadas sob licença 12 latino-americana de integração
Creative Commons; créditos completos e links para as licenças individuais regional e desenvolvimento
são fornecidas para cada uma.
ISSN: 2318-8995
As opiniões expressas nas publicações do IPC-IG são as dos autores Como poderiam cadeias curtas de
e não necessariamente aquelas do Programa das Nações Unidas para
abastecimento alimentar alavancar o
o Desenvolvimento ou do Governo do Brasil.
Direitos e Permissões – Todos os direitos reservados. O texto e os dados nessa
27 desenvolvimento de uma economia local
publicação podem ser reproduzidos desde que a permissão por escrito seja obtida
do IPC-IG e a fonte seja citada. Reproduções para fins comerciais são proibidas. com base na agricultura familiar camponesa?
E
sta edição especial da Policy in Focus pretende dar continuidade às discussões
e aos debates instigados pelo Ano Internacional da Agricultura Familiar
(AIAF 2014), destacando os casos específicos e as recomendações gerais de
políticas relacionadas à agricultura familiar em países do Sul Global. É fruto
de uma colaboração entre o Centro Internacional de Políticas para o Crescimento
Inclusivo (IPC-IG), a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura
(FAO) e o Ministério do Desenvolvimento Agrário do Brasil (MDA).
O AIAF foi o primeiro ano internacional das Nações Unidas (NU) que resultou de uma
campanha da sociedade civil, em 2008, pelo Fórum Rural Mundial (WRF), durante o
ápice da crise internacional de preços de alimentos, exatamente quando a mobilização
popular em dezenas de países em desenvolvimento havia acabado de trazer a questão
de segurança alimentar à tona da agenda de política internacional. Com o apoio de
governos nacionais e organizações internacionais, a campanha do AIAF adquiriu força,
mobilizando mais de 360 organizações civis em 60 países de cinco continentes e,
eventualmente, obtendo aprovação unânime dos estados-membros na Assembleia Geral
da ONU em dezembro de 2011, a favor da celebração de um ano comemorativo em 2014.
A organização simultânea da campanha em âmbitos nacional, regional e internacional
refletiu-se na criação de mais de 50 comitês AIAF – principalmente plataformas
angariando organizações da sociedade civil, bem como, em muitos casos, instituições
governamentais e organizações internacionais –, com o intuito de deliberar sobre as
prioridades das políticas voltadas à agricultura familiar de um país. Em muitas situações,
particularmente onde tais plataformas não existiam, comitês nacionais foram sucedidos
por novas legislações, políticas, orçamentos e, de maneira geral, dando maior visibilidade
para a agricultura familiar em seus diversos contextos nacionais.
As várias demandas articuladas por organizações da sociedade civil, ao longo da
campanha do AIAF, podem ser sintetizadas em três “linhas de ação”, assim identificadas
pela FAO na 38ª Conferência de junho de 2013, a saber: i) a promoção do diálogo entre
partes interessadas nas políticas públicas; ii) a criação e o compartilhamento de lições
aprendidas acerca dessas políticas; e iii) a melhor comunicação e a disseminação das
muitas contribuições da agricultura familiar para a sociedade.
Apesar de um crescente consenso global quanto ao papel crucial da agricultura familiar,
assim como exemplificado pelo AIAF, ainda há pouco conhecimento entre decisores
políticos e acadêmicos sobre políticas específicas que estão sendo implementadas
nos países em desenvolvimento. Com o objetivo de reverter esse quadro, o IPC-IG
vem contribuindo, de forma significativa, para expandir o conhecimento global em
relação às políticas sociais no mundo em desenvolvimento, durante a última década.
Além disso, sua atual parceria com a FAO e o governo brasileiro dão testemunho à sua
missão e ao crescente trabalho para reduzir o deficit de conhecimento das políticas
direcionadas ao apoio da agricultura familiar, por meio de diferentes contextos em
países em desenvolvimento.
A agricultura familiar começou a ocupar maior espaço nos círculos de decisores políticos,
desde o lançamento da campanha do AIAF em 2008 até as comemorações pós-AIAF em
2014, no contexto do “Legado do AIAF 2014 e o Caminho Adiante” da FAO. O apoio aos
produtores rurais de pequena escala é um objetivo fundamental para que se obtenham
aumentos sustentáveis em produtividade e segurança alimentar.
por Cristina Timponi Cambiaghi, Esperamos que essa edição especial, que compartilha experiências distintas e
Thomas Cooper Patriota, perspectivas sobre a agricultura familiar por meio de artigos de pesquisadores,
Francesco Maria Pierri e servidores públicos e representantes da sociedade civil no Sul Global, contribua
Michael MacLennan para este crescente diálogo.
O crescente reconhecimento da
agricultura familiar como parte da solução
para o desenvolvimento sustentável:
evidência a partir de evoluções recentes
por Thomas Cooper Patriota,1 Francesco Maria Perri,2 Michael MacLennan3 e Manoel Salles3
Da crise global dos preços dos alimentos Da mesma forma, enquanto a maior parte de forma que estes se tornem parte
à Agenda de Desenvolvimento Pós-2015 dos alimentos é produzida por agricultores crescente da solução para o alcance
Esta edição especial da Policy in Focus familiares, a maioria da população do desenvolvimento sustentável?
segue as comemorações mundiais do Ano mundial em situação de insegurança
Internacional da Agricultura Familiar (AIAF alimentar vive também em áreas rurais. Se forem considerados os conjuntos de
2014) e, mais recentemente, a adoção dos Ademais, apesar de esses agricultores objetivos de desenvolvimento acordados
Objetivos de Desenvolvimento Sustentável terem sido os principais contribuintes nos fóruns multilaterais como indicadores
(ODS) na 70ª Sessão da Assembleia Geral para o manejo sustentável dos recursos representativos de mudanças gerais no
da Organização das Nações Unidas (ONU). naturais por inúmeras gerações, também discurso e na implementação de políticas
A relativa proximidade desses dois eventos estão entre os grupos mais vulneráveis a no âmbito internacional, a atual transição
implica uma reflexão sobre sua relevância eventos climáticos extremos, à perda da de Objetivos de Desenvolvimento do
para a construção de políticas relacionadas biodiversidade e à degradação dos solos. Milênio (ODM) para os ODS apresenta sinais
à agricultura e ao desenvolvimento rural promissores. Apesar do foco do ODM 1 em
nos países de hoje. Esse paradoxo pode ser parcialmente eliminar a extrema pobreza e a fome ter
explicado por décadas de insuficiências contribuído significativamente para uma
O AIAF representou um reconhecimento nos investimentos para a agricultura melhor coordenação e maior priorização de
histórico da contribuição potencial familiar por uma série de razões, desde a ações pelas agências de desenvolvimento
e efetiva de cerca de 40 por cento dificuldade de se criar políticas sob medida governamentais e internacionais, as
da população mundial, bem como da para setores com pouca ou nenhuma metas e indicadores específicos do
maioria da população do mundo em representação nos círculos de formulações Objetivo não chegaram a incorporar a
desenvolvimentopara a erradicação de políticas, até vieses conceituais e dimensão predominantemente rural da
da pobreza, a segurança alimentar e ideológicos. Além desses motivos, há de extrema pobreza e fome no mundo em
nutricional, além do manejo sustentável se considerar ainda uma subapreciação das desenvolvimento.4 Esse fato talvez seja
dos recursos naturais. Esse fato está capacidades da agricultura de pequena reflexo de uma concepção ainda prevalente
ligado diretamente às três dimensões escala em gerar tanto crescimento de desenvolvimento, segundo a qual a
do desenvolvimento sustentável – econômico quanto externalidades grande parte das populações rurais é
econômica, social e ambiental –, sociais e ambientais positivas. vista como um “exército de reserva”
estabelecidas no documento resultante de mão de obra barata, destinado
da Conferência das Nações Unidas para o Do mesmo modo, medidas de austeridade a ser absorvido pelos setores urbanos
Desenvolvimento Sustentável (UNCSD) – em nome do “ajuste estrutural”,particular- industriais e de serviços.
Rio+20, O futuro que queremos, que mente nos anos de 1980 e 1990,
forma as bases conceituais dos ODS enfraqueceram consideravelmente ou até Os ODS, por sua vez, tiveram origem a
recentemente adotados. desmantelaram os até então nascentes partir de um processo de elaboração muito
sistemas de apoio público direcionados mais inclusivo e democrático. Ademais,
Não obstante essas dimensões serem à agricultura de pequena escala em foram formulados durante um período
representativas das áreas nas quais a vários países em desenvolvimento. Não caracterizado pela crescente importância
agricultura familiar pode contribuir obstante, experiências em muitos países atribuída à agricultura familiar para a
de maneira fundamental para o demonstram que a agricultura familiar segurança alimentar, a partir da crise de
desenvolvimento sustentável em escala pode ser uma força motriz ao invés de preços de 2007-2008 até a comemoração
mundial, elas também revelam alguns de um fardo para que se alcancem tais do AIAF em 2014. Portanto, os ODS
seus mais urgentes desafios. Apesar de a objetivos, desde que, para tanto, possibilitaram um papel muito maior
agricultura ser a maior fonte empregadora sejam dadas as condições adequadas. à agricultura familiar em comparação
do mundo, quase três quartos do 1,4 O melhor entendimento dessas condições com os ODM, como evidenciado por boa
bilhão de pessoas que vivem em condições é talvez o questionamento principal parte dos objetivos e metas aprovados,
de extrema pobreza residem em áreas que o AIAF ajudou a levantar. Em outras especialmente o segundo objetivo:
rurais, e a maioria delas depende da palavras, como podem as políticas públicas “acabar com a fome, alcançar a segurança
agricultura para sobreviver (HLPE, 2013). fortalecer os agricultores familiares alimentar e melhoria da nutrição e
4
“
promover a agricultura sustentável”. milhões de estabelecimentos mundiais,
E, mais especificamente, a meta 2.3, quase 500 milhões são operados por
que preconiza explicitamente dobrar indivíduos ou famílias que principalmente Enquanto a maior
a produtividade agrícola e a renda dos dependem da mão de obra familiar, 475 parte dos alimentos é
produtores de alimentos em pequena milhões das quais possuem 2 hectares ou produzida por agricultores
escala, particularmente das mulheres, povos menos e que, coletivamente, representam familiares, a maioria da
indígenas, agricultores familiares, pastores apenas 12 por cento das terras agrícolas população mundial em
e pescadores, inclusive por meio de acesso totais (LOWDER et al., 2014). situação de insegurança
seguro e equitativo à terra, outros recursos alimentar vive também em
produtivos e insumos, conhecimento, Desde outra perspectiva estatística, áreas rurais.
