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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE


ESCOLA DE MÚSICA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM MÚSICA

Kleber da Silva Moreira

“O coco do meu pai”:


Transmissão musical no grupo Coco de roda do Mestre Severino

NATAL-RN

2016

Kleber da Silva Moreira


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“O coco do meu pai”:


Transmissão musical no grupo Coco de Roda do Mestre Severino

Dissertação apresentada ao
Programa de Pós-Graduação em
Música da Universidade Federal do
Rio Grande do Norte, na linha de
pesquisa - Processos e Dimensões
da Formação em Música. Área de
estudo: Educação Musical, como
requisito parcial para a obtenção do
título de Mestre em Música.

Orientador: Prof. Dr. Agostinho Jorge


de Lima.

NATAL-RN

2016
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RESUMO

O presente trabalho trata da transmissão de conhecimento musical no grupo Coco de


Roda do Mestre Severino. Abordo aqui os processos e estratégias utilizadas no grupo
para a apreensão e difusão da brincadeira do coco no contexto das culturas populares de
tradição oral. O grupo apresenta características peculiares acerca de sua formação, em
que os integrantes da brincadeira não fazem parte do seio familiar do Mestre nem fazem
parte de sua comunidade. Para realizar essa pesquisa em um contexto tão complexo,
utilizo o método do estudo de caso, assim como as técnicas provenientes da etnografia,
como a observação participante, entrevistas semiestruturadas e não estruturadas,
conversas informais, transcrições de áudios e vídeos de ensaios e apresentações, assim
como do processo de gravação do segundo CD do grupo. Balizo esta pesquisa com os
pressupostos teóricos da antropologia, sociologia, etnomusicologia e educação musical,
a fim de discutir os conceitos referentes à transmissão, cultura, cultura popular, coco,
tradição e memória.

Palavras chaves: transmissão, coco, memória, Mestre Severino.

ABSTRACT

This paper deals with the musical knowledge transmission in the Coco de Roda Group
Master Severino. Discuss here the processes and strategies used in the group for the
seizure and dissemination of coconut play in the context of the unique cultures of oral
tradition. The group has unique characteristics about their training, in which the
members play not part of the family within the Master or form part of your community.
To carry out this research in a context as complex, I use the method of ethnographic
case study, as well as techniques from ethnography, such as participant observation,
semi-structured interviews and unstructured, informal conversations, audio transcripts
and videos of rehearsals and performances as well as the recording of the second group
CD process. Balizo this research with the theoretical assumptions of anthropology,
sociology, ethnomusicology and music education in order to discuss the concepts
related to the transmission, culture, popular culture, coconut, tradition and memory.

Key words: Transmission, coco, Memory, Master Severino.


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LISTA DE FOTOS

Foto 1 - zambê, lata e chama....................................................................................................................16


Foto 2 - Engenho Lagoa do Fumo............................................................................................................55
Foto 3 - Congo de Calçola da Vila de Ponta negra...................................................................................58
Foto 4 - Caboclinho da cidade de Ceará Mirim........................................................................................58
Foto 5 - Baltazar e João redondo................................................................................................61
Foto 6 - Zambê de árvore hibrida.............................................................................................................66
Foto 7 - Zambês feito de abacateiro.........................................................................................................66
Foto 8 - Visão do interior do zambê.........................................................................................................67
Foto 9 - Orifício lateral natural do próprio tronco....................................................................................67
Foto 10 - Pele de cabra sobre o tambor e modo de fixação da pele no tambor........................................67
Foto 11 - Grupo CRMS em apresentação...................................................................................73

LISTA DE FIGURAS
Figura 1 - Célula básica do ritmo do coco de roda do grupo CRMS.............................68
Figura 2 - Célula rítmica do coco de roda executado pelo Mestre Severino..................68
Figura 3 - Célula rítmica do coco de roda executada por um dos tocadores..................68
Figura 4 - Formação do grupo CRMS no momento das brincadeiras............................69
Figura 5 - Célula rítmica do passo do coco no grupo CRMS..................................................72

LISTA DE MAPAS
Mapa 1 - Localização da cidade de Vera Cruz tendo como base a capital Natal....................................54
Mapa 2 - Demarcação territorial do município de Vera Cruz.................................................................54
Mapa 3 - Demarcação territorial e localização da Vila de Ponta Negra..................................................62
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LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

RN – Rio Grande do Norte


CRMS – Coco de Roda do Mestre Severino
UFRN – Universidade Federal do Rio Grande do Norte
PVC – Poli carbonato de Vanila (cano de pvc)

Sumário
1.INTRODUÇÃO.....................................................................................................................10
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2. DISCUSSÃO TEÓRICA......................................................................................................14
2.1 O Coco..........................................................................................................................14
2.1.2 Coco Potiguar..............................................................................................................18
2.2 Cultura, cultura popular.............................................................................................22
2.3 Memória.......................................................................................................................28
2.4 Tradição.......................................................................................................................30
2.5 Transmissão.................................................................................................................32
2.6 Norteando o Pesquisador............................................................................................34
2.6.1 Pesquisa qualitativa.....................................................................................................36
2.6.2 Pesquisa qualitativa em música..................................................................................38
2.6.3 Estudo de caso etnográfico..........................................................................................39
2.6.4 Estudo de caso..............................................................................................................39
2.6.5 Procedimentos de coleta no estudo de caso................................................................41
2.6.6 Etnografia....................................................................................................................42
2.6.7 Uma etnografia da música..........................................................................................46
2.6.8 Reentrando em campo.................................................................................................47
2.6.9 A observação participante...........................................................................................48
2.6.10 As entrevistas...............................................................................................................52
2.6.11 A revisão bibliográfica como coleta de dados............................................................56
3. O GRUPO COCO DE RODA DO MESTRE SEVERINO...............................................57
3.1 Como se Forma um Mestre? Historia de Vida do Mestre Severino........................57
3.2 Criação do grupo CRMS............................................................................................69
4. TRANSMITINDO O COCO, COMPARTILHANDO CONHECIMENTOS.................80
5. CONCLUSÃO......................................................................................................................87
REFERÊNCIAS .......................................................................................................................91

ANEXOS. Entrevistas com brincantes e com o Mestre Severino

1. INTRODUÇÃO
10

A escolha por estudar o grupo Coco de Roda do Mestre Severino (CRMS), parte
do desejo pessoal de saber como e quais são as práticas musicais dos grupos de cultura
popular e tradicionais do Estado do Rio Grande do Norte (RN). Esse desejo, estava
pautado no meu olhar de percussionista interessado em apreender conhecimentos
musicais ligados à performance dos ritmos produzidos no RN, ou seja, ritmos
potiguares1. No entanto, em um primeiro momento, minha aproximação e inserção no
grupo CRMS em 2013, foi ampliando meu olhar sobre aquela prática musical.
A partir dos primeiros ensaios que participei como integrante do grupo, percebi
que somente a prática do ritmo não era suficiente para apreender o conhecimento
musical daquela brincadeira popular, conhecimento esse que se mostrou intrinsicamente
ligado há outros aspectos da brincadeira, como a dança, o canto, as relações
interpessoais existentes na brincadeira, assim como a transmissão do conhecimento
musical. Após esse primeiro contato com o grupo, a motivação por investigar a
transmissão de conhecimento musical nas práticas realizadas no grupo CRMS, surgiu
após minha inserção no Programa de Pós-Graduação em Música na Universidade
Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), em que as várias discussões acerca dos temas
ligados à educação em ambientes não formais de ensino, assim como discussões
etinomusicologicas sobre transmissão de conhecimento musical, me guiaram para o
tema desta pesquisa.
O grupo CRMS foi fundado no ano de 2008, na vila de Ponta Negra, pelo senhor
Severino Bernardo Santiago com o intuito de resgatar a brincadeira do coco de roda,
que habitava a sua memória, lembranças das rodas de coco realizadas por seu pai em
sua infância. Atualmente o grupo CRMS é constituído por sete participantes, sendo seis
mulheres e um homem, mais o mestre.
Nos primeiros encontros com o grupo pude constatar que diferente dos ensaios
realizados em grupos musicais profissionais, dos quais fazia e ainda faço parte atuando
na noite como percussionista, a prática musical em si, ou seja, a prática dos cocos, não
era o ponto que predominava, mas a relação do Mestre Severino com a brincadeira do
coco, relatada em suas histórias contadas durante a maior parte dos ensaios. Nessas
histórias ficavam evidentes aspectos culturais que iam me revelando uma riquíssima
moldura em torno da prática musical, como sua origem, seus atores, localidades onde

1
Potiguar, potiguara, pitiguar ou petiguar eram uma das tribos que abitavam o litoral do Rio
Grande do Norte no período da colonizaçã o (Suassuna & Mariz, 2005). O termo também designa
aquele individuo que nasceu no RN.
11

ocorriam suas danças e os diferentes modos e fazeres musicais relacionados à


brincadeira do coco no RN.
Em um segundo momento, meu olhar foi ampliado e direcionado para as duas
bases disciplinares que guiam esta pesquisa, a Educação Musical e a Etnomusicologia.
A Etnomusicologia me foi apresentada ainda no curso de graduação em música na
Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), através da disciplina Introdução
a Etnomusicologia. Nas aulas dessa disciplina me foram apresentados os pensamentos e
conceitos básicos que norteiam a base epistemológica deste campo do conhecimento,
como o olhar sobre a prática musical com base no contexto sociocultural em que ela
ocorre, assim como a reflexão sobre seus atores. Enxergar que a prática musical está
muito além do ato de tocar ou cantar, foi a grande contribuição deixada para mim desse
primeiro contato com a Etnomusicologia, e que vem se aprofundando a cada passo dado
nesta pesquisa.

Com meu ingresso no Mestrado em música na UFRN no ano de 2015, na área de


Educação Musical, tive contato com a produção científica dessa área do conhecimento,
ampliando minha visão sobre o universo que abriga o ato de tocar. Trabalhos que
abordam os processos de ensino e aprendizagem musical e/ou transmissão de
conhecimento musical em culturas e/ou contextos sociais diversos e em especial aqueles
em que a oralidade é um dos suportes basilares para a transmissão do conhecimento.
Como exemplo desses trabalhos posso citar o trabalho de Margarete Arroyo (1999) em
sua tese sobre o ensino e aprendizagem em ambientes distintos, o congado e o
conservatório, e o trabalho de Luciana Prass sobre saberes musicais em uma bateria de
escola de samba. Esses assim como outros trabalhos me fizeram enxergar as práticas
que ocorrem nos processos de transmissão, seja no âmbito do ensino ou da
aprendizagem, nos mais diferentes contextos e das mais variadas formas. O contato com
esses trabalhos contribuiu para o delineamento do tema de pesquisa.
Através do olhar etnomusicológico, ou seja, um olhar interessado em aspectos
como o contexto em que a música é feita, as relações sociais que permeiam o fazer
musical, os significados que tem o fazer musical, e em especial para esta pesquisa a
transmissão de conhecimento musical, aceitando que essa ocorre em qualquer prática
musical de qualquer cultura ou contexto social. Juntamente com o interesse, necessidade
e o desafio da área de Educação Musical, como nos aponta Queiroz (2007), em que
O campo de estudo da educação musical na atualidade, frente à
diversidade de contextos em que acontecem ensino e aprendizagem da
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música, tem ampliado o seu universo de abordagem com vistas a


compreender concepções, estratégias, processos e situações distintas
de transmissão dos conhecimentos musicais. (QUEIROZ, 2007, p. 1)

que se delineou o objetivo dessa pesquisa, que é o de investigar os processos de


transmissão musical no grupo CRMS.
Com as disciplinas oferecidas no curso de pós-graduação, pude não somente ter
contato com o conhecimento que trata do ensino e aprendizagem e/ou transmissão de
conhecimento musical, mas com o pensamento de importantes autores da área de
Antropologia e Sociologia, como Geertz (1989); Halbwachs (1997); Hobsbawm (1997);
Canclini (1997); assim como contribuições de historiadores como Abreu (2003);
Catenacci (2001); Domingues (2011), contribuindo nesse trabalho com suas discussões
acerca dos conceitos de cultura, cultura popular, tradição e memória.
As áreas da antropologia e sociologia também contribuem com os processos
metodológicos para levantamento e análise dos dados deste trabalho, que por tratar de
uma investigação empírica de um fenômeno contemporâneo dentro de seu contexto
(YIN, 2005), fenômeno esse que apresenta singularidades e/ou particularidades frente a
outros fenômenos semelhantes, o configura como um estudo de caso etnográfico, em
que se utilizou a observação participante, entrevistas semiestruturada, notas do caderno
de campo, transcrições de gravações de ensaios e levantamento bibliográfico.
Com o olhar voltado para as práticas existentes em torno do fazer musical na
brincadeira do coco praticada pelo grupo CRMS, certas questões foram se delineando
ao longo da pesquisa referente à constituição do grupo, como: Que papel figura o
Mestre Severino no Grupo, de um professor diretivo ou uma fonte de onde são extraídos
os cocos? Seria realmente o CRMS um grupo da cultura popular? Como o Mestre
aprendeu os cocos e como é o processo de rememoração dos cocos pelo mestre? Como
o grupo se organiza internamente? Existe uma liderança? Como o Mestre ensina e como
os brincantes aprendem? Responder essas questões é importante para formar o objeto de
pesquisa que é a base para a questão central , o processo de transmissão musical em
grupos de tradição oral.
Ainda referente à questão da transmissão, o elemento da memória foi, durante a
pesquisa, se configurando como a “coluna vertebral” que sustenta todo o processo de
transmissão musical que vem ocorrendo desde o aprendizado do mestre Severino com
seu pai na sua infância, passando pela primeira fase do grupo CRMS, na segunda fase, e
nas oficinas realizadas pelo grupo. Entender como as lembranças dos cocos foi ativada
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no Mestre Severino depois de um hiato de setenta anos, período que vai da morte do seu
pai até a criação do grupo, é peça chave para compreender a transmissão musical no
grupo CRMS.
Este trabalho está organizado em cinco capítulos, iniciando com a discussão
teórica a cerca de conceitos basilares nessa pesquisa – coco, cultura popular, memória,
tradição e transmissão – assim como também abordo em mesmo capítulo questões
referentes a metodologia. E seguida trato especificamente do grupo CRMS, com o
relato de vida do mestre, tendo ênfase na sua ligação com a brincadeira do coco, a
criação do grupo, seus integrantes e o coco que é praticado nesse grupo. No quarto
capitulo abordo diretamente o ponto central desse trabalho que é a transmissão musical
no grupo, mostrando como ocorre esse processo, as estratégias e modos de ensinar e
aprender o coco nesse contexto. O quinto e último capítulo traz minhas considerações
finais acerca da transmissão do conhecimento musical no grupo CRMS como também
reflexões sobre como e o que é o grupo CRMS.
Vale aqui salientar que, mesmo que este trabalho trate da transmissão musical no
grupo CRMS, como é explicitado no subtítulo, ele também se propõe a contribuir para
história cultural do RN em especial na cidade do Natal, em que os relatos do mestre
Severino, sobre seu contato com outras brincadeiras, além do coco, possibilitam
vislumbrar uma história da cultura local, por uma perspectiva oriunda da historia de
vida de Seu Severino. O titulo deste trabalho “o coco do meu pai” está ligado à forte
ligação que Mestre Severino tem com a lembrança de seu pai, através do legado do coco
deixado por ele, e retido na memória do Mestre como a relíquia mais preciosa de sua
história.
14

2. DISCUSSÃO TEÓRICA

Quando decidi que iria fazer uma pesquisa sobre o grupo Coco de Roda do
Mestre Severino (CRMS), e depois da minha inserção no curso de pós-graduação, um
olhar científico foi se delineando, me fazendo enxergar as particularidades existentes
dentro do grupo, do qual sou integrante desde 2013. Essas particularidades causaram em
mim questionamentos acerca da brincadeira do grupo CRMS; que tipo de grupo seria?...
Da cultura popular? De tradição? Que brincadeira é praticada pelo grupo? Afinal o que
é o coco? Através destes questionamentos, outros foram surgindo em nível mais
profundo; o que seria cultura popular? O que seria tradição? O que se entende por
transmissão de conhecimento? Essas questões serão discutidas mais a frente e servem de
suporte teórico para auxiliar no entendimento da questão central desse trabalho que é:
como ocorre a transmissão do conhecimento musical no grupo CRMS?

2.1 O Coco

O coco é brincadeira popular, é canto de trabalho, é musica para festa, é canto


em desafio, é dança de roda. Toda essa diversidade de classificação do coco, ou melhor,
toda essa variedade de práticas do coco, faz com que ele seja um objeto investigativo
bastante complexo. Segundo Mário de Andrade,

“o coco anda por aí dando nome pra muita coisa distinta. Pelo
emprego popular da palavra é meio difícil a gente saber o que é coco
bem. O mesmo se dá com “moda”, “samba”, “maxixe”, “tango”,
“catira” ou “cateretê”, “martelo”,“embolada” e outras. (ANDRADE,
1984, P.347)

De acordo com o dicionário do folclore Brasileiro, Cascudo (2000, p.147,


verbete coco), o coco seria “dança popular nordestina” com sua ocorrência no litoral e
no sertão com visível influência africana. Ainda em seu dicionário, Cascudo atesta a
variedade de cocos existentes classificados a partir da instrumentação (coco de zambê,
coco de ganzá, coco de zabumba), forma do texto poético (coco de décima, coco de
oitava), lugar em que é praticado ou a que o texto se refere (coco da praia, coco de
Tupanatinga, coco de engenho), processo póetico-musical (coco de embolada, coco
aboiado) e o tipo de coreografia empregada (coco de roda, coco de ciranda, samba de
coco).
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Segundo o Antropologo Ciro Lyns (2009) os brincantes de coco de Sibaúma-


RN, encaram o coco não como uma dança ou um ritmo, mas como uma brincadeira,
uma distração para amenizar o cansaço de um dia de trabalho. Para o historiador
Altimar de Alencar Pimentel (1978) o coco seria canto de trabalho. Já O folclorista
Cascudo (2000) encara o coco como dança cantada. A questão é que, todas as definições
do que é coco irão depender do contexto em que está inserido o coco, assim como a
função que seus praticantes lhe dão.
Neste trabalho, o coco quando citado pelo Mestre Severino é chamado de
brincadeira, assim como o boi de reis, o congo e o bambelô, ele diz que “o coco é um
divertimento”. No entanto para o grupo o coco, ou melhor os momentos de faze-lo, são
nomeados como ensaio e/ou apresentação. Aqui estou classificando o coco como
brincadeira, pelo fato de não só o Mestre Severino, mas outros mestres, como mestre
Geraldo do coco de zambê de Tibal do sul-RN, se referirem a suas práticas artísticas
como brincadeira. Entendo também que a prática do coco está atrelada a diversão, ao
lazer, e que por mais que se insira o coco dentro do contexto de um grupo, sistematizado
em sua organização, com horários de ensaio e tempo determinado de apresentação, o
momento em que a roda gira ao som do tambor, a postura descontraída e o sentimento
de alegria de quem está na roda é de quem brinca.
Determinar a origem do coco se torna uma tarefa dificílima para ser realizada
nessa pesquisa, pois há muito se vem debatendo a gênese do coco sem se chegar a
resultados precisos sobre essa origem. Essa busca pela origem dos cocos vem com o
movimento folclorista, em que os estudiosos desse campo estavam interessados em
“delinear as feições da identidade nacional brasileira, tomando como
objeto os costumes mais “tradicionais” e “autênticos”, herdados das
“raças originais” da nossa sociedade – idios, brancos e negros.
(LYNS, 2009. p.23)

Destacarei aqui algumas teorias acerca de sua origem, apresentadas por


folcloristas e estudiosos da cultura de tradição popular, no intuito de que possamos
visualizar as diversas vertentes dessa gênese, sem o intuito de eleger uma dessas teorias
como sendo a verdadeira, mas sim, destacar que a produção de trabalhos referentes ao
coco, principalmente os trabalhos que são a base bibliográfica sobre o assunto, estão
focados em buscar nos cocos um passado longínquo, sem atentar para as especificidades
que cada brincadeira do coco traz consigo, referente ao contexto que ela ocorre. No
entanto friso que o relato do Mestre Severino, juntamente com o relato de outros
mestres e do trabalho de estudiosos, que serão citados á frente, o coco pode ter em seus
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elementos origens distintas, com influências europeias e ameríndias, mas a maior


contribuição para a construção e perpetuação da brincadeira do coco vem dos afro-
brasileiros.
Cascudo (2000) e Andrade (1984) atestam a origem do coco em sua forma
dançada a cultura Lusitana. Outros autores com foco em uma origem étnica do coco
atribuem traços rítmicos e de canto a herança negra, sendo a dança atribuída a danças
praticadas pelas tribos nativas do litoral do nordeste sobre isso a musicologa e
folclorista Marisa Lira fala que “Nêle (no coco) há flagrante influencia de ritmos das
cerimonias fúnebres africanas e sensível disposição coreográfica dos tupis do litoral”.
(LIRA, 1958. Apud. LYNS 2009. p.24).
Ainda na busca pela origem do coco, alguns autores norteiam-se por um
pensamento regionalista e tentam atribuir a origem do coco a uma região específica, isso
fica mais evidente nos trabalhos de e Manoel Diégues Junior, em que o coco teria suas
origens no Estado de Alagoas. Diégues (1952) em artigo para o Diário de Noticias,
defende a origem do coco ao estado de Alagoas. Ao tratar da dança ele exalta que:
“Dança alagoana sim; sempre sustentei ser o coco de origem alagoana, espalhando-se
depois pelo nordeste onde foi tomando novas formas.” No mesmo trabalho, a fim de
sustentar sua afirmação, Diégues relata uma fala de Camara Cascudo, que
aparentemente foi feita pessoalmente, em que ele diz: “Foi de negros alagoanos que
nasceu o coco: nasceu nas senzalas e nos alpendres das casas grandes de engenho.”
Outro autor que defende uma origem alagoana para o coco é Edson Carneiro (1960),
que mesmo sem citar as suas fontes, nos diz sobre o coco, em trabalho para o Diário de
Notícias, que
“tanto quanto podemos inferir da documentação conhecida, também
desigualmente se forjou essa síntese folclórica. Efetivada em alagoas
em fins do século XIX, somente aos poucos, paulatinamente,
conquistou a região nordestina.”

Esse “viés regionalista” nos estudos sobre o coco foi criticado por Inês Ayala e
Marcos Ayala, em trabalho intitulado Cocos: Alegria e Devoção, em que tratam dos
cocos da Paraíba. Nesse trabalho os autores discutem (não somete) a produção
intelectual sobre o coco, atestando a falta de rigor cientifico dos trabalhos realizados por
folcloristas. Sobre isso eles apontam que essa produção,
[...] reflete uma forte tendência de abordagem calcada em
especulações que mais parecem preocupadas em encontrar uma
origem dentro da região (no caso, Alagoas), o que demonstra um viés
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regionalista, em alguns casos com matizes ufanistas que muito


guardam de provinciano e ideológico”. (AYALA & AYALA, 2000, p.
28)

Lyns (2009) em seu trabalho aponta os principais autores da produção intelectual


folclorista do país e suas buscas por uma “identidade nacional”, utilizando o coco como
símbolo. Entre os autores estão Edison Carneiro (1960), Aloísio Vilela (1968), Théo
Brandão (1954), Abelardo Duarte (1956), Mariza Lira (1958), Altimar de Alencar
Pimentel (1963) e Manuel Diegues Júnior (1937; 1952). Sendo esses autores
intelectuais da área folclorista, seus interesses estavam ligados à busca de uma
identidade nacional, que para muitos está depositada nas manifestações da cultura
popular produzidas especificamente pelos indivíduos das zonas rurais, que guardavam,
segundo o pensamento folclorista, a essência da nossa construção cultural, baseada na
concepção de que a nação brasileira está alicerçada sob os pilares das três raças que aqui
no Brasil se entrelaçaram durante todo o processo de nacionalização.
Consequentemente, o coco foi tomado como traço cultural nacional, entendido como
representante dos costumes mais tradicionais e autênticos de nossa sociedade, assim
como elemento cultural que mais exprimia a fusão cultural da trindade racial, em que os
elementos negros e índios ficaram mais evidentes.

No início do século XX, mais precisamente entre os anos de 1928 e 1929, Mário
de Andrade realizou algumas viagens pelo norte e nordeste do país a fim de pesquisar a
cultura popular dessas regiões. Nessas pesquisas 245 cocos foram registrados e reunidos
em um livro inacabado, que leva por título uma expressão dita por um dos seus
principais interlocutores, o coquista potiguar Chico Antonio, que em seus cocos a
expressão “na pancada do ganzá” tinha forte recorrência.
Além da enorme contribuição de Mario de Andrade na construção de um acervo
de informações referentes às manifestações de tradição populares do norte e nordeste,
seus estudos estão na vanguarda das pesquisas de cunho etnomusicológico no país, isso
devido aos então modernos métodos de coleta e analises de dados empregados por ele
que se apoiava na etnografia, como esclarece Oneyda Alvarenga ao relatar que Mário de
Andrade
[...] cercou de todas as garantias informativas tudo quanto fez: anotou
lugares, datas, circunstâncias da pesquisa, observações sobre os
informantes e a qualidade da colaboração deles; grafou melodias e
textos com honestidade paciente, controlando seu trabalho por
diversos meios e obtendo assim a maior exatidão atingível fora do
registro fonográfico, que aliás, nos idos de 1928, não era recurso ao
18

alcance dos nossos estudiosos e nem mesmo dos de outros países.


Realmente, o fruto das pesquisas de Mário de Andrade constitui até
hoje o maior e melhor acervo de música folclórica brasileira registrada
por um pesquisador sozinho e por grafia musical direta.
(ALVARENGA, in ANDRADE, 1984. P.10)

Esse rigor científico na coleta de dados para suas pesquisas é o que o diferencia
das pesquisas folclóricas, e que atesta o trabalho de Mario de Andrade, nas palavras de
Ayala (2000), como o primeiro material reunido sobre os cocos feito com o rigor do
método científico. Dez anos após sua ida ao Norte e Nordeste, Mário de Andrade
organiza uma nova ‘Missão’ formado por quatro pesquisadores – Antonio Ladeira,
Benedicto Pacheco, Martin Braunwieser e Luíz Saia “Munidos de aparelhagem de
grande qualidade técnica e de formação segura para um desempenho com rigor
científico (...)” (AYALA, 2000. P. 25) os pesquisadores se valeram de fotos, filmes e
gravações feitas no fonografo. Isso possibilitou a construção de um riquíssimo acervo
sobre as manifestações tradicionais do Norte e Nordeste do país.
O coco é uma manifestação com grande ocorrência na região nordeste até os dias
de hoje, com inúmeros grupos atuantes e diversas variações da brincadeira. Com o
tempo, o coco foi se adaptando a novas realidades e contextos, e nesse sentido é preciso
cada vez mais de trabalhos que tratem do tema, que não estejam preocupados em
desenterrar uma brincadeira de coco dos confins da história nacional, mas sim
evidenciar esse coco contemporâneo, seus atores e os mais novos contextos em que essa
brincadeira e praticada nos dias de hoje.

2.1.2 Coco Potiguar

No Rio Grande do Norte, o tema dos cocos tem sua maior produção no campo
folclorista, figurando como principais nomes Câmara Cascudo (2000), Deífilo Gurgel
(1999) e Hélio Galvão (1967). Essa ideologia folclorista fica clara em trabalhos desses
autores, preocupados em eleger no estado do Rio Grande do Norte os traços identitários
da cultura local. Gurgel (1999) ao tratar do movimento do folclore Potiguar, atesta que

“é aqui no Rio Grande do Norte que ainda hoje se apresentam das


danças e autos folclóricos mais perfeitos do Brasil, objeto de elogio
dos maiores folcloristas brasileiros, como Luíz da Camara Cascudo,
Mario de Andrade, Ascenso Ferreira, Théo Brandão.” (GURGEL,
1999. p.39)

Sobre o coco praticado em terras potiguares, Cascudo destaca que


19

No Rio Grande do Norte, o coco tem o nome de zambelô ou bambelô,


e é dançado ao som do ganzá, afoxê ou maracá, pequenos tambores e
atabaques. Apresenta uma movimentação variada, fazendo com que
sua coreografia receba diferentes denominações: coco-de-zambê;
coco-de-praia; coco-de-roda; coco-de-fila; coco-de-embolada e tantos
outros. (CASCUDO, 2000, p. 147)

Deífilo Gurgel teve uma pequena mais importante contribuição para o


conhecimento dos cocos do RN, em seu trabalho intitulado Espaço e Tempo do Folclore
Potiguar, o autor aponta três tipos de coco existentes no Estado do RN, a saber, ‘o coco
de roda’, o ‘bambelô’ e o ‘mineiro pau’. Gurgel como seguidor dos pensamentos de
Cascudo, também atesta que os cocos existentes no RN são apenas variação de uma
matriz, que diferente de Cascudo que toma como ponto de partida o zambelô ou
bambelô, Gurgel (1990. p.26) em seu trabalho Danças Folcloricas do Rio Grande do
Norte, tem o coco de roda como célula mãe dos cocos do Estado, caracterizando o
bambelô como “uma forma sofisticada do coco de roda, que sofreu visível influencia do
ritmo e da coreografia do samba”, em outro trabalho Gurgel (1999) afirma que o
bambelô teria sua ancestralidade no zambê, e que sua origem advinha dos canaviais do
município de São José de Mipibu; o mineiro pau para o autor seria uma variação do
coco de roda em que “os dançarinos se apresentam vibrando pequenos bastões,
simulando uma luta, dois a dois, enquanto dançam”. (GURGEL, 1990. p.28)

Hélio Galvão por sua vez, é o autor dessa geração de folcloristas que mais se
dedicou ao tema dos cocos. Em suas Cartas da Praia, compilação de três trabalhos,
Cartas da Praia (1967), Novas Cartas da Praia (1968) e Derradeiras Cartas da Praia
(1978), o autor relata aspectos da vida do município de Tibau do Sul. O detalhado relato
feito por Galvão sobre os costumes do município imprimem um valor cientifico de
extrema importância para a os estudos dos costumes e práticas culturais daquela
localidade, o que abarca a brincadeira do coco ali realizada.

Em carta escrita no dia 20 de abril de 1967, Galvão relata uma conversa que teve
com dois interlocutores, lembravam que os cocos naquela região eram bastante
apreciados, “com refrãos fixos e parte improvisada a cargo do tirador” também deixa
claro nessa carta que a brincadeira do coco era bastante apreciada pela população local,
que diferente dos bailes que ocorriam na cidade no período de carnaval, o coco era mais
democrático e permitiria a participação de quem quisesse entrar na roda. Nessa carta o
autor ainda nos aponta que o “coco de zambê é uma dança tipicamente africana, com
20

surpreendentes elementos da pureza originária” (GALVÃO, 1967. p.95). A seguir a


letra de um dos coco registrados por Hélio Galvão na carta citada acima.

Tirador - Menina, se queres vamos

Coro - Mineiro pau, Mineiro pau

Tirador - Não te ponhas a maginá

Coro - Mineiro pau, Mineiro pau

Tirador - Quem magina cria medo

Coro - Mineiro pau, Mineiro pau

Tirador - Quem tem medo não vai lá

Coro - Mineiro pau, Mineiro pau. (GALVÃO, 1967. p.92)

Em carta escrita no dia 06 de março de 1968, Galvão relata sua ida a uma
brincadeira de coco de zambê. Essa carta traz preciosas informações sobre o coco de
zambê, nos revelando através das palavras de um interlocutor local que no coco de
zambê só dança homem, e que seria o coco de roda uma dança mista (homem e mulher).
Galvão também nessa carta nos passa informações acerca da instrumentação, apontando
que os instrumentos utilizados no coco de zambê são “pau e chama” e que existiam
grupos de zambê nos municípios de Mari, Pipa, Sibauma, Cururu, Porto e
Pernambuquinho. Ainda em mesmo relato, o autor dá uma descrição de que o pau teria
cerca de seis palmos de comprimento (1,70cm) com uma abertura de palmo e meio
(30cm) tendo uma das extremidades fechadas com um couro. A chama segundo
descrição de Galvão mediria meio metro de comprimento (50cm) e abertura de doze
centímetros, também tendo uma das extremidades lacrada com couro. Delineando a
forma de tocar, o autor relata que o “pau é amarrado à cintura do batedor, que nele se
monta e se apóia e até faz movimentos cadenciados. A chama é presa pelo pescoço e
fica pendurada á altura do estômago”. Sobre a nomenclatura dos tambores, Galvão
atesta que o nome do tambor chama seria por conta do longo alcance que o seu som
agudo conseguia atingir, servindo de chamado para que as pessoas soubessem onde
estava ocorrendo a brincadeira. Em mesmo relato Galvão descreve como um grupo de
zambê observado por ele se organiza para realizar a brincadeira, apontando que

O batedor toma posição, montando o pau; atrás dele, o tirador;


formando um circulo, os dançadores; ao redor do tirador e do batedor,
batendo palmas, os que respondem ao tirador; a chama fica o mais
perto possível do tirador, embora um pouco afastada do pau”
(GALVÂO, 1968. p.207)
21

Imagem 1: coco de zambê do Mestre geraldo

Imagem: https://static.wixstatic.com/media/

Foto 1 - zambê, lata e chama

Foto: Jaildo Gurgel

Hélio Galvão em carta do dia 14 de março de 1968, trata do coco de roda,


destacando que “a estrutura da dança, os movimentos, coreográficos, as toadas, o ritmo,
o tambor como único instrumento, tudo contribui para a distinção bem nítida entre o
coco de roda e o zambê” (GALVÃO, 1968. p.220). O autor descreve como se organiza
a brincadeira, que seria em forma de circulo com os participantes de mãos dadas, tendo
o tirador dos cocos ao centro percutindo o tambor, com as respostas sendo cantadas por
todos os participantes, diferente do zambê em que os dançadores não cantam. O
andamento do ritmo no coco de roda é mais lento do que o zambê, com as cantigas
sendo entoadas uma seguida das outras, sendo alternadas sem separação. Abaixo Coco
de roda registrado por Hélio Galvão no município de Cabeceiras (RN) em 1968.

Tirador: Cabra verde não me morda Que aqui não tem curador
Coro: Nos braços de uma morena Eu morro e não sinto a dor.
22

Outra geração de pesquisadores produziu e está produzindo trabalhos no RN


sobre a brincadeira do coco praticada no Estado. Dentre esses trabalhos destacamos o
trabalho da professora Teodora de Araújo Alves (2000) para o programa de pós
graduação em educação, em que pesquisou a corporeidade dos brincantes do coco de
zambê de Mestre Geraldo. No mesmo ano Cyro H. de Almeida Lyns produz dissertação
na área da Antropologia com foco no coco de zambê da comunidade de Sibaúma-RN e
sua “emergência étnica”, em que a brincadeira do coco é elemento para aquela
comunidade afirmar sua ancestralidade afro-brasileira, legitimando aquelas terras como
herança de quilombolas.
No ano de 2011 é apresentado por Jaildo Gurgel da Costa um trabalho na área
de etnomusicologia, com uma abordagem etnográfica ele investiga as práticas musicais
da família de Mestre Geraldo Cosme, que além de praticarem a brincadeira do zambê,
também praticam a seresta ao som de violão.
Atualmente dois trabalhos estão sendo produzidos na área de educação musical
com forte dialogo com a etnomusicologia, esta dissertação, que em seu processo de
construção possibilitou a produção e apresentação de artigo no congresso da Associação
Brasileira de Etnomuiscologia. Em coautoria com o professor Dr. Agostinho Jorge de
Lima, o artigo trata das interferências causadas na performance musical do grupo
CRMS em função da gravação do segundo CD do grupo. O segundo trabalho está sendo
produzido por Maíra Soares e trata da transmissão do conhecimento musical no grupo
do coco de zambê do Mestre Geraldo.

