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carreiras

Gênero

Onde as cientistas não têm vez


Falta de apoio e ambiente hostil contribuem para baixa adesão de mulheres às áreas Stem

A
s mulheres que iniciam um de mulheres que iniciam o em suas carreiras, enquanto
doutorado em áreas de doutorado em alguma dessas áreas. 32% desistem em até um ano depois
ciência, tecnologia, Os achados parecem estar de concluída a graduação.
engenharia e matemática (Stem, em alinhados a outros dados, como os Na Austrália, um levantamento
inglês) são 12% menos propensas divulgados em 2017 pela ONU feito em 2016 pelo Departamento
a terminar suas pesquisas, em Mulheres, entidade das Nações de Inovação, Indústria, Ciência e
comparação com os homens. Unidas para a igualdade de gênero Pesquisa do governo constatou
A conclusão é de um estudo do e o empoderamento feminino. No que apenas 16% dos profissionais
Departamento Nacional de Pesquisas estudo Cracking the code: Girls’ que atuam nas áreas Stem são
Econômicas dos Estados Unidos and women’s education in science, mulheres, das quais 31% esperam
(NBER) e envolveu a avaliação dos technology, engineering and deixar seu trabalho em até cinco
dados de 2.541 estudantes que mathematics, verificou-se que anos. De acordo com dados da
ingressaram em 33 programas de 74% das mulheres se interessam por Sociedade de Engenheiras Mulheres
pós-graduação em seis universidades ciência, tecnologia, engenharia e do país, mais da metade das
do estado de Ohio, entre 2005 e matemática. No entanto, apenas mulheres que ingressam nessas
2009. Os resultados também indicam 30% delas se tornam pesquisadoras áreas abre mão de suas carreiras
que a probabilidade de elas nessas áreas. Para as que em até uma década.
concluírem a pós-graduação ingressaram no mercado de As áreas Stem representam um
aumenta até 1 ponto percentual para trabalho, os dados indicam que 27% dos setores da economia e do
cada acréscimo de 10% na proporção sentem que não estão evoluindo mercado de trabalho que mais

