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SUSP E O ENFRENTAMENTO DA DESIGUALDADE RACIAL NO BRASIL 0

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SUSP E O ENFRENTAMENTO DA DESIGUALDADE RACIAL NO BRASIL 1

Presidência da República
Luiz Inácio Lula da Silva

Ministério da Justiça e Segurança Pública


Flávio Dino de Castro e Costa

Secretaria Nacional de Segurança Pública


Francisco Tadeu Barbosa de Alencar

Diretoria de Ensino e Pesquisa


Michele Gonçalves dos Ramos

Coordenação-Geral de Ensino
Ana Claudia Bernardes Vilarinho de Oliveira

Coordenação Pedagógica
Joyce Cristine da Silva Carvalho

Coordenação de Ensino a Distância


Renata Guilhões Barros Santos

Gerente de Curso
Raimundo Carlos Viana Mendes

Conteudistas
Ynaê Lopes dos Santos
Thales Monteiro e Vieira
Jalba Santiago dos Santos Segundo

Revisão Técnica
Givânia Maria Sila
Lucilene Costa

Revisão Pedagógica
Evânia Santos Assunção Motta

Revisão Textual
Itamara Esteves da Cunha

Programação e Edição
Renato Antunes dos Santos
Fábio Nevis dos Santos

Designer
Zulmiro José Machado Filho

Design Instrucional
Luana Manuella de Sales Mendes
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO DO CURSO ................................................................................................... 3
OBJETIVOS DO CURSO ............................................................................................................. 3
ESTRUTURA DO CURSO ........................................................................................................... 4
MÓDULO I – HISTÓRIA DO RACISMO E SUA RELAÇÃO COM O DESENVOLVIMENTO DO
ESTADO BRASILEIRO ............................................................................................................... 5
APRESENTAÇÃO DO MÓDULO ................................................................................................. 5
OBJETIVOS DO MÓDULO .......................................................................................................... 5
ESTRUTURA DO MÓDULO......................................................................................................... 6
AULA 1 – O CONCEITO DE RACISMO ESTRUTURAL ............................................................... 7
AULA 2 – O PASSADO ESCRAVISTA E O HISTÓRICO DO RACISMO NO BRASIL................ 19
AULA 3 - O NASCIMENTO DA POLÍCIA MILITAR EM MEIO A UMA SOCIEDADE ESCRAVISTA
E RACISTA. ............................................................................................................................... 31
AULA 4 - RACISMO CIENTÍFICO E SUA CAPILARIDADE NO BRASIL: O NASCIMENTO DO
MITO DA DEMOCRACIA RACIAL.............................................................................................. 40
AULA 5 - O NASCIMENTO DA REPÚBLICA EXCLUDENTE ..................................................... 50
FINALIZANDO............................................................................................................................ 59
MÓDULO II – LETRAMENTO E SENSIBILIZAÇÃO ANTIRRACISTA ...................................... 60
APRESENTAÇÃO DO MÓDULO ............................................................................................... 60
OBJETIVOS DO MÓDULO ........................................................................................................ 60
ESTRUTURA DO MÓDULO....................................................................................................... 60
AULA 1 – O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E SUAS IMPLICAÇÕES CONTEMPORÂNEAS 61
AULA 2 – ESTIGMA, ESTEREÓTIPO E VIOLÊNCIA RACIAL ................................................... 66
AULA 3 – BRANQUITUDE, BRANQUEAMENTO E AS HIERARQUIAS DE HUMANIDADE ...... 73
AULA 4 - BRANQUITUDE E VIOLÊNCIA POLICIAL: REFLEXÕES SOBRE RACISMO
ESTRUTURAL NO BRASIL........................................................................................................ 76
AULA 5 – O ANTIRRACISMO COMO PRÁTICA ........................................................................ 84
FINALIZANDO............................................................................................................................ 87
MÓDULO III – SUSP E O ENFRENTAMENTO AO RACISMO .................................................. 88
APRESENTAÇÃO DO MÓDULO ............................................................................................... 88
OBJETIVOS DO MÓDULO ........................................................................................................ 88
ESTRUTURA DO MÓDULO....................................................................................................... 89
AULA 1 – RACISMO SOB A PERSPECTIVA INSTITUCIONAL ................................................. 90
AULA 2 – CURRÍCULO OCULTO ............................................................................................ 100
AULA 3 – GESTÃO ANTIRRACISTA ....................................................................................... 103
AULA 4 – RACISMO E O OPERADOR DO SUSP ................................................................... 110
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ........................................................................................ 113
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APRESENTAÇÃO DO CURSO

Caras alunas e caros alunos,

Neste curso, iremos tratar de uma questão que é essencial para as ações dos
órgãos de Segurança Pública do Brasil: o enfrentamento da desigualdade racial no
país.

Nossa ideia é entender um pouco melhor o que é o racismo, as implicações que


ele tem na história e na sociedade brasileiras e, principalmente, como ele ainda pauta
uma série de ações na área da segurança pública, para que possamos pavimentar
uma transformação efetiva em prol de um país mais justo e igualitário.

Esperamos que todos e todas tenham um bom curso!

OBJETIVOS DO CURSO

Objetivo geral

Este curso tem, como objetivo, desenvolver, no profissional de segurança


pública, a mentalidade de trabalho alicerçada nos princípios do Estado de Direito, no
respeito aos direitos humanos, nas relações raciais, na consciência crítica e ética
quanto à diversidade de nossa sociedade e numa atuação técnico-operacional, em
estreito relacionamento com a comunidade, a fim de promover mudanças na cultura
e na estrutura organizacionais.

Objetivos específicos

• reconhecer os aspectos históricos do racismo no Brasil;


• distinguir o racismo estrutural do racismo institucional;
• diferenciar os conceitos de estigma, de estereótipo e de violência racial;
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• entender os métodos de atuação policial para enfrentar o fenômeno da


criminalidade e da violência em contextos de vulnerabilidade social, com
destaque para os grupos étnico-raciais;
• conhecer as implicações jurídicas de comportamentos racistas e do
descumprimento da doutrina e da técnica na atuação do profissional do Susp;
• discutir o racismo científico no Brasil e suas implicações na atuação do
profissional do Susp.

ESTRUTURA DO CURSO

Este curso, de 40 horas, compreende os seguintes módulos:

Módulo 1 - História das desigualdades e do racismo e sua relação com o


desenvolvimento do Estado brasileiro;

Módulo 2 - Letramento racial;

Módulo 3 - Susp e o enfrentamento ao racismo.


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MÓDULO I – HISTÓRIA DO RACISMO E SUA RELAÇÃO COM O


DESENVOLVIMENTO DO ESTADO BRASILEIRO

APRESENTAÇÃO DO MÓDULO

O enfrentamento da desigualdade racial é um ponto fundamental na construção


de uma sociedade democrática. Todavia, para que esse enfrentamento aconteça, o
ponto de partida deve estar no reconhecimento do caráter estrutural do racismo no
Brasil e suas implicações e desdobramentos na Segurança Pública e nas ações
policiais. Neste módulo, vamos aprofundar as definições sobre racismo estrutural e
realizar um sobrevoo crítico na história brasileira, a fim de entender como esse
racismo foi um dos pilares de sustentação do Estado nacional e, consequentemente,
na fundação e nas ações da polícia e demais forças de segurança do país.
Acreditamos que o (re)conhecimento e a responsabilização são passos fundamentais
no processo de transformação do qual este curso faz parte.

OBJETIVOS DO MÓDULO

Este módulo tem, por objetivos:

 apresentar o conceito de racismo estrutural;

 analisar o passado escravista e as consequências do racismo durante a


vigência da escravidão e no primeiro século do pós-abolição e a ausência de
políticas públicas para a inclusão da população negra brasileira na sociedade;

 contextualizar, historicamente, a criação e o uso instrumental do Racismo


como ferramenta de dominação, inclusive pelo Estado Nacional brasileiro e
sua força policial.
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ESTRUTURA DO MÓDULO

Este módulo compreende as seguintes aulas:

Aula 1 - O conceito de racismo estrutural;

Aula 2 - O passado escravista e o histórico do racismo no Brasil;

Aula 3 - O nascimento da polícia militar em meio a uma sociedade escravista;

Aula 4 - O racismo científico e sua capilaridade no Brasil: o nascimento do mito


da democracia racial;

Aula 5 - O nascimento da República excludente e a criminalização do negro.


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AULA 1 – O CONCEITO DE RACISMO ESTRUTURAL

Um curso que pretende reconhecer e combater a desigualdade racial no Brasil


precisa começar pela constatação do óbvio: o Brasil é um país racista.

Existe uma diferença fundamental entre dizer que o Brasil é um país de


racistas e em afirmar que o Brasil é um país racista. Enquanto, no primeiro
caso, o racismo pode aparecer como um problema de outro - que, muitas vezes,
podemos entender como algo distante de nós, no segundo caso há uma
implicação coletiva, que pressupõe que o racismo é algo experimentado pela
totalidade da população brasileira - mesmo que de formas diferentes. Essa
última perspectiva é conhecida como racismo estrutural.

Esse conceito é uma perspectiva analítica que defende que o racismo estrutura
as relações políticas, econômicas, sociais e culturais da modernidade das quais o
Brasil faz parte. Dito de outra forma, o racismo organiza a sociedade brasileira.

Nesta aula, iremos analisar, com mais cuidado, o que é o racismo estrutural,
reforçando, assim, uma afirmação que deve atravessar todo o curso: o Brasil foi, e
continua sendo, um país racista. E, para que isso mude, ações de diferentes naturezas
devem ser tomadas. A reeducação é uma delas.

Mas, afinal de contas, o que é, de fato, o racismo estrutural?

No Brasil, durante muito tempo, o racismo foi entendido como um conjunto de


práticas discriminatórias e/ou excludentes que tinham como base o preconceito racial,
ou o preconceito de cor. Sendo assim, o racismo era entendido a partir de ações
individuais contra indivíduos pertencentes a grupos raciais específicos. Tais ações
poderiam variar desde as “piadas de mau gosto”, passando para ações mais violentas,
como xingamentos com teor racista (basta lembrarmos os episódios que diferentes
jogadores negros de futebol experimentaram nos últimos anos), e chegando à
interdição efetiva de pessoas negras, quilombolas, mestiças e indígenas em espaços
de representação e de poder, assim como de acesso aos bens sociais, como saúde,
educação, moradia e trabalho digno; e às ações de violência física mais extrema, que
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ocasionam mortes biológicas, culturais, psicológicas, que podem afetar as pessoas


vítimas de racismo.

Pois bem, essa é apenas a ponta do iceberg, a parte facilmente visível do racismo.
E, como veremos ao longo deste módulo do curso, acreditar que, no Brasil, o racismo
se restringe apenas a essas ações individuais foi uma ideia muito bem construída,
com o intuito de mascarar a força e a dimensão estrutural que ele teve, e continua
tendo, em nossa sociedade.

Um dos maiores argumentos daqueles que defendiam a ideia de que o Brasil era
um país no qual o racismo não era um problema de grandes dimensões estava na
comparação entre a sociedade brasileira e a sociedade estadunidense. Como nos
Estados Unidos existiram leis segregacionistas - conhecidas como as leis Jim Crow,
algo que não ocorreu no Brasil, se difundiu uma ideia equivocada de que, no Brasil, o
racismo seria mais brando e pontual. No entanto, é fundamental sublinhar que a
ausência de leis abertamente segregacionistas não significa ausência de racismo. O
que vamos ver aqui é que o Estado Nacional brasileiro e boa parte da elite do país
criaram diferentes tipos de dispositivos (inclusive legais) para garantir a segregação
racial como um elemento ordenador da nação, sem que isso ficasse explicitado. É
neste ponto que reside a grande diferença entre a experiência estadunidense e a
brasileira. Lá, o racismo é algo reconhecido; aqui, no Brasil, ainda existe uma espécie
de grande véu que encobre as profundezas do nosso racismo. Nosso objetivo aqui é
tirar esse véu.

Antes de adentrarmos nas explicações mais conceituais do que é o racismo


estrutural, gostaria que pensássemos em duas situações recentes na sociedade
brasileira. Na primeira delas, peço que vocês observem, com atenção, as duas
fotografias abaixo. Ambas foram tiradas no ano de 2015, no Rio de Janeiro, uma
cidade na qual a população autodeclarada negra girava em torno de 50% na época.
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Figura 1 - Contraste racial e social em duas imagens

Fonte: Mídia Ninja, 2015.


Disponível em:
https://www.facebook.com/MidiaNINJA/photos/a.164308700393950/1022446454580166/

A primeira fotografia é dos formandos de medicina da UFRJ - Universidade


Federal do Rio de Janeiro. Já a segunda foto registra os garis da mesma cidade, que
participavam de um movimento grevista por melhores salários. O que essas imagens
informam sobre o racismo no Brasil?

No caso dos formandos de medicina - um dos cursos superiores mais elitistas do


país, vemos um grupo de, aproximadamente, 40 pessoas, no qual é possível contar a
presença de duas pessoas negras. Já a imagem dos garis - uma atividade essencial
para o funcionamento da cidade, porém pouco valorizada e mal remunerada -, o que
observamos é uma imensidão de homens negros. Lidas em conjunto, essas imagens
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ilustram o que é o racismo estrutural e a segregação social e racial que ele gera no
Brasil. Enquanto uma das atividades mais prestigiosas do país é ocupada quase que
exclusivamente por pessoas brancas, há uma predominância significativa de pessoas
negras numa atividade enquadrada como inferior ou menos qualificada. Além disso,
eis o que também é estarrecedor: essas imagens não causam nenhum espanto no
Brasil, porque nós fomos treinados a entender como normal que pessoas brancas
estejam em lugares de prestígio, enquanto pessoas negras se restringem à
subalternidade.

Muitos podem afirmar que não se trata de um problema racial, mas social, uma
vez que as fotos retratam pessoas de classes sociais distintas. Sim, isso é verdade,
mas, no Brasil, a questão racial ordena as classes sociais. Então, para que isso fique
evidenciado, convido todos e todas a examinarem, com calma, o gráfico abaixo:

Gráfico 1: Evolução salarial por grau de instrução (2014)

Fonte: RAIS, 2014. Disponível em: <<https://exame.com/wp-


content/uploads/2016/09/size_810_16_9_grafico_negros1.jpg?quality=70&strip=all?quality=70&strip=all&strip
=all>>

Esse gráfico demonstra que, mesmo dentro da mesma classe social, ainda existe
uma disparidade salarial entre a população negra e branca - uma realidade que
aparece em meio à população mais pobre, e que vai se tornando cada vez mais
acentuada à medida que o recorte socioeconômico se torna mais alto. Quanto mais
rica é a classe social, maior a diferença salarial entre negros e brancos (mesmo
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quando ambos têm instrução superior). Que outra razão poderia explicar essa
disparidade senão o racismo?

A segunda situação que gostaria de tratar aqui diz respeito, diretamente, ao tema
do nosso curso: a segurança pública no Brasil.

Gráfico 2: População negra e negros mortos pela polícia em 2020 (%)

Fonte: Rede de Observatórios de Segurança (2020).


Disponível em: <<https://cesecseguranca.com.br/reportagens/estudo-diz-que-86-dos-mortos-em-acoes-
policiais-no-rj-sao-negros-apesar-de-grupo-representar-517-da-
populacao/#:~:text=A%20popula%C3%A7%C3%A3o%20negra%20no%20RJ,de%20mortes%2C%20com%2
0415%20registros>>

Em 2020, a Rede de Observatórios de Segurança mapeou, por meio de pesquisa,


a violência policial em seis estados brasileiros. Em todos eles, observou-se que a
porcentagem de pessoas negras mortas em ações policiais é significativamente maior
que o percentual da população negra em cada um dos estados. Como explicar o
porquê de negros e negras serem os maiores alvos de letalidade da polícia brasileira?

Antes que a resposta se restrinja a uma explicação socioeconômica, pontuando


que a população negra é mais pobre e, consequentemente, mora em mais áreas de
risco, é importante frisar que o gráfico 2 demonstra uma discrepância significativa
entre o percentual de mortos e o percentual da população negra nos estados Se o
racismo não fosse um fator influenciador das ações policiais, o máximo que
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observaríamos seria uma equivalência entre o percentual da população negra e o


percentual de pessoas mortas nas ações policiais. E ainda há o outro lado da moeda:
as mesmas ações policiais que acarretam maior letalidade da população negra
também matam mais policiais negros do que brancos, mesmo quando a porcentagem
de efetivos negros é menor. Ou seja, independente de que lado estejamos tratando,
o resultado é o mesmo: pessoas negras morrem numa proporção muito maior em
circunstâncias mais críticas, que envolvem a garantia da segurança (e o bem-estar)
dos cidadãos brasileiros.

Essas duas situações foram trazidas para ajudar a sedimentar o conceito de


racismo estrutural, mas poderíamos ter analisado outros aspectos da sociedade
brasileira, como a superlotação dos presídios, a pouca representatividade negra nas
novelas e demais veículos do audiovisual brasileiro, ou até mesmo o menor grau de
escolaridade da população negra, quando comparada com a população branca.

Mas é preciso sublinhar que os dados trazidos aqui, a título de exemplo,


demonstram que a) brancos ocupam espaços de privilégio; b) negros são a maioria
em serviços considerados subalternos; c) dentre a mesma classe social, brancos
ganham mais do que negros; d) as ações da polícia brasileira acarretam uma
letalidade significativamente maior da população negra (tanto entre os civis, como
entre os policiais mortos). Talvez, um dos aspectos mais perversos em tudo o que foi
elencado acima é este: nós não vemos nenhum problema em nenhuma das
observações levantadas, porque todas fazem parte da nossa “normalidade”. Vale
destacar que, entre “as mortes normais ou por balas perdidas”, além de serem
majoritariamente negras, muitas delas são crianças e adolescentes, que, por vezes,
são alvejadas no interior de suas casas e escolas.

Na Prática
Uma maneira simples de explicar o que é racismo estrutural seria exatamente essa: a
normalidade com a qual encaramos e experimentamos as diferenças raciais no Brasil, como
se fosse “natural” que negros que concluíram o Ensino Superior ganhem menos do que seus
colegas brancos de profissão; ou então que seja quase banal o fato de que a população
negra segue sendo desproporcionalmente atingida por ações violentas das forças de
segurança.
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A questão é que essa aparente normalidade não existe na natureza, não faz
parte do “ar que respiramos”. Ela é fruto da construção de um sistema de poder
que tem uma história longa, de raízes profundas. Esse sistema de poder é o que
chamamos de racismo.

Sendo assim, uma das formas mais eficientes de entender a dimensão estrutural
do racismo é justamente entendê-lo como um sistema de poder. Essa é uma
percepção fundamental, porque permite que tenhamos uma compreensão mais densa
do que ele é e de como ele funciona. No Brasil, é comum que o preconceito racial,
quando reconhecido, seja tratado como um “problema do negro”. Existem estudos de
diferentes áreas do conhecimento que tentam compreender como o racismo impacta
a vida da população negra. Embora essa seja uma dimensão importante, pois negros
e negras são as vítimas do racismo, é crucial perguntarmos: qual a implicância que a
população branca tem numa sociedade racista? Ou melhor dito: quais as
responsabilidades e os privilégios que as pessoas brancas têm numa sociedade
racista? Se olharmos para o Congresso Nacional brasileiro, as Supremas Cortes, os
tomadores de decisões em relação aos destinos de nosso país, as camadas mais
favorecidas e o mundo empresarial, não demoramos para encontrar a resposta.

É possível que poucas pessoas (sobretudo brancas) já tenham feito a si mesmas


esse tipo de pergunta. Além disso, a ausência de um questionamento que implique a
população branca na lógica racista é, nada mais, nada menos, do que o racismo em
pleno funcionamento. No entanto, se formos seguir um pensamento lógico, vamos nos
deparar com a seguinte encruzilhada: se pessoas negras, mestiças e indígenas e
quilombolas são vítimas das mais variadas formas de violência, alguém é racialmente
violento com elas. Então, voltando à afirmação que abriu essa aula, nós somos uma
sociedade racista, porque somos uma sociedade de pessoas racistas.

Reconhecer e entender que a população branca faz parte da dinâmica de


funcionamento do racismo é o ponto de partida para compreender que o
racismo estrutural é um sistema de poder.
SUSP E O ENFRENTAMENTO DA DESIGUALDADE RACIAL NO BRASIL 14

Esse sistema tem como premissa o fato (irreal) de que a humanidade está dividida
em raças. Por muito tempo, acreditou-se que essas eram biologicamente diferentes,
e essas crenças foram cruciais na organização de uma sociedade, que tomava as
características fenotípicas como atributos para hierarquizar as experiências humanas.
Foram construídos estereótipos negativos sobre a população negra baseadas em
traços físicos, capacidade intelectual, moralidade e cultura, tornando-os bases para
inferioridade, definindo, assim, que existiam alguns tipos de vidas humanas que eram
superiores a outros tipos. Ou seja, existiam umas que importavam mais do que outras.
Embora, desde o começo do século XX, a ciência já tenha comprovado que raças
humanas não existem, o conceito de raça continuou fazendo sentido para entender e
explicar a organização social, política, econômica e cultural do mundo.

Se estamos tratando o racismo como um sistema de poder, isso significa dizer


que, nesse sistema, existem pessoas que detêm poder, enquanto outras, não. A
questão central é que esse preconceito determina que as pessoas que detêm o poder
sejam as pessoas brancas, enquanto todos os demais grupos não-brancos ficam à
margem dos espaços de poder e prestígio. Desse modo, existe uma ideia de
supremacia branca que embasa todo esse sistema: brancos detêm o poder porque
são considerados - e se consideram - superiores aos demais. E, neste caso, não
estamos falando apenas do poder político e econômico, mas também do poder
simbólico que a pele branca tem, como se o fato de ter nascido branco garantisse uma
série de vantagens (que também são chamadas de privilégios), que nem o homem
negro mais rico poderá alcançar.
Palavra do
Para ajudar na compreensão da complexa trama do racismo, é interessante
dialogar com pensadores que estão analisando essa questão há muito tempo. Um
importante nome nos estudos sobre racismo é o do sociólogo jamaicano Charles W.
Mills. Ele desenvolveu uma teoria na qual defende que, desde o século XV, a
humanidade vive sob um pacto racial. Esse tem como base o princípio da supremacia
branca (também conhecido como branquitude). No entanto - e aí temos a “jogada de
mestre” deste pacto -, o princípio dessa supremacia não é revelado, ele se camufla
na ideia de universalismo. Dito de outra forma, tudo o que é considerado universal
está diretamente ligado à experiência branca e eurocentrada, enquanto todo o
restante da humanidade é racializado e entendido como minoria social.
SUSP E O ENFRENTAMENTO DA DESIGUALDADE RACIAL NO BRASIL 15

Um exemplo fácil que comprova esse aspecto do contrato racial está no fato de
não nos referirmos às pessoas brancas como pessoas brancas; na lógica do racismo,
essas são apenas pessoas. Mas, quando estou me referindo a um sujeito não-branco,
a sua condição racial é rapidamente acionada. Isso acontece em situações do nosso
dia a dia, quando descrevemos ou nos referimos a alguém, ou quando, na escola,
aprendemos a história da Europa como se ela fosse a história universal (e,
consequentemente, a mais importante).

Esse sistema nos faz crer que tudo que advém da Europa, por ser universal,
abarca toda a existência humana. Um exemplo clássico disso é o pouco (ou quase
nada) que estudamos nas nossas trajetórias escolares sobre os demais continentes.
O africano, por exemplo, da forma como é apresentado nos livros didáticos, nos leva
a construir uma ideia de país, e não de um continente com diversos países, cultura,
idiomas, economias, biomas, organizações sociais e políticas diferentes. Para falar do
continente africano, o foco sempre se volta para as guerras, a fome e a miséria.