2.2 Cultura, cultura popular.

Para a realização da pesquisa, se faz necessário que compreendamos certos


conceitos que á norteiam. Começo partindo do conceito de cultura, abordando em
seguida a conceituação de cultura popular, tradição, memória e transmissão musical.

Não é raro ver e ouvir que manifestações musicais, ou melhor, toda arte
produzida pelo povo, estão alojadas na esfera da cultura popular ou da tradição: como as
brincadeiras de coco, os sambas de roda, a capoeira, enfim tudo que não for produzido
pela elite. Esta pesquisa tem como objeto um grupo de coco de roda que inicialmente
pode se entender como um grupo de cultura popular, por se tratar de uma manifestação
tipicamente das classes mais pobres da sociedade. Como também pode ser encarado
como grupo de tradição, pelo fato de ser um grupo praticante de uma manifestação
23

secular. Digo isso pautado no que ouço nas ruas, em conversas com colegas músicos,
que em sua maioria, alimentam pensamentos folcloristas, que ainda exercem forte
influencia na concepção de cultura popular e tradição que habita o senso comum da
cidade de Natal. Porém, a configuração do grupo CRMS foge à regra, tendo integrantes
com cargos de professores universitários, estaduais e municipais, estudantes
universitários de curso de graduação e pós-graduação como brincantes do grupo, sendo
o Mestre Severino o único representante de uma ancestralidade, assim como o tempo de
existência do grupo que contabilizam oito anos. Estas peculiaridades na construção do
grupo nos instigam a entender o que seria cultura popular. Para tal vamos seccionar o
conceito e verificar o que se entende por cultura e o que se entende como popular. Em
seguida verificaremos o conceito de tradição.

A partir dos estudos sobre cultura realizados no século XIX nos campos da
sociologia e antropologia, diversos conceitos sobre cultura se formaram até a atualidade.
A reflexão sobre alguns desses conceitos é importante para a abordagem de certos
assuntos em nosso trabalho.

Em trabalho realizado por Daniele Cenedo (2009) é traçado as varias


interpretações que o conceito de cultua veio recebendo durante a história. A autora
destaca duas teorias que dividem esse conceito, a universalista, através do pensamento
iluminista da França, e a particularista Alemanha, pautada no nacionalismo.
Sobre a teoria universalista, a autora citando Cuche (2002, p.21) destaca que “A
cultura, para eles, é a soma dos saberes acumulados e transmitidos pela humanidade,
considerada como totalidade, ao longo de sua história” ou seja, uma competência do
gênero humano. Cenedo também aponta que no pensamento Francês, cultura e
civilização caminhavam juntos, “sendo que a primeira evocava os progressos
individuais e a segunda, os progressos coletivos”.
O antropólogo Edward Burnett Tylor (1871), pai da antropologia britânica,
pautado no pensamento universalista, propõe no fim do século XIX, o conceito de
cultura como um todo complexo. Como um conjunto de capacidades e hábitos
adquiridos pelo homem:

Cultura ou Civilização, tomada em seu sentido mais amplo sentido


etnográfico, é aquele todo complexo que inclui conhecimento, crença,
arte, moral, lei, costume ou quaisquer outras capacidades e hábitos
adquiridos pelo homem na condição de membro da sociedade
(TYLOR, apud CASTRO, 2005, p.69).
24

É importante destacar que quando Tylor defende seu conceito de cultura, ele a
transforma em uma coisa amorfa, um grande caldeirão de capacidades e hábitos
humanos. Até esse ponto Tylor não está totalmente equivocado, pois as crenças de um
povo, como o culto aos orixás na Bahia, a questão moral na aceitação da poligamia do
povo mulçumano, assim como a música produzida na região da Guiné Conacri (África),
são elementos que constituem e identificam a cultura desses povos. No entanto, Tylor
restringe os elementos que compõem a cultura a uma condição do homem como
membro da sociedade. O problema está no conceito de sociedade empregado por Tylor,
que por está ligado ao pensamento evolucionista, vê a sociedade pelos moldes da
sociedade europeia, ou seja, a cultura só seria alcançada através dos meios formais
estabelecidos pelo modelo europeu, sendo os povos não europeus considerados
primitivos, não civilizados, e que esses povos estariam atrasados, e um dia chegariam ao
mesmo modelo cultural alcançado pela Europa. Esse pensamento evolucionista e
universalista, com base na cultura europeia, distanciou durante algum tempo o
entendimento de que cultura é formada, estabelecida e praticada de formas distintas em
diferentes contextos em que haja o convívio humano em coletividade.

A vertente particularista do conceito de cultura, parte do pensamento


nacionalista alemão, que surge como oposto do conceito de civilização francês. Para os
intelectuais alemães o conceito de civilização como molde Francês a ser seguido não é
aceito, e sim o conceito de nação, em que os elementos culturais característicos do povo
alemão, encontrados nos costumes rurais, tidos como autênticos e originais e tomados
como marca que exaltaria uma superioridade do povo alemão. Isso se percebe na
produção musical erudita alemã, que quebra os paradigmas ao inserir a língua pátria em
operas e a música produzida fora dos salões da realeza, a música do povo. Com isso, o
pensamento particularista alemão, mostra o conceito de cultura sendo utilizada como
elemento que legitimaria uma soberania alemã quanto nação livre de moldes, com uma
serie de características próprias que deveriam ser enaltecidas.

O particularismo alemão abre o precedente para que o conceito de cultura, ou


melhor, o emprego de um conceito de cultura na sociedade, passe por diversas disputas
ideológicas em varias áreas do conhecimento humano, chegando à contemporaneidade
dividido em três grandes concepções, como nos aponta Cenedo (2009) sendo eles:
25

cultura como os modos de vida que caracterizam uma coletividade; cultura sendo as
obras e práticas da arte, da atividade intelectual e do entretenimento; e cultura como
fator de desenvolvimento humano.

A concepção de cultura no fim do século XIX com a antropologia cultural,


vertente da antropologia cunhada pelos americanos em contraste a antropologia social
de origem britânica, tendo como principal nome Franz Boas que, através de seu artigo
As Limitações do Método Comparativo em Antropologia, nos propõe que “as culturas
são formadas por traços ou complexos de traços que são o produto de condições
ambientais, fatores psicológicos e conexões históricas” (BOAS, 1896 apud
GONÇALVES, 2010 pg. 64). Boas também defende que as particularidades de uma
comunidade são explicáveis através do estudo do contexto cultural, assim como na
reconstrução da origem e da história daquela comunidade.

No século XX a concepção de cultura, na visão antropológica, tem como um dos


principais pensadores Cliford Geertz. Com uma abordagem semiótica Geertz define
cultura como sendo uma “teia de significados” um “contexto” no qual os
acontecimentos, as instituições, os componentes e os processos podem ser descritos com
densidade (GONÇALVES, 2010). O historiador Peter Burke (1978, p. 8) em seu
trabalho sobre a Cultura popular na idade moderna lança a concepção de cultura como
sendo “um sistema de significados, atitudes e valores partilhados e as formas simbólicas
(apresentações, objetos artesanais) em que eles são expressos ou encarnados” conceito
que dialoga com o proposto por Geertz.

Com base nessas concepções, tanto as apresentadas por Cenedo, quanto as


concepções de Boas, Geertz e Burk, e por acreditar que a multiplicidade de
interpretações e usos do conceito de cultura, assim como o interesse transdisciplinar que
o conceito de cultura vem causando no meio acadêmico, julgo que um único conceito
não comporta toda a complexidade que a cultura traz consigo. Assim sendo, nesse
trabalho encaro cultura como uma quimera conceitual, sendo “os modos de vida que
caracterizam uma coletividade” organizados através de “um sistema de significados,
atitudes e valores partilhados e as formas simbólicas (apresentações, objetos artesanais)
em que eles são expressos ou encarnados”, “produto de condições ambientais, fatores
psicológicos e conexões históricas”.
26

O conceito de cultura, após uma ruptura no paradigma de que só existia a cultura


europeia e que todas as outras eram práticas e costumes de povos primitivos, a questão
cultural passou a ter outro foco de debates por parte dos intelectuais de varias áreas das
ciências humanas. O foco agora seria direcionado para a separação existente entre
cultura erudita (da elite) e cultura popular. Petrônio Domingues (2011) em trabalho que
trata a construção do conceito de cultura popular no campo da História, nos mostra no
decorrer de seu trabalho que a divisão entre esses dois polos – cultuta popular, cultura
erudita (de elite) – esteve no centro de diversas discussões ideológicas e
interdisciplinares. Dentre os autores abordados por Domingues estão, Mikhail Bakhtin,
Michel de Certeau, Carlo Ginzburg, Robert Darnton, Roger Chartier, Peter Burke e
Edward Palmer Thompson.
Dominguês (2011) nos aponta que “A separação desses dois polos” se deu
através dos “intelectuais europeus, na segunda metade do século XVIII.” Interessados
em demarcar a “fronteira das manifestações culturais das camadas sociais abastadas em
relação àquelas mais amplamente difundidas.” A isso ficou conhecido como folklore, ou
folclore em portugês.
Quanto a esse interesse dos intelectuais europeus, podemos inferir que a realeza,
a aristocracia e mais tarde a burguesia, é quem tinham o maior interesse nessa
separação, ora por simplesmente não querer se colocar num mesmo caldeirão cultural, o
que ocorria, e ora por perceber o poder de dominação, no âmbito do mercado de bens de
consumo, sobre aqueles que não pertenciam a elite, o povo. Ou seja, ricos em
detrimento aos pobres.
Martha Abreu (2003, p.01), afirma que o conceito de cultura popular “[...] é um
dos conceitos mais controvertidos que conheço [...] quase sempre envolvidos com juízos
de valor, idealizações, homogeneizações e disputas teóricas e políticas.” Ao longo do
século XX, o conceito de cultura popular foi sendo cunhado para ocupar o lugar que
antes pertencia ao conceito de folklore, uma vez que as relações entre zona rural e
urbana modificavam os modelos de homem e de manifestações outrora imprimidos
pelos folcloristas. O conceito de cultura popular abrangia toda a produção, tanto de bens
matérias, imateriais quanto seus significados, que advinda do povo, ou seja, “o conjunto
dos cidadãos de um país, excetuando-se os dirigentes e os membros da elite
socioeconômica” (DOMINGUES 2011, p. 402).
Esse trânsito de indivíduos entre a zona rural e a urbana, e consequentemente o
aumento demográfico das cidades, conduziu a uma busca de reelaboração do conceito
27

anterior de cultura popular, buscando-se agregar outros significados, ora sendo


entendido como as produções do povo, ora como as produções para o povo; às vezes
utilizado de forma a exaltar a aceitação do povo por algo, às vezes utilizado como forma
de descriminar a produção do povo.
Segundo Abreu (2003), no Brasil, a expressão cultura popular, esteve presente
no pensamento de alguns folcloristas, antropólogos, sociólogos, educadores e artistas.
Esta foi a visão que prevaleceu na produção dos trabalhos referentes à cultura no Rio
Grande do Norte durante grande parte do século XX. Isso é evidente na obra de Luiz da
Câmara Cascudo, o mais aclamado estudioso do Folclore Brasileiro e Potiguar, quando
ele profere que “O folclore é o popular, mas nem todo popular é folclore”, Essa
afirmação de Cascudo mostra claramente a separação que existia entre folclore e
popular, separação segundo o próprio autor exercida pela autenticidade firmada pelo
tempo, “[...] somente o tempo, dando-lhe a pátina da autenticidade a fará folclórica”
referindo-se a assimilação ou criação de novas práticas pelo povo.
Para o historiador Roger Chartier, citado por Marta Abreu (2003), a divisão
entre cultura popular e erudita, tentaria esconder ou apagar a “histórica relação e
intercambio cultural entre as classes”, o que impossibilita uma real demarcação do que
realmente vem do povo ou o que é genuinamente erudito. Ou seja, vários elementos
culturais ditos populares podem ter sua origem em contexto erudito e vice e versa.
O pensador Nestor Garcia Canclini (1997), defende que as culturas na
modernidade são hibridas, e com isso não teria sentido as falsas oposições a ela
impostas, erudito/popular, urbano/rural, moderno/tradicional. No entanto essas divisões
existem e talvez sempre existirão, mesmo com a enorme pressão exercida pela indústria
cultural em homogeinizar à nível global a cultura para o povo. Cancline acredita no
conceito de culturas populares no lugar de cultura popular, o que não é totalmente
errado, mas acho que não se pode substituir um conceito por outro, uma vez que
entendo que cultura popular é um campo macro em que as diversas expressões da
cultura de diversos povos estariam alojadas.
Partindo dessa discussão acerca de cultura, aceito neste trabalho que as culturas
se constroem em forma e significado singular, justamente pelo hibridismo constatado
por Canclini, mas que as culturas estão dentro de um caldeirão cultural maior, em que
dialogam intercambiando conhecimentos entre classes sociais diferentes e, para ser
popular, a cultura deve está em contato direto com o povo, seja na criação, na difusão
ou no consumo em larga escala. Com isso acredito que o grupo CRMS é sim um grupo
28

de cultura popular, pois os intercâmbios sócio culturais que ali ocorrem, servem a um
propósito, que é o de dar vida a uma brincadeira de origem popular, e digo isso pois o
que é posto em prática na brincadeira do grupo CRMS são as memórias do mestre, de
sua vida junto as práticas do povo, tanto da zona rural quanto das periferias urbanas,
assim como da memória das brincantes de suas participações em festas populares, do
povo para o povo. Esse intercambio sócio cultural também molda o que é o coco do
grupo CRMS, caracterizando-o como um novo modelo de grupo popular, nem
totalmente formado por atores da zona rural, nem por indivíduos das periferias urbanas.
O CRMS demostra ser um belo exemplo de simbiose cultural, em que toda a
informação que o Mestre Severino traz consigo, precisa do suporte do grupo para se
encaixar na atualidade, ponto onde entra a experiência das brincantes junto a burocracia
de eventos e editais de fomento a cultura, que nos dias de hoje se faz mais do que
necessários para manter viva e evidente a cultura popular.

2.3 Memória
Dentro do contexto do coco do Mestre Severino, a memória é elemento chave
para a perpetuação e transmissão dos elementos culturais dessa brincadeira. A memória
é conceituada por Simson (2006, p. 1) como sendo “a capacidade humana de reter fatos
e experiências do passado e retransmiti-los às novas gerações através de diversos
suportes empíricos”. Neste conceito a memória está presa a um tempo distante, o
passado a que se refere Simson, mas este passado pode ser expandido se pensarmos que
a memória humana guarda informações que apenas se concretizam no instante/momento
em que as ações ocorrem, o que torna a memória um mecanismo utilizado no tempo
presente e de uma forma continua. Ou como afirma o historiador Julio Pimentel Pinto
(1998, p. 207), “memória como lugar de persistência, de continuidade, de capacidade de
viver o hoje inexistente. Projeção do passado no presente, identificação de maracas de
uma continuidade pouco notável e certamente não obrigatória”
Para o semioticista russo Yuri Lotman “cultura é memória” ele reforça essa ideia
destacando que “toda cultura se cria como um modelo inerente à duração da própria
existência e a continuidade da própria memória” (LOTMAN apud. FERREIRA,
1994/95, p. 5). Nesse caso Lotman reforça a idéia de que cultura depende de uma
fixação ao longo do tempo, e que a memória seria esse suporte, no entanto se pensarmos
que muita coisa que é dita e aceita como parte da cultura de um povo, as vezes não são
elementos ou fragmentos de praticas longínquas, as vezes esses elementos são criados,
29

forjados no tempo presente com tanta força que se tornam elementos da cultura, ou nos
fazem acreditar nisso. A exemplo disso podemos citar o movimento dos blocos afro da
Bahia, que surgem na década de 80 como um movimento de auto afirmação de uma
negritude africana, que em poucos anos se torna símbolo da cultura negra baiana,
deixando no ostracismo todo um movimento ideológico e estético dos anos 70 que
remetia totalmente a cultura Black power americana.
O sociólogo Maurice Halbwachs (1950) apresenta à ideia de memória coletiva,
que envolve memórias individuais, que não estão inteiramente fechadas em si, para
construir uma memória formada por percepções e relatos externos a experiência do
indivíduo. Como muitas vezes acontece quando relatamos fatos de nossa infância, que
nem sempre estão vivos em nossa memória individual, mas ganham veracidade quando
os citamos baseados em relatos de nossos pais, omitindo essa fonte no discurso.
Pinto (1998, p.207) ao tratar das ideias de Halbwachs, nos ressalta que a
“memoria está afeiçoada ao passado”, mas que a materialização desse passado, reposto
no presente, “são sempre compostas nas tensões entre individuo e coletivo.” Trazendo
esse pensamento para este trabalho, nota-se essa tensão entre o individual e o coletivo
com relação aos cocos que são lembrados por Mestre Severino, isso fica evidente nas
falas do Mestre em que ele relata comentários de terceiros de que o que ele esta
cantando e brincando é coco de roda, o que validaria sua memória, seriam outras
pessoas afirmando que as lembranças das brincadeiras de coco do seu pai são legitimas.
Para que os elemetos culturais locados na memória sejam transmitidos para as
gerações posteriores fazem-se necessários estímulos, seja por parte de quem detém a
memoria, através do anseio de passar o conhecimento à frente, assim como os estímulos
podem partir de outras pessoas, que criam métodos e estratégias para que as lembranças
de uma pessoa venha à tona. O caso aqui estudado, o grupo CRMS nos mostram
algumas desses estratégias, em que o próprio grupo já é um estimulo para Mestre
lembrar dos cocos, tendo o mestre que montar junto com as brincantes o repertório do
grupo, uma vez que nas apresentações os cocos não são improvisados; outro estimulo
vem diretamente das brincantes, que no processo de aprender os cocos, perguntam sobre
um coco ao Mestre, pedem para que ele cante, ou guardam em sua própria memória
fragmentos de cocos que são cantarolados pelo Mestre em varias ocasiões, que não
necessariamente em ensaios, esses fragmentos servem muitas vezes de gatilho para que
o mestre cante o coco por completo.
30

No caso do contexto da cultura popular, o meio mais utilizados para se


transmitir as informações, no caso aqui musicais, é a oralidade . Suporte utilizado para a
transmissão musical desde épocas imemoriais, se aceitarmos que práticas musicais e sua
transmissão são mais antigas do que a invenção da escrita. A oralidade, ou seja, a
transmissão de saberes musicais através da vocalização e audição de informações,
demonstra uma intencionalidade no processo da transmissão. Já a auralidade, como
entendida por NETTL (Apud QUEIROZ, 2007), consiste uma percepção global do
indivíduo no que diz respeito à apreensão dos elementos transmitidos, ou seja, uma
apreensão através da observação, do sentir tátil e da convivência com a fonte de
transmissão. Nesta perspectiva a auralidade está mais ligada a uma menor
direcionalidade externa ao individuo.
No grupo CRMS a oralidade vai além de se cantar os cocos para que se repita, o
Mestre em suas inúmeras histórias e causos, acaba por transmitir inúmeros significados
para elementos da brincadeira, como na ocasião em que os coros dos tambores foram
trocados. O Mestre explicou verbalmente como era o processo de retirada e fixação do
couro no tambor, só em alguns momentos ele reforçava a informação demonstrando na
prática como deveria ser feito o serviço. Enquanto os coros iam sendo trocados, um
processo lento, o Mestre ia contando histórias e entoando cocos, nesse momento não
estávamos apenas aprendendo a trocar o couro, mas também novos versos e novos
significados para o coco.
É importante ressaltar que, a oralidade é o meio mais utilizado pelo grupo para a
transmissão do conhecimento do coco, mas o recurso da escrita não é impedido de
acontecer. Isso ocorre desde o inicio do grupo, quando o Mestre pedia para que sua
sobrinha anotasse os cocos em cadernos, que depois vieram a servir de suporte para as
brincantes, mas não todas, apenas algumas brincantes tiveram acesso a esse caderno.
Para o Mestre a fixação dos cocos na escrita das letras, é importante para salvaguardar
esse patrimônio.

2.4 Tradição
O conceito de tradição, em uma primeira vista e segundo o dicionário de
sociologia2, “é tudo que é transmitido do passado para o presente: os objetos, os
monumentos, as crenças, as práticas e as instituições” (Shils, 1981), já segundo o
2
Não foram encontradas as referencias desse dicionário, mas ele pode ser encontrado o endereço:
https://pt.scribd.com/document/19018804/DICIONARIO-DE-SOCIOLOGIA
31

dicionário de conceitos históricos3 “tradição é um produto do passado que continua a ser


aceito e atuante no presente. É um conjunto de práticas e valores enraizado nos
costumes de uma sociedade.” Nota-se que as duas concepções muito se assemelham
com o conceito de cultura e de folclore.
O conceito de tradição ganha força, juntamente com o processo modernização
das sociedades, o grande aumento dos centros urbanos, assim como a diminuição das
comunidades rurais. Grande parte disso ocorre devido a ua partepolarização ideológica
por parte dos intelectuais do século XIX e boa parte do século XX, em que defendiam
que o tradicional deveria dar lugar ao moderno, pensamento fomentado pelo movimento
iluminista, ou que o tradicional deveria ser exaltado como elemento legitimador da
identidade nacional, pensamento folclorista.
Vale salientar que no Brasil o tradicional foi amplamente ressaltado pelo
movimento folclorista, mas na grande maioria das vezes assim como nos aponta a
cientista social Vivian Catenacci (2001) em seu trabalho que trata da cultura popula:
entre a tradição e a transformação, os folclorista eram seletos em suas exaltações à
tradição, evidenciando a tradição que era conveniente para formar uma identidade
nacional. “Esses estudiosos estavam ao mesmo tempo diante da necessidade de salvar o
que pertencia ao nosso passado, e o desejo de esquecê-lo – colonização, exploração,
escravidão e mestiçagem.” (CATENACCI, 2001, p.30). ou seja, o tradicional seria
aquele passado perpetuado pelas práticas das comunidades remotas da zona rural, que
de tão isolada não influenciariam o progresso modernista das cidades. Nesse sentido
podemos refletir que o tradicional só existe porquê existe o moderno e vice e versa,
mesmo que muitas vezes um negue a influência do outro.
O conceito de tradição se faz presente nesse trabalho por se tratar de um conceito
que envolve a brincadeira do coco de um modo geral. Isso se dá provavelmente por uma
reminiscência do pensamento folclorista, que busca o ponto zero da cultura, e o coco foi
por muito tempo uma dessas coisas tomadas como resquício de uma cultura originária
do nosso país. Pensa-se na maioria das vezes em tradição como algo que é perpetuado
por gerações, e que em seu curso se mantém imaculado, sem modificações em suas
práticas. No entanto sabe-se que isso não é totalmente verdade. Segundo Eric
Hobsbawm (1984), em seu trabalho intitulado A invenção das tradições, elas (as
tradições) podem ser inventadas uma vez que

3
SILVA, Kalina Vanderlei. SILVA, Maciel Henrique. Dicionário de conceitos históricos, v. 3, 2005.
32

por um conjunto de práticas, normalmente reguladas por regras tácita


ou abertamente aceitas; tais práticas, de natureza ritual ou simbólica,
visam inculcar certos valores e normas de comportamento através da
repetição, o que implica, automaticamente; uma continuidade em
relação ao passado. (HOBSBAWM, 1984. P. 10)

Nesse sentido, podemos tomar como exemplo as roupas utilizadas pelas


mulheres nos rituais do candomblé. As práticas realizadas nesse contexto religioso
remetem a um a ancestralidade africana, logo, tudo que concerne a esse contexto pode
ser tido como tradicionalmente africano. No entanto a indumentária utilizado pelas
mulheres no culto do candomblé, não advém da África, mas sim das vestes das
mulheres europeias, com toda a pompa dos século XVIII. Com isso, podemos crer que a
ideia de que as vestes utilizadas pelas mulheres no culto do candomblé sejam a
perpetuação de um tradição africana, na verdade seria uma tradição inventada pela
padronização das vestes utilizadas pelas mulheres na época do Brasil colonial.
Ainda sobre esse conceito de tradição inventada, talvez esteja a brincadeira do
coco do Mestre Severino, dentro desse contexto, uma vez que a brincadeira é remontada
na contemporaneidade, com uma padronização e a construção de regras criadas pelo
grupo, a partir da memória do mestre como também da memória coletiva do grupo,
juntamente com o simbolismo dado ao Mestre como um eco do passado, assim como a
necessidade de uma parcela da população Potiguar em buscar uma ancestralidade
perdida no tempo, o que na maioria das vezes atesta a brincadeira como tradicional, o
coco como símbolo de identidade.

2.5 Transmissão
O conceito de transmissão é balizador nessa pesquisa, uma vez que se tenta aqui
saber como esse processo ocorre no grupo CRMS. Entre tanto o conceito de transmissão
sofre varias criticas no meio educacional, que acredita que o conhecimento não pode, ou
melhor, não deve ser transmitido e sim construído. Isso por que a escola traz consigo o
papel de preparar o indivíduo para a vida, e leia-se vida como viver em sociedade.
Nesse caso a pedagogia procurou quebrar como o paradigma tradicional de ensino,
alegando ser o conceito de transmissão vertical, em que o professor é quem dita o que o
aluno deve aprender e como aprender, entre tanto a pedagogia continua presa a essa
verticalização de poder, pois ela (a pedagogia) tem suas ações determinadas pelos meios
33

de produção, que por sua vez moldam a sociedade e suas necessidades, limitando a ação
docente sobre o que deve ser ensinado.
Para defender o uso do conceito de transmissão nesse trabalho, farei uma analise
acerca do tema, e de inicio, me apoio na educadora xxxxx, que em seu trabalho
intitulado Ensinar: do mal entendido ao inesperado da transmissão, a autora se debruça
sobre a discussão do tema, que em seu trabalho tem o foco na transmissão como
categoria a ser repensada, e de certo modo, incorporada as praticas dos professores em
ambiente escolar.
Primeiramente vamos verificar a origem do termo, que do latim - trans + mittere
– teria incorporado dois significados: trans, que quer dizer para além de; mittere que
significa enviar. A autora problematiza o entendimento do termo em uso cotidiano
como apenas a ação de enviar, deixando de lado o sentido de que transmissão (além de)
que diferentemente de enviar, em que se envia (desloca) um objeto ou alguém para um
destino, transmitir seria a ação inconsciente ou não de passar conhecimento de uma
pessoa a outra, sem deslocamentos de quem faz e recebe a transmissão. ou seja, “o
enviar é um fato, enquanto transmissão é um fenômeno , estando situada entre a escuta e
a fala, sendo essa a condição que justifica o acréscimo do "para além" ao enviar, para
significá-la.”
Sendo a transmissão um fenômeno e não um fato, sua apreensão não pode ser
realizada de um modo direto, pois não se pode admitir que o eu que transmite tenha
total competência da razão, dizendo o que realmente quer dizer, assim como o outro que
recebe tenha total compreensão dos códigos e significados transmitidos.
As visões contrárias ao conceito de transmissão, só comportam o ambiente
escolar ou de ensino regular. Pois esse está interessado em um sistematização dos
métodos de ensino que não comporta o fenômeno da transmissão. Nos contextos extra
escolares, ou nos contextos das tradições orais, a não sistematização, evitada pelos
pedagogos, é o meio pelo qual as tradições vem se perpetuando ao longo dos séculos. A
relação mestre aprendiz em inúmeros contextos e de varias formas, é o que sustenta esse
tipo de conhecimento inerente às culturas orais, e em especial quando se trata de
fenômenos musicais. Quem detém a conhecimento é o Mestre, e a forma de levar esse
conhecimento adiante, além, depende dele e do contexto de transmissão em que ele se
encontra. Como é o caso do grupo CRMS, em que o Mestre Severino é quem detém o
conhecimento sobre os cocos deixados por seu pai, e o grupo se configura em
indivíduos que compartilham do desejo de apreender esse conhecimento, criando
34

mutuamente estratégias para que a transmissão ocorra. Nesse sentido a transmissão não
pode ser entendida como uma via de mão única, mas uma interação de estímulos entre
Mestre e aprendiz. Essa via de mão dupla é observada no grupo CRMS, em que nota-se
um processo mais horizontal de aprendizagem, entre os brincantes.

2.6 Norteando o Pesquisador


Acreditando que através da sistematização oferecida pelos processos e métodos
de investigação, juntamente com a interação, reflexão e interpretação do pesquisador
junto ao objeto pesquisado, assim como a imersão do pesquisador no ambiente que o
objeto habita, é que se pode apreender o conhecimento que está alocado nas culturas
populares, orais, de tradição. Neste capítulo discorro acerca da metodologia aplicada
para a realização dessa pesquisa.

O contexto aqui pesquisado, da cultura popular, se mostra complexo e com


características que tanto o assemelha com tantos outros contextos populares, como
também difere deles em alguns pontos. Tendo como base a oralidade (junto ao seu
analfabetismo) e uma vida ligada ao trabalho rural, Mestre Severino ao criar o grupo, se
depara com pessoas com origem bem diferente da sua, pessoas com cargos de
professores públicos (federais e estaduais), estudantes de graduação, que tiveram uma
vida de aprendizado ligada as formalidades do ensino escolar. Sendo assim, se faz
necessário a escolha de abordagens investigativas que melhor esclareçam o processo de
transmissão que ocorre nesse contexto tão complexo que é habitat da brincadeira do
coco de roda do grupo.

Torna-se tarefa multidirecional a investigação aqui realizada em seu sentido


metodológico, pois o cenário a ser investigado apresenta características diferentes em
sua formação, em que os brincantes não são familiares do Mestre e não fazem parte de
sua comunidade, assim como o papel de transmissor, que está com o mestre mas é
fortemente conduzido pelos brincantes. O que interfere diretamente no processo de
transmissão do conhecimento musical, assim como na construção dos dados para a
pesquisa. O intercambio de métodos e procedimentos para a construção e analise de
dados se mostra o meio mais eficaz na compreensão dos complexos fenômenos de
transmissão musical das culturas de tradição oral em que “os processos de transmissão
musical assumem formas distintas dentro de cada grupo, apresentando particularidades
que caracterizam a própria performance musical.” (QUEIROZ. 2004, P. 103)
35

As questões referentes à pesquisa se delinearam no decorrer do processo


investigativo, no entanto os primeiros questionamentos, que antes me soavam
eloquentes para nortear a pesquisa, surgiram muito antes das ações investigativas, isto é,
antes das minhas ações investigativas como um pesquisador ligado a academia e ao
método cientifico, pois como musico – percussionista – sempre realizei pesquisas para
saber como eram executados os ritmos brasileiros, e dessas pesquisas inevitavelmente
surgiam reflexões sobre o fazer musical, que no caso do grupo CRMS foram ainda mais
recorrentes e profundas, pois eu não estava observando um maracatu da plateia, ou
ouvindo o som dos tambores de um afoxé da Bahia através de mídia digital, tentando
apreender o máximo de conhecimento sobre o ritmo com aquele contato, eu estava
fazendo parte da brincadeira, estava construindo junto com o Mestre Severino e os
integrantes do grupo, o que viria a ser o objeto de estudo desta pesquisa.

No primeiro momento, marcado pela minha inserção no grupo, me interessava


saber coisas referentes aos tambores utilizados na brincadeira, como afinavam, como
era o toque executado na brincadeira, como eram as cantigas. No segundo momento,
após algum tempo fazendo parte do grupo CRMS, comecei a refletir sobre como aquele
grupo apresentava características peculiares em sua formação; a memoria do mestre
como fonte de conhecimento de um traço da cultura oral Potiguar. Dessas reflexões que
surgiu o interesse em fazer do grupo CRMS meu objeto de estudo na Pós-graduação.

Após minha admissão no Programa de Pós-Graduação, tive contato com uma


serie de discussões sobre música, cultura e educação, assim como sobre processos
metodológicos de pesquisa. Com isso as primeiras questões foram dando lugar a outras
que através das reflexões promovidas pela observação participante, transcrições de
entrevistas e de áudios dos encontros do CRMS, demostram maior relevância na
compreensão de o que é esse grupo, se, ele é um grupo inserido no contexto da
perpetuação da tradição ou na mudança. Os participantes, por serem de outra geração,
de outra realidade social que difere do Mestre e acima de tudo não fazem parte do seio
familiar e comunitário de Seu Severino, talvez caracterize um tipo singular de formação
de grupo das tradições orais, uma vez que não se observa a já exposta transmissão de
pai para filho, entre irmãos ou parentes próximos, como também entre membros da
mesma comunidade, apresentada em trabalhos que tratam da transmissão ou ensino e
aprendizagem em culturas de tradição oral.
36

Ainda sobre minhas reflexões sobre o grupo, percebi que o Mestre Severino
comanda a brincadeira no momento em que ela ocorre, mas os brincantes do grupo,
através das sistematizações organizacionais para a realização dos ensaios e
apresentações, em que a disponibilidade dos brincantes e a logística de mobilidade,
tanto para o mestre quanto para os brincantes, são pontos decisivos para que a
brincadeira ocorra, demonstra forte comando do grupo nesse sentido. Essa divisão de
poder se mostra também no processo de transmissão, em que o mestre ensina, mas
também os aprendizes se ensinam mutuamente. Sobre isso, ainda foi possível observar
que a cadeia de hierarquia com relação à transmissão também é peculiar, que diferente
do que nos relata Arroyo (2000) sobre o aprendizado do congado, em que o ato de
ensinar sempre é do mais velho brincante para o mais novo. No grupo CRMS nota-se
que é possível que um brincante recém-chegado no grupo, apresente um elemento de
dança ou de execução vocal, que desperta nos brincantes mais antigos a vontade de
aprende-los e incorpora-los a brincadeira. Isso traz um foco investigativo mais amplo
sobre os processos de transmissão, uma vez que não é só o mestre que ensina e ou
brincantes aprendem, todos ensinam e aprendem entre si.

Outro ponto relevante nesse estagio da pesquisa, no sentido metodológico, foi a


realização da observação participante em meio ao processo de gravação do segundo CD
do grupo, assim como nos ensaios que ocorreram como preparação para a gravação, em
que ao mesmo tempo em que eu era observador, eu também estava produzindo o
fenômeno pesquisado. Isso trouxe algumas implicações metodológicas que serão mais
bem abordadas na sessão que trato da observação participante.

Para conseguir empreender uma investigação em um cenário tão complexo, que


é este do grupo CRMS, os métodos investigativos aqui empregados seguirão guiados
pelo legado deixado pelas investigações antropológicas, musicológicas, sociológicas e
etnomusicológicas, alocados na grande área da pesquisa qualitativa.

