Você está na página 1de 22

FEIERMAN, Steven.

African histories and the emerge da evolução do próprio ofício do


dissolution of world history [Histórias africanas e historiador.
a dissolução da história mundial]. In: BATES, R.
H.; MUDIMBE, V. Y.; O’BARR, J. (editors). Africa Um profundo paradoxo da escrita da história na
and the disciplines: the contributions of research atualidade é o de que nossa fé no conhecimento
in Africa to the Social Sciences and Humanities. histórico objetivo vem sendo solapada,
Chicago: University of Chicago Press, 1993, precisamente, por causa do avanço do
pp.167-212. Tradução de Elisangela Queiroz. “conhecimento” em seu sentido objetivo. A versão
autoritária do conhecimento histórico vem sendo
Houve um tempo em que os historiadores abalada porque historiadores, nas décadas
entendiam que certas civilizações (as ocidentais) recentes, construíram áreas de conhecimento
eram seus temas naturais, que alguns líderes sobre as quais seus predecessores não poderiam
políticos (Thomas Jefferson, Napoleão, Carlos nem ao menos sonhar. Por sustentar suposições
Magno) eram os mais importantes, e que sobre o conhecimento histórico através de suas
determinados períodos e temas (a Renascença, o conclusões, os historiadores descobriram alguns
Iluminismo, o surgimento do Estado-Nação) eram dos limites de suas suposições.
os únicos merecedores de nossa atenção. Outros
lugares, outros povos, outros temas culturais A evolução da história da África mostra
menos centrais no curso da civilização ocidental exatamente o quão dramático vem sendo o
não contavam. Atualmente tudo isto é crescimento de nossa compreensão no interior de
questionado. Os historiadores já não concordam uma estrutura herdada da história como
com os assuntos sobre os quais eles devem conhecimento positivo. Na metade de 1950,
escrever. graduandos em história de Harvard, Princeton,
Chicago, Berkeley, Columbia e quase todas as
Peter Novick, em um livro sobre a evolução do demais universidades brancas da América viviam
ofício de historiador nos Estados Unidos, nos em um mundo em que a história da África não
relata o estado atual da profissão nos títulos dos existia. Nenhuma destas importantes instituições
dois últimos capítulos: The Center Does Not Hold , oferecia cursos de pós-graduação sobre este
e There Was No King in Israel. Ele descreve “o assunto. Em 1958-59 a Associação Americana de
colapso dos estudos históricos profissionais como História questionou os chefes de departamento
empreendimento minimamente coeso” (1988, sobre os principais campos de estudo de seus
p.579). Theodore Hamerow escreve que “os alunos de graduação. O número total de
historiadores deixam de acreditar que são graduandos era de 1.735, o número indicado de
capazes de por ordem no caos” (Novick, 1988, estudantes dedicados à história africana era 1.1
p.578).
No final da década de 1970, existiam 600
O fim do consenso sobre os temas históricos é historiadores nos Estados Unidos que se
apenas uma parte da mudança que levou os dedicavam à África, e este número continuou a
historiadores a escrever sobre a fragmentação e o crescer (Curtin 1980). Muitos deles escreveram
caos. O debate sobre os temas históricos surge ao suas dissertações de Ph.D. em história africana, e
mesmo tempo em que cresce o número de muitos continuaram suas pesquisas depois do
historiadores que começam a duvidar de seus doutorado. O crescimento nos números levou,
próprios métodos. Muitos agora consideram desta forma, a uma enorme expansão do
impossível sustentar as alegações de que suas conhecimento. Entre os africanistas existem
escolhas temáticas e metodológicas estavam aqueles que lêem os arquivos europeus sob uma
fundamentadas em um conhecimento objetivo. nova perspectiva, para apreender o que os
Estes historiadores se conscientizaram de que documentos conservados em tais instituições
seus próprios escritos, seus modos de construir as revelam sobre a sociedade africana; ou existem
narrativas ocultavam algum tipo de conhecimento aqueles que estudam fontes escritas em árabe,
histórico, mesmo quando revelavam outros; e que tanto por africanos quanto por visitantes
suas escolhas de temas e métodos são produto de mulçumanos vindos de fora do continente; e
seu próprio tempo e das circunstâncias e não um existem outros ainda que lêem fontes em línguas
resultado inevitável do progresso imparcial da africanas; há também os coletores e analistas
ciência histórica. Esta mudança, que tem raízes críticos da tradição oral; lingüistas históricos;
no interior da filosofia contemporânea, também estudiosos especializados na religião africana, na
história da agricultura africana, na da doença, na

1
do gênero, na dos movimentos camponeses e uma da história humana que os historiadores
infinita gama de outros assuntos. ocidentais montaram naquele tempo não poderia
mais se sustentar. Sua destruição contribuiu para
Uma conseqüência óbvia da expansão da pesquisa o sentido de fragmentação e de perda de
histórica a partir de 1960 foi revelar como eram coerência.
limitados nossos entendimentos anteriores.
Muitas das novas pesquisas especializadas Podemos traçar o processo pelo qual a história se
focalizaram pessoas ou grupos que anteriormente enfraqueceu a partir de seu interior, pelo qual o
haviam sido excluídos da história geral da conhecimento cresceu e trouxe ele próprio
humanidade. A história da África não está dúvidas, por meio do exame de livros sobre a
sozinha neste sentido. Ao seu lado estão as novas história universal, todos eles publicados durante
áreas de conhecimento sobre a história dos os anos de desenvolvimento da história africana.
camponeses medievais, dos bárbaros na Europa Alguns deles cobrem todas as eras da história,
antiga, dos escravos nas plantações americanas, e outros cobrem apenas um breve período, mas
das mulheres como a maioria anteriormente todos tentaram integrar a história de todas as
silenciada (silêncio, ao menos, nos relatos partes do mundo em uma única narrativa.
históricos) em todos os tempos e lugares.
No começo dos anos de 1960, ainda era possível
Os ganhos substanciais no nosso conhecimento descrever a história humana em termos de uma
têm conduzido muito mais a um senso de dúvida história com uma única narrativa linear, dos
do que a um senso de triunfo. Os historiadores primórdios até os tempos modernos. Agora que
compreendem agora os critérios dúbios segundo esta possibilidade se foi, é difícil para nós
os quais mulheres e africanos, camponeses e relembrar o quão profundamente nossa visão de
escravos foram excluídos da história das gerações história mudou, a não ser que voltemos a
precedentes. Portanto, eles não podem ajudar, examinar importantes trabalhos daquela época.
mas podem se questionar sobre quais populações Por exemplo, o livro de Willian McNeill, The Rise
e quais domínios da experiência humana eles of the West, publicado em 1963 quando a história
próprios estão excluindo hoje. africana tinha acabado de emergir, apresentando
uma narrativa unicêntrica e unidirecional, de um
As histórias excluídas anteriormente não tipo inaceitável hoje.
apresentam somente novas informações para
serem integradas às narrativas mais amplas; elas The Rise of the West divide o mundo antigo entre
levantam questões sobre a validade da própria “civilizações” e a terra dos “bárbaros”. O livro
narrativa. Historiadores universitários inserem a focalizou a difusão das técnicas de civilização,
história africana na história do século XVIII, ou originalmente da Mesopotâmia, e então dentro da
na do XIX, sendo que muitas histórias escritas ou área que McNeill denominou de ecumene, como
recitadas na África não medem o tempo histórico oposta à terra dos bárbaros. Oikounenê (um dos
em séculos. Historiadores acadêmicos se termos de Arnold Toynbee) também foi utilizado
apropriam de partes do passado africano pelo grande antropólogo A. L. Kroeber para
transferindo-as para o interior de uma grande designar “a série de culturas mais desenvolvidas
estrutura do conhecimento histórico que tem dos homens”, e desta forma “as civilizações inter-
raízes européias — a história do intercâmbio de relacionadas milenarmente conectadas às
mercadorias, por exemplo. Eles raramente principais massas de terras do Oriente” (1952,
pensam em utilizar partes da história européia p.379). Esta era uma zona de intercomunicação
para ampliar as narrativas africanas, sobre a no interior da qual as técnicas básicas de
sucessão dos santuários akans ou a origem e civilização foram criadas, e a partir da qual se
segmentação das linhagens dos tivs. propagaram. As zonas fronteiriças mudaram com
o tempo, mas este centro primitivo estava no
Mesmo antes que estas difíceis questões antigo Oriente Próximo.
começassem a incomodar os historiadores, o
crescimento do saber sobre as sociedades não- A origem da civilização, na narrativa de McNeill,
européias começou a solapar as antigas histórias, deixou de fora a introdução da agricultura. Sobre
questionando as narrativas da história acadêmica este assunto ele tomou posições contraditórias,
que, até os anos de 1960, pareciam ser apesar de tentar manter uma única narrativa
irrepreensíveis. O novo conhecimento mostrou linear. Ainda que a introdução explique que a
que o que se pensava ser uma história universal agricultura foi introduzida mais que uma vez, a
era, de fato, muito parcial e seletiva. A narrativa narrativa do livro focaliza o papel central da

2
Mesopotâmia, fazendo uma exceção apenas à inundadas pelo rio. Neste caso, os africanos
introdução da agricultura na China (1963, p.11). ocidentais construíram suas próprias cidades que
Sobre as Américas, McNeill escreveu, “sementes e se desenvolveram antes do Islã se tornar
mudas devem ter sido trazidas na travessia do importante (McIntosh e McIntosh 1988).
oceano pela agência humana em tempos muito
remotos” (1963, p.240). Então, um pouco depois, Na África central e meridional, também, se
ele explica que “contatos eram tão limitados e desenvolveram reinos fora das bases locais.
esporádicos para permitir aos ameríndios Zimbábue é somente uma entre muitas routras
tomarem emprestadas técnicas de outras culturas ruínas de pedra construídas em estilos similares.
mais avançadas do Velho Mundo. Como Estas foram assentadas para transformar a
resultado, as civilizações andinas e mexicanas se criação e a transumância de gado possíveis, da
desenvolveram tardiamente, nunca conseguiram mesma forma que o comércio de longa distância.
controlar seus meio-ambientes sendo incapazes Como na África ocidental, as evidências apontam
de competir com os níveis de domínio alcançados para o crescimento dos centros localmente
por seus contemporâneos na Eurásia”. 2 Ele não consolidados que participaram do comércio de
viu possibilidade da domesticação ter se iniciado longa distância. A história não pode continuar a
de forma independente na África e escreveu que a ser escrita como uma única narrativa da difusão
agricultura veio ao oriente e ao sul da África das artes das civilizações de um ecumene, um
apenas nos últimos cinco séculos. Até então, centro histórico, para a África e outras partes do
“caçadores primitivos perambulavam, assim como mundo.4
faziam seus antepassados há incalculáveis
milênios” (McNeill 1963, p.481). As novas tendências desafiam os historiadores a
encontrar novos caminhos para definir as
Esta afirmação é ela própria incorreta por fronteiras espaciais de importantes processos na
milênios. Sabemos agora aquilo que os estudiosos história mundial. Nestes desafios, e em muitos
daquela geração não sabiam: que a domesticação outros, o surgimento da Escola dos Annales na
de animais veio, muito antes, da África França interagiu de maneira criativa com o
(possivelmente antes que do Sudeste da Ásia), e desenvolvimento da história africana. Os
que existiam centros autônomos de cultivo na criadores dos Annales tinham uma visão histórica
África ao sul do Saara.3 arejada; eles desafiavam a ortodoxia do estilo
histórico (associado ao legado de Leopold Von
Historiadores da geração de McNeill sabiam que Ranke) focado no estudo crítico dos documentos,
os grandes impérios tinham se desenvolvido na especialmente, aqueles que relatavam
África subsaariana na primeira metade do minuciosamente os eventos políticos. Os
presente milênio — Ghana, Mali, Songhay e primeiros estudiosos associados à Escola dos
outros grandes reinos na África oriental, e muitos Annales reagiram contra as limitações da
outros grandes reinos na África ocidental, central definição política dos temas da história. Marc
e meridional, dos quais Zimbábue ficou famoso Bloch, em seus primeiros trabalhos, escreveu
devido suas magníficas ruínas de pedra. McNeill sobre um entendimento coletivo do mundo que
viu em tudo isso empréstimos. As mais avançadas nos parece próximo a uma abordagem
sociedades africanas, ele escreveu, “nunca foram antropológica (Bloch 1924, 1925). Bloch, Lucien
independentes das principais civilizações da Febvre e outros estavam preocupados com a
Eurásia” (1963, p.252). O Islã, no seu ponto de história da sociedade de maneira geral, e não
vista, teve um papel central ao trazer a apenas com um limitado grupo social sobre o qual
civilização da Eurásia para África. Mesmo a os principais documentos políticos se referiam. 5
migração para o sul dos agricultores falantes de
bantu “pode ter sido reforçada pela migração das Fernand Braudel, o principal líder da segunda
tribos que fugiam das pressões mulçumanas no geração dos Annales, estendeu as fronteiras do
nordeste” (1963, p.560). espaço histórico de um modo que tornou mais
fácil entender a África no contexto da história
Pesquisas arqueológicas recentes têm mostrado mundial. Muitos dos antigos historiadores se
que o urbanismo baseado no comércio chegou à limitavam à história nacional, da França, da
África ocidental antes do começo do Islã. Em Itália ou da Espanha. Outros foram das fronteiras
cerca de 500 D.C. Jenne, no rio Níger, surgiu nacionais para as continentais. Braudel em sua
como uma cidade construída pelo comércio local obra-prima viu o Mediterrâneo, com suas
de excedentes agrícolas tirados das terra palmeiras e oliveiras, como uma significativa