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cresce no mundo, segundo a física áreas do conhecimento. Em
Márcia Cristina Bernardes Barbosa, um de seus trabalhos, desenvolvido
professora titular do Instituto de em parceria com a cientista social
Física da Universidade Federal Betina Stefanello Lima, analista
do Rio Grande do Sul (IF-UFRGS), de coordenação de programas
que há pelo menos 15 anos estuda acadêmicos do Conselho Nacional
a sub-representatividade das de Desenvolvimento Científico
mulheres nessas áreas. No Brasil, e Tecnológico (CNPq), depois
ainda que sejam maioria nas de analisados dados do Censo da
universidades, a atuação das Educação Superior de 2010,
mulheres é incipiente. As constatou-se que as mulheres são
diferenças de gênero na educação, maioria em 15 das 20 carreiras de
visíveis desde o ensino básico, graduação com maior número
tornam-se mais evidentes nos de recém-formados.
níveis mais altos de ensino. “Além disso, também são maioria
O relatório da ONU destaca que as entre os discentes nas universidades
meninas começam a perder o brasileiras e já compõem cerca
interesse pelas áreas Stem tão logo de 50% dos docentes nas instituições
ingressam nas escolas. A tendência públicas, segundo o mesmo censo”,
se acentua no ensino médio, de destaca Márcia. “No entanto”,
modo que, atualmente, na educação As mulheres ela explica, “este crescimento
superior, as mulheres representam não está homogeneamente
apenas 35% dos matriculados
ainda são distribuído entre as disciplinas.
em cursos Stem no mundo. consideradas O percentual de mulheres nas áreas
Na investigação recém-divulgada de Stem é muito pequeno e
pelo NBER, avaliou-se o ambiente
desprovidas diminui desproporcionalmente à
dos programas de doutorado em das habilidades medida que se avança na carreira”.
áreas Stem e sua contribuição para Ao avaliar os bolsistas de
a desigualdade de gênero. Não
tidas como produtividade em pesquisa (PQ)
foram identificadas evidências de necessárias para a do CNPq entre 2001 e 2011, nas
que o desempenho acadêmico disciplinas de física e medicina,
das estudantes ou dificuldades
produção elas observaram que o percentual
financeiras contribuam para a de conhecimento de mulheres em física no nível mais
manutenção da sub-representação básico, PQ-2, é de 10%. Esse
das mulheres nesses cursos. Para
científico, diz número cai para 5% no nível PQ-1A,
Bruce Weinberg, professor de Marcia Barbosa reservado a pesquisadores que
economia na Universidade Estadual demonstram excelência continuada
de Ohio, em Columbus, e um dos na produção científica e na
autores do trabalho, o problema formação de recursos humanos.
parece residir no fato de os cursos os resultados do trabalho em O mesmo se aplica para o caso da
serem compostos majoritariamente entrevista à Science, ela explica que medicina. O percentual de
por homens, o que contribuiria as estudantes abandonam os mulheres chega a quase 40% na
para o estabelecimento de um cursos por fatores não relacionados categoria PQ-2, mas também cai
ambiente hostil às mulheres, à capacidade intelectual, mas por pela metade (20%) na PQ-1A.
envolvendo, muitas vezes, assédio discriminação e falta de apoio, Primeira e até hoje única mulher
sexual, humilhação, menosprezo confiança e escassez de modelos a coordenar o comitê de física e
ou rejeição de ideias manifestadas, femininos em áreas com baixa astronomia do CNPq, Márcia conta
por exemplo, em reuniões representatividade de mulheres. que desde cedo se acostumou a ser
de laboratório. Segundo disse à No Brasil, a discussão sobre minoria na sala de aula. “Em uma
Science, tais situações, não raro, a participação das mulheres nas turma de 40 alunos, éramos apenas
contribuem para que as estudantes áreas Stem também desperta a quatro mulheres. Ao final do curso,
se isolem do convívio social. atenção de pesquisadores. É o caso em 1981, apenas eu me formei.”
Susan Gardner, diretora do de Márcia Cristina Bernardes Foi o que a motivou a desenvolver
Programa de Estudos sobre Barbosa, da IF-UFRGS. Há quase pesquisas sobre disparidades de
ilustração anita prades

Mulheres, Gênero e Sexualidade na duas décadas ela desenvolve gênero. Em um de seus estudos mais
Universidade do Maine, nos estudos com o propósito de recentes, publicado em agosto
Estados Unidos, que não participou analisar obstáculos que dificultam, na Anais da Academia Brasileira de
do estudo produzido pelo NBER, ou mesmo impedem, maior Ciências, ela e outras pesquisadoras
vai na mesma linha. Ao comentar participação das mulheres nessas do IF e da Escola de Engenharia da