2.6.1 Pesquisa qualitativa


Pesquisas de cunho quantitativo como nos aponta Oliveira (1982, p.02), adotam
“uma orientação que aceita o comportamento humano como sendo resultado de forças,
fatores, estruturas internas e externas que atuam sobre as pessoas, gerando determinados
resultados”. A visão oposta a essa é aquela que defende que o homem não pode ser
37

manipulado como um objeto, os seres humanos são mais complexos que isso, tendo
suas atividades marcadas por interações e interpretações proporcionadas pelas relações
com os outros humanos, construindo sentido a partir dessas relações. É nessa vertente
que se encontram os estudos das ciências humanas, assim como as pesquisas de cunho
qualitativo. Nesse sentido acredito que este trabalho de pesquisa, que tem como objeto
de estudo um grupo de indivíduos que interagem, interpretam e dão sentido às suas
práticas na brincadeira do coco de roda, estar dentro da grande área do conhecimento
das ciências humanas, que como reforça Prus, tem como objeto de estudo as pessoas e
suas atividades
[...]considerando-os não apenas agentes interpretativos de seus
mundos, mas também compartilham suas interpretações à medida que
interagem com outros e refletem sobre suas experiências no curso de
suas atividades cotidianas.(PRUS apud MOREIRA, 2002, p. 50-1)

Para realizar a investigação da pesquisa, referente à música, a organização e a


transmissão do conhecimento musical dentro do grupo Coco de Roda do Mestre
Severino, optei pela abordagem qualitativa, por ser através de suas técnicas de
investigação, construção e analise dos dados, que se possa compreender com mais
profundidade como ocorre os processos de transmissão. Uma vez que nessa abordagem
metodológica os estudos sobre o homem, levam em consideração que o ser humano
interpreta o mundo em que vivi continuamente, através de suas interações com os outros
indivíduos e com o contexto em que essas interações acontecem, assim como transmite
suas interpretações adiante no tempo.
Isso porque nessas pesquisas, tenta-se apreender a perspectiva dos participantes,
isto é, como os informantes encaram as questões que estão sendo focalizadas no
trabalho e não como alguém que observa um objeto passível de manipulação, livre de
interpretações. Sobre isso a educadora Liora Bresler (2007) reforça que

Nós usamos pesquisa qualitativa como um termo geral que se refere a


várias estratégias de pesquisa que compartilham certas características:
l) descrição detalhada do contexto de pessoas e eventos; 2) observação
em ambientes naturais que, comparada com abordagens tradicionais
experimentais, apresenta pouca intervenção; 3) ênfase na interpretação
gerada por perspectivas múltiplas que apresentam questões
relacionadas aos participantes e questões relacionadas ao pesquisador;
e 4) validação da informação através de processos de triangulação.
(BRESLER, 2007, p, 8)
38

Investigando o objeto de estudo dentro de seu contexto sociocultural, segundo os


pensamentos de Bogdan & Biklen (1982), a pesquisa qualitativa encontra no ambiente
natural sua fonte direta de dados e tem o pesquisador como seu principal instrumento de
interpretação, mas não somente. Através do contato direto e prolongado com o campo
que se está investigando e através do intensivo trabalho de campo, as interpretações do
pesquisado também são peça chave na compreensão de questões relacionadas a
pesquisa. Esse aprofundamento dentro da realidade aqui pesquisada nos mostra a
influência do contexto sobre o objeto estudado, que a forma peculiar da construção do
grupo CRMS influência nas formas de transmissão da brincadeira do coco. Nesse
sentido vale ressaltar a minha imersão dentro da realidade estudada como parte
integrante e ativa da mesma, se mostra tão singular quanto o próprio grupo, pois como
integrante do grupo há três anos sou ao mesmo tempo pesquisador e pesquisado,
situação em que observo e ao mesmo tempo realizo o fenômeno.

2.6.2 Pesquisa qualitativa em música


Os estudos qualitativos em música são recursos muito uteis nas mão dos
educadores musicais. Alguns aspectos do fazer musical, do ensino e da aprendizagem
das diversas realidades culturais, ou das culturas singulares, que se atravessam dentro e
fora do ambiente escolar assim como em nossa vida cotidiana, podem ser melhor
compreendidos através de estudos qualitativos. Tratando da aplicação da metodologia
qualitativa à música, Liora Bresler afirma que

A metodologia qualitativa permite a exploração de novas direções,


incluindo estudos sobre currículo, estudos etnográficos que estudam a
música dentro de uma comunidade, estudos fenomenológicos de
ouvintes, compositores e intérpretes, e estudos sobre o uso de
materiais curriculares e inovações tecnológicas em música.
(BRESLER, 2007, p.15)

Saber como o mestre Severino e os integrantes do grupo entendem o processo


de transmissão de conhecimento musical, que ocorre em suas práticas, fornece tanto
dados empíricos (através da minha participação no grupo) quanto científicos (com os
procedimentos para construção de dados junto ao mestre e aos outros participantes),
levantados por meio das abordagens qualitativas que utilizo nesta pesquisa, tais como a
investigação etnográfica, a observação participante, experiências de vida, entrevistas
semiestruturadas, em conversas informais, levantamento bibliográfico acerca do tema
39

em questão, registros fotográficos e registros áudio visuais da brincadeira, assim como a


utilização da observação indireta por meio da rede social whattsapp, utilizada pelo
grupo para comunicação coletiva e tomada de decisões do grupo. Como na ocasião em
que eu acompanhava as conversas sobre a tomada de decisão das integrantes em
substituir as suas vozes da gravação do CD, por vozes de cantoras profissionais do
cenário musical da cidade do Natal, mas quanto pesquisador eu evitava ao máximo (mas
nem sempre conseguia) intervir ou interagir nas discussões ali realizadas. Isso gerou
uma problemática ética que abordarei mais à frente, quando tratarei da minha presença
em campo.

2.6.3 Estudo de caso etnográfico


A pesquisa qualitativa se desdobra em várias abordagens, cada uma com suas
peculiaridades e distintas aplicações, sendo elas a investigação etnográfica,
fenomenológica, interpretativa, estudo de caso, estudo de campo, investigação
naturalista, simbólico-interacionista ou simplesmente descritiva (Bresler, 1992). Nesse
trabalho esta sendo utilizada a investigação etnográfica e o estudo de caso, o que
caracteriza este trabalho como um estudo de caso etnográfico. André (2001, p. 30)
observa que esse tipo de procedimento, na pesquisa em educação, é “a aplicação da
abordagem etnográfica ao estudo de caso”, ou seja, meu caso é estudar o grupo CRMS,
sua formação e particularidades musicais e de transmissão, mas isso com os recursos
investigativos da etnografia. Nesse sentido discorro a seguir como se está pensando a
etnografia e o estudo de caso para este trabalho.

2.6.4 Estudo de caso


Para tentar caracterizar de uma forma mais clara, como estruturei a metodologia
deste trabalho, discorrerei nos próximos pontos sobre as características do método e
técnicas de pesquisa que orientaram minhas ações investigativas, a começar com o
estudo de caso.

O estudo de caso nasce na sociologia e antropologia ao final do século XIX e


início do século XX, com o propósito de realçar características e atributos da vida social
(DEUS; CUNHA; MACIEL, 2010). Robert Yin (1988) em seu trabalho, Estudo de
40

Caso, Planejamento e Métodos define que “um estudo de caso é uma investigação
empírica que investiga um fenômeno contemporâneo dentro do seu contexto da vida
real, especialmente quando os limites entre o fenômeno e o contexto não estão
claramente definidos” (YIN, 1988, p. 32). Nesse sentido esta pesquisa se encaixa na
definição de Yin por contemplar a investigação empírica, uma vez que sou integrante do
grupo agindo diretamente em suas práticas. Também, há a investigação de um
fenômeno contemporâneo, levando em conta que o grupo surge em 2008 e está ativo no
atual momento desta pesquisa.

De inicio, mais precisamente quando ingressei no curso de pós-graduação em


musica, meu objetivo sempre foi de ter o grupo CRMS como objeto de estudo, não só
por fazer parte do grupo, mas por reconhecer a riqueza de conhecimentos musicais e
extramusicais que ali era transmitida pelo mestre, através de suas histórias que
ilustravam um traço da nossa cultura potiguar. Além disso, as peculiares na formação do
grupo serviram de base para a particularização do objeto dentro dos estudos sobre
transmissão musical em grupos populares de tradição oral.

O grupo CRMS é a unidade de estudo deste trabalho, tendo como objetivo


investigativo, descrever os processos e estratégias de transmissão de conhecimento
musical que ocorrem dentro do grupo. Mas, como bem nos alerta André (2000, p. 31)
“isso não impede, no entanto, que ele (o pesquisador) esteja atento ao seu contexto e às
suas inter-relações como um todo orgânico, e à sua dinâmica como um processo, uma
unidade em ação” (ANDRÉ apud LEVAY, 2010, p. 31). Nesse sentido as inter-
relações que ocorrem no grupo entre o mestre e os integrantes do grupo, e dos
integrantes entre si, entre a minha pessoa como músico do grupo e como pesquisador, ,
as interações e interferências dos agentes externos ao grupo, assim como o
levantamento de informações sobre a brincadeira do coco no do Rio Grande do Norte,
foram levadas em consideração para que se possa alcançar o objetivo desta pesquisa,
que por ter como um dos intuitos descrever as práticas da brincadeira do coco do grupo
CRMS, caracteriza-se como um estudo de caso descritivo. Como nos aponta Gil
(2009) os estudos de caso descritivos estão preocupados em proporcionar a ampla
descrição de um fenômeno em seu contexto. Aqui amplio o conceito de Gil propondo
que a descrição não se limite apenas ao fenômeno, mas, também, o estudo do contexto
que seguindo a corrente da etnomusicologia representada aqui por Merrian (1964) que
41

acredita no aprofundamento do estudo de caso estendendo-se para o contexto das


culturas que o envolvem.

Segundo Stake (1995), em sua classificação do estudo de caso conforme suas


finalidades e numero de casos, este tipo de estudo de caso é classificado como
intrínseco, em que o pesquisador estuda o caso motivado pelo seu interesse de
conhecer mais sobre ele. Por mais que num primeiro momento pareça estranho que um
pesquisador não queira saber mais sobre o que pesquisa, vale salientar que isso é
possível quando se tem uma pesquisa encomendada e que o pesquisador serve de
instrumento terceirizado. O intrínseco aqui se torna é importante, pois como integrante
do grupo e musico percussionista interessado em conhecer cada vez mais as músicas
da minha cidade, do meu Estado e do meu país, faço dessa pesquisa meu
aprofundamento pessoal no universo da brincadeira do coco de Mestre Severino.

Outro tipo de classificação do estudo de caso foi realizada por Maffesoli (2008)
em que o divide em estudo de caso exploratório, descritivo ou explanatório. Encaixo
essa pesquisa na categoria de estudo de caso descritivo, que apesar de ter a
interpretação e reflexão como eixos centrais, em virtude da postura adotada em campo,
a descrição se torna fundamental nesse trabalho, a fim de detalhar o contexto em que o
grupo CRMS está alocado e como ocorre o processo de transmissão, como também
visa aproximar o leitor do universo aqui pesquisado, descrevendo os tambores
utilizados na brincadeira, a dança, os locais de brincadeira, os brincantes, bem como
descrito na sessão que caracteriza o grupo.

2.6.5 Procedimentos de coleta no estudo de caso

Neste ponto faço uma ressalva quanto ao conceito de coleta de dados, que está
destacado no titulo desta sessão simplesmente porque os autores que aqui abordo sobre
o estudo de caso assim o tratam, mas tomando o conceito para reflexão e, não sou eu o
primeiro a fazê-lo, penso que de certa forma os dados com os quais nos deparamos no
campo, não são passiveis de serem coletados, como quem retira amostras de plantas de
uma floresta. Ao que concerne à complexidade dos estudos das ciências humanas,
42

principalmente no âmbito dos estudos de música e sua transmissão em contextos de


tradição oral, o sentido dos dados são na verdade construídos pelo olhar interpretativo
do pesquisador que, ao entrar em campo não encontra uma plantação de dados a serem
colhidos para a sua pesquisa, mas sim uma complexa rede de informações que só se
conectarão e tomaram forma de dado de pesquisa através do olhar do pesquisador que
está em campo, baseado nos questionamentos que o próprio campo irá lhe oferecer, ou
como nos aponta Oliveira (1998) na domesticação do olhar do pesquisador por meio de
suas orientações teóricas. O que quero dizer é que muito provavelmente pesquisadores
com objetivos, questionamentos e bases teóricas diferentes, ao entrarem no mesmo
campo, não iram enxergar os mesmo dados, simplesmente por estarem com o olhar
interessado em aspectos distintos de suas respectivas pesquisas, o que atribuirá sentido
diferente as acontecimentos do campo.

Em suma, os dados sobre transmissão do conhecimento musical no grupo


CRMS, não estão fosforescentes na brincadeira, para que todos os identifiquem
imediatamente. De fato eles estão desmontados e escondidos na complexidade da
brincadeira, dependendo do interesse do pesquisador em evidencia-los e monta-los
como um quebra cabeça, cujas peças terão forma e encaixe específicos para cada
pesquisador.

Sobre os procedimentos de coleta de dados do estudo de caso, Gil (2009)


destaca a importância de se utilizar “múltiplas fontes de evidência” e que o cruzamento
dessas fontes a fim de contrastar os dados obtidos, para garantir a qualidade da
informação. Destacam-se entre os instrumentos de “coletas de dados” no estudo de
caso a observação, entrevista e análise documental. Neste trabalho foram utilizados
esses três instrumentos citados acima, com o suporte da abordagem etnográfica, que
auxilia de forma significativa a reflexão sobre o que se vê em campo, assim como a
interpretação dos indivíduos que foram pesquisados, possibilitando a construção dos
dados para a pesquisa. Mais à frente abordarei como foram pensadas a observação e as
entrevistas nesta pesquisa.

2.6.6 Etnografia
Desde que me deparei com os conceitos de etnografia, apresentados a mim no
curso de Pós-graduação em educação musical, através de seminário que realizei sobre o
43

tema, percebi que neste trabalho a etnografia seria a base para minhas ações
investigativas, pois percebi que através dela podia investigar as estruturas de significado
dos participantes nas diversas formas que são expressas, assim como o contexto que as
acolhe (WILSON, 1977). Essa postura praticada pela etnografia serve muito bem ao
propósito dessa pesquisa, pois sendo o grupo CRMS heterogêneo em sua formação, no
sentido social e de geração, apreender o que os integrantes do grupo (incluindo eu) junto
com o Mestre pensam a respeito da sua prática na brincadeira e acima de tudo como eles
enxergam sua aprendizagem, é fator preponderante para a compreensão da transmissão
do conhecimento dentro do grupo.

Pesquisas de cunho etnográfico vêm despertando interesse para a área de


educação musical, segundo Lüdke E André (1986), desde a década de 70.
Anteriormente a técnica era utilizada quase que exclusivamente pelas áreas da
antropologia e sociologia, que terão como principais nomes os estudiosos, Bronislaw
Malinowiski, com uma abordagem funcionalista, explicitada no estudo sobre os nativos
das ilhas Trobriand, que é marco nos estudos que utilizam a observação participante e a
imersão na cultura estudada. Franz Boas com seu relativismo cultural, em que defende
que nosso conceito de civilização, só é verdadeiro na medida da nossa própria
civilização, isso estendendo-se à cultura, estruturas sociais e relações humanas, que ao
olharmos para outra cultura, temos que tentar compreender o sentido que a ela (cultura)
é dado por seus indivíduos. Quanto a presença do pesquisador em campo, Boas nos
aponta que

Qualquer um que tenha vivido entre as tribos primitivas,


compartilhado alegrias e seus sofrimentos, que tenha conhecido com
eles seus momentos de provação e abundância, e que não os encarem
como simples objetos de pesquisa examinados como célula num
microscópio, mas que os observe como seres humanos sensíveis e
inteligentes que são, admitiria que eles nada possuem de um “espírito
primitivo, de um “pensamento mágico” ou “prélógico” e que cada
individuo no interior de uma sociedade “primitiva” é um homem, uma
mulher ou uma criança da mesma espécie possuindo uma mesma
forma de pensar, sentir e agir que um homem, uma mulher ou uma
criança de nossa própria sociedade. (Boas, 2003, p. 32).

Outro nome importante para a etnografia é o antropólogo Clifford Geertz, que


propõem uma antropologia interpretativa, que visa analisar a cultura como hierarquia de
significados, onde a etnografia seja uma ferramenta para uma “descrição densa”, onde a
44

leitura que os indivíduos fazem de sua própria cultura, ou a apreensão do significado


por aprte da imersão do pesquisador, seja um ponto crucial. Sobre isso Geertz diz

O que o etnógrafo enfrenta, de fato — a não ser quando (como deve


fazer, naturalmente) está seguindo as rotinas mais automatizadas de
coletar dados — é uma multiplicidade de estruturas conceptuais
complexas, muitas delas sobrepostas ou amarradas umas às outras,
que são simultaneamente estranhas, irregulares e inexplícitas, e que
ele tem que, de alguma forma, primeiro apreender e depois apresentar.
(GEERTZ, 1973, p.07)

Para a investigação dos processos de ensino e aprendizagem, a etnografia sofreu


alguns ajustes para atender melhor às necessidades das pesquisas de cunho educacional.
Essa adaptação fica melhor compreendida na fala de LÜDKE E ANDRÉ, (1986), em
seu trabalho sobre pesquisa em educação com abordagem qualitativa, onde nos fala que,
sendo a etnografia inserida dentro das pesquisas sobre educação, ela (etnografia) se
distancia um pouco do seu foco, que é “a descrição de um sistema de significados
culturais de um determinado grupo” (LÜDKE E ANDRÉ, 1986, p. 13-4) para focar na
reflexão do processo de ensino e aprendizagem situando-o dentro de um contexto
sociocultural mais amplo. Essa mudança do foco da etnografia é também demonstrada
na fala de Fernando Sibirón citado por Carlos Nogueira Fino da Universidade da
Madeira, se referindo ao sentido da etnografia quanto método para a educação, observa
que

A etnografia da Educação, investigando de e sobre instituições, grupos


e organizações sociais, supera a estrita dependência descritiva, ao ser
entendida como devedora de um enfoque pluridisciplinar, uma vez
que é pluridisciplinar o saber disponível sobre essas instituições,
grupos e organizações. De modo que se mantém a dependência
descritiva, mas como base sobre a qual se interpreta. E continua,
afirmando que a dupla vertente de pensamento e de acção, assim como
a finalidade consciencializadora e dialéctica da investigação sobre o
conjunto dos fenómenos educativos conferem à investigação
etnográfica uma intencionalidade distinta da etimológica: a
interpretação e a crítica (FINO, 2006, p. 3)

Na perspectiva de uma etnografia para a educação, alguns pontos são destacados


por Wolcott citado por Lüdke e André (1986, p. 14), o autor destaca seis pontos, porém
para o interesse desta pesquisa, destacarei apenas quatro:
1. O problema é redescoberto no campo, uma vez que as possíveis hipóteses
podem ser modificadas com a inserção do pesquisador em campo.
No presente trabalho, algumas questões foram emergindo na medida em que se
observava, com olhar atento e descrição dos acontecimentos, questões do tipo: a
45

organização do grupo CRMS influencia no processo de transmissão? Que tipo de


“brincante” é esse que forma o grupo e que transformações ele traz para a brincadeira?
O mestre é uma liderança dentro do grupo ou seria apenas o repositório de uma
tradição? Tendo em vista como o grupo foi criado, estaria esse grupo passando por
mudanças no processo de transmissão desde sua criação? Estes questionamentos surgem
em meio a pesquisa e estão dando um direcionamento para que se possa compreender
como o conhecimento musical é transmitido no grupo.
2. O pesquisador deve realizar a maior parte do trabalho de campo pessoalmente,
pois será o seu olhar sobre o objeto de estudo, que trará luz às questões levantadas na
pesquisa.
Minha participação no grupo como integrante, responsável por tocar, me aloca
junto ao objeto de pesquisa e consequentemente no campo, desde a minha entrada no
grupo que exerço um olhar investigativo sobre a brincadeira, isso pela minha formação
como percussionista erudito e popular, sempre curioso em saber não só como se toca
um ritmo, mas em tentar compreender sua essência, como se dança, como se canta, sua
organologia e as origens do ritmo. Esse olhar curioso sobre um ritmo, me fez levantar
informações pertinentes á brincadeira que me serviram de alicerce para ter o grupo
CRMS como objeto desta pesquisa. Após ter decidido que o grupo seria meu objeto de
pesquisa, e que meu foco seria em investigar a transmissão musical que ocorre no
grupo, meu olhar se modificou e tomou uma proporção mais ampla.
3. A abordagem etnográfica combina vários métodos de coleta para que se possa
realizar a triangulação das informações levantadas no campo.
Neste trabalho estão sendo utilizadas três métodos para se chegar aos dados, a
saber, a observação participante, e as vezes participativa, juntamente com o apoio do
caderno de campo; a audição e transcrição de ensaios gravados, e transcrições de
entrevistas gravadas.
4. No relatório etnográfico, que apresenta uma grande quantidade de dados
primários, são as primeiras impressões que o etnógrafo tem do campo que lhe darão o
norte para sua pesquisa.
O primeiro relatório que fiz sobre o grupo, a pedido do meu orientador, foram
as impressões que trazia comigo como integrante do grupo, aliadas a um olhar
investigativo já despertado pelas primeiras orientações, tanto do meu professor
orientador, quanto pelas disciplinas pagas no primeiro semestre de curso. Desse
relatório que foi traçado o primeiro caminho investigativo a se percorrer.
46

Tendo como abordagem metodológica a etnografia para a realização desta


pesquisa, faz-se necessário abordar as técnicas de pesquisa do etnógrafo para
levantamento e análise dos dados que serão colhidos em campo. Oliveira observa que
“A abordagem etnográfica permite a combinação de técnicas como: a observação
participante, a entrevista, a história de vida, a análise de documentos, vídeos, fotos,
testes psicológicos, dentre outros” (OLIVEIRA, 1982, p. 5).
Antes de abordar as técnicas que estou utilizando na pesquisa, acho necessário
discorrer acerca de uma habilidade inerente ao trabalho etnográfico. Habilidade esta que
permite ao etnógrafo enxergar as peculiaridades do campo estudado, seja no âmbito das
relações sociais, nas práticas cotidianas, nas falas do interlocutor ou até mesmo nas
impressões que o meio, em que o pesquisador está inserido, são capazes de revelar
questões relevantes à pesquisa.
Sarmento (2010) nos diz que a etnografia direciona o olhar investigativo para os
símbolos, as interpretações, as crenças e valores que integram a vertente cultural . Esta
habilidade conhecida como “olhar etnográfico”, surge da ruptura, ou melhor, do
descentramento da visão de mundo por parte da cultura ocidental, “no momento em que
a cultura europeia foi deslocada, expulsa de seu lugar, deixando então de ser
considerada como a cultura de referência” (DERRIDA, 1971, p. 234). Essa nova
percepção de mundo fez com que olhares curiosos fossem lançados para as outras
culturas, não olhares friamente analíticos, mas olhares interessados em interpretar e
compreender, os significados que os outros povos davam as suas ações em quanto
sociedades organizadas. É através desse olhar etnográfico, que conseguiremos em
quanto pesquisadores, realçar as ações, como também, os significados e as relações
sociais que se fazem presente no campo de estudo.

2.6.7 Uma etnografia da música


Apenas o olhar sobre a visão da educação sobre a etnografia, não bastaria para
abarcar toda a complexidade que constitui o universo desta pesquisa, afinal não estamos
falando sobre uma sala de aula ou um local de ensino formal de musica, mas de uma
brincadeira popular, com complexidades e características próprias e uma musica
própria. Anthony Seeger (1992) em seu trabalho intitulado Etnografia da musica,
delineia a etnografia ressaltando suas diferenças com a antropologia da musica, sobre
isso ele diz:
47

A etnografia da música não deve corresponder a uma antropologia da


música, já que a etnografia não é definida por linhas disciplinares ou
perspectivas teóricas, mas por meio de uma abordagem descritiva da
música, que vai além do registro escrito de sons, apontando para o
registro escrito de como os sons são concebidos, criados, apreciados e
como influenciam outros processos musicais e sociais, indivíduos e
grupos. A etnografia da música é a escrita sobre as maneiras que as
pessoas fazem música. (SEEGER, 1992. p. 239)

Seeger no mesmo trabalho, ainda aponta o foco e as formas de geração de dados


que deve ter uma etnografia da música, afirmando que,

Ela deve estar ligada à transcrição analítica dos eventos, mais do que
simplesmente à transcrição dos sons. Geralmente inclui tanto
descrições detalhadas quanto declarações gerais sobre a música,
baseada em uma experiência pessoal ou em um trabalho de campo.
(SEEGER, 1992. p. 239)

Para que se consiga chegar ao objetivo desse trabalho, que é investigar a


transmissão musical no grupo CRMS é necessário ter esse olhar sobre o conhecimento
musical, um olhar para além do som, mais interessado em compreender suas motivações
e funções do que sua produção. Saber como a música da brincadeira do coco de roda é
vivida pelo mestre e pelos integrantes do grupo. E daí compreender os processos de
transmissão. Para ficar mais claro, primeiramente levei em consideração a motivação do
Mestre em formar o grupo, que advém da vontade do mestre de exaltar e levar adiante o
legado deixado por seu pai (o coco), em seguida a motivação dos brincantes, que tem
por base a procura por raízes identitárias da cultura Potiguar, reconhecendo o mestre
como elo entre eles (brincantes) e uma ancestralidade escondida em meio a
contemporaneidade.

2.6.8 Reentrando em campo.

A inserção do pesquisador no campo é um momento determinante no futuro


andamento da pesquisa; é no ato da entrada em campo que se vai tentar firmar as
relações entre o pesquisador e seus interlocutores, assim como a escolha do interlocutor
principal, que é a pessoa responsável pela aproximação do pesquisador no campo de
investigação, o interlocutor principal pode ser um indivíduo escolhido pelo pesquisador,
como o pesquisador pode ser escolhido pelo indivíduo.
Não julgo necessário discorrer sobre os procedimentos de aproximação que
foram utilizados na pesquisa, simplesmente pelo fato de já estar inserido dentro do seio
48

da brincadeira há aproximadamente quatro anos, atuando como tocador de tambor, no


caso o zambê, participando dos ensaios, apresentações e brincadeiras realizadas no
“terreiro do mestre”, onde minha observação, de dentro para fora, já se faz presente há
algum tempo.
A minha motivação em saber quais, e como são os ritmos do RN e as
brincadeiras da qual eles fazem parte, foi o que me fez procurar a brincadeira, e como
eu já era conhecido por todos os integrantes do grupo, através da minha atuação no
cenário de shows da cidade do Natal, a minha reentrada no grupo foi bem aceita e não
houve resistência quanto a isso, assim como não houve objeções quanto a realização da
pesquisa com o grupo, pelo contrario, tanto os integrantes quanto o mestre estão sendo
bastante colaborativos para que eu colete as informações necessárias para a realização
da pesquisa.

2.6.9 A observação participante


Entendemos, como Oliveira, que “Nessa técnica de pesquisa qualitativa, os
investigadores imergem no mundo dos sujeitos observados, tentando entender o
comportamento real dos informantes, suas próprias situações e como constroem a
realidade em que atuam.” (Oliveira, 1982, p. 8). Nessa perspectiva a utilização da
referida técnica se faz mais do que necessária para a compreensão de como se ensina e
se aprende música dentro do grupo pesquisado. Segundo Moreira (2002) apud Oliveira,
(1982, p, 8) a observação participante é “uma estratégia de campo que combina ao
mesmo tempo a participação ativa com os sujeitos, a observação intensiva em ambientes
naturais, entrevistas abertas informais e análise documental” A utilização desse recurso
para o pesquisador se configura como uma tarefa difícil de ser realizada. Isso fica claro
quando LÜDKE E ANDRÉ (1986) nos diz que:

É fato bastante conhecido que a mente humana é altamente seletiva. É


muito provável que, ao olhar para um mesmo objeto ou situação, duas
pessoas enxerguem diferentes coisas. O que cada pessoa seleciona
para ver depende muito de sua história pessoal e principalmente de
sua bagagem cultural. Assim, o tipo de formação de cada pessoa, o
grupo social a que pertence, suas aptidões e predileções fazem com
que sua atenção se concentre em determinados aspectos da realidade,
desviando-se de outros. (LÜDKE E ANDRÉ, 1986, p. 25)

Ampliar o olhar em campo se torna o grande desafio para a realização de um


trabalho etnográfico. No caso desta pesquisa, na qual já estou inserido dentro do campo
a ser estudado há alguns anos, torna-se extremamente necessário que exista um
49

estranhamento no meu olhar sobre as práticas de ensino e aprendizagem musical que


vivemos dentro do grupo, que se consiga criar certo distanciamento, para que possa
lançar mão de olhares tanto da minha atuação como “brincante” e também da minha
atuação como pesquisador. Isso ficou evidente na maioria dos momentos em que
realizava a observação participante, em que ao mesmo tempo tinha que observar e
realizar a ação observada, o que se mostrou durante a pesquisa uma grande dificuldade
para registrar os acontecimentos ocorridos em campo.

Adler e Adler (1987) dividem a observação em três categorias: observação


participante periférica, observação participante ativa e observação participante
completa. Neste trabalho caracterizo minha observação participante como ativa, pois
como nos aponta Fino (2003), se valendo do trabalho de Adler e Adler como
referencial, a observação participante ativa é a escolha dos investigadores que tentam
adquirir um estatuto no seio do grupo em estudo e desempenhar um papel nesse grupo,
mas mantendo sempre certa distância. Para complementar essa questão, Fino ressalta a
fala de Lapassade (1991) evidenciando que

O conflito relacionado com a observação participante activa,


sobretudo quando esta decorre em estabelecimentos de educação.
Decorre esse conflito da prática de uma etnografia verdadeiramente
participante activa, ao mesmo tempo que se tenta evitar participar nas
mudanças ou mesmo provocá-las. (FINO, 2003, p. 5)

Sobre esse conflito citado acima, destaco minha peculiar posição junto ao objeto
de pesquisa e as dificuldade que encontrei para não interferir no cenário pesquisado.
Isso porquê como membro do grupo e pesquisador, algumas vezes me vi encurralado
em questões éticas sobre meu papel em certas decisões. Isso fica claro nas decisões
tomadas para a gravação do segundo CD do grupo CRMS, em que eu partilhava de uma
opinião contraria as dos demais participantes. A saber, para a gravação do disco foi
decidido pela maioria do grupo em um primeiro momento que: a gravação ocorreria em
estúdio (para que se garantisse um nível de qualidade), alguns ensaios seriam realizados
em estúdio (a fim de adaptação do grupo a esse ambiente), um produtor musical
(externo ao grupo) assumiria a direção da gravação. Na reunião em que estas decisões
foram tomadas, me posicionei contrariamente ao restante do grupo, mas infelizmente ou
felizmente fui voto vencido. Infelizmente porque acredito que a gravação dentro do
estúdio “endurece” a performance do grupo, retira o grupo de seu ambiente natural, em
que as brincantes tanto cantam quanto dançam e o Mestre segue um repertório que é
50

organizado no momento em que a brincadeira acontece. Esse cenário para mim


demonstra maior fidelidade ao que é o coco de roda do Mestre Severino.

Além disso, os ensaios para adaptação do grupo ao ambiente de estúdio seriam


desnecessários se a gravação ocorresse no loco da brincadeira (no terreiro do mestre),
evitando o deslocamento tanto do Mestre quanto do grupo para um ambiente estranho a
eles. Sobre a decisão, para mim absurda, de se contratar um produtor musical para
dirigir a gravação e a performance do grupo, acredito que uma pessoa externa ao grupo,
que não participa das práticas musicais do mesmo, só agiria no sentido da modificação
da performance do grupo, pois, como poderia ele (o produtor) imprimir padrões e
formas a uma manifestação tão particular ao grupo, por se tratar de um conhecimento e
uma prática transmitida pelo mestre e construída pelo grupo?

Passado esse momento, percebi que por mais que eu tivesse uma opinião
contraria ao resto do grupo de como proceder nesse processo de gravação, felizmente
minha decisão de não interferir mais nas decisões do grupo, permitiu que um cenário
totalmente novo se revelasse, e com ele muitos pontos sobre as estratégias de
transmissão do grupo, que ainda não tinham ocorrido, fossem vividas na observação
participante. Sobre isso volto ao meu encurralamento ético, em que tive que decidir em
me comportar como integrante do grupo, preocupado com os impactos que as ações
citadas nos parágrafos acima trariam para a brincadeira, ou no meu posicionamento
como pesquisador, que estaria mais interessado em observar (nesse momento, sem
partido) esses impactos a titulo de pesquisa. Confesso que não sei se agi corretamente
ou não, mas optei nesse momento por me manter como pesquisador e só observar.

A sistematização da observação e um fator importante para que esta possa ser


uma ferramenta eficaz e fidedigna no levantamento de dados. Planejar as ações
referentes à observação, como “o quê” e “como” observar, auxiliarão na delimitação do
objeto de estudo, respondendo à pergunta “o quê?” O grau de observação e a duração da
mesma, respondem “como” a observação se desenrolará. (LÜDKE E ANDRÉ, 1986).
Para

Para que a observação gere dados relevantes para a pesquisa, é necessário que o
pesquisador aprenda a fazer registros descritivos do que é observado, tendo a
competência para selecionar o que é relevante para a pesquisa do que é trivial, como
também deve saber fazer anotações organizadas e rigorosas de suas percepções. No caso
51

da minha observação, os registros eram posteriores aos acontecimentos, pois estava eu


como integrante do grupo produzindo os mesmos. No registro que realizei de uma dos
ensaios para a gravação do CD isso fica mais explicito, como mostro abaixo.

Ensaio do dia 01/03/2016

Este ensaio dá continuidade a preparação para a gravação do CD,


ainda ocorrendo no estúdio localizado em pium. Ás 14:30h chegamos
eu e Cris no estúdio e lá já se encontravam as outras brincantes e a
pessoa que foi contratada para produzir o CD. O mesmo produtor
também estava no processo de gravação do primeiro CD do grupo em
2009, este é um dos principais motivos para que ele também esteja
presente nesse processo, o que nas palavras do mestre e do grupo, em
uma reunião prévia, os deixariam mais tranquilos e seguros com
relação à organização do processo no estúdio.

Em muitas notações de campo nesse trabalho, além de descrever os


acontecimentos que estão ocorrendo no exato momento da observação, também utilizo
os momentos de escrita dos acontecimentos para refletir sobre coisas que estão
ocorrendo, como também muitas vezes insiro informações ligadas a minha memória de
acontecimentos que presenciei em outro momento, e que são ativados pela observação
presente.