serviços financeiros, mercados e estabelecimentos com menos de 5
oportunidades de agregação de valor hectares representam 94 por cento de
e de emprego não agrícola até 2030. todos os estabelecimentos mas controlam
apenas 19 por cento de todas as terras
Ao mesmo tempo em que se elaboram os agrícolas (FAO, 2014b). Por outro lado,
indicadores dos ODS, surge uma questão apenas 1 por cento dos estabelecimentos
a respeito do grau de comparabilidade no mundo são maiores que 50 hectares.
futura entre o progresso de diferentes Contudo, estes representam 65 por cento
países e os resultados alcançados, que se de todas as terras agrícolas. Muitas dessas
relaciona com a necessidade de se adotar fazendas maiores contam, principalmente,
um conjunto mínimo de critérios comuns com o trabalho assalariado, mesmo
para definir a agricultura familiar, sem quando pertencem e são operadas por
prejuízo de uma justa representação famílias. Portanto, a gestão e a operação
de sua diversidade.5 familiar são condições necessárias,
porém não suficientes para definir a
Conceitualizando e medindo a agricultura familiar, visto que escondem
agricultura familiar em uma escala global grandes diferenças em outras variáveis
A agricultura familiar é uma categoria tais como tamanho do estabelecimento
de análise socioeconômica contestada. e intensidade do capital. O uso
É, às vezes, definida por seus diversos predominante de mão de obra familiar,
constituintes, em subcategorias, que em contraponto, funciona como um
incluem pastores, pescadores artesanais, critério adicional fundamental, pois
povos indígenas, mulheres e jovens rurais, tende a representar melhor a realidade
entre outras. Tem sido reivindicada por dos pequenos e médios estabelecimentos
movimentos camponeses não apenas ao redor do mundo.
como parte de uma estratégia para
fortalecer a proteção de sua autonomia Não obstante a diversidade das definições
e dos seus meios de vida diante de de agricultura familiar, inclusive aquelas
sistemas alimentares globalizados, que incorporam perspectivas adicionais
mas também por seu papel crucial tais como o grau de relativa autonomia
em construir consensos em prol de ou dependência com relação a mercados
um marco normativo no sentido de agrícolas e cadeias alimentares, há um
promover políticas públicas. Além disso, amplo consenso de que ela ainda é a forma
estudiosos vêm utilizando o conceito de agricultura preponderante no mundo,
para fins técnicos ou acadêmicos e, em bem como representa o principal setor
alguns países, é inclusive utilizado como responsável pela segurança alimentar
termo legalmente definido e incluído em e nutricional, além da sustentabilidade
estatísticas nacionais, com implicações ambiental no meio rural.
concretas para a definição de políticas.
Na medida em que o AIAF se encerrou e
No contexto do AIAF 2014, a FAO propôs a corrida para se alcançarem os ODS se
uma definição oficial de agricultura iniciou, a questão principal passou de
familiar.6 Apesar de essa acepção ser “deveríamos apoiar a agricultura familiar?”
suficientemente ampla para abranger para “como podemos apoiar a agricultura
os elementos supracitados, é também familiar?”, conforme evidenciado pelo
fundamentada em, pelo menos, dois discurso e pela implementação de
critérios cruciais: a gestão e operação políticas em diversos lugares do mundo
pela unidade familiar e a predominância hoje. Países do Sul Global podem adquirir
da mão de obra familiar. Dos mais de 570 valiosas lições a partir de
6
“
formuladores de políticas e representantes de produção dos pescadores artesanais,
da sociedade civil no âmbito sub-regional em contraste com outras já existentes
na América do Sul. José Ignacio Olascuaga que favorecem desproporcionalmente A variedade de
e Clara Villalba Clavijo revelam como tais as grandes unidades pesqueiras. impactos positivos da
comitês no Uruguai representam formas Yadava e Mukherjee defendem de agricultura familiar em
análogas de interação mutuamente forma convincente a intensificação economias nas quais
benéfica entre setores de governo do apoio governamental ao setor de elas operam inclui não
e da sociedade civil, neste caso no pesca artesanal, destacando como ele apenas a provisão de
âmbito do território em nível local. pode levar à geração de empregos, ao alimentos saudáveis e
empoderamento social e econômico nutritivos, mas também
Apesar de serem uma inovação de mulheres rurais e a uma gestão mais efeitos em objetivos
institucional recente, as Mesas de sustentável dos ecossistemas marinhos. macroeconômicos
Desenvolvimento Rural têm sido mais abrangentes.
instrumentais ao favorecerem contatos Desafios semelhantes existem na outra
sistemáticos entre as autoridades extremidade da Ásia Meridional, na
governamentais uruguaias nos níveis região montanhosa dos Himalaias no
central e local e ampla gama de norte da Índia, onde os meios de vida
organizações da sociedade civil em dos agricultores familiares tradicionais pode ter efeitos transformadores,
diálogos construtivos sobre políticas, têm desempenhado papel fundamental não apenas dando maior autonomia
permitindo assim uma melhor na gestão da agrobiodiversidade local, econômica aos agricultores familiares
integração das diferentes políticas de de forma integrada com os ecossistemas e aumentando o acesso a alimentos
desenvolvimento rural e o fornecimento pecuários e florestais, ao mesmo tempo mais saudáveis e nutritivos para os
de respostas mais adequadas e melhor em que contribuem para a segurança consumidores, mas também nas
direcionadas às prioridades dos alimentar e nutricional e bem-estar implicações mais amplas da “proximidade
agricultores familiares. econômico da população. R. K. Maikhuri, organizada” em matéria de bem-estar
R. C. Sundriyal, G. C. S. Negi e P. P. Dhyani social no âmbito local.
O foco regional dessa edição passa então mostram que as políticas infelizmente
da América Latina para a Ásia, continente têm optado por pacotes tecnológicos e Principais constatações
que possui de longe o maior número de incentivos econômicos que se concentram As considerações sobre políticas
agricultores familiares; e especialmente demasiadamente em um pequeno número delineadas nessa edição variam da
à sub-região do Sul da Ásia, com dois de lavouras e nas parcelas minoritárias esfera global (como as recomendações de
artigos que se concentram em duas de planícies dessas regiões, gerando Mpofu para ações em âmbito multilateral)
formas específicas de agricultura familiar, formas de agricultura intensivas em até a local (como exemplificadas pelas
caracterizadas pela variedade de biomas capital inadequadas à agricultura familiar Mesas de Desenvolvimento Rural no
e meios de vida correspondentes que tradicional de montanha, e colocando Uruguai, bem como o apelo de Ndiaye
se desenvolveram ali: a pesca familiar em risco a coesão social dos vilarejos da para a “relocalização” das relações
de pequena escala e agricultura familiar região (fenômeno ilustrado por exemplo entre produtores e consumidores por
de montanha. A respeito do setor de pelo aumento da migração masculina meio do apoio às CCAA), passando por
pesca do Sul da Ásia , Yugraj Yadava e para centros urbanos). contextos regionais (como nos casos da
Rajdeep Mukherjee descrevem como o América Latina e Sul da Ásia) e nacionais
advento de formas de pesca intensivas Os autores também mostram que esses (políticas de reforma agrária no Brasil
em capital culminou em uma série de desafios podem e devem ser enfrentados, ou aquelas voltadas para a agricultura
desafios econômicos, sociais e ambientais e fazem uma série de recomendações familiar de montanha na Índia).
interligados, decorrentes da crescente de políticas nesse sentido, incluindo Também englobam amplo leque de
mecanização da produção, do aumento intervenções governamentais que vão políticas, da produção (tal como o
na escala das operações pesqueiras e desde pesquisa e desenvolvimento acesso à terra no caso do Brasil) até
de uma maior concentração das redes adaptados aos contextos locais no apoio a distribuição (como na redução de
de distribuição, colocando em risco as à produção, até incentivos para a venda intermediários pela promoção das CCAA),
práticas tradicionais de pesca familiar. de produtos orgânicos das montanhas e diferentes tipos de biomas, como
no apoio à distribuição. pescas marinhas, montanhas e florestas.
A despeito de esforços relevantes por
parte dos governos da região para apoiar O potencial ainda relativamente pouco Apesar de esta coletânea de artigos
o setor da pesca artesanal mediante explorado das Cadeias Curtas de abordar aspectos bastante diferentes
diversas políticas, desde reservas Abastecimento Alimentar (CCAA) no Sul da elaboração e implementação de
pesqueiras protegidas por lei até o Global é explorado no artigo final dessa políticas sobre agricultura familiar
apoio à renda dos pescadores, seguros e edição, com a descrição esclarecedora em diversos contextos, pode-se tirar
melhorias em infraestrutura, os autores de Abdourahmane Ndiaye sobre como algumas conclusões principais para
frisam que faltam ações governamentais a redução dos intermediários entre as quais o conjunto parece apontar.
destinadas a aumentar a capacidade produtores e consumidores de alimentos Uma primeira constatação importante
8
A soberania alimentar como marco essencial
das políticas públicas para o fortalecimento
da agricultura familiar no Sul Gobal
por Elizabeth Mpofu1
As últimas quatro décadas foram economia de áreas rurais em países do de milhares de pequenos agricultores,
caracterizadas pelo aprofundamento Sul Global. Segundo a Via Campesina abrindo caminho para investimentos na
da integração da maioria das economias e a GRAIN (2014), propriedades rurais compra ou arrendamento de terras em
do Sul Global nos sistemas do capital familiares produzem a maior parte dos grande escala, que visam ao respectivo
global e dos mercados liberalizados, alimentos do mundo, sustentando cerca uso para a exportação de commodities.
com consequências sérias para a de 70 por cento da população mundial,
agricultura familiar. Esse fato aconteceu, apesar de seu acesso proporcionalmente Consequentemente, a desnutrição e a
e ainda continua ocorrendo, por uma decrescente a terras agrícolas. fome são mais predominantes no Sul Global,
incessante promoção do paradigma sobretudo em áreas rurais, nas quais reside
neoliberal, sob a tutela de seus principais A agricultura familiar não só conserva a a maior parte dos agricultores familiares.
promotores internacionais, isto é, as biodiversidade e reduz riscos relacionados A insegurança alimentar que assola a maioria
instituições de Bretton Woods e governos ao clima como também é a principal dos países do Sul Global vem revelando as
do Norte Global. Estes compeliram os fonte de emprego no mundo e emprega limitações dessas mudanças nas políticas.
países do Sul a abrirem suas fronteiras a maioria da força de trabalho no Sul Esperava-se uma mudança de atitude da
nacionais, levando à recuada do Estado Global. As Nações Unidas, portanto, parte dos decisores políticos durante a crise
diante de sua agenda desenvolvimentista, declararam 2014 como o Ano Internacional mundial de preços de alimentos, no sentido
na qual as políticas públicas historicamente da Agricultura Familiar (AIAF) em de revisar as políticas públicas existentes
desempenhavam papel central. reconhecimento ao papel fundamental em prol da agricultura familiar, para
Consequentemente, políticas nacionais e desempenhado pelo setor. Contudo, garantir a segurança alimentar nacional.