3
unidade histórica, mesmo que composta por que, neste sentido, pode ser vista como
partes da Europa, da África e da Ásia. Uma braudeliana em sua inspiração.6 Historiadores
unidade que se ligava por suas rotas marítimas, africanos diziam que mesmo se as fontes
mas que se estendia a qualquer parte onde convencionais existentes se silenciam sobre a
houvesse comunicação humana: “Nós precisamos África, isto não pode ser tomado como evidência
imaginar milhares de fronteiras, não apenas de que nada tinha acontecido na África. Se os
uma”, ele escreveu, “algumas políticas, algumas contornos da história mundial foram
econômicas e outras culturais” (1976, p.170). determinados pelos silêncios de nossas fontes, e
não pela forma dos objetos históricos, então
Uma abordagem flexível sobre as fronteiras precisamos encontrar novas fontes.
espaciais nos fornece ferramentas para destruir
as limitadas definições de centro e periferia na No entanto, mesmo Braudel não pôde romper com
história mundial. Nós não precisamos ver os uma história unidirecional do mundo com a
mulçumanos da África ocidental a partir de uma Europa no centro. Civilisation matérielle,
moldura que os coloca unicamente como économie et capitalisme, o terceiro volume de sua
responsáveis por conduzir a cultura do centro da história mundial (século XV-XVIII) em três
civilização para a periferia. Podemos vê-los como volumes, é conduzido pela tensão entre a
africanos ocidentais, na economia, na língua e em disciplinada tentativa de Braudel de encontrar a
muitos outros elementos da prática discursiva, e correta estrutura espacial para cada fenômeno
ainda, ao mesmo tempo, reconhecê-los como (para explicar o crescimento da população no
mulçumanos. Não precisamos ler a partir de um século XVIII, numa perspectiva mundial, por
único mapa histórico que inevitavelmente separa exemplo), e sua definição da moderna história
os africanos dos habitantes do Oriente Médio. mundial como a ascensão de uma Europa
Podemos ler os mapas em paralelo: alguns para a dominante.
língua, alguns para a economia, alguns para a
religião. Similarmente, quando definimos as Civilisation Matérielle, como uma história
fronteiras das práticas de cura da África, não mundial, fala sobre o lugar da África em um
precisamos estancar nossa análise nos limites contexto comparativo. O primeiro volume se
continentais; nossa história pode se estender para refere à história da vida material cotidiana:
as Américas. Ao adotarmos uma compreensão comida, roupa, plantações, habitação, mobília e
especificamente flexível e situacional do espaço daí por diante. A dificuldade de Braudel em
histórico, o complexo das plantations, quase entender a África subsaariana não prejudica sua
sempre associado às Américas — como um análise mais ampla, exceto quanto isto determina
fenômeno do Caribe, Brasil e sul dos Estados suas reflexões mais gerais sobre toda a
Unidos — pode ser entendido em seus experiência humana.7 O mesmo é válido para o
prolongamentos, na costa leste africana e no segundo volume, sobre as técnicas por meio das
norte da Nigéria (ver Cooper 1977; Sheriff 1987; quais as pessoas trocaram bens em várias partes
Lovejoy 1979). do mundo. No terceiro volume, contudo, a questão
sobre o lugar da África na história (e da América
Braudel, assim como os demais historiadores dos Latina) fica mais próxima do foco de análise. Este
Annales, insistiu em perguntar o quão volume, escrito a partir do pensamento de
representativo nosso conhecimento histórico é em Immanuel Wallerstein, questiona o processo que
relação à totalidade do universo que poderia ser fez emergir uma economia capitalista mundial
descrito, se apenas soubéssemos toda a história. dominante, cujo centro é o ocidente. Em 1750, ele
Ele viu a economia, como estudada pelos diz, os últimos países a se industrializarem foram
economistas, por exemplo, como apenas uma responsáveis por 22,5 por cento da produção
pequena parte de uma mais ampla e obscura bruta mundial. Em 1976, os mesmos países foram
esfera da atividade econômica. Ele observou que responsáveis por 75 por cento daquela produção.
“a economia de mercado continua a controlar a Quais foram as origens deste movimento de uma
maior parte das transações que aparece nas relativa paridade econômica das partes do mundo
estatísticas”, como um modo de argumentar que para o domínio do centro capitalista? (1984, p.
os historiadores devem se preocupar também com 534; 1982, p. 134).
o que as estatísticas não mostram (1981, p.24
grifo no original). Uma preocupação com o caráter Wallerstein, de quem Braudel adota a estrutura
representativo do conhecimento histórico esteve analítica (daquele período), começou a explorar a
no centro do crescimento da histórica da África; história econômica mundial para responder

4
questões que surgiram de seu trabalho como um e sua substância. E esta era a parte extra que
especialista em sociologia da África. A década de habilitava os europeus a alcançar a elevada
70 foi um tempo em que muitas nações africanas, condição de super-humanos, incumbidos da
nascidas no otimismo dos anos de 1960, foram tarefa de lutar pelo curso do progresso.
forçadas a lidar com a intratável natureza de sua
Esta é uma afirmação quase estranha,
pobreza. Wallerstein refletiu sobre suas causas e
englobando uma significativa parte do mundo
origens. Ele tomou emprestados estudos sobre a
simplesmente nas bases de uma mesma categoria
dependência na América Latina e formulou uma
daquilo que não é Europa, e propondo ignorar a
estrutura interpretativa descrevendo todo o
não-Europa em seus próprios termos.
mundo, no período mais recente, como um
sistema capitalista, independente das formas Braudel descreve o desenvolvimento africano, em
locais de organização do trabalho ou da particular, nos termos da essência racial. Na sua
propriedade. As desigualdades mais visão toda a civilização originou-se do norte e se
significativas, argumenta Wallerstein, podem ser irradiou para o sul. Ele escreve, “eu gostaria
compreendidas em termos de uma metáfora agora de me concentrar no coração da África
espacial. Os países mais poderosos do centro Negra, deixando de lado os países do Magrebe —
capitalista fortaleceram-se a partir de suas a ‘África Branca’ contida dentro da órbita do Islã”
relações com os países mais pobres da periferia; a (1984, p.430). Usualmente, a compreensão de
semi-periferia atua com um papel mediador que é Braudel do espaço histórico é engenhosa e sutil,
importante para a estabilidade do sistema total nela cada estrutura espacial é cuidadosamente
(Wallerstein 1974a, Wallerstein, 1974b, o próximo diferenciada. Aqui, entretanto, ele funde várias
livro de Cooper et.al. explora o modo no qual estruturas de um modo inflexível e inexato.
escrever sobre a África e a América Latina levou Primeiro, ele mistura raça (“Branca” ou “Preta”)
à fragmentação da história mundial de com religião (Islâmico ou não-Islâmico), ainda que
Wallerstein. Ver também Stern 1988, DuPlessis muitos mulçumanos fossem povos que ele, em
1987 e Jewsiewicki 1987). outro caso, teria descrito como “pretos”.
Braudel adotou esta moldura no que se refere ao Segundo, ele caracteriza a “África Negra” como
caráter sistêmico da desigualdade entre os povos, passiva e inerte. Ele escreve que os navios
aos quais ele chama de “os que têm e os que não europeus na Costa Ocidental não encontraram
têm” (1979, p.16). Ele estava interessado em “resistência ou vigilância” e que o mesmo tinha
entender como o domínio do centro capitalista acontecido nas margens do deserto: “As comitivas
cresceu fora do desenvolvimento interno da de camelos islâmicas eram tão livres para
Europa, e fora das relações entre as economias- escolher seus pontos de entrada quanto eram os
mundo locais. Estas últimas eram unidades navios europeus” (1984, p. 434). Isto é
espaciais que adquiriram certa integração demonstravelmente incorreto. Um grande
orgânica por causa da densidade das relações de conjunto de estudos históricos explora as
troca no seu interior. O Mediterrâneo no século complexas inter-relações entre os reis ou
XVI era uma economia-mundo neste sentido. comerciantes da África ocidental e aqueles que
atravessavam o deserto vindos do norte. A
Braudel tentou fazer uma séria avaliação dos
expansão do Islã e o comércio trans-saariano
níveis do quanto a riqueza vinda de fora da
foram moldados a partir de iniciativas tomadas
Europa contribuiu para o advento do capitalismo,
por ambas os lados do deserto.8
mas ele tratou os africanos, e em menor grau os
povos das Américas, como atores históricos De acordo com Braudel, todo o movimento teve
apenas na medida em que eles estavam uma única direção. “Curiosamente, nenhum
relacionados com as necessidades dos europeus explorador negro empreendeu qualquer viagem
(1984, p.386): através do deserto ou do oceano, que estavam ao
seu alcance... Para os africanos, o Atlântico era,
Embora pudéssemos ter preferido ver estes
“não-europeus” em seus próprios termos, isto
assim como o Saara, um obstáculo impenetrável”
não poder ser entendido corretamente, (1984, p.434). Ele escreveu isto apesar do
mesmo antes do século XVIII, exceto nos conhecimento (com o qual ele certamente teve
termos da poderosa sombra da Europa contato) de que muitos mulçumanos
ocidental que os encobriu... E era de todos os comercializavam pelo deserto, ou que
lugares do mundo... que a Europa estava peregrinavam até Meca, vindos do Sudão
retirando uma parte significativa de sua força ocidental. Eram africanos que seriam descritos

5
por Braudel como negros, trazendo com eles a civilizações históricas. Na história do mundo
herança cultural da África ocidental. Relatos entre os séculos XIV e XVI escrita por eles, o
mostram que alguns dirigentes da África negra processo central é a fusão de espaços históricos
fizeram a peregrinação para Meca ainda no início locais no interior de um único espaço mundial
do século XI (Al-Naqar 1972, p.27). Mansa Musa interconectado. Bennassar toma o cuidado de ler
do Mali viajou da África ocidental ao Cairo, os novos trabalhos dos africanistas, até então
depois para Meca no século XIV com um séqüito apenas parcialmente assimilados. Ele explica, por
composto por 60.000 indivíduos (Hiskett 1984, exemplo, que muitos dos mercadores mulçumanos
p.15; ver também pp.29, 34 e 55). Ainda que o da África ocidental eram negros africanos
número correto seja provavelmente menor, não ocidentais, e que o Islã atuou no avanço da
há dúvida que milhares de africanos agricultura e da metalurgia na “civilização
atravessaram o deserto para visitar o mundo do Bantu” dos grandes lagos da África oriental
Mediterrâneo e do Mar Vermelho, e outros (da (Bennassar e Chaunu 1977, pp. 71 e 73). Porém,
Costa Oriental), cruzaram o Oceano Índico para no mesmo capítulo Bennassar escreve sobre a
alcançar o Golfo Pérsico e a Índia. região dos grandes lagos “do Lago Rudoff até o
Lago Nyasa, onde Estados negros com economias
Finalmente, a caracterização da diferença que diversificadas estavam... aptos a se estabelecerem
Braudel estabelece entre a “África Negra” e a à medida que a penetração árabe estimulava a
“África Branca” é baseada em sua compreensão função comercial” (Benessar e Chaunu, 1977,
de raça. Na Grammaire des Civilisations ele p.72). Esta visão da penetração árabe, para a qual
admite que a Etiópia (neste caso, cristã) foi uma não existem evidências, surge apontando e
civilização, explicando que ela “indiscutivelmente fixando, claramente, a posição da África dentro de
possuía elementos étnicos brancos, e foi fundada uma narrativa mais ampla.
em uma população mestiça, muito diferente,
entretanto, daqueles que eram verdadeiros Esta narrativa mais ampla no livro de Bennassar
melano-africanos” (1987, p.152). Ás vezes, ele e Chaunu, no trabalho de Braudel e em McNeill,
nega a existência de alguns fatos para preservar fala sobre o impacto das “civilizações” no mundo.
a clara distinção entre a África Negra, que é Apesar da centralidade das “civilizações”, o termo
incivilizada, e a África Branca que é civilizada. raramente é matéria de discussões cuidadosas.
Em um livro de 1963, Braudel admite que a McNeill, que escreveu que as “sociedades
região próxima ao Golfo da Guiné foi urbanizada civilizadas têm muito para ensinar e
muito cedo (1987, p.164; originalmente publicado relativamente pouco para aprender dos povos
em 1963). Mas, em um livro posterior, no qual ainda não civilizados”, define civilização como
argumenta que as cidades eram uma das marcas “um estilo de vida caracterizado por uma
distintivas de civilização, escreveu que não complexidade, riqueza e imprevisibilidade geral
existiam cidades na orla do Golfo da Guiné. (1981, que justificam o epíteto de ‘civilizada” (McNeill
pp. 292-93). 1963, pp. 65 e 32).