Essa percepção ordena todas as dimensões do nosso cotidiano, fazendo com


que, desde muito cedo, nós sejamos ensinados a naturalizar os privilégios que o
racismo cria para todas as pessoas brancas, mesmo aquelas que não
necessariamente concordem com a existência desses privilégios. Além de uma gama
enorme de vantagens materiais que o racismo cria para a população branca, há,
também, o enorme benefício dessa população não se pensar de forma racializada.
Não por acaso, frases, como “eu não vejo cor, só vejo pessoas”, são comumente
ditas por pessoas brancas quando confrontadas em alguma situação na qual a
discriminação racial fica explícita. Pois bem, em meio ao contrato racial que nos
organiza, apenas as pessoas brancas têm o luxo de não enxergarem a cor de sua
pele como um atributo que define grande parte de suas vidas. Isso significa que essas
não sofram, não passem dificuldades e não sejam marginalizadas? De forma alguma,
mas é importante pontuar que, mesmo as dores e dificuldades que pessoas brancas
passam, não são, em grande medida, definidas pela cor de sua pele.

É importante reconhecer os privilégios que o racismo cria para a população


branca para que possamos compreender outros dois conceitos problemáticos,
que costumam ser muito evocados quando o assunto é racismo: meritocracia
e racismo-reverso.
SUSP E O ENFRENTAMENTO DA DESIGUALDADE RACIAL NO BRASIL 16

A meritocracia é um conceito falho, pois ele parte do pressuposto simplista


que basta o esforço pessoal de um indivíduo para que ele consiga sucesso na
vida. Se esse princípio estivesse correto, nossa segunda conclusão seria que,
salvo raras exceções, no Brasil apenas pessoas brancas seriam esforçadas, pois
a experiência de sucesso costuma ser branca. Na realidade, a própria ideia de
merecimento está diretamente vinculada à vida de pessoas brancas. Ainda que o
esforço pessoal seja uma característica importante na trajetória de um indivíduo,
o alcance dele está diretamente ligado à sua pertença racial. Como vivemos em
uma sociedade profundamente desigual, uma pessoa pobre e preta terá que se
esforçar mais do que uma pessoa branca de classe média - e mesmo esse esforço
hercúleo não garante que o sucesso desejado seja alcançado. Claro que existem
exceções, mas, como diz o ditado popular, “são as exceções que confirmam a
regra”.

Racismo-reverso também é um conceito falho, porque ele pressupõe a


possibilidade de uma pessoa negra ser racista e uma pessoa branca sofrer racismo.
Acontece que ser racista significa estar num espaço de poder e de privilégio que as
pessoas negras têm mais dificuldade de alcançar, justamente por serem o que são:
pessoas negras. Embora algumas possam compactuar com práticas racistas, elas não
podem o ser, porque isso significa exercer um poder que lhes foi negado a priori, não
importando o quanto ricas/famosas essas pessoas negras possam vir a ser.

É crucial apontar que esse caráter estrutural do racismo também fundamenta a


organização e o funcionamento do Estado. Como dito por Charles Mills,

“o contrato racial estabelece um regime político racial, um Estado racial e um


sistema jurídico racial nos quais o status de brancos e não-brancos está claramente
demarcado, seja por lei, seja por costume.” (MILLS, 2023, p. 46).
SUSP E O ENFRENTAMENTO DA DESIGUALDADE RACIAL NO BRASIL 17

Ou seja, o contrato racial que funda o sistema de poder, que é o racismo, também
define que as instituições sejam racistas - não um aberto e declarado que costuma
aparecer em situações de governos mais autoritários e extremistas, mas por meio de
leis e costumes que entendem as desigualdades existentes entre brancos, negros e
indígenas como atributos naturais da experiência humana. Um exemplo bem
elucidativo é o fato de, no Brasil, termos pouquíssimos presidentes de empresas
negros, e isso não ser um problema ou fator de indignação.

Como explicar que, num país no qual 56% da população se autodeclara negra,
nem 10% dos maiores empresários sejam negros? Será que eles não se esforçam o
suficiente, ou será que apesar dos esforços, há um sistema que impede ou limita as
possibilidades de ascensão social de um homem e de uma mulher negra? Outro
exemplo pode ser atestado pela baixa representatividade negra no Congresso
Nacional. É complexo encontrar outra resposta que nos mostre o porquê de, num país
que tem mais da metade da população autodeclarada negra, apenas 20% dos
parlamentares sejam negros, que não o racismo.

É curioso que a mesma naturalidade com a qual vemos espaços de poder e


privilégio como atributos quase exclusivos da população branca também é acionada
quando nos deparamos, por exemplo, com os dados da Justiça, ou então os índices
da Segurança Pública brasileira. Não há nenhuma perplexidade quando observamos
sentenças expedidas pelo poder Judiciário, que definem penas distintas para pessoas
negras e brancas que cometeram o mesmo crime, ou, então, que membros desse
mesmo Judiciário façam uso de teorias abertamente racistas (como a antropologia
criminal) para determinar a culpa de um réu negro. Também, parece não haver
incomodo algum quando nos deparamos com os dados de letalidade nas ações
policiais citados acima: negros sempre foram mais mortos pela polícia, não é mesmo?

Um outro exemplo elucidativo pode ser visto na pesquisa realizada pela


Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Quilombolas do Brasil e pela
ONG Terra de Direitos em 2018. Ela não só revela o alto índice de assassinatos de
pessoas quilombolas, mas também demonstra que o sistema de justiça não fez quase
nenhum movimento que gerasse algum tipo de punição. Esses dados estão disponível
em: http://conaq.org.br/noticias/a-publicacao-racismo-e-violencia-contra-quilombos-
no-brasil-esta-disponivel-para-download/
SUSP E O ENFRENTAMENTO DA DESIGUALDADE RACIAL NO BRASIL 18

Na Prática
Como foi dito no começo desta aula, a violência endêmica das forças
policiais contra as pessoas negras e indígenas do país é a ponta de um iceberg,
que nada mais é do que nosso racismo estrutural. Mas essa ponta também é
parte do problema, e deve ser bem estudada.

Este curso é uma das medidas necessárias para que comecemos a (re)conhecer
o caráter estrutural do racismo no Brasil e, a partir de então, elaborarmos ações e
políticas públicas que coloquem em xeque a ordem racista que nos estrutura. O
preconceito racial é uma das principais engrenagens da sociedade brasileira. Assim,
como bem disse a advogada e professora Thula Pires, é fundamental que coloquemos
pedras para interromper o funcionamento dessas engrenagens. Há séculos, negros e
indígenas vêm sendo as pedras massacradas pelas máquinas do racismo, mesmo
porque não tenha havido, e ainda haja, muita escolha para essas populações. Desse
modo, quem se compromete com a luta pelo fim da desigualdade racial está se
propondo a ser pedra também. Essa é uma escolha que causará incômodos, dores,
angústias, mas é a única forma de mudarmos a estrutura racial que temos.

Nas próximas aulas deste módulo, iremos fazer um passeio sobre a história do
Brasil, em meio a uma perspectiva crítica, para que possamos entender como e por
que a Segurança Pública brasileira foi, e continua sendo, ordenada pelo racismo.
Imaginamos que esse possa ser um bom começo para as mudanças necessárias.
SUSP E O ENFRENTAMENTO DA DESIGUALDADE RACIAL NO BRASIL 19

AULA 2 – O PASSADO ESCRAVISTA E O HISTÓRICO DO RACISMO


NO BRASIL

Pensar na trajetória histórica do racismo estrutural no Brasil significa um recuo


imenso. É possível, inclusive, afirmar que não há história do Brasil sem racismo,
sobretudo se estivermos pensando na Constituição e nas amarras do pacto racial do
qual nos fala Charles Mills (conforme visto na Aula 1). Além disso, há uma instituição
da história brasileira (uma das mais longevas) que nos ajuda a compreender a
estruturação que o racismo desempenhou no Brasil, essa instituição é a escravidão.

Entender o racismo estrutural de hoje significa compreender a Constituição e a


vigência da supremacia branca, que, por sua vez, deita suas raízes no passado
escravista. Acontece que essa relação causal é pouco evidenciada. Assim como o
racismo, a escravidão costuma ser pensada e trabalhada como um problema do
negro, como um fato histórico que se encerrou com a falha “abolição”, tendo em vista
que somente as pessoas negras (e também as indígenas) eram passíveis de serem
escravizadas. No entanto, uma sociedade de escravizados também é uma sociedade
de senhores de escravos, e pouco, ou nada, se fala sobre essa dimensão da nossa
história e do impacto que ela tem nos dias atuais. Esse é mais um dos silêncios que
constitui a história brasileira.

Mas, como bem colocado por Cida Bento:

“É urgente fazer falar o silêncio, refletir e debater essa herança


marcada por expropriação, violência e brutalidade para não
condenarmos a sociedade a repetir indefinidamente atos anti-
humanitários similares. Trata-se de uma herança inscrita na
subjetividade do coletivo, mas que não é reconhecida
publicamente. O herdeiro branco se identifica com outros herdeiros
brancos e se beneficia dessa herança, seja concreta, seja
simbolicamente.” (BENTO, 2022, p.24).
SUSP E O ENFRENTAMENTO DA DESIGUALDADE RACIAL NO BRASIL 20

Nesta aula, nós iremos entender um pouco melhor como a escravidão se


constituiu em uma herança perversa que ajudou a determinar privilégios e poderes do
Brasil racista.

Em primeiro lugar é fundamental pontuar que a escravidão é uma instituição que


existiu em diferentes momentos e diferentes partes da história da humanidade. Em
segundo lugar, precisamos sublinhar que existem sociedades que têm escravizados
e as sociedades escravistas. As primeiras são aquelas que não dependem da mão de
obra escravizada para funcionar – podemos tomar como exemplo o Brasil atual, no
qual nos deparamos com inúmeras situações de trabalhadores em condições
análogas à escravidão, mas o trabalho livre e assalariado é a norma. Já as sociedades
escravistas são aquelas que dependem do trabalho escravo. Conhecemos o exemplo
do Império Romano e da escravidão moderna que foi empregada na colonização das
Américas.

Uma diferença fundamental entre a escravidão romana e a moderna é o fato de a


segunda ter sido racializada. Ou seja, apenas pessoas de determinados grupos raciais
poderiam ser escravizados. Essa condição tem reflexo até hoje, marcando as relações
modernas de trabalho, as quais definem quem são os trabalhadores e as
trabalhadoras urbanos(as) e rurais que podem usufruir de direitos constitucionais ou
não. Em meio à construção do racismo estrutural, a escravidão racializada foi um dos
primeiros privilégios usufruídos pela população branca: eles não poderiam ser
escravizados. Isso significa que todos os negros e indígenas eram escravizados? Não.
Mas, além de todos eles estarem sujeitos a essa condição, a escravidão também se
tornou uma espécie de mancha, de mácula que acompanhou a vida de todos os
homens e todas as mulheres negros, negras, indígenas e quilombolas. Uma dor que
nem a Abolição da escravidão foi capaz de dissolver, inclusive pelo seu caráter
ilusório.

Pois bem, assim como em outras localidades do continente americano, a


escravidão foi uma instituição que organizou e dinamizou a colonização portuguesa
na América.

Como bem se sabe, quando os portugueses chegaram ao território que hoje


chamamos de Brasil, em 1500, essa era uma terra densamente habitada por milhares
SUSP E O ENFRENTAMENTO DA DESIGUALDADE RACIAL NO BRASIL 21

de povos indígenas. Os primeiros anos da colonização foram marcados por uma


ocupação incipiente do território, fazendo com que a presença portuguesa não
passasse de iniciativas individuais e privadas. A transformação na situação ocorreu
de maneira abrupta a partir da metade da década de 1530. Isso se deveu a uma
combinação de fatores, incluindo os reveses enfrentados pelos portugueses em suas
empreitadas nas rotas do Índico e as investidas de outras potências europeias que
buscavam conquistar o novo território.

Em 1534, após a expedição liderada por Martim Afonso de Souza, o rei


português Dom João III, apelidado de "O Colonizador", empreendeu sua primeira
tentativa de organizar a posse americana, introduzindo o sistema de capitanias
hereditárias. No entanto, diante dos resultados insatisfatórios desse modelo, o
rei instituiu, em 1548, o Governo Geral, uma estrutura administrativa portuguesa
voltada para a centralização do poder e a implementação de mecanismos para
fortalecer e estimular a administração colonial.

Do ponto de vista econômico, a colonização das Américas se tornou uma


empreitada extremamente atraente e rentável para a Coroa portuguesa, graças ao
advento do açúcar e ao complexo sistema econômico que girava em torno dele. O
cultivo do açúcar nos engenhos das capitanias do Nordeste resultou em uma dinâmica
econômica que, posteriormente, serviria como modelo em outras colônias
americanas, caracterizada pela produção em larga escala de um único produto
tropical, sendo a mão de obra formada predominantemente por africanos
escravizados e seus descendentes.

Por muito tempo, a história inicial do Brasil foi marcada por uma abordagem
superficial e preconceituosa, especialmente em relação à mudança na força de
trabalho explorada pelos portugueses. Gerações de brasileiros aprenderam, nas
escolas, que a substituição da mão de obra indígena era justificada pela alegada
aversão dos nativos ao trabalho árduo em contraposição à suposta superioridade
física dos africanos. Essas visões, de teor marcadamente racista, perpetuaram a ideia
errônea de que os indígenas eram preguiçosos, enquanto os africanos eram
considerados "animais de carga", destinados a realizar trabalhos pesados.
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Embora os africanos tenham desempenhado um papel essencial na produção de


açúcar, foram os indígenas escravizados que compuseram a mão de obra inicial dos
primeiros engenhos, entre os anos de 1550 e 1580. Nas décadas seguintes, era
comum observar indígenas e africanos trabalhando lado a lado nesses ambientes.
Apesar de o tráfico transatlântico já ter sido iniciado pelos portugueses, a sua
organização e sistematização nas Américas portuguesas demoraram algumas
décadas para se consolidarem. Nesse meio-tempo, os africanos escravizados eram
significativamente mais caros que os indígenas escravizados, o que explicava a
manutenção sistemática da escravidão de sociedades indígenas até os primeiros anos
do século XVII.

É importante pontuar que a substituição sistêmica de indígenas escravizados por


africanos nas mesmas condições contou com o forte apoio e a legitimação da Igreja
Católica. Antes mesmo dos portugueses chegarem ao que hoje chamamos de Brasil,
essa já havia dado permissão para que os reis lusitanos escravizassem africanos. Em
1455, o papa Nicolau V publicou uma bula papal dirigida ao rei português D. Afonso
V, definindo que:

“Guinéus e negros tomados pela força, outros legitimamente


adquiridos foram trazidos ao reino, o que esperamos progrida até a
conversão do povo ou ao menos de muitos mais. Por isso nós, tudo
pensando com devida ponderação concedemos ao dito rei Afonso a
plena e livre faculdade, entre outras, de invadir, conquistar, subjugar a
quaisquer sarracenos e pagãos, inimigos de Cristo, suas terras e bens,
a todos reduzir à servidão e tudo praticar em utilidade própria e dos
seus aos mesmos D. Afonso e seus sucessores, e ao infante. Se
alguém, indivíduo ou colectividade, infringir essas determinações, seja
excomungado.”

As justificativas para a escravização dos africanos e de seus descendentes foi


encontrada a partir da leitura de determinadas passagens do Antigo Testamento,
sobretudo as histórias vinculadas a Caim e a Cam. Em ambos os casos, os africanos
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eram punidos pelos pecados cometidos por seus antepassados, e a punição residia
justamente no fato de eles serem negros.

Ainda que fossem entendidos como sociedades inferiores, os indígenas ocuparam


outro lugar dentro da lógica católica. Vistos como pagãos, aos indígenas foi concedida
a “dádiva” da catequese, um processo de aprendizagem que impunha os valores
cristãos e europeus para sociedades nativas. Aqueles que se recusassem à
catequese poderiam (e deveriam) ser escravizados.

Como o Brasil era uma colônia de dimensões continentais, o que se observou foi
que, a partir de meados do século XVII, africanos escravizados passaram a trabalhar
em atividades vinculadas ao mercado externo, e a presença de indígenas
escravizados era mais frequente em espaços destinado à economia interna da
colônia, mas, muitas vezes, esse padrão foi alterado. De todo modo, o que tivemos,
ao longo da experiência colonial, foi a confirmação reiterada de um dos primeiros
pressupostos do racismo científico: o fato de que apenas os grupos racializados eram
passíveis de serem escravizados.

O modelo de produção de açúcar em plantations, que se tornou característico, só


foi plenamente estabelecido a partir das primeiras décadas do século XVII. No entanto,
a escravização dos indígenas não foi totalmente abolida, e o tráfico de africanos
escravizados continuou a crescer, principalmente nas plantations, resultando em
lucros dobrados para a metrópole portuguesa. E, agora, é fundamental abrir um
subcapítulo para tratar do tráfico transatlântico de africanos escravizados. O infame
comércio (como era chamado) pode ser entendido como o ciclo econômico de ampla
envergadura e longa duração, impactando, significativamente, o desenvolvimento da
América portuguesa e, depois de 1822, do Brasil.

No entanto, havia outro fator a ser levado em consideração: o tráfico transatlântico


de africanos escravizados era uma atividade altamente lucrativa. A rentabilidade do
tráfico é um ponto fundamental na compreensão do porquê a escravidão africana ter
sido amplamente difundida no Brasil. Esse mercado foi um dos maiores e mais
nefastos crimes contra a humanidade. Sua lógica estava organizada a partir de um
processo de desumanização sistemático das sociedades africanas que, conforme
visto acima, eram entendidas como inferiores aos europeus. A compra e venda de
SUSP E O ENFRENTAMENTO DA DESIGUALDADE RACIAL NO BRASIL 24

africanos escravizados tornou-se uma das empresas mais lucrativas de todo o mundo,
viabilizando a) criação de fortunas, b) acumulação primitiva de capital, c)
financeirização da economia mundial e surgimentos de bancos. Durante 200 anos,
nada dava mais dinheiro no mundo do que comprar e vender gente negra.

A dinâmica do tráfico começava com o sequestro de homens, mulheres e crianças


em diferentes partes do continente. Essas pessoas eram levadas para cidades
litorâneas nas quais existiam portos de embarque, e ficavam presas em barracões por
semanas, ou até mesmo meses, vivendo em condições insalubres e mal alimentadas
– o que levava muitas dessas pessoas à morte. O embarque nos navios negreiros era
o momento mais traumático do processo. Em primeiro lugar, porque muitos africanos
e muitas africanas não sabiam o que existia do outro lado do Oceano (em algumas
sociedades africanas, imaginava-se que o Atlântico fosse um extenso rio que dividia
o mundo dos vivos para o mundo dos mortos). Em segundo lugar, porque a entrada
no navio negreiro era uma espécie de morte em vida: as pessoas se despediam de
um território que conheciam para serem escravizadas num lugar completamente
desconhecido e por pessoas desconhecidas.

Por fim, a travessia Atlântica – que poderia durar de 8 a 14 semanas – era


absolutamente terrível. Para ampliar os lucros, os traficantes chegavam a colocar 300
africanos nos porões de navios que comportariam de 100 a 150 pessoas. Isso
significava que não havia espaço, nem comida, nem água potável para todos. A falta
de condições mínimas de higiene era responsável pela difusão de inúmeras mortes:
20 a 30% dos africanos embarcados morriam na travessia e tinham seus corpos
jogados ao mar. Não por acaso, outro nome dado a esses navios era tumbeiro.
Aqueles que sobreviviam à travessia recebiam a escravidão como recompensa.
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Figura 2 – Planta baixa de um navio negreiro

Fonte: Gravura publicada em 1830 no livro Notices of Brazil in 1828 and 1829, de R. Washl. Domínio
público, Arquivo Nacional – Ministério da Justiça Disponível em: https://multirio.rio.rj.gov.br/index.php/historia-
do-brasil/america-portuguesa/8739-o-tr%C3%A1fico-negreiro.

Temos poucos registros em primeira pessoa de africanos que vivenciaram esse


processo. Um dos mais importantes é o relato de Baquaqua, um homem nascido no
atual país do Benin (África Ocidental), que foi capturado como escravizado em 1845.

Os seus horrores, ah! Quem poderá descrever? Ninguém poderá


representar tão verdadeiramente os seus horrores como o pobre infeliz,
miserável desgraçado que foi confinado dentro dos seus portais. Ó amigos
da humanidade, tenham piedade do pobre africano, que foi ludibriado e
vendido do convívio dos seus amigos e do seu lar, e enviado para o porão
de um navio negreiro, para esperar por mais horrores e misérias em uma
terra distante, no meio dos religiosos e benevolentes. Sim, exatamente no
meio deles; mas rumo ao navio! Fomos lançados no porão do navio em
estado de nudez, os homens espremidos de um lado e as mulheres do
outro; o porão era tão baixo que não conseguíamos ficar de pé, mas
éramos obrigados a nos agachar sobre o piso ou a nos sentarmos; dia e
noite eram a mesma coisa para nós, o sono nos era negado pela posição
de confinamento dos nossos corpos, ficamos desesperados com o
SUSP E O ENFRENTAMENTO DA DESIGUALDADE RACIAL NO BRASIL 26

sofrimento e a fadiga. [...] A única comida que tínhamos durante a viagem


era milho cozido mergulhado em água. Não consigo dizer quanto tempo
ficamos confinados daquela maneira, mas pareceu um período muito
longo. Nós sofremos muitíssimo com a falta d'água, mas nos era negado
tudo o que precisávamos. Meio litro por dia era tudo o que era permitido, e
nada mais; e um grande número de escravos morreu na travessia.”
(Baquaqua, 1854)

É preciso repetir, uma vez mais, que a desumanização de africanos negros foi o
ponto de partida, e o ponto de chegada da empresa mais lucrativa que existiu entre
os séculos XVII e XIX. Foi esse processo que permitiu que o tráfico transatlântico de
africanos escravizados se expandisse ao longo dos séculos, atingindo o seu apogeu
no século XIX. O comércio impulsionou consideravelmente a entrada de africanos na
América portuguesa, consolidando a escravidão como um sistema profundamente
enraizado. A presença e o papel dos traficantes brasileiros foram fundamentais para
o influxo maciço de africanos, estabelecendo um ciclo de comércio bilateral que
fortaleceu os laços entre o Brasil e algumas sociedades africanas. Não por acaso, o
Brasil foi a localidade das Américas que mais recebeu africanos escravizados: 4,8 dos
12 milhões de africanos sequestrados de suas terras de origem desembarcaram e
trabalharam no Brasil - o último país a abolir a “escravidão” nas Amáricas.

Esse enorme volume do tráfico é o principal fator que explica por que o
escravizado se tornou o tipo de propriedade privada mais acessível em toda a colônia
e também nas primeiras décadas do Império do Brasil. A alta lucratividade na compra
e venda de pessoas africanas fez com que muitos brasileiros se tornassem traficantes,
o que, por sua vez, facilitou o acesso da população aos escravizados. Ainda que o
africano escravizado fosse uma propriedade significativamente cara, até mesmo
pessoas de condições mais módicas poderiam comprá-lo, pois os traficantes
brasileiros criaram cartas de crédito que facilitavam a aquisição de um cativo.

Justamente por isso, os senhores de escravizados eram uma classe diversificada,


abarcando indivíduos com diferentes níveis de riqueza e influência. Ainda que a maior
parte deles tivessem de 1 a 3 escravizados como propriedade, existiam aqueles que
possuíam dezenas e até mesmo centenas de pessoas em condição de escravidão.
SUSP E O ENFRENTAMENTO DA DESIGUALDADE RACIAL NO BRASIL 27

A disseminação do escravizado como a principal propriedade privada no Brasil


tinha como razão principal o fato de que ele era uma propriedade e, ao mesmo tempo,
um investimento. Tanto no período colonial, como no Império, os escravizados negros
(africanos e nascidos no Brasil) realizaram as mais variadas atividades: trabalharam
na produção de açúcar, café, algodão, tabaco; criaram gado; extraíram ouro e pedras
preciosas; cuidaram de todas as atividades domésticas (inclusive a amamentação das
crianças brancas); trabalharam numa variada gama de atividades nos principais
centros urbanos - vendiam produtos, carregavam mercadoria nas alfândegas,
calçaram ruas, eram músicos, boticários, quituteiras.