legislações foram modificadas para servir apesar do desenvolvimento de políticas No entanto, vieses nas políticas contra
os interesses do capital financeiro global e a favor da agricultura familiar em o setor (e.g. políticas de preços agrícolas
de companhias transnacionais. De acordo alguns países, o apoio ao setor não tem inadequadas, políticas fundiárias que
com Ha-Joon Chang (2009, p. 478): melhorado de forma significativa no Sul discriminam contra o acesso e o controle
Global como um todo, enquanto a maior das mulheres à terra, políticas precárias de
[A] retirada do Estado afetou parte das políticas agrícolas continuam desenvolvimento de infraestrutura na maioria
negativamente o investimento em com forte viés a favor do agronegócio de dos países da África subsaariana, etc.), não
bens públicos tais como pesquisa grande escala destinado à exportação. apenas em termos de redistribuição de terras,
agrícola, educação, extensão e mas também quanto ao apoio orçamentário,
infraestrutura, consequentemente Conformidade à agenda neoliberal: seja para pesquisa e extensão ou para
reduzindo a produtividade agrícola. o calcanhar de Aquiles do Sul Global instituições financeiras relevantes, têm
Ademais, reformas orientadas para o Os países do Sul Global, no contexto impedido que tal mudança aconteça.
mercado promovidas por instituições atual de globalização – em que o capital
financeiras deixaram a agricultura financeiro reina com supremacia – têm Cegueira em relação aos caminhos
com menos acesso ao crédito do que sobretudo envidado esforços para se históricos de desenvolvimento
nunca. A liberalização do comércio tornarem “competitivos” no sentido de atrair agrícola dos países do Norte Global
levou ao aumento da penetração investimentos estrangeiros. Tal preocupação A ânsia de alguns países em se adequar
das importações, o que ameaçou os com o investimento externo também à agenda neoliberal não apenas implicou
meios de vida de muitos agricultores. acarretou mudança nas políticas públicas, uma “comodificação” da natureza e o
Uma pressão simultânea em prol da com subsídios à infraestrutura e à agricultura enfraquecimento de abordagens mais
promoção das exportações agrícolas redirecionados para apoiar o setor do coletivas e unificadas a respeito dos
em grande número de países que se agronegócio, o qual produz, principalmente, problemas e das estratégias a serem
especializam nos mesmos produtos para mercados de exportação. adotadas para a prosperidade no Sul
tem frequentemente resultando Global, mas também é reveladora de uma
na queda dos preços e até nas Essas mudanças nas políticas do Sul Global cegueira quanto aos caminhos históricos
suas receitas de exportação. deixaram o setor da agricultura familiar de desenvolvimento agrícola dos países
não só enfraquecido, como também do Norte. A maioria dos países ricos de
Não obstante, a agricultura familiar, exposto e vulnerável. Assim, a crise de hoje passaram pela mesma situação
ao invés de desaparecer, permanece preços de alimentos recente de 2007-2008 atualmente enfrentada pelo setor
como setor-chave da agricultura e da levou à desapropriação e ao deslocamento agrícola em países do Sul.
10
“ A agricultura
familiar, ao invés de
desaparecer, permanece
como setor-chave da
agricultura e da economia
de áreas rurais em países
no Sul Global.
Foto: Eduardo Aigner/MDA. Agricultores familiares complementam refeições com a própria produção.
Mato Grosso, Brasil, 2010.
o desenvolvimento nacional nos países diferentemente dos casos dos EUA MARQUEZ, Susana; RAMOS, Álvaro. Differential
do Sul, por meio da manutenção de e da UE – remover os vieses em favor policies for Family Farming in MERCOSUR:
Contribution of Political Dialogue in the
um suprimento constante de alimentos da agricultura de larga escala. Design of Public Policies and Institutionalisation.
tradicionais diversos, apropriados e Rome: International Fund for Agricultural
saudáveis, e a concomitante proteção Para movimentos sociais, tais como a Via Development, 2010. <https://www.ifad.org/
documents/10180/407bcbf5-cf38-4e15-9726-
da biodiversidade e diversidade cultural, Campesina, as políticas públicas não são c7ea1a253e8c>. Acesso em: 18 nov. 2015.
faz-se imperativa a necessidade de fins em si, mas sim meios de fortalecimento
intervenções públicas focalizadas em da luta camponesa para alcançar NYÉLÉNI, Village. Declaration of the forum
for food sovereignty. Sélingué, Mali, 2007.
todas as áreas que afetem a renda e mudanças estruturais reais, a partir de
as capacidades da agricultura familiar. uma abordagem sistêmica que enfrente UNITED NATIONS. Biennial report on
as inadequações e ineficiências às quais the review of the implementation of the
Tais medidas devem ser específicas
commitments made towards Africa’s
a cada contexto e adaptadas aos deve fazer face a agricultura familiar. development. Report of the Secretary-General.
níveis de desenvolvimento econômico A/69/163. New York: United Nations, 2014.
de cada país.
HA-JOON , Chang. Rethinking public policy in
Os países do Sul Global devem manter agriculture: lessons from history, distant and recent.
Journal of Peasant Studies 36(3): 477-515, 2009.
de forma permanente algumas medidas 1. Zimbabwe Organic Smallholder Farmers Forum
de apoio – especialmente programas LA VIA CAMPESINA. CFS in Rome: The majority (ZIMSOFF) e a Via Campesina.
de estabilização de renda. Também of governments remain blind to the challenges
2. A Via Campesina conta com 164
of the global food security. 2014a. <http://
deve sempre permanecer certo nível organizações-membro em 73 países,
www.viacampesina.org/en/index.php/main-
de protecionismo, conforme ocorre em representando mais de 200 milhões de
issues-mainmenu-27/food-sovereigntyand-
camponeses, agricultores de pequeno
países do Norte Global, como os EUA trade-mainmenu-38/1684-cfs-in-rome-
e médio porte, mulheres agricultoras,
themajority-of-governments-remain-blind-to-
e os países membros da União Europeia sem-terra, povos indígenas, migrantes,
thechallenges-of-global-food-security>.
(UE) – que têm mantido subsídios trabalhadores agrícolas e jovens.
Acesso em: 18 nov. 2015.
agrícolas e protecionismo comercial 3. Soberania alimentar é o direito das pessoas
direcionados de maneira consistente. _______. Rome: Stop TTIP, CETA and other à alimentação saudável e culturalmente
free trade agreements . 2014b. <http://www. adequada, produzida por métodos ecológicos
Essas medidas são imprescindíveis para viacampesina.org/en/index.php/actions- e sustentáveis, bem como seu direito de
proteger os processos de fortalecimento and-events-mainmenu-26/stop-freetrade- definir os próprios sistemas alimentares e
da agricultura familiar da volatilidade agreements-mainmenu-61/1683-stopttip- agrícolas. O conceito coloca as expectativas
ceta-and-other-destructive-trade-policies>. e as necessidades daqueles que produzem,
dos mercados internacionais, a fim Acesso em: 18 nov. 2015. distribuem e consumem alimentos no coração
de produzir ganhos mais duráveis e dos sistemas e políticas alimentares, ao invés
concretos a médio e longo prazo tais LA VIA CAMPESINA; GRAIN. Hungry for land. das demandas dos mercados e das corporações.
Small farmers feed the world with less than a Defende os interesses e a inclusão da próxima
como aumentos na produtividade quarter of all farmland. 2014. Disponível em: geração, oferecendo uma estratégia para
da terra e a estabilização da renda. <http://www.laviacampesina.org/en/index.php/ resistir e desmontar o atual regime corporativo
No entanto, quando aplicadas aos main-issues-mainmenu-27/ agrarian-reform- de comércio e alimentos, e as diretivas para
mainmenu-36/1615-hungryfor-land-small- sistemas alimentares, agrícolas, pastorais e
contextos da agricultura familiar nos farmers-feed-the-worldwith-less-than-a-quarter- pesqueiros, determinadas por produtores e
países do Sul, tais medidas deveriam - of-all-farmland>. Acesso em: 18 nov. 2015. consumidores locais (NYÉLÉNI, 2007).
A decisão das Nações Unidas de e a pobreza e garantir a segurança alimentar (ICN2), em 2014, a Organização Mundial
declarar 2014 como Ano Internacional e nutricional para todos; e, de outro, a de Saúde se manifestou em prol de
da Agricultura Familiar (AIAF) representa mudanças significativas nas políticas uma agricultura que pode e deve ser
um marco na longa jornada rumo econômicas da região, desde seus princípios mais sensível às questões de saúde
a um crescente reconhecimento da orientadores até a sua implementação. pública, considerando o fato de que a
importância estratégica desse setor. agricultura familiar oferece alimentos
É o resultado da convergência de lutas Apesar de existirem exemplos de especialmente saudáveis e dietas mais
sociais, dos avanços institucionais em conquistas importantes alcançadas ricas, comparados com as formas mais
diversos países, da produção acadêmica pela agricultura familiar mundialmente, tradicionais de agricultura, contribuindo,
e do debate intelectual. a América Latina vem sendo a região que assim, para reduzir níveis de sobrepeso e
exibe os resultados mais promissores. de obesidade infantil. Da mesma forma, os
Durante o curso do AIAF, mais de Objetivos de Desenvolvimento Sustentável
300 eventos representaram ocasiões Esses resultados ajudaram a ampliar o (ODS) da Agenda de Desenvolvimento
para reflexões críticas acerca do reconhecimento das contribuições da Pós-2015, recentemente adotados pela
desenvolvimento rural e seus principais agricultura familiar para o crescimento Assembleia Geral das Nações Unidas,
protagonistas, que atualmente perfazem econômico inclusivo. Não apenas também reconhecem as contribuições
cerca de 40 por cento da população desempenhando papel fundamental fundamentais da agricultura familiar
mundial. A agricultura familiar ganhou na criação de postos de trabalho e nas três dimensões de sustentabilidade:
relevância e protagonismo como ator no suprimento da maior parte dos econômica, social e ambiental.