A observação participante não é somente uma estratégia ou técnica de pesquisa,


ela é uma necessidade para a realização de uma etnografia. É possível se fazer uma
etnografia se valendo de outras estratégias de coleta, porém, a imersão do pesquisador
dentro do cotidiano do grupo que se está estudando, possibilitará uma reflexão mais
próxima dos acontecimentos, e mais próxima da visão que os indivíduos têm de suas
práticas. Sobre isso Michael Angrosino (2009) aponta que:

Certamente é possível usar as típicas técnicas de coleta de dados da


etnografia (...) sem realizar observação participante. Por exemplo,
pode ser mais eficaz, em alguns casos, pedir aos participantes para
escrever (ou gravar) suas próprias autobiografias, em vez de ter essas
histórias de vida coletadas por um entrevistador in loco.
(ANGROSINO, 2009, p. 33)

Nesse sentido apresentado por Angrosino, nesta pesquisa alguns dos dados
foram cedidos pelos próprios integrantes, como gravações de ensaios fotos e vídeos de
oficinas e do processo de gravação, pois como na maioria das vezes estava tocando o
tambor para que ocorresse a brincadeira, me apoiava nas brincantes que não estavam
52

tocando, e que muitas vezes, em virtude de algumas brincantes serem atuantes da área
profissional do áudio visual, estavam interessadas em registrar aqueles momentos.
Meu pertencimento ao grupo CRMS, traz consigo as condições necessárias para
que se realize uma observação participante segundo os apontamentos de Carlos
Nogueira Fino (2003), citando Bogdan e Taylor (1975), que caracteriza a observação
participante como um tipo de investigação em que por um período de interações sociais
intensas entre o investigador e os sujeitos, no ambiente destes, sendo os dados
recolhidos sistematicamente durante esse período de tempo, e mergulhando o
observador pessoalmente na vida das pessoas, de modo a partilhar as suas experiências.
Além da observação participante, outras técnicas foram utilizadas para fazer
imergir do contexto aqui pesquisado, as informações que serviram à construção dos
dados para a pesquisa. A observação participante em si já revelaria varias informações a
respeito do campo estudado, mas, também,
Através das entrevistas etnográficas, que são as conversações
ocasionais no terreno, portanto não estruturadas, e mediante o estudo,
quer de documentos “oficiais”, quer, sobretudo, de documentos
pessoais, nos quais os nativos revelam os seus pontos de vista pessoais
sobre a sua vida ou sobre eles próprios, e que podem assumir a forma
de diários, cartas, autobiografias. (FINO, 2008, p. 4)

Nesse sentido é que se pode elencar as informações necessárias para a


construção dos dados que irão servir à triangulação dos mesmos a fim de analise. A
seguir apresentarei as outras técnicas aqui utilizadas.

2.6.10 As entrevistas
Durante a estadia do pesquisador em campo, não bastará apenas a observação
por si só, mas deve-se procurar utilizar outras técnicas de coletas de dados,
principalmente no que diz respeito ao estudo etnográfico, uma vez que os resultados
alcançados com esse método se valem da triangulação dos dados construídos em campo
através de mais de uma técnica de coleta.

Neste trabalho de pesquisa, foi utilizado como suporte para essa triangulação,
além da observação participante e levantamento bibliográfico, a utilização da entrevista
como recurso para a apreensão da visão do mestre e dos brincantes, sobre o processo de
ensino e aprendizagem musical dentro do grupo.
53

Para que se possa chegar a uma conclusão confiável nos estudos qualitativos, de
cunho etnográfico, é preciso cruzar informações sobre o que se sabe sobre o que se
pesquisa; a percepção do pesquisador; e a percepção do pesquisado. Nesse sentido, a
entrevista se configura em uma ferramenta de excelência para revelar a percepção do
pesquisado sobre sua própria realidade, em outras palavras, a entrevista literalmente dá
voz aos entrevistados, fazendo com que se tenha um relato de suas experiências de
forma mais fidedigna. Mas a entrevista, sendo mal planejada e executada, pode
modificar o sentido que o pesquisado tem da sua realidade. Por isso é importante
escolher bem o tipo de entrevista que será empregado na pesquisa.

Escolhi para dar norte às entrevistas desta pesquisa, a perspectiva de Lüdke e


André (1986), que nos falam que

De início, é importante atentar para o caráter de interação que permeia


a entrevista. Mais do que outros instrumentos de pesquisa, que em
geral estabelecem uma relação hierárquica entre o pesquisador e o
pesquisado, como na observação unidirecional, por exemplo, ou na
aplicação de questionários ou de técnicas projetivas, na entrevista a
relação que se cria é de interação, havendo uma atmosfera de
influência recíproca entre quem pergunta e quem responde. (Lüdke;
André, 1986. P. 33)

As autoras ainda destacam o papel das entrevistas mais livres


Especialmente nas entrevistas não totalmente estruturadas, onde não
há a imposição de uma ordem rígida de questões, o entrevistado
discorre sobre o tema proposto com base nas informações que ele
detém e que no fundo são a verdadeira razão da entrevista. Na medida
em que houver um clima de estimulo e de aceitação mútua, as
informações fluirão de maneira notável e autêntica. (Lüdke; André,
1986, p. 33)

As entrevistas desta pesquisa ocorreram de forma semiestruturadas e não


estruturadas, sendo as entrevistas não estruturadas utilizadas em um processo inicial,
principalmente com o mestre Severino. Nessas primeiras entrevistas com o mestre a
pergunta que serviu de base para a fala do mestre foi: como começou o grupo? E a partir
dessa questão, o mestre Severino traçou um roteiro em que foram revelados aspectos
importantes para estruturar uma segunda entrevista. Na segunda entrevista, agora com
uma semiestrutura no roteiro da entrevista, baseada nas informações fornecidas pelo
mestre na primeira entrevista, em que o mestre delineou livremente sobre sua história,
as perguntas eram sobre sua relação com seu pai, como era sua vida como brincante,
quais eram as brincadeiras.
54

As entrevistas semiestruturadas foram realizadas com as integrantes do grupo, a


saber, a primeira entrevista desta pesquisa foi realizada com uma das integrantes mais
antigas do grupo. Nessa entrevista alguns pontos sobre a criação do grupo e a visão da
integrante sobre a figura do mestre, foram abordadas em um questionário estruturado
previamente. Essa entrevista também gerou dados para estruturar as futuras entrevistas
com os demais participantes. A saber, as perguntas feitas à integrante foram: como ela
conheceu o mestre? Qual a relação da brincante com o coco? Como ela vê a figura do
mestre? É o grupo que legitima Seu Severino como mestre? Dessas perguntas varias
questões foram levantadas para balizar as entrevistas seguintes.

Ainda sobre as entrevistas, destaco que algumas facilidades e dificuldades foram


encontradas para a realização desta técnica de pesquisa, em virtude dos próprios
entrevistados. Isso porque, como frisei em uma sessão mais acima, os integrantes do
grupo em sua maioria são formados academicamente, ou estão em processo de
formação, mas todos tem algum conhecimento acerca das investigações cientificas. Nas
entrevistas, muitas vezes os integrantes do grupo, demonstram uma reflexão excessiva
ou mesmo um cuidado com suas falas, pois sabem eles que estão fornecendo relatos
para uma dissertação de mestrado. Isso traz uma problemática para a pesquisa, uma vez
que os integrantes do grupo podem estar selecionando o quê e como responder as
questões propostas na entrevista em virtude de seu propósito. Nesse sentido, esse grau
de conhecimento por parte dos integrantes, sobre o trabalho acadêmico, também fornece
falas mais diretas sobre o que quero saber, em que as reflexões feitas pelos integrantes
do grupo sobre suas práticas, se aproximam do texto acadêmico e de alguns
pressupostos teóricos.

Alguns recursos tecnológicos foram utilizados nesse trabalho, os pesquisadores


Timothy J. Cooley e Gregory Barz, (tradução minha) atestam que

Os avanços tecnológicos ocorridos no século seguinte contribuíram


para a institucionalização de estudos de música “cross-cultural”,
utilizando uma metodologia de espelhamento cientifico: trabalho de
campo e de laboratório. O estabelecimento da ''musicologia
comparativa'' como um campo acadêmico na década de 1880 foi
facilitada pela invenção do gramofone em 1877 e a criação de um
55

campo e sistema de medição do intervalo por A. J. Ellis. (COOLEY;


BARZ, 2008, p. 8)4

Nesse sentido, podemos perceber o quanto recursos tecnológicos podem ser


fundamentais para a pesquisa e a aplicação de métodos para sua realização. No atual
momento da história em que nos encontramos, a contemporaneidade, os avanços
tecnológicos são tão grandes e acessíveis, que o pesquisador pode realizar fazer
gravações de musicas e entrevistas, com uma grande variedade de aparelhos, inclusive
com o celular. Esses recursos trazem uma facilidade enorme para o pesquisador que se
encontra em campo, assim como também pode fazer com que pesquisadores passem
menos tempo em observação do objeto de estudo. As transcrições das gravações de
áudios ou vídeos dos fenômenos do campo faz com que muitos pesquisadores passem
mais tempo no escritório do que junto a comunidade pesquisada.

Uma ferramenta muito utilizada nesse trabalho foi a transcrição dos áudios e vídeos
dos ensaios e da gravação do CD “Trem de Mangaba”. Essa estratégia foi de um
enorme auxilio no sentido de tanto ajudar a confirmar dados do caderno de notas,
quanto para coletar alguns dados que não foram registrados por mim no ato dos
acontecimentos. Como foi esclarecido acima, na sessão que tratei da observação
participante, sei da extrema importância da presença do pesquisador in loco, mas meu
distanciamento ocorre em função da minha condição quanto pesquisador e integrante do
grupo, em que boa parte do processo eu estava tocando, e por mais que parte da coleta
de dados desta pesquisa seja através da observação participante, muitas coisas não
poderiam ser apreendidas por mim naquele momento, eu não estava em uma situação
em que minha participação era parcial, mas em alguns momentos a participação
superava a observação. Para suprir essas lacunas, as transcrições, que foram realizadas,
serviram de reforço para os dados levantados em campo de modo empírico. Ás
transcrições de áudios e vídeos tanto de entrevistas quanto de momentos de ensaio ou
apresentações do grupo CRMS, se torna uma verdadeiro peneiramento de informações,
em que tenho que selecionar o grau de relevância da informação, a importância do
interlocutor ou do fenômeno registrado, assim como os assuntos presentes nessas
gravações, que sempre são mais de um.

4
Technological advances in the following century contributed to the institutionalization of cross-cultural music studies using a
methodology mirroring science: fieldwork and laboratory work. The establishment of ‘‘comparative musicology’’ as an academic
field in the 1880s was facilitated by the invention of the gramophone in 1877 and the creation of a pitch and interval measurement
system by A. J. Ellis (Ellis 1885; see also Krader 1980:275–77; Stock 2007).
56

Torna-se necessário para esta pesquisa, o uso de imagens captadas tanto nos
ensaios, quanto nas apresentações e brincadeiras que ocorrem no “terreiro” do mestre.
Entendendo que muitos elementos que compõem a brincadeira e o contexto onde ela se
insere, seja deveras complexo de se verbalizar, faz-se imperativo o uso da imagem para
descrever melhor certas características da brincadeira, como: os instrumentos utilizados,
as vestes, o “terreiro” do mestre Severino, e outros elementos que se faça necessário o
registro visual. Quanto a isso devo ressaltar a colaboração do grupo CRMS em conceder
acesso ao acervo de imagens e vídeos do grupo. Ainda sobre as imagens, áudios e
vídeos utilizados nessa pesquisa, cito que os materiais utilizados para isso foram
celulares, gravador portátil e câmeras profissionais e semiprofissionais.
Um ponto interessante sobre esta pesquisa e as técnicas para levantamento de
dados que utilizei, foi a observação indireta feita através da rede social Wattsapp, em
que pude acompanhar uma serie de discussões e decisões do grupo através de conversas
realizadas no aplicativo. Considero essa ação como observação indireta por não intervir
nem interagir nas conversas, me mantive na maior parte do tempo como alguém que
acompanha um plantão de notícias, apenas recebendo a informação. Esse aporte no
Wattsapp demonstra que os avanços tecnológicos da contemporaneidade, proporcionam
novas possibilidades e técnicas de pesquisa para o levantamento de dados.

2.6.11 A revisão bibliográfica como coleta de dados.


Simultaneamente a entrado no campo, o pesquisador precisa recorrer a uma
pesquisa bibliográfica, para que assim possa formar suas bases teóricas, a fim de formar
seu esquema conceitual, que lhe dará base para a elaboração dos primeiros
questionamentos.
No trabalho que está sendo realizado sobre a transmissão do conhecimento
musical no grupo Coco de Roda do Mestre Severino, a pesquisa bibliográfica se deu no
levantamento de temas referentes a: ensino e aprendizagem no contexto das culturas
populares (Prass, 1998; Arroyo 1999), ensino e aprendizagem musical em grupos
específicos de cultura popular (Lima 2001; Queiroz e Figueirêdo 2006; Queiroz, Soares
e Garcia 2007) trabalhos referentes a manifestação do “coco”, principalmente no Estado
do Rio Grande do Norte, como os cocos de Mario de Andrade, Dicionario do Folclore
Brasileiro de Câmara Cascudo, Cartas da Praia de Hélio Galvão, Espaço e Tempo do
Folclore Potiguar de Deífilo Gurgel e Cocos de Inês Ayala. Trabalhos que abordem a
57

figura do mestre na cultura popular e temas inerentes a, memoria e tradição também


servem de base para essa pesquisa.
A peculiaridade dessa ação de pesquisa bibliográfica, nesse trabalho, é que ela
não ocorre simultânea a minha entrada em campo, isso por que como já foi apontado
anteriormente, minha presença no campo ocorria muito antes de começar a pesquisa-lo.
A pesquisa bibliográfica aqui serviu para orientar meu olhar para fenômenos que vivia
junto ao grupo, mas não os enxergava como os enxergo agora, com um propósito
guiado por um esquema conceitual, junto com as percepções e ideias dos atores
envolvidos na pesquisa.

3 O GRUPO COCO DE RODA DO MESTRE SEVERINO


Neste capitulo destaco a criação do grupo, como isso se deu, assim como sua
organização, os brincantes e a musica feita pelo grupo. Mas antes se faz necessário
averiguar quem é Seu Severino e como ele se torna Mestre Severino.

3.1 Como se Forma um Mestre? Historia de Vida do Mestre Severino


58

Aqui serão apresentados relatos de vida do Mestre Severino, com foco em suas
experiências vividas junto ás brincadeiras populares, a fim de montar o caminho
percorrido pelo Mestre em seu aprendizado quanto brincante. Não desejo aqui realizar
uma biografia de Seu Severino, mas sim “atingir a coletividade de que o informante faz
parte, e o encara, pois, como (...) representante da mesma através do qual se revelam os
traços desta”. (QUEIROZ, 1988. Apud. SILVA, 2002. p.32) Ou seja, através do
percurso que Mestre Severino trilhou durante sua vida junto a brincadeira do coco, e
outras brincadeiras, entender que tipo de coco é praticado pelo grupo CRMS, assim
como entender o próprio grupo.
Severino Bernardo Santiago, ou Mestre Severino como é mais conhecido hoje,
nasceu no dia 2 de junho de 1936 na cidade de Vera Cruz interior do estado do RN.
Negro e de origem humilde, compondo a classe economicamente menos abastada da
sociedade e tendo seu direito ao estudo negado por questões raciais, dado que me foi
revelado em conversa informal com o Mestre em uma das vezes que o levei da vila de
ponta negra até sua casa em Alcaçuz. Nesse translado o mestre sempre conversava
muito e em uma dessas conversas ele me revela que quando criança era impedido de
estudar por ser negro, ele diz que “negro na minha época não podia estudar, era só para
branco”, esse impedimento contribuiu para que até hoje o Mestre Severino integre a
lista de analfabetismo do nosso país, fator que é por ele relatado como uma das maiores
tristezas de sua vida, a privação ao estudo.

Em sua infância Seu Severino teve seus primeiros contatos com a brincadeira do
coco através do seu pai Luiz Bernardo Santiago, brincante não somente de coco. Em
entrevista realizada na casa do Mestre Severino, em um momento que ele fala de sua
família, quando se lembra da relação com seu pai, ele relata:

MS - (...) Meu pai conversava muito comigo, conversava muito, dizia, me ensinava... aí
cantava os cocos que ele sabia, negocio de... fandango, chegança... boi do reis...ele
brincava muitas brincadeiras... congo.

Ao perguntar para o Mestre Severino sobre como o seu pai teria aprendido os
cocos, se seu pai teria aprendido a brincadeira com seus avós, o Mestre Severino faz um
rico relato de sua origem, conta que:

MS – Era a brincadeira deles, era lá em lagoa do fumo, no engenho do finado Jorge


Ferreira. (...) já brincavam lá. Meus avós, já vinham de muito longe, sem conhecer pai e
mãe, que “era” escravo, foram vendidos um “prum” canto outros para outro, sem nunca
terem... (...) Eu sei que minha família veio da África. A minha mãe era “arva”, dos
59

“óio” azul, (...) parecei... ela parecia ser uma estrangeira. A minha vó foi pegada no
mato.(...) foi pega no mato, mas “a casco de cavalo”, ela mordia, ela dava “bufete” de
todo tamanho, e eu só sei que foi pegada assim, mas... eu sei que o que acontece é que
eu hoje estou aqui, tudo que eu “seio”, que eu aprendi, eu dou graças a deus, a deus
primeiramente, segundo a meu pai.

Com base no relato do mestre, observamos que o coco era uma prática de seus
avós, e que provavelmente o pai do Mestre Severino teria aprendido o coco dessas
brincadeiras de seus avós. O Mestre ainda nos revela que seus avós seriam escravos e
que aqui no Estado do RN residiram e brincaram coco no engenho Lagoa do Fumo, esse
Engenho foi fundado em 1810 pela Família de Miguel Ribeiro Dantas, o conhecido
Barão de Mipibu. Após sua morte a propriedade passou para as mãos do Coronel Felipe
Ferreira em 1897 e permanece até hoje na posse da família Ferreira 5. Este dado é
importante, pois apesar do primeiro nome do proprietário do engenho ser diferente no
relato do mestre, o sobrenome Ferreira dá respaldo às informações cedidas pelo Mestre,
assim como traz a tona uma origem afro-brasileira para o coco que o Mestre Severino
aprendeu com seu pai.

O engenho ao qual o Mestre Severino se refere está localizado a 46 quilômetros


da capital do Estado, Natal. A região onde está localizado o município de Vera Cruz
guarda traços históricos da forte presença dos engenhos no RN, com ruínas de engenhos
que ainda nos revelam o modo de vida da época da colonização.

5
Artigo escrito por Tádzio França in www.tribunadonorte.com.br/noticia/no-coracao-dos-
engenhos/260381
60

Mapa 1: localização da cidade de Vera Cruz tendo como base a capital Natal

Mapa: https://www.google.com.br/maps/dir/Natal+-+RN/Vera+Cruz,+RN

Mapa 2: Demarcação territorial do município de Vera Cruz.

Mapa: https://www.google.com/maps/place/Vera+Cruz+-+RN,+Brasil

Foto 2: Engenho Lagoa do Fumo

Foto: Getson Luiz

A concentração histórica de engenhos na região próxima a Vera Cruz, mais


precisamente em São José de Mipibu, em que, “o contingente africano foi mais
numeroso ou menos ralo do que noutras partes do Rio Grande do Norte” (ANDRADE,
1958), junto com o relato do Mestre Severino sobre seus avós, reforça a teoria defendida
61

por alguns autores sobre a origem afro-brasileira do coco. Os estudos que atribuem uma
forte presença da cultura afro-brasileira, como os de Mario de Andrade e Inez Ayala,
são apontados no trabalho de Isabella Viggiano Lago, em que trata da cultura pupular
em sala de aula, com enfoque no gênero coco, em que nos diz,
“é consenso entre os estudiosos (como, por exemplo, Mário de
Andrade e Ayala) a forte presença da cultura negra que se revela na
dança com umbigada (ou atualmente a simulação desta), nos
instrumentos de percussão (ganzá, bumbo, caixa, pandeiro), no ritmo
(característico de outros gêneros de origem afro como, por exemplo, o
samba e o jongo) e no canto estruturado em pergunta e resposta
(cantada em coro)”. (LAGO, 2011. p.13)

Mestre Severino, ao falar sobre suas origens, aponta uma ancestralidade negra
quando relata, em um dos momentos que antecedem o ensaio, que sua “família veio da
África” e que ele através da brincadeira do coco se sente “um nêgo rico”. Mestre
Severino em muitas dessas falas que antecedem os ensaios, que na verdade essas falas já
seriam o inicio do ensaio, deixa claro que ele se identifica quanto negro e que elementos
que compõe sua brincadeira tem sua origem nos negros escravos. Em uma dessas
conversas ele trata sobre o sistema de afinação dos tambores utilizado pelo grupo, que
mantem o sistema de afinação através do calor, em que a pele animal fixada por pregos
ou colada na boca do tambor, ao esquentar é tensionada até o ponto desejado pelo
tocador. Nessa conversa ele diz que “o pau furado ou zambê é coisa dos escravo”.

Ayala & Ayala (2000, p.32) nos mostram que alguns cantadores de coco do
Estado da Paraíba atribuem o coco uma origem africana, isso fica mais evidente na fala
de Seu Manoel Ventinha, Mestre de coco do bairro da Torre em João Pessoa, em que
diz, “esse coco de roda, exatamente, primeiramente isso veio da banda da África né?
Isso é negocio de africano né?”. Na mesma fala Seu Manoel acrescenta que “não
podiam dançar com uma corrente no pé, não é? passado o cadeado, o camarada não
podia se largar para dançar. Eles tinham somente que fazer aquele passo.”

Em trabalho realizado no ano de 2009, Cyro Lyns (2009) aborda de forma


antropológica a prática do coco de Zambê 6 no município litorâneo de Sibaúma-RN,
utilizado pelos moradores como elemento de “pertencimento étnico” um “atestado de
ancestralidade negra” daquela comunidade, a fim de comprovar através da brincadeira
que aquela comunidade é uma comunidade quilombola. Isso nos mostra que a
6
De acordo com o dicionário do folclore popular de Câmara Cascudo (2000, p.763. verbete “zambê”)
zambê é um tambor cilíndrico com uma pele em uma das extremidades, assim como também termo que
designa dança de roda com umbigada, como coco de zambê.
62

brincadeira do coco, pode ser tratada como elemento cultural de grande valor idenitário,
no sentido da afirmação étnica.
As lembranças que o Mestre guarda da sua infância, até seus nove anos, são
marcadas pelas conversas com seu pai, que como o Mestre Severino relata, “meu pai
conversava comigo como se eu fosse um adulto”. Isso pode indicar que o pai do Mestre
conversava sobre os mais diversos assuntos com ele, ou que as conversas tinham um
tom de seriedade. Outra parcela de suas lembranças da infância provém das viagens
feitas com seu pai no ciclo da cana, entre os meses de junho e julho, em que o Mestre
Severino o acompanhava pela rota dos engenhos. Mestre Severino indica a rota feita
por seu pai e cita o Engenho Murici, Curralinho, Jardim e Guajirú. Nessas andanças o
Mestre pode presenciar varias brincadeiras feitas por seu pai nos locais onde trabalhava,
mas não era apenas nesse momento que o pai do Mestre brincava o coco, ele também se
deslocava do destrito de Japecanga no município de Macaiba em direção a praia de
Pirangi do Sul para brincar coco, carregando o tambor e por vezes o Mestre, que por ser
ainda uma criança, ficava cansado da longa jornada. Sobre isso o mestre fala que “as
vezes ele me levava no braço, as vezes eu ia correndo”.

Dessas vindas do Mestre juntamente com seu pai a praia de Pirangi, o Mestre
relata que o coco praticado naquela época era o coco de zambê, e que “o coco de roda
veio a ser descoberto, agora a uns 60 anos, 50 anos ou mais é que veio esse coco de
roda”. O mestre ainda nos revela o período do ano e as situações em que ocorria o coco.
O mestre nos diz que:

MS – “o coco de zambê só era cantado no mês de junho ou quando havia um batizado...


num tinha sanfona, num tinha aquele... fole de 8 baixos, as vezes tinha aquele realejo
(gaita de boca), e o coco de zambê era festejado assim: eu aqui, você ali, outro aculá,
outro alí, iaí se juntava os quatro e começava, batia no tambor, Aí chegava, o tambor
chamava e se ajuntavam, vinham... aí ficava por ali, como quem quer e não quer, que
nem cachorro quando tá com medo de outro, aí um convidava, o outro convidava, um
chamava, aí fazia a umbigada num casal que tinha chegado, aí pronto começava a
festa.”

Em entrevista O Mestre Severino relata também que seu pai não realizava a
brincadeira em casa, mas em uma casa de farinha que ficava próximo.

MS – “Ele em casa não brincava não, brincava no mesmo lugar mas em outra rua. Era
uma casa de farinha. Lá ele ensaiava ensinando o congo, ensinava o caboco... o
cabocolinho e ensinava o coco zambê. (...) a um bocado de rapaz, de Luiz de
mãezinha... Luiz de benzinho... e aí por diante. Aos filhos do dono da casa de farinha,
Pedro e João.”
63

Ao que parece não só o coco foi transmitido de pai para filho, mas também a
ação de transmiti-lo, de promover a prática da brincadeira para as pessoas interessadas
em brincar. Nesse relato do mestre ainda podemos observar que seu pai tinha
conhecimento de outras duas brincadeiras, o congo e o “cabocolinho” ou caboclinho,
duas manifestações que também ocorrem no estado do Rio Grande do Norte.

Foto 3: Congo de Calçola da Vila de Ponta negra

Foto: Alexandre Gurgel. Em: http://folcloredobrasil.blogspot.com.br/

Foto 4: Caboclinho da cidade de Ceará Mirim

Foto: Gibson Machado. Em: http://cearamirimnews.blogspot.com.br/p/conheca-ceara-mirim.html


Aos nove anos de idade o Mestre Severino perde seu pai em um acidente com
um ônibus, evento encarado com muito pesar pelo mestre que até hoje guarda uma
grande tristeza por perder seu pai, ídolo e amigo. Após a morte de seu pai, ao que parece
Mestre Severino era o arrimo da família, posição comum entre os homens na
constituição das famílias da época, Mestre Severino passou a integrar o índice de
crianças que trabalhavam para ajudar na renda familiar. Nessa época, Mestre Severino
trabalhou em fazendas de gado da região de Vera Cruz e Japecanga. Esse foi um
momento difícil de sua vida, da qual O Mestre pouco relata, a não ser sobre as
brincadeiras de pegar passarinho, das frutas colhidas em arvores e dos afazeres na
fazenda. O coco, após a morte do pai do Mestre, não era mais algo presente em sua
64

vida, só retornando muitos anos depois. Sobre a morte do seu pai e seu contato com o
brincadeira do coco, Mestre Severino nos diz:

“eu ia quando meu pai era vivo, mas meu pai morreu logo cedo, muito novo, eu fiquei
quando meu pai morreu, eu fiquei... eu fiquei de... de oito pra nove anos de idade, ai é
por isso que eu fiz aquele coco: “tava de... tava de oito pra nove anos quando mamãe
me chamou, eu corri para os braços dela mamãe me abraçou, em menos de meia hora
o telefone tocou, minha mãe foi atender foi o meu pai que morreu, minha mãe sofreu ô
mundo enganador, não fui eu quem lhe enganei, foi você que me enganou, apareceu um
vaqueiro pra tomar conta do gado, tocou fogo na fazenda e queimou o capim do gado,
o capim não era meu era de pastar o gado, ê que vaqueiro malvado, ê que vaqueiro
malvado, tocou fogo na fazenda, queimou o capim do gado, o capim num era meu era
de pastar o gado”.

Com relação à brincadeira do coco, os relatos do Mestre evidenciam que ele


mesmo não participava ativamente das brincadeiras realizadas pelo pai, se mostrando
um observador com uma notável habilidade para reter na memória boa parte das
informações que via na brincadeira, pois segundo o Mestre, crianças não participavam
da roda, como também o Mestre estava, como ele mesmo afirma, “muito mais
interessado em brincar com as outras crianças”. Ao ser questionado sobre de onde
vinham os cocos que ele canta, o mestre diz:

MS – “rapaz esses coco é tudo é... coco que eu já venho “trabaiando”, que o que meu
pai sabia ele ia cantando tudo. Ai de noite ele ia brincar e eu ia mais ele, ele era
brincando lá e eu aqui mais os outros meninos. (...) ficava perto brincando mais os
outros meninos. Ai ficava eu, ficava finado Badidiu... que era meu amigo, ficava
Floriano, Floriano num sei nem se ainda é vivo. Ai ficava eu, “cumpade” Zé Marrêra.

Tendo em vista essa não prática do Mestre nos cocos brincados por seu pai,
como poderia o mestre ter aprendido os cocos que hoje ele reproduz? Algumas
evidencias de como o mestre aprendeu os cocos do seu pai, são pontuadas em algumas
de suas falas.

Em conversa com o Mestre, quando o levava para casa depois de um ensaio, ele
contou que nas andanças com seu pai, para ir brincar coco ou trabalhar nos engenhos de
cana de açúcar, varias cantigas eram entoadas por ele no caminho, e sendo a distância
percorrida muito longa, ás vezes chegando a 28 quilômetros de distancia entre um
distrito e outro, vários cocos eram cantados, nesse sentido, a repetição dos cocos nessas
viagens pode ter sido a principal forma de aprendizado das cantigas do coco pelo Mestre
Severino, juntamente com a observação da brincadeira quando a mesma o interessava,
pois se o Mestre Severino estava tão próximo do pai nas brincadeiras, em algum
momento, mesmo que não relatado pelo Mestre nas entrevistas ou em conversas
65

informais, ele (o Mestre) deve ter tido sua atenção voltada para a brincadeira do coco,
ou mesmo uma participação direta na brincadeira.

Após a morte do seu pai, o Mestre nos indica que o coco se fez presente em
alguns momentos de sua vida, entre a morte do pai e a criação do grupo.

MS - “eu brincava as “vêis” (vezes) um coco assim, lá no meio da bagunça, que a gente
tava a turma bagunçando no “rêse” (reis), ai eu inventava de cantar um coco, ai a gente
começava aquela baderna ali, era só para fazer o povo “sirrir” (sorrir)

No relato acima o mestre nos indica que ele cantava uns cocos em momentos de
descontração do boi de reis, revelando assim duas coisas: a primeira, que ele durante sua
vida exercitou essa memória do coco, no caso esse período da vida do Mestre destacado
no relato, é precisado por ele como sendo na juventude; a segunda é que o mestre nos
indica que o coco era utilizado por outra brincadeira em momentos de descontração,
revelando assim o intercambio entre as brincadeiras. Provavelmente os cocos cantados
pelo Mestre foram entoados por ele em alguns momentos de sua vida, inseridos no
contexto de outras brincadeiras brincadas pelo Mestre.

Outro momento em que o Mestre Severino retoma os cocos é quando ele é


brincante do bambelô de Tião Matias - bambelô seria um tipo de coco existente no
Estado do Rio Grande do Norte – sobre isso ele diz que: “o meu (a minha) temporada
que eu comecei, foi quando... Tião Matias me chamou, ai eu quando era livre de o que
passou pra traz, eu num brincava coco, brincava “rêse” (reis), eu era “mateu” de rêse”.

Em entrevista sobre sua historia de vida, o Mestre revelou um aspecto


importante, sua vida como brincante. Mestre Severino relata que participou de algumas
brincadeiras, como o boi de reis, brincadeira que segundo o mestre “é o que eu mais
gosto é de brincar no boi de reize porquê a minha parte no boi de reize é biríco.” A
saber “birico” é descrito por Cascudo no Estado do RN como:

“um dos mais antigos e popularíssimos capéres do bumba-meu-boi.


Ao lado de Mateus, Birico ira inesgotável em pilhérias, contando
causos (anedotas), fazendo, com seu companheiro, a assistência de rir.
Desapareceu do elenco, ficando apenas caterina e Mateus.”
(CASCUDO, 2000. p.66. verbete, birico)

Foto 5: Baltazar e João redondo


66

http://cacuademamulengos.blogspot.com.br/2011/10/joao-rendondo-ou-mamulengo.html

Durante sua vida Mestre Severino participou da brincadeira do João redondo,


um “teatro de bonecos tipo luva e haste” (PIMENTEL, 1971, p.1) cujos causos
encenados são estórias cômicas, satíricas ou dramáticas. No Estado do RN existe uma
tradição dessa brincadeira, tendo como principal representante o saudoso Chico Daniel e
atualmente seu filho assumiu a brincadeira. Segundo Deifelo Gurgel (1986, p.11) o João
redondo seria “o popular teatro de bonecos do nordeste brasileiro.” A brincadeira do
João redondo também é conhecida como mamulengo. Câmara Cascudo em seu
dicionário do folclore brasileiro descreve a brincadeira:

(...) consiste na representação dramática por meio de bonecos,


movimentados pelos dedos do titeriteiro. Oculto atrás de uma cenário,
ele usa o dedo indicador para movimentar a cabeça do boneco, e o
médio e o polegar para os braços. (...) os bonecos se apresentam em
um pequeno palco elevado, e os titeriteiros ficam escondidos atrás de
uma cortina, falando por eles. (CASCUDO, 2000. p.669)

Mestre Severino relata que quando seu pai morreu ele mudou-se para o
município de São Paulo do Potengi, local onde trabalhou alimentando o gado em uma
fazenda da região, que tinha como proprietário um homem chamado Manoel de Brito.
Nesse período o Mestre conhece a brincadeira de João Redondo que foi durante um
tempo fonte de renda, sendo a principal atividade do mestre em um momento de sua
vida. No entanto, o mestre revela em uma conversa informal que teve que parar de
brincar, pois passava muitos dias fora de casa se apresentando nas residências das
pessoas mais abastadas da cidade de Japecanga, em que na maioria das vezes a
brincadeira acabava a em cachaça. Nesse sentido o mestre ficou apreensivo de perder a
família para a brincadeira. Nesta época Mestre Severino já era casado e com filhos, a
saber, o Mestre se casou aos doze anos de idade.
67

O boi de reis foi a brincadeira mais apreciada pelo Mestre, também servindo
como fonte de renda para ele. Dentre os personagens da brincadeira, Mestre Severino
assumia o papel de “birico”, personagem cômico da brincadeira que representa um
negro empregado do fazendeiro que é o proprietário do boi. Nessa brincadeira o Mestre
nos diz que “se o birico for bom o cabra ganha dinheiro”, pois ao que parece gorjetas
eram oferecidas ao “birico” se ele divertisse bem a plateia. Essa prática plural já foi
evidenciada antes nos relatos sobre seu pai, que além do coco, também era um brincante
de fandango, chegança, boi de reis, congo e caboclinho.

Na maturidade, morando na Vila de Ponta Negra, o Mestre foi convidado pelo


mestre Tião Matias para brincar no seu boi de reis, mas o mestre recusou por não ter
condições físicas de fazê-lo, devido a um problema no tornozelo. O Mestre relata que
uma semana depois do convite para brincar o boi, Tião Matias o convidou dizendo,
“agora vamo mudar de brincadeira, vamo brincar mais eu bambêlo?” e o Mestre aceitou
relatando que, “quando eu cheguei lá... ai eu fui... quando cheguei lá “cumeçemo” a
brincar, eu brinquei a primeira noite, num deu quase ninguém, só foi eu ele e Pedro de
piloto que é aquele Pedro de Lima”. Nessa ocasião da brincadeira na Vila de Ponta
Negra, quando o mestre nos diz que “num deu quase ninguém”, aparenta que o Mestre
Severino julga que a brincadeira não foi boa em virtude da quantidade de pessoas na
brincadeira, ou de expectadores.

No período que o Mestre Severino passou integrando o bambelô da Vila de


Ponta Negra, que surgirá a motivação para a criação do seu grupo. A Vila de Ponta
Negra está situada na região sul da cidade de Natal-RN, bairro formado a partir de uma
vila de pescadores da praia de Ponta Negra. Nesse bairro da cidade de Natal existe uma
grande concentração de manifestações populares – congo de calçola, bambelô, pastoril,
coco de roda, boi de reis, bammbelô, – essas manifestações estavam passando por
dificuldades para manter seus grupos ativos, quando em 2004, um projeto da
Universidade Federal do Rio Grande do Norte realiza uma ação no bairro a fim de
reestruturar as brincadeira existentes na Vila. Com a intervenção do projeto na Vila de
Ponta Negra, vários grupos passaram a ter visibilidade e com isso outros grupos
também foram sendo criados.