Uma vez que os historiadores têm chegado a uma “Civilização” na língua inglesa, ao longo dos
melhor compreensão da urbanização africana e séculos, carregou conotações relacionadas a si
das iniciativas africanas nas trocas própria e ao outro, ou do próprio ou impróprio
intercontinentais, fica mais fácil ver a fragilidade para ordenar uma sociedade. “Civilizar” no
desta pequena parte do trabalho de Braudel. Oxford English Dictionary (1933) é “educar o que
Entretanto, uma questão central permanece: se a é rude ou grosseiro... domesticar, domar (animais
sua interpretação unidirecional da África é selvagens)... fazer ‘civil’” no sentido de “ter boa
meramente uma infeliz idiossincrasia que se opõe ordem pública ou social”. “Civilização” é uma
ao grande historiador, ou se é um sinal de condição ou estado civilizado nestes sentidos, mas
problemas profundos no modo como muitos é igualmente “um desenvolvido ou avançado
historiadores constroem suas narrativas. estado da sociedade humana”.

No trabalho de Pierre Chaunu e Bartolome Braudel faz uma distinção entre “civilizações” e
Bennassar, membros da terceira geração dos “culturas”, estando as sociedades da África Negra
Annales, podemos ver a tensão entre a nova entre as culturas. Em The Structures of Everyday
evidência africana, mostrando processos Life ele escreve que “a cultura é uma civilização
autônomos, e a velha visão de história mundial que não atingiu ainda sua maturidade” (1981,
na qual o progresso irradia das poucas p.101), mas em Grammaire des Civilisations ele

6
toma emprestado de Lévi-Strauss, a divisão das de Braudel ou de Bennassar e Chaunu, é que tais
sociedades entre relógios e máquinas a vapor, inter-relações não se sustentam. Na maior parte
para argumentar: da África subsaariana o arado não é utilizado
porque ele é prejudicial aos solos tropicais.
As sociedades que correspondem a culturas Algumas áreas ostentavam próspero comércio,
são aquelas... que têm a tendência de se considerável intercomunicação e alta densidade
manter indefinidamente em seu estado
populacional, mas sem hierarquia política.
inicial, o que explica, além disso, porque elas,
para nós, parecem ser sociedades sem
As áreas ibo (Ibolândia) na região sudeste da
história e progresso... Nas breves culturas
primitivas encontramos a semente das Nigéria, por exemplo, tinham uma alta densidade
sociedades igualitárias, nas quais as relações populacional; em tempos recentes algumas partes
entre os grupos são reguladas uma vez e para desta região atingiram 800 habitantes por milha
todos, repetindo elas próprias, enquanto as quadrada. Os povos cultivavam a terra com
civilizações são encontradas nas sociedades enxadas, e tinham uma densa rede de mercados
hierárquicas, com... tensões que se periódicos (mercados estes que se revezavam em
transforma, conflitos sociais, lutas políticas e um ciclo de quatro a oito dias para facilitar aos
uma perpétua evolução. (Braudel 1987, p.48)
mercadores a mudança de um lugar para outro), e
tinham também uma rede de feiras de longa
As culturas africanas, de acordo com este
distância. Ao final do primeiro milênio D.C. esta
argumento, são igualitárias e estáticas enquanto
região importou quantidades substanciais de bens
as civilizações européias são hierárquicas e
por rotas terrestres até o Mediterrâneo — tudo
dinâmicas.
isto sem escrever e, na maior parte da Ibolândia,
O sinal externo mais significativo de civilização, não possui formas claras de hierarquia política.
de acordo com Braudel, é a presença de cidades Conselhos igualitários mantinham o lugar do
(1987, p.48), mas estas, por sua vez, são mercado e os agentes dos oráculos religiosos se
indicadores da existência de espaço comunicavam por longas distâncias. Diferentes
hierarquizado, dividido entre centros ricos e tipos de funcionários rituais coexistiam na
periferias pobres (Braudel 1979, p.16). As Ibolândia, cada um preservando uma ou outra
desigualdades espaciais emergem onde a forma de conhecimento, a ser transmitido
intercomunicação e o comércio são bem oralmente para a geração seguinte. Artesãos
desenvolvidos e onde a agricultura é produtiva. A praticavam numerosos ofícios. A região era
produtividade da sociedade civilizada é fruto do economicamente dinâmica, tanto internamente,
cultivo com arado; as culturas costumam contar quanto em relação ao comércio de exportação;
com a enxada (Braudel 1981, pp.56-64, 174-82). quando a demanda de óleo de palma cresceu no
Chaunu é claro sobre a importância da mudança começo do século XIX, a Ibolândia e a área ao sul
na agricultura: o aumento na produtividade leva enfrentaram o desafio e, por volta de 1853,
ao crescimento da densidade populacional que é estavam exportando cerca de 30.000 toneladas de
acompanhada, por sua vez, pelo aparecimento de óleo de palma por ano, usando formas nativas de
hierarquias (Bennassar e Chaunu 1977, pp.47- organização.9 Ela de nenhum modo pertence ao
51). Um dos elementos centrais na emergência da conjunto de sociedades descritas por Braudel com
civilização é a existência da escrita. Chaunu “tendência de se manter indefinidamente em seu
escreve que concorda com Braudel sobre a estado inicial... para o qual as relações entre os
importância da escrita para a civilização: “As grupos foram reguladas uma vez e se repetem”.
artes da memória estão situadas no coração da
Este é um ponto de extrema importância: a
acumulação” e a escrita é “a mais eficaz” das
experiência histórica do sudeste da Nigéria
artes da memória (Bennassar e Chaunu 1977,
seguiu um padrão para o qual a categoria de
p.56, n.49).
“civilização” estabelecida pelos historiadores foi
Temos aqui um complexo de elementos que juntos irrelevante. A região teve alta densidade
formam uma configuração coerente: hierarquia populacional e a ausência de estados
econômica e política, cidades, comércio e hierarquizados, comércio sem escrita e
intercomunicação, escrita, arado, alta densidade produtividade agrícola sem arados. As
populacional e dinamismo histórico. características da “civilização” — a alta densidade
populacional, comércio, hierarquia, e daí por
O problema deste complexo quando aplicado à diante — são significativos apenas na medida em
África, no contexto das histórias mundiais como a que, como elementos distintos, tiveram um

7
significado relacional: na medida em que o arado, mercadores que comerciavam localmente e
a hierarquia política e a atividade mercantil estão contribuíram para o comércio de exportação. O
relacionados, por exemplo, os elementos não têm comércio de marfim no século XVII foi alimentado
qualquer significado explicativo se tratados por uma matança anual de 3.000 a 4.000
simplesmente como um check-list. Nesta parte da elefantes. Estimativas, também do século XVII,
Nigéria, fica claro que um grupo diferente de mostraram que esta região era capaz de exportar
inter-relações ocorria. Não é de admirar que os quarenta toneladas de cobre por ano.10 Uma outra
historiadores, confrontados com a obrigação de parte crucial da economia regional estava fora dos
levar a sério a história de Ibolândia, queixem-se limites do reino. Era uma área em que uma série
da “fragmentação” e do “caos” no conhecimento de importantes funções governamentais era
histórico. Algumas das categorias da compreensão mantida pela Lemba — uma associação de cura,
histórica longamente aceitas são irrelevantes ou nos termos de Janzen (e nos de Victor Turner),
neste caso. “um tambor de aflição”.

Isto não significa dizer que Braudel, ou As pessoas eram iniciadas no Lemba como um
Bennassar e Chaunu, não se interessassem pelas modo de tratar suas doenças e ainda como forma
mudanças subjacentes nas sociedades africanas. de estabelecer organizações comerciais. Os
Bennassar, por exemplo, explorou os princípios da iniciados tinham um papel essencial na
organização social africana, em sua pesquisa para manutenção da livre passagem através de toda a
responder a questão central levantada por rede de mercados de quatro dias. Lemba era uma
Braudel: Por que a África não foi o lugar onde as forma de expressão religiosa, uma medicina
mudanças econômicas emergiram? Por que a consagrada, na qual, os mais altos níveis de
África não foi o lugar onde ocorreu a grande iniciação eram muito caros. Os comerciantes mais
ruptura que ocasionou o capitalismo? Para ricos estavam comumente no topo da organização
responder esta questão, Bennassar começou pela Lemba, e eles utilizavam as redes rituais para
compreensão dos fatores sociais que levaram à atingir seus interesses econômicos. Este é um
ruptura na Europa. O fator central, em sua visão, exemplo exato do tipo de autonomia mercantil
foi a liberdade parcial dos mercadores em relação que Bennassar estava procurando. Ele não a
ao controle político, e sua capacidade de acumular encontrou (ou outras instituições similares)
riquezas em seu próprio direito. Ele olhou para os porque o historiador dedicado à história mundial
mesmos fatores na África, começando com aquele normalmente não procura por atividades
que para ele parecia ser o mais avançado dos mercantis na ‘sagrada medicina de governar’;...
reinos africanos. No reino do Congo, ele ‘no governo da multiplicação e reprodução’... e ‘na
argumentou, os mercadores eram rigorosamente sagrada medicina integrando pessoas, vilas e
controlados pelo rei. A terra revertia ao rei mercados’” (Janzen 1982, p.4).
quando da morte do proprietário, assim
impedindo a possibilidade de acumulação. O rei O problema aqui é que as categorias de análise
era a fonte da miséria e da prosperidade, aos histórica são normalmente trazidas da Europa, e,
mercadores faltava autonomia e o crescimento conseqüentemente, os historiadores buscam na
econômico foi restrito (Bennassar and Chaunu África uma constelação familiar de reis, nobres,
1977, pp.85-87). igreja e mercadores. “A sagrada medicina de
governar” é estranha a essa análise. V.Y.
A análise caiu, entretanto, não apenas por causa Mudimbe tem explicado que análises
da larga diversidade das estruturas de Estado na funcionalistas dependem do contraste entre o
África, mas também por causa da incorreção do normal e o patológico. Se o europeu é definido
pressuposto básico de que a autonomia dos como normal, então os não-europeus aparecem de
mercadores exigia uma estrutura estatal que forma distorcida, anormal, primitiva (1988, pp. 27
pudesse sustentar seus negócios. John Janzen e 191-92).
tem escrito sobre a história de um conjunto de
instituições com funções mercantis que abrangem Como, então, podemos construir um relato da
várias regiões ocupadas por Estados e áreas de história mundial dentro de uma mesma moldura,
organização política acéfala. Esta é uma área que se os princípios da organização social dos Lemba,
se estende além do limite norte do reino do ou na Ibolândia, são diferentes dos princípios
Congo, principalmente ao norte do rio Congo, à europeus? Eric Wolf tenta fazer isto, construir um
medida que este desce ao Oceano Atlântico. Esta relato coerente enquanto dá a devida atenção aos
era uma região de intensa atividade entre não-europeus em Europe And The People Without