político por diferentes caminhos, em várias alimentos para mercados domésticos
regiões do mundo, impulsionando uma em expansão – ajudando, portanto, a No âmbito da integração regional, a
agenda de democratização econômica e controlar pressões inflacionárias e a reduzir experiência Latino-Americana recente
política do meio rural. a dependência de importações –, esse setor demonstrou um grau singular de
também contribui como consumidor alinhamento e sinergia entre planos,
Parte de sua força deriva de sua condição de produtos industriais (maquinário, programas e políticas domésticos,
de categoria-síntese, que representa uma insumos, fertilizantes, etc.) e serviços sub-regionais e continentais relativos à
ampla diversidade de identidades, formas (infraestrutura, moradia, extensão rural, agricultura familiar. Um bom exemplo,
de agricultura e de acesso e manejo etc.), em alguns casos até potencialmente que se tornou referência na região e em
dos recursos naturais. O fortalecimento gerando efeitos econômicos anticíclicos.3 outras partes, é a experiência adquirida
da agricultura familiar, portanto, não durante os mais de dez anos de reuniões
se deu em detrimento da afirmação de A agricultura familiar, entretanto, está em âmbito sub-regional e nacional
identidades mais específicas abrangidas atualmente no centro de uma agenda e atividades associadas, da Reunião
por esse amplo conceito (tais como muito mais ampla, que transcende Especializada sobre Agricultura Familiar
mulheres e jovens rurais, populações considerações meramente setoriais ou (REAF) do Mercosul, uma plataforma de
indígenas, comunidades rurais produtivas por integrar outras dimensões, diálogo político que congrega delegações
afrodescendentes, outras populações incluindo o desenvolvimento regional compostas por oficiais de governo e
e comunidades tradicionais, etc.); pelo e territorial, a saúde pública e nutrição, representantes da sociedade civil.
contrário, expressa a capacidade deste a promoção da autonomia e igualdade
setor de construir laços de solidariedade das mulheres rurais e a conservação Os países que participam da REAF foram
e alianças em torno de objetivos em da biodiversidade e manejo sustentável capazes de chegar a um acordo a respeito
comum, como é o caso das políticas dos recursos naturais. de um conjunto de critérios comuns
agrícolas diferenciadas. para identificar uma definição regional
No âmbito multilateral global, de agricultura familiar que englobe
O dinamismo e a vitalidade da agricultura compromissos internacionais recentes a diversidade de cada país membro,
familiar na América Latina, atualmente, destacam a crescente e persistente logrando também a subsequente
estão ligados inextricavelmente, de um relevância da agricultura familiar no incorporação de tais critérios como
lado, ao comprometimento contínuo enfrentamento de desafios globais. parte da normativa oficial do Mercosul.
tanto da parte dos países e instituições Por exemplo, durante a Segunda Esses critérios também se desdobraram
supranacionais da região a erradicar a fome Conferência Internacional sobre Nutrição em marcos legais nacionais e em sistemas
12
“ Apesar de existirem
exemplos de conquistas
importantes alcançados
pela agricultura familiar
mundialmente, a América
Latina vem sendo a região
que exibe os resultados
mais promissores.
Foto: Dênio Simões/Agência Brasília. CEASA, Distrito Federal, Brasil, 2015 <https://goo.gl/sZ7V7x>.
14
A democratização do acesso à terra
para agricultores familiares brasileiros
nos últimos anos
por Vicente P. M de Azevedo Marques1 e Mauro Eduardo del Grossi2
As políticas fundiárias no Brasil têm para o assentamento de milhares de famílias bem como a famílias cujos meios de
envolvido um conjunto significativo de sem-terra. Desde então, mais de 52 milhões vida contribuem para a conservação
ações, com o objetivo de democratizar de hectares – incluindo cerca de 4 mil novos ambiental (Bolsa Verde), assistência técnica
o acesso à terra e o fortalecimento da projetos, que assentaram mais de 798 mil e extensão rural (ATER) e crédito para a
agricultura familiar, especialmente desde famílias – foram incorporados ao processo produção (crédito rural do Pronaf,6 com
o início dos anos 2000. Essas políticas mais amplo de reforma agrária iniciado taxas subsidiadas). Quando registrados no
têm sido implementadas dentro de durante o período de democratização dos Pronaf, os beneficiários da reforma agrária
um cenário de elevada concentração anos de 1980, representando dois terços também têm acesso a seguros de clima e
fundiária e dos recursos naturais, bem deste processo, tanto em números de programas de garantia de preços (Seguro
como de disputas frequentes pela terra famílias assentadas quanto em área. da Agricultura Familiar – SEAF e Programa
e violência rural decorrente destas, entre de Garantia de Preços para a Agricultura
outras características predominantes da De fato, segundo o Instituto de Colonização Familiar – PGPAF), enquanto aqueles
estrutura agrária brasileira. e Reforma Agrária (INCRA), em abril de 2015, assentados em áreas semiáridas têm
havia 969.129 famílias assentadas em 9.263 acesso a um seguro de clima específico
As origens da concentração fundiária projetos de reforma agrária (MDA, 2015), para a região (Garantia Safra).
remetem ao início dos anos de 1500, perfazendo uma área total de 88 milhões
quando o Brasil era governado pela Coroa de hectares – cerca de 10 por cento do Na esfera da comercialização, o
Portuguesa e o processo colonial de território brasileiro. Essas famílias foram governo incentiva a instalação e a
ocupação de terras estava fundamentado distribuídas, principalmente, em regiões da modernização de empreendimentos
na concessão imprecisa de áreas grandes Amazônia Legal (621 mil famílias assentadas coletivos agroindustriais – mediante
e remotas, o que deixou grande parte do em 3,4 mil projetos) e em áreas semiáridas os programas Terra Sol 7 e Terra Forte,8
território brasileiro sem mapeamento, (117 mil famílias, em 2,2 mil projetos). que têm beneficiado 209 mil famílias
demarcação ou documentos de registro. assentadas desde 2004 (MDA, 2015).
Os assentamentos de reforma agrária são Parte da produção dos assentados também
A propriedade privada da terra no país foi de vários tipos e incluem modalidades é destinada a mercados institucionais
reconhecida somente em 1850,3 décadas ambientalmente diferenciadas, tais (por meio do Programa de Aquisição de
após a independência formal do Brasil, como florestas, reservas extrativistas e Alimentos – PAA e o Programa Nacional
quando foi consolidada a distribuição unidades de desenvolvimento sustentável de Alimentação Escolar – PNAE).
da maior parte das terras a um pequeno (INCRA, 2015). Os projetos visam atender
grupo de pessoas, excluindo os povos às demandas de grupos específicos, Além do acesso facilitado às redes
indígenas e comunidades tradicionais especialmente mulheres, cujos nomes têm de ensino público fundamental e
de qualquer direito de propriedade. sido sistematicamente incluídos nos títulos profissionalizante (Pronatec Campo),
de domínio das áreas e na concessão as famílias assentadas também podem
Foi necessário um século e meio para de uso nos projetos de reforma agrária, acessar o Programa Nacional de Educação
que a Constituição Federal de 1988 e independentemente de seu estado civil. na Reforma Agrária (Pronera),9 criado
suas respectivas emendas4 reafirmassem em 1988 com o objetivo de ampliar
inteiramente o direito à propriedade da Além das políticas focadas no acesso os níveis de escolarização formal dos
terra (condicionada ao desempenho de sua à terra, grande esforço foi feito para beneficiários da reforma agrária. O Pronera
função social), consagrando esse princípio articular políticas públicas (DEL GROSSI; oferece cursos de níveis básico, médio
como parte de seus direitos e garantias MARQUES, 2015), visando assegurar que e superior, inclusive para alfabetização,
fundamentais e reconhecendo formalmente os beneficiários da reforma agrária tenham profissionalização técnica e especialização,
os direitos fundiários dos povos indígenas e acesso a outras iniciativas governamentais, utilizando uma abordagem pedagógica
das comunidades quilombolas.5 tais como infraestrutura (moradia, água, adequada aos contextos dos assentados.
energia elétrica e estradas), assistência
Reforma agrária social (principalmente no que diz respeito De forma complementar ao programa de
A partir de 2003, o Governo Federal à documentação civil), previdência social, reforma agrária e às políticas relacionadas
iniciou um esforço para criar e expandir apoio a famílias em situação de extrema descritos, o Programa Nacional de Crédito
políticas públicas para o fortalecimento pobreza, por meio de transferências de Fundiário (PNCF)10 fornece crédito
da agricultura familiar e, ao mesmo tempo, renda (Programa Bolsa Família – PBF), subsidiado para financiar a aquisição
Regularização fundiária
na Amazônia Legal
O Programa Terra Legal tem como objetivo
conceder o direito de uso de terras
federais anteriormente ocupadas ou
informalmente assentadas por agricultores
familiares na região da Amazônia Legal Foto: Eduardo Aigner/MDA. Agricultores junto a motocultivador comprado pelo Programa Mais Alimentos.
(estados do Acre, Amapá, Amazonas, Acre, Brasil, 2010.
Maranhão, Mato Grosso, Rondônia,
Roraima e Tocantins),11 dando celeridade
aos processos de regularização fundiária (moradia, saneamento, eletrificação, Os direitos originários sobre as terras
de ocupações legítimas em áreas rurais comunicação e vias de acesso, além tradicionalmente ocupadas pelos povos
e urbanas. Os montantes cobrados por do acesso à saúde, educação e indígenas são garantidos por meio de um
terras recentemente tituladas e prazos assistência social); inclusão produtiva programa específico, que regularizou mais de
para pagamento variam de acordo com e desenvolvimento local (assistência 100 milhões de hectares de 434 comunidades
o seu tamanho, enquanto a gratuidade é técnica e demais políticas públicas para desde a sua criação (FUNAI, 2015).
assegurada para áreas muito pequenas. a agricultura familiar especificamente
A concessão de títulos está condicionada diferenciadas para comunidades Outras iniciativas de regularização fundiária
ao uso sustentável dos recursos naturais quilombolas); e direitos e cidadania. com foco em povos e comunidades
e à preservação do meio ambiente. De acordo com a Secretaria de Políticas de tradicionais estão em curso, como o Projeto
Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR), 168 Nossa Várzea: Cidadania e Sustentabilidade
Até março de 2015, o Programa Terra áreas quilombolas tiveram seus respectivos na Amazônia Brasileira, que garante às
Legal havia georreferenciado mais de relatórios de identificação e delimitação famílias e às comunidades ribeirinhas o
10 milhões de hectares e emitido cerca de concluídos até 2014, beneficiando reconhecimento da sua posse tradicional,
18 mil títulos em áreas rurais e 292 títulos 23 mil famílias em uma área de além de seus papéis como agentes
em áreas urbanas, abrangendo uma área aproximadamente 1,7 milhão de hectares. promotores da conservação ambiental
total de 1,4 milhão de hectares (MDA, 2015).
16
“ Em 2003, o
Governo Federal começou
um esforço para criar e
expandir políticas públicas
para o fortalecimento da
agricultura familiar e, ao
mesmo tempo, para o
assentamento de milhares
de famílias sem-terra.