O projeto ocorria de forma conjunta, uma parceria entre universidade e


comunidade, em que as decisões para a realização das ações eram tomadas
68

coletivamente, sem uma centralização por parte da universidade em decidir os rumos do


projeto. Em livro lançado no ano de 2010, a professora Dra. Teodora de Araújo Alves,
nos apresenta como foi o processo de criação do projeto,

A partir de uma decisão retirada em reunião no conselho comunitário


da Vila de Ponta Negra, em 2004, ficou decidido que em função da
vida artístico-cultural pulsante naquele contexto e pelas fragilidades
que os grupos enfrentavam, sobretudo em relação a falta de estrutura e
de mobilização de cada um e de todos, precisaria ser criado um
projeto que viesse a ser um possível fio condutor dessa mobilização e
reestruturação. (ALVES, 2010. p.22)
Mapa 3: Demarcação territorial e localização da Vila de Ponta Negra

Imagem: https://www.google.com.br/maps/place/Vila+de+Ponta+negra,+Natal+-+RN

Toda a experiência acumulada pelo Mestre Severino junto às brincadeiras


populares, assim como o conhecimento deixado por seu pai, através das cantigas e da
brincadeira do coco, fazem de Seu Severino um individuo que possui um saber valioso
sobre a cultura Potiguar, e que nobremente permite que outras pessoas compartilhem
desse conhecimento, ensinando-as sua cultura. Segundo relatos de uma das brincantes,
quando questionada sobre como ela descreveria a figura do mestre ele nos diz que:

“para mim o mestre ele tem um saber. Porque que ele é mestre? porque ele aprendeu
aquele saber, pode ser qualquer saber, se eu me reportar à capoeira, o mestre de
capoeira que aprendeu o saber da capoeira, que passa o fundamento da capoeira, então
no caso o mestre Severino que é mestre de coco, ele foi intitulado mestre de coco pelo
saber que ele tem, pelo repertório que ele tem dessa manifestação e de conseguir
transmitir aquilo que ele aprendeu para as pessoas.” (BRINCANTE, 25 de março de
2015)

A criação do grupo CRMS também faz parte da história de vida do Mestre


Severino, no entanto, abordarei essa fase uma sessão à frente, em que discorrerei acerca
69

do processo de criação do grupo, sua organização e os elementos que constituem o coco


brincado no grupo.

3.2 Criação do grupo CRMS

No ano de 2007 juntamente com o grupo de bambelô Maçariquinho da Vila de


Ponta Negra, Mestre Severino foi o III Encontro Internacional de Mestres, em Limoeiro,
no Ceará. Dessa ocasião o Mestre narra que no momento da apresentação em Limoeiro
houve certa confusão porque um organizador do evento pediu para encerrar a
brincadeira dizendo que eles não estavam cantando coco, mas sim carimbó. Então,
Mestre Severino diz que assumiu a função de “tirador” das cantigas de coco e entoou
uns cocos que eram cantados por seu pai. Terminada a apresentação ele diz que o
organizador do evento atestou que aquelas cantigas eram sim coco de roda. Na ocasião
o coco cantado pelo mestre foi:

Cajueiro abalou, abalou meu cajueiro


Cajueiro abalou, abalou deixa abalar.

Após este causo passado em Limoeiro, o Mestre volta decidido a montar um


grupo para que ele cantasse os cocos deixados como herança cultural por seu pai. Sobre
essa motivação é importante notar que de certa forma, Mestre Severino precisava de um
reconhecimento por parte de terceiros sobre o conhecimento que ele tinha, coisa que não
ocorria normalmente dentro de sua própria comunidade. Em entrevista uma das
primeiras integrantes do grupo, relatando sobre os primeiros contatos com o Mestre, nos
diz que:

O mestre participava junto com o bambelô de mestre Pedro, o boi de


reis de mestre Pedro, ele não tinha nenhum grupo formado na época,
ele participava assim... quando as pessoas davam oportunidade ele
cantava o que ele sabia. Só que as pessoas as vezes negligenciavam o
conhecimento dele, né? Em fim. (...) Aí cansado dessa situação de não
ter oportunidade, porque ele tem muito conhecimento, agente que
conhece ele sabe, ele resolveu criar o grupo. (BRINCANTE,
12/12/2016)

Sobre esse reconhecimento não podemos negar que, desde a era de ouro dos
festivais de folclore, os mestres e brincantes de manifestações populares buscam
evidenciar suas brincadeiras a fim de alcançar grandes públicos, conseguindo assim
tanto notoriedade quanto retorno financeiro. No caso de Mestre Severino, esse
reconhecimento por parte de terceiros tornou-se importante em função de seu
70

anonimato, que esconde uma longa historia de vida ligada a brincadeira popular, mas
que através das tramas tecidas ao longo dessa Historia só encontra voz através das
cantigas do coco. E agora através deste trabalho.

O grupo só seria foi criado um ano depois da ida do mestre à Limoeiro,


exatamente no dia 20 de novembro de 2008. Antes mesmo do Mestre convidar os
brincantes, algumas das que seriam as primeiras brincantes do grupo, já sabiam que o
Mestre queria montar um grupo, pois a notícia havia se espalhado pela Vila de Ponta
Negra.

Na primeira formação o grupo era constituído por seis brincantes mais o Mestre,
que relata que no primeiro ensaio que realizaram um Mestre de congo de calçola da Vila
de Ponta Negra, ao observar o ensaio bateu palma e disse ao Mestre: “Você tirou em
primeiro lugar”, atestando a qualidade do grupo.

A criação do grupo traz consigo o titulo de Mestre para Seu Severino, como ele
mesmo narra, não era conhecido como Mestre, teria sido as brincantes do grupo que o
intitularam dessa forma. Sendo assim é importante notar que a criação do grupo é
também a criação do Mestre, como figura central, detentora do conhecimento,
representante da cultura popular tradicional.

As integrantes que compõem o grupo CRMS, apresentam peculiaridades que


diferem dos brincantes da cultura popular, que geralmente são familiares do Mestre da
brincadeira ou pessoas da comunidade. No caso do grupo CRMS os brincantes não
fazem parte da família do Mestre nem são da mesma comunidade, como também não
fazem parte de sua classe social, pessoas estrangeiras a realidade de vida do Mestre. A
saber, os integrantes que compõe o grupo são estudantes e funcionários da UFRN,
professores da rede publica de ensino regular, profissionais da área áudio visual e de
propaganda, como também atores. Esse caldeirão de indivíduos de diversos seguimentos
sociais e culturais vai dar um delineamento único ao grupo, o que o torna um objeto de
pesquisa singular no sentido do estudo de transmissão de conhecimento musical. Nesse
sentido observa-se que por mais diversa que seja essa formação do grupo, os interesses
culturais, incluindo a música e a dança, são a chave para essa amalgama.

3.3 O coco de roda do Mestre Severino.


71

Neste capitulo abordo os aspectos musicais e organizacionais que constituem a


brincadeira do coco do grupo CRMS, assim como a descrição da performance do grupo.

O coco de roda que é praticado pelo grupo apresenta peculiaridades que vão da
instrumentação utilizada até a construção poética das cantigas, passando pela dança e
pelo canto, isso comparado às descrições dos cocos citadas nas sessões que aqui tratam
do tema. Algumas semelhanças também são encontradas, com um pouco de variação,
como o exemplo dos tambores utilizados para a realização da brincadeira.

O tambor zambê é o único tipo de tambor utilizado pelo grupo, variando em


numero, entre três e quatro sendo tocados simultaneamente na brincadeira. Semelhante
ao tambor zambê relatado por Hélio Galvão, que seria teria o “pau seis palmos de
comprimento; o vão de abertura, palmo e meio de diâmetro. Uma das aberturas é
fechado de couro cru.” (GALVÃO, 1968. p.204). Cascudo também descrevera o tambor
zambê como “tambor de pouco mais de um metro cilíndrico, com um pele em uma das
extremidades, percutido com ambas as mãos pelo tocador, que cavalga o instrumento,
sustentado por tiras de couro.” (CASCUDO, 2000. p.763. verbete, zambê.)

Descrevendo aqui os tambores do grupo CRMS, eles são um tronco escavado de


forma que fique oco, com uma das extremidades lacradas por uma pele, no caso dos
tambores do grupo a pele utilizada é a de cabra, fixada com pregos no corpo do tambor.
Com medidas diferentes entre os tambores variando em torno de 1,50mt de altura à
1,0mt. Os tambores são escavados por Mestre Severino com auxilio de uma talhadeira,
ferramenta em forma de bastão, feita em aço e com uma das extremidades moldada em
forma de gume. O tipo de madeira utilizado por Mestre Severino em seus tambores é o
abacateiro, sendo três tambores dessa árvore, e um tambor feito de uma madeira hibrida,
que segundo Mestre Severino seria mangueira e pau d’arco. Além dos tambores feito de
tronco existe no grupo um de tambor de cano de PVC (Policloreto de vinila)
72

Foto 6. Zambê de árvore hibrida

Foto: Iury Matias

Foto 7. Á esquerda Zambê feito de abacateiro, á direita Mestre Severino e outro zambê feito de
abacateiro

Foto: Iury Matias

Foto 8. Visão do interior do zambê, mostrando o tronco com seu interior oco.
73

Foto: Iury Matias

Foto 9. Orifício lateral natural do próprio tronco

Foto: Iury Matias

Foto 10. Pele de cabra sobre o tambor e modo de fixação da pele no tambor

Foto: Iury Matias


Diferente do coco de zambê em que o tambor zambê é acompanhado pela
chama, e mais recentemente observa-se no grupo de zambê do Mestre Geraldo em Tibal
do Sul a presença da lata, um galão de tinta utilizado pelo grupo como instrumento,
percutido com duas varetas e pendurado no pescoço, ficando na altura do estomago. A
74

célula rítmica do coco de roda do Mestre Severino é a mesma para todos os tambores,
no entanto cada tocador acaba imprimindo suas particularidades na interpretação, o que
gera uma massa sonora grave, em que se houve a célula rítmica da figura a baixo,

Figura 1. Célula básica do ritmo do coco de roda do grupo CRMS

Figura: Kleber da Silva Moreira

Como mencionei anteriormente, os tocadores, incluindo o Mestre, imprimem seu


sotaque na hora de tocar o ritmo do coco de roda. A seguir os exemplos rítmicos da
execução do Mestre Severino e a execução de um dos tocadores.

Figura 2. Célula rítmica do coco de roda executado pelo Mestre Severino

Figura: Kleber da Silva Moreira

Figura 3. Célula rítmica do coco de roda executada por um dos tocadores

Figura: Kleber da Silva Moreira


Para melhor entender a execução do ritmo, tanto na performance do Mestre
quanto do tocador, faz-se necessário uma explicação sobre as notações acima. Nota-se
que a diferença entre o toque executado pelo mestre e do tocador é a quantidade de
notas. O Mestre Severino além de tocar menos notas, ainda utiliza um técnica conhecida
como Ghost notes ou notas fantasmas, que consiste em diminuir bastante o som de
determinadas notas, essas notas fantasmas estão representadas na transcrição através dos
parênteses nas cabeças das notas. Com relação a produção de som com timbres
diferentes no tambor zambê, esse produz dois timbres diferentes, que variam de acordo
com a tensão da pele, mas basicamente os sons extraídos do zambê são um som médio
grave quando percutido na borda, e um som grave quando percutido no centro do
tambor. O som grave fica evidente no primeiro tempo do ritmo, exatamente onde ocorre
75

os dois acentos, os dois acentos do segundo tempo do ritmo é executado na borda,


produzindo o som médio grave. Isso vale para as duas interpretações que estão acima.

O canto no grupo segue o modelo apresentado por Hélio Galvão, quando esse
relata o coco de roda no município de Cabeceiras, em que todos que estão na roda
cantam respondendo o mestre, que diferente do relato de Hélio Galvão, não se localiza
no centro da roda para cantar, mas compondo a roda junto com os outros tocadores.

Figura 4: Formação do grupo CRMS no momento das brincadeiras

Figura: Kleber da Silva Moreira

As respostas apresentam duas formas, uma como verso fixo e outra como a
repetição do verso cantado pelo mestre. Em análise preliminar feita sobre o canto, nota-
se que a uma diferença de tonalidade entre a pergunta feita pelo mestre e a resposta do
coro, variando entre um tom e um tom e meio, na maioria das vezes descendente. Isso
não é uma característica técnica na execução do canto no grupo, mas um desnível de
afinação, em ralação ao canto do mestre e a resposta das brincantes. Aparentemente esse
desnível na afinação da resposta se dá pela diferença da extensão vocal do Mestre
Severino em relação à extensão vocal das brincantes, que naturalmente tendem a
adequar a melodia a tonalidade de conforto para as vozes femininas.

Em algumas situações, principalmente quando o grupo se apresenta em eventos


que dispõe de equipamento para microfonação, as respostas são direcionadas para os
dois tocadores e uma das dançantes, que ficam em revezamento nessa função. Muitas
vezes as respostas não são cantadas por todas as brincantes, pois o fato de cantar e
dançar é um tanto exaustivo e nos momentos de solo das brincantes o canto não é
entoado pelo solista. Isso não é regra, mas no momento do solo as brincantes se
76

concentram em sua performance e acabam não respondendo o coro, o que não prejudica
a brincadeira.

As cantigas são entoadas em uma sequência que advém do Mestre ou dos


pedidos feitos pelos brincantes para que o Mestre cante um coco que lhes vem na
memoria. Durante a brincadeira existem pausas, intervalos entre um coco e outro, que às
vezes duram um tempo longo, tanto em ensaios como em apresentações. Nesse
momento o mestre sempre conta algum causo de sua vida ou interage com a publico,
nessas interações o Mestre se vale da experiência como “birico” e sempre leva a publico
as gargalhadas. Essas pausas entre um coco e outro também servem para que o Mestre
lembre dos cocos, e isso as vezes é rápido, quando o Mestre emenda um coco atrás do
outro, mas as vezes esse processo de rememorar os cocos demora mais.

Sobre essas pausas que ocorrem durante a brincadeira, nota-se que existe a
postura do Mestre Severino, que não está preocupado com uma dinâmica de
apresentação, e existe as brincantes (incluindo a mim), que ficam tentando controlar o
andamento da apresentação. Muitas das ocasiões em que a brincadeira é realizada,
inclusive nos ensaios, o tempo de brincar é demasiado curto para tudo que ocorre nesse
processo, incluindo aí as falas do mestre e o tempo que ele leva para lembrar dos cocos.
Com isso, em muitos momentos algum brincante alerta Mestre Severino que faltam
poucos minutos para acabar ou o lembra de algum coco. Em algumas apresentações um
repertório impresso é levado, a fim de ali estar um catalogo com os cocos cantados pelo
mestre, esse repertório não impõem uma ordem, até mesmo porque o fato de dizer ao
mestre o nome, ou ainda sim cantar um trecho do coco, não é garantia de que o Mestre
vá lembrar de imediato daquele coco que está sendo sugerido. Esse repertório serve
como suporte não só para a memoria do mestre, mas para a memoria do grupo, que
também precisa lembrar dos cocos cantados pelo Mestre.

A dança se mostra outro ponto curioso desse coco. O grupo nunca teve homens
na roda, na roda sempre figuraram as mulheres, com exceção de algumas apresentações
em que homens do publico entraram na roda. A presença masculina no grupo conta com
quatro participações até o presente momento. Assim como eu os outros homens que
passaram pelo grupo exerciam a função de tocador. Isso não é uma imposição, mas ao
que parece os homens que se aproximam do coco não estão interessados em dançar.
Mas por quê? Em uma de suas “Outras Cartas da Praia” Hélio Galvão cita a fala de um
77

de seus informantes, Chico Miguel, em que esse o diz “no zambê só dança home. No
coco de roda, sim, tanto dança mulher como homem. Agripina dança que é uma beleza,
mas só coco de roda”. (GALVÃO, 1968. p.204). Em outra carta, Hélio Galvão (1968.
p.221) ao descrever uma brincadeira de coco de roda no distrito de Cabeceiras, aponta
que “formou-se o circulo misto, mãos dadas. (...) houve uma jornada, 17 minutos, com
quarenta pessoas, só mulheres. Tirador, Agripina”. Sobre esses relatos de Galvão
podemos ver que, o zambê era dança de homens, onde não se podia dançar mulheres; o
coco de roda era misto, com homens e mulheres, no entanto aparentemente as mulheres
tomavam conta da roda em determinado momento. Se o coco de roda era dança mista,
por quê no grupo CRMS, assim como em outros grupos de coco de roda, como o de
Mestre Pedro, não vemos a presença de homens na dança? Essas são questões que
enveredam por áreas muito complexas, que envolvem estudos sobre o comportamento
masculino do Potiguar na contemporaneidade, e esse não é o foco aqui, deixo essa
discussão para outro momento, ou para outra pessoa.

Outra característica é o passo do coco do grupo, que em nada remete a


monotonia descrita por Galvão, em que esse relata em sua carta da praia numero 33, do
dia 14 de março de 1968, no distrito de Cabeceiras-RN, que no coco de roda “os
movimentos coordenados e uniformes, tornam a dança menos interessante do que o
zambê (...) o coco de roda conserva ais harmonia e mais ritmo. A coreografia é que é
ónotona”. A coreografia no grupo CRMS recebeu contribuições dos próprios brincantes
que passaram e que ainda estão no grupo, assim como do Mestre. Em observação das
brincadeiras, ensaios e oficinas realizadas pelo grupo, pude perceber a variedade de
movimentos coreográficos existentes na dança do grupo. Na oficina do dia 17 de janeiro
de 2017, realizada no festival Global de Música (GLOMUS) na Universidade Federal
do Rio Grande do Norte, onde estavam estudantes de música de vários países, as
brincantes que estavam presentes na oficina ensinaram os movimentos para os
participantes da oficina. Na explicação das brincantes tudo começaria por um passo
básico, em que o pé direito marca o tempo forte e o pé esquerdo marca o contra tempo.
A figura rítmica que exemplificaria esse passo seria essa:

Figura 5. Célula rítmica do passo do coco no grupo CRMS


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Figura: Kleber da Silva Moreira

O pé direito realiza um movimento para frente e para trás, acentuando o tempo


forte à frente e a segunda nota para trás, em que o pé direito volta para junto do pé
esquerdo; o pé esquerdo ao marcar o contra tempo também serve de apoio para os
movimentos de giro e de locomoção em torno da roda enquanto se está dançando. Esse
passo serve de base para as evoluções coreográficas realizadas pelas brincantes. Em
mesma oficina as brincantes do grupo ensinam aos participantes da oficina alguns
desses movimentos. Um deles consiste em que as brincantes, em quanto mantém o
passo base, se virem uma de frente para a outra, ora para a esquerda ora para a direita, e
como foi enfatizado por uma das brincantes durante a explicação do movimento, “é
importante olhar no olho” em quanto se realiza o movimento.

Outro movimento seria o de uma das integrantes da roda que está na ponta, ou
seja, situada ao lado dos tambores, realizar um movimento de zig-zag por entre as outras
brincantes que estão na roda, até chegar à outra extremidade. Durante o percurso
percorrido em zig-zag a brincante que está em movimento segura na mão da brincante
ao lado (geralmente a mão direita), elas giram juntas em torno de um eixo criado pelo
unir das mãos, após um giro a brincante em movimento passa para a próxima brincante
e realiza o mesmo movimento. Ao chegar na outra extremidade da roda, a brincante
passa na frente dos tambores e volta ao seu lugar, dando a vez para que a brincante do
lado realize o movimento em zig-zag, isso acontecerá até que todas as participantes
tenham realizado o movimento, ou o Mestre encerre o coco.

Dentre os movimentos apresentados na oficina, também foi apresentado aos


participantes um movimento em que todas as integrantes da roda, simultaneamente,
acentuam o tempo forte juntamente com uma palma de mãos, adentrando para o centro
da roda. Após esse acento ao centro da roda, as dançarinas giram sobre o próprio eixo
para fora do centro da roda. Na brincadeira do CRMS também existem momentos de
solo ao centro da roda por parte das brincantes.

Em uma brincadeira realizada na casa do Mestre, algumas senhoras da praia de


Pirangi se faziam presentes, nessa ocasião pude observar a diferença entre a dança do
79

coco do grupo para a dança feita pelas senhoras. As dançantes mais velhas executavam
passos curtos, mantendo-se na maior parte do tempo ao centro da roda, trocando o
protagonismo com outra brincante, em algumas vezes, através de uma umbigada. No
coco de roda do Mestre Severino os passos das dançantes são amplos, vigorosos,
chegando as dançantes a saltitarem durante a dança, executando coreografias ensaiadas
ou propondo jogos corporais, em que uma tenta pegar no calcanhar da outra, elemento
introduzido no grupo por duas brincantes, no momento em que figuram duas dançantes
na roda, mas na maioria das vezes a dança é um solo, que diferente das dançantes mais
velhas, percorre toda a extensão da roda, dependendo de quem esteja dançando.

Foto 11. Grupo CRMS em apresentação

Foto: Joanisa Prates

4. TRANSMITINDO O COCO, COMPARTILHANDO CONHECIMENTOS


80

Com a criação do grupo uma ação teria que ser realizada: os cocos teriam que
ser aprendidos pelos brincantes, uma vez que os mesmos só estavam na memória do
Mestre, que agora teria que assumir o papel de professor de coco.

Logo no inicio do grupo, quando a processo de rememoração dos cocos estava


mais intenso, o Mestre Severino fragmentava o coco a medida que ia se lembrando, e
mostrava o que era a resposta para o coro. Sobre isso uma ex-brincante diz que

ele tava num processo de rememorização desses cocos, então ele


trazia um pedacinho dos cocos, ensinava pra gente como era o refrão,
agente respondia, e ele tocava e agente ia respondia e agente ia nesse
processo de ir rememorando isso que ele trazia pra gente, foi nesse
processo de ir exercitando essas cantigas que algumas ele lembravam
um trechinho. (BRINCANTE, 12/12/2017)

Nas observações realizadas para a pesquisa, notou-se que atualmente a forma do


Mestre ensinar, consiste em cantar os cocos repetidas vezes para que o grupo aprenda a
letra por completo e qual parte é a resposta do coro ou como ele mesmo me diz em uma
conversa informal em que ele questiona sua posição de mestre dizendo que mestre seria
Jesus Cristo que é quem nos daria o saber, eu digo ao mestre que ele também nos dá
uma saber, e ele fala “vocês aprendem porque eu canto e vocês repetem”.

Ao perguntar para o mestre como era para ele ensinar os cocos para o grupo ele
demonstra que sua postura quanto Mestre que está ensinando a alguém, depende mais
de um jeito de ser e de tratar os outros, sendo essa ação de ensinar algo além do âmbito
musical. O Mestre diz que para ensinar os cocos,

“a pessoa tem que ser delicado, ser paciente, falar brincando sem
falsidade, querer bem sem falsidade, (...) é ter sinceridade tanto para o
homem quanto para a mulher. A sinceridade é o que vale, porque
agente tem coração e tem consciência das coisas, não se deve se lucrar
da inocência dos outros”

Nessas execuções dos cocos, às vezes algum integrante pergunta ao Mestre


como é uma parte especifica da letra, e ele quase sempre canta o coco por completo sem
isolar a parte que era duvida do brincante, explicando o sentido da narrativa do coco e
não sua forma.

Durante os ensaios os cocos vão sendo transmitidos à medida que o mestre vai
se lembrando deles. Essa lembrança pode ocorrer em diversos momentos, não somente
nos encontros para os ensaios. Mais de uma vez presenciei o mestre lembrando de um
coco em quanto estava sendo levado de sua casa para um apresentação, ou voltando
81

dela, ou em momentos de manutenção dos instrumentos. Quando isso ocorre, é preciso


que os brincantes que estão por perto, no momento da lembrança, decorem rapidamente
o verso ou os versos cantados pelo Mestre, para que assim possam tanto transmitir para
as outras brincantes quanto lembrar ao próprio Mestre em um momento posterior. Com
isso, as brincantes assumem tanto o papel de elo na transmissão do coco do Mestre para
o resto do grupo, como servem também de suporte externo à memória do Mestre. Esse
apoio à memória do mestre fica claro no trecho da transcrição de um dos ensaios para a
gravação do segundo CD que ocorreu no dia 29 de Dezembro de 2015 na casa do
Mestre. Segue abaixo o trecho.

MS - “eu perdi o coco...”

LUA – “eu viajei de mangaba... é isso?”

MS – “cheguei na estrada estourou o pneu”

LUA – “o cilindro estourou. Olha ai, tamo junto. Simbora! Daí mesmo”

Quando o mestre diz que “perdeu o coco” ele quer dizer que esqueceu dele, e
prontamente Lua, que não faz parte do grupo, mas estava por perto no processo de
gravação do segundo CD do grupo, ajuda o mestre falando para ele um trecho de um
verso do coco que o mestre queria cantar, a saber o coco seria trem de mangaba. Assim
que lua fala para o Mestre o verso ele rapidamente completa com o segundo verso, no
entanto ele troca uma palavra do verso, ao invés de falar cilindro o Mestre fala pneu,
mas Lua ao repetir o verso que o mestre acabará de falar, corrige a palavra e incentiva e
encoraja o Mestre a continuar do ponto onde haviam parado. Durante todo o áudio do
ensaio é possível perceber que vários momentos como esse acima ocorreram no ensaio.

Outro ponto importante da transmissão do coco no grupo CRMS são as


estratégias empregadas pelos brincantes para apreender os cocos, o que foi observado é
que os brincantes além de receber as informações do mestre, também trocam
informações entre si, corrigindo uns aos outros. Nos ensaios vários momentos desses
ocorrem, como fica claro nas falas de algumas brincantes transcritas abaixo.

CRIS – “vocês cantam com a gente, do jeito que a gente cantar vocês cantam também”

RICELLI – “essa a gente só repete isso, a resposta é sempre: eu plantei o meu coqueiro que eu
trouxe la da bahia...”

RICELLI – “a resposta dessa a gente sempre repete o que ele disser”

CRIS – “tá”
82

Essas falas mostram um aspecto importante, o de que às vezes uma ou outra


integrante toma a frente em transmitir qual verso é a resposta ou como se deve cantar
um trecho especifico.

A orientação coletiva entre os integrantes não acontece só com base nas


informações do Mestre, mas também com base nas informações que cada um carrega
sobre a brincadeira do coco. Isso fica claro na fala de uma ex-integrante do grupo, que
ao relatar sua permanência no grupo, evidencia que uma das integrantes de sua época,
assumia uma postura e uma representação dentro do grupo de auxiliar do Mestre
Severino, agindo como uma contra mestre. sobre isso a brincante diz:

era... porque essa coisa da aprendisagem, com as próprias meninas que


faziam há mais tempo, tanto das musicas como dos trupé, Da dança
mesmo, com Bel né? Que ela tinha uma pegada de passar o
conhecimento, Bel tinha uma pegada de passar o conhecimento,
assim... no meu olhar.(...) tomava a frente de passar, de ensinar, de
orientar... eu tinha ela como uma mestra também, no fundo com
mestre Severino ela era como uma aprendiz direta dele, e ela já tava
tomando esse lugar de maestria também, para mim. (BRINCANTE,
16/09/2016)

Nesse sentido, é importante frisar que os brincantes do CRMS já trazem consigo


uma bagagem de conhecimento sobre a brincadeira do coco, em que a maioria já havia
brincado coco em eventos onde a brincadeira estava sendo atração artística. Em relatos,
alguns brincantes nos revelam essa proximidade com brincadeira através de
apresentações de grupos de Pernambuco ou do estado do RN.

Em entrevista com uma das brincantes, é evidenciado que ela já tinha um


conhecimento e uma pratica com o coco, ela conta que seu primeiro contato com o coco
se deu quando era professora de uma escola da rede pública de ensino, que em um
momento, mas precisamente nas comemorações à semana do folclore, ela se deparou
com uma apresentação de um grupo de coco da cidade de Canguaretama, após essa
apresentação ela passou a pesquisar e se aproximar da brincadeira do coco. A brincante
ao falar de sua entrada no grupo, também evidencia que antes de entrar no grupo ela,
assim como outras duas brincantes do grupo, participavam de uma oficina de percussão
na vila de ponta negra: “(...) agente participava de uma oficina (...) que era de percussão
e ciranda, coco e ciranda, e Seu Severino começou a se aproximar...” (Brincante,
12/12/2016)
83

A brincante ao falar do aprendizado do toque do coco do Mestre Severino, nos


revela que antes de entrar no grupo CRMS “já tinha um conhecimento da base do ritmo,
pelas vivencias”. E ela ainda acrescenta em sua fala como foi para ela o processo de
aprendizagem do ritmo do coco, em que nos diz que:

“(...) ficar olhando mesmo e de ir tentando reproduzir mesmo, de ficar


observando que tinha um acento que era com a mão esquerda com a
mão direita, e tentar ir exercitando mesmo em casa né? No pandeiro
sem ser tocando como pandeiro, mas como tambor, de ir exercitando
nesse sentido, mas é claro que tem a dificuldade de quando você
assim... não domina né? Você não sabe como é o caminho mais fácil
para você conseguir chegar naquele toque.” (BRINCANTE,
12/12/2016)

Outra brincante, em conversa informal, também revela que já tinha um contato


com a prática musical, ela conta que antes de entrar no grupo CRMS participava do
grupo Pau e Lata, grupo de percussão com materiais reciclados em que diversos ritmos
são trabalhados, incluindo o coco. A brincante também nos diz como é para ela o
processo de aprendizagem, focando na aprendizagem do toque do tambor, a brincante
diz que fica observando as mãos do mestre, tentando imita-las, e acrescenta que através
de sua vivência no grupo Pau e Lata, ela consegue ter uma percepção rítmica do toque,
o que facilita segundo ela o seu aprendizado.

Em outro momento de conversa informal, uma das brincantes também deixa


claro que já havia tido contato com brincadeiras populares, em que na sua infância
brincara de boi de reis. Essa experiência da infância foi durante sua vida a motivação
para que ela sempre estivesse à procura ou em contato com as brincadeiras populares, o
que também formou algumas bases de conhecimento sobre o coco, principalmente o que
diz respeito à dança e algumas cantigas.

Dentre as estratégias utilizadas tanto pelo grupo, quanto pelo Mestre para que os
cocos sejam transmitidos, uma delas me chamou muita atenção por se tratar de uma
ruptura, em primeira vista, de como são transmitidos os conhecimentos nas culturas
orais. No grupo CRMS a oralidade não é o único recurso utilizado para apreender os
cocos. No processo de gravação do segundo CD do grupo, pude presenciar momentos
em que as brincantes se valiam das letras dos cocos impressas, de forma a ajudar as
brincantes não só a aprender mais rápido os versos, como também serviu de roteiro para
guiar o mestre na hora dos ensaios preparatórios para a gravação, assim como para o
próprio momento da gravação. Quando me deparei com essa situação, a primeira coisa
84

que pensei foi “estarão as brincantes modificando a forma de transmitir o coco dentro
do grupo?” pois esse recurso ainda não tinha sido presenciado por mim, nem no período
que passei pesquisando o grupo, nem nesse tempo que faço parte do grupo. No entanto
essa prática não é assim tão nova no CRMS.

Em entrevista com uma ex-brincante do grupo, ela nos revela que a utilização de
letras de cocos escritas, era uma prática do grupo no inicio, e que isso partia do próprio
Mestre.

A parte escrita sempre fez parte, porque ele ia lembrando, aí a


proximidade que ele tinha mais era com essa sobrinha dele que sabia
escrever, ele ia falando e ela ia escrevendo, aí ele trazia para gente, aí
agente...(ele) cantava como era, aí agente digitava e passava para as
outras... o grupo tem esse acervo de algumas que... apesar de que eu
não gosto, eu prefiro que a cantiga fica na memoria do que escrita
num papel, né? Mas existiu esses dois processos de transmissão, o oral
e o escrito nesse sentido dessas memorias que ele trazia.
(BRINCANTE 12/12/2016)

Nesse contexto do grupo CRMS, não são apenas as brincantes que aprendem, o
Mestre também recebe informações das brincantes, não necessariamente musicais, mas
de como funciona as questões para se realizar uma brincadeira em determinados
lugares, como na UFRN por exemplo, ou como uma oficina deve ser construída, ou até
sobre o cenário político do país. Essa troca de saberes ora musicais ora sociais,
demonstra que no grupo CRMS a transmissão não é uma via só de ida, mas uma via de
mão dupla, em que conhecimentos são trocados, como um escambo cultural.

Assim sendo, o grupo CRMS nos revela uma rede de compartilhamento de


informações, em que as informações musicais, ritmo e canto, assim como a dança, estão
no centro disso tudo. Para visualizarmos como ocorre esse processo vejamos a figura
abaixo.

B
85

B M B

Além do aprendizado dentro do grupo existe o momento de transmissão nas


oficinas, que são ações recorrentes no grupo, sejam elas realizadas no ambiente
universitário, escolas da rede publica de ensino regular, ou na comunidade do mestre.
Nessas ocasiões pude verificar a forma como o Mestre e o grupo conduzem essa ação.

Em primeiro lugar foi observado que o Mestre não segue um roteiro fixo, o que
mais se aproxima disso é o fato que o Mestre sempre começa as oficinas se
apresentando e contando um pouco do seu dia ou de sua história de vida. Com relação
as ações do mestre em ensinar, nota-se que ele conduz como se estivesse ensaiando o
grupo, cantando cocos que lhe vem a mente no momento, ou quando alguma brincante
sugere, “canta aquele coco...”. O que se nota é que para o Mestre ensinar o coco é
brincar o coco, raramente o mestre para a brincadeira para explicar um verso ou a
melodia, cabendo às brincantes tentarem promover uma organização para o
ensinamento. O que na maioria das vezes falha. Isso porque o que o Mestre promove e
que recebe o nome de oficina, é na verdade uma vivencia do que seria a brincadeira do
coco.

As brincantes do grupo são fundamentais para a realização da oficina, uma vez


que elas pensam em uma organização para as oficinas, elencando pontos a serem
abordados tanto pelo Mestre, através dos estímulos das brincantes para que o mestre
transmita determinada informação, assim como as brincantes comandam a transmissão
do conhecimento da dança e em muitas vezes ficam repetindo as respostas dos cocos
para que os participantes das oficinas aprendam. A postura das brincantes perante as
oficinas vai se adequar ao tipo de publico que a oficina está abarcando, que pode ser de
adultos, jovens universitários, crianças do ensino básico ou crianças da comunidade do
Mestre Severino
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Quando as oficinas ocorrem em universidades ou para um publico de adultos e


jovens estudantes, as integrantes sempre incitam o Mestre a explicar o que é a
brincadeira do coco. Na maioria das vezes o Mestre conta histórias de sua vida e
algumas anedotas, fugindo um pouco do roteiro previsto pelas brincantes, que em
alguns momentos tomam a fala para si e explicam para ao participantes das oficinas
elementos que constituem a brincadeira do coco, como os tambores, o ritmo, a dança e
as cantigas, que na maioria das vezes é o ponto menos abordado.

Em oficina realizada no GLOMUS, festival internacional de música que ocorreu


na UFRN entre os dias 10 e 20 de janeiro de 2017, mostra bem a postura que o grupo
toma perante um publico acadêmico, assim como também mostra o momento em que
uma das integrantes assume o papel de transmissora. Abaixo a transcrição desse
momento.