8
History (1982). Pelo fato de Wolf ter trabalhado O foco de Wolf sobre os não-europeus na história
tão arduamente para reverter o balanço da ênfase mundial é especialmente útil para revelar como é
da Europa para “os povos sem história”, podemos difícil construir uma única narrativa mestra, para
ver os limites e as dificuldades deste o que deve necessariamente existir níveis de
empreendimento. experiência que Wolf não descreve — níveis nos
quais as pessoas se esforçam para criar novos
As primeiras partes do livro não tentam delinear modos de dar formas culturais para a ação social,
um processo unificado na história mundial. Wolf níveis em que a experiência escapa da
orienta suas primeiras descrições, baseado em regularidade dos processos “universais”. 12
três “modos de produção”. Por outro lado, esta
descrição pode ser utilizada para reduzir a Recentes trabalhos de Arjum Appadurai e Igor
diversa experiência em alguns tipos simples Kopytoff mostram, por exemplo, que objetos se
dentro de um esquema feito na Europa. Se esse transformam em mercadorias em modos culturais
fosse o caso, Wolf poderia ter violentado os específicos (Appadurai 1986; Kopytoff 1986; ver
princípios localmente específicos de organização, também Geary 1986; Cassanelli 1986). Os objetos,
os africanos entre outros. Mas este não é o caso. nesta visão, têm uma história de vida na qual em
Os modelos são categorias heurísticas. Estes não algum momento, adquirem a condição de
são tipos de sociedades, ele escreve, mas mercadoria, como no caso da herança em que os
“construções que buscam imaginar certos membros da família não podem vender, até um
relacionamentos estratégicos”.11 Ele fez um amplo certo momento do ciclo de vida da família, quando
esboço da geografia social mundial e da o produto da herança se torna disponível para a
organização política em 1400, enfatizando as venda. Este padrão em que os objetos adquirem a
formas políticas autônomas, especialmente condição de mercadoria varia de uma sociedade
aquelas que não eram puramente locais e que para outra.
faziam integrações regionais possíveis. Wolf então
se volta para o capitalismo, para o momento de Sharon Hutchinson, escrevendo sobre os nuer no
sua origem. sul do Sudão, mostra que o dinheiro e as
mercadorias são culturalmente definidos de
Foi para o período capitalista que Wolf objetivou maneiras radicalmente diferentes do esperado. A
construir uma história universal, baseada nas cultura das mercadorias é localmente definida e
regularidades do processo histórico e não somente não a partir de um padrão universal. Tampouco
na moldura histórica da análise. O surgimento de se pode “prever como o dinheiro será
um mercado mundial levou ao aparecimento do conceitualizado e incorporado por outras
dinheiro (e dos preços) como linguagem universal. culturas” (Hutchinson 1988, p.179).
Os bens em todas as partes do mundo se
transformaram em mercadorias, e estas “podiam Os nuers destes dias trabalham por ordenados,
ser compradas e trocadas sem nenhuma sendo ativos como mercadores e engajados como
referência à matriz social na qual elas eram compradores e vendedores no comércio de gado e
produzidas (1982, p.310)”. Cada mercadoria tinha outras mercadorias. Podemos dizer, portanto, que
um valor quantitativo em relação a todas as eles entraram no mundo capitalista da troca de
outras mercadorias devido à existência de mercadoria, eles falam a língua mundial do
instituições de mercado. dinheiro e dos preços. Todavia, o gado é
mercadoria em um contexto relativamente
Para o período em que o mercado mundial existe, circunscrito, ele é diferente da mercadoria
os historiadores podem escrever uma história descrita por Wolf, o da mercadoria encontrada em
universal do modo como as mercadorias foram Marx, para quem a troca capitalista rompe
produzidas e trocadas. Este é o projeto de Wolf. fronteiras, dando espaço ao livre comércio. Os
Ele esboça as conseqüências políticas e nuers vendem gado por dinheiro, mas eles não
econômicas do comércio de pele para as pessoas podem trocar o dinheiro assim obtido do mesmo
na América do Norte e do comércio de escravos modo que trocam gado. A diferença crucial entre
para a África. Mais à frente no livro ele viaja ao dinheiro e gado é que o “gado tem sangue”,
mundo, mostrando os efeitos da produção de sangue este que o povo associa a idéia procriação;
mercadorias — exemplificando o impacto da “dinheiro não tem sangue”. Por esta razão o
produção da borracha, por exemplo, na Bacia dinheiro não pode ser usado em contextos onde o
Amazônica e no sul da Ásia. sangue do gado é relevante: para a prosperidade
da linhagem [bloodwealth], ou sacrifico, ou

9
(exceto em um grau limitado) para o dote zonas de intercomunicação na história mundial.
[bridewealth]. Mesmo quando o gado é utilizado Esta é uma retomada do tema tratado por
em transações sociais, distinções são feitas entre McNeill (Curtin escreve sobre “regiões de
os usos do animal comprado com dinheiro (“gado comércio ecumêmico”), mas sem levar em conta a
de dinheiro”) e os animais utilizados como dote história unidirecional. “Um dos mitos da história
(“gado de menina”). da África”, ele escreve, “é a velha visão de que o
comércio na África foi largamente uma iniciativa
O dinheiro não é um meio homogêneo de troca de estrangeiros... De fato, o comércio para além
para as pessoas da Nuerlândia. Dinheiro ganho do nível da aldeia começou como uma iniciativa
na limpeza de latrinas ou em trabalhos africana” se expandindo a partir deste nível
domésticos é chamado de “dinheiro de porcaria” inicial para o exterior (Curtin 1984, pp. 15-16).
não podendo ser utilizado na compra de gado. Curtin rejeita a idéia de que as diásporas
“Gado comprado com dinheiro de porcaria não comerciais estão todas ligadas a um mesmo
consegue viver” (Hutchinson 1988, p.152). Outros compasso de um sistema econômico, no estilo de
ordenados são chamados de “dinheiro de suor” e Wallerstein ou André Gunder Frank. “Elas são
aquele ganho na venda de gado é o “dinheiro de somente uma influência entre tantas no curso da
gado”. Para os nuers, o dinheiro não é um fluido história”. (Curtin 1984, p.9).
universal. Há diferentes tipos dele, com
diferentes usos (Hutchinson 1988, pp. 108, 110, Uma leitura de McNeill, Braudel, Bennassar e
115-16, 148, 149, 152-62, 176 e 179). Chaunu, Wolf, Curtin e outros, aponta para um
mais amplo e geral desenvolvimento: que o surgir
Os nuers tiveram que construir uma nova síntese da história africana (e da asiática e da latino-
de mercado e comunidade, um novo conjunto de americana) tem mudado profundamente nossa
categorias de troca, para atender suas próprias compreensão da história geral, e do lugar da
necessidades. Este é um tipo de processo criativo Europa no mundo. Não é mais possível defender a
que não é considerado numa narrativa da posição de que os processos históricos entre os
expansão das mercadorias na história mundial. povos não-europeus possam ser vistos como meras
Dizer isto não significa negar a existência de conseqüências de influências encadeadas que
mercadorias, nem a sua comensurabilidade a emergem de um centro europeu dominante. Esta
partir de uma base mundial, nem a importância mudança em nossa compreensão é desconfortável
do surgimento de um mercado mundial. Dizer isto para quem vê a história como a expansão da
significa simplesmente que a história das civilização a partir de um centro europeu, e é
mercadorias não é uma história total, que existem igualmente desconfortável para quem
espaços de experiência para além do alcançado. esquematiza a história nos termos de um sistema
auto-determinado de exploração escravista.
A história comparativa ainda é possível para
historiadores que estabelecem objetivos modestos. A mudança das narrativas históricas que se
Cross Cultural Trade in World History, de Philip originavam na Europa vem sendo acompanhada e
Curtin, explora as formas tomadas pelas redes de autorizada por inovações nos métodos de
comércio pré-industriais que conectam os povos construção do conhecimento sobre os povos e as
por meio de fronteiras culturais. Esta é uma pessoas que anteriormente foram deixados de
sociologia histórica comparativa focada nos lado pelos estudos históricos acadêmicos. Estes
estabelecimentos de especialistas comerciais, métodos renovados, alguns dos quais se
removidos fisicamente de suas comunidades de desenvolveram inicialmente entre os
origem e vivendo como estrangeiros entre seus historiadores da África, incluem história oral,
hospedeiros, conectados com outros arqueologia histórica, lingüística histórica, bem
estabelecimentos similares em uma rede como análises históricas de formato antropológico.
comercial, uma “diáspora mercantil”. Os Os novos métodos e modos de interpretação
comerciantes chineses criaram uma diáspora permitiram aos historiadores se aproximar da
comercial no sul da Ásia, assim como fizeram os história dos povos iletrados, em muitos casos
juulas no oeste da África, e os fenícios e os gregos destituídos de poder, sem partir dos cânones
no Mediterrâneo. As comunidades aceitos pela crítica da pesquisa histórica. Os
interconectadas de mercadores forneciam serviços historiadores estão aptos a conhecer histórias das
de comércio e informações umas às outras através quais eles nunca tiveram conhecimento antes. As
de áreas amplamente dispersas. Curtin usa o conseqüências são, uma vez mais, paradoxais. Os
comércio diaspórico para explorar a definição das avanços significativos na qualidade do

10
conhecimento histórico ajudam a mexer com a fé social na qual elas estão encravadas (ver
dos historiadores na qualidade de seus Feierman 1990 e Tonkin 1992).
conhecimentos. Para vislumbrar todas as regiões
da história anteriormente desconhecidas, para O sentido de que havia um mundo de
ver o lado obscuro da lua, a fé dos estudiosos foi experiências históricas na África para além do
perturbada em sua própria onisciência. que era descrito nos documentos levou os
historiadores a explorar novas técnicas de
Os avanços metodológicos não se limitam à reconstrução histórica, acompanhando o estudo
África. Eles tiveram impacto em numerosos da história oral. Arqueologia histórica —
campos históricos, mas muitos deles surgiram arqueologia de períodos relativamente recentes
com clareza e força particular entre os (os últimos 3.000 anos) — combinando tradição
historiadores da África.13 O impacto da história oral, etnologia e técnicas arqueológicas mais
oral resultou em um grande avanço nos estudos comuns, tem ajudado os historiadores na
sobre a África subsaariana, onde muitas ausência de ricos registros documentais (Schmidt
sociedades eram perfeitamente compatíveis com 1978, 1983a, 1983b, 1990; Chittick 1974;
esta forma de pesquisa: estes povos transmitiam Posnansky 1969; McIntosh e McIntosh 1980a,
um conjunto substancial de conhecimento de uma 1980b, 1984, 1986; Shinnie e Kense 1989). Os
geração para a seguinte e sustentavam uma historiadores africanos têm feito também um uso
complexa hierarquia política e econômica, tudo criativo da lingüística histórica (Ehret 1968,
sem o uso da escrita. Tradições orais ainda 1971, 1988; Schoenbrun 1990).
estavam vivas (e em muitos casos ainda estão)
quando os historiadores das décadas de 1960 e A ampla gama de métodos empregados pelos
1970 fizeram suas pesquisas. Diferentemente da historiadores africanos tem se mostrado útil não
América Latina, onde o período colonial começou somente nas sociedades sem escrita, mas também
há alguns séculos, foi apenas no final do século nos estudos das classes desfavorecidas da
XIX que a maior parte da África subsaariana sociedade, com considerável quantidade de
experimentou a conquista. Antes disso, os iletrados. Os historiadores têm usado destes
europeus, em muitos casos, não interferiram métodos ampliados para construir ricos relatos da
diretamente na transmissão do conhecimento. maioria africana na sociedade colonial e
especialmente para nos revelar os esplêndidos
Jan Vansina em De la tradition orale foi o relatos da resistência camponesa à dominação
primeiro a argumentar coerentemente entre os colonial.14
africanistas que as tradições orais poderiam ser
utilizadas como fontes históricas e ofereceu Os melhores estudos da resistência à conquista,
elementos básicos para um método (Vansina um dos quais o trabalho de Allen Isaacman, por
1961, revisitado em 1985; ver também Miller exemplo, explora a tensão central da sociedade
1980, Cossanell 1982; Cohen 1985). Em muitos africana antes da conquista — o curso da
casos os historiadores acadêmicos eram africanos resistência à dominação pelas autoridades
que tiveram a oportunidade de aprender indígenas — de modo que mesmo a história do
fragmentos de história oralmente transmitidas domínio colonial é dividida entre histórias feitas
em suas infâncias, e que retornaram à África na Europa e outras que encontraram fontes de
anos depois, e trouxeram ferramentas para coerência dentro das histórias africanas,
estudar as mesmas tradições. (Kimambo, 1969; enraizadas nas tradições orais (Isaacman 1972,
Ogot 1967; Samatar 1982; Alagoa 1964, 1972, 1976, 1990; Ranger 1985a).
1980; Were 1967). Os historiadores, no entanto,
O sentido de que não podemos contar a história
precisavam entender que as próprias narrativas,
como uma única narrativa, a partir de um único
contadas no interior das sociedades africanas, não
ponto de vista consistente, ou de uma única
são recitações socialmente neutras que servem a
perspectiva, provocou golpes profundos no
todos igualmente. Elas são mais um objeto de
pensamento cultural e social mais recente. Michel
disputa, localizado na rede de relações de poder,
Foucault escreveu, em Language,
assim como são os relatos das glórias da
civilização ocidental ou da criatividade Countermemory, Practice, que a idéia do conjunto
afrocêntrica. A interpretação histórica precisa ler da sociedade “surgiu no mundo ocidental, neste
desenvolvimento histórico altamente
as tradições (precisa ouvi-las e assistir suas
individualizado que culmina no capitalismo. Para
performances) prestando atenção nas formas de
falar do “conjunto da sociedade” como a única
dominação inscritas nelas, e as relações da rede
forma que ela tem tido, é preciso transformar

