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DOI: https://doi.org/10.15202/1981-1896.

v22n44p160-174

A FESTA DA PENHA E O SAMBA: PATRIMÔNIOS DO RIO DE JANEIRO

Ricardo do Carmo*
Centro Universitário Augusto Motta – UNISUAM
contato@ricardodocarmo.com.br

Eduardo Barbuto Bicalho**


Centro Cultural Justiça Federal - CCJF
eduardobarbuto@yahoo.com.br

Maria Geralda de Miranda***


Centro Universitário Augusto Motta – UNISUAM
mariamiranda@globo.com

RESUMO
Este artigo aborda a importância do samba como elemento de consolidação da Festa da
Penha, que já foi a segunda maior festa popular do Rio de Janeiro, Brasil, perdendo apenas
para o carnaval. Discute, na esteira das teorizações sobre desenvolvimento local, a existência
de uma rede de solidariedade que transformariam as celebrações à padroeira Nossa
Senhora da Penha em um acontecimento, em torno do qual se organizavam médios e
pequenos negócios. A “mola propulsora” do evento era o samba, que criava vínculos e
aproximava pessoas. A Festa, motivada pela devoção e ornamentada pelo samba, era espaço
de renovação da força comunitária. Por fim, o artigo trata da importância do material
simbólico-cultural da área da Penha, que ficou um longo período sob o imperativo da
violência, mas que hoje volta a se desenvolver.

Palavras-chaves: Festa da Penha, Samba, Capital Social, Economia Criativa,


Desenvolvimento.

THE FESTIVITY OF PENHA AND SAMBA: RIO DE JANEIRO'S PATRIMONES

* Mestre em Desenvolvimento Local pelo Centro Universitário Augusto Motta (UNISUAM), especialista em
Ciência da Literatura e Folclore Brasileiro pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
** Mestre em Direito pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), especialista em Direito
Público pela Universidade Cândido Mendes (UCAM) e graduado em Direito pela Universidade Federal do Rio de
Janeiro (2007). Atua como chefe do Setor de Publicações do Centro Cultural Justiça Federal (CCJF).
*** Professora do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Local, do Centro Universitário Augusto
Motta (UNISUAM), onde também é professora titular. Pós-doutora em Estudos de Literaturas Africanas de
Língua Portuguesa pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Doutora em Letras com ênfase em estudos
pós-coloniais pela Universidade Federal Fluminense (UFF), especialista em Literaturas Vernáculas pela
Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e mestre em Literatura Comparada com ênfase nos estudos
culturais pela Universidade Federal Fluminense (UFF).

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ABSTRACT
This article discusses the importance of samba as an element of consolidation Festa da
Penha, which was the second most popular party in Rio de Janeiro, Brazil, second only to the
carnival. Discusses, in the wake of theorizing about local development, the existence of a
network of solidarity that would transform the celebrations for patron Our Lady of Penha in
an event, around which they organized medium and small businesses. The "driving force" of
the event was the samba, which created links and approaching people. The Party, motivated
by devotion and ornamented by samba, space was renewed community strength. Finally,
the paper discusses the importance of symbolic material-cultural area of the Rock, which
was a long period under the imperative of violence, but now back to develop.

Keywords: Festa da Penha, Samba, Social Capital, Creative Economy, Development.

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1 INTRODUÇÃO

Não seria exagero dizer que o Santuário de Nossa Senhora da Penha, localizado no
Bairro da Penha, na cidade do Rio de Janeiro, foi lugar festeiro e de formação de uma
vertente significativa da Música Popular Brasileira, MPB, e que ali os primeiros grandes
compositores brasileiros lançaram seus primeiros sucessos. Tendo o samba como elemento
associativo e moeda de troca e confiança, era ali, no mês de outubro, durante a festa à
padroeira, que compositores como Noel Rosa, Pixinguinha, Donga, Sinhô, Heitor dos
Prazeres e Ismael Silva, os “pais-de-samba”, apresentavam e testavam as músicas que fariam
sucesso quatro meses depois, agitando o carnaval.

Aquele tempo não tinha rádio, a gente ia lançar música na festa da Penha. A gente
ficava tranquilo quando a música era divulgada lá, que aí estava bem, que era o
grande centro. Eu fiquei conhecido a partir da Festa da Penha. (Depoimento de
Heitor dos Prazeres ao Museu da Imagem e do Som, em primeiro de setembro de
1966. In SODRÉ, 1998, p. 60).