MS – essa brincadeira se chama zambê. Aí o zambê significa coco, agora, tem dois cocos, o
coco de roda, o coco zambê. Agora, significa três porque tem o coco de ganzá .

Nota-se que a informação é meio confusa, e é aí que entra a intervenção de uma


das brincantes, que explica para os participantes da oficina o que o mestre estava
querendo dizer, ela diz:

Brincante – o coco dele é meio misturado, ele tem referencias do coco de zambê, porque são
vários tipos de coco. As vezes é pelo instrumento, como o coco de ganzá, as vezes coco de roda,
porque se caracteriza porque sempre tem a roda, o coco de zambê é por causa do instrumento,
que eles chamam esse instrumento de zambê. Existem varias variações, existem instrumentos
variados, e ele, o coco dele, pega as duas referencias do coco de roda e do coco de zambê.

Em outro contexto de oficinas, mais precisamente as oficinas para crianças, a


postura do grupo é outra, mais lúdica, fazendo com que as crianças vivenciem a
brincadeira de forma prática, em que o Mestre canta os cocos e o grupo incita as
crianças a dançarem junto com as brincantes na roda. Nessas oficinas, a vivencia é mais
importante que informações a cerca do coco e suas origens, fazer as crianças brincarem
de coco é mais importante.

5. CONCLUSÃO
87

Após esse mergulho no complexo contexto que é o grupo CRMS, com o olhar
interessado em desvendar como ocorre o processo de transmissão musical dos cocos,
alguns pontos sobre essa questão são claros e serão destacados aqui, outros pontos, no
entanto, confesso que tanto esse pesquisador quanto esse trabalho, por hora, não darão
conta de discuti-los com o devido aprofundamento que eles merecem.

Constata-se aqui neste trabalho que, o coco quanto conhecimento musical, da


cultura popular, da prática de negros pobres, seja da zona rural ou urbana, mostra-se um
elemento da cultura com a incrível capacidade de se perpetuar por gerações, encontrado
meios para sobreviver. Neste estudo, vimos como o coco encontrou na memória de
Mestre Severino sua câmara de hibernação, mantendo-se adormecido até que fosse o
momento propício para seu despertar.

Também observamos que o coco, quanto brincadeira de tradição, se permite


mudar a adaptar-se a realidade em que está inserido, que o coco é feito por seus
brincantes, que lhe vão dando características e sentido próprios, de acordo com suas
realidades e interesses. Esses interesses não partem somente de dentro para fora da
brincadeira, mas algumas vezes as interferências são externas, modificando
musicalmente o que as vezes é a identidade dessa brincadeira, que por passar por
processos de padronização e estilização em função de uma excelência ideológica
comercial, deixa de ser brincadeira e passa ao patamar de produto.

Sobre o grupo CRMS destaca-se sua atípica formação, o que gera um contexto
bastante particular desse tipo de brincadeira popular, em que temos um mestre, detentor
de um conhecimento vindo da memória de seu pai, de sua própria história de vida junto
a brincadeiras populares, prática das camadas pobres da sociedade, e as brincantes que
são de outra realidade social, mas com suas próprias experiências com as brincadeiras
populares, em especial com o coco. Isso mostra que a visão de grupos que evocam a
cultura popular e suas práticas tradição, na contemporaneidade, podem se configurar de
formas diversas, para além dos modelos folclóricos de grupos formados por familiares
ou membros da comunidade, o entrelaçamento dos segmentos sociais e de pessoas de
varias origens diferentes, ocorrer no seio da brincadeira popular, lhe permitindo adaptar-
se as demandas contemporâneas.

Quanto a questão da transmissão, foi possível concluir algumas coisas, a saber, o


Mestre Severino dentro do grupo é o que podemos chamar de uma verdadeiro “poço de
88

conhecimento” em que as brincantes bebem e compartilham desse saber. O Mestre em


seu ensinar, nos mostra que para se aprender coco tem que se brincar coco, e na hora da
brincadeira não se interrompe para explicar como faz, se aprende fazendo. Essa é a
principal estratégia do Mestre para ensinar os cocos, executa-los na integra para que as
brincantes aprendam através do exercício de repetição e imitação os elementos musicais
dos cocos. Já para transmitir alguns dos significados das letras, o Mestre recorre as
histórias de sua vida ou da vida da zona rural.

As brincantes são responsáveis por grande parte do processo de transmissão no


grupo, elas criam suas próprias estratégias para aprender os cocos e o toque. Algumas
utilizam o recurso da imitação, não só auditiva, mas também visual, em que os gestos
também auxiliam na hora de aprender a batida do zambê ou para conseguir executar o
passo da dança. Outro recurso que o é utilizado pelo grupo são as transcrições das letras
dos cocos. Esse recurso curiosamente parte do próprio Mestre, que afim de perpetuar
esse legado, conta com o auxilio das brincantes para realizar uma espécie de
catalogação dos cocos que vão sendo lembrados. Essas transcrições servem para que as
brincantes assimilem os versos mais facilmente, o que difere das praticas da tradição
oral, mas se olharmos para o contexto do grupo CRMS, em que todas os brincantes
possuem altos níveis de escolaridade, diferente do contexto das culturas de tradição oral,
em que grande maioria da comunidade não sabem ler nem escrever.

As brincantes no grupo CRMS também se ensinam entre si, tirando duvidas de


qual trecho deve ser cantado, coo se deve dançar ou como se deve entoar determinadas
melodias. Algumas vezes uma ou outra brincante assume o papel de transmissora para
as outras brincantes, outras vezes as brincantes trocam informações até chegar a um
consenso.

No momento das oficinas, as brincantes também assumem papel de destaque na


transmissão, dependendo do contexto da oficina, se ela está ocorrendo em um ambiente
formal de ensino ou se está ocorrendo para crianças de comunidades periféricas. A
oficina toma caráter mais explicativo nos ambientes formais, nesses casos as brincantes
assumem o papel de explicar o que é o coco, assim como de as vezes esclarecer uma
explicação do Mestre. No caso das oficinas para crianças, a estratégia é fazer com que
as crianças brinquem o coco, vivenciem, mas sempre há um direcionamento por parte
das brincantes, ensinando como se deve executar os passos da dança do coco.
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Por fim, constata-se que no grupo CRMS a transmissão ocorre de forma


múltipla, tanto do mestre para as brincantes, quanto das brincantes para o Mestre,
quando essas servem de apoio para a memória do mestre, assim como das brincantes
para os participantes das oficinas. Esse sistema múltiplo de transmissão nos mostra o
quão rico são esses ambientes de ensino e aprendizagem alocados nos contextos
populares, que Mestre Severino mais que merece esse titulo, pois além de toda sua
história de vida ligada a brincadeiras populares, o que faz de Seu Severino um Mestre, é
sua vontade e seu pendor em transmitir esse conhecimento adiante, sem descriminar à
quem. Quanto as brincantes vale ressaltar que sem elas não existiria o Mestre, pois para
que se ensine é preciso que outra pessoa queira aprender, e isso todas elas querem e
muito, não só a música ou a dança, mas a experiência de vida de um Mestre.

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ANEXOS.

Anexo 1 – Entrevistas com Mestre Severino nos dias 29/05/2015


95

KM _ como surgiu o grupo?

MS_ Esse coco, ninguém mandou ninguém pediu... eu comecei esse coco, eu comecei
ali ó, no canto que tá aquele portão, nessa “pestera” de mato, dali eu batia no tambor,
dali eu batia no tambor, começava a bater uma hora dessa... aí... eu viajava por “mode”
todo sábado, todo sábado eu “tava” em ponta negra, dormindo la na minha casa, e vinha
na segunda feira, na terça...

KM_nessa época o senhor morava em ponta negra?

MS_ é... eu morava lá e já morava aqui também, lá só tava a “famia”. Ai eu... trabalhava
lá no conjunto; Tião Matias me chamou pra brincar um “reize”, eu digo: eu não posso
brincar boi do “reize” Tião, porquê eu tenho esse tornozelo quebrado, e é o que eu mais
gosto é de brincar no boi de “reize” porquê a minha parte no boi de “reize” é biríco...

KM_ Biríco?

MS_ é... ser biríco...

KM_ Biríco é quem no boi de reis?

MS_ O biríco, o mateu, a catirina, esses três é do “reize”, agora... passando para o
“espleitado” é o mestre, contra mestre... primeiro galante, segundo galante, terceiro
galante, quarto galante, dama e daí por diante; ai passa para “boiêro”, passa pra brincar
Jaraguá, curiabá, bode e daí por diante. Ai eu disse a ele que não ia, porquê não dava
para eu brincar, e eu gostava de dançar baiano, ai eu dançava baiano penerava que eu
rodava o mundo todinho só...

KM_ só se amostrando

MS_ só se amostrando ai...passou quando foi na outra semana ele tava no mermo canto,
ele disse: “agora vamo mudar de brincadeira, vamo brincar mais eu bambêlo?

KM_ quem disse isso?

MS_ Tião “Matia”

KM_ Tião Matias lá da vila?

MS_ É lá da vila; ai quando eu cheguei lá... ai eu fui... quando cheguei lá “cumeçemo” a


brincar, eu brinquei a primeira noite, num deu quase ninguém, só foi eu ele e Pedro de
piloto que é aquele Pedro de Lima...

KM_ Pedro de Lima

MS_ É, Pedro de lima, ele é conhecido lá como Pedro de piloto, agora depois que é
mestre, ai é que tá com essa frescura; ai... ele chegou sendo o mestre de bambêlo de
Tião “Matia”, ai num deu foi nada nessa primeira noite, eu fui brinquei tudo mais, na
segunda vez na outra semana, ai eu fui quando cheguei lá Pedro... ai Pedro me chamou
96

ai... maçariquinho da beira da praia/ como é que a muié veste a saia? / é assim é assim
é assim... eu digo Pedro isso num é coco de bambêlo não, isso ai é um... isso ai é de... eu
disse o que era...pinduca, ele disse: “a isso passa por coco de roda”, eu digo, eu quis
dizer, Pedro deixa de ser burro, que bambêlo é uma coisa e... maçariquinho é outro...

KM_ pinduca que o senhor fala...

MS_ pinduca é quem canta isso ai, ele é que é o dono dessa cantiga...

KM_ sim, um carimbo

MS_é... ai é num é, é num é ai eu digo: num vô teimar mais não, ai fui e fiquei calado,
lá mandaram me chamar lá da fundação José augusto, eu fui, quando cheguei lá era para
saber se eu, se eu podia ir pra limoeiro eu digo: “rapaz eu num sô o chefe não, quem é o
chefe é Tião Matias que é o dono...

KM_ quem foi que chamou o senhor pra ir para limoeiro?

MS_ foi.. agora esqueci do nome dele... agora tô esquecido do nome dele...

KM_ sim

MS_ ai eu disse: “quem é o dono é Tião Matia eu num delego nada não, apenas eu sou
convidado dele para brincar” ai...ai eu sei que...foi buiú agora que eu me lembro...

KM_ Buiú? Um neguinho baixinho?

MS_é aquele, BUIÙ foi quem chamou

KM_ Buiú levou o senhor, tião matias e Pedro de lima?

MS_não ele num foi não, quem foi foi nós, ai “arranjemo” um carro... o “fio” de Tião
Matias se atravessou, “por quê o quê e tal”, ai eu fiquei na minha, ai ele foi cantou,
brincava ele pegava o dinheiro e não pagava a dançarina e nem a ninguém... ai fui a
primeira vez, fui a segunda, na terceira vez veio encher meu saco, ai...

KM_ quem encheu o saco do senhor?

MS_ o “fio” de Tião” Matia”, “Gabi”... ai eu digo: você sabe de uma coisa, eu canto
coco porquê sei cantar, num peço caridade a ninguém não, eu num peço caridade a seu
ninguém pra cantar, um coco, se eu for cantar coco dos outros, ai é que eu canto coco!
Porquê o que eu canto é meu, quem deixou para mim foi o meu pai; ai... isso lá... a
primeira vez quando nós “fumo” eu tava no tambor, assim em cima do palanque, e aqui
por “d’átraz” arrudiado de gente, Pedro cantou: pássaro branco arapirá/ senta na
pedra num pode voar...; ai cantou o outro, ai quando era só três cantiga, ai o cara
disse...o cara que tava apresentando disse: chegou encerra aqui já, o coco de ponta negra
já “compretô”, eu nunca vi coco de roda ser cantado em musica de carimbó; ai a muié
pegou aqui na minha calça balançou e disse: “isso é de pinduca né?” eu digo: é... ai
chegou aminha... agora o mestre Severino... foi quando eu cantei: cajueiro abalou/
97

abalou meu cajueiro... ai bateram palma, eu terminei o coco, ai disse: a... agora eu
escutei um coco, num escutei carimbó não. Ai o que acontece, a primeira vez, a segunda
e a terceira ai ele veio... ai o fio de tião matia veio encher meu saco, eu digo: óia... por
vida minha e saúde minha, de vocês e de meu povo em casa, eu só venho aqui em
limoeiro agora, com um grupo que eu vou fazer, é quando eu venho... e ainda num fui,
mas no dia que eu for...

KM_ mas vai

MS_ se buiú tivesse na fundação josé augusto, ele já tinha telefonado, eu já tinha sabido
se para quando era o encontro de mestre de limoeiro, ai quero me encarregar de arranjar
um carro par ir. Lá é para valer mesmo. Ai eu fiquei brincando, brinco aqui, brinco ali,
brinco acolá, todo mundo gosta das minhas brincadeiras...

KM_ eu sei... ai quando o senhor veio de limoeiro tava decidido a fazer um grupo?

MS_ foi... só disse lá, ai quando o povo chegando espaiando, ai a primeira que chegou e
disse: “vai fazer um grupo” eu disse: vô, “eu quero ir pro seu grupo, posso?” foi Bel...

KM_ Bel foi a primeira?

MS_ Foi a primeira e ainda viajou mais eu, “fumo” bater em Bom Jesus

KM_ mestre, Bel se ofereceu para participar do grupo ou o senhor chamou Bel?

MS_ não, ela que se ofereceu, perguntou se podia entrar, eu digo: pode

KM_ e o senhor tinha espalhado que queria fazer um grupo foi?

MS_ foi as meninas... eu tinha dito lá em limoeiro, e as meninas quando...

KM_ quis meninas?

MS_ o grupo de Tião Matias

KM_ ai bel foi a primeira?

MS_ Bel foi a primeira, Lilian a segunda, terceira foi Mariana... não a segunda foi Ede,
a terceira foi lilian, quarta mariana, quinta foi Paula, e... qual foi a outra?... eu tô
esquecido da outra, eu sei que eram seis... e se apresentava todas seis logo quando
começaram, ai “adepois” foi que começou, sim... a baixinha como é?... essa doença ta
me deixando lélé...é...

KM_ que é do coco também?

MS_ é...

KM_ Ilnete?
98

MS_ Ilnete, Ilnet foi encostado, Ilnet foi primeiro e depois foi aquela menina que eu
disse agora o nome dela... ai “adepois” foi Paula e ai completou o grupo. Ai quando eu
dei o primeiro ensaio, finado zé correia bateu palma e disse:” você tirou em primeiro
lugar”. E dai para cá eu tenho sido; eu só vejo o povo dizendo: “coco é o mestre
Severino” e eu já fui e já sou conhecido por... recife já fui cinco vezes, são Paulo já fui
uma, uma para Uberlândia.

KM_ Mestre o pessoal lhe chamava de mestre antes do grupo?

MS_ não... as meninas foi quem botou...

KM_ as meninas que começaram a chamar o senhor de mestre. Antes quando o senhor
participava lá com os outros...?

MS_ não...era só Severino “mermo”

KM_ só Severino mermo?

MS_ nem mestre chamavam

KM_ as meninas que começaram a chamar o senhor de mestre?

MS_é mestre Severino, mestre Severino pra qui, mestre Severino pra culá, mestre
Severino pra qui...

KM_ e mestre virou né?

MS_ e mestre ficou... eu sou assim, me dou com todo mundo... eu me dou com todo
mundo né, ai...eu num seio lê mas também num carece a pessoa querer fazer de mim...
escravo não por quê se torna “rim” fica feio...

KM_ mestre ai o senhor já conhecia o coco como coco de roda? Ou antes ele era
chamado de outra coisa assim... na época do seu pai como ele chava?

MS_ coco de roda é coco de roda, coco de zambê é coco de zambê,

KM_ qual é a diferença?

MS_ a diferença é por quê a dança do zambê você dança no pé do tambor, e o coco de
roda você dança “espaiado” ; um par, puxa uma “cavalêra”, dança com ela aqui, solta
ela para outro, vai puxando outro lá e outro ali, e sei que esse que é o coco de roda.

KM_ seu pai brincava que coco?

MS_ meu pai brincava os dois, coco de roda e zambê; aquela menina ela dança coco de
zambê

KM_ que menina?

MS_ a irmã de Luara


99

KM_ a irma de luara? Ela dança?

MS_ é... eu fui lá pra Geraldo e...

KM_ e ela quebrou tudo?

MS_ ela quebrou tudo... a bicha, fazer que nem o caboclo: a bicha é invocada

KM_ mestre os instrumentos do coco de roda e do coco de zambê são os mesmos?

MS_ é... zambê é o mesmo zambê

KM_ é o mermo pau?

MS_ é o mermo , agora só, que os meus num é... eu quis fazer, mas num deu por quê, ja
o cara quando cortou já cortou os pedaço assim, ai num deu pra eu fazer, por quê era
para eu fazer para me escanchar em cima, pra o coco de roda e de zambê. Ai.. o coco de
zambê tem uma parte que, o batedor de zambê faz rodando, e esse ai é pequeno, num
dá pra eu botar a corda e preder no meio das minhas pernas e andar, ai fico só parado.
Ai eu sei que eu gosto muito da brincadeira e... eu já tô... óia, me faz um favor, aqui em
cima onde tem a TV, espia assim que tu vê meu chapéu de couro e um saco “prastico”,
pega o saco “prastico e traz pra mim, com o que tem dentro.

MS_ ai o que acontece, o que acontece... eu... eu luto pra ensinar as pessoa, e eu penso
que, eu não tenho maldade... eu disse de baixo do chapéu de couro, tem uma bolsa de
“prastico” dessa e puxe ela de baixo do chapéu e traga. Né essa não.

KM_ o senhor “tava” falando de ensinar as pessoas

MS_ ai eu... ensino que as “veis” a pessoa, passa por uma situação, e tem... aha ai viu
agora? Senta aqui, bota a cadeira aqui Marilia. Ali óia. Bote mais para lá que ta na
sombra... então eu tô escrevendo óia, isso é pra quando eu tô trabalhando... óia, eu
tenho, num é nada de ninguém aqui, num é de ninguém, isso ai...

KM_ o que é isso mestre

MN_ quem escreveu?

MS_ eu pedi para ela escrever.

KM_ ela quem?

MS_ Manuela... aí ela ficou com esse livro lá, ai eu, sabe de uma coisa, eu num vô
deixar meu livro lá não. Aí sai daqui e fui busca-lo.

KM_ isso são as musicas?

MS_ é... isso é coco

KM_ num deixe ninguém levar esse livro não fique com ele.
100

MS_ esse livro num sai da minha mão não, num sou doido não

KM_ mestre esses cocos, o senhor faz os coco? Como é que funciona? Da onde é que
vem esses bixo ai?

MS_ rapaz esses coco é tudo é... coco que eu já venho “trabaiando”, que o que meu pai
sabia ele ia cantando tudo. Ai de noite ele ia brincar e eu ia mais ele, ele era brincando
lá e eu aqui mais os outros meninos.

KM_ o senhor participava da brincadeira? O senhor brincava Não? Ficava perto?

MS_ ficava perto brincando mais os outros meninos. Ai ficava eu, ficava finado
Badidiu... que era meu amigo, ficava Floriano, Floriano num sei nem se ainda é vivo. Ai
ficava eu, “cumpade” Zé Marrêra... tu tava fosse... da vez que nós “fumo” pra Santa
Cruz, tu tava Marilia?... ai ele já tá bem “véinho”, mas é um “véio mago”...

KM_ mestre ai o senhor brincou coco assim... em que período da sua vida?

MS_ rapaz eu o... o meu temporada que eu comecei, foi quando... Tião Matias me
chamou, ai eu quando era livre de o que passou pra traz, eu num brincava coco,
brincava “rêse” (reis), eu era “mateu” de “rêse”.

KM_ quando o senhor era jovem?

MS_ era

KM_ quando o senhor era jovem, o senhor brincava coco não?

MS_ não, brincava... eu brincava as “vêis” um coco assim, lá no meio da bagunça, que a
gente tava a turma bagunçando no “rêse”, ai eu inventava de cantar um coco, ai a gente
começava aquela baderna ali, era só para fazer o povo “sirrir”

KM_ brincadeira de coco aconteceu só com o seu pai assim?

MS_ é eu ia quando meu pai era vivo, mas meu pai morreu logo cedo, muito novo, eu
fiquei quando meu pai morreu, eu fiquei... eu fiquei de... de oito pra nove anos de idade,
ai é por isso que eu fiz aquele coco: “tava de... tava de oito pra nove anos quando
mamãe me chamou, eu corri para os braços dela mamãe me abraçou, em menos de
meia hora o telefone tocou, minha mãe foi atender foi o meu pai que morreu, minha
mãe sofreu ô mundo enganador, não fui eu quem lhe enganei, foi você que me enganou,
apareceu um vaqueiro pra tomar conta do gado, tocou fogo na fazenda e queimou o
capim do gado, o capim não era meu era de pastar o gado, ê que vaqueiro malvado, ê
que vaqueiro malvado, tocou fogo na fazenda, queimou o capim do gado, o capim num
era meu era de pastar o gado”. E ai...

MN_ isso ai aconteceu mesmo?

MS_ aconteceu que meu pai morreu né, e quando ele morreu eu tava com nove anos,
ai... começando por aqui...
101

KM_ esse coco é composição do senhor? Esse foi o senhor quem fez?

MS_ foi esse coco e...e eu... tem esses outros que é... esse... “mané fulô é um mestre
que anda de noite a dia, ele chegou de navio por que o vento levou” Mané fulô que é
esse coco aqui, ai daí por diante isso tudo é coco, e o outro caderno é o que eu vou
trazer essa sexta-feira, eu vou trazer o caderno que ta lá em Parnamirim, que é pra
passar esses coco aqui, e ninguém vai “butar” a mão nesse caderno, por quê eu vou
passar esse coco... vou levar esse pra passar pra o outro, e quando for... quando eu fizer
aqui o quarto é que eu trago ele de lá pra cá, e o dono desse caderno vai ser esse nêgo
ai....

MS_ eu gosto de brincar o coco, eu comecei esse coco eu fiz o tambor, e... ai eu tô com
um tambor furado ai... ai ainda falta eu lixar ele; eu fiz de coqueiro...

KM_ é eu vi esse. Rapaz eu sou doido para fazer um zambê, eu voou vir aqui para o
senhor me ensinar a fazer esse negocio

MS_ vou lixar ele; falta eu ter uma lixadeira, pra eu lixar e encorar ele. O dia hoje foi
tão bom pra encorar um...

KM_ um sol danado

MS_ é...um sol, ai o caba quando acaba de arrochar, de pregar, ai fica no sol e fica de
gemer; eu batia nele, no tambor, que eu vendi ele a Marilia... cumé? A Manuela, eu
vendi ele, Manuela comprou por quatrocentos.

KM_ Manuela comprou um zambê?

MS_ comprou, eu vendi a ela, por quatrocentos; botava ele ali, as vezes vinha para aqui,
plantava as munheca nele aqui e escutavam lá no Pium. Ali na Vila Feliz vinha um
senhor já idoso, moreno, ai eu cheguei um dia lá ele disse: “mais rapaz, eu ouvia o caba
bater aqui em baixo, eu pensava que era lá pelos murrinho ou Nízia, mas você era ali em
Alcaçuz, você batia lá e eu escutava aqui; e pela sua pancada e o som do tambor, eu vi
que era você, e o tambor ta aqui. Ai era eu brincando... eu brincava ali naquele colégio
que tem do lado aqui, lá junto daquela parada, que vai pra lá, ai brinquei uma vez la na...
da feira pra cá, e depois fui brincar lá na... antes disso eu devo brincar lá onde Cris
arranjou, aquele negócio coberto de palha; rapaz eu fui bater tambor aculá, fiquei com
os pés todo chamegando, ai o mocotó aqui... eu fui de chinela vice...

KM_ e lá tinha o quê?

MS_ aquele mosquito maruim; eu bati e achei bom, só achei ruim o danado do maruim

Km – lá em japecanga o senhor brincava oque lá?

Ms – lá em japecanga eu ia só espiá. E o engenho agora lá num tá no canto que era...

Km – eu sei...
102

Ms – o engenho lá era do lado de lá, do outro lado do rio, do aceiro da mata lá. Ele
agora ta do outro lado de cá, em curralinho, como daqui lá para a distância daquele mato
(apontando para o final da rua onde mora). Ele era lá e veio ficar aqui, mas do lado de
cá do rio...

Km – eu sei...

Ms – ai ficou assim num pé de um...

Km – a época que o senhor estava em japecaga qual era a sua idade?

Ms – eu era assim... do tamanho daquele menino de... de coisinha de.... aquele menino
que veio aqui...

Km – o senhor não se lembra da idade não né?

Ms – não... mas oia, eu as vezes depois me lembrando fico... meu deus eu me lembro
dessa coisa toda, foi deus que me ajudou, me deu esse dom, essa lembrança, pra eu me
lembrar das coisas... que... eu mesmo não ia saber cantar um coco, por que ai... eu já fui
lá em Geraldo... os cocos que meu pai cantava, alguns de coco de zambê, Geraldo lá
canta: “foi no mato passou camurim, foi no mato camurim passouo, passou
camurim....” dai por diante.

Km – seu pai cantava esse coco?

Ms – era... “ a uzina santa helena, a usina santa helena, de grande fica a gemer, de dia
pra cortar cana, de dia pra cortar cana, de noite para moer, de noite para moer.” Isso
é coco de roda e também uma parte é zambê, é coco zambê. Ai quem canta zambê bota
ele, quem canta coco de roda bota ele.

Km – serve pros dois.

Ms – “helena quebrou o mastro, mas não quebrou a bulina, inda ontem eu vi helena, no
bueiro da usina” e dai por diante. Ai tem coco que... muitos cocos que Geraldo canta eu
num canto por que... ai alguém já escutou Geraldo aí vai dizer “esse coco é de
Geraldo” , mas ai eu num tenho medo de cantar ele, só que eu num dô conta do resto de
coco que tem. É um coisa que.... e outra, pra mim aqui num da para eu tá cantando coco
de zambê por que eu num gosto de misturar. Tô canatando coco de roda ai com um
pouco puxo um coco de zambê, ai num dá, por que o coco de roda é de um jeito o
zambê é de outro. O zambê o cara fica assim se balançando se quebrando, ai mergulha
no pé do... (tambor) ai vuco, vuco, vuco, com um pouco se levanta e vai buscar outro, e
aí eu fico na minha... “amanhã de manhã eu vou à praia, cuidar do meu amiguinho pro
tubarão não pegra.” Tudo é coco de zambê, aí já o meu é uma diferença, “boa noite
dono da casa, boa noite lhe dê deus, cadê o dono da casa, por ele pergunto eu, boa
noite dono da casa, boa noite lhe dê deus...” ai... “po´r detrás da minha casa, tem um
grande arvoredo, onde canta o nambu, o sabiá e o papa sebo.” Aí Geraldo canta num
intalado só: “boa noite doo da casa, eu vou-me embora eu voou-me embora, boa noite
103

meu povo todo, eu vou-me embora eu vou-me embora, boa noite dono da casa que eu já
estou ido, boa noiute dono da casa, boa noite lhe dê deus, boa noite dono da casa, está
chegando a hora, boa noite dono da casa, dê adeus e vou-me embor.” E daí vai
simbora. Aí eu canto ele, mas é: “mas cadê o dono da casa por ele pergunto eu, boa
noite dono da casa, boa noite lhe dê deus.” Aí... “por detrás da minha casa, tem um
grande arvoredo, onde canta o nambu, o sabiá e o papa sebo,”

Km – esse aí é o coco cantado no coco de roda?

Ms – é, esse é o coco de roda

Km – sim, quando ele é feito o zambê ele....

Ms – ele é mudado

Km – muda né?

Ms –muda, e é que nem já... o coco de zambê tem: “eu fui tomar um banho no poço da
curimã, diz as seis horas da manhã eu avistei a donzela” eu comecei cantando coco de
zambê, mas ai eu queria pegar a toada pra entrar em coco roda. E justamente eu peguei.
Aí... “zé de nana meu nego mandou me chamar...” esse zé de nana é coco de roda, é
coco de roda e o coco zambê é o... eu fui tomar um banho no posso da curimã. Esse aí é
o coco de zambê, o da curimã é coco de zambê e zé de nana é coco de roda.

Km – o que é curimã mestrew

Ms – curimã é um peixe

Km – é um poço onde tem o peixe?

Ms – é... e daí por diante, o cara canta aquilo ali, aqueles coco. Aí tem “rosa roseira ô
rosa rosedá, menina abre essa roda que o coco vai começar, fui tomar banho com a
aliança no dedo, eu tive medo para ela não mariá, saí da praia a maré tava encendo,
eu vi a moça correndo de maiô à beira mar”
104

ANEXO 2 – Entrevista com Ilnet no dia 25/03/2015

IL - Ele nunca falta...

KM – é porque ilana disse que as meninas disseram que Lilian estava doente, você saiu
tarde daqui, ricceli não ia poder ir...

IL – foi, mas assim... sempre quando... mesmo se tiver uma ou duas pessoas ele nunca
deixa de fazer, né? Então assim... porque eu não fui, porque achava que não iria dar
tempo realmente, as meninas tiveram complicações, mas leila que disse que ia, né? Mas
ela queria saber se ia ter, se Seu Severino não fosse é que não ia ter, porque sempre que
ele vai acontece, né? Ou faz uma coisa...

KM – eu tentei me comunicar pelo face ainda, mas ninguém respondeu aí eu pensei “a


ta marcado deve ter, aí eu tentei ligar para ele...

IL – isso tem que ligar para ele, assim inicialmente tem que ligar para ele, ou no começo
da manhã ou no dia anterior...

KM – IL são seis perguntinhas...

IL – você já ta gravando é?

KM – já...

IL – então tá...(risos)

KM – IL como você conheceu o mestre?

IL – eu conheci o mestre Severino foi em 2006, que foi um evento que cacau organizou
na casa dele, ele morava na vila de ponta negra, cacau, e ele tava com um grupo de
pessoas fazendo uma oficina, inclusive eu era uma das pessoas que estavam fazendo
essa oficina com ele, com cacau, e ele também tinha conhecido o mestre há pouco
tempo, e nesse momento, nesse envolvimento com a oficina, ele sugeriu um evento
chamado “sambada”, que além de agente que estava fazendo a oficina, e depois formou-
se um grupo para estar se apresentando nesse evento “sambada”, ele chamou o boi de
Seu Pedro e chamou também Seu Severino, então foi nesse dia, nessa “sambada” que
foi em 2006 que eu conheci Seu Severino. Conheci Seu Severino assim, ele já morava lá
na vila, mas assim... eu não o conhecia.

KM – ele já brincava coco antes do grupo?

IL – antes do grupo ele participava do bambelô, que é um coco né? Também, ele era do
bambelô, que eu saiba ele participava do bambelô. Mas assim... um grupo com ele
coordenando, ele na direção como mestre, nesse momento não. O grupo que ele quis
formar... ele diz que sempre quis ter um grupo dele, não está com outro grupo, no caso
ele tava com o bambelô, mas também ele participava de outras brincadeiras, mas um
105

grupo dele, quando ele diz “o meu grupo”, foi quando ele fez uma viagem com esse
grupo bambelô... ele conta essa história bem direitinho, mas assim... acho que quando
você estiver conversando com ele, ele vai dizer o que foi que aconteceu, que parece que
ele se chateou com pessoas nessa viagem do grupo que ele tava junto, e disse que ainda
ia fazer um grupo dele. Aí foi depois, como ele já me conhecia, conhecia bel, agente que
era desse grupo, formado a partir dessa oficina de cacau, foi o coco maracajá, e cacau
precisou... foi embora, voltou para Pernambuco, e agente ficou sem o grupo e ele
(mestre Severino) perguntou se agente queria participar do grupo que ele tava
pretendendo formar.

KM – ele que chamou?

IL – ele que chamou, chamou eu, chamou bel, também falou com lilian, e com outras
meninas, e também com duas pessoas la da vila de ponta negra que também participava
do bambelô. Isso foi em novembro, quando agente fez a primeira reunião, que agente
aceitou participar com ele desse grupo...

KM – novembro de 2006?

IL – não, novembro de 2008

KM – foi dois anos depois de conhecer ele?

IL – foi dois anos depois, exatamente, foi dois anos depois , agente conheceu ele no
segundo semestre de 2006 e em 2008 ele chamou, agente aceitou e deu certo, iai agente
foi ensaiar com ele. os ensaios agente fazia lá na vila de ponta negra, há principio foi na
minha casa, porque não tinha ainda um canto, depois agente conseguiu o espaço do
conselho, coincidiu que na época estava o projeto encantos da vila, que tinham uns
mestres que participavam, Seu Severino também participava como mestre né? Ligado
ao coco de roda, além de outros mestres. Aí agente tinha um horário que podia ensaiar
nesse espaço do conselho comunitário. Pronto foi isso, essa historia.

KM – Ilnet qual era a sua relação com a brincadeira antes de estar participando do grupo
do mestre, a sua relação com o coco?

IL – olha com o coco, eu sempre gostei muito do coco, porque assim... eu já tinha
viajado para arco verde, e arco verde é muito forte o coco, só que lá não é o coco de
roda, o que eu conheci não era o coco de roda, era o samba de coco Raizes de Arco
Verde, que eu também já tinha conhecido bem antes e, na cidade deles né? Em arco
verde, que foi num carnaval em Olinda, sempre o coco Raizes de Arco Verde tava se
apresentando , ou em recife ou em Olinda, e aí eu tava encantada com aquele pessoal
fazendo aqueles trupé com os tamanquinhos, que é um tamanco que eles usam, de
madeira, eles fazem uma batida que se chama de trupé, porque tem uma influencia
indígena o trupé. Então tem o samba de coco raízes de arco verde que era na época que
eu conhecia, depois foram criando outros grupos de coco, de samba de coco lá em arco
verde, e assim... foi a partir daí mesmo, do coco que eu via no carnaval, no carnaval de
olinda, nos cocos. E aí também cacau, eu gosto muito do trabalho de cacau e cacau tem
106

esse viés da cultura popular, trás o coco também no trabalho dele, a oficina que teve o
elemento coco tava muito presente na oficina, que foi a oficina que agente fez com ele
em 2006. Aí pronto veio esse gostar do coco, eu também já tinha um gostar muito forte
pelas manifestações da cultura popular, desde a época que eu fazia capoeira, e essas
minhas idas ao carnaval de Olinda e muito em Pernambuco. É isso, esse gostar das
manifestações, das brincadeiras, e dentre essas brincadeiras o coco dele (mestre
Severino) ta aí, faz patê da família...

KM – sim... da diversão né?

IL – é.

KM – como você pensa a figura do mestre Severino, assim... como você descreve ele
como mestre?