11
nosso passado em sonho” (citado em Janeiro de senão em contraste com a escravidão, ou
1984, p.521). As muitas categorias por meio das civilização (ela própria o coração da história
quais compreendemos a experiência universal se mundial, como vimos) senão em contraste com o
origina em uma experiência particular do centro barbarismo? Sem o nativo, sem o escravo, o servo
do mundo capitalista. ou o bárbaro, os valores centrais do ocidente
seriam difíceis de imaginar. O escravo e o bárbaro
Esta é a mesma lição ensinada num exame da não eram incidentais para a civilização, condições
história africana. As categorias que são usadas aberrantes nas margens; eles eram constitutivos
ostensivamente como universais são, de fato, da civilização, um modo da civilização se
particulares, e se referem à experiência da autodefinir. Com o movimento dos direitos civis
Europa moderna. O fato de termos aprendido esta nos Estados Unidos, começou a emergir uma
lição de dois modos diferentes — através de percepção similar, de que a escravidão e as
escritos com base filosófica sobre a Europa e últimas formas de opressão racial não eram erros
através das histórias dos não-europeus — nos nas margens da sociedade americana; elas
forçou a perguntar sobre o relacionamento entre tinham, de um modo fundamental, definido a
os dois grupos de desenvolvimento. A questão sociedade americana. O relacionamento entre
central que ainda não foi completamente raça e os principais valores igualitários
resolvida é o relacionamento entre a crise da americanos foi, nos termos de Gunnar Mydal,
representação histórica que surgiu quando os “um dilema americano”.16
historiadores começaram a ouvir as vozes até
então silenciadas, e a crise epistemológica mais O declínio dos impérios coloniais e o fim da
geral que afeta todas as ciências sociais e segregação oficial nos Estados Unidos trouxeram
humanas. um crescente número de não-brancos para o
estudo profissional da história mundial e para as
Para responder esta questão seria necessário audiências nas quais os historiadores a
escrever uma história geral, política e intelectual, discutiam. Nos anos de 1960, muitas das recentes
dos anos desde a Segunda Guerra Mundial. Esta nações africanas independentes fundaram suas
é a única possibilidade, no espaço de alguns próprias universidades. Os africanos que
parágrafos, para fazer sugestões preliminares. passaram a integrar os novos departamentos de
história tinham um grande interesse em
Nas décadas após 1945, a política racial tomou reconstruir a história autônoma dos africanos
uma nova e decisiva direção nos impérios dentro das fronteiras nacionais. Britânicos,
coloniais europeus e nos Estados Unidos. Os franceses ou historiadores americanos, que
conflitos que conduziram à descolonização — estavam olhando agora para as histórias
guerras na Indochina, Argélia e Quênia, e os nacionais de um modo muito diferente daquele
movimentos de independência menos violentos pelo qual haviam visto a história das colônias,
em inúmeros outros territórios — levaram os foram influenciados pela significativa presença de
intelectuais europeus a reconsiderar as colegas e estudantes africanos e afro-
qualidades e os valores que haviam sido definidos descendentes. O resultado deste desenvolvimento
como europeus. A perda do império aconteceu ao foi o crescimento de grupos de historiadores que
mesmo tempo em que alguns pensadores começaram a trabalhar seriamente na África, na
questionavam se historiadores e outros estudiosos Europa, e na América do Norte, para reconstruir
das ciências humanas eram capazes de descrever e registrar o passado africano.
o Outro, ou se fazendo isso eles estavam de fato
engajados naquilo que Emanuel Levinas chamou Existiram outras forças trabalhando nesta ampla
de “imperialismo ontológico”, no qual, a transformação intelectual — o aparecimento das
alteridade desaparece e se torna parte do mesmo mulheres na academia e o feminismo, e as
(Young 1990, p.13). mudanças radicais na história da ciência que
influenciaram o pensamento sobre a história
Alguns pensadores argumentaram que as como uma ciência. Contudo, duas das forças mais
descrições dos nativos, o Outro colonial, estavam centrais nasceram fora da política racial das
impregnadas de um discurso no qual os europeus décadas do pós-guerra: o senso de definição do
se autodefiniam. Nas palavras de Edward Said, lugar de subordinação do Outro nos discursos
“O Oriente foi... não o interlocutor da Europa, europeus, e a abertura para as histórias dos não-
mas seu outro silencioso” (Said 1985, p.17). 15 europeus como objeto legítimo da pesquisa
Como era possível definir a liberdade se não a histórica.
partir do contraste com o cativeiro, autonomia

12
O trabalho do especialista da reconstrução formatar eventos locais ou tomar parte em um
histórica serviu para revelar os povos sobre os processo local. Os casamentos Lemba ajudaram a
quais os antropólogos sempre escreveram e estabelecer redes de relacionamento que
insistir para que fossem colocados no interior de habilitavam o homem a participar no comércio
uma ampla narrativa histórica. As mudanças no ultramarino de escravo, de marfim, de cobre e
contexto requeriam uma mudança na maneira outros bens. Na Ibolândia, o oráculo Aro
pela qual os historiadores entendiam a agência. determinava, em muitos casos, o local para onde o
Os povos anteriormente mudos agora seriam transgressor deveria ser mandado no comércio
vistos como autores e atores. As culturas exóticas atlântico de escravos. Os homens nuers viviam
não eram novidades para a imaginação sob as regras coloniais e eles precisavam ajustar
acadêmica, mas o estilo da descrição era novo. O suas atividades à economia colonial de modo a
novo conhecimento rompeu com a longa tradição acumular riquezas que tornassem possível o
intelectual que tratou as culturas exóticas como sacrifico. Fazendo isto eles mudavam a
se elas existissem em um tempo diferente do resto configuração do controle colonial.
da humanidade — a idade da pedra, ou a era do
bronze, ou os povos da idade do ferro, vestígios do O iniciado Lemba, a mulher ibo e o homem nuer
passado que não existiam no mesmo mundo onde ajudaram a modelar os processos históricos de
os historiadores viviam e, portanto, não sujeitos grande alcance. O problema para os historiadores,
às forças políticas e econômicas (Fabian 1983). então, é como capturar todos estes diferentes
níveis ao mesmo tempo, como fazer justiça ao
Uma vez que os historiadores da África afastaram local, ao regional e ao internacional em uma
as culturas exóticas de seus “jardins culturais”, única descrição ou em uma única estrutura de
colocando-as em seu próprio mundo, este mundo análise.17
deixou de existir da mesma forma. Tratar os
africanos e mulheres, camponeses e escravos É melhor que se faça uma breve exploração da
como atores históricos colocou um desafio história do lugar dos africanos no comércio
fundamental para a compreensão histórica de um atlântico de escravos para entender alguns dos
modo geral. Desafiou a noção de que a história problemas da interpretação em múltiplos níveis.
contada de um ponto de vista restrito e de uma O comércio de escravos foi um conjunto de ações
população menos representativa tivesse um articuladas umas às outras em grande escala,
menor valor e universalidade. alcançando diferentes continentes. Os escravos
individualmente podem ter sido arrancados de
A mudança que isso representa para a história da suas casas no interior da Nigéria, ou de Angola,
África é fundamental. A experiência histórica dos ou de outra parte do continente africano. Se
africanos em seu próprio continente deve ser imaginarmos um irmão e uma irmã raptados
entendida no sentido cultural especifico e nos juntos, talvez o irmão se encontre caminhando em
termos de suas linguagens e motivações. O que direção à costa para ser embarcado em um navio,
significa, por exemplo, quando um jovem homem enquanto sua irmã parou ao longo do caminho,
dependente consegue uma “esposa” dentro da para servir arduamente como trabalhadora
associação de cura Lemba? Ela não era a esposa compulsória perto de sua casa. Uma vez tendo
com quem ele esperava construir um lar, cultivar atravessado o oceano, o irmão poderia forjar laços
junto e procriar; ela era a “esposa” com quem ele com os outros escravos, talvez da Costa do Ouro
estabeleceu uma ligação social somente no ou da Costa da Guiné. Ele provavelmente poderia
contexto de cura. Quais seriam as alternativas de trabalhar em uma plantação de açúcar
uma mulher igbo sem filhos quando ela busca o pertencente a um capitalista do norte da
oráculo de Aro para saber as causas de sua Inglaterra. Definido como um sistema espacial,
infertilidade? Quando os homens nuer recorrem nos termos de Braudel, um sistema escravista se
ao sacrifício de sangue? O que eles buscam ao estendeu para o Caribe, as Américas, a Europa e
realizar este sacrifício? Estas são questões que só também para o Oceano Índico.
podem ser respondidas por um historiador que
penetrou profundamente nas raízes de formas Dentro de um sistema imaginado, entendido
locais da experiência histórica. deste modo, houve muitas outras fronteiras: as
locais e as fronteiras dos subsistemas. Cada área
Tendo feito isto, o historiador não pode assumir local tinha seus próprios padrões de costumes e
que os africanos, tendo ações culturalmente língua, suas formas características de integração
fundamentadas, tenham apenas o poder de social. Pessoas falando umas com as outras nas

13
línguas locais, tornando-se noivas e noivos vinte cinco anos, e este conhecimento se estende
Lemba, ou consultando o oráculo Aro. Não às sociedades africanas.
obstante, eles também participaram de um
metasistema coordenado, de significados e ações Nossa compreensão sobre as conseqüências
atingindo todos os caminhos do interior da África demográficas do tráfico escravo cresceu ao mesmo
até as Américas e a Europa. tempo. Desde que Philip Curtin abriu o campo de
pesquisa com The Atlantic Slave Trade: A Census
Os historiadores têm trabalhado longamente para (1969), nosso conhecimento sobre os lugares de
situar os diversos e heterogêneos elementos do origem e de destino dos escravos tem ser tornado
comércio escravo dentro de uma narrativa clara mais substancial. (Ver Lovejoy 1983 e Inikori
do desdobramento histórico, movendo-se em uma 1982). Ralph Austen (1979) seguiu com um
única direção para formar o mundo tal como o importante estudo sobre o comércio trans-
conhecemos. Capitalism And Slavery, publicado saariano. Os historiadores passaram a estudar os
por Eric Willians em 1944, abriu um debate maiores efeitos do comércio escravo sobre as
contínuo sobre as relações entre a escravidão e a tendências demográficas de longo prazo na África
ascensão do capitalismo. Segundo Willians, a (Manning 1990). Estes foram influenciados pelas
escravidão no Caribe contribuiu para a formação diferenciações de gênero no uso dos escravos —
do capital na Grã-Bretanha. A industrialização da por exemplo, o tráfico atlântico comercializou
Europa, em sua visão, foi construída sobre as mais homens que mulheres, e os proprietários de
costas dos escravos nas Américas. Os debates escravos na África empregavam mais mulheres
sobre esses assuntos continuam, mas os que homens (Robertson e Klein 1983).
historiadores das últimas gerações têm também
estendido suas discussões sobre as inter-relações A história do comércio escravo fez surgir questões
econômicas para além do foco original, na Europa de especificidade cultural e processo histórico de
e nas Américas; eles estão se voltando para a forma extrema. Um homem que era vendido por
África atlântica. comerciantes na África central e que, enfim,
atravessasse o Atlântico para trabalhar em uma
Os historiadores se perguntam por que os plantation na Jamaica era claramente um
africanos foram escravizados e não os povos de escravo. Mas é incerto que seu proprietário
outros continentes. Patrick Manning (1990) e original na África conhecesse a palavra inglesa
Stefano Fenoaltea tentam responder a esta “slave” e é incerto também que o termo local que
questão ao perguntar se o trabalho africano era definia a forma de dependência da pessoa que
menos produtivo na África do que era na estava sob seu domínio, equivalesse precisamente
América. Poderia o tráfico ter acontecido como ao termo escravo. As maiores associações da
uma forma de aumentar a produtividade do escravidão na Inglaterra são com as plantations
trabalho? Este foi o motivo para, na maioria das escravas no sul dos Estados Unidos, no Caribe e
vezes, o baixo preço dos escravos em comparação na América Latina. Os historiadores continuam a
com o montante que poderiam produzir nas usar esta palavra para as estruturas dentro da
Américas? Claude Meillassoux (1986) argumenta África que parecem ser muito diferentes das
que os escravos eram baratos não por causa de plantations escravas.
sua improdutividade na África, mas porque eles
eram roubados. Os que utilizavam o trabalho Em Shambaai, nas montanhas ao norte da
escravo não precisavam pagar o custo da Tanzânia onde eu fiz pesquisas etnográficas e
alimentação da criança escrava ou cuidar das coletei narrativas orais, homens pobres que não
mães escravas; eles precisavam apenas pagar o podiam alimentar seus filhos durante a fome
custo de manutenção dos exércitos e de outras recorriam, nos tempos pré-coloniais, aos estoques
instituições políticas que tornavam tal roubo de comida do chefe. O homem que não podia
possível. Joseph Miller (1988) analisa a lógica alimentar sua filha podia deixá-la na corte do
econômica do tráfico escravo em cada um de seus chefe, onde ela comia e onde ela trabalhava. No
estágios, começando com os usos do capital final do período de fome o pai podia trazer cabras
europeu na transformação interna das sociedades para livrar sua filha do controle do chefe e ele
africanas para que elas pudessem fornecer podia levá-la para casa. A garota, enquanto
escravos, seguindo, a partir daí, os fluxos dos estava na corte, podia ser chamada de mtung’wa,
capitais na travessia do Atlântico. Nossa base de a mesma palavra utilizada para “escravo”, e ela
conhecimento sobre a economia do comércio também era chamada de mndee do chefe — a
escravo é qualitativamente melhor do que era há “garota do chefe”, uma designação ambígua que