Lugar frequentado por portugueses, que o utilizavam para os piqueniques de final de


semana, e romeiros, que pagavam suas promessas subindo a famosa escadaria da Igreja, a
Festa da Penha, a partir da inauguração da linha de trem do Rio d'ouro, no final do século
XIX, passa a receber um grande contingente de pessoas e formar o público que promoveria
os compositores. Segundo um cálculo de 1910, mais de 100 mil pessoas desfilavam pelo
arraial, no mês dedicado à Santa (TINHORÃO, 1975, p. 173-8).
Jota Efegê (2007, p. 24), estudioso da música popular brasileira, relata que “nas
barracas, em redor das mesas, onde se comia e bebia à farta, lançavam-se as primeiras
composições para o tríduo de Momo, soltava-se o repertório que ia ser cantado nos três dias
de folia”.
O repertório musical carnavalesco tinha, assim, a sua pré-estréia no ambiente de
uma festa religiosa e iniciava ali no longínquo subúrbio, a sua popularização para
chegar aos dias ‘gordos’, inteiramente conhecidos em toda a cidade. (EFEGÊ, 2007,
p. 24).

Vó Maria, conforme Souza (2003, p. 22), cantora e viúva do compositor Donga, hoje
com cem anos de idade, conta que ali “cantava-se fado, mas depois chegaram as baianas
com seus acarajés e também os sambistas, que transformariam a chamada “festa de

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outubro” no maior centro de convergência das camadas populares do Rio de Janeiro,


“passando a figurar como local de lançamento de músicas e de pretexto para letras de
composições carnavalescas, durante pelo menos um quarto de século”. O compositor
Donga, compositor e sambista famoso, foi coautor do samba “Pelo Telefone”, primeiro
samba a ser gravado. (TINHORÃO, 1975, p. 180).
A popularidade da festa leva ao incremento dos negócios na região e em seu entorno
e à publicidade incipiente. Em 1921, aproveitando-se comercialmente da festa popular, o
industrial Eduardo França, fabricante do produto tira-sardas lugolina, institui torneios
musicais com o oferecimento de uma taça ao vencedor, (MOURA, 1983, p. 74). Os
confrontos começam e tornam-se famosos. Os duelos musicais entre Sinhô e Caninha, rivais
e reis da Penha, os dois compositores mais populares da primeira geração de autores
profissionais do carnaval do Rio de Janeiro, eram pontos altos do evento.
Tais concursos alcançaram tamanha repercussão (por causa da brincadeira, mas
também pelo profissionalismo dos artistas) que a Festa da Penha passaria a ser considerada
“um centro obrigatório de lançamento de música para o carnaval”, (TINHORÃO, 1975, p.
183). Surgia assim uma geração de compositores que passariam a cumprir um certo ritual:
compunham os seus sambas e, ao mesmo tempo, se preparavam para não “fazerem feio” na
Festa da Penha.

2 OS SAMBAS DA PENHA
João Máximo, no livro “Noel: Uma Biografia”, de 1990, escrito em coautoria com o
músico Carlos Didier, afirma que Noel “fez mais músicas para a Penha que para a Vila
Isabel”. O jornalista salienta que o compositor era “acima de tudo, um suburbano” e tinha
“um carinho especial pelo cenário suburbano da Penha”. Não é a toa que no samba
chamado “Meu Barracão”, gravado por Maria Bethânia, Noel diz: "Não há quem tenha/ mais
saudades lá da Penha/ do que eu, juro que não...”
Luis Carlos Magalhães, estudioso do carnaval da cidade do Rio de Janeiro, assegura
que a Festa da Penha fora “uma festa carioca muito maior que o carnaval”. Em artigo,
publicado no jornal O Dia, em treze de novembro de 2007, ele descreve os bairros mais
cantados do Rio de Janeiro por seus poetas: “Copacabana, Ipanema, Vila Isabel, Estácio,

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Mangueira, sem falar em Madureira. A surpresa viria ao ser anunciado o bairro da Penha,
entre os mais cantados”. Conforme Magalhães, só Noel Rosa, por exemplo, compôs cerca de
dez canções, inclusive uma de suas obras primas: “Feitio de Oração”, em parceria com
Vadico sobre o bairro”.