É necessário pontuar que boa parte dessas atividades eram executadas a partir
de saberes e tecnologias que africanos e africanas trouxeram de suas sociedades de
origem, tais como a pecuária extensiva e a metalurgia (ambas desconhecidas pelos
portugueses), e uma série de processos de cura executados pelos mestres
sangradores, pelas parteiras e pelos boticários. A presença dos escravizados era
tamanha que, durante a vigência da escravidão, eles podem ser entendidos como
sinônimo de trabalho - uma condição que era herdada pelos seus descendentes,
mesmo aqueles que conseguiam comprar sua liberdade por meio da carta de alforria.
No Brasil, até 1888, os negros e as negras eram, antes de mais nada, trabalhadores
e trabalhadoras.

Era a exploração sistemática do trabalho escravo que tornou os escravizados algo


tão atraente para os proprietários, mesmo aqueles mais pobres. Em tese, a
administração dos escravizados era uma responsabilidade dos proprietários, que
determinavam todos os aspectos de suas vidas, incluindo alimentação, trabalho e até
casamentos. Grosso modo, os assuntos relacionados aos escravizados estavam
circunscritos à esfera privada das relações, porque o escravizado era uma
propriedade privada. Tanto era assim que os proprietários podiam dispor dos seus da
forma como bem quisessem. Não se tratava apenas da exploração de seu trabalho,
mas também da violência de seus corpos, o que poderia acontecer tanto pelo estupro,
como pela aplicação de castigos (que, muitas vezes, levavam à morte proposital da
pessoa escravizada).

Justamente por isso, quando a luta daqueles em situação de escravidão pela


liberdade colocava a ordem escravista em xeque, o que se observava era a aliança
SUSP E O ENFRENTAMENTO DA DESIGUALDADE RACIAL NO BRASIL 28

entre poderes metropolitanos, eclesiásticos e colonos sendo profundamente eficaz -


uma aliança que era orquestrada por homens brancos, que pareciam ter uma
percepção racial apurada. Nesse sentido, as primeiras ideias de policiamento que
foram implementadas no período colonial tinham a função de fazer valer os interesses
dessa parcela específica da população, mantendo a ordem escravista por meio de
atuações violentas contra corpos de pessoas escravizadas (sobretudo negras).
Todavia, é importante dizer que uma característica que atravessou a história do Brasil
desde o período colonial é o fato de as elites políticas, que detinham o poder (e, muitas
vezes, eram os representantes máximos do Estado), terem plena consciência da
importância de não fomentar uma identidade racial e meio a uma sociedade racial e
desigualmente estruturada.

Não por acaso, boa parte dos órgãos de repressão que foram criados
contaram com a participação efetiva da população pobre e, muitas vezes, negra
e mestiça. Muitos capitães-do-mato eram homens de cor livres, que ganhavam
a vida capturando escravizados negros foragidos. O Terço dos Henriques (uma
milícia armada do período colonial formada apenas por homens negros e
mestiços) era um corpo militar frequentemente solicitado quando o assunto era
o desmantelamento de mocambos e quilombos. Ainda que negros e mestiços
fossem vistos como seres inferiores, era fundamental que existisse uma
diferenciação dentre eles para que o fomento de uma identidade racial não
acontecesse. Dito de outra forma, uma maneira eficaz de manter a ordem
escravista no Brasil colônia e no Brasil Império era organizar forças de
repressão compostas por homens negros (livres e libertos). Essa foi uma lição
que o Estado brasileiro aprendeu muito bem, e que foi adaptada para a
experiência republicana, até porque, quando organizadas de acordo com os
interesses que visavam à manutenção dos privilégios, a presença negra e
mestiça nesses órgãos de repressão garantiam que o lado mais frágil das duas
pontas às ações policiais fossem pessoas negras.

Voltando para o período colonial, é possível afirmar que uma das maiores
heranças legadas para o Império do Brasil foi a escravidão negra. Isso significa dizer
reconhecer não só a dependência que o Brasil tinha em relação ao trabalho realizado
pelos escravizados, como também pontuar que essa dependência criou uma
SUSP E O ENFRENTAMENTO DA DESIGUALDADE RACIAL NO BRASIL 29

sociedade na qual o oposto de ser escravo era ser senhor de escravos. Isso mesmo:
no Brasil, uma das condições mais almejadas durante séculos era ser proprietário de
alguém, e esse alguém sempre era uma pessoa negra.

Essa era uma condição tão entranhada na sociedade brasileira que, em meio a
uma das transformações políticas mais significativas da nossa história – o Processo
de Independência em 1822 -, as elites brancas do país refizeram o pacto em nome da
escravidão e da segurança de seu lugar como proprietário de escravizados. Essa
talvez tenha sido a maior aposta daquele período; o Brasil, independente e soberano,
apostava na escravidão para o futuro.

Contudo, é preciso ressaltar que, quando o Brasil se tornou um país


independente, a escravidão era uma instituição combatida não só pelos escravizados,
mas também por um movimento abolicionista crescente. No início do século XIX, a
Inglaterra (que havia sido a maior traficante de africanos escravizados do mundo) se
tornou uma espécie de bastião da causa abolicionista, pressionando seus parceiros
comerciais a abolirem a escravidão. Um dos países pressionados foi Portugal. O rei
português D. João VI criou diferentes estratégias diplomáticas para adiar ao máximo
a abolição do tráfico transatlântico para o Brasil. A principal razão para isso era que o
rei luso precisava atender aos interesses de seus súditos, e os mais ricos súditos
brasileiros daquele momento eram os traficantes.

Na verdade, o que se observa no período joanino (1808-1821) era um incremento


do tráfico transatlântico para o Brasil. Dito de outra forma: nunca tantos africanos
escravizados entraram nos portos brasileiros. D. Pedro I herdou de seu pai o
compromisso em abolir o tráfico transatlântico, e assim como ele tentou adiar essa
tarefa ao máximo, porque para governar seu novo Império, precisava atender às
demandas e exigências de seus súditos mais importantes e ricos: os traficantes e os
senhores de escravos.

Desse modo, como bem colocado pelo historiador Luis Felipe de Alencastro: o
Brasil foi uma nação que apostou na escravidão, lançando-a para seu futuro. Foi a
partir do lugar de senhor de escravo que as elites brasileiras se reconheceram e
construíram o Império do Brasil. Essa foi uma aposta tão pactuada que fez com que
essas mesmas elites e o Estado Nacional brasileiro se colocassem contra uma lei que
SUSP E O ENFRENTAMENTO DA DESIGUALDADE RACIAL NO BRASIL 30

havia sido elaborada e promulgada pelo Congresso do país. Explico: depois de anos
de pressão, em 1831 o governo regencial finalmente assinou a lei que abolia o tráfico
transatlântico no Brasil. Os principais portos de desembarque foram desativados e
políticos mais progressistas comemoraram o feito. No entanto, a crescente demanda
do mercado internacional pelo café brasileiro fez com que os cafeicultores (muitos
deles políticos brasileiros) exercessem forte pressão pela reabertura do tráfico. Em
1835, num grande acordo entre cafeicultores e esses políticos, o tráfico transatlântico
de escravizados foi reaberto, só que essa reabertura se deu na ilegalidade com a
anuência do Estado Nacional. Entre 1835 e 1850, mais de 800 mil africanos
escravizados entraram no Brasil, a despeito das leis do próprio país.

Esse acordo é uma das maiores provas do peso que a escravidão exerceu no
Brasil Independente (por meio de uma escolha deliberada das elites do país), e da
responsabilidade que o Estado Nacional brasileiro (independente e soberano) teve na
manutenção do tráfico e na propagação da escravização ilegal de africanos em
território nacional. A constatação dessa ilegalidade do Estado foi um dos principais
argumentos para que, em 2012, o Supremo Tribunal Federal fosse convencido da
necessidade em aprovar as cotas raciais nas universidades brasileiras. Essa
aprovação era o reconhecimento da implicância do próprio Estado frente às piores
condições econômicas, sociais e políticas que a população negra tinha - uma
população que era descendente de homens e mulheres negros que foram ilegalmente
escravizados.

A aprovação da Lei de Cotas foi um importante ato de responsabilização do


Estado na luta contra a desigualdade racial. Entender a formação das forças policiais
no Brasil e como elas foram operadas a mando de uma classe senhorial escravista,
que comungava com os pressupostos do racismo científico, é outra importante forma
de tal Estado se responsabilizar pela sua implicância e manutenção de práticas
racistas. Esse será o tema de nossas próximas aulas.
SUSP E O ENFRENTAMENTO DA DESIGUALDADE RACIAL NO BRASIL 31

AULA 3 - O NASCIMENTO DA POLÍCIA MILITAR EM MEIO A UMA


SOCIEDADE ESCRAVISTA E RACISTA.

A história da polícia no Brasil começa antes mesmo de o Brasil existir enquanto


uma nação independente e soberana. Durante a longa experiência colonial, a ideia de
policiamento se fez sentir de diferentes formas, a depender das características dos
lugares em questão - uma variação que dizia muito sobre a diversidade e
complexidade que compunham as diversas regiões da colônia. De maneira geral, a
função policial ficou a cargo de ações conjuntas do vice-rei e ouvidores gerais, e
também sob a responsabilidade dos governadores de capitanias. É preciso lembrar
que uma dimensão importante da ideia de policiamento se fez sentir na materialidade
e organização urbanística das vilas e cidades, que tinham as cadeias como um dos
edifícios que representavam a presença do poder colonial.

No entanto, foi apenas no contexto da transferência da Corte


portuguesa que temos a criação das duas primeiras instituições policiais do
Brasil: a Intendência Geral da Polícia da Corte, criada em 1808, e a Guarda
Real de Polícia, fundada em 1809, ambas no Rio de Janeiro, que se tornava
a nova sede do Império lusitano. Como pontuado pelo historiador Marcos
Bretas, esses foram os “primeiros organismos públicos a carregarem o
nome e a acepção de polícia” (BRETAS, 1997, p.167).

A Intendência Geral da Polícia da Corte do Brasil foi instituída pelo Príncipe


Regente D. João, por meio do Alvará de 10 de maio de 1808. A instituição tinha as
mesmas atribuições da Intendência existente em Lisboa, que, por sua vez, havia sido
inspirada no modelo francês de policiamento. O objetivo de D. João era criar uma
instituição que não só garantisse a ordem e a boa administração da nova Corte, mas
que também tivesse condições de manter a segurança do Império português frente a
possíveis espiões franceses de Napoleão – que, naquele momento, era inimigo
declarado de Portugal.
SUSP E O ENFRENTAMENTO DA DESIGUALDADE RACIAL NO BRASIL 32

Não por acaso, o Intendente Geral de Polícia da Corte tinha status de ministro,
ficando responsável por:

“todos os órgãos policiais do Brasil [...], inclusive, sobre ouvidores


gerais, alcaides mores e pequenos, corregedores, inquiridores,
meirinhos e capitães de estradas e assaltos. Era também sua tarefa
a organização da Guarda Real de Polícia da Corte. Em resumo, as
atribuições da Intendência Geral cobriam as funções de justiça, de
governo e de administração interna.” (MINAYO, SOUZA,
CONSTANTINO, 2008, p.44)

Sem sombra de dúvidas, a Intendência se tornou um dos órgãos administrativos


de maior importância na nova Corte portuguesa, pois também ficavam a cargo da
instituição os assuntos ligados às obras públicas, à segurança coletiva e pessoal, a
vigilância da população, a investigação de crimes e a punição de criminosos. Durante
o período Joanino (1808-1821), o rei tinha reuniões quase diárias com Paulo
Fernandes Vianna, o primeiro homem a ocupar o cargo de Intendente da Polícia da
Corte do Brasil.

As informações sobre a Guarda Real são mais escassas. Criada em 13 de maio


de 1809 para auxiliar a Intendência Geral de Polícia da Corte, essa instituição era uma
força policial uniformizada de tempo integral, que tinha autoridade judicial sobre delitos
menores, tendo como funções principais perseguir os criminosos e manter a ordem.
Tanto a Intendência Geral de Polícia da Corte como a Guarda Real foram mantidas
após o processo de Independência do Brasil. Os historiadores Marcos Bretas e
Thomaz Holloway apontam que essa seria a Instituição que fundou a Polícia Militar no
Brasil, dando as bases para a implementação de políticas públicas acerca da
segurança nacional, como bem demonstra a promulgação do Código Criminal em
1830.

Em 1831, a Guarda Real foi extinguida pelo Regente Antônio Feijó. Vale lembrar
que esse foi um ano especialmente atribulado na história política do país, marcado
SUSP E O ENFRENTAMENTO DA DESIGUALDADE RACIAL NO BRASIL 33

pela abdicação de D. Pedro I e o início do Período Regencial (1831-1840). Um dos


momentos de tensão se deu justamente no Rio de Janeiro, quando tropas rebeldes
de Guarda Real participaram de motins que, dentre outras coisas, reivindicava o fim
dos castigos físicos contra os negros pertencentes às corporações.

Em resposta a esse movimento, e imbuído de princípios liberais que preconizavam


uma percepção mais racial e humanizada de segurança pública, o Regente Feijó
extinguiu a Guarda Real, substituiu-a pelo Corpo de Guardas Municipais Permanentes
por meio da lei de 10 de outubro de 1831. A lei determinava que:

Art. 1º O Governo fica autorizado para criar nesta Cidade um Corpo de


guardas municipais voluntários a pé e a cavalo, para manter a tranquilidade
publica, e auxiliar a Justiça, com vencimentos estipulados, não excedendo o
número de seiscentas e quarenta pessoas, e a despesa anual a cento e
oitenta contos de réis.

Art. 2º Ficam igualmente autorizados os Presidentes em Conselho para


criarem iguais corpos, quando assim julguem necessário, marcando o
número de praças proporcionado.

Art. 3º A organização do corpo, pagamento de cada indivíduo, a nomeação


e despedida dos Comandantes, as instruções necessárias para a boa
disciplina, serão feitas provisoriamente pelo Governo, que dará conta na
futura sessão para a aprovação da Assembleia Geral.

Art. 4º Ficam revogadas todas as Leis em contrário. Manda, portanto, á


todas as Autoridades, a quem o conhecimento, e execução da referida Lei
pertencer, que a cumpram, e façam cumprir, e guardar tão inteiramente como
nela se contém. O Secretario de Estado dos Negócios da Justiça a faça
imprimir, publicar e correr. Dada no Palacio do Rio de Janeiro aos dez de
Outubro de mil oitocentos trinta e um, decimo da Independência e do Império.

Como é possível observar, o Corpo de Guardas Municipais era uma organização


paramilitar e civil, remunerada, uniformizada e cujo alistamento era voluntário. – e que
por isso é considerada a instituição que deu origem à Polícia Militar no Brasil. À
semelhança de outras instituições policiais existentes na Europa, Feijó desejava que
as Guardas Municipais tivessem uma atuação menos bruta, agindo de modo a
SUSP E O ENFRENTAMENTO DA DESIGUALDADE RACIAL NO BRASIL 34

prevenir e reprimir delitos vinculados ao cotidiano da vida na Corte, apostando numa


maior e melhor proximidade com a sociedade civil - a ideia era mesmo vigiar e punir
(quando necessário). Ainda que essa fosse uma instituição policial permanente e
uniformizada, o Regente Feijó fez questão de desvinculá-la do Exército, colocando-a
como atribuição do Ministério da Justiça, definindo melhores soldados e garantindo a
proibição de castigos físicos.

As principais funções do Corpo de Guardas Municipais Permanentes eram:

 autorizar e se responsabilizar por eventos públicos, controlando e prendendo


pessoas que estivessem em agitações;

 revisitar pessoas suspeitas;

 prender quem estivesse cometendo crimes;


 controlar o ajuntamento de pessoas;

 realizar patrulhas na cidade, tanto no centro, como nos subúrbios.

Como a lei de 1831 deixava entrever, outras províncias do Império também


poderiam criar suas próprias Guardas Municipais Permanentes. A preocupação com
as ações policiais do Império também se fez sentir com a criação da Guarda Policial
em 1833, um corpo armado constituído a partir de voluntários locais cujas ações
estavam atreladas aos juízes de paz de cada distrito, apresentando uma dimensão
descentralizada das ações policiais. Tal dimensão foi ratificada com o Ato Adicional
de 1834, que definia a maior autonomia provincial na administração de sua polícia.

O que se observa a partir de então é que o Corpo de Guardas Municipais


Permanentes e a Guarda Policial passam a existir nas províncias do Brasil, embora
as duas instituições se estruturassem de formas distintas. Assim, cito Bruna Teixeira:

“A Guarda Policial Permanente deveria atuar como a força de polícia da


capital e sublinhar apenas as localidades provinciais que estivessem sua
ordem perturbada [...]a administração da Guarda Municipal Permanente
era feita diretamente entre presidente de província e comandante do corpo.
Já a Guarda de Polícia era a força das demais localidades provinciais, ou
sejam a instituição se configurou como inúmeros corpos de polícia
SUSP E O ENFRENTAMENTO DA DESIGUALDADE RACIAL NO BRASIL 35

espalhados pelo interior e litoral provincial. Nesse sentido, sua


administração era feita de maneira a envolver além do presidente da
província e comandante do corpo, uma série de agentes locais, como juiz
de paz, prefeito, delegado, subdelegado, chefe de polícia e ainda as
Câmaras Municipais.” (TEIXEIRA, 2019 p. 36)

A partir de 1835, as diferentes províncias do Império do Brasil fizeram uso da


autonomia garantida pelo Ato Adicional e criaram suas Guardas Municipais
Permanentes e suas Guardas Policiais, cujas atuações foram marcadas pelas
especificidades de cada província.

No entanto, a perspectiva liberal de atuação da Polícia que o Regente Feijó


defendeu na implementação da Guarda Municipal e da Guarda Policial ficou distante
daquilo que se via nas ruas das vilas e cidades do Império. Em primeiro lugar, é
importante pontuar quem eram os homens que compunham essas guardas: em
ambos os casos, o que observamos são instituições formadas por homens pobres e
de baixa instrução. Além disso, ao entrarem nessas corporações, esses homens não
experimentaram nenhum tipo de ascensão social ou mudança real de status social.
Outra questão que diferenciava a teoria da prática era o fato de a maior parte dos
alistados não serem voluntários, mas homens jovens que foram recrutados, por meio
da força, a fazerem parte de uma instituição que continua lhes pagando mal, o que,
em grande parte, explica por que a maioria deles deixava a instituição depois dos 3
anos “obrigatórios” de serviços. Também, é preciso sublinhar que não havia uma
formação sistemática dentro dessas corporações, cujos membros atuavam a partir de
uma espécie de “senso comum” compartilhado.

Desse modo, a ideia de uma polícia que fosse racional e cuja atuação se desse
por meio da vigilância não aconteceu. O que se observa, ao longo do século XIX, é a
atuação de uma polícia mal remunerada (por vezes vítima de castigo físico), com
pouquíssima instrução e que fazia uso da força e da brutalidade na sua forma de agir.
Um dos exemplos notórios disso ocorreu quando a Guarda Permanente esteve sob o
comando do major Luís Alves de Lima e Silva, futuro Duque de Caxias. Além de
SUSP E O ENFRENTAMENTO DA DESIGUALDADE RACIAL NO BRASIL 36

sufocar duas rebeliões – fazendo uso deliberado da violência, o então major também
redefiniu as atribuições das duas corporações recém-criadas.

A força e a brutalidade das ações policiais ficavam especialmente evidentes no


trato das forças policiais com a população escravizada e negra do Império. Conforme
visto na Aula 2, até meados do século XIX, o Brasil foi uma sociedade que se
organizou por meio da escravidão. Tanto foi assim, que a pessoa escravizada era o
tipo de propriedade privada mais adquirido, até mesmo dentre a população mais pobre
(que conseguia comprar um escravizado a prazo). Assim, boa parte das ações
policiais tinham, como objetivo, controlar a população escravizada, sobretudo nas
grandes cidades do país.

Thomas Holloway, um dos primeiros historiadores a se debruçar sobre a história


da Polícia no Brasil, aponta que, ao longo do século XIX, no Rio de Janeiro (capital do
país), grande parte do trabalho da polícia se concentrava na vigilância, no controle e
na punição da população escravizada. Essa não era uma tarefa simples, pois os
escravizados chegaram a compor de 30 a 40% da população desses centros urbanos,
e eram a mão-de-obra primordial para o funcionamento das cidades, trabalhando
principalmente nas ruas e em espaços públicos. Dessa maneira, a polícia precisava
atuar com cautela para que mantivesse a ordem, sem ferir o direito que todo cidadão
brasileiro tinha naquela época em ter um escravizado e tratá-lo como bem quisesse.

Essa era uma equação difícil de ser executada, porque a alta concentração de
escravizados nas maiores cidades do Brasil fazia com que esses fossem espaços
potencialmente perigosos. Fuga de escravizados, maltas de capoeiras, constituições
de mocambos e quilombos, pequenos motins, e até mesmo rebeliões foram
protagonizados nesses espaços, o que fazia com que a preocupação com a população
escravizada fosse constante. A imagem abaixo é uma litogravura que foi feita pelo
artista britânico Augustus Earle, que esteve no Brasil na década de 1820. A obra
retrata um jogo de capoeira jogado, provavelmente, por escravizados da cidade do
Rio de Janeiro que estava prestes a ser interrompido pela ação de um soldado da
Guarda Real.
SUSP E O ENFRENTAMENTO DA DESIGUALDADE RACIAL NO BRASIL 37

Figura 3 - Capoeira (Rio de Janeiro c. 1820)

Fonte: Augustus Earle, Negroes fighting, c. 1820, Biblioteca Nacional da Austrália. Disponível em:
https://pt.wikipedia.org/wiki/Augustus_Earle#/media/Ficheiro:CapoeiraEarle.JPG.

Uma das medidas tomadas foi a proibição de ajuntamentos de mais de três


escravizados, e também o controle daqueles que trabalhavam nas ruas.
Contudo, essa medida cautelar não era suficiente e, para manter a ordem na
Corte, a partir da década de 1820, a polícia passou a ter o direito legal de punir
os escravizados que praticassem capoeiragem, bem como açoitá-los, de acordo
com as leis municipais, e aprisioná-los no Calabouço (uma prisão específica para
a população escravizada, localizada no Morro do Castelo).

Se isso não bastasse, é fundamental lembrar que, mesmo numa sociedade


marcada pela escravidão racializada, como o Brasil, população escravizada e
população negra não eram sinônimos. Isso porque existia um percentual significativo
de negros e negras que eram homens e mulheres livres e libertos, muitos deles
cidadãos e trabalhadores brasileiros, que se somavam aos escravizados na execução
das mais variadas atividades cotidianas. Nos grandes centros urbanos, era muito
difícil distinguir, dentre a população negra, quem era escravizado e quem era livre.

Sendo assim, umas das estratégias de policiamento desenvolvidas ainda na


década de 1820, foi tratar a população negra como sinônimo de escravizada, por meio
SUSP E O ENFRENTAMENTO DA DESIGUALDADE RACIAL NO BRASIL 38

do princípio da suspeição generalizada. Todo(a) negro(a) poderia ser um


escravizado(a) e, por isso mesmo, deveria ser tratado(a) como suspeito(a). Dito de
outra forma, primeiro se prendia a população negra para, depois, averiguar se a
pessoa em questão era ou não escravizada. No Rio de Janeiro, o coronel Miguel
Nunes Vidigal e seus granadeiros ficaram conhecidos por conta do policiamento
ostensivo e da repressão truculenta contra a população negra, uma prática que se
estendeu a outras corporações policiais do Brasil. Embora essas ações não
contassem com aporte legal e, em tese, fossem criticadas pelo alto escalão dos
órgãos policiais, pouco - ou nada - foi feito para impedir o uso desmedido de violência
contra a população negra.

Ações de natureza semelhantes aconteceram durante as décadas de 1870 e


1880, quando o movimento abolicionista brasileiro cresceu e ganhou maior adesão da
população brasileira. Enquanto o Exército brasileiro se posicionou favorável à pauta
abolicionista, ainda na década de 1870, as forças policiais foram amplamente
utilizadas pelo Estado Nacional para tentar frear essa onda que inundava o Brasil. O
uso desenfreado da força física e da brutalidade se tornaram frequentes nas tentativas
de contenção e repressão dos Comícios Abolicionistas feitos em espaços públicos. E,
não por acaso, as maiores vítimas dessas ações continuavam sendo homens e
mulheres de pele preta, pouco importante se eram ou não escravizados. A imagem
abaixo foi tirada da Revista Illustrada, um importante veículo do Movimento
Abolicionista. A ilustração representa as forças policiais da província de São Paulo
tentando controlar uma fuga de escravizados, orquestrada em conjunto com
abolicionistas de Campinas.