14
em alguns casos pode ser traduzida como A mulher daquele período entendia que as
“escrava”. Um americano, provavelmente, não a chances de sua vida eram definidas por uma
veria como uma escrava, mas caso seu pai não constelação de relacionamentos de dependência.
retornasse para reclamar sua filha, ela Se suas negociações não fossem bem sucedidas e
continuaria na servidão (Feierman 1990, pp. ela fosse enviada para o comércio de escravos
53.64). intercontinental, ela experimentaria uma
drástica simplificação de suas possibilidades. E
No final dos anos 1960, eu entrevistei uma então apenas a condição de escrava seria
mulher cuja mãe, nascida em uma parte da África relevante. Os historiadores acham difícil
oriental distante de Shambaai, tinha sido uma caracterizar a condição da mulher no processo de
“escrava” (mtung’wa) na corte do chefe. Logo após se tornar escravizada. Se eles a tratam como
a conquista germânica, o chefe a vendeu para um escrava, pode parecer que estão negando a
homem comum [commoner] de quem ela se tornou importância das formas locais básicas de
esposa. Meus informantes descreveram sua mãe dependência; se eles a tratam a partir de sua
como uma mulher infeliz que tinha sido abusada condição em termos locais, eles estão negando a
por sua co-esposa e por seu marido uma vez que importância do processo intercontinental. Uma
ela não tinha uma família para defender seus explicação adequada deve, ao meu ver, apresentar
direitos. A outra mulher da casa, a co-esposa, as duas visões.
tinha um grau maior de proteção porque seu
marido pagou um dote [bridewealth] para os Os historiadores da África têm tentado fazer uma
parentes homens da família dela. Por este motivo clara escolha para um lado ou outro, e ao fazerem
a mulher podia recorrer a estes parentes quando isto têm distorcido os processos sociais dentro da
necessitasse. África. Este assunto veio à tona pela primeira vez
nos anos de 1960 em um debate entre Walter
No período em que tudo isto ocorreu, os árabes Rodney (1966), o grande estudioso guineense, e
proprietários de plantações na costa da Tanzânia John Fage (1969). Fage argumentou que a
e nas Ilhas de Zanzibar e Pemba não muito longe escravidão já existia muito antes do comércio
da costa, empregavam o trabalho escravo na escravo, que meramente mandou os escravos para
plantação de cravos, açúcar e grãos. Alguns anos mais longe de casa do que eles poderiam ter ido,
depois, a mulher sem família, mãe de minha mas isto não mudou seu status. Rodney, por sua
informante, poderia ter sido vendida como uma vez, dizia que a instituição escravista passou a
escrava de plantação, se o chefe assim tivesse existir a partir do tráfico. Hoje, muitos
escolhido. Em vez disso, ela se tornou uma esposa historiadores dizem que os africanos praticavam
sem plenos direitos. uma escravidão de parentesco [kinship slavery]
em períodos anteriores, e mudaram para as
Este caso ilustra que a escravidão era apenas formas comercializadas de escravidão com a vinda
uma entre outras condições relatadas. A mulher do tráfico.
em questão era uma esposa, não uma escrava,
mas uma esposa sem plenos direitos. Ela Suzanne Miers e Igor Kopytoff, em importante
facilmente poderia ter se tornado uma escrava de tentativa de criar uma interpretação cultural
plantação, e também poderia ter se tornado uma específica das formas de escravidão no continente
mulher com plenos direitos se ela tivesse se africano (1977), compararam a “escravo” (sempre
casado em casa e seus irmãos ou pai tivessem em aspas simples em seu ensaio) a uma pessoa
recebido um dote [bridewealth] como pagamento. que passou da fase liminar num rito de passagem.
Um observador social onisciente estaria apto para Em tal rito o iniciado é separado de uma condição
organizar estas diferentes condições dentro da social no primeiro estágio, então passa ao estágio
gama mais geral de condições que uma mulher de liminaridade [liminality] ou de transição, e
poderia ter, como um mapa social. Mas se tais finalmente é reintegrado na sociedade em uma
condições são vistas do ponto de vista da mulher nova condição social. Miers e Kopytoff
daquele período, para quem as ditas condições desenharam um panorama social ocupado por
eram possibilidades de escolha de vida, é claro numerosas linhagens. Às vezes os indivíduos se
que eles representariam um desafio: como desprendem de todas as linhagens, como
negociar de modo a se tornar uma mulher sem prisioneiros de guerra, ou no caso de uma criança
direitos ao invés de uma escrava, ou mais ainda, para quem não há comida o bastante em sua
se tornar uma mulher com plenos direitos. linhagem, e cujos direitos são transferidos para
outra linhagem. Estes são os “escravos”,

15
“estranhos em um novo grupo” (1977, p.15). Miers ser suplantada no interior da África pela
e Kopytoff não apresentam a “escravidão” como escravidão da plantation. As instituições que
uma condição permanente, mas uma fase entre o apareciam centrais para Miers e Kopytoff eram
estágio final de sua reincorporação total como um insignificantes para Lovejoy. Apenas um tipo de
ser socialmente pleno em sua nova linhagem. escravidão era historicamente importante em seu
ponto de vista, e esta era a escravidão no centro
De acordo com esta interpretação é um erro ver os do sistema de produção, como no caso das
“escravos” como bens ou propriedade, exceto no plantations. Ele deu grande ênfase no limitado
extremo final de um continnum de formas sociais. número de lugares e tempos na história africana:
Nem todos os “escravos” na África podiam ser no Sudão ocidental que tinha sua produção
vendidos. “Escravidão”, segundo Miers e Kopytoff, baseada no trabalho escravo, em uma época
precisa ser compreendida como um exemplo de antiga, no Sahel no século XIX, quando a
um sistema mais vasto no qual as linhagens população local estava buscando usos para os
transferem os direitos das pessoas. Um exemplo escravos que anteriormente eram vendidos no
óbvio disso foi o do dote [bridewealth], o comércio atlântico, e em um limitado número de
pagamento feito pela linhagem do marido para outros lugares.
adquirir direitos sobre o trabalho da mulher e sua
capacidade de gerar filhos. Meillassoux, em Anthropologie De L’Esclavage
(1986), se junta ao ataque à escravidão de
Kopytoff retorna a este assunto em um ensaio parentesco [kinship slavery], mas a partir de
sobre o fim da escravidão (1988) para argumentar outros fundamentos. Ele argumenta que a
que quando a escravidão terminou, depois da escravidão não pode ser interpretada como uma
conquista colonial, os escravos não extensão do parentesco ou um status de
experimentaram a alforria como “liberdade”. descendência, como Miers e Kipytoffy gostariam
Desde que a escravidão era uma condição que fosse, porque a escravidão está fora das
dependente em um continuum de condições de relações de parentesco; de fato ela é “anti-
subordinação, cada um dos antigos escravos parentesco”. Os maiores estudiosos da escravidão
estava interessado em alcançar uma condição enfatizam a condição do escravo como a de um
diferente e melhor de subordinação — não a estranho [outsider], sem direitos públicos como
“liberdade”. pessoa. O escravo deve ser representado no
mundo público pelo seu senhor. O escravo não
Numerosos historiadores africanos submeteram o pode negociar uma posição em um amplo sistema
argumento de Miers e Kopytoffo a uma intensa de parentesco em seu próprio direito. Orlando
crítica. A maior reclamação era a de que se Patterson (1982) descreveu esta condição como
baseava numa definição espacial que igualava as “alienação natal”; Moses Finley (1968) a viu como
fronteiras das instituições históricas às das central para a definição da condição do escravo.
fronteiras dos continentes: a “escravidão” africana
existiu na África e a escravidão americana nas Esta discussão recorda o importante, porém não
Américas. Isto não era assim. As plantations publicado trabalho de Franz Steiner, como
escravistas de modelo americano foram relatado por Paul Bohannan. Segundo Bohannan,
transportadas para a África nos últimos dias do
comércio escravo. Frederick Cooper (1977) Pode-se dizer que um relacionamento servil
escreveu um excelente livro sobre a plantation existe quando uma pessoa tem direitos
escravista na África oriental, em um legais sobre uma outra, se estes direitos são
mantidos com a exclusão da outra pessoa e
estabelecimento onde os senhores dos escravos
não derivam de qualquer obrigação
eram árabes que utilizavam as leis islâmicas para contratual ou de parentesco. Os direitos do
regular as relações entre escravos e senhores. 18 senhor sobre o escravo são direitos legais,
Paul Lovejoy (1979) também mostrou que as não derivados de parentesco ou de contrato,
plantations escravistas passaram a fazer parte da que excluem todas as outras pessoas de
cena africana, neste caso no norte da Nigéria, com direitos similares (1963, p.179).
os africanos sendo os proprietários dos escravos.
Bohannan aceita a idéia de que a escravidão é
Para Lovejoy (1983), a escravidão de linhagem apenas um entre muitos modos através dos quais
[kinship slavery] descrita por Miers e Koptoff era uma pessoa pode ter seus direitos tomados por
limitada não somente no espaço, mas também no uma outra, mas mostra como este modo é
tempo. Ela era uma forma inicial e diferente dos outros, em três fundamentos.
crescentemente marginal de escravidão que veio a Primeiro, apenas um único indivíduo, o senhor,

16
detém direitos sobre o escravo. Dentro do domínio eram feitas através de um complexo processo de
do parentesco é possível que duas pessoas possam negociação, no qual, os fatores de parentesco
dividir os direitos sobre um único indivíduo, como tinham um papel.
no caso de uma mulher casada em muitas
sociedades africanas sujeita a ter os direitos Algumas das mais importantes zonas de origem
tomados por seu esposo ou por seu pai e irmãos. dos escravos estão fora do alcance das análises de
No caso do escravo, apenas o mestre detém Meillassoux porque elas não utilizavam o
direitos sobre ele. Segundo, a pessoa que detém os trabalho escravo de um modo sistemático. A
direitos não pode fazê-lo sob uma base contratual. Ibolândia, por exemplo, era uma grande fonte de
Quando uma equipe esportiva americana detém escravos para as Américas, e ainda sim o trabalho
os direitos sobre um jogador (direitos que escravo era insignificante em muitas partes desta
permitem sua venda), isto só pode ser feito sobre região; formas anteriores de organização
bases contratuais. Finalmente, os direitos sobre permaneceram (Northrup 1981). Regiões
um escravo não derivam de qualquer forma de produtoras de escravos não necessariamente
obrigações de parentesco. precisavam basear suas economias em trabalho
escravo. Estas regiões eram capazes de produzir
Meillassoux vai mais longe e argumenta que é escravos para o mercando internacional através
melhor não definir a escravidão em termos de um processo socialmente negociado, embora a
direitos legais sobre uma pessoa; que o mais maior parte dos dependentes nas sociedades
importante é o contexto institucional da locais sustentem condições sociais definidas em
escravidão em meio ao mercado de escravos e às termo de parentesco e descendência.
guerras de captura. Escravidão, mercado e
violência estavam necessariamente conectados Para ver porque isto foi assim, gostaria de olhar
um ao outro em um único vínculo. Isto conduz a brevemente para a vida de uma única “escrava”,
um segundo sentido, a compreensão da escravidão contada a nós em suas próprias palavras e
como “anti-parentesco”: a escravidão não estava apresentada aos historiadores por Márcia Wright
conectada com reprodução. O trabalho de escravo (1975, 1884). Esta é Narwimba, uma mulher que
era barato nas plantações americanas (ou nas viveu na região entre o Lago Tanganica e o Lago
africanas) porque os proprietários não pagavam Niasa, perto da fronteira do que é hoje a
os custos da criação de crianças. O trabalho Tanzânia e a Zâmbia. O período da história de
escravo era suprido e não reproduzido; ele era Narwimba, década de 80 e o começo da década de
adquirido, em última instância, por atos de 90 do século XIX, foi um tempo de grande
violência, por furto. O roubo baseado em um agitação na região, um tempo no qual escravos
sistema espacial incluía as sociedades que eram capturados e utilizados localmente, e no
usavam escravos [slave-using societies], a qual alguns eram enviados para plantações da
organização do mercado, e as sociedades das costa leste africana.
quais os escravos eram roubados.
Este foi um período de grande dificuldade para
Uma vez que a produção barata e violenta de Narwimba, começando com a morte de seu esposo
força de trabalho era utilizada para tudo, o em 1880, aproximadamente. Neste momento de
processo de reintegração dos escravos nas sua vida Narwimba foi feita cativa por soldados
relações de parentesco (um processo que está no de um chefe estrangeiro sendo oferecida à venda
centro da análise de Miers e Kopytoff) não era para mercadores de escravos. Ela escapou, mas
relevante. Ao dizer isto, Meillassoux subestima a viveu tempo bastante para ver sua neta ser feita
importância das formas de dependência escrava cativa e depois libertada em duas ocasiões
[slavelike forms of dependency]. Ele faz isso diferentes. Narwimba viveu durante a transição
porque focaliza exclusivamente na violenta para o governo colonial e, nos últimos tempos,
apropriação; ele não explora a possibilidade de passou a viver com seu filho que tinha sido
que uma sutil negociação pode levar à convertido ao Cristianismo pelos missionários.
escravização. Em sua visão, as zonas de origem
dos escravos não os utilizavam na produção, e, Este período foi de intenso perigo e luta para
portanto, não tinham escravos para oferecer para Narwimba, grande parte dos quais promovidos
venda, exceto os cativos obtidos por salteadores pelo violento roubo de pessoas destinadas ao
que atacavam de forma aleatória. Meillassoux comércio escravo. Todas as estratégias de
não considera a possibilidade de que as escolhas Narwimba mostram o quão importante ela
dos escravos dentro de sociedades produtoras pensava ser a sua marginalização dos termos de
parentesco, e buscar uma ligação com um protetor