Por isso agora lá na Penha


Vou mandar minha morena
Pra cantar com satisfação
E com harmonia
Esta triste melodia
Que é meu samba em feitio de oração

É fato também que virou moda compor sambas que se referissem à Festa ou à Santa
padroeira, os chamados Sambas da Penha, numa demonstração da importância que os
compositores davam ao tema. Quem primeiro usou o tema da Penha numa música, pela
primeira vez, foi José Luís de Morais, o Caninha, compositor que inaugurou o ciclo temático.
Em 1918, com o início da gripe espanhola, Caninha, com a sua requintada ironia, maldosa à
primeira vista, deu o tom do que seria uma das características da música especialmente
produzida para o carnaval, ao lançar:

A espanhola está aí
A espanhola está aí
A coisa não está brincadeira
Quem tiver medo de morrer
Não venha mais à Penha.

No entanto, o primeiro samba sobre a Penha a fazer sucesso no carnaval foi uma
composição chamada “Braço de Cera”, do sambista e criador musical, Nestor Brandão,
lançado na Festa da Penha, em 1926, mas que só viria a fazer um grande sucesso “nas bocas
e nos corações dos cariocas”, somente no carnaval de 1927, após ser relançado por ocasião
do lançamento da revista, “Braço de Cera”, no teatro Carlos Gomes. (TINHORÃO, 1975, p.
184).

Mulher, a Penha está aí,


Eu lá não posso ir.
Um favor vou lhe pedir:
Me leva um braço de cera
À Santa Padroeira
Foi o que lhe prometi.

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Quase simultaneamente com “Braço de Cera”, Augusto de Oliveira Pinto lançaria


“Viva a Penha”, samba em que o velho problema das relações dos sambistas com a polícia
era tratado. Sabe-se que a repressão ao samba até aquele momento constituía-se em
política “de segurança” do Estado republicano, que, não conseguindo resolver os graves
problemas sociais, após a abolição da escravatura, reprimia simples agrupamentos de
pessoas (negras ou mestiças) que se reuniam para cantar.

A polícia não quer barulho


A polícia não quer bebedeira
E viva a Penha!
E viva a Penha!
E viva a santa,
Nossa santa padroeira.

Em 1928, Ari Barroso consegue seu primeiro sucesso com um samba intitulado “Vou
à Penha”. Da lista de autores e dos títulos com a “indicação milagrosa: Sambas da Penha”,
difícil é citar um grande compositor da época que não faça parte. Ainda conforme Tinhorão
(1975, p. 192), em 1961, finalmente, quando o ciclo temático da Penha parecia
definitivamente esgotado, o compositor Cartola, que há 20 anos não conseguia ver uma de
suas composições gravadas, volta ao disco com um excelente samba intitulado “Festa da
Penha”, no qual era retomado com pureza o espírito de devoção à Santa padroeira. Tal
samba contava a história comovente de um devoto típico das camadas populares cariocas.

Uma camisa,
Um terno, usado,
Alguém me empresta:
Hoje é domingo,
Eu preciso ir à festa:
Não brincarei,
Quero fazer minha oração,
Pedir à santa padroeira proteção.
Entre os amigos encontrarei
Algum que tenha
Hoje é domingo,
Eu preciso ir à Penha...

Em meados dos anos 30, como se sabe, o rádio passa a ter papel fundamental na
divulgação da música popular, o que contribui para a “morte musical” da Festa da Penha.

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Segundo Almirante, em entrevista a Muniz Sodré (1998, p. 102), em pouco tempo, a cidade
se transformou numa floresta de antenas. “A sete de setembro de 1923, inaugurou-se a
Rádio Sociedade e um ano depois, a 1º de outubro de 1924, a Rádio Clube do Brasil. Em
pouco tempo, alastrou-se a radiomania”.

O rádio carioca evoluiu vertiginosamente. Em 1932, já era o mais poderoso veículo


de difusão de música, cultura e publicidade comercial. Os programas particulares,
que duraram muitos anos, tinham grande audiência. O famoso Programa Casé foi
fator importante para a popularidade de que Noel já desfrutava em 1932. Nesse
programa, durante quase vinte anos, tomaram parte as maiores celebridades
artísticas do Brasil e várias figuras internacionais. (SODRÉ, 1998, p. 103).