Foto: Eduardo Aigner/MDA. Escola Agrotécnica Federal de Crato no Município de Umirim, Sertão Central,
Ceará, Brasil, 2010.
e do desenvolvimento local (MPOG/SPU, produção dos agricultores familiares MINISTÉRIO DO PLANEJAMENTO, ORÇAMENTO
2015). Destaca-se ainda a existência de e povos e comunidades tradicionais. E GESTÃO (MPOG)/SUPERINTENDÊNCIA
DO PATRIMÔNIO DA UNIÃO (SPU). Projeto
programas estaduais para a regularização nossa várzea: sustentabilidade e cidadania
fundiária, adequados às necessidades de Essas ações tiveram resultados concretos, na Amazônia. 2015. Disponível em: <http://
cada unidade da federação. como confirmam as mais de 798 mil famílias patrimoniodetodos.gov.br/programas-e-acoes-
da-spu/amazonia-legal/projeto- nossa-varzea-
assentadas em 52 milhões de hectares de sustentabilidade-e-cidadania- na-amazonia-1>.
Gestão do território terras desde 2003. De fato, o processo de Acesso em: 19 ago. 2015.
Por meio do aumento do uso de sistemas reforma agrária, iniciado nos anos de 1980, SECRETARIA DE POLÍTICAS DE PROMOÇÃO
de georreferenciamento, o Governo não apenas se acelerou e se intensificou DA IGUALDADE RACIAL (SEPPIR). Sistema de
Federal tem procurado melhorar a após 2003, como também se tornou mais Monitoramento das Políticas de Promoção da
Igualdade Racial. 2015. Disponível em:
cobertura, a confiabilidade e a integração transparente e inclusivo, com maior voz e <http://monitoramento.seppir.gov.br>.
de cadastros de imóveis, considerados participação dos movimentos sociais do Acesso em: 19 ago. 2015.
fundamentais para a governança e para os campo em comparação com administrações
processos de redistribuição e regularização anteriores – sem dúvida uma das razões
fundiária nas áreas rurais. centrais para as importantes conquistas 1. Instituto Nacional de Colonização
desse mais recente capítulo do processo e Reforma Agrária (Incra).
Apesar de tais mecanismos e dos avanços de reforma agrária no Brasil. 2. Universidade de Brasília, Brasil (UnB).
3. Lei nº 601, de 18 de setembro de 1850.
alcançados nos últimos anos, o Brasil Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/
ainda permanece com extensas áreas DEL GROSSI, Mauro Eduardo; MARQUES, ccivil_03/LEIS/L0601-1850.htm>.
de terras não regularizadas, bem como Vicente P. M. de Azevedo. An in-depth 4. Constituição Federal do Brasil, 1988. Disponível
review of the evolution of integrated public em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/
desafios significativos para a integração policies to strengthen family farms in Brazil. Constituicao/ConstituicaoCompilado.htm>.
de registros de terra frequentemente ESA Working Paper, n. 15-01. Rome: Food and 5. Descendentes de afro-brasileiros que
conflitantes e duplicados. Agriculture Organization of the United Nations, resistiram e/ou escaparam de seus senhores
2015. Disponível em: <http://www.fao.org/ de escravos durante o período de escravidão
publications/card/ en/c/081e4416-dcdf-4981- e formaram quilombos, assentamentos rurais
Considerações finais a488-47f6a659c81b>. Acesso em: 5 nov. 2015. independentes, muitos dos quais ainda existem.
A partir de 2003, o Governo Federal 6. O Programa Nacional para o Fortalecimento da
FUNDAÇÃO NACIONAL DO ÍNDIO (FUNAI). Agricultura Familiar (Pronaf) é um programa de
brasileiro tem feito grandes esforços Modalidades de Terras Indígenas. 2015. Disponível crédito rural exclusivo para agricultores familiares.
para garantir a realização de direitos em: <http://www.funai.gov.br/index.php/indios- Na safra 2013/2014, o Programa financiou a
no-brasil/terras-indigenas>. Acesso em: ago. 2015. produção de 1,9 milhão de agricultores.
constitucionais e uma vida digna
7. Ver: <http://www.incra.gov.br/
aos habitantes rurais. Na busca pela INSTITUTO DE COLONIZAÇÃO E REFORMA programa_terra_sol>.
democratização do acesso à terra, assim AGRÁRIA (INCRA). Criação de assentamentos. 8. Ver: <http://www.incra.gov.br/
como pela redução da violência no campo, 2015. Disponível em: <http://www.incra.gov.br/ terraforteprograma>.
assentamentoscriacao>. Acesso em: 19 ago. 2015. 9. Ver: <http://www.incra.gov.br/
as políticas fundiárias têm sido ampliadas educacao_pronera>.
de modo significativo e melhor articuladas MINISTÉRIO DO DESENVOLVIMENTO AGRÁRIO 10. Ver <http://www.mda.gov.br/sistemda/
com outras políticas públicas durante a (MDA). MDA and INCRA Information. 2015. secretaria/sra-crefun/sobre-o-programa>.
Disponível em: <http://www.mda.gov.br/sitemda/ 11. Ver Lei nº 11.952 de 25 de junho de 2009.
última década, visando criar condições pagina/ acompanhe-a%C3%A7%C3%B5es-do- Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/
necessárias para a garantia de direitos e a mda-e-incra>. Acesso em: 19 ago. 2015. ccivil_03/_ato2007-2010/2009/lei/l11952.htm>.
No Uruguai, o Estado tem ganhado Facilitar o acesso da população rural à A participação é dinâmica, significando
proeminência no desenho e na formação, às tecnologias adequadas e que algumas organizações estão
implementação de políticas públicas aos avanços em pesquisa e inovação. permanentemente envolvidas, enquanto
desde 2005. Simultaneamente, os Promover a coordenação outras, apenas de forma intermitente,
governos deste período têm fortemente interinstitucional entre atores uma vez que os Comitês são espaços
promovido a descentralização política públicos e privados para se institucionais abertos e ainda em
e administrativa em conjunto com a alcançar o desenvolvimento rural. construção. Os MDR são categorizados
participação cidadã como motor de como “fixos” – cujas reuniões sempre
inclusão política, social e econômica. Ademais, a Lei nº 18.126 – para a ocorrem no mesmo lugar; ou “itinerantes” –
Descentralização e Coordenação de quando a local das reuniões muda
Neste âmbito, o Ministério de Pecuária, Políticas Agropecuárias com Base periodicamente no sentido de facilitar a
Agricultura e Pesca (Ministerio de Departamental – promulgada em 12 acessibilidade para alguns participantes.
Ganaderia, Agricultura y Pesca – MGAP) maio de 2007,4 estabeleceu a criação dos
tem desenvolvido várias inovações Conselhos Agropecuários Departamentais As organizações sociais participantes
institucionais que vêm contribuindo e das MDR, bem como a integração e as são de natureza diversa: sindicatos,
para o reconhecimento e a validação funções desses instrumentos.5 grupos de produtores, cooperativas,
da agricultura familiar, fornecendo sociedades de fomento rural, ligas
ferramentas de intervenção adequadas As MDR foram estabelecidas como um trabalhistas, organizações comunitárias
para a inclusão efetiva desse setor. Entre espaço de participação social e diálogo e sindicatos de trabalhadores rurais.
essas inovações, encontram-se a criação público-privado, reunindo representantes A dinâmica de cada sessão inclui
da Diretoria-Geral para o Desenvolvimento de organizações de produtores a retomada de discussões sobre
Rural (DGDR)3 e a institucionalização dos (especialmente aquelas compostas, na temas pendentes, o acolhimento de
Comitês ou ‘Mesas’ de Desenvolvimento maior parte, por agricultores familiares), propostas das organizações sociais,
Rural (Mesas de Desarollo Rural – MDR). trabalhadores assalariados, mulheres e relatos sobre ferramentas e políticas
jovens, representantes do MGAP, oficiais públicas em implementação e o
A DGDR foi criada com o objetivo de alcançar de extensão rural pública (as chamadas registro das discussões para a
o desenvolvimento rural sob um novo Equipes Territoriais de Desenvolvimento elaboração de minutas das reuniões.
tipo de modelo produtivo, fundamentado Rural – Equipos Territoriales de Desarollo Os participantes apresentam suas
na sustentabilidade econômica, social e Rural – ETDR)6 e outros atores rurais (e.g. reivindicações e ideias, as ETDR
ambiental, e contando com a participação professores rurais). Outras instituições relatam os planos do MGAP, e os
ativa dos atores das áreas rurais. Também públicas (e.g. eletrificação rural, saúde, delegados de outras instituições
é responsável pelo desenho de políticas comunicações, infraestrutura ou públicas escutam as demandas, as
diferenciadas para a agricultura familiar. educação) também estão frequentemente registram e articulam ações para
envolvidas, de acordo com as necessidades encontrar soluções apropriadas.
Seus objetivos estratégicos são: e os interesses identificados pelas
Promover atividades para apoiar a organizações participantes. As ETDR estão radicadas nos territórios
integração, a associação e a organização em que conduzem suas respectivas
da população produtiva rural. Nas MDR, todos os atores participam atividades. Apresentam diferentes graus
Fortalecer as organizações de enquanto membros de suas organizações de funcionamento sistêmico, que, por
produtores e trabalhadores rurais. e instituições, e não a título individual. sua vez, dependem grandemente do tipo
As reuniões ocorrem mensalmente e são de liderança exercido dentro de cada
Promover o desenvolvimento rural
convocadas por funcionários das ETDR, equipe. De fato, o Diretor Departamental
nas suas múltiplas dimensões.
geralmente por correio eletrônico ou de cada ETDR costuma ter papel decisivo,
Organizar a produção familiar e telefone celular. não apenas influenciando a dinâmica de
promover sua integração nas cadeias trabalho da equipe, mas potencialmente
e complexos agroindustriais. De acordo com o MGAP,7 há atualmente deixando uma marca mais duradoura em
Facilitar o acesso ao financiamento e 40 MDRs em funcionamento no país, ao menos duas dimensões: i) promovendo
aos recursos financeiros mediante a com a participação de entre 370 e (ou não) a aquisição de habilidades e
criação de ferramentas adequadas. 480 organizações da sociedade civil. conhecimento pela equipe territorial
18
“ As organizações
sociais participantes são de
natureza diversa: sindicatos,
grupos de produtores,
cooperativas, sociedades
de fomento rural, ligas
trabalhistas, organizações
comunitárias e sindicatos
de trabalhadores rurais.
Foto: Eduardo Arraes. Caixas para escoamento de produção agrícola em Canelones, Uguruai, 2013
<https://goo.gl/cefU8>.