17
masculino, preferencialmente em um (mais a frente na história) como a mãe de uma
relacionamento estabelecido por um casamento filha adulta.
com dote [bridewealth]. Podemos ver isso em
diversos momentos importantes. Depois da morte No tempo de Narwimba, a escravização por meio
do esposo de Narwimba, um dos parentes de seu de um roubo violento foi se tornado cada vez mais
marido a visitou e decidiu se casar com ela. freqüente. Neste ponto Meillassoux está correto.
Narwimba, em seu relato disse: “e eu, de minha E se tornava freqüente dentro de um contexto
parte, implorei a ele para me tomar com sua onde havia espaço de manobra para Narwimba.
esposa, então assim nós poderíamos estar Ela pôde se proteger por um longo tempo a partir
protegidas (Wright 1984, p.2). Sem a proteção da negociação de um espaço dentro de um sistema
dele, ela ficaria muito mais vulnerável. A filha de de parentesco de dominação masculina.
Narwimba formou uma residência com um
homem que não pagou o dote [bridewealth]. A escravidão pode não ter sido compatível com o
Talvez, ela tenha achado que sua ligação parentesco, mas ela existiu dentro de um contexto
irregular fosse necessária devido a debilidade da no qual as alternativas à escravização eram
posição social de sua mãe. De qualquer modo, a alternativas de parentesco, onde o caráter da
filha nascida desta união pertencia a casa do captura e comercialização do escravo era
chefe. Seu pai não tinha direitos sobre ela, uma determinado pelas relações das redes de
vez que, não pagou o dote [bridewealth] para a parentesco. O caráter do relacionamento entre
sua mãe. O resultado disso foi que a neta de senhor e escravo, neste caso, foi definido pela
Narwimba, Musamarire, era um membro existência de outras formas de dependência
vulnerável da casa do chefe. Em uma ocasião, concomitantes a escravidão. A existência de
quando a diplomacia requisitou que o chefe desse parentescos e gêneros alternativos à escravidão
uma pessoa para manter a paz, ele se propôs a moldou a luta entre Narwimba e os potenciais
dar Musamarire. Ao invés disso, Narwimba fugiu senhores de escravo que poderiam tomar o
com ela. Em outra ocasião a neta foi capturada controle dela ou de sua neta.19
novamente, em uma disputa sobre uma dívida.
O caso de Narwimba mostra, além disso, que na
Nota-se aqui a mudança no ponto de vista. Miers que na medida em que as tradições locais de
e Kopytoff definem as linhagens como agentes de dependência tiveram efeito sobre a plantation
reintegração das pessoas marginais. No meu escrava africana, a introdução da escravidão teve
entender, as linhagens não agem, são as pessoas um profundo impacto sobre outras formas de
que atuam. Nos anos que se passaram desde o dependência. Narwimba estava claramente
livro de Miers e Kopytoff surgiram críticas determinada a aceitar a possibilidade da extrema
radicais sobre o conceito de linhagem como agente e relativamente brutal subordinação no
(Guyer 1981; Kuper 1982). Se os intelectuais casamento porque este, mesmo sob estas
tratavam a linhagem como uma unidade condições, era uma proteção contra a escravidão.
funcional, eles se esquivavam das diferenças A capacidade de uma mulher de resistir a um
entre direitos e obrigações, privilégios e deveres marido violento era, sem dúvida, superior na
dos diferentes membros da linhagem. Ações que geração da mãe de Narwimba, antes do comércio
servem ao interesse do homem mais velho em escravo representar um extremo perigo. Para
uma linhagem podem prejudicar os interesses de compreender o comércio escravo neste contexto
uma mulher, ou de um jovem homem. Direitos de particular, precisamos compreender as tradições
propriedade mantidos por uma linhagem como locais de dependência, o lugar destas na
um grupo não, necessariamente, servem homens configuração das dinâmicas internas da
e mulheres, ou velhas e jovens mulheres, escravidão, e então o lugar da escravidão na
igualmente. No presente caso, os interesses, configuração dos padrões locais de parentesco.
particularmente de base masculina, podem,
Nos anos de 1950, décadas depois da morte de
hipoteticamente, ter servido para deixar a neta de
Narwimba, debates em Shambaai (não muito
Narwimba ir. A avó teve que agir em um
longe da costa leste africana) exploraram o
ambiente difícil para concretizar os eventos. Seus
significado da escravidão e da liberdade. Julius
principais objetivos eram encontrar uma proteção
Nyerere compareceu a uma reunião local para
masculina e resgatar aqueles a quem amava da
requerer que à Tanganica fosse dado Uhuru — a
escravidão. Ela não se guiou pela preocupação da
Liberdade. Esta é uma palavra que sempre
integridade da linhagem, mas pela necessidade de
aparece nos textos históricos em swahili das
encontrar uma posição segura como mulher ou
escolas coloniais. Os livros escolares ensinavam

18
que os africanos tinham praticado a escravidão e história de Narwimba. Suas histórias políticas
que o governo colonial trouxe o uhuru. Nyerere foram elaboradas segundo a compreensão de que
lembrava aos povos locais esta associação para a integridade do Kyungu (do chefe) e a saúde
argumentar que o governo colonial era uma nova social moldam as condições básicas de harmonia e
forma de escravidão, e que o uhuru não foi em de prosperidade das terras que lhe pertence.
nenhum momento algo que pudesse ser dado ao Havia uma associação entre a saúde física do
povo pelos seus governantes. Que teria que ser Kyungu e o bem-estar de seus domínios. Se uma
conquistado por eles mesmos. Os camponeses que gota de seu sangue caísse no chão era sinal de que
escutaram isto se lembraram da “escravidão” nos toda sua terra poderia sofrer com fome e doenças,
termos da linhagem, como a condição de pessoas a menos que ele fosse morto. Havia também uma
marginais (como Narwimba) sujeitas ao controle associação entre o incontestado domínio sexual do
arbitrário. Os camponeses locais, homens e Kyungu dentro de sua casa e o vigor de seu
mulheres, começaram a argumentar que a domínio político. De acordo com algumas
“escravidão” ainda sobrevivia não somente no tradições, nas primeiras gerações, a maioria dos
controle exercido pelos britânicos sobre os filhos do Kyungu foram mortos porque o povo
africanos, como Nyerere tinha dito, mas também ngonde “temia que, se o Kyungu tivesse muitos
no controle exercido pelos chefes sobre seus filhos [vivos], eles poderiam seduzir as esposas de
súditos, pelos homens idosos sobre os jovens seu pai trazendo doença para Kyungu e seu país”
homens, e pelos homens sobre as mulheres. Eles (Wilson 1939, p.13). Na comunidade ngonde,
pediam que uhuru, agora entendido como assim como em outras partes daquela região, o
“manumissão”, fosse empregado para subverter adultério praticado com a mulher do chefe era um
todas as formas centrais de hierarquia social ato de guerra ou de alta traição. 20 Entre os
(Feierman 1990, pp.212-14; e 219-20). nobres, também, encontra-se essa expressão na
prática do casamento. Um chefe pagava e recebia
Ao descrever a luta de Narwimba como tendo sido dotes [bridewealth] mais altos que um indivíduo
impulsionada pelo comércio internacional de comum [commoner].
escravos, mas enraizada nas formas sociais locais,
não se rompe inteiramente com a estrutura da Uma pessoa local, tentando dar sentido a vida de
narrativa européia. O problema, claro, é que Narwimba, pode bem ter entendido isto dentro do
neste relato as forças centrais que transformaram contexto do casamento como uma gama de formas
a vida de Narwimba têm origem na cena que expressam os graus do domínio político.
internacional e na história do capitalismo. Isto Narwimba e seus parentes mais próximos, por
não é como os contemporâneos de Narwimba na muito de suas vidas, teriam praticado formas de
África central enxergavam as coisas. Eles casamento, as quais eram muito humildes quando
poderiam ter posto os eventos da vida dela dentro vistas dentro de uma ampla hierarquia. O
de um contexto de narrativas de grupos tamanho do pagamento do dote [bridewealth]
lingüísticos individuais, ou narrativas de expressava a classe e a filha de Narwimba se
distribuição geral entre regiões dos povos falantes casou completamente sem dote [bridewealth].
de bantu. Muito provavelmente estas narrativas
não teriam atribuído um papel importante ao Muitos historiadores universitários poderiam
comércio internacional e a uma economia focar contextos completamente diferentes da vida
centrada na Europa. de Narwimba, como temos visto. Eles poderiam
prestar significativa atenção à história do
Quando criança, Narwimba fugiu com sua família comércio. Deste ponto de vista, o evento mais
dos ataques dos soldados de Ngoni e encontrou significativo seria a abertura do comércio ngonde
refúgio com o Kyungu (o chefe principal) da para o Oceano Índico. Esta mudança importante
comunidade Ngonde. Foi o Kyungu que surgiu como resultado da reorientação do
determinou que um parente de seu esposo morto comércio de marfim de Kyungu para o leste
se casasse com ela. As narrativas ngonde das (atravessando o Lago Malawi). A mudança para o
terras de Kyungu (ou as ngoni de outras regiões) leste estava associada com a mudança
oferecem aos historiadores alternativas para as fundamental na constituição política, em torno do
narrativas eurocêntricas, alternativas próximas crescimento da autoridade secular. As próprias
da vida e da linguagem de Narwimba. narrativas ngonde, contudo, não indicam um
lugar central para a história do comércio como
As histórias ngonde permaneceram verdadeiras fazem os historiadores universitários. Godfrey
em seus próprios princípios na construção da Wilson, que estudou estas tradições orais nos

19
anos da década de 1930, queixa-se que tais dentro da política regional de casamentos e
tradições só lhe permitiram vislumbrar as trocas dependência que eles utilizavam para a
comerciais importantes (Wilson 1939, p.18). Em construção de novas formas de Estado.21
vez disso, as tradições relatadas pelos homens
mais velhos ngonde descreviam mudanças O estudo da história africana nos leva para além
constitucionais com sendo ocasionadas por das formas de representação histórica, nas quais,
casamentos políticos cruciais (Wilson 1939, pp.12- a energia que conduz a narrativa tem sua origem
18). De acordo com a própria narrativa do na Europa, enquanto a história africana (ou
Kyungu, como contada a Wilson, a mudança em latino-americana) fornece uma cor local,
direção ao leste no comércio ocorreu quando um estabelecendo um cenário pitoresco para o drama
dos primeiros Kyungu “encontrou o lago central. Não há outro modo de se entender a
atravessando-o até chegar em Mwela [a terra dos história de Narwimba sem que se penetre
canoeiros Mwela] onde casou-se com uma mulher profundamente nas raízes da longa história do
mapunda” (Wilson 1939, p.18). desenvolvimento das formas sociais na África. De
que modo os povos estabeleciam relações de
Então, os historiadores ngonde, podem facilmente dependência? Como a autoridade era instituída?
ter entendido a história de Narwimba como uma Quais eram os idiomas de poder nas histórias
parte menor e humilde da ampla história na qual regionais da África? Tudo o que sabemos sobre o
a classe e a mudança política são formadas por estudo da história nos diz que não podemos
casamentos. Para estes historiadores o comércio compreender algo tão complexo quanto os idiomas
atlântico de escravos teria surgido para ser de poder sem estudar suas variações no espaço e
distante, e, de fato, completamente irrelevante. suas histórias no tempo. As narrativas africanas
Os demais historiadores que escolheram se devem carregar seus pesos totais.
debruçar sobre o comércio atlântico de escravo ou
sobre o surgimento do capitalismo precisam A busca por narrativas africanas revela que elas
explicar porque este contexto é privilegiado, são múltiplas. E poderia ser um engano dar um
porque a vida de Narwimba deve ser explicada lugar privilegiado para as narrativas reais ngoni,
deste modo e não em relação à história pessoal ou a narrativa de Kyungu, ou para aquelas dos
dos Kyungus e seus casamentos. nobres ngonde. Não existe razão para que elas
tenham grande peso, ou sejam privilegiadas em
Os historiadores europeus ou americanos bem detrimento dos relatos de Narwimba; não há
poderiam argumentar que a história ngonde é motivos para que as palavras rituais de Kyungu
local e a história do capitalismo é global — que se tenham mais valor que as palavras rituais de
queremos compreender os eventos segundo uma uma súdita.
larga escala devemos associá-los a narrativa
européia. De fato, os processos históricos Cada uma das diversas narrativas africanas
africanos não são tão minuciosamente localizados. carrega as marcas de sua própria história,
Algumas interelações entre gênero, descendência incluindo a história do relacionamento com a
e classe estão amplamente distribuídas, e elas Europa. Em Ruanda, por exemplo, Joseph
podem ser estudadas utilizando ferramentas Rwabukumba e Aléxis Kagame, intelectuais
histórico-lingüísticas e histórico-etnográficas ruandenses, tem escrito histórias do reino a
comparativas. Alguns dos eventos da história da partir de uma extensa coleção de tradições orais
vida de Narwimba estavam encaixados nos locais. Eles pegam variedades do conhecimento
movimentos históricos de enorme extensão. Bem local que eram feitos para ser separados e
no início da história, por exemplo, ocorreu o secretos — ubwiiru como um código ritual
ataque ngoni que expropriou sua família. Os dinástico, por exemplo — e fazem um registro
ngoni, naquele tempo, eram a nova presença na escrito deles comparando-os com outras tradições
sociedade centro africana. Cada estado ngoni era para, desse modo, construir uma narrativa geral.
organizado por um grupo dominante, os quais, se Os historiadores orais ruandenses do século XIX
originaram no Sul da África, a mais de mil milhas tinham métodos para fazer comparações críticas
de distância, nas guerras entorno da criação do das tradições, mas elas não eram as mesmas
reino Zulu. Os pequenos bandos de homens técnicas de Kagame. Tampouco as histórias orais
armados ngoni tomaram esposas e crianças como teriam encontrado um espaço fácil, como fez
cativos para construir Estados de rápido Kagame, dentro de um quadro geral do
desenvolvimento [snowball states]. Estes conhecimento histórico criado entre os
também, assim como os Kyungu, operavam acadêmicos de fora de Ruanda. 22 Kagame e