A música que popularizou a Festa da Penha, desde sua origem lusitana até chegar a
marcá-la como prelúdio do Carnaval, com o lançamento de sambas e marchinhas dos mais
famosos criadores de nossa música popular, não mais se vê no arraial, nem em sua longa
escadaria. “Hoje, sem a sua característica que lhe deu tradição, os festejos da Penha, ainda
realizados nos domingos do mês de outubro, têm apenas o cunho de simples quermesse.
Como diz Efegê (2007, p. 33), para consolar os saudosistas, que não pretendem deixar
morrer a tradição, “há apenas agora, lá no alto, imponente, inteiramente iluminada à noite
de todos os domingos de outubro, a igreja da venerada e milagrosa padroeira dos
sambistas.”

3 SAMBA, DEVOÇÃO E CAMARADAGEM: O CAPITAL SOCIAL DA PENHA

Nas teorizações sobre desenvolvimento local, o denominado capital social


desempenha um espaço relevante. O termo capital social, cujos elementos constitutivos são
intangíveis, foi denominado primeiramente pela americana Lida Hanifan, que definiu o
conceito em 1916, como o conjunto dos elementos intangíveis que mais contam na vida
quotidiana das pessoas, tais como a boa vontade, o companheirismo, a simpatia, as relações
sociais entre indivíduos e a família. Posteriormente, outros estudiosos como: Jane Jacobs,
Glenn Loury, Pierre Bourdieu e Ekkehart Schlicht, empregaram o termo e teorizaram sobre a
noção de capital social (MILANI, 2006, p. 13).

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Em ensaio de 1916, Lida Hanifam (apud PUTMAN, 2003) observa que, após estudos,
regressou à Virginia Ocidental para trabalhar em uma escola rural. Ao iniciar o seu trabalho,
gradualmente, chegou à conclusão que os problemas econômicos, sociais e políticos do
entorno só poderiam ser resolvidos reforçando as redes de solidariedade entre os cidadãos.
Observou um declínio em velhos costumes da vizinhança rural e no compromisso cívico, sob
as formas dos debates e das festas para o trabalho comunitário de construir silos ou realizar
o inserto das macieiras.
Ideias de cooperação, associação, união e solidariedade estão presentes em muitas
outras tradições. Na história dos relacionamentos promovidos a partir da música e da dança
no Brasil, já no século XX, mulheres como a “Vó da Penha” e Tia Ciata merecem destaque.
Vale recordar a residência, na Praça Onze, da mulata Hilária Batista de Almeida, a Tia Ciata.
“A habitação tinha seis cômodos, um corredor e um terreiro (quintal). Na sala de visitas,
realizavam-se bailes (polcas, lundus etc.); na parte dos fundos, samba; no terreiro,
batucada”.

O ‘encontrão’, dado geralmente com o umbigo, mas também com a perna, que no
passado caracterizou esse rito de dança e batuque, que depois ganharia o nome de
samba, demonstrava ali toda a “sua resistência ao imperativo social (escravagista),
numa afirmação do universo cultural africano, só que agora com o estilo carioca.
(SODRÉ, 1998, p.12).

Para Sodré a casa da tia Ciata era uma metáfora viva das posições de resistência
adotadas pela comunidade negra, contento os elementos ideologicamente necessários ao
contato com a sociedade global: “Os bailes na frente da casa (já que ali se executava músicas
e danças mais conhecidas, mais ‘respeitáveis’), os sambas (onde atuava a elite negra da
ginga e do sapateado) nos fundos; “também nos fundos, a batucada, terreno próprio dos
negros mais velhos, onde se fazia presente o elemento religioso. (...) Na batucada, só se
destacavam os bambas da perna veloz e do corpo sutil”, (SODRÉ, 1998, p. 15).
Foi Tia Ciata, com sua gente, que começaria a montar regularmente sua barraca nos
fins de semana festivos de outubro, na festa da Penha. Materializando em generosos
panelões sua arte da “cozinha nagô, no xinxim de galinha de Oxum feito com azeite de
dendê, cebola, coentro, tomate, leite de coco e azeite, no acarajé de feijão branco e