Agricultura Familiar no contexto da pesca marinha no Sul da Ásia, abrangendo registrou uma população total de 3.999
A agricultura familiar pode ser definida, Bangladesh, Índia, as Maldivas e o Sri Lanka. milhões de pescadores, dos quais 91
de maneira geral, como a organização A pesca marinha é uma importante fonte por cento são oriundos de famílias
de atividades do setor primário, geridas de sustento nessa região, que também tradicionais de pescadores (ibid.).
e operacionalizadas por famílias que, possui uma das maiores concentrações de No Sri Lanka, aproximadamente 190.780
predominantemente contam com mão pescadores em pequena escala do mundo, famílias estão engajadas na pesca marinha,
de obra familiar, incluindo ambos os com cerca de 1,73 milhão de pessoas representando uma população de 825.120
gêneros. No setor de pesca e captura ativamente engajadas na pesca. pescadores em 2014 (MINISTRY AND
marinha (doravante “pesca marinha”) DEPARTMENT OF FISHERIES AND AQUATIC
no Sul da Ásia, as atividades de pesca O número de pescadores ativos2 na região RESOURCES DEVELOPMENT, 2015).
artesanal são efetuadas por uma unidade cresceu cerca de 1 por cento por ano entre O número total de famílias engajadas
familiar, que utiliza equipamento sem 2003 e 2014, embora essa média não na pesca marinha em Bangladesh e nas
motor e/ou pequenas embarcações. revele tendências contrastantes entre cada Maldivas não está disponível.
país da região. De fato, durante o período,
Entretanto, avanços tecnológicos na o número de pescadores familiares ativos A pesca marinha na região é composta de
pesca marinha e mercados em expansão cresceu cerca de 4,4 por cento por ano no três atividades básicas: preparação, pesca
têm resultado no aumento do uso de Sri Lanka e 2,3 por cento por ano na Índia e comercialização. Famílias engajadas
embarcações maiores e mecanizadas, continental.3 Em Bangladesh, todavia, o em atividades de pesca agem como
gerando tensões entre dois setores – aumento no número de pescadores ativos uma unidade produtiva, com os homens
mecanizado e artesanal – no acesso foi mínimo, de 510 mil para 516 mil entre envolvidos no próprio processo da pesca e
aos recursos pesqueiros. 2007 e 2012 (ver Tabela 1). as mulheres desempenhando importante
papel no reparo das redes, ajudando os
A importância de sustentar a pesca No caso das Maldivas, o número de homens com o preparo para a pesca
artesanal, hoje reconhecida como um pescadores ativos caiu gradualmente e, mais tarde, na comercialização.
grande desafio, tem recebido destaque (em 3,6 por cento por ano), em razão de
nos diálogos globais sobre pesca. mudanças estruturais na economia (e.g. a Entretanto, com o advento de atividades
Sua importância se coloca não apenas do expansão do setor de serviços) e mudanças pesqueiras intensivas em capital, a pesca
ponto de vista da sustentação dos meios de demográficas (melhor acesso à educação, está sendo reformada seguindo modelos
vida, mas também porque diversos estudos levando a geração mais jovem a buscar de empreendimentos comerciais,
apontam que os impactos ambientais meios de vida alternativos) (BOBP-IGO, 2013). com a criação e atribuição de papéis
negativos da pesca (e.g. rejeitos) tendem específicos, tais como financiadores,
a ser insignificantes na pesca artesanal No caso da população mais ampla de provedores de serviços (barcos e
quando comparados à pesca mecanizada. pescadores, na Índia continental, cerca equipamentos), operadores e membros
de 864.550 famílias estão envolvidas de tripulação de embarcações, leiloeiros,
Pesca artesanal no Sul da Ásia com a pesca marinha (CMFRI, 2010). agentes de marketing e unidades de
Esse artigo concentra-se na pesca artesanal O Censo Indiano de 2010 também processamento. Essas mudanças
Fonte: Elaboração dos autores com base em Matsya Sampad Unnyan Aviyan 2008/2014; National Marine Fisheries Censuses of India 2005/2010; Maldives Basic
Fisheries Statistics 2003/2013; e Sri Lanka Department of Fisheries and Aquatic Resources.
20
“
vêm cada vez mais marginalizando O setor sofreu rápidas mudanças nas
as mulheres pescadoras. operações de colheita e pós-colheita.
Infraestrutura nova, melhores instalações A importância
Apesar do fato de grandes números de de comunicação e a abertura de mercados de sustentar a pesca
mulheres ainda estarem envolvidas na maiores, tanto nacionais quanto artesanal tem recebido
venda local, no processamento primário internacionais, levaram à consolidação destaque nos diálogos
e na embalagem, seu papel diminuído dos centros de produção. Assim, os portos globais sobre pesca; não
no sistema de produção pesqueiro é pesqueiros são hoje responsáveis por apenas do ponto de vista
preocupante, com implicações para dois terços da produção total de peixe da sustentação dos meios
o seu papel na tomada de decisões da região e, consequentemente controlam de vida, mas também
domésticas, na segurança alimentar grande parte do mercado e dos sistemas porque diversos estudos
e nas percepções sociais acerca das de distribuição do setor.5 apontam que os impactos
mulheres. Esse aspecto exige atenção ambientais negativos
redobrada por parte dos decisores Tradicionalmente, na pesca artesanal, as tendem a ser insignificantes
políticos e deve ser tratado com famílias constituíam unidades produtivas quando comparados à
medidas de política pública adequadas. completas, com posse plena das pesca mecanizada.
embarcações e equipamentos. Entretanto,
O desenvolvimento da pesca marinha com a crescente capitalização, a posse
e questões relacionadas na região de embarcações está lentamente saindo de
Até os anos de 1960, a pesca artesanal era seu controle. Por exemplo, dados sobre de profundidade (CHOWDURY, 2009).
predominante na região. Naquela época, a posse de embarcações pesqueiras na Nas Maldivas, fornece-se proteção aos
uma série de fatores havia contribuído Índia (CMFRI, 2010) revelam que, no setor recifes de coral (REEFBASE, 2015).
para essa situação. Primeiro, águas artesanal, as famílias pesqueiras possuem
costeiras ricas em recursos pesqueiros cerca de 80 por cento das embarcações; Além do apoio legal, os governos
garantiam operações lucrativas de pesca porém, no caso do setor mecanizado, também fornecem benefícios monetários.
perto das margens. Segundo, atividades a posse de embarcações por famílias Entretanto, tais benefícios não são
pesqueiras realizadas ao longo dos litorais pesqueiras varia entre 30 e 80 por cento, particularmente destinados a promover
em múltiplos locais permitiam que os dependendo do tipo de embarcação. ou a sustentar as atividades pesqueiras
pescadores trabalhassem diretamente familiares, e sim para melhorar a renda
das suas próprias vilas. Terceiro, a falta O crescente potencial comercial e o bem-estar dos pescadores. Na Índia,
de conectividade nas regiões costeiras de produtos da pesca na região o governo fornece apoio para a melhoria
contribuía para a autossuficiência também resultou no surgimento de de veículos para a pesca (inclusive para
dos povoados locais, com uma base companhias pesqueiras, especialmente a compra de motores), de condições
consumidora pequena, porém estável. nas Maldivas e no Sri Lanka, fornecendo habitacionais, incentivos para a educação
Quarto, a falta de acesso à tecnologia soluções completas, desde a colheita infantil, apoio financeiro durante
e às finanças garantia a homogeneização até a comercialização. proibições de pesca e cobertura por
da eficiência da captura. seguro. (DAHDF, 2015).
Políticas governamentais
No entanto, esses fatores certamente As políticas governamentais dos países Em Bangladesh, fornece-se apoio nos
também atrasaram a transformação de da região a respeito da pesca artesanal períodos em que a pesca é proibida, como
unidades familiares de subsistência em podem ser consideradas a partir de dois durante o mês de “Ashwin” do calendário
empreendimentos familiares por meio ângulos: primeiro, o apoio fornecido bengali (setembro-outubro), quando a
da formação de capital. pelas políticas ao setor; e, segundo, pesca da hilsa (Tenualosa ilisha), o principal
os objetivos das políticas. peixe de Bangladesh, é proibida pela Lei de
A introdução de tecnologias pesqueiras Proteção e Conservação de Peixes de 1950.7
avançadas (e.g. barcos e equipamentos O setor pesqueiro recebe apoio dos governos
motorizados), iniciada nos anos 1950 do Sul da Ásia por meio de vários programas. Entretanto, traçar uma rota para
em caráter experimental, cresceu e se Contudo, a proteção legal fornecida à o setor artesanal no processo de
fortaleceu nas duas décadas seguintes, pescaria artesanal é de especial importância. desenvolvimento da pesca ainda está
com a identificação do setor pesqueiro Na Índia, atividades pesqueiras até 12 milhas por ser feito. Os governos parecem
pelos governos da região como uma náuticas da costa entram na jurisdição das contentar-se com a transferência de
alavanca para garantir a segurança províncias. As províncias costeiras, sob a sua tecnologia e o desenvolvimento de
alimentar, gerar empregos, assim Lei de Regulação da Pesca Marinha (MFRA),6 infraestrutura de apoio. Ainda não houve
como divisas (por meio de exportações). demarcaram 3 a 5 milhas náuticas a partir espaço suficiente dedicado à garantia
Agências internacionais e multilaterais da costa como reservadas para a pesca do maior acesso a essas tecnologias,
também tiveram papel importante durante artesanal. Nessa área, a pesca por meio de ao equilíbrio entre as tecnologias e a
essa fase, mediante financiamento e embarcações mecanizadas é proibida. Em sustentabilidade da pesca, e à gestão
transferência de tecnologias (DEVRAJ; Bangladesh, arrastões são proibidos de dos impactos distributivos gerados pelos
VIVEKANANDAN, 1999). pescar em águas com menos de 40 metros avanços tecnológicos nas abordagens
22
Pequenos agricultores e agricultura
familiar na região dos Himalaias da Índia:
considerações sobre políticas
por R. K. Maikhuri,1 R. C. Sundriyal,1 G. C. S. Negi1 e P. P. Dhyani1
A agricultura é a principal atividade de A agricultura irrigada é caracterizada pela de florestas e pastagens; infestações de
sustento para mais de 70 por cento dos alta diversidade de lavouras, com mais ervas daninhas; perda de diversidade nas
habitantes da região dos Himalaias. de 40 variedades de cereais, painços, lavouras; erosão do solo; desequilíbrios
Nessa região, sistemas agrícolas pseudocereais, legumes, sementes hidrológicos; e desintegração social
tradicionais são ilustrativos do conceito oleaginosas, tubérculos, bulbos e especiarias (MAIKHURI et al., 2015). Essas mudanças
mais geral de agricultura familiar, segundo que são plantadas em estabelecimentos têm trazido à tona interrogações sobre a
o qual as famílias são ao mesmo tempo em função de gradiente altitudinal sustentabilidade dos pequenos produtores
as principais gestoras e trabalhadoras de diversidade. Algumas das culturas que vivem nas montanhas, limitando
nas próprias terras e, consequentemente, tradicionais são arroz, trigo, milho, cevada, as opções disponíveis às comunidades
são responsáveis pelas decisões painço de dedo, trigo mourisco, cebola, e levando os agricultores – sobretudo
relacionadas aos estabelecimentos, às batata, ervilha, abóbora, pepino, mostarda, os homens das famílias – a migrar para
lavouras e às suas respectivas gestões soja, lentilhas, feijão vermelho, feijão-de- centros urbanos em busca de empregos
(SUNDRIYAL et al., 2014). Na região do -corda, feijão-arroz, amaranto e quiabo. não-agrícolas. Para romper esse círculo
Himalaia Ocidental da Índia, os sistemas vicioso, são necessárias instituições
agrícolas mais predominantes podem Essa diversidade é mantida em fazendas robustas, políticas justas e incentivos
ser caracterizados, de forma geral como com a ajuda de várias combinações adequados que melhorem a qualidade
pecuária, cultivo misto pecuário-agrícola e rotações de cultivo. Ademais, várias dos meios de vida, assim como tecnologias
e agrícola-pecuário, refletindo práticas espécies de árvores multifuncionais e inovações adequadas fundamentadas
agrícolas nômades, seminômades e que produzem forragem, lenha, fibra, em pesquisas, no sentido de recuperar os
estabelecidas, respectivamente. Condições frutos, etc. são mantidas nas áreas não sistemas agrícolas tradicionais.