20
Rwabukumba são historiadores ruandenses,
utilizando materiais ruandenses, escrevendo foram considerados, naquele momento, como estudantes de
dentro de um gênero criado na Europa. história da África.
2 McNeill 1963, pp.242-43. McNeill continuou seus estudos

seguindo novas direções depois de The Rise of the West.


A tarefa de encontrar narrativas puramente Plagues and Peoples (1976) não reduz toda a história mundial
africanas não é fácil se voltarmos nossa atenção ao destino de algumas civilizações centrais. The Human
dos intelectuais universitários para os Condition (1980) recapitula alguns dos principais temas do
camponeses. Em Ruanda sob o controle dos belgas livro de 1963, mas com importantes mudanças de ênfase se
afastando do unidirecionamento. Em Polyethnicity and
e Tanganica sob o controle inglês, as autoridades
National Unity in World History (1985), McNeill deixa claro
coloniais governaram através dos chefes africanos que os centros dos grandes impérios atraíram pessoas de uma
somente para construir sobre o que, nas palavras ampla diversidade de origens. “O resultado... foi uma mistura
de um governador britânico, era a “lealdade e étnica e um pluralismo em grande escala” (McNeill, 1985,
p.15).
‘livre respeito’” dos súditos pelos seus chefes. O 3 Uma nova pesquisa sobre o primeiro pastorialismo é descrita
efeito foi lançar os debates dos camponeses sobre por Wendorf, Close, e Schild 1987, e Bower 1991, pp.56-57.
a política colonial nos termos das antigas formas Sobre as origens da agricultura, ver Harlan, DeWet, e Stemler
do discurso político. Quando as histórias orais das 1976, e Clark e Brandt 1984.
4 Sobre as origens indígenas nos reinos dos lagos do oriente
dinastias receberam as marcas da dominação africano, ver Schmidt 1978; Tantala 1989; Schoenburn 1990;
colonial, historiadores orais dissidentes Berger 1981; Karugire 1971; e Centre de Civilisation
responderam com buscas fora das histórias anti- Burundaise 1981. Reefe (1981) escreveu sobre o Império Luba.
dinásticas em seu próprio passado (no caso de Sobre as origens indígenas do Zimbábue, ver Garlake 1973 e
1978. Henrika Kuklick (1991) descreve a interação das
Tanganica) histórias de regicídios nos livros de políticas raciais e das pesquisas arqueológicas que levaram às
história Inglesa (Feierman 1990; Newbury 1988). primeiras interpretações do Zimbábue com estranhos à África.
Martin Hall (1987) fornece uma síntese geral do conhecimento
Estamos então deixados com uma questão ampla, arqueológico sobre o relacionamento entre a organização
com narrativas históricas de origem africana que política e a economia para as regiões meridionais da África.
Graham Connah (1987) faz o mesmo para toda a África. Para
precisam receber o devido peso ao lado das uma história geral, ver Curtin, Feierman, Thompson e
narrativas européias. Temos visto, entretanto, Vansina 1978.
que este não é um processo simples de inclusão de 5 Sobre os Annales, ver Burke 1990; Stoianovich 1976;
mais um conjunto de conhecimentos para nosso Chartier 1988.
6 Eu não estou sugerindo que todos os africanistas leram
fundo, do aumento do equilíbrio no relato. Os Braudel. Esta influência pode ter ocorrido indiretamente,
historiadores precisam escutar as vozes africanas quando os africanistas liam e discutiam o trabalho dos seus
com o mesmo impulso com que buscam ouvir as colegas europeus.
7 Braudel não cita muitos trabalhos sobre a África escritos por
vozes que foram silenciadas dentro da historia
intelectuais modernos. Mais de um terço das citações sobre a
européia. Uma vez que é tão difícil satisfazer-se África neste volume se referem a um trabalho de 1728,
em ouvir uma única voz africana autoritária editado por Father Labat que sequer visitou o continente
deixando outras silenciadas, ou ler textos africano; as descrições da África são de André Brue que viveu
africanos sem reconhecer marcas de poder, ou no Senegal no final do século XVII e início do século XVIII
(Nouvelle Biographie Générale, vol.28 [Paris: Frimin Didot
sem questionar a autoridade do historiador Frères, 1859], pp.333-35; Dictionnaire de Biographie
(africano, americano, europeu ou asiático) que Française, vol. 7 [Paris: Libraire Letouzey, 1956], p.473).
presume para representar a história. Os 8 A literatura sobre esses assuntos inclui centenas de livros e

historiadores não têm escolha senão dar espaço artigos. Para uma discussão sobre as raízes africanas dos
notáveis em um centro de saber islâmico, ver Saad 1983. Para
na história mundial para a história africana, mas interessantes estudos de casos locais ver Roberts 1987 e
ao ter feito isto, os historiadores descobriram que Bathily 1989. Um interessante estudo de caso regional nos é
os seus problemas apenas começaram. dado por Last 1985. Para um quadro geral da história
econômica de África ocidental, ver Hopkins 1973; para as
últimas literaturas sobre esse assunto, ver Austen 1987. A
1 A afirmação sobre a inexistência de história africana em
economia local baseada em formas islâmicas de atuação são
discutidas em Hanson 1990.
Berkeley é baseada no Bulletin: General Catalogue... (ver 9 Sobre a organização e desenvolvimento do comércio pré-
Califórnia, Universidade da, 1955). A afirmação sobre a colonial, ver Northrup 1978, e Ukwu 1967. Northrup é
Universidade de Chicago é baseada no Announcements: também uma fonte sobre a densidade populacional (1978,
Graduate Programs... (ver Chicago, Universidade de, 1956). A p.13). Para uma interpretação sofisticada da organização
afirmação sobre Columbia é baseada nas memórias de minha social e cultural Ibo do período pré-colonial, ver Afigbo 1981.
pesquisa sobre os historiadores africanos em 1960, quando eu Sobre a exportação do óleo de palma verificar Dike 1956.
estava na graduação. A afirmação sobre Princeton é baseada Sobre o início do comércio de longa distância, ver Shaw 1970 e
em comunicação pessoal de Robert Tignor. A observação sobre 1975. A literatura sobre a Ibolândia é enorme, a região é
os chefes de departamento é descrita em Perkins e Snell 1962, praticamente um sub-campo separado da história africana.
p.32. É provável que houvesse um número de graduandos Para alguns dos importantes eventos do século XX, ver Susan
trabalhando com a história do Egito e do Magrebe que não Martin 1988.

21
10 Janzen 1982, pp.28 e 32; alguns dos trabalhos mais obter a capacidade para a reprodução social. A forma do atual
importantes da reconstrução da história do comércio foram sistema escravo emerge deste conflito.
feitos por Phyllis Martin 1972. 20 Wilson descreve a classificação dos pagamentos dos dotes
11 Wolf 1982, p.100. Para uma excelente crítica desta parte do [bridewealth] (1939, p.44). Sobre o adultério com a mulher do
trabalho de Wolf, ver Asad 1987. chefe como um ato de guerra entre os bemba, ver Roberts
12 Michael Taussig diz algo parecido em um ensaio (1989), mas 1973, pp.41-42, 107n., 122, 140, 143, 167, 237, 250 e 263.
seu extravagante e difuso estilo literário, algumas vezes, 21 Sobre os ngoni nesta região ver Barnes 1954; Fraser 1970;

dificulta a compreensão do que ele diz. O próprio Taussig Elmslie 1970. Spear 1969 nos oferece um guia de fontes.
parece, por vezes, cair dentro de uma compreensão da cultura 22 Kagane 1972, 1975, e 1981; Rwabukumba e Mudandagizi

capitalista na qual todas as forma locais são, porém, 1974. Ver também Vansina 1962; Coupez e Kamanzi 1962; e
expressções de caracteríticas universais. Ele escreve sobre o Vansina 1985, pp. 38 e 86.
“acoplamento e o desacoplamente da reificação como
fetichização” enquanto “a base da cultura capitalista” —
claramente um argumento totalizante (1989, p.9). Referências:
13 A história oral, como uma prática entre os africanistas, teve

significante influência entre os historiadores europeus (ver


Stock 1983; Clanchy 1979). É importante notar, entretanto, Para as referências consulte versão original do
que o africanista que teve maior influência entre eles foi Jack artigo.
Goody, que não é um historiador, e que não utilizou a tradição
oral para o propósito da reconstrução da critica histórica. Não
africanistas leram Goody porque é possível compreender seu
argumento sem ter que possuir um substantivo conhecimento
sobre história da África.
14 Beinart e Bundy 1987; Berry 1985; Chanock 1985; Cohen e

Atieno-Odhiambo 1989; Cooper 1987; Coquery-Vidrovitch


1988; Crummey 1986; Elphick 1977; Hay e Wright 1982; Iliffe
1979; Kanogo 1987; Karp 1978; Kea 1986; Kimambo 1991;
Kitching 1980; Lan 1985; Lemarchand 1970; Mandala 1990;
Mbembe 1991; McCann 1987; Moore 1986; Newbury 1988;
Packard 1989; Prins 1980; Ranger 1985b; Robertson 1984;
Schmidt 1992; Strobel 1979; Vail 1980; Van Onselen 1982;
Vincent 1981; Watts 1983; White 1990.
15 Sobre o relacionamento entre a crise intelectual geral e o

fim do império, ver Robert Young, White Mythologies: Writing


History and the West (1990), que argumenta que a crise
intelectual francesa foi precipitada pela perda da Argélia e
não pelos eventos de 1968. Sobre o lugar do Outro, ver Fabian
1983; Mudimbe 1988; e Said 1979. Para alguma discussão
sobre etnocentrismo, história e categorias intelectuais, ver
Lévi-Strauss 1962, pp.324-60; Derrida 1978, pp.278-93;
Derrida 1974, pp.244-45. Foucault, com certeza, encontrou o
outro dentro da sociedade européia, em seu estudo sobre a
loucura.
16 Para uma análise elegante deste assunto nos escritos de um

novelista americano branco, ver Morrison 1972.


17 Para dois dos muitos exemplos possíveis de bons trabalhos

históricos que visam dar igual peso, tanto para o nível local,
quanto para o regional, ver Harms 1981 e Ewald 1990.
18 Uma década depois, Abdul Sheriff (1987) colocou estas

plantations mais firmemente na história da economia da


região.
19 Glassman (1991, 1988) fez uma argumentação similar sobre

o setor de plantation na costa lesta africana — a região para a


qual Narwimba teria sido levada se ela tivesse sido vendida.
Ele mostra que não há uma única categoria de “escravo”, mas
múltiplos status dependentes, incluindo escravos artesãos
urbanos e escravos de caravanas de comércio, com diferentes
níveis de capacidade de se comprometer com a reprodução
social. O conflito entre escravos e mestres envolvia
manipulação de possibilidades alternativas. Diferente da
escravidão caribenha, na qual os escravos não
compartilhavam uma experiência comum com seus senhores,
as formas africanas de escravidão originaram-se fora dos
primeiros sistemas de dependência pessoal. Senhores que
desejavam aumentar a produção econômica utilizando o
trabalho escravo tentavam reduzir as oportunidades escravas
para reprodução social; os escravos por sua vez resistiam
através da manipulação de velhas ideologias na tentativa de

22

Você também pode gostar