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camarão, no sarapatel de sangue de porco e miúdos, prato espantoso para o paladar


ocidental, ou no tradicional vatapá baiano”. (MOURA, 1983, p. 68).
Cozinha e música são, reconhecidamente, centros de formação de relacionamentos e
participação no clima atraente de festa. Conforme Lovisolo (2008), somos animais que
cantam, dançam, comem e valorizam a diversão, as atividades antitédio, na relação social.
Entretanto, a satisfação e o prazer apenas funcionam quando há confiança social nos outros,
na possibilidade da alegria do momento e da diversão.

Para Tia Ciata e sua geração de baianas (festeiras tradicionais, mas que por sua
posição defensiva na sociedade da época eram circunscritas nessa vocação ao
âmbito de suas casas e ao Carnaval popular do largo de São Domingos e depois da
Praça Onze) a Festa da Penha era o momento de encontro de sua comunidade de
origem com a cidade, informando dessa cultura alternativa preservada e a cada
momento reinventada pelo negro no Rio de Janeiro. (MOURA, 1983, p. 72).

É fácil perceber na história da igreja da Penha, para além de sua festa e de seu legado
musical, a relação de fé e confiança, que começa segundo a lenda quando o capitão Baltazar
de Abreu Cardoso, num momento de perigo, invoca a santa: “Valha-me Nossa Senhora da
Penha!”, criando a senha e, em seguida, o santuário que seria erguido no alto do rochedo de
69 metros, acima do nível do mar. Senha que foi usada também por Maria Barbosa: devota
fervorosa que, como forma de pagamento de uma promessa, teria mandado esculpir no
duro granito a escadaria de acesso à igreja. (MOURA, 1983).
Quanto ao milagre do samba, pode-se dizer que, de mera expressão musical de um
grupo social marginalizado, se transformaria num instrumento efetivo de luta para a
afirmação, não só, mas principalmente, dos negros no quadro da vida urbana brasileira e,
sobretudo, em uma marca de identidade brasileira que atravessa as diferenças econômicas,
sociais e políticas.
Na Festa da Penha, o samba era um componente importante no papel que a festa
exercia como rede de solidariedade e melhora dos condicionamentos da vida comunitária.
Ele proporcionava a troca social: a expressão de opiniões, fantasias e frustrações, “de
continuidade de uma fala (negra) que resiste à sua expropriação cultural” (SODRÉ, 1998, p.
58-59).

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Heitor dos Prazeres, ainda seguindo Sodré (1998) dizia que passou a frequentar a
Festa da Penha porque ela se constituía em um ótimo meio de divulgação de músicas e “de
entrosamento de compositores”. Isso quer dizer que o samba criava conexões, aproximava
parceiros, atraia pessoas, formava grupos, o que possibilitava a organização de negócios e
serviços variados, que envolviam vários ramos da economia. A Penha era o lugar onde os
compositores se relacionavam, se revelavam e se reconheciam.
A região da Leopoldina, local onde está localizada a Igreja da Penha, e que muito se
desenvolveu nos tempos áureos da Festa da padroeira, passou por importantes
transformações sociais, sobretudo a partir da década de setenta, com o aumento
significativo de comunidades carentes em seu entorno e com a ampliação da quantidade de
habitantes em cada uma delas. Com a ausência do poder público nessas localidades,
principalmente nas comunidades do chamado Complexo do Alemão, o crime organizado lá
implantou suas bases operacionais e se “apossou” do território comunitário, fazendo dos
moradores vítimas indefesas, reféns da violência e do medo.
A partir de novembro de 2010, um novo cenário político e social se descortina para a
região. A ação estatal de repressão ao crime organizado e a tomada do território no
Complexo do Alemão abre novas e importantes possibilidades de desenvolvimento para a
área. As obras do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), além de melhorar as
moradias, também ampliaram a rede de saneamento básico, o que incidirá sobre a melhoria
da saúde dos indivíduos. A construção do teleférico humanizou o transporte coletivo das
comunidades, antes bastante precário, feito basicamente por kombis.
Trata-se de novas perspectivas de desenvolvimento para a região, que possui um
patrimônio imaterial importantíssimo para a cultura carioca. Como legado cultural, a escola
de samba “Imperatriz Leopoldinense” e o bloco carnavalesco “Cacique de Ramos”, entre
tantas outras agremiações, localizadas na área, são exemplos de coletividades que possuem
um alto grau de organização comunitária, o que demonstra que o capital social herdado da
Festa da Penha, após o seu declínio, sobrevive em outras coletividades, ligadas à cultura
popular. Mas, a Igreja da Penha, construída em 1635, como guardiã da Bahia de Guanabara,
continua sendo, um monumento arquitetônico singular e imponente e hoje é lido como uma
espécie de imagem – um signo simbólico-icônico - da própria região.