IL – então, eu vou falar do mestre de um modo geral, e quando eu estou falando do


mestre de modo geral eu vou incluir mestre Severino, porque para mim o mestre ele tem
um saber, porque que ele é mestre? porque ele aprendeu aquele saber, pode ser qualquer
saber, se eu me reportar à capoeira, o mestre de capoeira que aprendeu o saber da
capoeira, que passa o fundamento da capoeira, então no caso o mestre Severino que é
mestre de coco, ele foi intitulado mestre de coco pelo saber que ele tem, pelo repertório
que ele tem dessa manifestação e de conseguir transmitir aquilo que ele aprendeu para
as pessoas, no caso para o grupo que no momento ele está vinculado, que no caso é o
grupo que foi criado, ele chamou as pessoas e formou esse grupo, para as outras pessoas
poderem está, por exemplo, quando ele vai numa escola, é chamado para ir numa escola
que tem o ensino fundamental, dele conversar com aquelas crianças, dele mostrar né?
Essa brincadeira, todo esse repertório do coco. Estão por ele possuir esse saber que ele
aprendeu pela oralidade, ele passa pela oralidade ele não frequentou os bancos das
escolas, ne? Ele tem esse saber e consegue transmitir né? Do jeito dele, da forma dele,
do jeito de ensinar quando ele ensina a botar couro no tambor, quando ele ensina a
batida do tambor, quando ele vai e ensina como era os passinhos da época que o pai dele
brincava coco, como eram os passos, quando ele diz “ó é assim” “a musica é assim...
você responde desse jeito” , então é um mestre porque ele tem todo esse repertório e ele
consegue transmitir para o outro. É isso que eu vejo a importância do mestre, de todos
os mestres, e especialmente porque eu vivencio nesse grupo de seu Severino que
consegue fazer isso, do jeito dele, da forma simples dele, das palavras, do jeito de falar
dele. É isso o que ele aprendeu ele consegue transmitir.

KM – pensando a figura do mestre Severino, hoje em dia, que é uma figura na cidade
conhecida, e todo mundo conhece o trabalho dele e o visita, você acha que o grupo ele é
responsável por isso assim, desse conhecimento do mestre para as outras pessoas?

IL – eu acho que ele... ele é importante, mas eu acho que sem o grupo ele, Seu Severino,
ele era conhecido, mas a partir do momento... ele era conhecido sem o grupo, e a partir
da criação do grupo eu acho que o tornou mais visível, porque sem o grupo sem ele está
atuando, mesmo ele detentor daquele saber, onde é que Seu Severino iria conseguir
107

fazer as apresentações, Seu Severino não fazia apresentação, não viajava, porque ele
não tinha o grupo para poder viajar com ele, para se apresentar com ele, para poder
participar de eventos, que desde a época que o grupo foi criado o grupo já participou de
vários eventos, já viajou, então assim.. o grupo é importante, Seu Severino não deixava
de ser Seu Severino por que não tinha um grupo, mas assim... em termos de visibilidade
do coco de Seu Severino como Mestre de coco, eu acho que o grupo foi super
importante. Porque deu esse caráter de Seu Severino não ser mais do que ele era no
sentido do coco, levando o coco e ele sendo apresentado como mstre de coco, por quê?
Porque ele tava atuando, e ele começa a atuar, ou recomeça a atuar, não como... ele
atuava, mas não como... no coco de roda, mas em outras manifestações, mas acho que
Seu Severino, sendo mestre desse coco de roda, veio a partir do grupo, sim... foi
importante, a visibilidade né? Tava lá, ele tava com todo esse conhecimento, todo
aquele saber dentro, nele, mas não tava sendo colocado para fora, porque tava faltando
alguém que ele passasse, que levasse ele para algum lugar, que no caso foi com a
formação do grupo. Eu acredito que nesse sentido foi importante enquanto mestre ser
reconhecido, porque nem se falava em Seu Severino, ele passa a ser visto como mestre a
partir do grupo, não tô dizendo que ele não era mestre, ele era, mas assim... do passar
aquele conhecimentom das pessoas o verem dessa forma, foi importante o grupo para
ele sim.

KM –ei ILnete era só isso mesmo, só isso mesmo

IL – aí qualquer coisa... por exemplo a história de onde vem, de onde vem esse coco de
Seu Severino. Quem começou a fazer uma pesquisa mais aprofundada foi bel antes dela
sair do grupo, aí ela viu que, ela me contando, tem uma relação com, assim... de onde?
Do rio grande do norte? Tem relação com as relações dele com um coco de
Pernambuco, num sei se ouro branco...

KM – amaro branco

IL – amaro banco, alguma coisa com amaro branco, mas assim... eu acho que essa parte
ai, você vai conversar muito com ele... eu só sei a partir do memento que ele me conta,
que quando criança ele acompanhava esse pai, que esses cocos dele ele foi se
lembrando, ele foi relembrando, e no momento que ele ta exercitando aí vem na
memoria né? Ele tanto vai relembrando como ele vai, acho, que fazendo adaptações
com o que ele lembrava , algumas coisas que ele não lembra ele vai recriando também,
eu acho, mas assim... na medida que você estiver conversando com ele você vai
puxando ai essa história né? Aí eu queria falar que, o grupo desde 2008, sete anos esse
ano vai fazer, então assim... muitas pessoas já passaram por ele, passaram e deixaram
porque foram embora, outros porque tiveram outras prioridades, que não estavam dando
conta, e assim... talvez seja interessante você também conversar com as pessoas que
também já foram e não estão mais, as pessoas que estão chegando...

KM – inclusive você falando de cacau, eu tenho que entrar em contato com ele...
108

IL – acho que ele vai ter muita historia para contar também, porque foi a partir dele que
agente ficou conhecendo seu Severino. Acho que ele deu uma força no sentido de dizer
“vá seu Severino, vá” como posso dizer... um incentivo de Seu Severino...

KM – cacau com relação à Seu Severino, ele vem antes do encantos da vila? Cacau é
uma figura na vida do Seu Severino antes do encantos da vila? Ou o projeto encantos da
vila é antes de cacau.

IL – o encantos da vila vem depois

KM – depois?

IL – é... deixa eu ver aqui se eu tenho algo do encantos da vila, porque tem que ver...
tem o livrinho do encantos da vila que você vai ver a data mais ou menos, que 2006 foi
o ano que agente descobre Seu severino, decobre que eu diga assim... eu conheço Seu
Severino, e eu acho que o encantos da vila vai ser depois... que foi importate também
esse projeto para as manifestações da vila de ponta negra. Deixa eu ver aqui se eu tenho
algo do livrinho... por exemplo, em 2007 Seu Severino participou do CD do coco
maracajá, que foi esse grupo que agente formou com cacau, e realmente foi isso, em
2007 cacau foi embora, ele ficou vindo para agente fazer esse projeto, que foi um
projeto do BNB. Em 2008 Seu Severino chamou agente, ficou querendo formar esse
grupo. Guara é uma pessoa legal que você possa estar conversando , que guara também
tava junto nesse momento também de Seu Severino, acho que guara também tava nessa
viajem para limoeiro do norte...

KM – sim eu já vi o mestre falando dessa viagem...

IL – foi nessa viagem que ele se chateou, eu não vou entrar em detalhes não, mas ele
fala que...

KM – ele e Seu Pedro... (rindo)

IL – não sei se foi Seu Pedro (rindo)

KM – pedro de lima...

IL – acho que foi com alguém no bambelô, não sei ao certo, acho que Seu Severino vai
contar... e ele dizia “eu ainda vou formar meu grupo”. Aí pronto ele viu que agente
ficou sem cacau no coco maracajá, ai ele ficou conhecendo agente né? Teve assim... o
maior carinho por ele... aí ele se sentiu a vontade para chamar eu, bel, as meninas,
Lilian...

KM – você sabe assim... de cabeça quem são as primeiras pessoas?

IL – então... as primeiras pessoas foram: eu, bel, é... mariana, Edie, Lilian, e as duas
menias lá da vila é... Neca que era irmã de Seu Pedro, que ela ia para os ensaios, mas
elas não ficaram nem um ano, e teve outra... teve uma professora também, dá vila de
ponta negra... tem um portifólio que da para agente ter uma idéia aqui... aqui... aqui tem
109

uma foto... Mariana, Edie, Llilian, eu e Bel, aí tinham mais as duas da vila que não estão
aqui nesse momento. Isso aqui foi em dezembro, essa foto foi em dezembro...

(ilnete me mostrando uma foto no computador de um portifólio do grupo. Durante um


tempo ela me fala que no portfólio contem informações sobre a historia do grupo, e
segue me mostrando fotos)

IL - Pronto, aí éramos nós e as meninas da vila...aqui já é participando de eventos


(mostrando fotos), quando é que ele participa de eventos?

KM – quando tá o grupo.

IL – o grupo ó... 2009, ó... é convidado para participar de...

KM – a nega Cintia cara...né?

IL – é, aí é no parque das dunas

KM – nega Paula...

IL – pronto, Paula acho que participou durante um ano, pronto aí tem Paula que eu não
tinha falado, mas que ela entra depois, depois logo em seguida, no ano de 2009 né?
Aqui também são as meninas... ó aqui ele também é convidado para encontro de arte e
cultura de Alcaçuz, no cortejo...

KM – isso já é no encantos da vila?

IL – é, 2010 cortejo cultural vila de ponta negra, que tinha uns eventos pontuais é... no
encantos da vila, era o cortejo era em dezembro, e era o são joão. Em dezembro fazia
um evento e depois no são joão também. Aqui é quando grava o CD coco imbolê 2010
(mostrando foto) que foi um premio, agente escreveu um projeto para a gravação do
CD. Aqui é numa escola (mostrando foto) aquilo que eu falei né? Ele passa a ter
visibilidade enquanto mestre integrante de um grupo, com a criação do grupo mesmo
né? Ta bonita essa foto né? Essa é a professo que te falei, participou por um ano e meio
e depois saiu, não tinha mais horário. Ó... universidade, chamado para interagir nas
disciplinas de arte. Aqui em 2011 apresentação em eventos nacionais... essas meninas
que não estão mais Bia e Jessica. Aqui é no circuito, encontro de saberes 2013, 2013 é
nas escolas. Aqui foi os cinco anos... eu não tava, essa foto é tão linda né?

KM – é, é aquele mestre lá de Canguaretama

IL – é, o amigo de Seu bacalhau, eu esqueci o nome dele... aqui ó... congresso


internacional de cultura africana, aqui na universidade... aqui é nas escolas... Seu
Severino nas escolas.... então ele é mestre assim... por tá levando conhecimento, o saber
dele para as crianças né?
110

ANEXO 3 – Entrevista com Bia o dia 19/09/2016

KM – ei... massa Bia, queria só pedir autorização tua para poder usar as informações...

BT – sim, com certeza

KM – então, é relax, queria saber como foi que você entrou no grupo, conheceu o
mestre... como foi essa sua trajetória, desde quando você entrou até você sair.

BT – então, eu tava viajando assim... há um tempo, quando eu retornei é... eu amiga de


Edie na época Edinalda fazia parte do coco, aí eu retornei acho que foi no aniversario...
antes de tu chegar eu tava me lembrando, foi em 2011. Eu acho que foi no aniversario
do coco de 2011, porque foi uma festa lá no terreiro do mestre, na casa dele numa noite
de lua cheia, me lembro como se fosse hoje, foi bem forte assim... e eu fui com Ed, ela
me convidou e eu fui, assim... para brincar com o pessoal, e foi tão forte assim... a coisa
de está ali dançando com o pé no chão e lua e tudo, aí as meninas conversando depois,
no pós, aí “você não quer fazer parte? Participar dos ensaios”. Aí eu fui...

KM – quem foi que chamou?

BT – eu não me lembro, as referencias que vão vir na minha cabeça são de Bel, de Ilnet
e de Negão (lilian), principalmente de Bel, acho que na época que eu fiz parte, foi de
2011 até 2013, de 2011 foi mais ou menos uns dois anos, aí eu entrei no mestrado e
meus horários não deram mais certo com os ensaios, mas uma referencia grande para
mim foi Bel, não lembro quem exatamente me chamou, “a vamo lá pro ensaio pra tu
sentir se tu quer ficar”, iai eu comecei a ir para os primeiros ensaios ali no conselho
comunitário da vila, ao lado da igrejinha, e agente começou a ensaiar ali e era massa,
porque tinha toda aquela energia da vila de ponta negra...

KM – quando eu entrei era lá o ensaio

BT – lembro que na época eu fazia renda de birro também ali com a vó, então já era
uma coisa meio que familiar né? E para mim sempre foi muito massa assim... porque eu
sempre na realidade tinha sempre essa coisa da brincadeira, para mim a apresentação
em si não era o foco, quando agente ia apresentar era massa, mas o ensaio em si, o
brincar quando agente ia lá para o mestre...

KM – quando era mais informal

BT – era... porque essa coisa da aprendisagem, com as próprias meninas que faziam há
mais tempo, tanto das musicas como dos trupé, Da dança mesmo, com Bel né? Que ela
tinha uma pegada de passar o conhecimento, Bel tinha uma pegada de passar o
conhecimento, assim... no meu olhar.

KM – ela tomava a frente disso?


111

BT – tomava a frente de passar, de ensinar, de orientar... eu tinha ela como uma mestra
também, no fundo com mestre Severino ela era como uma aprendiz direta dele, e ela já
tava tomando esse lugar de maestria também, para mim.

KM – eu sei. Tipo Bel tinha mesmo meio esse papel, ela era a pessoa que se um dia o
mestre morresse, agente achava que ela é que iria ficar no lugar dele, mas ela saiu.

BT – iai foi nessa época né? 2011, aí comecei a participar dos ensaios, e participei de
algumas apresentações...

KM – de 2011 á 2012? Um ano?

BT – é... em 2013 eu ainda participei, mas já estava menos presente, mas presente
mesmo, constante, foi um ano um ano e meio, eu não me lembro, é um pouco vago para
mim as datas assim... mas foi mais ou menos um ano um ano e meio.

KM – com relação ao mestre, como você vê o papel do mestre no grupo, a figura do


mestre né? Como você falou né? Bel tinha muito essa coisa de ensinar; e o mestre
dentro disso?

BT – então... ele tinha, eu não sei se porque Bel é professora, a didática dela era
diferente, o mestre Severino ele ensinava na ação né? Na pratica mesmo, assim...
tocando tambor mesmo e já cantando, e já querendo que agente respondesse, as vezes
era coco até novo, aí ele mostrava a primeira vez a resposta e já queria que na próxima
vez agente já tivesse decorado, mas acho que essa coisa é mesmo da sabedoria desses
mestres e anciões né? Que assim... eles aprendem na prática, aprendem na labuta e é
assim que ele vai passar para agente, então mestre Severino tava o tempo todo é...
quando passava apara agente os cocos, eu que tava iniciando assim..., muitos dos cocos
eu não sabia, as meninas já sabiam as respostas tudo, era também ele mesmo praticando
a memória dele para não esquecer, então tinha essa urgência também né?

KM – de botar para fora.

BT – de botar para fora para não se esquecer. Então era essa... esse trator vamos dizer
assim, de passar, passar, passar, e para mim era muito legal também quando agente ia na
casa dele, porque tinha um ambiente assim... que em fim né? Era um viagem para ele
chegar, ele fazia muitos esforços para chegar na vila de ponta negra, ele pegava ônibus,
andava a pé um tempão. Quando agente decidiu uma época fazer os ensaios lá, eu sentia
que era mais leve sabe? Não tinha essa pressa, “porque o ônibus de Alcaçuz vai passar,
agente precisa... vamo terminar”

KM – tinha uma leveza no grupo todo e nele?

BT – no grupo e nele. Nele e por isso na gente assim... sabe? Porque agente tinha essa
coisa de começar na hora mas acabava atrasando quando era lá na vila, em fim...
transito, tudo, iai tem a hora do mestre voltar, tinha vez que ele precisava dormir na
vila... quando agente ia para lá era de outra... era mais orgânico, era de fazer o
112

cafezinho, vamo prosiar um pouquinho antes, vamo tocar tambor,vamo acender a


fogueira. Era outra coisa.

KM – você acha que os ensaios na casa do mestre, diferente do centro comunitário, é


mais brincadeira e menos ensaio, na questão formal da coisa?

BT – é porque no centro comunitário agente tinha uma urgência do tempo, aí tinha que
ter uma didática, vamos dizer, “vamos passar esse coco e esse coco, iai vamos dançar
assim, vamos cantar assim, vamos... quando agente ia para lá agente tava fazendo
também uma visita ao mestre, então agente tinha sim a coisa, “a... vamos levar um
almoço, vamos levar uma coisa, fazer um cafezinho. Tinha uma outra leveza, iai eu
acho que ele também ficava meio... sei lá...

KM – aí era os cocos que viesse na cabeça...

BT – é... iai vinha que vinha, vinha tudo, vinha os cocos, não precisava ser os cocos da
apresentação, vinha fluía, e para mim era um aprendizado bem forte de estar lá com ele.

KM – de ouvir as historias

BT – sim, porque também faz parte, cada coco trazia uma história, era bem orgânico
assim... gostava bastante.

KM – pode crer, porque assim... eu não me lembro da minha época, de 2013 até pouco
tempo atrás, sempre era oral, nunca é... você se lembra de algum momento do tempo
que você passou, se tinha algum recurso, “a... vamos anotar um coco”

BT – não

KM –“ a... vamos usar aqui a letra pra gente aprender mais rápido...

BT – não, era sempre oral. Ele, eu lembro de uma época que ele tinha pedido, eu não
vou me lembrar mas acho que foi a Bel, para ela começar a anotar...

KM – é ele fez um caderno

BT – ela fez um caderninho para ele, mas assim... ele passava para agente, eu nunca tive
acesso ao caderno, eu via assim... mas ele passava sempre para agente na oralidade,
cantando.

KM – e entre vocês também?

BT – e entre agente também, cantando, sempre cantando.

KM - quando tu fez parte do grupo era tu, bel, Lilian...

BT – Lilian, Ilnet, ED, Mari (mariana), Marilia também, peguei ainda a época de
marilia também, no finalzinho que eu estava vocês chegaram, é... acho que só... acho
que Ni, pequei o finzinho da época de Ni...
113

KM – que é uma das primeiras

BT – é, lembro que foi ela ou foi Mari que me passou a saia, depois eu devolvi a saia,
que elas tinham acabado de fazer o figurino, Ni tinha acabado de passar no concurso
para ir para o interior, uma coisa assim, e ela me passou a saia dela, acho era esse o
grupo, tinha uma outra menina, mas eu me esqueci o nome dela, que ela também tava
saindo, uma baixinha, é... branquinha, não vou me lembrar agora... á.. Ricelli, Ricelli
ainda tám eu lembro que agente fazia reunião na casa de Ricelli, que é lá na vila né?
Para capitar recursos, escrever edital, essas coisas, agente fez algumas reuniões lá.

KM – em 2011 já rolava essas coisas para edital?

BT – é, assim... mais no finalzinho de 2011 para 2012, aí essa energia de capitar


recursos, de buscar... até para o próprio figurino, para fazer figurino novo, agente
começou a movimentar. Eu não cheguei a usufruir de uma aprovação ou coisa do tipo,
mas ajudei, em algum edital, alguma coisa assim, que agente se reuniu em Ricelli para
capitar recurso.

KM – eu sei, vixe pode crer, as meninas fizeram um gora para gravar disco, justamente
isso, reuniões, projeto. Como é que é o coco para você assim... como ele surgil na sua
vida, como você conheceu o coco, a brincadeira?

BT – então, eu conhecia, na realidade de forma é... forte como foi com o mestre assim...
eu não tinha tido contato ainda, não tinha participado de outro grupo, eu conheci o coco
acho que pelas festas, pela cena mesmo de natal, por outros grupo que acabavam
trazendo o coco... por meu gosto musical né? De pesquisa assim... pesquisa não, de
gostar mesmo de coisa que tragam o batuque, o tambor, tinha feito aula de dança lá na
gira dança com a Rose de dança afro e tal, aí conheci o jongo, mas o contato com a
brincadeira em si foi com o mestre Severino mesmo, até então não tinha... tinha
participado de um pastoril na época que eu morava em macau...

KM – participasse de um pastoril?

BT – participei, era do cordão vermelho e minha irmã era a diana. Mas até então não
tinha participada assim, e foi muito simbólico a primeira vez que eu tive contato com o
coco de roda de Seu Severino, poque foi como eu falei, foi lá no terreiro dele, numa
noite de lua cheia, e eu senti muita força, muita ancestralidade, a coisa do tambor ela me
conecta muito com o coração, então para mim é isso, tambor... coco né? E todas as
musicalidades que utilizam o tambor assim... ela me conecta com essa coisa ancestral e
não tem como eu ficar... não querer dançar, não tem como não querer remexer. Então eu
sentia muita força quando eu estava dançando, era uma força mais ao mesmo tempo era
uma liberdade, para mim dançar e cantar era muito bom. E o coco me trouxe isso, era
um contato que eu nunca tinha tido, com essa força, essa liberdade, essa leveza de
dançar e cantar ao mesmo tempo, musicas tão fortes, e foi com o coco do Mestre
Severino que eu entrei em contato.
114

KM – legal, eu também passava por isso, os grupos né, porque eu como percussionista
ia pesquisando para ver os ritmos e tal, mas sempre via um grupo, num palco...

BT – é diferente quando você tá dentro...

KM – aí quando eu fui num ensaio a sensação era essa, “eita to dentro do negocio
mesmo”

BT – é força!

KM – o mestre mesmo né? Como você via a figura do mestre quando você entrou?

BT – eu sempre via Seu Severino como um poço de sabedoria e de humildade né?


Porque assim... KéKézinho (Seu Severino) (risos) que edizita (ed) chamava ele de
Kékézinho aí eu comecei a chamar de Kékézinho (risos) “como é que uma pessoa tão
miudinha, tão pequenininha, sabe tanta coisa, assim... que essa é a sabedoria griô
também né? Do cotidiano, até dos desafios diários que vai trazendo essa força, e a
mesma força que, no fundo, a mesma força que eu sentia ao dançar e ao cantar, era a
força de Seu Severino, né? Que ele ta alí tocando tambor, a mão doendo né? A voz
embargando e ele lá, vamo brincar, poque isso aqui me mantem vivo, isso aqui me dá
energia me dá força. Então para mim sempre foi uma referencia de sabedoria e
humildade, se eu pudesse usar palavras para classificar ele seria isso, e de um exemplo,
que todos os desafios que ele vivia no cotidiano da família dele e tudo, “vamos
ensaiar?” “vamos ensaiar”, minha família ta ali... milhões de coisas acontecendo, tô com
milhões de dificuldades, mas vamos porque isso aqui precisa ficar vivo.

KM – quando você fala assim, que sentiu uma ancestralidade quando chegou no grupo,
você acha que é uma ancestralidade mais... ampla, assim... negra, ou uma ancestralidade
potiguar, algo que é nosso e que agente meio que tem uma distancia?

BT – a primeiro... no primeiro contato acho que era uma coisa mais ampla, no primeiro
contato eu me senti conectada com essa sensação mais ampla, né? Mais negra. Depois
que eu fui talvez, entrando dentro do grupo mesmo, eu vi que tinha coisas mesmo na
própria música, nas próprias letras das musicas que identificavam esse coco como um
coco nosso, potiguar, as palavras, a forma de se expressar, que dizia “não, esse coco é
daqui!” mas acho que tem um fio que liga, né? A esse algo maior, essa ancestralidade
negra, e isso foi oque primeiro se manifestou para mim. E talvez, que é interessante
isso, eu sempre nessa minha coisa de gostar de dançar e de musica, e de “a... o coco de
Arco Verde e nã nã nã” né? eu sempre tinha a sensação, “mas assim... e aqui no nosso
estado, tem o quê? Sabe? “a... Pernambuco é bom de frevo, Bahia é bom de num sei o
quê...” e Natal? E Rio Grande do Norte? Então acho que essa identidade...

KM - quem somes nós?

BT – é... mestre Severino me ensinou, o coco de roda do mestre Severino me ensinou e


me mostrou que existe, que existe a identidade cultural, que tá acontecendo, que na vila
115

de ponta negra fervilha a coisa e é só você se abrir para ver e para vivenciar né? Então
certamente ele me trouxe isso.

KM – pode crer, foi essa a sensação que eu tive també, “eita tem coisa que agente
num...”

BT – é coisa boa.

KM – tu pegou o encantos da vila?

BT – não

KM – já tinha acabado?

BT – acho que teve um ultimo que eu não consegui ir, se eu não me engano, salve
engano teve um que eu não consegui ir. Coisa de data, ai não deu para ir.

KM – o grupo era bem próximo disso

BT – era... eu acho que eu fui um, mas eu acho que eu tô me lembrando que teve uma
apresentação alí em frente a igrejinha e que eu participei, era do encantos da vila
assim... era com outros grupos que foi bem linda. Acho que foi a ultima, salve engano
foi a ultima

KM – foi importante para os grupos da vila né? Deu uma visibilidade

BT – sim, e fortalecimento deles, valorização, auto valorizaçõa

KM – foi massa....
116

ANEXO 4 – Entrevista com Bel no dia 12/12/2016

BL – assim... a criação do coco é... Seu Severino... agente participava de uma oficina
com cacau arco verde que era de percussão e ciranda, coco e ciranda, e Seu Severino
começou a se aproximar... e ele conheceu Seu Severino ali pela vila e ai se juntou com
ele e outros mestres, e fizeram um trabalho resgatando Seu Severino cantando, certo? Aí
Seu Severino conheceu agente no grupo que se chamava coco maracajá, que era eu,
Lilian, Ilnet, Ciro, Rodrigo, Patricia e Cacau...

KM – rodrigo sena?

BL – não, rodrigo brugman que é do tropa trupe.

KM – sim

BL – então ele conheceu agente nesse contexto do coco maracajá, e ele participava de
algumas sambadas que Cacau fazia lá na casa, lá onde era o espaço cultural dele...

KM – o mestre participava?

BL – o mestre participava junto com o bambelô de mestre Pedro, o boi de reis de mestre
Pedro, ele não tinha nenhum grupo formado na época, ele participava assim... quando as
pessoas davam oportunidade ele cantava o que ele sabia. Só que as pessoas as vezes
negligenciavam o conhecimento dele, né? Em fim...

KM – Você sentia isso?

BL – não, ele que dizia para agente depois. Aí cansado dessa situação de não ter
oportunidade, porque ele tem muito conhecimento, agente que conhece ele sabe, ele
resolveu criar o grupo, aí ele com esse conhecimento da gente, que agente sempre tava
ali na vila, era amiga de Cacau e tudo, participava das atividades ali do encantos da vila
e tal, aí ele foi e disse assim:

- vamo formar um grupo Bel?

Eu disse:

- vamo Seu Severino

Aí pronto começou assim, aí ele foi chamando eu, Ilnet, Llilian, Mariana, Ed, foram
essas as primeiras. O primeiro ensaio foi na casa de Ilnet, no dia 20 de Novembro de
2010 se eu não me engano. Aí nesse primeiro ensaio foi eu Ilnet, Mariana, Luzia, e nega
que era irmã de Seu Pedro piloto, que era mestre do boi de reis lá da vila de ponta negra,
nós cinco. Aí depois, na sequencia Lilian entrou, aí varias pessoas foram entrando,
foram saindo, e hoje né? Des daquela época o grupo se mantem sempre com a força do
mestre.

KM – nessa época do começo do grupo alí...


117

BL – nos primeiros assim... ele tava num processo de rememorização desses cocos,
então ele trazia um pedacinho dos cocos, ensinava pra gente como era o refrão, agente
respondia, e ele tocava e agente ia respondia e agente ia nesse processo de ir
rememorando isso que ele trazia pra gente, foi nesse processo de ir exercitando essas
cantigas que algumas ele lembravam um trechinho, aí ele pedia para a sobrinha dele
trazer escrito aí ele trazia pra gente e ensinava pra gente, como ele aprendeu, como era
cantado, e agente tentava reproduzir né?

KM – sim, então tinha esses dois meios de ensinar, que era oralmente, de ficar cantando
e repetindo...

BL – isso

KM – e tinha esse outro meio que era o caderninho?

BL – isso exatamente

KM – a parte escrita sempre fez parte?

BL – a parte escrita sempre fez parte, porque ele ia lembrando, aí a proximidade que ele
tinha mais era com essa sobrinha dele que sabia escrever, ele ia falando e ela ia
escrevendo, aí ele trazia para gente, aí agente...(ele) cantava como era, aí agente
digitava e passava para as outras... o grupo tem esse acervo de algumas que... apesar de
que eu não gosto, eu prefiro que a cantiga fica na memoria do que escrita num papel,
né? Mas existiu esses dois processos de transmissão, o oral e o escrito nesse sentido
dessas memorias que ele trazia.

KM – interessante, eu achava que o escrito era uma coisa mais recente

BL – não,

KM – por que eu não e lembro que nos ensaios, quando eu entrei no grupo, desde que
eu entrei no grupo eu nunca tinha visto isso, mas aí tinha a coisa que meio que o grupo
já sabia as musicas.

BL – já sabia as musicas e assim, acho que existia mesmo assim uma coisa da segurança
dele nas pessoas, entendeu? Então, comigo ele sempre teve uma relação muito próxima,
ele ia muito lá quando eu morava com Ilnet, então ele tinha uma proximidade maior
comigo, eu não sei se era por afinidade mesmo ou se era porque ele sentia o interesse da
pessoa. Aí ele sempre trazia, “oia Bel ta aqui essas cantigas, vê se você digita e passa
para as outras meninas.

KM – essa iniciativa partia dele?

BL – partia dele

KM – de ter o registro escrito

BL – isso...
118

KM – interessante, tem uma coisa que eu fico pensando, na época que o grupo surgiu,
mestre Severino era mestre Severino ou ele era Seu Severino?

BL – era Seu Severino

KM – o titulo de mestre é o grupo que...

BL – o grupo que resolveu batizar ele como... coco de roda do Mestre Severino, por
considerar pelo conhecimento que ele tinha, de carga, de história, de vida no coco, não
tinha como não ter esse titulo.

KM – pode crer...

BL – mestre Severino foi assim também, das outras relações dele com as outras pessoas,
com Cacau, com Guara, que são dois Musicos, um é percussionista e hoje é musicista
toca rabeca e outros instrumentos, então dessa valorização da cultura popular e da figura
dos que são portadores da cultura.

KM – bel com relação a questão de se aprender a tocar o tambor, né ali dentro do grupo,
porque na cantiga eu assim... esse momento é bem claro, de que o mestre canta agente
responde e tal, mas sempre que eu vejo alguém tocando o tambor ali no grupo né? Tipo,
alguma menina vai tocar porque alguém não pode, aí eu fico “em que momento foi que
ela aprendeu a tocar o tambor” eu nunca vi o mestre parar para explicar como toca o
tambor.

BL – mas existiu, assim... não sei se era da frequência dos momentos de vc não está
presente né? Porque assim... nem todos os mementos vc estava na época que vc fez
parte do grupo, não sei se vc ainda faz, mas assim... como começou la em Ilnete aí
depois ele migrou lá para o centro comunitário lá da vila de ponta negra.

KM – sim, que foi quando eu entrei era lá

BL – e agente ensaiava alí em baixo, ou então alí no salão, então como agente tinha
necessidade de também aprender, não ficar só na parte da musica mas também aprender
o toque né? Porque é um toque mais complexo, ele junta, ele faz a fusão num toque só
do ritmo do coco com as batidas do zambê, eu creio assim que ele faz a célula principal
do toque se caracteriza assim, de juntar um mesma... não sei dizer direito o nome certo,
na melodia lá do tambor ele junta esses dois ritmos, é uma fusão. Então agente também
tinha a necessidade de agente também ser ligada a questão de percussão, eu e Ilnete,
lilian, agente já tinha um pouquinho de conhecimento e agente também queria aprender
porque não existia pessoas para tocar no tambor com ele era só ele e lilian e agente... ele
tinha mais tambores e agente queria aprender, então ele passava, ele tentava no
conhecimento dele passar, só que é diferente agente aprender como método, por uma
pessoa que tenha a formação, que saiba ensinar bem direitinho, do que com o mestre,
que vai ensinar do jeito dele, embora que ele faça devagar, mas tem as viradas aquelas
nuances que agente não consegue captar né? mas existia essa curiosidade da gente das
meninas também ta aprendendo, porque nem sempre em todas as apresentações todas
119

poderiam estar todas presentes, então sempre tinha alguém que ia lá e fazia a base e ele
fazia as viradas em cima entendeu? Existia sempre essa preocupação.

KM – por que desde que eu entrei no grupo... em fim, eu toco aí olhei para ele fazendo e
repeti, aí nunca teve um momento assim... “não, é assim, é assado,” aí eu não me
lembro de ver esse momento , aí eu queria saber se acontecia...

BL – é... quando agente foi lá para casa de Ilana, tinha os tambores dele, tinha os
tambores de Ilana e todo mundo pegava um tambor e também ia exercitando essa parte
ai da percussão, do toque do tambor. Mas tudo sempre como uma coisa muito alto
didata dele de passar isso

KM – ai tipo tocava e...

BL – ia de ouvido mesmo e ia tentando reproduzir ou então ele parava e ensinava bem


direitinho as batidas né? Quem tinha mais facilidade conseguia pegar com mais rapidez,
quem tinha mais dificuldade as vezes engolia uma batida.

KM – mas ai tipo... no seu caso você usava de qual estratégia para conseguir aprender
daquela metodologia do mestre alí né? Conseguir absorver a informação.

BL – já tinha um conhecimento da base do ritmo, pelas vivencias que agente tem, e de


ficar olhando mesmo e de ir tentando reproduzir mesmo, de ficar observando que tinha
um acento que era com a mão esquerda com a mão direita, e tentar ir exercitando
mesmo em casa né? No pandeiro sem ser tocando como pandeiro, mas como tambor, de
ir exercitando nesse sentido, mas é claro que tem a dificuldade de quando você assim...
não domina né? Você não sabe como é o caminho mais fácil para você conseguir chegar
naquele toque. Porque estudando com uma pessoa que tem um método de ensinar
aquilo, talvez seja mais fácil, mas também tem a questão da coisa mesmo do rustico alí
do momento, de você querer aprender sem estar preocupado com essa parte mesmo de
teoria musical e tal, pelo instinto mesmo. Da historia envolve né?

KM - é interessante você falar nisso porque é aquela característica que eu falei para
você, que eu acho a coisa mais peculiar no grupo do mestre é essa formação dele, que é
justamente isso, tem o mestre e ele tem um jeito próprio, pela história dele, pela
formação dele, em fim... mas todo mundo que está ao redor dele tem outra relação com
isso, todo mundo estudado, todo mundo formado mestre, professor universitário, voc~e
é professora, em fim... ta noutro contexto...

Bl – mas ai acho que vai da humildade das pessoas de reconhecer ele como essa pessoa
que tem toda essa bagagem que é diferente de uma pessoa que vem da cultura popular,
que aprendeu com o pai, ele ensina o que ele aprendeu, ele via o pai tocar quando ele
era criança, então isso é guardado na memoria dele, é a questão da oralidade mesmo né?

KM – o que é impressionante essa coisa da memoria dele, por que pelo que ele relata
assim... é uma lacuna muito grande do ultimo contato com o pai até ele voltar a fazer os
cocos tem sei lá... quarenta e poucos anos no meio.
120

BL – um intervalo que ele ficou fazendo outras coisas

KM – outras coisas que não aquilo e aquilo ficou na cabeça dele, o pai dele é importante
demais para ele

BL – é, com certeza, iai acho que agente tem uma certa importância nesse sentido de
incentivar, quando da questão dele tá rememorando isso né? Que foi um momento bem
importante, esse momento que ele formou esse grupo, acho que foi o que deu sentido
mais à vida dele, de encontrar uma coisa que motivasse ele a querer continuar ne?
Porque ele tem uma historia de vida bem sofrida .