Figura 4 - Policiais da Província de São Paulo tentando impedir a fuga de escravizados em Campinas

Fonte: Revista Illustrada. Rio de Janeiro: [s.n], ano 12, n. 468, 1887. Disponível em
http://www.memoriaescravidao.rb.gov.br/revista_ilustrada.php?pg=4
SUSP E O ENFRENTAMENTO DA DESIGUALDADE RACIAL NO BRASIL 39

Na realidade, como veremos na próxima aula, ao longo do século XIX, o racismo


científico foi uma pseudociência que não só legitimou a brutalidade e truculência
contra negros e negras, como ofereceu uma falsa sustentação moral e científica para
que tais ações acontecessem. Além disso, os pressupostos dessa ciência irreal
ordenaram as ações policiais, não só no século XIX, como em boa parte do século
XX.
SUSP E O ENFRENTAMENTO DA DESIGUALDADE RACIAL NO BRASIL 40

AULA 4 - RACISMO CIENTÍFICO E SUA CAPILARIDADE NO BRASIL:


O NASCIMENTO DO MITO DA DEMOCRACIA RACIAL

Raça é um conceito que teve diferentes definições ao longo da história. Conforme


visto na nossa Aula 2, por muito tempo esse conceito esteve atrelado às explicações
do mundo elaboradas pela Igreja Católica, uma das instituições mais poderosas da
humanidade, e que, por séculos, teve papel central no desenvolvimento e na
disseminação do conhecimento em todo o Ocidente. Contudo, a partir do final do
século XVIII, o movimento Iluminista catapultou a ciência como novo sistema de
explicação do mundo. Foi neste contexto que surgiu o racismo científico.

O legado do Iluminismo desempenhou um papel crucial no desenvolvimento do


racismo científico, uma pseudociência que defendia que a humanidade estava dividida
em raças biologicamente definidas, ressaltando, ainda, que essas raças não eram
iguais entre si. Haveria uma escala evolutiva entre a raça humana mais primitiva e
inferior (a negra) até a raça humana mais evoluída e superior (a branca), e a
organização do mundo deveria se dar a partir dessa percepção. Os pressupostos do
racismo científico legitimaram uma série de ações violentas e criminosas da nossa
história, de forma que cito aqui três exemplos: o processo de invasão e colonização
da África, da Ásia e Oceania; experimentos científicos e a criação de campos de
concentração em algumas localidades do continente africano; e também o holocausto
judeu e cigano na Segunda Guerra Mundial.

Não podemos esquecer que foi no contexto do racismo científico que a


eugenia foi desenvolvida. Essa foi uma pseudociência desenvolvida por Francis
Galton, em 1883, que almejava realizar mudanças genéticas entre os seres humanos,
a fim de selecionar apenas os melhores exemplares. As premissas da escola
determinista, especialmente aquelas que promoviam a superioridade de uma raça em
particular, estabeleceram a ideia de que o progresso só seria alcançado em
sociedades puras, sem mistura racial, e que apenas uma raça, a ariana, estava
destinada à perfeição.
SUSP E O ENFRENTAMENTO DA DESIGUALDADE RACIAL NO BRASIL 41

Vale lembrar que o racismo científico foi desenvolvido em países europeus


e nos Estados Unidos por homens brancos. Esse é um ponto fundamental que não
pode ser “naturalizado”, caso queiramos compreender a organização de um sistema
de explicação da humanidade que era falho, não só por partir de uma premissa
equivocada, mas também por não seguir os métodos científicos de análise, já que
havia manipulação dos dados empíricos coletados para que eles apontassem para
conclusões previamente concebidas. Dito de outra forma: boa parte dos cientistas da
época faziam experimentos e manipulavam os resultados para que eles
comprovassem as teses que eles defendiam. E, como bem sabemos, não é assim que
se produz ciência.

Era um sistema quase perfeito: homens brancos (europeus


em sua maioria) desenvolveram uma nova mentalidade, na qual a
liberdade e a igualdade eram entendidas como conceitos que
definiam a experiência humana. Para dar conta da ‘grandiosidade’
do mundo que criavam, eles consideravam suas experiências como
universais, tomando a si próprios como exemplares dessa
humanidade que ansiava progresso” SANTOS, 2022, p.

Ao longo do século XIX, inúmeras ações violentas reafirmaram a desumanização


de determinados grupos humanos, reforçando a ideia de superioridade branca.
Zoológicos humanos e caçadas humanas são exemplos de que o racismo científico
se transformou em prática, e que essa prática foi sinônimo de violência, morte e
extermínio.
SUSP E O ENFRENTAMENTO DA DESIGUALDADE RACIAL NO BRASIL 42

Figura 5: Militar britânico Gordon Robley e sua coleção de cabeças humanas tatuadas e secas (1895)

Fonte: Henry Stevens (1843-1925) (original photo). Requested image credit: Wellcome Images. - Wellcome
Library, London.
Disponível em:
https://pt.wikipedia.org/wiki/Horatio_Gordon_Robley#/media/Ficheiro:Robley_with_mokomokai_collection_2.jpg

Embora o racismo científico tenha sido abertamente combatido a partir das


décadas de 1930, não podemos negar que, por muito tempo, essa pseudociência foi
entendida como verdade absoluta, servindo de sustentação moral do racismo como
um sistema de poder. Por isso, é necessário compreendermos, com mais calma,
alguns pressupostos básicos do racismo científico para entendermos o papel que ele
desempenhou no Brasil e as heranças que ele deixou.

Conforme dito, ao longo do século XIX, esse tipo de racismo teve status de ciência
e, por isso, suas proposições tiveram grande impacto na produção do saber e,
sobretudo, na legitimação do racismo.
SUSP E O ENFRENTAMENTO DA DESIGUALDADE RACIAL NO BRASIL 43

A fim de suplantar os dogmas da Igreja Católica, uma das perguntas


centrais que o racismo científico tentou responder foi a possível origem da
humanidade. Duas correntes de pensamento foram desenvolvidas a fim de
responder essa questão: monogenistas e poligenistas.

Na batalha das ideias, monogenistas e poligenistas se enfrentavam. Enquanto os


primeiros acreditavam que todos os seres humanos tinham a mesma origem e que as
diferenças entre eles eram apenas resultado da proximidade com o Éden (teoria
apoiada pela Igreja), os poligenistas, embasados em estudos científicos recentes (e
falhos), defendiam a existência de diferentes centros de surgimentos e
desenvolvimento para os distintos grupos humanos.

O debate ganhou novo fôlego com a chegada do livro "A origem das espécies",
de Charles Darwin, em 1859. A partir daí, o conceito de raça passou por duas
mudanças significativas. Por um lado, o termo raça saiu do campo da Biologia e se
estendeu para discussões culturais e políticas. Por outro lado, começou a ser
associado à ideia de evolução, sendo distorcido ou "adaptado" pelas correntes
científicas e filosóficas que debatiam a origem do homem (monogenismo e
poligenismo) de acordo com suas próprias conveniências.

Os poligenistas passaram a considerar a espécie humana como diferentes


espécies dentro do gênero humano, e a diversidade cultural passou a ser vista como
diferença entre essas espécies. A humanidade foi dividida e hierarquizada, e quanto
mais distante uma "espécie" estivesse da outra, melhor para todos. No entanto, os
poligenistas se viram confrontados com a questão da miscigenação, que não se
encaixava em sua lógica de análise. Surgiram perguntas, como "o que fazer com
os grupos mestiços?" e "como conciliar a miscigenação com a evolução das
raças humanas?"

A maioria dos estudiosos e cientistas europeus e americanos, como Broca,


Gobineau e Le Bon, consideravam a miscigenação um erro, uma quebra das leis
naturais e uma subversão do sistema, que poderia criar sub-raças inferiores. Como
Lilia M. Schwarcz destaca,
SUSP E O ENFRENTAMENTO DA DESIGUALDADE RACIAL NO BRASIL 44

os mestiços exemplificavam, segundo essa última interpretação, a diferença


fundamental entre as raças e personificavam a ‘degeneração’ que poderia
advir do cruzamento de espécies diversas”. (SCHWARCZ, 1993, p.56)

Para os eugenistas, a miscigenação era vista como algo irracional e em oposição


às "leis naturais". A eugenia atendia aos interesses políticos, tanto da Europa, quanto
dos Estados Unidos. Os europeus acreditavam que eram um grupo humano puro, livre
de miscigenação, mais próximo da perfeição e, por essa razão, responsáveis pela
civilização dos demais grupos. Esse argumento justificou e legitimou a colonização
americana e o "imperialismo europeu", além do conceito do "fardo do homem branco".
Por outro lado, os americanos, mesmo tendo sido colonizados pela Grã-Bretanha,
acreditavam que haviam comprovado seu desenvolvimento através da eugenia,
principalmente por terem evitado a miscigenação entre os brancos dominantes e os
negros escravizados. Por isso, também estavam destinados ao progresso e à
civilização. Como veremos adiante, essa foi uma pedra de toque para as elites
intelectuais do Brasil da época, que diferentemente do que acontecia na Europa,
precisavam examinar e lidar com uma sociedade reconhecidamente miscigenada.

Junto com a condenação da miscigenação humana, a visão poligenista abriu


caminho para o fortalecimento de disciplinas baseadas no discurso científico.
Podemos elencar aqui:

a) Antropologia Criminal - pseudociência que tem, por objeto, o estudo do


criminoso conforme suas características anatômicas e psíquicas e as
repercussões do ambiente social na atividade do delinquente;

b) Antropometria – um ramo da Antropologia que media os corpos humanos


correlacionando essas medidas com comportamentos sociais e raciais;

c) Craniologia – uma subárea da Antropologia do século XIX que estudava o


tamanho dos crânios correlacionando essas medidas com comportamentos
sociais e raciais;
SUSP E O ENFRENTAMENTO DA DESIGUALDADE RACIAL NO BRASIL 45

d) Frenologia – uma teoria do comportamento humano baseada na crença de


que o caráter e as faculdades mentais de um indivíduo se correlacionavam com
o formato da sua cabeça.

Essas falsas ciências ganharam grande relevância e exerceram forte impacto na


sociedade, sobretudo no que diz respeito à segurança pública e policiamento. Nomes
de cientistas, como Andrés Retzius, Paul Broca e Cesare Lombroso ficaram famosos
na época graças à divulgação de seus estudos que estabeleciam relações diretas
entre as características fenotípicas dos sujeitos e suas propensões “naturais” para
determinados comportamentos (inclusive criminosos).

Os sistemas policiais de diferentes partes do Ocidente foram diretamente


impactados por essas pseudociências. Vale dizer que o século XIX foi marcado pela
maior presença e importância dos órgãos de polícia no controle e punição da
sociedade, sobretudo nos centros urbanos - que cresciam significativamente tanto na
Europa, como nas Américas. Estudos feitos na área da Frenologia e Antropologia
Criminal prometiam auxiliar os órgãos de segurança pública, na medida em que eles
informavam “quais tipos humanos” eram “naturalmente” mais propensos ao crime,
desse modo fazendo uso desses estudos, as forças de segurança poderiam se
preparar ou até mesmo antever possíveis crimes. O médico italiano Cesare Lombroso
chegou a afirmar que existiriam rostos típicos de criminosos, e que a Antropologia
Criminal (pseudociência que ele criou) ajudaria a definir esses tipos.

A imagem abaixo mostra alguns dos estudos feitos com a medição de crânios,
cujas conclusões eram utilizadas pela polícia.

Figura 6 – Uma ilustração anatômica da Frenologia

Fonte: “Dictionnaire pittoresque d'histoire naturelle et des phenomenes de la nature" - 1833/1834.


SUSP E O ENFRENTAMENTO DA DESIGUALDADE RACIAL NO BRASIL 46

E o Brasil nisso tudo?

Assim como em outras partes do mundo, o Brasil foi diretamente impactado pelo
racismo científico. Se, por um lado, o pressuposto da inferioridade de negros,
quilombolas e indígenas não era uma novidade no Brasil (graças ao longo passado
de colonização e escravização), o racismo científico oferecia novas explicações, não
só para a manutenção da escravidão de africanos e seus descendentes, mas também
para a manutenção de políticas de extermínio ou de marginalização da população
indígena.

Durante a vigência da escravidão, parte das teorias do racismo científico


formataram a ideia de que a população negra era inferior e biologicamente perigosa.
Exemplo disso está no fato de que os senhores de escravizados, que defendiam a
permanência da escravidão e do tráfico transatlântico de escravizados – apesar das
pressões inglesas e do Movimento Abolicionista –, passaram a dizer que a escravidão
era uma condição que civilizava os africanos e seus descendentes, e que, portanto, a
escravidão era uma espécie de ação humanitária que salvaria os africanos da barbárie
existente em seu continente de origem. E, aqui, vale uma pequena reflexão: o racismo
científico defendia que os africanos eram tão inferiores na escala evolutiva, que
estavam mais próximos aos símios do que aos homens brancos.

Não por acaso, um dos principais xingamentos racistas que vigoram


até os dias de hoje é chamar um homem ou uma mulher negra de macacos,
uma herança direta deste período.

A violência existente em boa parte das ações policiais contra a população negra,
tinha agora argumentos “científicos”. A própria ideia de que todo negro era um
suspeito em potencial ganhou ainda mais força, porque o racismo científico
corroborava com esse pressuposto, defendendo que a condição biológica e
inferiorizada da população negra a enveredava para o caminho do crime. Sendo
assim, o racismo científico deu um “verniz científico” para as atrocidades que já eram
cometidas contra as populações negras e indígenas, além de tomá-las como objetos
de análise científica, como demonstra a imagem abaixo.
SUSP E O ENFRENTAMENTO DA DESIGUALDADE RACIAL NO BRASIL 47

Figura 7 - Galeria de tipos negros fotografados por Alberto Henschel. Pernambuco, 1869

Fonte: “Convénio brasilianafotografica.bn.br/ Instituto Moreira Salles - Leibniz-Institut für


Länderkunde”.
Disponível em: https://www.brmais.net/blog/o-racismo-cientifico

Outra implicação fundamental do racismo científico no Brasil diz respeito à


formação da intelectualidade nacional. Os homens que foram considerados os
grandes pensadores do Brasil da época, e as instituições que eles formaram
compactuaram com a ideia da existência da desigualdade das raças humanas.
Museus, faculdades de Medicina e de Direito, Institutos Históricos e Geográfico
desenvolveram pesquisas e elaboraram explicações sobre o Brasil que tinham o
racismo como ponto de partida.

Um dos exemplos mais contundentes da força que o racismo científico exerceu


na formação da própria ideia de Brasil pode ser observada na escolha que foi feita
para se contar a história do país. Em 1843, o Instituto Histórico e Geográfico no Brasil
(IHGB) promoveu um concurso para definir como a história do Brasil deveria ser
narrada. O vencedor deste concurso foi o médico e naturalista alemão Von Martius,
que viveu alguns anos no Brasil. Ele produziu um documento no qual justificava as
bases a partir das quais a ideia de Brasil deveria ser construída. Segundo ele:
SUSP E O ENFRENTAMENTO DA DESIGUALDADE RACIAL NO BRASIL 48

Qualquer um que se encarregar de escrever a Histó-ria do Brasil,


país que tanto promete, jamais deverá perder de vista quais os elementos
que aí concorreram para o desenvolvimento do homem. São, porém, estes
elementos de natureza muito diversa, tendo para a formação do homem
convergido de um modo particular três raças, a saber: a de cor de cobre
ou americana, a branca ou caucasiana, e enfim a preta ou etiópica. Do
encontro, da mescla, das relações mútuas e mudanças dessas três raças,
formou-se a atual população, cuja história por isso mesmo tem um cunho
muito particular. [...] Pode-se dizer que cada uma das raças humanas
compete, segundo a sua índole inata, segundo as circunstâncias debaixo
das quais ela vive e se desenvolve, um movimento histórico e característico
particular. [...] O sangue português, em um poderoso rio, deverá absorver
os pequenos confluentes das raças Índias e Ethiopica (VON MARTIUS,
1845, pp. 64-65).

Em uma tacada só, Von Martius (esse pensador e cientista europeu) resolvia boa
parte dos problemas da intelectualidade brasileira. Por um lado, ele apresentava o
Brasil como um país multirracial, se distanciando das perspectivas negativas que o
determinismo científico europeu pregava. Por outro, ela reforçava que os portugueses
eram superiores aos outros grupos raciais que compunham a matriz brasileira. Para
Von Martius, o Brasil nascia da confluência de três raças humanas, e isso era
potencialmente positivo. No entanto, Martius compartilhava o pressuposto de que
havia uma hierarquia entre essas raças: como ele mesmo disse, o sangue poderoso
era o português, e era ele que deveria absorver os pequenos confluentes dos negros
e dos indígenas.

Não por acaso, a proposta de Von Martius foi bem recebida e amplamente
propagada em todo Brasil, tendo papel fundamental na criação do Mito da Democracia
Racial, uma teoria equivocada, que defende que o Brasil é um país multirracial sem
racismo. Esse é um ponto que será analisado com mais cuidado no Módulo II deste
SUSP E O ENFRENTAMENTO DA DESIGUALDADE RACIAL NO BRASIL 49

curso. Todavia, é fundamental sublinhar que a ideia que o Brasil seria uma espécie
de paraíso racial, no qual as três raças viveriam de forma harmoniosa e pacífica,
surgiu no século XIX, durante a vigência do racismo científico como quadro teórico
que explicava o mundo. O que ocorreu ao longo do século XX foram atualizações
deste mito. Ter a dimensão histórica da construção do Mito da Democracia Racial é
um indicador crucial na compreensão de como o Brasil, e a própria ideia de brasilidade
foram conformados a partir de pressupostos abertamente racistas numa história que
tem quase 200 anos.

Além disso, engana-se quem imagina que o racismo científico só vigorou no Brasil
durante a o período da escravidão. O que observamos após a Abolição da Escravidão
em 1888 é um Estado Nacional e elites política e intelectual eminentemente brancas,
desenvolvendo novos modelos explicativos e políticas públicas, que seguiam
apostando na desigualdade entre as raças e na supremacia branca. E, como será
tratado na última aula deste módulo, assuntos correspondentes à segurança pública
e ao policiamento seguiram sendo aspectos especialmente reveladores dessa lógica
racista.
SUSP E O ENFRENTAMENTO DA DESIGUALDADE RACIAL NO BRASIL 50

AULA 5 - O NASCIMENTO DA REPÚBLICA EXCLUDENTE

Os mais de 300 anos de escravidão tiveram papel fundamental na maneira como


o racismo se estruturou no Brasil. O intenso volume do tráfico transatlântico -
fundamentado na falsa ideia da inferioridade das sociedades africanas -, permitiu que,
no Brasil, a escravidão fosse uma propriedade privada significativamente acessível,
até mesmo para as pessoas mais pobres. Junto a isso, o fato da escravidão moderna
ser racializada fez com que a experiência negra ficasse colada à condição escrava,
mesmo frente à existência e ao crescimento da população negra livre. Criou-se um
círculo vicioso, no qual negritude e escravidão pareciam espelho um do outro, fazendo
com que a liberdade da população livre de cor fosse marcada pela precariedade,
estando sempre a perigo.

Se não bastasse as justificativas religiosas, espirituais e morais criadas pela Igreja


Católica, ao longo do século XIX, a legitimação da escravidão negra ganhou mais um
grande aliado: o racismo científico. Essa pseudociência determinava a inferioridade
inata dos africanos e seus descendentes, uma premissa que foi muito bem utilizada,
não só para manter a escravidão, mas também para garantir que, mesmo em
liberdade, o negro soubesse qual era o seu lugar.

Apesar dessa estrutura racial e racista, no mesmo século, a histórica luta negra
por liberdade encontrou, no Abolicionismo, um grande aliado pelo fim da escravidão.
É verdade que, muitas vezes, esse aliado comungava da premissa que os negros
estavam num degrau abaixo da escala da evolução humana - temos alguns exemplos
de importantes abolicionistas de pele preta que defendiam a inferioridade da
população negra. No entanto, não há como negar que o Abolicionismo, primeiro
grande movimento social da história, teve papel crucial para que a tenebrosa
instituição finalmente fosse abolida em 13 de maio de 1888.

Mas… o que aconteceu a partir do 14 de maio de 1888?

É profundamente perverso que grande parte da população brasileira


simplesmente não tenha aprendido nada sobre as experiências negras no pós-
abolição. No entanto, é preciso dizer que o silenciamento do negro na história do Brasil
foi uma atitude proposital daqueles que estavam à frente da Primeira República. Na
lógica do racismo estrutural que nos ordenou - e ordena -, é interessante que as vidas
SUSP E O ENFRENTAMENTO DA DESIGUALDADE RACIAL NO BRASIL 51

e trajetórias negras no Brasil estejam circunscritas apenas à escravidão. Esse


apagamento das histórias negras na experiência republicana e cidadã do país é mais
uma faceta do racismo estrutural, que segue ditando quais lugares a população negra
deve estar. E, no caso da história brasileira, esse lugar é a escravidão. O
silenciamento sistemático sobre a população negra no período após a abolição
também máscara um dos grandes projetos levados a cabo pelas elites e pelo Estado
Nacional brasileiro: as exclusões social, econômica e política da população negra e a
tentativa escancarada de embranquecer o país.

Uma das heranças que o Brasil Império deixou para o Brasil República foi a
crença de que uma nação só seria moderna e civilizada caso ela seguisse o
modelo europeu. Não podemos ignorar que a abolição da escravidão em 1888 e
a Proclamação da República em 1889 foram transformações significativas na
história brasileira. A ausência do imperador simbolizou a descentralização do
poder em prol do federalismo. A separação da Igreja também foi notável,
estabelecendo o caráter laico do Estado. Novos grupos sociais, especialmente a
alta cúpula militar, emergiram como detentores de poder político e o exercício da
cidadania não era mais sombreado pela escravidão. Todavia, a transição do
regime Imperial para o republicano não resultou em uma sociedade mais inclusiva
e democrática. Ao contrário disso, nos primeiros 40 anos da experiência
republicana no Brasil, foi estabelecido um Estado que manteve as exclusões
racial, social e política como bases da sua força motriz central.

Conforme mencionado, essa manutenção estava alicerçada no racismo científico,


que continuava pautando boa parte das ações do Estado nacional e das elites
políticas, econômicas e intelectuais do país. O fim da escravidão não significou uma
compreensão igualitária da população negra. Na realidade, uma das questões centrais
que esteve na agenda do Estado republicano era o que fazer com os negros,
indígenas e mestiços do Brasil, já que eles eram entendidos como obstáculos para o
desenvolvimento e a civilização nacional. Foi nesse contexto que a política do
embranquecimento foi desenhada.

É possível pontuar que essa política teve duas grandes ações que estavam
completamente interligadas. A primeira delas foi o desenvolvimento de uma política
massiva de imigração europeia para o Brasil. A segunda foi a criação de uma série de
SUSP E O ENFRENTAMENTO DA DESIGUALDADE RACIAL NO BRASIL 52

dispositivos cujos objetivos eram dificultar que a população negra pudesse se inserir
na sociedade de classes e usufruir dos direitos cidadãos - o que, em tese, estavam
assegurados pela Constituição de 1891. Como ainda veremos, as forças policiais
tiveram função importante nessa segunda ação desenhada pelo Estado Nacional
republicano. Mas comecemos pela política de imigração.

Entre a década de 1890 e 1930, milhares de imigrantes europeus chegaram ao


Brasil para compor a mão de obra de um país que tentava entrar na "era do
progresso". O argumento econômico para justificar o financiamento dessas milhares
de viagens (custeadas pelo Tesouro Nacional) consistia na necessidade de substituir
a mão de obra escrava pelo trabalho livre e assalariado. Nesse período, foi
amplamente divulgado que os egressos do cativeiro se recusariam a trabalhar no
campo, preferindo uma vida distante de qualquer coisa que os lembrasse da
escravidão, e o trabalho era uma delas. Essa justificativa é profundamente
tendenciosa e mascara uma condição que marcou os últimos anos de vigência da
escravidão no Brasil: às vésperas da abolição da escravidão, apenas 15% da
população negra era escravizada. Os outros 85% eram homens e mulheres que, como
não podiam deixar de ser, eram trabalhadores. E mais: grande parte desses
trabalhadores e trabalhadoras tiveram papel central a organização sindical do Brasil,
como no caso dos estivadores negros do Rio de Janeiro.