ambientais, biológicas, socioculturais e agricultáveis dos estabelecimentos.
econômicas diversas na região levaram ao Principais desafios nas políticas e
desenvolvimento de vários sistemas de O sistema agrícola tradicional, portanto, lacunas no sistema agrícola dos Himalaias
cultivo, compondo diversas lavouras contribui significativamente para a Apesar do grande número de planos e
e padrões de colheita. segurança alimentar e nutricional, para políticas, o desempenho do setor agrícola
os meios de vida, a segurança social e o de montanha continua diminuindo.
Uttarakhand é um dos maiores estados bem-estar das comunidades de agricultores A ênfase desproporcional em planícies
indianos da região Central do Himalaia, familiares (SUNDRIYAL et al., 2014). com terras cultiváveis mais “viáveis”,
com uma população de cerca de 10.1 assim como a falta de pesquisa, de
milhões de pessoas, de acordo com o Entretanto, o papel dos pequenos desenvolvimento tecnológico e de
censo de 2011 (CENSUS ORGANIZATION estabelecimentos em mitigar a fome planejamento nas políticas acerca
OF INDIA, 2010). Apenas cerca de 10 e a pobreza, infelizmente não recebe da agricultura de montanha, têm
por cento da área geográfica total é o reconhecimento que merece. marginalizado ainda mais os pequenos
composta por planícies, nas quais a Recentemente, a agricultura de montanha agricultores. Por exemplo, a promoção de
agricultura moderna é possível. vem sofrendo transformações pela variedades de lavouras de alto rendimento
Os sistemas agrícolas tradicionais possuem influência das forças de mercado, da requer irrigação e fertilizantes, os quais
laços estreitos e interdependências com variabilidade climática, e de mudanças nos são de aplicação extremamente limitada
a criação de animais e ecossistemas estilos de vida e nos hábitos alimentares. na agricultura de montanha. Além disso,
florestais (MAIKHURI et al., 2015). As instituições locais tradicionais também vínculos tecnológicos e com mercados
A maioria das terras são pequenas e estão se deteriorando, o que acaba permanecem extremamente frágeis
fragmentadas, com tamanho médio de afetando negativamente a segurança e insuficientes para a modernização
0,68 hectares, e parcelas ínfimas de terra econômica e ecológica de tais agricultores, da agricultura. O foco tem sido em
distribuídas em terreno acidentado. bem como a agrobiodiversidade da região. um número limitado de lavouras que
Os socalcos – que perfazem 85 por cento dependem de um nível elevado de
da área agrícola total de Uttarakhand Algumas das mudanças enfrentadas insumos externos.
– são, na maior parte, cultivados com pelos pequenos agricultores incluem: os
água de chuva, enquanto os vales – os desafios da diminuição na produtividade As principais políticas apoiam a agricultura
15 por cento restantes – são irrigados das lavouras; a expansão da agricultura de grande escala; não são ecologicamente
(SWAMINATHAN, 2010). em terras marginais; sobre-exploração adequadas nem economicamente viáveis
Foto: R.C. Sundriyal. Paisagem mostrando assentamentos e pequenas propriedades na região do Himalaia, 2007.
24
“
Subsídios à importação de alimentos Intervenções políticas prioritárias para a
e as políticas de crédito: o governo agricultura de montanha sustentável
desenvolveu um mecanismo para importar Promover o cultivo orgânico e a agregação Preocupações
alimentos e subsidiá-lo a preços baixos de valor nas lavouras tradicionais referentes à enorme
por meio de um sistema público de É amplamente reconhecido que a agrobiodiversidade da
distribuição. Isto resultou não apenas em agricultura de montanha tende a ser, região, historicamente
mudanças nos hábitos alimentares das por necessidade, orgânica (Maikhuri et al., mantida por agricultores
populações de montanha, mas também 1996; Wymann von Dach et al., 2013). familiares, precisam ser
as levou essas a abandonar modos de É adequada para mitigar mudanças abordadas por políticas
agricultura e variedades tradicionais de climáticas, pois produz mínimas emissões ligadas ao uso da terra,
maior diversidade e valor nutricional. de gás de efeito estufa e possui uma que priorizem as ubíquas
capacidade considerável para sequestrar áreas montanhosas
Políticas de conservação florestal e da vida carbono. Tais características podem resultar em relação às
selvagem: Recentemente, várias partes em aumentos na renda para agricultores escarças planícies.
da região dos Himalaias vêm enfrentando familiares, dado que a demanda do
uma recrudescência de animais selvagens mercado para alimentos orgânicos vem
(tais como macacos, javalis selvagens, crescendo consideravelmente – tanto
elefantes, porcos-espinhos, etc.), que nacional quanto internacionalmente.
podem gravemente prejudicar as lavouras.
Governos locais também estão
A Lei de Proteção da Vida Selvagem promovendo os alimentos orgânicos
(1972), a Lei de Conservação Florestal por meio de mecanismos de apoio aos
(1986) e as crenças locais impedem preços, tanto pela atribuição de preços
que os fazendeiros da região matem os maiores a produtos orgânicos vendidos
animais que diretamente prejudicam seus no mercado, quanto pela permissão aos
cultivos. Apesar de existirem políticas de produtores de vender produtos orgânicos
compensação para danos provocados aos (a preços maiores que os demais), para
rebanhos e à vida humana por leopardos autoridades do governo que compram
e elefantes, há compensação mínima alimentos a serem destinados ao sistema
para danos provocados a lavouras por de distribuição público. Para dar maior
macacos, javalis selvagens, nilgós e outros impulso à agricultura orgânica assim
animais (WATERSHED MANAGEMENT como à segurança alimentar local, há
DIRECTORATE, 2010). necessidade de se expandir a cesta básica
para incluir alimentos orgânicos cultivados
Além disso, o procedimento para se obter localmente, e ricos do ponto de vista
compensação é muito difícil, o que leva os nutricional (MAIKHURI et al., 2001).
agricultores a reduzirem a intensidade de
cultivo ou mesmo a abandonarem as terras Implementação adequada
cultivadas. Portanto, seguros para perda de sistemas de apoio e extensão
de colheita e pacotes de compensação Recentemente, vários serviços de apoio à
adequados no caso de lavouras prejudicadas agricultura foram implantados na região (e.g.
por animais selvagens devem ser garantidos Horticulture Mission, Livelihood Programme,
pelas políticas agrícolas na região. Os seguros Agriculture Technology Management
devem também abranger danos causados Agency – ATMA e Uttarakhand Decentralized
por condições climáticas adversas como Watershed Development Project – GRAMYA).
chuvas de granizo, assim como por pragas, Entretanto, poucos conseguiram alcançar
dentre outros. seus públicos-alvo. Serviços de extensão e
apoio permanecem fracos e inadequados
Subsídios a insumos agrícolas: o custo para os sistemas agrícolas tradicionais.
de insumos como fertilizantes químicos, Um forte compromisso é necessário para
água, pesticidas e sementes foi reduzido, enfrentar as complexas questões sociais,
em grande parte, para promover lavouras econômicas, ambientais e políticas que
exóticas e de alto desempenho – afetam os pequenos produtores e seus
especialmente em terras irrigadas – sistemas agrícolas na região. O Box 1 delineia
às custas da agricultura tradicional as ações que consideramos prioritárias
de montanha, que conta com uma no planejamento de políticas para o
enorme variedade de lavouras locais desenvolvimento sustentável da agricultura
que também poderiam ter se beneficiado de montanha na Região Central dos
com tais subsídios. Himalaias na Índia.
26
Como poderiam cadeias curtas de
abastecimento alimentar alavancar o
desenvolvimento de uma economia local
com base na agricultura familiar camponesa?
por Abdourahmane Ndiaye1
As agriculturas familiares camponesas Sakata, etc.) e os industriais, e a montante: organizada, que é fortemente
são sistemas de organização da produção os oligopólios da distribuição em larga correlacionada ao número de
agrícola, desenvolvidos a partir de um escala. Com o desaparecimento do intermediários entre o produtor e o
conjunto de estabelecimentos familiares autoconsumo, os agricultores tornaram-se consumidor final. Reduções no número
camponeses individuais, sendo cada um empresários que dedicam a maior parte de intermediários, de qualquer jeito que
destes uma unidade de produção agrícola ou toda a sua produção ao mercado. possam ocorrer, almejam fornecer uma
familiar visando suprir as necessidades de Nesse contexto, identifica-se a globalização renda justa aos produtores, bem como
seus membros. Estes não são, portanto, como um dos principais fatores que dar maior transparência ao processo
necessariamente gerenciados de acordo colocam os sistemas das agriculturas de distribuição e rastreabilidade dos
apenas com considerações de mercado. familiares camponesas em risco e em perigo produtos destinados ao consumo.