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4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A produção cultural depende de espaço público seguro para a sua realização. A


confiança na praça, na rua, no estádio e nos lugares de espetáculos, no convívio e na
interação com conhecidos e desconhecidos é fundamental. A insegurança transforma-se em
força que expulsa as pessoas do espaço público, confirmando as análises de J. Jacobs (2011).
O desenvolvimento local e a visão empreendedora da economia criativa demanda voltar-se
para o espaço público. Deslocar recursos de tempo e dinheiro do consumismo no lar para o
custeio de atividades realizadas mediante os valores preconizados por Hirschman (1983) que
realizou uma fina e complexa argumentação sobre os ciclos alternados de participação na
esfera privada e pública, entre o que denominou o consumidor e o cidadão.
Não se pode deixar de associar os tempos de produção de lazer e cultura no entorno
da Igreja da Penha a um mundo quando o consumismo não tinha ainda se desenvolvido nas
proporções que hoje lhe atribuímos, apesar da venda de um produto contra sardas e das
intenções de produção cultural dos artistas da época.
Não se pode deixar de pensar também nos avanços tecnológicos que separam o
mundo atual daquele mundo antes do rádio, da televisão e da web. Mas é fato que após um
período importante de valorização, pela indústria cultural (ADORNO & HORKHEIMER, 1985),
somente de grandes espetáculos, na atualidade, para manutenção da própria perspectiva de
consumo, a variedade de enfoques é fundamental. É em razão desses fatores, e obviamente
de outros, que se valoriza contemporaneamente a cultura popular mantida tradicionalmente
por grupos, comunidades, aldeias etc.
Pensando desta maneira, a região da Penha, com o seu histórico de agremiações
culturais, com todo o seu “potencial inatingível” pode aproveitar as sua potencialidades
associativas para desenvolver-se. Hoje, vive-se a perspectiva de eventos capitalizadores. O
Rio de Janeiro será palco nos próximos anos de eventos como a Copa do Mundo e as
Olimpíadas, que podem impulsionar a retomada do desenvolvimento da região da Penha,
que tem inúmeras comunidades do chamado Complexo do Alemão, hoje “pacificado”, em
seu entorno.

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A Penha pode e deve resgatar a sua Festa, sendo que esta necessita do espaço
público que é a rua. Uma vez superada a “fase” de perigo e insegurança na região (em razão
da política de segurança do Estado, de repressão ao crime organizado e a retomada do
território, iniciada em novembro de 2010) abrem-se novas e importantes possibilidades de
crescimento para a região. Além de refazer antigos sonhos, como o de buscar o
desenvolvimento local a partir do legado cultural e de redes de solidariedade que
sobreviveram à pauperização e violência que impregnaram a área.
Putnam (2003) menciona o capital social e sua relação com o desempenho
institucional. Observa que oportunidades de proveito mútuo são perdidas quando os atores
não assumem compromissos entre si. Enfatiza que a atuação das instituições sociais
depende da forma como os envolvidos confiam uns nos outros e que os dilemas coletivos
podem ser mais bem superados em comunidades mais cooperativas.
Essa cooperação, assegura Putman (2003, p. 177), depende da quantidade de capital
social acumulado pela comunidade “sob a forma de regras de reciprocidade e sistemas de
participação cívica”. Em consonância com Putman, Amâncio, Romano e Amâncio (2012)
salientam que para a constituição de capital social é importante reproduzir e priorizar laços
comunitários horizontais (não hierárquicas) de solidariedade e quebrar os laços verticais que
priorizam as relações clientelistas, opressoras e oportunistas.
Como bem teorizou Amatya Sen (2000), desenvolvimento é o aumento da
capacidade das pessoas de fazerem escolhas. É esta forma de pensar que o levou à definição
positiva de liberdade, na medida em que entende que ela não é apenas a ausência de
restrições, como o direito abstrato de ir, vir, comprar, vender, amar e ser amado. A
liberdade para ele, e, portanto, o desenvolvimento, não podem ser imaginados fora das
condições concretas de seu exercício. Não basta que a lei garanta certos direitos, o essencial
é que as pessoas tenham as capacidades, as qualificações, as prerrogativas de se deslocar,
de participar e de estabelecer relações humanas que enriqueçam sua existência.
Na esteira de Amartya Sen (2000), Dowbor e Pochmann (2010), pensam no
desenvolvimento local como aquele que põe as pessoas e seus interesses coletivos no centro
de reflexão. As capacidades e as potencialidades individuais, articuladas coletivamente são
fatores primordiais para o desenvolvimento. O “local” pode ser compreendido como um