Vale destacar que, nesse momento, centenas de povos indígenas e quilombolas


já ocupavam terras, no entanto não tiveram o mesmo reconhecimento para a
legalização dessas. Ao contrário, foram e continuam sendo expropriados, violentados
e desumanizados por, historicamente, resistirem, ocuparem e preservarem esses
territórios. Ao mesmo tempo em que o Estado-nação criava mecanismos de
legalização de terras para os imigrantes europeus, criava barreiras impeditivas para o
acesso à terra por parte dos ex-escravizados. Um exemplo que podemos observar é
a Lei de Terras, de 18501, e, posteriormente, o Estatuto de Terras, de 19642. As
normas aqui mencionadas provam que o grande objetivo do Estado era impedir que a

1 Disponível em:
https://legislacao.presidencia.gov.br/atos/?tipo=LIM&numero=601&ano=1850&ato=8350TPR9EeJRVT
7f0,
2 Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1950-1969/D55891.htm
SUSP E O ENFRENTAMENTO DA DESIGUALDADE RACIAL NO BRASIL 53

população negra pudesse ser proprietária de terras, aumentando ainda mais as


desigualdades entre negros e brancos.

Cabe, então, a pergunta: por que não aproveitar esse contingente nacional de
trabalhadores e trabalhadoras brasileiros(as) (negros, em sua maioria)? Para
responder a essa pergunta, precisamos entender que a política de imigração foi
pensada dentro de uma lógica abertamente racista, que, conforme dito, queria tornar
o Brasil um país branco, à imagem e semelhança da Europa Ocidental. Isso fica
evidente já no primeiro parágrafo da Lei de Imigração de 1890:

Art. 1º E' inteiramente livre a entrada, nos portos da República, dos


indivíduos válidos e aptos para o trabalho, que não se acharem
sujeitos á acção criminal do seu paiz, exceptuados os indigenas da
Asia, ou da Africa que sómente mediante autorização do Congresso
Nacional poderão ser admittidos de accordo com as condições que
forem então estipuladas.

A República brasileira não tinha nem experimentado seu primeiro processo


eleitoral, mas já estabelecia que africanos não eram bem-vindos como trabalhadores
livres. O mesmo país que recebeu quase 5 milhões de africanos escravizados se
recusava a receber africanos sob o signo da liberdade.

Essa recusa foi uma das tantas formas por meio das quais o racismo
científico se fez presente na formulação de políticas públicas brasileiras. Vale
dizer que, nesse período, os principais intelectuais brasileiros mantinham uma defesa
fervorosa da inferioridade inata dos africanos. O médico Raimundo Nina Rodrigues
(1862-1905), considerado pai da medicina legal do país, era um dos maiores
expoentes dessa perspectiva, e exerceu forte influência, tanto nos cursos de Medicina
Legal, como de Direito Penal - áreas fortemente marcadas pelos pressupostos do
racismo científico.

Sua crença no primitivismo dos negros era tamanha que Rodrigues chegou a
elaborar um documento chamado As Raças Humanas e a Responsabilidade Penal no
SUSP E O ENFRENTAMENTO DA DESIGUALDADE RACIAL NO BRASIL 54

Brasil (1894), no qual ele propunha alterações no código penal brasileiro com o
argumento de que, pelo fato de os negros terem uma tendência natural para o crime,
eles deveriam ter penas diferenciadas, pois não teriam “culpa” de sua natureza
criminosa. Segundo Nina Rodrigues:

A civilização ariana está representada no Brasil por uma fraca


minoria da raça branca a quem ficou o encargo de defendê-la, não só
contra os atos antissociais – os crimes – dos seus próprios
representantes, como ainda contra os atos antissociais das raças
inferiores, sejam estes verdadeiros crimes no conceito dessas raças,
sejam ao contrário manifestações do conflito, da luta pela existência entre
a civilização superior da raça branca e os esboços de civilização das
raças conquistadas, ou submetidas. (RODRIGUES, 1957, p. 43)

O documento não foi aprovado, no entanto ele guarda aspectos que eram
abertamente comungados dentre as elites brasileiras. De tal modo, eram necessárias
duas medidas distintas: enquanto a imigração europeia apontava para o futuro
(promissor) da nação brasileira, as ações dos órgãos de repressão do país deveriam
garantir que a ordem e o progresso, estampados na bandeira brasileira, se
efetivassem em meio a uma população formada por homens e mulheres de raças
inferiores, passíveis de atos selvagens e criminosos.

Ainda sobre a política de imigração, vale pontuar que ela foi divulgada oficialmente
pelo Estado brasileiro durante o Congresso Mundial das Raças, que aconteceu em
Londres, em 1911. Nessa ocasião, e a mando do presidente Hermes da Fonseca, o
antropólogo João Lacerda apresentou para mundo a política de embranquecimento:

as constantes levas de imigrantes europeus jovens iriam se relacionar


com as mulheres negras e mestiças do país, resultando em crianças com
a pele e os traços cada vez mais brancos. Na idade adulta, essas
crianças mestiças se casariam com outros imigrantes – por isso a
imigração era vista como uma política de média duração -, branqueando
SUSP E O ENFRENTAMENTO DA DESIGUALDADE RACIAL NO BRASIL 55

ainda mais a geração seguinte. Num intervalo de 4 gerações, os estudos


apontavam que o percentual de negros no país chegaria a zero. Além de
abertamente racista, essa política partia do princípio da subalternidade
das mulheres negras e mestiças (ditas apenas como “reprodutoras” para
o alcance do embranquecimento), e da exclusão sistêmica dos homens
negros. (SANTOS, 2022)

Por meio de estudos "antropológicos" e demográficos, Lacerda garantia que a


entrada massiva de imigrantes brancos, europeus e católicos, que estavam mais
afeitos a terem relações sexuais e afetivas com as mulheres negras e indígenas,
extinguiria a população negra no país.

Figura 8 - Infográfico apresentado por Lacerda no Congresso Mundial das Raças, 1911

Fonte: LACERDA, João Baptista de. Informações prestadas ao Ministro da Agricultura Pedro de Toledo. Rio
de Janeiro: Papelaria Macedo, 1912

Além da disseminação nacional da inferioridade negra e da execução, por mais


de 3 décadas, de uma política pública que tinha por objetivo eliminar o negro da
sociedade brasileira, a política de embranquecimento e imigração também acabou por
macular, propositalmente, a imagem do trabalhador negro. Na verdade, essa política
acabou criando uma relação quase que exclusiva entre trabalho livre e assalariado e
trabalhadores negros, dificultando significativamente a entrada desses no mercado de
SUSP E O ENFRENTAMENTO DA DESIGUALDADE RACIAL NO BRASIL 56

trabalho, que era não só disputado, como também racialmente hierarquizado. Essa
dimensão fica especialmente evidente nos anúncios de jornais feitos por muitos
empregadores, que tinham clara preferência em empregar brancos.

Não por acaso, a população negra, especialmente os homens negros, viveram


grandes dificuldades em conseguir emprego. Essa dificuldade acabava deixando
poucas opções para esses homens, que, muitas vezes, viviam de “bicos” trabalhos
sazonais intercalados por tempo ocioso, pobreza, alcoolismo e, em alguns casos,
loucura.

Embora saibamos que questões, como loucura e alcoolismo, têm razões sociais
muito mais determinantes do que possíveis predisposições genéticas, não era isso
que era defendido nos primeiros anos da nossa república. Sendo assim, os órgãos de
repressão do Estado brasileiro, ordenados pela perspectiva racista do Estado,
respondiam com truculência e violência àquilo que eles entendiam como distúrbio da
ordem. Vale lembrar que o Código Criminal vigente na época, tipifica a vadiagem como
crime. E quais eram os homens mais propensos a serem vadios, por terem maiores
dificuldades para conseguir empregos? Os homens negros. Não é coincidência que a
maior parte das prisões por vadiagem vitimaram homens negros, aumentando, assim,
um circuito fechado:

negros eram inferiores > por isso tinham maior dificuldade em conseguir
empregos > muitos ficavam na ociosidade > muitos eram presos por vadiagem
> a prisão por vadiagem corroborava sua inferioridade e propensão a
comportamentos que poderiam levar a execução de crimes.

Era um fechamento que corroborava com uma máxima existente desde o período
da escravidão: todo negro é um criminoso em potencial e por isso deve ser
tratado como suspeito. E não era só a polícia que prendia um número cada vez
maior de homens (e também mulheres) negros. Conforme dito, alcoolismo e loucura
eram comportamentos que foram relacionados diretamente à inferioridade inata
da população negra. De tal modo, o começo do século XX foi marcado pelo
encarceramento compulsório da população negra em instituições asilares, como os
hospícios e as colônias. Ainda que essa tenha sido uma prática mais frequente nas
primeiras décadas da República, como uma das marcas da implementação de
SUSP E O ENFRENTAMENTO DA DESIGUALDADE RACIAL NO BRASIL 57

políticas higienistas e sanitárias, a ideia falaciosa que negros tinham mais propensão
à loucura atravessou todo o século XX, como bem demonstra o livro "O Holocausto
brasileiro", de Daniela Arbex.

No entanto, não eram só os negros considerados vadios que estiveram na mira


frequente da polícia. As expressões culturais de matriz africana eram entendidas
como práticas que perturbavam a ordem, colocando a segurança em perigo, além de
serem vistas como expressões de selvageria e barbárie. Nesse sentido, espelhando
as crenças e práticas racistas que organizavam o Estado Nacional brasileiro, as
instituições policiais entendiam que a capoeira, os terreiros de Candomblé e de
Umbanda, as rodas de samba e as práticas de cura de matriz africana deveriam ser
combatidas, pois não se enquadraram nos padrões civilizatórios almejados.

Não restam dúvidas de que a população negra criou uma série de estratégias para
lutar contra a agenda racista implantada pela Primeira República. A história do Brasil
também é fruto dessas lutas, e nós somos herdeiros delas. Mas a ordenação
racista do país conseguiu manter algumas máximas, e aqui cito duas: a primeira delas
é a suspeição generalizada contra a população negra (quer pelos órgãos policiais,
quer pelo sistema de Justiça), que segue sendo vista como potencialmente criminosa;
a segunda é a desumanização sistemática e naturalizada da população negra
que, como apontado no início deste módulo, faz com que pessoas negras sejam as
maiores vítimas dos confrontos policiais, independentemente do lado em que elas
estejam. Essa manutenção se fez sentir nas estratégias de repressão e tortura
desenvolvidas durante a Ditadura Militar, no encarceramento em massa que vivemos
hoje, no assassinato de jovens negros a cada 23 minutos e nas ações policiais mal
planejadas que, frequentemente, resultam na morte de civis (negros em sua maioria).

Reconhecer essa manutenção e entender que ela está atrelada a um sistema de


poder cuja história é longa e violenta, é o primeiro passo para a responsabilização e
a execução de mudanças efetivas. Se a polícia e demais órgãos de segurança pública
foram ensinados a enxergarem e tratarem as populações negra e indígena de maneira
desumanizada e potencialmente criminosa, essa mesma polícia e esses mesmos
órgãos podem e devem ser treinados a reconhecer e respeitar a humanidade e
cidadania desses grupos, por meio do combate das desigualdades raciais que ainda
nos ordenam.
SUSP E O ENFRENTAMENTO DA DESIGUALDADE RACIAL NO BRASIL 58

Saiba mais!

Nos últimos anos, houve uma profunda e importante revisitação crítica


da história brasileira, trazendo a questão racial para o centro do debate. Além
de uma importante produção historiográfica (parte dela consta na bibliografia
do curso), indico, aqui, outras ferramentas midiáticas que nos ajudam a
entender mais e melhor a nossa história:

Podcast “Projeto Querino” (Rádio Novelo)


Link: https://projetoquerino.com.br/

O que é racismo estrutural? Silvio Almeida


Link: https://www.youtube.com/watch?v=PD4Ew5DIGrU

Documentário “Menino 23” (Infâncias Perdidas)


Link https://www.youtube.com/watch?v=7wHNxOohoPA&t=10s

Documentário “Atlântico Negro: na rota dos Orixás”


Link: https://www.youtube.com/watch?v=7m0Ifj0YfAQ

Projeto Passados-Presentes (LABHOI-UFF)


Link:http://passadospresentes.com.br/

Projeto Salvador Escravista


Link: https://www.salvadorescravista.com/

Museu Afro-Brasil Emanoel Araujo


Link:http://www.museuafrobrasil.org.br/o-museu/apresentacao
SUSP E O ENFRENTAMENTO DA DESIGUALDADE RACIAL NO BRASIL 59

FINALIZANDO

Neste módulo, você aprendeu:

 o conceito de racismo estrutural e de pacto racial, que ordenou a


modernidade, incluindo o Brasil;

 o peso que a escravidão teve na história do Brasil e como ela foi uma
instituição que estruturou nossa história por mais de 300 anos;

 os pressupostos do racismo científico e como eles tiveram papel fundamental


na construção da ideia de brasilidade;

 como a Primeira República manteve uma lógica racista que marginalizou e


criminalizou compulsoriamente a população negra.
SUSP E O ENFRENTAMENTO DA DESIGUALDADE RACIAL NO BRASIL 60

MÓDULO II – LETRAMENTO E SENSIBILIZAÇÃO ANTIRRACISTA

APRESENTAÇÃO DO MÓDULO

Cara (o) aluna (o),

Nesta parte, trabalharemos alguns conceitos que permeiam as relações


raciais no Brasil e buscaremos fazer um chamado para uma prática antirracista a
partir do entendimento das tecnologias e processos nos quais o racismo impede o
bem viver da população negra.

Além disso, refletiremos sobre a segurança pública como um direito para a


população negra, e fazer, dos agentes, um instrumento garantidor dele.

OBJETIVOS DO MÓDULO

Este módulo tem, por objetivo:

 evidenciar o fenômeno do racismo nas relações sociais, nos discursos cotidianos


e nas práticas institucionais.

ESTRUTURA DO MÓDULO

Este módulo compreende as seguintes aulas:

Aula 1 - O mito da democracia racial e suas implicações contemporâneas;

Aula 2 - Estigma, estereótipo e violência racial;

Aula 3 - Branquitude, branqueamento e as hierarquias de humanidade;

Aula 4 - O antirracismo como prática.


SUSP E O ENFRENTAMENTO DA DESIGUALDADE RACIAL NO BRASIL 61

AULA 1 – O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E SUAS IMPLICAÇÕES


CONTEMPORÂNEAS

O Brasil é frequentemente exaltado por sua suposta harmonia racial, sendo


aclamado como um país em que a diversidade étnica convive pacificamente. Esse
mito da "democracia racial" tem sido amplamente debatido e criticado por diversos
autores, que apontam para a persistência do racismo estrutural e suas consequências
no presente. Nesta parte do curso, exploraremos a origem desse mito, os principais
autores que o questionaram e as implicações contemporâneas do racismo no Brasil.

Palavra do Especialista
O mito da democracia racial no Brasil tem suas raízes no século XIX, quando
intelectuais, como Gilberto Freyre, desenvolveram a ideia de que a convivência
amigável entre raças foi possibilitada pela miscigenação. Freyre, em sua obra
"Casa-Grande & Senzala", descreveu a relação paternalista entre senhores e
escravizados como uma base de convivência harmônica, ignorando a
brutalidade e desigualdades subjacentes.

Entretanto, a origem do mito da democracia racial no Brasil não se limita


apenas às obras de Gilberto Freyre. Outros autores também contribuíram para
a formação dessa narrativa, que enaltecia a convivência supostamente pacífica
entre diferentes grupos étnicos. Vamos, agora, explorar alguns desses autores
e suas perspectivas.

Antes de Gilberto Freyre, Silvio Romero foi um dos primeiros intelectuais a


explorar a ideia de harmonia racial no Brasil. Em sua obra "História da Literatura
Brasileira", de 1888, ele enfatizou a mestiçagem como uma característica única da
sociedade brasileira, sugerindo que isso contribuía para a ausência de conflitos
raciais. No início do século XX, Oliveira Vianna, em sua obra "Populações Meridionais
do Brasil", de 1920, também abordou a suposta pacificação racial no Brasil. Ele
argumentou que a miscigenação resultava em uma população homogênea,
SUSP E O ENFRENTAMENTO DA DESIGUALDADE RACIAL NO BRASIL 62

minimizando as tensões raciais. No entanto, sua perspectiva também continha traços


de elitismo, ao considerar a "branqueza" como um indicador de progresso.

Aqui, reside uma das principais questões do mito da democracia racial e suas
implicações, pois, ao se defender, de forma errônea, que a miscigenação é fruto de
uma convivência harmoniosa entre as raças, ignora-se a escravização, seus efeitos e
as dificuldades encontradas pela população negra no pós-escravização. Além disso,
a miscigenação é enxergada como uma forma de embranquecimento da população,
já que seria, também, uma maneira de apagar os traços negros através das gerações.

Esses mecanismos de produção de desigualdades raciais foram construídos de


tal forma que asseguraram, aos brancos, as posições mais altas na hierarquia social,
sem que isso fosse encarado como privilégio de raça. Isso porque a crença da
democracia racial isenta a sociedade brasileira do preconceito e permite que o ideal
de liberdade e igualdade de oportunidades seja apregoado como realidade. Desse
modo, a ideologia racial oficial produz um senso de alívio entre os brancos, que podem
se isentar de qualquer responsabilidade pelos problemas sociais identificados como
dos negros.

Compreendemos, então, que o contexto multirracial brasileiro propicia mediações


bastante diferenciadas para a constituição de sujeitos e, portanto, para a subjetividade
de brancos e não brancos. A marca dessa diferença e dessa desigualdade perpassa
toda socialização desses indivíduos, seja em casa, na escola e na rua, por exemplo.
Além disso, em todos os espaços públicos e na justiça criminal observa-se a
supervalorização da branquitude e a preferência do branco em relação ao não branco.

Ao longo do século XX, diversos autores refutaram o mito da democracia racial,


trazendo à tona a realidade das desigualdades raciais no Brasil. Destacam-se autores,
como Florestan Fernandes e Abdias do Nascimento, que ressaltaram a persistência
do racismo e suas ramificações nas estruturas social e econômica do país. Fernandes,
em "A integração do negro na sociedade de classes", argumentou que as barreiras
econômicas e educacionais perpetuavam a marginalização de pessoas negras.

O mito da democracia racial no Brasil, uma construção que, durante muito tempo,
obscureceu as profundas desigualdades raciais, está sendo cada vez mais desafiado
SUSP E O ENFRENTAMENTO DA DESIGUALDADE RACIAL NO BRASIL 63

por autores e movimentos sociais. As implicações contemporâneas do racismo


continuam a afetar a vida dos afrodescendentes, destacando a necessidade de ações
efetivas para promover a igualdade racial. Somente através de uma análise crítica
do passado e do compromisso com mudanças reais será possível superar as
barreiras que impedem uma sociedade verdadeiramente justa e inclusiva para
todos. Portanto, o que se busca não é apenas a igualdade, e sim a equidade.

As vozes críticas dos autores contemporâneos têm desafiado, vigorosamente, o


mito da democracia racial no Brasil. Suas análises, ancoradas em dados históricos
e sociológicos, têm revelado a persistência do racismo estrutural e as
desigualdades que afetam a população negra. Ao questionar a narrativa de
harmonia racial, esses autores têm contribuído para uma compreensão mais profunda
das questões raciais no país e para a promoção de ações que buscam a justiça social
e a igualdade para todos.

O "mito da democracia racial", a título de reforço, é um conceito que se refere à


ideia falsa de que a sociedade é igualitária e livre de discriminação racial,
especialmente em relação à população negra. Esse mito, que é historicamente
difundido, tem profundas implicações cotidianas para encobrir as diversas
desigualdades e injustiças raciais que persistem na sociedade. Os efeitos práticos
dele, para a população negra, podem ser bastante prejudiciais e abrangentes,
afetando diversos aspectos de suas vidas. Cito estes efeitos:

Invisibilidade das desigualdades:

o mito da democracia racial contribui para a invisibilização das desigualdades


raciais existentes. Ao perpetuar a ideia de que não há discriminação racial, a
sociedade pode ignorar ou minimizar os problemas enfrentados pela população
negra, como acesso limitado à educação de qualidade, empregos dignos, serviços
de saúde adequados e oportunidades econômicas;

Negligência institucional:

a crença no mito da democracia racial pode levar a uma negligência por parte das
instituições governamentais e privadas em abordar questões específicas que
afetam a população negra. A falta de políticas públicas eficazes para combater a
SUSP E O ENFRENTAMENTO DA DESIGUALDADE RACIAL NO BRASIL 64

discriminação racial e promover a igualdade pode perpetuar a exclusão social e


econômica;

Naturalização da discriminação:

o mito pode levar a uma aceitação passiva da discriminação racial. As pessoas


podem acreditar que, uma vez que a sociedade é "racialmente democrática",
quaisquer disparidades são resultado das escolhas individuais ou capacidades,
ignorando os obstáculos estruturais e sistêmicos que contribuem para essas
disparidades;

Estigmatização e preconceito:

a crença no mito da democracia racial pode, também, reforçar estereótipos e


preconceitos. As pessoas podem acreditar que a população negra está em uma
posição de igualdade, o que pode aumentar a culpabilização por situações de
pobreza, violência ou falta de oportunidades, sem considerar os fatores históricos
e sociais que contribuíram para essas condições;

Sub-representação e falta de voz:

a ideia de que a igualdade racial já foi alcançada pode desencorajar a participação


da população negra em processos políticos e de representação. Isso resulta em
sub-representação nos governos, instituições e mídia, o que limita a influência e a
capacidade de abordar as questões que afetam diretamente essa população;

Impacto psicológico:

o mito da democracia racial pode causar um impacto psicológico negativo na


população negra. Ao enfrentar constantemente a negação de suas experiências,
de sua estética, de sua história e lutas. As pessoas podem desenvolver sentimentos
de inadequação, raiva, inferioridade e alienação, além de enfrentar questões de
identidade e autoestima, ao passo que a população branca continua mantendo
SUSP E O ENFRENTAMENTO DA DESIGUALDADE RACIAL NO BRASIL 65

seus privilégios: aceitação com ser universal, status de poder e de dominação que,
em muitos casos, são transformados em opressões contra as pessoas negras;

perpetuação do ciclo de desigualdade:

a sociedade, ao não reconhecer a existência de desigualdades raciais e não tomar


medidas para combatê-las, faz com que o mito da democracia racial contribua para
a perpetuação do ciclo de desigualdade ao longo das gerações. A falta de
oportunidades e acesso a recursos impede o progresso social e econômico da
população negra.

Em resumo, o mito da democracia racial tem efeitos práticos profundamente


prejudiciais para a população negra, perpetuando a discriminação, as desigualdades e as
injustiças. Reconhecer a existência desses problemas e trabalhar ativamente para
superá-los é fundamental para alcançar uma sociedade mais justa e igualitária.

Enfrentar as implicações contemporâneas do racismo exige uma abordagem


multidimensional. Além de políticas afirmativas, é necessário um esforço contínuo para
educar a sociedade sobre as raízes históricas do racismo e sua influência nas estruturas
atuais. Iniciativas de conscientização e diálogo intercultural podem ajudar a desconstruir
preconceitos arraigados.
SUSP E O ENFRENTAMENTO DA DESIGUALDADE RACIAL NO BRASIL 66

AULA 2 – ESTIGMA, ESTEREÓTIPO E VIOLÊNCIA RACIAL

A ideia de racializar os estudos que pretendem analisar a segurança pública e o


direito penal não é nova, há um vasto lastro bibliográfico e diversas correntes de
pensamento que se debruçaram nesse tipo de análise. Dentre esses, destacam-se os
estudos conhecidos como “Teoria Crítica da Raça”, uma doutrina jurídica que se
desenvolveu gradualmente a partir dos anos de 1970, nos Estados Unidos da
América, em resposta à morosidade da jurisprudência do país em produzir reformas
raciais significativas por meio das decisões em litígios acerca de direitos civis.