PESQUISA FAPESP 273 | 97


UFRGS analisaram o perfil dos perfil
titulares da Academia Brasileira
de Ciências. Constataram De olho no Brasil
que, dos 518 membros, 449
são homens. No campo da Carioca alinha interesses em economia e administração pública para
física e astronomia, as mulheres estudar sistemas tributários em instituição de pesquisa do Reino Unido
compõem apenas 6% dos
participantes, ao passo
que entre os pesquisadores no Joana Naritomi sempre se sentiu Prestou e foi selecionada para o
topo da carreira elas dividida entre as letras e os números. mestrado da Pontifícia Universidade
representam por volta de 5%. Em 1999, prestou vestibular para Católica (PUC) do Rio. “Estudei como
“As mulheres ainda são jornalismo, na Universidade do Estado a experiência colonial e os distintos
consideradas desprovidas das do Rio de Janeiro (Uerj), e economia, ciclos econômicos afetaram o
habilidades tidas como na Universidade Federal do Rio de desenvolvimento e o modelo de gestão
necessárias para a produção de Janeiro (UFRJ). “Passei em ambos os dos municípios brasileiros”, explica.
conhecimento científico”, processos seletivos”, conta. “Tentei Com o título de mestre em mãos,
comenta Márcia. “Não raro, conciliar os dois cursos, mas uma hora candidatou-se a uma vaga de assistente
enfrentam preconceitos a rotina de trabalho e estudos se de pesquisa no Banco Mundial, nos
pautados em rótulos que as tornou inviável.” Optou por seguir na Estados Unidos. Foi aceita e se mudou
definem como sensíveis, economia, em parte porque oferecia para Washington em 2007. “Estudava
emocionais, sem aptidão para disciplinas como história e sociologia. os desafios para o desenvolvimento
o cálculo ou para a abstração.” Joana concluiu a graduação em socioeconômico da América Latina.”
Alguns países começaram a 2004, sem saber se seguiria a carreira Pouco depois foi aprovada no
investir no desenvolvimento acadêmica ou se iria para a iniciativa Programa de Pós-graduação em
de estratégias de inclusão. privada. Resolveu experimentar um Economia Política e de Governo, em
O Ministério da Ciência do pouco dos dois. Ingressou em um Harvard. Antes de definir o objeto de
Canadá, por exemplo, lançou em estágio em um conglomerado de seu doutorado, cursou disciplinas
fevereiro de 2017 a campanha comunicação para trabalhar nas áreas sobre relações econômicas
Choose Science. O objetivo é de administração e gestão estratégica. internacionais, desenvolvimento
incentivar as mulheres a “Ao mesmo tempo, dava monitoria em político, entre outras. Foi quando
conhecer melhor e optar por matemática para alunos de graduação conheceu o economista Raj Chetty,
áreas Stem. Também a em economia da UFRJ”, conta. especialista em finanças públicas.
Academia Australiana de À época, ela soube de uma prova da “Com o apoio dele, decidi analisar o
Ciências começou a desenvolver Associação Nacional dos Centros de sistema tributário brasileiro a partir
um plano para, em uma década, Pós-graduação em Economia (Anpec), de um estudo da Nota Fiscal Paulista.”
aumentar o engajamento e a cujo processo seletivo funciona como Joana avaliou como esse sistema
participação das mulheres. porta de entrada para cursos em contribuiu para diminuir a sonegação
Organizações como Girls Who economia de várias instituições de de impostos ao oferecer, aos
Code, Engineer Girl, Girls ensino e pesquisa do país. consumidores que solicitavam nota
Can Code e @IndianGirlsCode, fiscal, uma recompensa monetária.
são alguns exemplos de “Em quatro anos, o programa
iniciativas para encorajar aumentou em 21% a receita reportada
arquivo pessoal

meninas e mulheres a explorar nos setores de varejo”, diz, ao ressaltar


essas áreas do conhecimento. como o engajamento dos cidadãos
No Brasil, o movimento ainda pode se transformar em ferramenta de
é tímido. Um dos casos mais monitoramento fiscal.
conhecidos é o do projeto A experiência a fez aceitar, em 2014,
Meninas na Ciência (ufrgs.br/ um convite para trabalhar no
meninasnaciencia), uma ação Departamento de Desenvolvimento
de extensão do IF-UFRGS Internacional da London School of
lançado há cinco anos, com o Economics and Political Science. Na
objetivo de atrair jovens para as Inglaterra desde então, hoje, aos 36
carreiras em Stem e estimular anos, dá aula para alunos de mestrado
as mulheres que já escolheram e desenvolve pesquisas sobre políticas
essas carreiras a persistirem públicas para o aperfeiçoamento dos
e se tornarem agentes no sistemas de tributação e seguridade
desenvolvimento científico e social em contextos de informalidade
tecnológico do Brasil. n e sonegação, característicos da
Rodrigo de Oliveira Andrade realidade brasileira. n R.O.A.

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