De fato, por não considerarem o lucro como (AMIN, 2012). Como, portanto, poderia se
um fim, podem ser caracterizados como reverter este processo e “desglobalizar”? Proximidade, transparência, rastreabilidade
pertencentes ao âmbito da economia social e equidade são elementos necessários
e solidária, tal como organizações sem fins Uma solução possível poderia ser o para que as CCAA contribuam com a
lucrativos. Mais que o simples retorno do apoio às chamadas ‘Cadeias Curtas de manutenção de uma “economia do
investimento, esse tipo de organização Abastecimento Alimentar’ (CCAA), servindo conhecimento” local, agregando valor
busca a reprodução da unidade familiar. como alavanca para a “relocalização” de econômico e gerando processos de
atividades econômicas e um estímulo para treinamento e aprendizado. Padrões
Tal como estudado por autores como um novo modelo de desenvolvimento. de consumo mais localizados podem
Marcel Mauss ou Karl Polanyi, as relações As CCAA podem ser consideradas, com contribuir também para a redução de
de mercado são reincorporadas nas efeito, um “caminho para a libertação” ou emissões de gases de efeito estufa, tendo
relações sociais (POLANYI, 1944). “para a independência”. Com suas formas em vista que os alimentos percorrem
O mercado, portanto, não desempenha atuais rastreáveis aos teikei2 japoneses, distâncias menores entre produtores
o papel principal de socialização que que surgiram no início dos anos de e consumidores que em cadeias de
a teoria econômica liberal lhe atribui. 1960, as CCAA podem ser definidas abastecimento tradicionais. Ademais,
Os empreendimentos familiares camponeses como um sistema de comercialização também facilitam a rastreabilidade dos
são analisados aqui enquanto organizações de produtos agrícolas que opera por alimentos, as interações presenciais entre
sistêmicas que derivam sua legitimidade meio de vendas diretas dos produtores produtores e consumidores, e a construção
da unidade familiar e moldam suas aos consumidores, ou por vendas de laços de solidariedade entre áreas de
atividades em um ambiente axiológico, indiretas (com poucos intermediários). produção (rurais ou periurbanas) e zonas
institucional, sociopolítico e econômico Uma definição mais estrita as entende de consumo (urbanas).
que é, ao mesmo tempo, um recurso, como iniciativas que mobilizam não mais
uma oportunidade e uma ameaça. que um intermediário entre produtor e Além disso, à luz dos escândalos
consumidor (CHAFFOTTE; CHIFFOLEAU, frequentes de contaminação alimentar
Poderia a agricultura familiar camponesa 2007), para reforçar o conceito de “vendas que atormentam as cadeias agroindustriais
tornar-se a alavanca para um modelo de diretas” e, portanto, melhorar as margens de grande escala (como a encefalopatia
desenvolvimento alternativo, centralizado do produtor na venda de produtos. As espongiforme bovina – mais comumente
nos camponeses e impulsionado pelo CCAA são também definidas pela redução conhecida como “síndrome da vaca
objetivo de responder a necessidades da distância geográfica entre produtores e louca” – ou grãos de soja contaminados),
locais mediante empregos “não consumidores ou, ainda mais estritamente, a promoção das CCAA pode levar a
deslocalizáveis”? Responder a esse desafio pela necessidade de interações presenciais melhoras na sanidade agropecuária e,
é urgente, considerando que a agricultura entre os dois, concebidas como passo potencialmente, à valorização renovada
familiar camponesa é “refém” de uma essencial para um maior enraizamento do dos alimentos locais e sazonais.
cadeia de valor capitalista e globalizada, sistema alimentar local (HINRICHS, 2000).
e se encontra presa entre a jusante: os As CCAA vêm adquirindo, cada vez mais,
produtores de sementes do agronegócio As CCAA são, de qualquer forma, diversas formas e nomenclaturas – agricultura
(Monsanto, Dupont, Syngenta, Bayer, fundamentadas na proximidade de proximidade; agricultura camponesa;
28
Na medida em que forem capazes de das CCAA não apenas refletem os
contribuir com esses esforços, as CCAA custos de produção, como também são
podem de fato representar uma via determinados pelos produtores, levando-se
importante para o desenvolvimento em consideração os preços de outros
(MUNDLER; JAUNEAU; GUERMONPREZ, canais de mercado e distribuição.
PLUVINAGE, 2009).
Essa estratégia almeja abordar um
As cadeias curtas também representam a desafio duplo: primeiro, a necessidade de
reativação de modos antigos de distribuição manter os clientes desses mercados locais
que foram fortemente minados pela neutralizando competidores potenciais por
modernização das economias e pelo advento meio de preços que sejam suficientemente
da distribuição em massa.4 Utilizam uma competitivos; e segundo, a necessidade
série de instrumentos inovadores, como para as CCAA serem coerentes, fornecendo
sistemas de entrega a consumidores urbanos preços suficientemente uniformes em
que queiram apoiar a agricultura local. canais distintos de mercado e distribuição
Portanto, além da redução ou da ausência de (DUBUISSON-QUELLIER, LE VELLY 2008).5
intermediários, é também a natureza coletiva
ou individual das diferentes iniciativas A antítese da “mão invisível” de Adam
para o avanço das CCAA que permite o Smith, tal sistema de regulamentação de
estabelecimento de uma tipologia de suas mercado é, portanto, organizado em um
diversas formas (CHAFFOTTE, 2006). dado território por um grupo de atores,
com o objetivo de negociar novos acordos
Logo, as CCAA possibilitam aos sociais que valorizem o recurso territorial,
produtores que se libertem de relações de sendo este último a chave para este tipo
mercado assimétricas com intermediários de rearranjo distributivo.
(atacadistas, indústrias de processamento,
etc.), tendo um controle maior sobre os É esse fato que justifica uma concepção
próprios preços, além de que “relocalizem” de território que vai além de considerações
a agricultura, visto que a proximidade econômicas tradicionais, ligadas à
geográfica entre produção e consumo é proximidade geográfica (tais como
uma de suas características fundamentais. economias de escala, custos de transação
No entanto, as CCAA parecem se ou economias de aglomeração),
apresentar mais como hibridizações introduzindo uma dimensão relacional
com sistemas predominantes de mercado (COURLET, 2008; REMY; VOYÉ, 1992).
e distribuição, ao invés de alternativas O território pode assim ser concebido
completamente autônomas (ILBERY; como um sistema de atores interligados
MAYE, 2006; AMEMIYA, BÉNÉZECH; por relações sociais que evoluem em um
RENAULT, 2008). De fato, os preços dado espaço-tempo que, por sua vez,
“ As CCAA
podem ser identificadas,
portanto, como um pilar
de um novo modelo de
desenvolvimento, em forte
contraste com paradigmas
intensivos altamente
especializados
e intermediados.
Foto: FAO. Agricultor participante do Programa para o Desenvolvimento da Horticultura Urbana e Peri-Urbana,
República Democrática do Congo, 2008.
30
“ Enfim, a criação
e o desenvolvimento
futuro de CCAA
são de importância
significativa para o
fomento de economias
locais mais autônomas
e autossuficientes
fundamentadas na
agricultura familiar
camponesa em
países do mundo
em desenvolvimento,
particularmente no
continente africano.
Foto: Amir Jina. Comunidade envolvida com a conservação ambiental em Kimende, Nairóbi, 2009 <https://goo.gl/cefU8>.
COURLET, C. L’économie territorial. Grenoble: VAN DER PLOEG, J.-D.; RENTING, H.; BRUNORI, G.;
Presses Universitaires de Grenoble, 2008. KNICKEL, K.; MANNION, J.; MARSDEN, T.; ROEST,
K.; SEVILLA-GUZMÁN, E.; VENTURA, F. Rural
DEVERRE, C.; LAMINE, C. Les systèmes development: From practices and policies towards
agroalimentaires alternatifs: Une revue de theory. Sociologia ruralis, v. 40, n. 4, p. 391-408, 2000.
travaux anglophones en sciences sociales.
Economie rurale, n. 317, 2010. p. 57-73.
DUBUISSON-QUELLIER, S.; LE VELLY, R. Les
circuits courts entre alternative et hybridation.
In: Les circuits courts alimentaires. MARECHAL,
G. (Ed.). Bien manger dans les territoires. Dijon: 1. Universidade de Bordeaux Montaigne.
Educagri, 2008. p. 105-112. 2. Um sistema japonês de produção agrícola
liderado e apoiado pela comunidade, por meio
HINRICHS, C. Embeddedness and local
do qual os consumidores compram alimentos
food systems: notes on two types of direct
diretamente dos produtores.
agricultural market. Journal of Rural Studies,
v. 16, n. 1, p. 295-303, 2000. 3. Também são referidos como “iniciativas
alimentares alternativas” ou “sistemas
_______. 2003. The practice and politics of alimentares locais”. A principal diferença entre
food system localization. Journal of Rural Studies, a literatura francófona e anglófona diz respeito
v. 19, n. 1, 33-35. ao foco da última dedicado a rótulos ligando a
ILBERY, B.; MAYE, D. Retailing local food in the produção a um território (IGP, AOC, “slow food”),
Scottish-English border: a supply chain perspective. enquanto da perspectiva francesa, rótulos e
Geoforum, v. 37, n. 3, p. 352-367, 2006. selos de qualidade foram desenvolvidos para
valorizar produtos para consumidores que
LANCIANO, E.; SALEILLES, S. Le développement podem ser locais, mas, na maioria dos casos,
des circuits courts alimentaires. Un nouveau são distantes (DEVERRE; LAMINE, 2010).
souffle entrepreneurial dans l’agriculture?
4. Algumas das primeiras cadeias curtas
Congrès international francophone sur
alimentares podem ser rastreadas às
l’entrepreneuriat et la PME, Bordeaux, 2010.
experiências utópicas do século 19, como a
MARÉCHAL, G. (Ed.). Les circuits courts Sociedade Equitativa dos Pioneiros de Rochdale
alimentaires. Dijon: Educagri, 2008. ou os Falanstérios franceses (Fourieristas) e
Familistérios (Fourieristas e Godinistas), entre
MUNDLER, P.; JAUNEAU, J.-C.; GUERMONPREZ, outros tipos de comunidades. O objetivo das
B.; PLUVINAGE, J. The sustainability of small CCAA nesse contexto era prevenir as atividades
dairy farms in six regions of France. The roles de especulação e exploração por parte de
of resources and local institutions. EAAE-IAAE empresários capitalistas, ganhando maior
seminar Small farms: Decline or persistence, controle sobre os preços de bens de consumo
University of Kent, Canterbury, UK, 2009. e evitando os intermediários.
NORTH, D. Institutions, Institutional Change and 5. Nesse aspecto, CCAA podem ser
Economic Performance. Cambridge, Cambridge consideradas formas disfarçadas de protecionismo.
University Press, 1990. Podem, de fato, se tornar barreiras não tarifárias
POLANYI, K. La Grande transformation. invisíveis. Essas podem contribuir para tanto
Aux origines politiques et économiques de notre a proximidade geográfica (reduções da
temps. Traduzido por Maurice Angeno e Catherine distância física ou uma infraestrutura logística
Malamoud. Paris: Éditions Gallimard, Collection mais eficiente, ligando pontos de produção
Bibliothèque des Sciences humaines, 1944. e distribuição, etc.) como a proximidade
organizada (relações sociais e redes que possam
REMY, J.; VOYÉ, L. La ville: vers une nouvelle ajudar a fortalecer laços sociais, culturais e
définition? Paris: Éditions L’Harmattan, 1992. outros entre produtores e consumidores).
ipc@ipc-undp.org www.ipc-undp.org
Elizabeth Mpofu
Abdourahmane Ndiaye