A proposta central da Teoria, segundo HARRIS (2002), é a compreensão da


relação de constituição recíproca entre raça e direito, bem como considerar a
possibilidade de que este último “produz, constrói e constitui o que se entende por
raça, não só em domínios em que a raça é explicitamente articulada, mas também
naqueles nos quais a questão racial é silenciada ou desconhecida”.

A contribuição da Sociologia nessa análise se dá principalmente na compreensão


da ideia de que o racismo não é um comportamento considerado anormal, mas é
experienciado diariamente na sociedade, nas instituições e nas estruturas de poder
dessa. Nesse sentido, destaca-se a análise do sistema de supremacia branca
(white-over-color ascendancy) que, de acordo com PIRES E SILVA:

“Funciona como uma espécie de sistema de convergência de interesses, fazendo


com que o racismo, de um lado, implique a subalternização e destituição material
e simbólica dos bens sociais que geram respeito e estima social aos negros – ciclo
de desvantagens – e, de outro, coloque os brancos imersos em um sistema de
privilégios assumido como natural, como norma.” (PIRES e SILVA, p. 66)

Vários estudos se debruçaram na aplicação desigual de regras e procedimentos


jurídicos para diferentes grupos sociais, com maior ou menor grau de enfoque racial.
Especificamente no campo da justiça criminal, destacam-se os estudos pioneiros de
Coelho (1987), Ribeiro (1995), Adamo (1983), Fausto (1984), Adorno (1996) e Kant
de Lima (2004). As conclusões desses apontaram que, em relação à seletividade
SUSP E O ENFRENTAMENTO DA DESIGUALDADE RACIAL NO BRASIL 67

racial, nos períodos analisados, aos negros eram aplicadas penas mais severas em
comparação aos brancos, e que a estrutura judicial brasileira privilegiava esse tipo de
conduta.

Um exemplo desse tipo de tratamento está nos estudos de VARGAS (1999), que
verificou que, em crimes de estupro, na fase judicial do oferecimento da denúncia, a
porcentagem de brancos e negros acusados é próxima, entretanto, na fase da
sentença, há mais condenação para pretos e pardos. Publicada nos anos 2000, uma
pesquisa da Fundação Seade (Sistema Estadual de Análise de Dados) analisou todos
os registros criminais relativos aos crimes de roubos, no estado de São Paulo, entre
1991 e 1998. A constatação foi que réus negros são, proporcionalmente, mais
condenados que réus brancos e permanecem, em média, mais tempo presos durante
o processo judicial (LIMA; TEIXEIRA; SINHORETTO, 2003).

A análise proposta neste módulo do curso calca-se a compreender o racismo


como um elemento sistêmico, como uma secreção histórica. É importante ser
ressaltado que ele, portanto, não é unicamente um problema de relações
interpessoais, nem de valores morais ou religiosos, e muito menos de simples
preconceitos, “mas um sistema coerente de dominação, com uma enorme
longevidade que lhe permite ser elástico, totalmente transversal e abrangente”
(MOORE, 2007). O entendimento do racismo como um sistema nos permite analisar
as desigualdades raciais e a seletividade punitiva a partir da compreensão que há
uma apropriação monopolística das instituições, dos recursos e da própria liberdade
pelo fenótipo branco em detrimento do não branco, em especial o preto.

O racismo é um elemento estruturante na constituição do Brasil, com amplos


efeitos no desenvolvimento do país, e é objeto de constantes atualizações. Qual o
impacto do racismo na forma de se fazer, pensar e elaborar políticas de
segurança? Para debater a atuação policial e das forças de segurança como um todo,
é necessário compreender que toda instituição está situada em uma determinada
cultura, com determinados valores e práticas. As polícias não estão apartadas da
sociedade na qual estão inseridas, entretanto as instituições podem ser, também,
indutoras de novas formas de se pensar e agir em busca de uma sociedade melhor.
SUSP E O ENFRENTAMENTO DA DESIGUALDADE RACIAL NO BRASIL 68

É por isso que refletir sobre as desigualdades raciais é um caminho importante para
uma prática policial mais justa, efetiva e transformadora.

Nesse caminho, é importante afirmar que, quando estamos falando de raça, não
estamos o fazendo do ponto de vista biológico. A ciência, através dos estudos sobre
genética, já provou que não há diferenças significativas entre pessoas negras,
brancas e indígenas que justifiquem algum nível de diferenciação genética. Se não há
essa diferença biológica, o que faz com que, do ponto de vista histórico e social, as
diferentes raças estejam em posições sociais desiguais? A população branca –
embora também existam brancos pobres – permanece em vantagem em todos os
indicadores sociais, e a população negra, em desvantagem econômica, de
expectativa de vida, de acesso à saúde e aos serviços públicos.

Há, portanto, uma estrutura social baseada na cor da pele que desiguala e
estigmatiza cidadãos que não estão no topo da hierarquia, que não são brancos.
O que está colocado do ponto de vista da criação de estigma, a partir do fenótipo,
é uma hierarquização de humanidades. “Por definição, é claro, acreditamos que
alguém com um estigma não seja completamente humano. Nós acreditamos
nisso. Com base nisso, fazemos vários tipos de discriminações, através das
quais efetivamente, e muitas vezes sem pensar, reduzimos as chances de vida
do estigmatizado”. (GOFFMAN, 1981)

Entretanto, quando fazemos a análise do campo da segurança pública brasileira,


é possível observar que, historicamente, o marcador raça foi estrategicamente
invisibilizado na construção das políticas de segurança – mesmo com o índice de
morte da população negra sendo muito superior ao de pessoas brancas. Acreditou-
se, em boa parte do século XX, que o Brasil vivia uma democracia racial, em que as
diferentes raças conviviam pacificamente, de forma harmônica, e que, com o passar
do tempo, já não seria mais possível enxergar qualquer tipo de diferenciação entre
elas - seríamos uma nação de mestiços. Essa tese, sustentada por importantes
intelectuais, não envelheceu bem. Todos os dados demonstram que, por um lado, os
de pele mais escura experimentam a pior parte dos indicadores sociais; por outro, os
brancos estão em posições de maior estima social, tem mais acesso a direitos básicos
e possuem a maior renda em relação aos negros.
SUSP E O ENFRENTAMENTO DA DESIGUALDADE RACIAL NO BRASIL 69

Haver diversidade e diferença não era para ser algo problemático, mas se torna
quando transformamos atributos de diferença em atributos de desigualdade: esse é o
ponto sobre como raça incide na produção de hierarquias, porque se transforma em
desigualdade o que deveria ser apenas diferença.

As instituições de Segurança Pública têm uma oportunidade e uma


responsabilidade de – ao ser garantidora da lei – também garantir que ela funcione e
seja aplicada de forma igualitária, apesar das diferenças. O fazer policial deve, ao
texto da lei, estar ancorado em garantir que as diferenças não se transformem em
desigualdades de tratamento e da própria aplicação penal.

Quando é debatida a ideia de que o racismo é estrutural, traz-se consigo a


compreensão da ideia de que ele não é um comportamento considerado anormal,
mas é experienciado diariamente na sociedade, nas instituições e nas estruturas de
poder dessa. Considerar o racismo como algo aberrante ou pertencente a um
comportamento individualizado é cair em uma armadilha que consiste em confiná-lo
a uma questão étnica-moral ou a um problema de relações interpessoais. Ocorre justo
o contrário: ele é um fenômeno permanente da sociedade, na medida em que cria e
recria, nos âmbitos estrutural, simbólico e comportamental, todas as condições para
sua perenidade.

Portanto, não se trata nem de uma aberração, nem de um acidente. O racismo


funciona racionalmente em total benefício de alguns e em absoluto detrimento de
outros. E, nessa trama, não há lugar para as demandas de compartilhamento
equitativo dos recursos. Simplesmente, tais exigências se opõem ao próprio modo de
funcionamento do racismo já convertido em sistema.

Nesse sentido, o perfilamento racial, que é a abordagem motivada pela cor da


pele, é uma estratégia arbitrária, desvantajosa, intencional e estratégica, portanto, se
estratégica, serve para benefício de outrem. Tal perfilamento é, por consequência,
uma expressão violenta de supremacia racial branca e uma consequência do racismo
estrutural. É um sistema que tem, em seu cerne, o favorecimento do grupo social
identificado como branco. É importante destacar que o branco não é apenas o
favorecido dessa estrutura racializada, mas também é produtor ativo dela, já que, em
SUSP E O ENFRENTAMENTO DA DESIGUALDADE RACIAL NO BRASIL 70

sua esmagadora maioria, os gestores tomadores de decisão são auto identificados,


também, como brancos.

Esses mecanismos de produção de desigualdades raciais foram construídos


de tal forma que asseguraram, aos brancos, as posições mais altas na hierarquia
social, sem que isso fosse encarado como privilégio de raça.

Esse curso apresenta uma grande inovação aos estudos da Sociologia do Direito
e na compreensão das questões raciais que balizam nosso sistema jurídico; pensar
uma estrutura que é racialmente desigual, a partir da branquitude, inverte uma lógica
acadêmica histórica que trata das questões raciais a partir da normatividade branca e
do estranhamento com outros grupos sociais. Ademais, os estudos pregressos nesse
tema consideram a “questão racial” como sendo um problema dos negros, isentando
o branco da problemática. O Estado não pode ficar em silêncio frente a tudo isso. É
preciso buscar respostas para combater suas próprias armadilhas, entre elas a da
criação e do fortalecimento dos privilégios brancos. Assim sendo, criar, efetivar e
fortalecer políticas públicas voltadas para equidade racial, apresenta-se como um
caminho viável.

A desumanização e os estereótipos negativos associados à população negra no


Brasil são questões profundamente enraizadas que refletem a história e a estrutura
social do país. Ao longo dos séculos, a construção de uma sociedade racialmente
hierarquizada gerou uma série de percepções distorcidas e discriminatórias em
relação aos indivíduos de ascendência africana. Buscaremos, aqui, explorar a
complexidade desses problemas, analisando suas origens históricas, os impactos
contemporâneos e as ações necessárias para promover a igualdade e o respeito.

As raízes dos estereótipos negativos e da desumanização no Brasil remontam ao


período colonial, quando o sistema escravista foi estabelecido. Durante séculos,
africanos e seus descendentes foram submetidos a condições desumanas,
explorados como propriedade e privados de seus direitos mais básicos. A escravidão
não apenas perpetuou a ideia de inferioridade racial, mas também foi fundamental
para a construção de narrativas de estereótipos negativos. A justificativa ideológica
para a exploração baseava-se na crença de que os africanos eram culturalmente
primitivos e biologicamente subdesenvolvidos.
SUSP E O ENFRENTAMENTO DA DESIGUALDADE RACIAL NO BRASIL 71

Os estereótipos negativos enraizados durante a escravidão continuaram a


influenciar a forma como a população negra é percebida até os dias atuais. Mídia,
literatura e outras formas de expressão cultural desempenharam um papel crucial na
disseminação dessas representações distorcidas. A associação de negros à
criminalidade, preguiça e falta de inteligência criou um ambiente em que indivíduos de
ascendência africana são frequentemente marginalizados e subestimados. Esses
estereótipos também se refletem nas práticas de contratação, de acesso à educação
e de oportunidades econômicas, perpetuando ciclos de desigualdade.

Os impactos dessas problemáticas são profundamente prejudiciais para a


população negra. A desumanização pode ser observada nas interações cotidianas,
em que a população negra é, muitas vezes, tratada com desprezo, hostilidade e
violência. Isso é evidenciado pelo uso excessivo de força policial, encarceramento em
massa e altas taxas de homicídios entre negros. Ela também contribui para a
perpetuação das desigualdades sociais e econômicas, com consequências diretas
nas oportunidades educacionais e no acesso a empregos dignos, moradia adequada,
entre outros. Um conjunto de medidas com ênfase em mitigar esses propósitos levará
o país a um maior desenvolvimento socioeconômico.

Para superar a desumanização e os estereótipos negativos, é essencial adotar


uma abordagem abrangente e multidimensional. A educação desempenha um papel
fundamental na desconstrução desses preconceitos enraizados. Introduzir currículos
escolares que abordem a história afro-brasileira, de maneira honesta e
contextualizada, pode promover uma compreensão mais profunda e empática da
experiência negra. Além disso, é vital que a mídia desempenhe um papel mais
responsável na representação da população negra, evitando a perpetuação de
estereótipos prejudiciais para a população negra.

Humanizar as representações da população negra significa pensá-la em diversos


contextos: familiares, territoriais, escolares, políticos e regionais, e buscar respostas
adequadas para cada um deles. Além disso, políticas públicas devem ser
implementadas para combater o racismo estrutural. Isso inclui a promoção de
igualdade de oportunidades no mercado de trabalho, a implementação de medidas de
ação afirmativa e o investimento em programas de capacitação econômica e
SUSP E O ENFRENTAMENTO DA DESIGUALDADE RACIAL NO BRASIL 72

educacional para a população negra. O fortalecimento das leis de combate à


discriminação racial e o treinamento das forças policiais para prevenir o uso excessivo
de força também são passos cruciais. Portanto, as forças de segurança são parte
fundamental para contribuir em um processo de superação do racismo e constituição
de humanidade plena para a população negra.
SUSP E O ENFRENTAMENTO DA DESIGUALDADE RACIAL NO BRASIL 73

AULA 3 – BRANQUITUDE, BRANQUEAMENTO E AS HIERARQUIAS


DE HUMANIDADE

A discussão sobre a branquitude e a desumanização da população negra no Brasil


revela as complexas dinâmicas raciais que permeiam a sociedade brasileira. A
branquitude, termo que se refere ao privilégio e à perspectiva de quem é branco,
está intimamente ligada à forma como a população negra é tratada e representada.
Essa relação entre a branquitude e a desumanização dos negros tem suas raízes na
história do país, marcada pela escravidão e pela construção de uma hierarquia racial.

A branquitude se manifesta nas relações sociais, na cultura e nas estruturas


institucionais, contribuindo para a perpetuação de estereótipos negativos e a
marginalização da população negra. A ideia de superioridade racial branca foi
historicamente construída, e isso influenciou na maneira como os negros foram, e
ainda são, vistos. A desumanização, por sua vez, é uma consequência dessa
percepção distorcida, na qual os negros são reduzidos a estereótipos que negam sua
humanidade plena.

Essa desumanização é observada em diversos contextos, desde em veículos


midiáticos até a criminalização dos negros em determinados espaços. A mídia, por
exemplo, muitas vezes, retrata os negros de maneira estigmatizada, associando-os,
frequentemente, a crimes e a comportamentos negativos. Isso reforça a visão
equivocada de que a população negra é inerentemente perigosa ou problemática,
contribuindo para a perpetuação de atitudes preconceituosas. Além disso, esse
problema se reflete na violência policial e nas altas taxas de encarceramento, que
afetam, desproporcionalmente, os negros. O preconceito racial, muitas vezes, leva a
abordagens mais agressivas por parte das autoridades, resultando em tratamentos
desumanos e injustos. A falta de acesso a oportunidades educacionais e econômicas
também é uma consequência direta da desumanização, já que a população negra
enfrenta barreiras sistêmicas que limitam suas perspectivas de crescimento.

Para combater, tanto a desumanização, quanto a branquitude no Brasil, é


essencial promover a conscientização sobre a história do racismo e suas ramificações
atuais. A educação antirracista, prevista pelas leis nº 10.639/03 e 11.645/08, que
SUSP E O ENFRENTAMENTO DA DESIGUALDADE RACIAL NO BRASIL 74

alteraram a lei nº 9394/96, institui o ensino das culturas africana, afro-brasileira e


indígena nos currículos da Educação Básica no Brasil. Essas políticas podem ajudar
a desconstruir estereótipos prejudiciais e a criar uma compreensão mais profunda da
experiência negra e indígena. Além disso, políticas públicas voltadas para a igualdade
racial, como ações afirmativas e programas de empoderamento econômico, são
fundamentais para enfrentar as desigualdades estruturais.

Outro aspecto importante a ser observado, no Brasil, são as cerca de 6 mil


comunidades quilombolas, espalhadas em todo território nacional, que lutam para
garantir o direito aos seus territórios, preservando, a partir de suas culturas, os bens
materiais e imateriais. Uma ação importante, que terá, como consequência, a melhoria
nas condições de vida desses grupos, é o Estado assegurar o que diz a Constituição
Federal de 1988: o artigo. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias
afirma que “Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam
ocupando suas terras, é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado
emitir-lhes os títulos respectivos”. Nesse sentido, é dever do Estado garantir a
posse legal das terras dos quilombolas, fazendo com que esses possam se
desenvolver e acessem uma educação que valorize e fortaleça as identidades, assim
reduzindo as desigualdades frente aos demais grupos.

Em resumo, a interligação entre a branquitude e a desumanização da população


negra, no Brasil, reflete uma história de discriminação e hierarquia racial. A superação
dessas questões exige um esforço coletivo para reconhecer e desconstruir os
preconceitos enraizados na sociedade, promovendo uma abordagem mais
inclusiva e respeitosa para com todas as pessoas, independentemente de sua
origem étnica.

O processo de desumanização a que os negros são submetidos há alguns séculos


nessas terras é irmão siamês de toda violência descomunal que lhe é perpetrada.
“Ora, se há um modelo ideal de humanidade, que é uma contraposição a quem eu
sou, logo minha vida é indigna e o meu corpo indesejado.”. Aqui, mora o casamento
entre as percepções simbólicas criadas pelos brancos a partir do modelo único de
humanidade e a materialidade brutal do racismo diário. Nesse sentido, existe uma
simbiose entre aquilo que está na ordem ideológica do sistema de dominação racial e
SUSP E O ENFRENTAMENTO DA DESIGUALDADE RACIAL NO BRASIL 75

a tangibilidade desse sistema, seja através do monopólio das instituições, dos


símbolos e dos postos de maior estima social, seja em sua face mais perversa, como
nos assassinatos recorrentes de pessoas negras.

A violência, portanto, atua como um instrumento de garantia das hierarquias de


humanidade entre brancos e todos os outros corpos indesejados, racializados e que
são, por não humanos, indignos de vida. Mas ora, o que está oculto nestas
classificações de humanidade, por parte da branquitude, é que, ao criar gradientes de
humanidade, também está́ , em contraposição justa, colocando em xeque a sua
própria. Ao aplicar o conceito de raça ao outro, é inevitável que o outro lhe racialize, e
esse movimento é a reação necessária para identificar, na sociedade brasileira, o
grupo que detém o poder. Esses aspectos se diferem das formas hierarquizadas que
a população negra é, então, racializada.

Nesse sentido, são muito bem-vindos a emergência de estudos sobre branquitude


e o debate sobre privilégio branco, pois eles são a outra face da moeda do extermínio
da população negra, já que não há maior benefício do que poder enxergar o mundo
através de uma lente que confere, a si mesmo, o referencial daquilo que é desejado.
O reconhecimento do privilégio branco e a ação sobre ele expressam a via de
reconstituição daquilo que entendemos como humanidade. Uma agenda sistemática
de pesquisas e escrutínio sobre a branquitude brasileira nos ajudará a revelar as
nuances e as características do poder, da dominação e da violência no Brasil.

Pensar em uma reversão do cenário atroz de violência é apostar em uma


restauração radical das percepções sobre o sujeito universal. Examinar a branquitude,
em sua base, e fazer um chamamento à responsabilização de pessoas brancas é uma
forma de destituir a universalidade da zona do ser e tornar intragáveis políticas
públicas que neguem a humanidade de não brancos. A branquitude, nesse sentido, é
um modo de comportamento social, a partir de uma situação estruturada de poder,
baseada numa racialidade neutra, não nomeada, mas sustentada pelos privilégios
sociais continuamente experimentados. Portanto, o problema racial no Brasil deve
ser discutido não como “um problema de negros”, mas como um problema das
relações entre negros e brancos, pois sua solução certamente envolverá os dois
grupos.
SUSP E O ENFRENTAMENTO DA DESIGUALDADE RACIAL NO BRASIL 76

AULA 4 - BRANQUITUDE E VIOLÊNCIA POLICIAL: REFLEXÕES


SOBRE RACISMO ESTRUTURAL NO BRASIL

A discussão sobre branquitude e violência policial oferece uma lente poderosa


para analisar as profundas desigualdades raciais presentes na sociedade brasileira.
A primeira, enquanto privilégio e perspectiva conferidos aos indivíduos brancos, está
intrinsecamente ligada às dinâmicas de violência policial, que afetam, de forma
desproporcional, a população negra. Explorar essa conexão é essencial para
compreender o racismo estrutural enraizado nas instituições do Brasil e para buscar
soluções que promovam justiça e igualdade.

A branquitude é moldada por um legado histórico de colonização,


escravidão e racismo, que persiste até os dias de hoje. Durante a
colonização, a superioridade branca foi estabelecida como justificativa para a
exploração de povos indígenas e africanos. Essa ideologia permeou as
instituições e moldou as estruturas sociais, resultando em uma hierarquia racial
arraigada. A branquitude manifesta-se de diversas maneiras, desde o acesso
privilegiado à educação, a emprego e a oportunidades, até a invisibilidade dos
privilégios raciais.

Os estudos críticos de branquitude

Branquitude é um conceito criado na década de 1990 e que ganhou aderência


nos Estados Unidos da América com o nome de critical whiteness studies, cuja
tradução literal para o português é “estudos críticos da branquitude”. No Brasil, esses
estudos só ganharam aderência no início do século XXI, a partir da tese de doutorado
em Psicologia Social de Maria Aparecida Bento, intitulada “Pactos narcísicos no
racismo: branquitude e poder nas organizações empresariais e no poder público", de
2002.

A socióloga britânica Ruth Frankenberg (1957 – 2007) propõe que a branquitude


deve ser compreendida como uma localização social estruturada na dominação. Para
SUSP E O ENFRENTAMENTO DA DESIGUALDADE RACIAL NO BRASIL 77

ela, é um lugar de vantagem estrutural nas sociedades estruturadas na


dominação racial. Compreender a branquitude como uma localização social implica
pensá-la como um “ponto de vista”, um lugar a partir do qual os brancos se veem,
veem os outros e as ordens nacionais e globais, e, a partir daí, emulam a si mesmos
como uma espécie de norma e/ou padrão de humanidade a ser alcançado.

A branquitude se insere em um conjunto de práticas, costumes, identidades


culturais, normas e preceitos não nomeados ou nomeados com categorias globais,
como nacionalismo, por exemplo. O primeiro estudo que investiga o branco como
categoria identitária analítica é do sociólogo, historiador, filósofo e ativista político
W.E.B. Du Bois (1868 – 1963), em seu livro “Black Reconstruction in the United
States”, cuja tradução literal para o português é “Reconstrução Negra nos Estados
Unidos”, publicado em 1935, em que se debruçou sobre a classe trabalhadora branca
norte-americana em perspectiva comparada com o trabalhador negro. A tese central
do estudo é de que, apesar de compartilhar das mesmas condições degradantes de
trabalho, havia, por parte dos trabalhadores brancos, uma aceitação do racismo como
uma estratégia de se aproximar dos benefícios produzidos por ele, aquilo que que Du
Bois nomeou de salário público e psicológico, que resultavam em acessos a bens
materiais e simbólicos que os negros não tinham.

O psiquiatra e filósofo da Martinica, Frantz Fanon (1925 – 1961), também olhou


para o branco (colonizador) como objeto de estudo ao afirmar em “Peles Negras,
Máscaras Brancas”, de 2008, publicado originalmente em 1952, que o mesmo racismo
que é constituinte da identidade negra é, de maneira assimétrica, também constituidor
de uma identidade branca através de um sentimento de superioridade em relação a
todos aqueles não brancos.

No Brasil, o primeiro intelectual a olhar para os estudos sobre raça e trabalhar em


perspectiva relacional, portanto colocando também os brancos no centro da
problemática, foi o sociólogo Guerreiro Ramos (1915 – 1982), em seu artigo “Patologia
Social do Branco Brasileiro”, publicado em 1957. Nele, Ramos questiona o fato de que
os estudos em relações raciais só são capazes de enxergar o negro como tema, sendo
essa, também, uma patologia social dos brancos. Para o sociólogo, aquilo que era
SUSP E O ENFRENTAMENTO DA DESIGUALDADE RACIAL NO BRASIL 78

encarado como “problema de negro” carecia de análise e questionamento sobre o


porquê de o branco ser considerado o ideal, a norma ou o “valor por excelência”.