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território, uma comunidade, um município, uma região, ou, se colocado frente ao mundo
globalizado, como diria Homi Bhabha (2003), o “local” pode ser o nacional.
A promoção do desenvolvimento local requer articulação entre os setores públicos e
privados, que precisam primeiramente garantir o mapeamento das potencialidades e
interesses coletivos. A elaboração de estratégias requer também a observação do grau de
maturidade e confiança mútua, fatores de importância basilar para que interesses e desejos
individuais não se sobreponham aos interesses mais vantajosos para a coletividade. O
desenvolvimento da região da Penha, ou da Zona da Leopoldina, está contido na própria
região, infelizmente silenciada por um longo período. Mas que alguns de seus agrupamentos
culturais e familiares, apesar de tudo, resistiram e continuaram a desenvolver práticas
comunitárias já testadas pelo tempo.
Para que tal desenvolvimento da região aconteça é necessário que as lideranças
locais, com o apoio do poder público, amplie o “capital” da confiança social, revigorando a
capacidade de associação, o prazer do agir em conjunto, tanto na Festa da padroeira, quanto
na atividade produtiva, tecendo as redes de relações que forem necessárias.
A confiança, elemento chave para a consolidação do capital social leva à cooperação,
que é importante para a manutenção dos laços horizontais. Todavia, ainda seguindo
Amâncio, Romano e Amâncio (2012), esta confiança não é cega e não deve ser confundida
com altruísmo; trata-se de uma conduta em que a confiança pessoal se transforma em
confiança social. São duas fontes interconexas que requerem regras de reciprocidade e
sistemas coletivos de participação.
Hoje, conforme já dito, a economia criativa (MINC, 2012) é vista como uma
importante via de geração de renda e, por conseguinte, de desenvolvimento, o que
representa dizer que é possível obter recursos para o resgate da Festa da Penha - que ao
mesmo tempo em que invoca a tradição, pode reinventá-la em novas bases e de acordo com
este novo tempo. O desenho de um plano de desenvolvimento em que inclua os bens
intangíveis da região pode ser estrategicamente decisivo.
Apoiar as iniciativas culturais populares, ou proporcionar o seu florescimento,
representa inclusão social, participação coletiva, melhora da autoestima de artistas e líderes
comunitários, recuperação da confiança e do capital social e, principalmente, progresso para

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os moradores. Trata-se de ressignificar bens culturais relacionados à esfera do intangível.


Bens estes em abundância na região e que poderão contribuir com a melhoria da vida das
pessoas. É a liberdade cultural, mas também econômica que promoverá a “vida boa”,
conceito, cujos pressupostos estão em Aristóteles, mas retomados com força e relevância
por “comunitaristas” como Amartya Sen (2000).
As lideranças comunitárias, os produtores culturais e as instituições culturais e de
ensino deverão propor e negociar apoio com os organismos do Estado para propostas e
programas de desenvolvimento, sem esquecer as empresas que, por razões diversas,
partilham valores de sustentabilidade, responsabilidade social e inclusão. Traçar no papel os
caminhos sempre foi mais fácil que fazê-los sobre as geografias diversas e diferenciadas nas
quais deverão agir. Contudo, não se pode começar sem algum tracejado.

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