KM – e reflete em tudo né?

BL – o velhinho é forte viu! Porque passa por cada uma que...

KM – esse contexto que se cria, tendo um mestre alí todo “roots” e nós alí ao redor dele,
com todas as coisas que agente sabe sobre aprendizagem, por que todo mundo meio que
mexe com isso, agente acaba meio que... o mestre é o poço de conhecimento
literalmente e agente meio que vai lá e fica pegando um balde de conhecimento de vez
em quando, assim... quando agente está perto dele...

KM – ele é uma fonte de onde se beber, mas que você não fique só de beber essa fonte,
que você possa espalhar essa fonte, o objetivo principal, pelo menos para mim quanto
professora, é isso de repassar o coco, agora eu to parada mas na sequencia tem muita
coisa vindo por ai. Aí é isso, agente chegou a criar um grupo lá na escola com as
crianças em 2014, qu eu saí do grupo por essa época, um pouco depois que eu saí.
Agente fez um projeto que se chamava roda de coco, e agente trabalhava com os alunos,
Lilian trabalhava com a parte musical, mais de tocar, e eu trabalhava com o canto e a
dança. Foi um projeto bem interessante, agente chegou a apresentar num mini curso que
agente deu para os professores, e depois nesse mini curso agente fez uma vivencia com
o Cd dele, com os professores, eles ficaram empolgados e agente também apresentou
esse trabalho em congresso internacional... no griôs, não lembro exatamente, faz
bastante tempo, mas assim... um exemplo de que você tem uma função aqui, você ta
puxando de um lugar se embebendo de toda aquela riqueza, mas que ela não fique ali
nem vá embora com você, que ela possa se perpetuar através das novas gerações, que
era esse o objetivo das pessoas que estavam lá, que são professoras, eu creio que vai
muito nesse sentido também, não só de estar ali fortalecendo o grupo com ele, mas
também de ter esse outro viés, e também de levar para esses outros ambientes né? Como
as escolas, a faculdade, outros espaços.

KM – bel o coco para você assim... a brincadeira mesmo, genérica?

BL – para mim é uma coisa assim bem única, eu até me emociono... porque eu acho que
assim... a vivencia do coco não é para qualquer pessoa, e as pessoas as vezes fazem uma
banalidade disso entendeu? Então eu vejo muito... eu observo muito essa coisa de seu
Severino, que ele tem esse cuidado né? Que as vezes muitas pessoas não tem esse
cuidado, acha que é... qualquer pessoa vai fazer, eu vejo noutro sentido, uma coisa mais
121

profunda.... mas é isso, é uma coisa que eu não sei explicar bem, mas eu sei que eu
sempre tive essa necessidade de buscar na cultura popular, desde de quando eu comecei
a trabalhar numa escola particular que ele incentivava muito, na época tinha o festival
de folclore que eles traziam os grupos de coco de Canguaretama, o mestre do bambelô,
mestre guedes, esses grupos eu cheguei há conhecer.

KM – o asa banca?

BL – o asa branca se apresentou nessa escola que eu trabalhei, então assim... eu


pesquisava muito, de ter fitas de vídeo sobre esses grupos , esses grupos que
antigamente tinham uns espaços que era na semana de cultura popular, na semana do
folclore, que era pela fundação josé algusto, que eles faziam umas apresentações lá no
teatro, no.... Alberto Maranhão. Então toda essa riqueza sempre me despertou de
cuidar, e com o coco assim... primeiro começou com a capoeira, depois foi na escola
com os alunos, pesquisando para aprender a transmitir na minha intuição mesmo,
porque não tinha vivencia de grupo né? E quando veio o coco maracajá que agente
mergulhou mais profundamente, agente fez uma parceria com esses grupos, agente foi
nesses locais, agente foi em tibal do sul, agente foi em canquaretama, e teve um contato
direto com esses mestres, mestre bacalhau lá de Canguaretama, que é uma mestre
também bem antigo, como Seu Severino, e que já tem uma outra variação, é uma
riqueza muito grande entendeu? E isso me desperta profundaente, num sei... não sei
explicar bem, mas eu tenho essa relação forte assim... tudo que eu faço eu procuro fazer
com verdade, que é uma verdade que vem de dentro entendeu? Mas sempre respeitando
o que eu aprendi com esses mestres assim... da questão de você ne? Da raiz mesmo ne?
Do coco. Que tem muitas pessoas, muitos grupos que se formam, mas que eles não tem
muito esse cuidado pela brincadeira e agente sabe que essas brincadeiras elas envolvem
as energias das pessoas né? Iai você também tem que ter... sem bem antenado com as
coisas.

KM – é uma brincadeira séria

BL – é uma brincadeira séria, e pode se tornar muito séria, ainda mais do que ela já...
então por isso dessa questão do respeito... você mexe com energias que você as vezes
não tem nem noção do que é. Iai tudo que envolve musica, que tem essa raiz mais da
africanidade e tal, ela gera nas pessoas a energia própria de cada um, e das coisas que
estão encantadas que agente não sabe, em fim... para mim é muito isso, eu tenho esse
amor.

KM – Bel existia... tipo... na época que você fazia parte do grupo, a organização do
grupo? Tipo, era o mestre a grande figura que comandava tudo ou existia o Mestre e o
grupo...

BL – existia o mestre, e o grupo, independente dele estar presente, sempre se reunia. As


pessoas que eram mais próximas, eu Ilnete, Lilian, agente procurava é...ver como agente
podia ajudar para que esse grupo não ficasse ali só naquele núcleo, que ele pudesse
122

crescer, então agente sempre fazia reuniões nessa tentativa de pesquisar mesmo, de
escrever projeto desses de incentivo à cultura.

KM – desde que o grupo começou que tem esse pensamento?

BL – tem esse pensamento, agente aprovou logo no inicio, acho que fundou e no ano
seguinte agente aprovou pela fundação josé augusto, que foi o figurino e o som. Depois
agente escreveu outro que foi pelo ministério da cultura, que foi o arété, que era um
encontro de cocos, mas foi aprovado, mas a verba não chegou finalmente aos grupos.
Então agente sempre teve essa preocupação de que o grupo ele saísse da fronteira da
vila de ponta negra e que ele pudesse chegar á outros espaços, é tanto que ele vem
chegando né? Acredito eu, com essas aprovações, porque é difícil você manter um
grupo com a vontade própria assim né? Das pessoas, porque tudo isso envolve uma
questão financeira, de deslocamento, de transporte, iai você tem que buscar outras
formas de alternativas que viabilizem a existências desses grupos.

KM – tinha o pensamento de brincar o coco, mas sempre com a logística de organização


assim...

BL – é... mas nem sempre, as vezes as coisas caminhavam como agente pensava, que
sempre acontece de você pensar uma coisa e pelo fluir das coisas mesmo não acontecer
né? Mas agente sempre teve essa preocupação de tentar estruturar o grupo de alguma
forma, porque se agente dependesse só do mestre, claro que sem ele o grupo não seria
nada, mas acho que teve que ter essa alavancada das pessoas que tavam ali para que o
mestre pudesse né? Acender os lugares que ele né?

KM – Bel tem uma coisa que me chama muita atenção assim... principalmente em
acontecimentos recentes, mas qual era a sua relação com o canto dentro da brincadeira
do coco?

BL – muito da intuição, da verdade que eu sinto dentro, eu nunca tive formação de


canto, mas eu canto, porque eu gosto, porque eu sinto aquela... a coisa da musica que
me puxa para... assim... sempre tive muito fascínio pelos cantos de pergunta e resposta,
começando pela capoeira. Então independente de qual brincadeira que seja, sempre essa
coisa de responder, de estar ali respondendo.... uma coisa que me move eu acho assim...
nunca teve essa coisa de você fazer uma aula de canto. Quando foi para agete gravar o
primeiro CD, como agente, assim... eu canto e canto mesmo, não to preocupada se
minha voz tá... mas quando você vai para um estúdio gravar é diferente, porque você
capta as vozes das pessoas e as vezes não existe uma sintonia, uma sincronia das vozes
para que isso gere um produto como um CD. Agente teve algumas oficinas com guara,
que ele é de musica também, e ele tem todo esse entendimento, então existiu também
essa necessidade de o grupo tentar, porque algumas pessoas são inseguras na hora de
cantar, mas eu não sei dizer dessa insegurança, porque é uma coisa muito minha e eu
não sei...
123

KM – mas tipo assim... a decisão de “vamos fazer aula de técnica vocal para gravar o
CD partiu de quem?

BL – partiu da necessidade do próprio grupo que viu que tava

KM – o grupo mesmo que sugeriu isso ou alguém sugeriu para o grupo?

BL – o grupo sentiu a necessidade e convidou guara, Então ele ia lá para a vila, ele fazia
as orientação, tudo isso no sentido de você ter uma produto que tivesse uma qualidade
vocal que fosse condizente com a energia da rua, porque cantando na rua você canta e a
energia vai, mas num CD é diferente, tem a capitação das vozes, tem a captação do
instrumento, você sabe né? Toda essa técnica que existe que existe lá dentro que perde
um pouco da essência da brincadeira.

KM – você acha que as vozes tinham que se adaptar a essa realidade do estudio?

BL – tinha por que se não iria ficar bem sofrido, num tem o que fazer, é a real se agente
for escutar. É tanto que nesse outro, nesse CD que veio agora ás meninas tiveram que
pedir um reforço de outras pessoas que são da parte de musica para dar uma encorpada.
Mas acho que é muito dessa insegurança delas né? Ai eu num sei cantar, ai eu num
gosto, então existe toda uma problemática ai que gera nisso aí, mas por necessidade do
grupo né? Por Seu Severino não que Seu Severino ele diz “não minha fia, vamo cantar
aqui, eu canto você responde” ai agente ia e fazia, mas sem essa preocupação de ter
uma coisa plástica artística né? E que no CD você quer mostrar um produto que né? E
realmente as vozes não alcançavam aquilo. Agente tem que ter modéstia e humildade
para reconhecer né? Iai também tem a energia da voz quando a pessoa tem aquela
coisa lá de dentro, é diferente, eu acho né?

KM – quando mestre Severino ouviu o disco novo ele disse “krebi, eu só acho estranho
é que não é as voz das menias “ ele dizendo para mim.

BL – ele prefere só as vozes das meninas.

KM – para ele é isso mesmo. Gente vamos brincar

BL – e é a relação que ele tem com as meninas né? Vamos dizer “o núcleo duro” por
que vejo assim, tem pessoas que se aproximam com alguma intenção, que não fica bem
clara né? E as vezes elas... geram um desequilíbrio dentro do grupo né? Normal isso. E
a minha saída do grupo foi muito por essa coisa de estar sempre ali com Seu Severino,
na frente e tal, e as vezes as pessoas não tinham essa mesma responsabilidade que vc
(ela), de dar conta de instrumento, de quem é que vai buscar, de quem... toda essa
logística que tinha que ser todo mundo junto, mas ficava sempre pesando né? Em
alguém. E é tanto que quando eu saí a primeira vez... que eu saí uma vez, afastada por
questões pessoais, e eu ia toda terça feira lá para Alcaçuz, aí algumas pessoas do grupo:
“mais como, ela saio do grupo e está indo para Alcaçuz? Num vem para o ensaio mais
vai...” Quer dizer que eu não podia ter acesso á Seu Severino, nem de tentar um outro
viés? Que era que eu fiquei de pesquisar sobre a história dele mais profundamente, da
124

origem, como o pai dele chegou, com arelação com Pernambuco, e ai pronto, em fim...
não tô aqui para falar disso, as desavenças pessoais que pode ter tido, mas que não foi
isso... exatamente uma desavença pessoal, foi uma insatisfação mesmo de sentir que eu
já tinha dado ali a minha contribuição e que eu necessitava de caminhar para outras
direções, que não quer dizer que o coco saiu da minha vida né? Apenas eu estou
afastada por outras situações, não me vejo mais fazendo parte do grupo Coco de Roda
do Mestre Severino, apesar de ser embebida de todo esse conhecimento dele né? Por
que acho que tem essa questão do grupo, mas tem outras vertentes no grupo... no coco,
que me atrai mais, como o coco lá de Pernambuco, o samba de coco, essa coisa mais da
ancestralidade dos mestres me atrai muito, entendeu? E assim... de estar cantando os
cocos de Seu Severino, os coco lá de Canguaretama, cantando os coco de... eu acho que
não se restringe a um estilo só sabe? Tem que...

KM – é coco né?

BL – é coco é!

KM – assim... você diz que não tem nada haver você ta falando disso, mas de certa
forma era importante, porque você pra mim, e acho que para todo mundo no grupo, pelo
menos eu acho isso, você era como a segunda pessoa ... tipo... tinha o mestre, se por
ventura viesse a acontecer alguma coisa... pelo menos para mim você era a pessoa que
tinha aquele conhecimento mais verdadeiramente, sabe... assim mais do que qualquer
um de nós ali.

BL – talvez eu sentisse isso né? Essa coisa que parte muito da sua relação com o outro,
quando você constrói uma verdade ali naquele né? E existia muito essa relação comigo
e Seu Severino né? E aí talvez as pessoas viam...(querendo indicar desconfiança), e ele
confiava, e era visível que ele confiava muito em mim, que ele se garantia. Se ele
tivesse uma apresentação e fosse só eu e ele agente ia e agente dava conta. Porque
existia essa ligação mais forte né? De nós dois, e que os outros viam também para
fortalecer né? E aí acontece né?

KM – é... é “osso” (difícil) essa coisa da organização do grupo alí...

BL – é difícil porque as pessoas tem mil e uma outra coisas. Eu sempre tive uma
filosofia assim... eu só sirvo a um senhor, eu não sei servir a dois senhores. Porque
quando eu me envolvo com uma coisa eu gosto de estar envolvida com aquilo,
entendeu? Eu não fico com aquilo, isso, isso e isso, iai você não dá conta de nada, de
tudo que você tem que dá, é uma coisa assim... meio estanque eu acho. Então por isso
que eu acho também que existia essa coisa por que existia uma dedicação pra aquilo...

KM – você se doava completamente né?

BL – sim, só que aí chega um momento que você não! Minha vida não da para mais
continuar assim, porque eu tenho os meus desejos, minhas coisas pessoais que não é só
isso também, como eu sentia essa necessidade, então pronto. Já que eu estou tendo
outras perspectivas da vida, de outras coisas que eu quero vivenciar, então o coco do
125

Seu Severino para mim parou aqui nesse momento, assim... a minha saída, mas eu
continuo embebida por tudo que eu vivenciei, que eu... um dia desses ele veio aqui,
quando eles vinham de uma apresentação, acho que de Santa Cruz, aí eles passaram
aqui , e fazia tempo que eu não via ele, acho que tinha visto ele há um ano atrás, por
essas coisas né, que eu fiquei muito tempo afastada né? Aí Ilnete disse que ele ficou
muito feliz porque me viu.

KM – demais, ele sente muito a sua falta.

BL – aí disse que ele tomou uma lapada de cana (risos)

KM – ele sente muito a sua falta, porque é como você disse, você era a pessoa que se
doava para aquilo, você era amiga dele, ninguém ali... atualmente é....

BL – essa preocupação assim... de ficar ligando pra ele para saber se ele estava bem,
quase todo dia eu ligava para ele, então existia uma ligação muito forte nesse sentido.

KM – em 2015 o grupo quase... morreu né?

BL – num sei porque foi o tempo que eu fiquei afastada

KM – é mais isso aconteceu, meio assim... você saiu né? Ai aquela pessoa... que tem
todo aquele papo do coletivo, que no final das contas não existe o coletivo, né? Tem
uma pessoa que sempre faz tudo sozinho

BL – é.

KM – em fim...

BL – eu acho que em todo grupo é difícil de distribuir tarefas quando as pessoas não
tem responsabilidade, por isso que acaba você centralizando que é para coisa funcionar.

KM – em fim... o grupo quase parou em 2015, ao ponto do mestre falar “vou montar
outro grupo”

BL – sim porque ele não pode parar

KM – por que ele não pode parar, porque aquilo que mantem ele vivo né? No final das
contas. Se você pensar na realidade dele o coco é a única coisa que de boa assim...

BL – iai nesse meio tempo aconteceu uma situação, que por essa necessidade dele de
está querendo dar continuidade e o grupo não está dando essa resposta, que entrou uma
pessoa... você já sabe da história, não precisa agente falar ne? Que tentou se apropriar...
então agente tem que está muito alerta...

KM – gente eu fui lá na fundação jose augusto com ele pra falar com bico, eu disse
“bico mostre o documento para ele que está aí” aí tinha lá, ela queria o direito durante
cinco anos e se o mestre morresse o direito era dela...

BL – num existe isso...


126

KM – não existe isso. Aí tipo “rasgue esse negocio agora” aí bico “eu vou rasgar” eu
digo “homi pelo amor de deus rasgue esse negocio aí”, aí ele foi e rasgou...

BL – existe esse tipo de pessoa né?

KM – mas a minha leitura é essa, de que o grupo ficou fazendo corpo mole, enquanto
era buninho (comodo) estar alí na vila de ponta negra, tudo acessível... mas quando... “é
em alcaçuz, vai ficar ruim para o mestre vir para ponta negra, vai ter que ser lá” todo
mundo fez corpo mole para ir...

BL – é... em fim...

KM – em 2015 eu ainda fui lá algumas vezes, assim... falar com el....

BL – a questão também é que as pessoas talvez se preocuparam porque ele já está com
uma certa idade né? Mas só que as pessoas não se organizaram para descolar pela
universidade um, veio acontecer isso um tempo recente talvez, um transporte que
levasse o grupo até ele...

KM – por enquanto ta todo mundo indo de carro próprio mesmo. Mas cara eu penso
muito...

BL – acho que é uma... é a raça mesmo de Seu Severino, é a força dele que chama as
pessoas para que a coisa aconteça, em fim...

KM – engraçado essa coisa do mestre... você acha que temos necessidade de ter um
mestre? nós que eu falo assim... os potiguares, agente aqui de Natal ... eu sinto meio que
uma busca das pessoas pelo mestre né? Porque agente... foi meio apagado da nossa
história isso né?

BL – acho que é a necessidade mesmo de você, pelo menos eu sempre tive, porque
antes de entrar no grupo eu dizia “Seu Pedro, quando é que o senhor vai abrir uma
vaguinha para mulher no boi de reis?” porque eu tinha essa vontade dessa vivencia, de
como o grupo funciona o grupo mesmo alí na raiz, de você está entrando envolvida
mesmo do que só sendo um espectador. Então eu acho que quando parte dessa
necessidade de você ter o mestre, a figura do mestre, é mais nesse sentido de você está
fortalecido pela raiz que aquela figura representa, do conhecimento que ele tem. Para
mim assim né? Então nesse sentido da cultura popular mesmo a figura do mestre eu
acho que é fundamental sem esses conhecimentos ancestrais como é que agente iria ter
esses conhecimentos. Como é que se forma uma cultura popular? É popular mesmo?
Entendeu? É porque é muito abrangente essa história de cultura popular o que não é
popular... acho que nasce da necessidade mesmo das pessoas se reunirem e quererem ter
vontade de “a vamos formar isso aqui” e independente se isso aqui vai ser cultura
popular, folclore, mas é um momento histórico de agente está criando isso aqui,
entendeu? Acho que tem coisas que por exemplo, você não cria um grupo de coco,
assim com essa característica de manter a tradição, é... como é que eu vou dizer...
descaracterizando totalmente a dança, descaracterizando totalmente o ritmo, fazendo
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mais aquela coisa estilizada, que não tem nada há ver, para mim é a energia mesmo da
roda, o pisar da batida do pé, não tem essa coisa da plasticidade que as pessoas as vezes
querem, sentem a necessidade, mas... “a aquele grupo canta bem, mas na hora da
dança...” mas não sente a energia que rola alí para aquela dança acontecer .

KM – e com relação a dança bel? Não sei se é uma percepção minha, que eu num danço
né? Fico sempre tocando o tempo todo...

BL – é o pé de valsa de cada um, pelo menos na minha concepção o que tem que ser é o
pé de valsa de cada um, e aí quando agente ia para a roda agente sentia necessidade de
uma coisa mais plástica mesmo, mas sem descaracterizar o que é a dança do coco, a
batida do pé e tal, então no meio do ensaio agente criava umas figuras lá, umas roda
girado e tal, e ele também tinha a memoria de como era dançado, e ele passava para
gente também a dança, tem algumas musicas que ele dizia, “essa tal aqui se dançava
assim” como era para entrar. Quando ia começar uma apresentação ele fazia como era
um chamada para as pessoas irem entrando na roda, que era uma vivencia que ele talvez
ele via do pai dele...

KM – engrassado, e porque foi que isso não, no caso do grupo, não se perpetuou?

BL – no inicio teve, logo quando começou, acho que nas primeiras apresentações que
agente fez ali, lá no conselho comunitário em algum evento agente ensaiava as entradas
que ele dizia como era e depois se perdeu mesmo, chegava formava a roda e já
acontecia, porque a dança é importante, mas acho que o canto mesmo, que é mais
singular, no grupo dele que é uma coisa muito bonita né? Os cocos se você for analisar a
letra né? Das musicas, não é um coco... porque agente tem muito... o coco de
Canguaretama ele tem só trechinhos que se repetem, se repetem...

KM – como o zambê.

BL – no zambê aquele refrãozinho que vai se repetindo se repetindo, e o dele não, não
todos, mas a maioria eles tem uma história...

KM – uma narrativa

BL – uma narrativa mais forte, mais bem desenhada, que conta uma coisa bem bonita de
amor né?

KM – é... que é interessante porque mestre Severino ele fala assim, “meu pai brincava
coco de zambê, brincava coco de roda, brincava boi de reis” em fim, o pai dele era uma
brincante, e ele também, mestre Severino relata que era um brincante, brincou boi de
reis...

BL – foi mateu...

KM – foi mateu no boi de reis, brincou de joão redondo, ele disse que ganhava dinheiro
com isso, em fim... mas quando ele faz o coco de roda, aí ele diz que a lembrança que
ele tem do pai dele, o pai dele tocava zambê, mas todos os cocos alí são meio que coco
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de roda, só tem uns dois ou três alí que tem essa característica de uma pergunta curta
uma resposta curta, do zambê, todos os outros são meio que uma historinha e são versos
tudo quadra, quadras de pergunta e quadras de resposta. Quando você vai ver o livro de
hélio Galvão, que ele vai catar os cocos lá da região de tibal por ali, ai ele diz essa
característica, ó os cocos de zambê as letras são mais curtinhas, e o coco de roda os
cocos são maiores....

BL – por exemplo, tem uns cocos de Canguaretama também, que são bem antigos, que
foi na época que eu conheci... eu entrei nessa escola em noventa né? Há vinte e seis
anos atrás né? Então... a mestre era Maria de Belchior, que era quem era a frente do
grupo, depois ela ficou bem velhinha mesmo, numa cadeira sem andar, nas
apresentações ela ficava sentadinha na cadeirinha, cantando daquele jeito dela tem umas
letras também bem interessantes, bem antigas, bem bonitas. Um dos primeiros cocos
que eu aprendi a cantar: eu perdi perdi maria, eu perdi pra não achar, eu perdi minha
aliança, lá no balanço do mar ,ô que joia tão bonita, que josé deu à maia, um anel e
dois abraços,uma lenço de fantasia. O refrão é esse: eu perdi perdi maria, eu perdi
para não achar, (outra parte da estrofe como pergunta) cravo branco na janela, é sinal
de casamento, meina me dá seu crravo, que eu boto em meu cálice bento. Aí tem varia
partesinhas que se encaixa nesse refrão ai. Então tem uns que são bem né, do coco de
roda, mas também o coco de roda tem uns pequenininhos...

KM – esse coco você aprendeu onde?

BL – em Canguaretama, é coco de roda de Canguaretama dessa mestra, Maria de


Belchior.

KM – e você viu, chegou a ver ela fazer?

BL – alcancei apresentação deles lá nessa escola que eu trabalhei

KM – como era o formação desse grupo, assim... a instrumentação

BL – era lindo, era um grupo enorme , a maioria dessas pessoas não devem estar mais
aqui com agente, mas um dos herdeiros que foi zé de Lia, que ela deixou com ele, e
depois ele se desentendeu por questões de politica e foi embora de Canguaretama para
um outro município. mas o grupo ainda continua, mas a formação era um bombinho né?

KM – como o de mestre bacalhau?

BL – como mestre bacalhau. Pandeiro triangulo, uma formação mais ampla do que o do
Seu Severino, que é aquela tradição do pau furado que varia os tamanhos , mas que são
pau furado...

KM – tudo zambê

BL – tudo zambê né? Coco de roda e zambê

Km – naõ sabia, coco lindo esse né?


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Bl – muito lindo, tem outras tembem, é... na tapira deu um peixe, que a balança não
pesou... é que eu num me lembro mais... a carne o povo comeu, o couro urubu levou,
você pode me atirar, que bala em mim não dói, não sou filha de queiroz, se me atirar
não volta mai, ôô mulher você vai me abandonar, eu não vou lá para não ver você
chorar. Tem umas coisas bem bonitas. Eu gosto disso, eu não gosto de ficar presa. Eu
gosto muito de cantar as cantigas de Seu Severino, mas eu sinto falta dos outros cocos
que me envolve. Por que qué um coco mais lindo do que esse... faz tempo que eu não
canto, mas pera ai... daqui a pouco eu vou me lembrar e eu canto ele.

KM – é daqui apouco você se lembra. Ei mas é interessante a coisa do... você cantar um
coco de Canguaretama, isso você aprendeu em noventa? (1990) nesse período que você
falou?

BL – aprendi a cantar e assim... não tinha toda, porque eu ficava pesquisando numas
fitas de vídeo que tinha uns vídeos dele e eu ficava tentando captar o audio, iai nessa
oportunidade que agente teve no coco maracajá de gravar o CD, e agente teve contato
com Mestre Zeca de Lia, então algumas letras eu consegui pegar com ele, alguns
trechos que completavam mais as cantigas, entendeu?

KM – entendi, e é engraçado. Teve uma coisa que aconteceu nesse disco que tipo
assim... vai gravar o disco e vai botar de quem são as musicas, né? Ai... gente é de
domínio publico né? Ai “não tem que ver porque e tal...” como você vê essa coisa da
autoridade sobre o coco, assim... de quem é o coco... porque assim parece que...

BL – assim... não dá para agente dizer que tudo é domínio publico, a grande parte é
domínio publico, porque quando você vem para uma questão de memória, você pega o
pai de Seu Severino, ele já aprendeu com outras pessoas, iai entra a questão de que as
pessoas registram aquela cantiga que é de domínio publico como se fosse dela,
propriedade dela, e você não tem mais o domínio de você gravar aquela musica porque
outra pessoa já registrou, uma coisa que era aqui da cultura popular, e registrou como
uma coisa própria. Então passa muito por isso né? Mas eu acredito que a maioria das
cantigas de Seu Severino tem muitas cantigas que agente vê algumas variações da
mesma cantiga lá em Pernambuco, mais algumas variações, que tem muito essa questão
do domínio de você aprender, com a tradição oral mesmo né?

KM – e se vê a origem, o pai de mestre Severino veio de Pernambuco né? Então...

BL – isso, então é bem complicado essa parte quando você vai assim, para gravar né?
Cantar você pode cantar em qualquer lugar qualquer musica né? É... eu tava tentando...

KM – lembrar o coco.

BL – eu lembrei... xô xô chorosa, voa voa pavão, se é por mi que tu chora, ai morena


não chore não, a camisa do meu bem, não se lava com sabão, se lava com lírio verde,
agua do meu coração, xô xô chorosa, voa voa pavão, se é por mi que tu chora, ai
morena não chore não, a chuva que choveu ontem, aparei toda na mão, embrulhei num
papelzinho, e mandei pro meu grande amor, xô xô chorosa, voa voa pavão, se é por mi
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que tu chora, ai morena não chore não, quando abriu o meu bilhetinho, meu bem se
emocionou, nas asas de um passarinho, mandou um botão de flor. Esse ultimo verso aí
já fui eu que... só tem esses dois e o meio, aí esse outro eu já fiz baseado na historia e já
criei esse outro refrãozinho ai. É um coco das irmãs Lopes, de... que é um samba de
coco lá de Arco Verde. E aí nessa minha vivência também, eu criei alguns cocos, eu
tenho um coco de roda, eu tenho um coco que é no estilo do samba de coco lá de Arco
Verde...

KM – eu me lembro que você cantava um coco, tinha um coco que você tava
começando a cantar já no grupo, nera?

BL – sim, tem umas coisas que vem aqui no juízo, aí vc vai exercitando e vai deixando
guardadinho, um dia quem sabe... quando vier a oportunidade você joga a palavra pro
ar. Assim... tem aquele projeto que o povo sempre me chama para aquele... num sei se é
porque eu sou muito... tenho as minhas coisas, minhas cismas, minhas coisas... aquele
pé de coco que tem alí, no pé do... na frente do...

KM – coco no pé?

BL – coco no pé... no morro do careca. Os meninos sempre me chamam, mas para mim
alí tem uma coisa que não casa com o coco...

KM – que é a birita

BL – é a birita

KM – é e ali é pesado

BL – é e ali eu num vô, porque tudo que envolve birita, que lhe tira do seu centro...

KM – tem uma coisa que eu aprendi, não dá para bater tambor na rua e beber, não
funciona

BL – e também da o exemplo de Seu Severino, que ele nunca deixou nem agente que
dança e que canta nem beber um golinho de cerveja, entendeu? Então eu tenho isso
comigo.

KM – ele proibia de biritar?

BL – ele não deixava agente biritar, se biritava alguma coisa era na surdina.

KM – o que é que o mestre não deixava mais no grupo, assim?

BL – só isso, era a única restrição, que ele ão gostava que agente bebesse, também ele
nunca bebeu né? Assim... então ele dizia que não casava. E você vê que quando você ta
tocando, sempre aparece uma figura no meio da roda, você ta tocando assim... sempre
aparece uma figura que está nesse... nessa sintonia da bebida e você vê que as vezes é
uma coisa assim...
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KM – lona, está sempre lá, tem para onde não.

BL – é. Eu gosto muito de cantar coco, mas nesse âmbito ai eu fujo é tanto que eu
nunca... eu gosto muito de cantar coco, mas tem que ser uma coisa mais
responsabilidade.

KM – bel só mais uma coisa assim... sobre a organização no grupo para se aprender.
Porque geralmente você vê um mestre de um grupo assim, tipo mestre Pedro, mestre
Pedro de lima, né? Que ele num tem um grupo agora? Você vê que ele diz as meninas,
“rode pra cá, rode pra lá” né? Ele é bem diretivo assim... né? Eu não sinto isso no
mestre ele dificilmente ele...

BL – ele domina mesmo é o campo da musica, do canto, para ele alí de qualque jeito
ta... entendeu? Do jeito que a musica fluir ali para ele ta bonito né? Ele não tem muito
essa preocupação, Seu Pedro já tem a vivência de ser um mestre de outras danças,
como a chegança, o boi de reis, então ele tem muito essa vivência de conhecer mesmo a
dança e de você vê que ele é imbuído de uma energia quando ele canta ou quando
ele...iai vai dessa questão de ele ser mesmo assim, do modo de ser dele mesmo, de
querer... de ter um domínio maior assim... de ter o conhecimento e de ter uma liderança
maior, nesse sentido já acho que é diferente de Seu Severino que não tem muito essa
preocupação, a preocupação que surge é das próprias pessoas que estão alí...

KM – a liderança na verdade é do grupo...

BL – é do grupo, isso é bem positivo nesse sentido, que não fica restrito só a uma pesso.
Claro que eu tenho uma opinião, ela tem outra, ela tem outra, mais você consegue
mediar alí no meio daquelas opiniões, entendeu? Num dá é para as vezes é as pessoas
quererem que você tenha a mesma opinião que ela, então você compreende a opinião,
respeita, mas não é obrigado a aceitar o que aquela pessoa ta dizendo, né verdade? Se
não assim não seria um grupo, seria a idéia daquela pessoa, e um grupo não se constitui
assim, é esse dialogo entre as pessoas que sai uma coisa que é de todo mundo. Em fim...
eu acho que nesse sentido da dança mesmo era uma necessidade do grupo mesmo, das
pessoas né? De estar... é tanto que você viu la em arco verde quando agente fez aquela
apresentação lá né, que rolou uma energia muito interessante alí, do grupo com as
pessoas mesmo que... por isso que eu digo que quando vem o pé de valsa que a pessoa
entra, qualquer pessoa entra , qualquer pessoa ali dança, e quando as pessoas que
estavam na plateia que começaram a entrar na roda, que no final agente sempre faz isso
né? Chama as pessoas, parece que cresce né? Tem um encorpamento mais... é muito
interessante isso...

KM – tipo nesse sentido dessa organização do grupo, de ser meio que aliderança,
refletia também de como se aprender as coisas alí né, o grupo que se organizava no final
das contas para aprender, porque assim... pegando o exemplo das oficinas né? “vamos
levar o mestre Severino para fazer uma oficina” mas... eu não sei como acontecia antes,
mas agora tem uma organização da oficina, pré organização que as meninas fazem e
tal... o mestre nunca segue né? Mais tem uma pré organização, então, nesse sentido
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também acontecia no dia a dia do grupo na aprendisagem, uma organização para agente
aprender , “a mestre ensina o tambor”...

BL – sim... sim... mais era uma necessidade do mometo, as vezes só iam duas pessoas,
“não vamos fazer dança hoje não, vamos só tocar” né? Que não vai ter muitas pessoas
para agente fazer variação de dança e era bem puxado, porque era duas horas
praticamente de ensaio direto e é paulera.

KM – então partia dos integrantes né? O aque fazer naquele momento de aprendisagem

BL – isso aí nas oficinas , é porque Seu Severino não é um homem de poucas palavras,
ele vai lhe dizer uma coisa ele dá um arrodeio todinho no universo, para poder chegar
no centro daquilo ali, então as vezes você não tem o tempo necessário, numa oficina
dessas de uma hora, duas horas, quatro horas... de você abarcar tudo que você quer, tudo
que você quer passar, dá importância que é o coco dele por exemplo, aí você da
oportunidade de ele falar, aí ele vai falar a hora todinha, mas é muito rico agente deu
uma oficina no enearte, para os estudantes que eram de outro... né? De outras cidades de
outros estados e foi bem interessante assim... agente estruturou tudo bem direitinho,
primeiro trabalhava o tambor , aí ele ia ensinando os toques de cada instrumento: do pau
furado, da puita, da chama... aí as pessoas vivenciavam alí, aprendia, aí depois a dança,
ensinava o passo básico aí pronto começava, depois ele ensinava as cantigas agente
aprendia as respostas e pronto, juntava as pessoas que tocavam, quem queria tocar
tocava, iai agente ia cantando, respondendo, dançando, girando, interagindo á principio
com quem estava do seu lado na roda, dando umbigada fazendo giro e....por ai sempre
nesse sentido, existe aquele passo básico do coco e tal e dali você pode rodar o salão
todinho, ficar num canto só...

KM – o coco tem isso né? Pode chegar que dá certo

BL – é... eu gosto muito.

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