No pioneiro texto, Guerreiro Ramos argumenta que a minoria dominante branca,


para garantir a espoliação, recorria não somente à violência, como também se
utilizava de um sistema de pseudo justificações e estereótipos (RAMOS, 1957),
fazendo com que os brasileiros rejeitassem sua negritude e desejassem a
branquidade, o que não significa que eles desejavam apenas ser brancos, mas o que
isso acarretava em relação a um status social decorrente do embranquecimento. O
argumento extraído do autor é que, ao “embranquecer”, deseja-se pertencer a uma
estrutura de privilégios ampliada que exclui e nega os não brancos.

Após um hiato de quase 50 anos, dentre outros autores que passaram a


debruçar-se sobre o tema da branquitude, destacam-se PIZA (2000); BENTO
(2002) – a primeira tese de doutorado defendida no Brasil com o tema da
branquitude assumindo centralidade -; SOVIK (2004); OLIVEIRA (2007);
SCHUCMAN (2012) e CARDOSO (2014). A autora Edith Piza desenvolve a ideia
de que o branco não se enxergava como um ser racializado. Isso significa que a
branquitude seria uma identidade racial não marcada, isto é, o branco não
“enxergaria” sua identidade racial, por isso ela seria “invisível”. Aliás, para a
autora, quando o branco defronta-se com sua própria branquitude, causa-lhe um
grande impacto, semelhante a uma pessoa desavisada que se choca com uma
porta de vidro (CARDOSO, 2011).

Para BENTO (2002), o que ocorre na branquitude brasileira seria o conceito “pacto
narcísico”, isto é, os brancos procurariam unir-se para defender seus privilégios
raciais. A autora sustenta a tese de que, através da branquitude, sujeitos acumulam
vantagens e reproduzem desigualdades raciais. Em outras palavras, para
compreender melhor as desigualdades raciais em nossa sociedade, seria importante
entender o pacto entre os brancos, ou seja, seria necessário refletir sobre os
preconceitos e práticas racistas que ocorrem “por interesse”, porque tanto a prática
racista oriunda da ignorância (que leva ao preconceito), quanto por interesse, resultam
na manutenção dos privilégios da branquitude.
SUSP E O ENFRENTAMENTO DA DESIGUALDADE RACIAL NO BRASIL 79

É importante marcar, aqui, a diferenciação entre BENTO (2002) e PIZA (2002):


se, na segunda, a identidade branca é marcada pela invisibilidade, para Bento há uma
intenção de manutenção do interesse dos brancos em preservarem seus privilégios
raciais, logo ele se entende enquanto grupo e obtém vantagens na hierarquia social a
partir desse entendimento. Essas duas trilhas são exploradas e caminhadas por
outros atores que, prioritariamente, analisam a branquitude na perspectiva identitária
e buscam compreender como, internamente, criam-se subdivisões e novas
hierarquizações entre os próprios brancos. Nesse sentido, vale destacar a tese de
doutorado de SCHUCMAN (2012), a segunda defendida no Brasil sobre o tema, que
trouxe como título “Entre o encardido, o branco e o branquíssimo: branquitude,
hierarquia e poder na cidade de São Paulo”. Os estudos críticos de branquitude vêm
crescendo em produção e assumindo centralidade nas discussões sobre relações
raciais no Brasil e no mundo, sobretudo a partir do esforço de intelectuais e ativistas
negras e negros em responsabilizar e implicar os brancos no olhar estrutural do
racismo.

A ideologia do embranquecimento no Brasil

A ideologia do embranquecimento no Brasil é um fenômeno histórico que se


desenvolveu como resultado da interseção entre racismo, colonialismo e a busca por
uma identidade nacional moldada por padrões europeus. Essa ideologia sustentava
que a mistura de raças no Brasil, particularmente com europeus, levaria à "melhoria"
da população e à sua aproximação dos ideais de brancura e civilização.

Um exemplo marcante dessa ideologia pode ser encontrado na obra "A Redenção
de Cam", pintada por Modesto Brocos em 1895. A pintura retrata um homem negro,
Cam, que, na tradição bíblica, foi amaldiçoado por seu pai Noé. No entanto, na
interpretação de Brocos, Cam é apresentado como um homem negro submisso e
agradecido, sendo "redimido" por um homem branco, possivelmente Noé. A cena é
carregada de simbolismo e reflete a crença de que a miscigenação com europeus
"purificaria" as raças inferiores, como a negra. O quadro, então, personifica a ideologia
do embranquecimento ao retratar a subserviência e a necessidade de redenção do
homem negro diante do homem branco. A pintura não apenas reforça a noção de
SUSP E O ENFRENTAMENTO DA DESIGUALDADE RACIAL NO BRASIL 80

inferioridade racial, mas também sugere que a "redenção" do negro está vinculada à
sua assimilação e miscigenação com o branco, como se a branquitude fosse o
padrão de superioridade a ser alcançado.

Imagem 1: Óleo sobre tela: A Redenção de Cam, de Modesto Brocos, 1895

Disponível em: <<https://artsandculture.google.com/asset/redemption-of-can-modesto-


brocos/_gH_m-s_zK3Wzg?hl=pt-br>>

Essa ideologia não se limitou à arte, mas permeou muitos aspectos da sociedade
brasileira, influenciando políticas de imigração e até mesmo padrões estéticos. A
busca pelo clareamento da população, frequentemente enfatizando a beleza europeia
como o ideal, levou à promoção de produtos e práticas para clarear a pele e alisar o
cabelo. Apesar de serem profundamente enraizados, os resquícios dessa ideologia
persistem de maneira menos explícita na contemporaneidade. O sistema educacional,
a representação midiática e os conceitos de beleza continuam refletindo padrões
eurocêntricos, contribuindo para a perpetuação de estereótipos e desigualdades
raciais. Desmantelar a ideologia do embranquecimento requer uma abordagem
abrangente que reconheça sua influência passada e presente. Isso envolve a
promoção da educação antirracista, a valorização da diversidade cultural e
SUSP E O ENFRENTAMENTO DA DESIGUALDADE RACIAL NO BRASIL 81

racial, a garantia de igualdade de oportunidades e a conscientização sobre os


impactos das ações e representações cotidianas.

Em última análise, a compreensão crítica da ideologia do embranquecimento,


como representada pelo quadro "A Redenção de Cam", é essencial para a construção
de uma sociedade mais justa e inclusiva. Ao reconhecer e confrontar as crenças e
práticas que perpetuam desigualdades raciais, o Brasil pode se mover em direção a
uma realidade onde a valorização das diferenças e a equidade de oportunidades
sejam fundamentais.

Na busca por uma sociedade mais justa e igualitária, é imperativo enfrentar os


desafios contemporâneos que surgem da persistência da ideologia do
embranquecimento no Brasil. A despeito dos avanços sociais e das mudanças legais,
as raízes históricas desse fenômeno ainda influenciam a maneira como as relações
raciais são construídas e vivenciadas no país. Para efetivamente desconstruir essa
ideologia, é crucial analisar tanto os aspectos institucionais quanto culturais que a
sustentam.

Raízes históricas e perpetuação institucional

As raízes da ideologia do embranquecimento remontam ao período colonial,


quando a mistura racial foi concebida como um meio de "melhorar" as raças
consideradas inferiores. Essa mentalidade continuou a moldar as políticas de
imigração no século XIX, com a vinda de europeus sendo incentivada como forma de
"clarear" a população brasileira. O mito da "democracia racial", surgido no século XX,
também contribuiu para a manutenção da ideologia do embranquecimento, pois
sugeriu que a miscigenação no Brasil havia eliminado o racismo.

As instituições também desempenham um papel fundamental na


perpetuação dessa ideologia. A discriminação racial enraizada no sistema de
justiça criminal, a falta de representatividade política da população negra e as
disparidades no acesso à educação e saúde são reflexos de uma estrutura
institucional que reforça desigualdades raciais. A ideia de que a branquitude é
superior persiste nas relações sociais e profissionais, dificultando a mobilidade
e o sucesso da população negra.
SUSP E O ENFRENTAMENTO DA DESIGUALDADE RACIAL NO BRASIL 82

A ideologia do embranquecimento também se manifesta nas esferas culturais e


midiáticas. O padrão estético eurocêntrico é frequentemente promovido como ideal de
beleza, marginalizando e desvalorizando os traços físicos de origem africana. A mídia
desempenha um papel significativo na reprodução desses padrões, dando mais força
à ideia de que a branquitude é mais atraente e digna de respeito. A falta de
representação diversificada na televisão, no cinema e na publicidade perpetua uma
imagem limitada da sociedade brasileira.

Para desmantelar a ideologia do embranquecimento, é crucial uma abordagem


abrangente que inclua medidas educacionais, políticas públicas e mudanças culturais.
A educação antirracista é fundamental para desconstruir estereótipos e promover uma
compreensão crítica da história do Brasil. Isso inclui a revisão de currículos escolares
para incluir uma narrativa mais diversificada e precisa sobre a contribuição dos negros
à sociedade brasileira.

Políticas públicas voltadas para a equidade racial também são vitais. A


implementação de medidas de ação afirmativa em instituições de ensino e no mercado
de trabalho é um passo importante para corrigir as disparidades históricas. A
promoção de serviços de saúde e educação de qualidade em áreas marginalizadas
também são cruciais para garantirem que todos os brasileiros tenham acesso
igualitário a oportunidades.

A desconstrução da ideologia do embranquecimento também requer uma


mudança cultural profunda. Isso envolve a promoção da representatividade e
diversidade em todos os setores da sociedade, incluindo mídia, política e cultura
popular. A celebração das diversas raízes culturais do Brasil e o reconhecimento do
valor de todas as identidades raciais são passos essenciais para superar os padrões
eurocêntricos.

O quadro "A Redenção de Cam", de Modesto Brocos, visto anteriormente, é uma


obra que encapsula a ideologia do embranquecimento. Através da representação
visual, o quadro reforça a noção de superioridade branca e a necessidade de
"redenção" do negro pela assimilação com o branco. O diálogo entre essa obra e a
discussão sobre a ideologia do embranquecimento é fundamental para a
SUSP E O ENFRENTAMENTO DA DESIGUALDADE RACIAL NO BRASIL 83

conscientização sobre as raízes históricas desse fenômeno e como ele ainda ressoa
na sociedade atual.

A ideologia do embranquecimento é uma herança histórica que moldou


profundamente a sociedade brasileira. No entanto, o Brasil também possui
uma história rica de resistência e luta por igualdade. A desconstrução dessa
ideologia exige ações coletivas, políticas progressistas e mudanças
culturais profundas. Ao reconhecer os desafios e as raízes dessa ideologia
e ao trabalhar ativamente para superá-las, o Brasil pode avançar em direção
a uma sociedade mais justa, inclusiva e igualitária, na qual todas as
identidades raciais sejam valorizadas e respeitadas.

As hierarquias de humanidade entre brancos e negros no Brasil são um


testemunho das profundas feridas deixadas pela história de escravidão e
discriminação. Embora avanços tenham sido feitos, a batalha contra o racismo
continua. Enfrentar as hierarquias de humanidade exige uma autoavaliação
sincera, como sociedade, e a disposição de adotar medidas concretas para
construir um Brasil verdadeiramente inclusivo e igualitário para todas as raças.
Somente por meio do reconhecimento de nossa história e do compromisso com a
mudança poderemos transformar a realidade e construir um futuro mais justo para
todos os brasileiros.
SUSP E O ENFRENTAMENTO DA DESIGUALDADE RACIAL NO BRASIL 84

AULA 5 – O ANTIRRACISMO COMO PRÁTICA

A segurança pública é uma missão vital e desafiadora para as forças policiais de


todo o mundo, incluindo o Brasil. No entanto, essa missão não pode ser abordada de
forma isolada, pois está profundamente entrelaçada com questões de violência racial,
racismo e desigualdades. Neste texto, exploraremos a interconexão desses temas e
como os policiais podem desempenhar um papel fundamental na promoção de
uma segurança mais justa e equitativa.

A violência é um fenômeno complexo e multifacetado que se manifesta de várias


maneiras na sociedade. Os policiais frequentemente se encontram na linha de frente,
confrontando situações de violência e lidando com suas consequências. No entanto,
é fundamental que os profissionais de segurança entendam que a violência não pode
ser combatida com mais violência. Estratégias de prevenção, mediação e diálogo são
igualmente essenciais para abordar as raízes profundas da violência.

A segurança pública vai além da repressão policial. Ela envolve a construção


de relações de confiança com as comunidades, a promoção da prevenção do crime e
a busca por soluções inovadoras para desafios complexos. Os policiais têm o poder
de influência específica em suas comunidades, agem como agentes de mudança e
construtores de paz. Isso requer uma abordagem humanizada, baseada no
respeito pelos direitos humanos e na proteção dos cidadãos.

A confiança entre as forças policiais e as comunidades é essencial para a


segurança efetiva. Os policiais devem adotar uma abordagem proativa para construir
relacionamentos positivos com todos os segmentos da sociedade. O engajamento
com líderes comunitários, a participação em eventos locais e a criação de programas
de policiamento comunitário são maneiras de fortalecer essas relações e coletar
informações valiosas para prevenir o crime. Portanto, é extremamente importante se
pensar em uma atuação das forças de segurança pública que tenham o
antirracismo como uma prática enraizada na atuação cotidiana, fazendo com que
não haja aplicações desiguais das regras em cidadão de diferentes raças, credos e
etnias.
SUSP E O ENFRENTAMENTO DA DESIGUALDADE RACIAL NO BRASIL 85

O antirracismo transcende a mera adesão a ideologias políticas ou sociais - ele


se firma como uma atitude consciente, um compromisso diário em combater as
estruturas discriminatórias enraizadas na sociedade. A prática dele não é apenas um
movimento, mas uma transformação profunda que requer a desconstrução de
preconceitos arraigados e a construção de relações igualitárias. Nesta aula,
exploraremos a importância do antirracismo como prática cotidiana, discutindo sua
definição, as formas de incorporá-lo à rotina e os impactos que pode ter na construção
de uma sociedade mais justa e inclusiva.

É uma abordagem que visa combater o racismo e suas manifestações em todas


as esferas da vida. Ele se opõe à ideia de superioridade racial e busca eliminar as
desigualdades resultantes de preconceitos baseados na cor da pele, na origem étnica
e na cultura. Diferentemente do mero conceito teórico, o antirracismo exige ação
constante, pois a luta contra o racismo não é tarefa passageira, mas uma jornada
contínua.

O antirracismo como prática cotidiana é uma jornada que exige empenho,


educação e reflexão constantes. Não é apenas uma declaração de princípios, mas
uma ação contínua para desconstruir preconceitos, promover a igualdade e construir
uma sociedade mais justa. Ao incorporarmos essa prática em nossa rotina diária,
estamos contribuindo para uma transformação cultural profunda e para a construção
de um futuro mais equitativo para todos. A luta contra o racismo é uma
responsabilidade de todos, e é por intermédio da prática cotidiana do antirracismo que
podemos trabalhar para alcançar esse objetivo.

Na Prática
A interseção entre antirracismo e Segurança Pública é um ponto crucial
no cenário de luta por igualdade e justiça. Historicamente, as comunidades
marginalizadas, especialmente as pessoas negras, têm sido
desproporcionalmente afetadas por práticas discriminatórias no âmbito da
segurança pública. O movimento antirracista busca desafiar esses viéses
arraigados e reformar as instituições de segurança para garantir um tratamento
equitativo para todos os cidadãos, independentemente de sua cor de pele.
SUSP E O ENFRENTAMENTO DA DESIGUALDADE RACIAL NO BRASIL 86

A relação entre as práticas de segurança pública e a necessidade do antirracismo


é evidenciada pelo alto número de casos em que há um uso desproporcional e
excessivo de força contra pessoas negras por parte de profissionais da segurança
pública, um problema sistêmico que tem sido amplamente denunciado. O antirracismo
confronta essa realidade, buscando responsabilizar os policiais por abusos e exigindo
a implementação de treinamentos e políticas que eliminem o preconceito racial nas
abordagens. Além disso, a reforma das políticas de policiamento é uma parte
essencial do movimento antirracista. Isso inclui reavaliar práticas, como a stop and
frisk (parar e revistar), que frequentemente têm, como alvo desproporcional, as
pessoas negras, e adotar abordagens mais baseadas na comunidade que busquem
construir laços de confiança e respeito.

A representação também é fundamental. A diversidade dentro das forças policiais


é importante para garantir uma compreensão mais abrangente das comunidades
atendidas. Além disso, a transparência nas ações policiais, por meio da
documentação de abordagens e do uso de câmeras corporais, pode ajudar a prevenir
abusos e responsabilizar aqueles que agirem de maneira discriminatória.

No âmbito da Segurança Pública, o antirracismo também se manifesta na


necessidade de repensar as políticas de encarceramento em massa. As taxas
desproporcionais de prisões de pessoas negras têm raízes no preconceito e na
desigualdade. A luta antirracista busca promover alternativas ao encarceramento e
programas de reabilitação que atendam às necessidades das comunidades afetadas.

Em última análise, o antirracismo e a segurança pública estão intrinsecamente


ligados por um objetivo comum: justiça igualitária. A transformação do sistema de
segurança pública para se tornar mais inclusivo, imparcial e comprometido com a
proteção de todos os cidadãos é uma meta que ecoa os princípios centrais do
antirracismo. À medida que a sociedade se empenha em desafiar o racismo sistêmico,
a reforma da segurança pública emerge como uma parte fundamental dessa jornada,
trabalhando em direção a um futuro no qual todas as vidas sejam verdadeiramente
valorizadas e protegidas.

A superação do racismo em uma sociedade racialmente estruturada é o principal


objetivo de mudança social. O foco na igualdade de direitos e oportunidades faz
SUSP E O ENFRENTAMENTO DA DESIGUALDADE RACIAL NO BRASIL 87

com que nos posicionemos em um lugar estratégico na luta antirracista, pois


assim é possível construir diálogos aderentes e fortalecer a capacidade de ação na
compreensão das dinâmicas que sustentam os brancos nos lugares de maior estima
social, ao passo que os convocamos para somarem na construção de uma sociedade
mais igualitária. Portanto, a ação antirracista visa não somente destituir os lugares de
poder racialmente determinados, mas também construir pontes de diálogo com os
próprios brancos para a construção de uma sociedade com oportunidades igualitárias
para todos.

FINALIZANDO

Neste módulo, você aprendeu que:

 o “mito da democracia racial” obscureceu, por muito tempo, as profundas


desigualdades raciais no país. Essa crença falsa teve várias implicações
negativas, incluindo a invisibilidade das desigualdades raciais, a negligência
institucional na resolução dessas questões, a naturalização da discriminação
racial e o impacto psicológico negativo na população negra. Reconhecer a
existência desse mito e suas implicações é fundamental para enfrentar o
racismo estrutural no Brasil;

 a conscientização sobre as desigualdades raciais e a luta por justiça social e


igualdade continuam sendo necessárias na sociedade contemporânea. Isso
inclui políticas afirmativas, educação sobre as raízes históricas do racismo e
esforços para desconstruir preconceitos arraigados por meio do diálogo
intercultural;

 a hierarquia de humanidade entre as raças no Brasil é reificada diuturnamente


na atuação do Estado e nas relações sociais, portanto é fundamental uma
atuação antirracista por parte dos agentes;

 o antirracismo é uma prática diária de garantia de direitos fundamentais para


toda população.
SUSP E O ENFRENTAMENTO DA DESIGUALDADE RACIAL NO BRASIL 88

MÓDULO III – SUSP E O ENFRENTAMENTO AO RACISMO

APRESENTAÇÃO DO MÓDULO

Após compreendermos o processo histórico de existência do racismo na formação


da sociedade brasileira, bem como a dinâmica atual do racismo no Brasil e seus
efeitos sociais, iniciaremos, neste módulo, uma abordagem voltada à relação entre o
racismo e o Sistema Único de Segurança Pública (Susp).

Partiremos da perspectiva das instituições que compõem, de forma ampla, o Susp.


Mostraremos os efeitos negativos do racismo para as instituições, exemplificando
como elas podem reforçar práticas racistas, afastando-se, assim, das suas funções
originais, podendo, eventualmente, prejudicar a sua própria atuação. Além disso,
incentivaremos a busca e a construção de soluções para fortalecer o papel do Susp
na luta contra o racismo no Brasil.

Concluiremos, então, com uma narrativa voltada para o ponto de vista do operador
de segurança pública. Também trataremos da prática deste operador, apontando suas
responsabilidades individuais no enfrentamento ao racismo, e os caminhos legais,
técnicos e doutrinários a serem seguidos.

OBJETIVOS DO MÓDULO

Este módulo tem, por objetivos:

 identificar características e definições das instituições componentes do Susp,


tais como seus elementos formadores, cultura organizacional e fundamentais
para a compreensão do racismo institucional na segurança pública;

 conhecer as noções básicas de Currículo Oculto e seus efeitos na cultura


organizacional, além de sua contribuição para o racismo institucional;
SUSP E O ENFRENTAMENTO DA DESIGUALDADE RACIAL NO BRASIL 89

 mostrar e analisar as práticas de uma gestão antirracista na administração


pública;

 demonstrar como o operador do Susp pode contribuir para o enfrentamento


da desigualdade racial;

 identificar as normas e os parâmetros legais sobre a atuação antirracista do


operador do Susp.

ESTRUTURA DO MÓDULO

Este módulo compreende as seguintes aulas:

Aula 1 - Racismo sob a perspectiva institucional;

Aula 2 - Currículo oculto;

Aula 3 - Gestão antirracista;

Aula 4 - Racismo e o Operador do Susp.


SUSP E O ENFRENTAMENTO DA DESIGUALDADE RACIAL NO BRASIL 90

AULA 1 – RACISMO SOB A PERSPECTIVA INSTITUCIONAL

Vamos explorar a compreensão sobre o racismo nas instituições que


integram o Sistema Único de Segurança Pública (Susp). Este conhecimento é vital
para que possamos, efetivamente, combater a desigualdade racial no contexto da
segurança pública. Para tanto, se fazem pertinentes os seguintes questionamentos:

 O que é uma instituição?


 Quais são as particularidades das instituições do Susp?

 Como o racismo se manifesta nessas instituições?

É importante ressaltar que a compreensão da lógica que sustenta a estrutura e


operação de determinadas instituições é fundamental, já que as ações e decisões dos
profissionais de segurança pública são moldadas pela maneira como elas existem e
operam. Portanto, se queremos criar ações de combate à desigualdade racial no
Susp, precisamos entender profundamente seu funcionamento institucional.

Tais espaços estabelecem uma relação de dupla troca, influenciando e sendo


influenciadas pelo comportamento humano e pelo contexto social. No entanto, não
podemos afirmar que a estrutura social é simplesmente um conjunto dessas (HIRSCH,
2007, p. 18).

(...) instituições são modos de orientação, rotinização e coordenação de


comportamentos que tanto orientam a ação social como a tornam normalmente
possível, proporcionando relativa estabilidade aos sistemas sociais (HIRSCH,
2007, p. 18).

Segundo Almeida, essa estabilidade social parece ser dependente da capacidade


desses espaços de absorverem os conflitos e os antagonismos que são inerentes à
vida social. Para ele, absorver significa normalizar estabelecendo padrões às ações
dos indivíduos. Observamos, então, uma amostra de como, ao interferirem no
contexto social, os espaços institucionais também influenciam no comportamento
humano.
SUSP E O ENFRENTAMENTO DA DESIGUALDADE RACIAL NO BRASIL 91

Neste contexto, trataremos o racismo como um exemplo de conflito entre a missão


institucional e a prática observada.

É importante entender que o conflito é visto quando se estabelece padrões de


ação a serem adotados pelos indivíduos que compõem as instituições, bem como ao
determinar suas normas sobre a questão racial na sociedade. Via de regra, designa-
se um vetor, direcionando seu funcionamento para o combate ou acolhimento da
problemática. Podemos afirmar que surge, então, um elemento cultural identitário
interno.

Não obstante, o estabelecimento de orientação, rotina e coordenação de


comportamentos, que estruturam o funcionamento institucional são frutos, também,
da cognição e dos processos políticos e individuais. A esfera cognitiva se dá pela
percepção pessoal de elementos externos, de controle externo, por processos
políticos, pelas relações interpessoais e pelos processos individuais.

Tal conjunto de eventos, que chamaremos de regramento institucional, surge


de um processo no qual um indivíduo, ou um grupo, exerce sua capacidade decisória
ao regularizar as respectivas normas. Consequentemente, caberá às pessoas as
seguirem conforme o referido regramento. Assim, observa-se um exemplo de como
as ações individuais e coletivas exercem influência em contextos de caráter oficial.

O comportamento humano não é algo constante, retilíneo. Ele sofre interferência


de outros fatores, que vão além do regramento. Fatores externos, tais como a opinião
pública, os históricos cultural e educacional individuais, as características
socioambientais do local onde esses indivíduos estão situados e outros fatores
internos, a exemplo do tipo da dinâmica interativa entre os integrantes da corporação,
do modelo administrativo adotado e do nível disciplinar exigido na execução das
atividades, influenciam para uma atividade mais ou menos alinhada (ou fiel) à norma.
O conjunto dessas ações definiremos como cultura organizacional.

“Falar em cultura implica falar sobre a capacidade de adaptação do indivíduo à


realidade do grupo no qual está inserido” (MACEDO e PIRES, 2006). No entanto,
apenas o exercício individual desta adaptabilidade não é suficiente para constituir uma
cultura. Para haver cultura, é necessário que ocorra coincidência, coletividade, soma
de “individualidades”.
SUSP E O ENFRENTAMENTO DA DESIGUALDADE RACIAL NO BRASIL 92

A cultura expressa os valores e as crenças que os membros desse grupo partilham.


Tais valores manifestam-se por meio de símbolos, como mitos, rituais, histórias,
lendas e uma linguagem especializada, orientando os indivíduos de uma referida
cultura na forma de pensar, agir e tomar decisões. (MACEDO e PIRES, 2006, p.84)

Tal conduta surge de ações e expressões individuais que geram traços de


identidade de uma coletividade ou grupo (a exemplo de instituições) e que,
ciclicamente, também influenciam nas atividades individuais. Vemos, aqui, que há
semelhança na dinâmica de existência das normas e dos hábitos. Além da
semelhança, eles também se influenciam mutuamente.

A cultura possui três características: ela não é inata, e sim aprendida; suas distintas
facetas estão inter-relacionadas; ela é compartilhada e de fato determina os limites
dos distintos grupos. A cultura é o meio de comunicação do homem. (HALL, 1978,
p.80, citado por, MACEDO e PIRES, 2006, p.84)

Observemos, então, que é algo construído, aprendido e tem efeito delimitante


(simbolicamente normativo e identitário).

A partir de uma definição mais ampla, iremos abordar o que é tal prática
organizacional e a sua importância.

A atribuição do termo cultura, para uma organização, é relativamente recente. O


termo cultura organizacional apareceu, primeiramente, na literatura de língua inglesa
nos anos 1960, como sinônimo de clima. O equivalente “cultura corporativa”, usado
nos anos 1970, ganhou popularidade após a publicação do livro, com o mesmo título,
de Terrence Deal e Allan Kennedy, em 1982. Desde então, a literatura técnica
específica vem utilizando o termo (MACEDO e PIRES, 2006, p.87/88).

Há outras definições que nos ajudam a compreender a aplicabilidade dessa


ideia no nosso caso. Ressaltamos, aqui, os elementos que, além de convergentes,
são importantes para o estudo das instituições do Susp em um contexto de
enfrentamento à desigualdade racial. Segundo Mintzberg e colaboradores (2000), o
conjunto de práticas organizacionais é observado como a base da organização. São
as crenças comuns que se refletem nas tradições e nos hábitos, bem como em
manifestações mais tangíveis — histórias, símbolos, ou mesmo edifícios e produtos.
Para o autor, a força de uma cultura está em legitimar tais crenças e os valores
compartilhados entre os membros de um ambiente corporativo. A cultura
organizacional não existiria sem as pessoas.

A cultura organizacional é um conceito essencial à construção das estruturas


organizacionais. Percebe-se, então, que (...) será um conjunto de características que
SUSP E O ENFRENTAMENTO DA DESIGUALDADE RACIAL NO BRASIL 93

a diferencia em relação a qualquer outra. A cultura assume o papel de legitimadora


do sistema de valores, expressos através de rituais, mitos, hábitos e crenças comuns
aos membros de uma organização, que assim produzem normas de comportamento
genericamente aceitas por todos (MACEDO e PIRES, 2006, p. 88).

Ademais, é imperioso salientar que produzir normas de comportamento


“genericamente aceita por todos”, não significa que essa norma é recepcionada pelo
regramento institucional, que tem um caráter formal e específico, não genérico. A
existência dessa dissonância entre a norma comportamental cultural e a institucional
estabelece o que chamaremos de currículo oculto, assunto que veremos na próxima
aula.

E as instituições que compõem o Susp?

O Susp é composto pelas instituições elencadas no artigo 9º da sua lei de criação


13.675 de 11 de junho de 2018, conforme elencado abaixo:

Art. 9º É instituído o Sistema Único de Segurança Pública (Susp), que tem como
órgão central o Ministério Extraordinário da Segurança Pública e é integrado pelos
órgãos de que trata o art. 144 da Constituição Federal, pelos agentes penitenciários,
pelas guardas municipais e pelos demais integrantes estratégicos e operacionais, que
atuarão nos limites de suas competências, de forma cooperativa, sistêmica e
harmônica.

§ 1º São integrantes estratégicos do Susp:

I - a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, por intermédio dos


respectivos Poderes Executivos;

II - os Conselhos de Segurança Pública e Defesa Social dos três entes federados.

§ 2º São integrantes operacionais do Susp:

I - polícia federal;

II - polícia rodoviária federal;

III - (VETADO);

IV - polícias civis;

V - polícias militares;

VI - corpos de bombeiros militares;

VII - guardas municipais;

VIII - órgãos do sistema penitenciário;

IX - (VETADO);
SUSP E O ENFRENTAMENTO DA DESIGUALDADE RACIAL NO BRASIL 94

X - institutos oficiais de criminalística, medicina legal e identificação;

XI - Secretaria Nacional de Segurança Pública (Senasp);

XII - secretarias estaduais de segurança pública ou congêneres;

XIII - Secretaria Nacional de Proteção e Defesa Civil (Sedec);

XIV - Secretaria Nacional de Política Sobre Drogas (Senad);

XV - agentes de trânsito;

XVI - guarda portuária.

Os integrantes do Susp caracterizam-se por serem organizações públicas, as


quais possuem um conjunto de garantias, deveres e direitos que se aplicam às
relações sociais sob a perspectiva jurídica. Logo, tal regime regula as relações desses
espaços públicos e legais, onde deve-se respeitar os princípios elencados no art. 37
da nossa Carta Magna:

Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União,
dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de
legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao
seguinte: (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998).

Dos princípios elencados pela Constituição, daremos destaque aos que se


relacionam diretamente com a atividade do operador do Susp. No entanto, é
fundamental ter em mente que todos os princípios devem ser fielmente seguidos sob
pena de nulidade dos respectivos atos administrativos e de possível
responsabilização por ato de improbidade administrativa, conforme disposto na
lei 8.429/92.

Podemos observar, em uma breve análise, que os princípios elencados na


Constituição Federal atuam pelo direcionamento normativo estatal/institucional:

1. da legalidade, pelo comprometimento subjetivo individual do agente público;


2. da impessoalidade e moralidade, e pelo compromisso de prestação de
contas à sociedade;
3. da publicidade e eficiência. Vale ressaltar que o último está diretamente
relacionado ao uso dos meios corretos para legitimar o resultado, o que é
SUSP E O ENFRENTAMENTO DA DESIGUALDADE RACIAL NO BRASIL 95

diferente de eficácia, a qual representa a garantia do resultado livre da análise


dos meios.

Isso posto, pautado no referente à legalidade, cabe ao operador de segurança


(representando sua respectiva instituição) agir tão somente dentro dos limites
estabelecidos pela norma.

Lembrando que, juridicamente, não cabe interpretação extensiva para


normas em matéria de direito administrativo.

Uma vez que existe uma hierarquia entre as normas, podemos presumir que,
inevitavelmente, haverá também harmonia entre elas, já que qualquer contradição
será dirimida pelo direcionamento da lei superior. Assim, qualquer tratado
técnico/doutrinário, (incluindo-se aqui os de técnicas e táticas de policiamento e
demais atividades de segurança pública) que, porventura, exista nas instituições de
segurança pública direcionando o operador a um comportamento racista, já se mostra
com vício de origem, pois a própria Constituição veda o tratamento discriminatório
pela raça ou qualquer outro fator, como demonstrado abaixo.

Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:

I - construir uma sociedade livre, justa e solidária;

II - garantir o desenvolvimento nacional;

III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e


regionais;

IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e
quaisquer outras formas de discriminação. (CF,1988)

O princípio da impessoalidade condiciona o operador de segurança a suprimir


suas convicções e preferências particulares em seus atos de serviço. O operador não
está ali representando os próprios interesses, ele representa o Estado (por meio de
sua respectiva instituição) na defesa dos interesses públicos, da sociedade, da
coletividade. Nesse sentido, a opinião pessoal do operador sobre um comportamento
ou costume não deve ser levada em consideração, a referência sempre será a
legalidade e o interesse público.
SUSP E O ENFRENTAMENTO DA DESIGUALDADE RACIAL NO BRASIL 96

Em consequência do princípio da moralidade, o indivíduo deve adotar


frequentemente um comportamento pautado em boa fé, ética e lealdade. Esse
princípio, em tese, abrange inclusive a esfera pessoal de comportamento do
funcionário público. Obviamente, resta evidente que qualquer comportamento
considerado discriminatório estará em afronta direta ao compromisso público
institucional.

Além da submissão ao regramento advindo do regime de direito administrativo, as


instituições do Susp devem obediência, também, às demais normas do ordenamento
jurídico brasileiro, destacando-se as de Direito Penal e Direito Civil, às quais os seus
operadores chegam a responder por responsabilidade objetiva direta. O integrante do
Susp pode ser processado diretamente pelos seus atos, sendo, eventualmente,
dispensada a necessidade de se processar o Estado para que esse ingresse com
ação regressa de responsabilidade contra o servidor.

Sob um viés de enfrentamento à desigualdade racial, as instituições do Susp


também devem seguir diversas normas do ordenamento nacional e até internacional,
tais como:

 Declaração Universal dos Direitos Humanos, 1948;


 Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, 1966;
 Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, 1966
 Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial,
1966;
 Convenção Americana sobre Direitos Humanos, 1969;
 Lei nº 7.716, de 5 de janeiro de 1989;
 Lei nº 14.532, de 11 de janeiro de 2023.

No âmbito das instituições, as práticas racistas normalmente se originam em sua


esfera normativa, em sua cultura organizacional, ou em ações individuais, podendo
ou não levar à incorporação a cultura institucional.

Quando a instituição absorve, em seu rol normativo, regras e doutrinas que


resultem em comportamentos ou fatos racistas, sob a égide da organização, é
fundamental que a regra/doutrina em questão seja considerada nula. Juridicamente,
SUSP E O ENFRENTAMENTO DA DESIGUALDADE RACIAL NO BRASIL 97

a Carta Magna, em seu artigo 59, estabelece aquilo que se denominam instrumentos
primários de introdução de normas no direito brasileiro.

Art. 59. O processo legislativo compreende a elaboração de:


I - emendas à Constituição;
II - leis complementares;
III - leis ordinárias;
IV - leis delegadas;
V - medidas provisórias;
VI - decretos legislativos;
VII - resoluções.
Parágrafo único. Lei complementar disporá sobre a elaboração, redação, alteração e
consolidação das leis.

Nesse sentido, a doutrina jurídica referenda o seguinte entendimento:

Desta forma, “todas as demais normas reguladoras das condutas humanas


intersubjetivas, neste país, têm juridicidade condicionada às disposições legais”.
Assim, conforme os ensinamentos de Paulo de Barros Carvalho, tais normas
reguladoras “recebem o nome de ‘instrumentos secundários’”. Isto se deve ao fato de
que tais normas “não possuem, por si só, a força vinculante capaz de alterar as
estruturas do mundo jurídico-positivo, (...) apenas realizam os comandos que a lei
(instrumentos primários) lhe autoriza e na precisa dimensão que lhes foi estipulada”.
Considera-se que tais normas secundárias irão complementar as leis (instrumentos
primários) contidas no artigo 59 da Constituição da República, e a elas estarão
subordinadas. Como exemplo de tais normas secundárias, pode-se destacar os
decretos regulamentares, as instruções ministeriais, as instruções normativas,
circulares, ordens de serviços, atos declaratórios e outros atos normativos expedidos
pelas autoridades administrativas. (MENDES, 2014, p.23)

Logo, pautado no princípio da hierarquia das normas, e considerando, inclusive,


as diretrizes constitucionais e tratados internacionais, já elencados, cabe à gestão de
cada espaço institucional possibilitar e efetivar a devida fiscalização e tais correções
normativas.

Porém, sendo o racismo um elemento estruturante, os próprios órgãos de controle


não estarão imunes à sua influência, o que aumenta a responsabilidade do operador
em obstruir todo e qualquer ato nessa direção. É importante frisar que a
responsabilidade por cumprimento de ordem ou norma “ilegal” pode atingir,
objetivamente, o respectivo operador, independente da “postura organizacional”.

A Professora Doutora Maria Aparecida Bento, em sua obra “Pacto da


Branquitude”, apresenta uma abordagem objetiva sobre as manifestações racistas
que se originam na cultura organizacional das corporações. Segundo ela, o racismo
SUSP E O ENFRENTAMENTO DA DESIGUALDADE RACIAL NO BRASIL 98

institucional destaca-se por ser “como uma prática que tem caráter rotineiro e
contínuo, sistêmico, às vezes burocrático, e que pode variar entre aberta ou
encoberta, visível ou escamoteada da visão pública.” (BENTO, 2022, p.48)

Devemos lembrar que o conjunto de práticas em uma corporação é formado por


repetições de ações individuais coincidentes. Não há necessidade de um amparo
normativo, mas há uma legitimação pelas pessoas que compõem a instituição,
inclusive (e, talvez, principalmente) aquelas que deveriam coibir tais práticas.

Bento, durante sua pesquisa para o livro supracitado, entrevistou Moema, uma
mulher branca que trabalha como psicóloga organizacional. Nesse sentido, durante a
conversa, Moema reconheceu que tem preconceitos e que eles surgem de acordo
com o convívio próximo no ambiente de trabalho, por exemplo. Tal declaração ressalta
a forma complexa com a qual pessoas negras são integradas ao mercado de trabalho,
demonstrando que a premissa de haver neutralidade e objetividade não existe em
sociedades historicamente preconceituosas, como o Brasil.

O exemplo de entrevista supracitado representa muito bem o modus operandi do


racismo no âmbito institucional. Há a seguinte máxima no Brasil: “Racismo existe,
mas ninguém é racista.”. Nas instituições que integram o Susp, essa lógica poderia
ser traduzida desta forma: “Minha instituição não é racista, já que nela nenhuma
norma ou doutrina é racista!”.

É necessário ter consciência de que a cultura organizacional também faz parte


do ambiente corporativo e, consequentemente, o racismo que nele se origina, passa
a existir em sua composição.

Lembro-me de um caso relatado por meu irmão anos atrás, quando ele assumiu a
liderança da área de contabilidade de uma grande empresa. Entre as contratações
que fez à época, estavam três pessoas negras, e um colega o questionou se ele
pretendia “enegrecer a empresa”. O fato é que, enquanto o departamento era
composto exclusivamente de pessoas brancas, questionamentos sobre raça não
existiam, mas bastou a contratação de três funcionários negros — no meio de
quarenta brancos — para que se sentissem ameaçados. (BENTO, 2022, p.50).

Quando o racismo se manifesta por meio da cultura organizacional, em


dissonância com o regramento institucional, é importante que se adotem ações
SUSP E O ENFRENTAMENTO DA DESIGUALDADE RACIAL NO BRASIL 99

voltadas para o reforço normativo e doutrinário nos espaços de trabalho para combater
práticas ilícitas e indesejadas, bem como para alcançar a isonomia de processos e de
práticas.

No entanto, o racismo também pode se materializar em ações individuais que não


se alinham às normas e que não chegam a influenciar na cultura de um ambiente
corporativo. Normalmente, posturas como essas geram consequências que atingem
objetivamente a população, afetando tal espaço, em caráter subsidiário, por meio da
opinião pública sobre a sua imagem. Nestes casos, a implementação de ações de
sensibilização, conscientização racial e fortalecimento de mecanismos
normativos/correcionais das organizações são medidas a serem adotadas para a
efetiva mudança.
SUSP E O ENFRENTAMENTO DA DESIGUALDADE RACIAL NO BRASIL 100

AULA 2 – CURRÍCULO OCULTO

Aprendemos que a cultura organizacional é composta por ações que podem, ou


não, estar alinhadas à normatividade do ambiente de trabalho. Com o convívio diário
entre as pessoas e por meio do contato com as regras postas, pode surgir o que
chamaremos de currículo oculto.

Esse é um termo frequentemente adotado nos ambientes educacionais e que


surgiu relacionado aos estudos da área da Pedagogia. Pautados em alguns desses
saberes, faremos um paralelo em relação às instituições do Susp. Para tanto,
partiremos do entendimento do conceito de currículo, de forma ampla, com o intuito
de alcançarmos a compreensão da definição do termo em questão.

Contribuindo com a discussão do tema e ciente da relevância que ele representa


para as relações estabelecidas no âmbito das instituições de segurança, temos a
Matriz Curricular da Senasp, documento orientador metodológico para as ações
formativas de profissionais de segurança pública. Nela, o currículo, em sentido amplo,
engloba um conjunto de informações, atividades, concepções e práticas, dentre outros
aspectos, que servem para auxiliar os profissionais no desenvolvimento de
competências que os possibilitam a inserção crítica, consciente e ativa nos contextos
sociais e no mundo do trabalho. Nesse sentido, é pertinente o que dizem ROSA,
SILVA, DA SILVA (2023):

[...] o objetivo principal do currículo é a estruturação de influências diretas e


significativas na prática pedagógica. Ou seja, ele é constituído por um conjunto de
ações vivenciadas pela pessoa, as quais têm a capacidade de modificar ações que
repercutem na identidade de cada indivíduo. ( p. 2 e 3).

No âmbito da prática educacional e profissional, surge o conceito de currículo


oculto, que pode definido como:

[...]o conjunto de atitudes, valores e comportamentos que não fazem parte de forma
explícita do currículo formal, os quais são ensinados por meios das relações sociais,
dos rituais e práticas que são desenvolvidas na escola. (ROSA, SILVA, DA SILVA.
2023. p.5).

Se substituirmos, na citação acima, a palavra “escola” pela palavra “instituição”,


teremos a noção exata de como o currículo oculto também emerge nos ambientes
organizacionais do Susp. Cabe, aos operadores e gestores do Susp, a concentração
SUSP E O ENFRENTAMENTO DA DESIGUALDADE RACIAL NO BRASIL 101

de esforços para minimizarem as práticas anacrônicas ou que se desvirtuam da


técnica e da legalidade.

No âmbito da gestão, processos de capacitação, reforço


técnico/doutrinário/normativo e sensibilizações sobre a missão, a visão e os valores
institucionais são ações preventivas recomendadas. No entanto, eventualmente as
ações preventivas não são dotadas de eficácia plena. Ações correcionais podem ser
requeridas para o alinhamento da cultura organizacional de forma a não validar
possíveis práticas de currículo oculto, fundamentadas em concepções racistas.

Então, por via transversa, tal ferramenta influencia na composição do currículo


regular ou formal, ou seja, é necessário reconhecer que existem hábitos que podem
se dissociar da norma e que contribuem para o amadurecimento institucional. Mas
isso não implica uma aceitação das práticas implícitas e preconceituosas, porém é
fundamental reconhecer sua existência para corrigi-las ou absorvê-las, caso o
processo evolutivo social assim exija.

Diante do exposto, é válido ressaltar que a estruturação e execução do currículo


envolve muitas demandas, até mesmo aquelas que não são explicitadas em
documentos oficiais. Ora, o processo de formação deve ser constante, uma vez que
precisamos compreender os conhecimentos acerca das teorias do currículo oculto,
podendo assim contribuir com a docência para e na educação profissional. (ROSA,
SILVA, DA SILVA. 2023. p.8)

Contribuem, para o debate, MATOS, COSTA, LIMA, SILVA, CHAVES,


SOUSA, (2020) que chamam atenção para a relevância da ferramenta em questão:

O currículo oculto serve tanto quanto o currículo real. A diferença parcial é que um
torna-se basicamente uma representação que deve melhorar, mas não pode ser
trabalhado e o outro é a realidade estudada e transmitida. A supressão de
conhecimento ou de propostas que podem ser estudadas para melhoria do
favorecimento educacional, é também representado pelo currículo oculto. (MATOS,
COSTA, LIMA, SILVA, CHAVES, SOUSA, 2020. p 327)

As práticas que compõem esse instrumento devem ser observadas


criteriosamente pelos gestores, buscando identificar situações em que elas refletem
manifestações impregnadas de concepções racistas, oportunidade em que devem ser
imediatamente corrigidas.
SUSP E O ENFRENTAMENTO DA DESIGUALDADE RACIAL NO BRASIL 102

Ações racistas, em determinado momento histórico, já foram elementos que


compunham o currículo formal das instituições públicas brasileiras. Hoje, são
elementos do currículo oculto que devem ser repelidas dos processos de ensino-
aprendizagem de uma instituição de qualquer natureza.

Por parte dos operadores do Susp, é fundamental a compreensão de que a


atividade de promoção de segurança pública, inclusive pela sua submissão aos
princípios que regem a gestão pública, deve vivenciar seu processo evolutivo pelas
vias formalmente instituídas para tal. Ao notar a necessidade contextual de evolução
e melhoria das práticas institucionais, cabe a tal colaborador a utilização dos meios
formais de comunicação e provocação, para que sejam gerados os estudos e
procedimentos para a devida revisão técnica, doutrinária ou normativa.

Ademais, é imprescindível que o operador do Susp se mantenha atualizado sobre


as regras do seu espaço de trabalho, devendo adotar, na sua prática cotidiana, a
devida disciplina e fidelidade a esse regramento.
SUSP E O ENFRENTAMENTO DA DESIGUALDADE RACIAL NO BRASIL 103

AULA 3 – GESTÃO ANTIRRACISTA

Nesta aula, quero convidar você a fazer algumas reflexões sobre a


construção de uma gestão antirracista nas instituições do Susp. Partiremos de um
método de autorreflexão para chegarmos ao ponto desejado. O que é uma gestão
antirracista? Será que a instituição da qual faço parte tem uma gestão
antirracista? Como eu posso colaborar para que essa cultura antirracista possa,
de alguma forma, se tornar realidade no meu dia a dia?

Primeiramente, à primeira pergunta, responde-se que é uma gestão a qual


não se limita apenas a empresas e organizações, mas principalmente às ações de
governo através da positivação de leis e de práticas que proporcionem uma mudança
cultural e que crie um ambiente inclusivo, acolhedor, justo e igualitário.

Ao considerarmos que “organizações são instrumentos criados para


atingirem outros fins” (MACEDO e PIRES, 2006, p. 87), podemos concluir,
logicamente, que a administração das entidades que fazem parte do Sistema Único
de Segurança Pública deve ter, como principal objetivo, prover segurança pública à
sociedade brasileira, com o compromisso contínuo e multifacetado de criar um
ambiente mais justo e equitativo para as pessoas.

Dessa forma, foi promulgada a Lei 13.675 de 11 de junho de 2018, que


institui o Susp, a qual preconiza o seguinte:

Art. 1º Esta Lei institui o Sistema Único de Segurança Pública (Susp) e cria a Política
Nacional de Segurança Pública e Defesa Social (PNSPDS), com a finalidade de
preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, por
meio de atuação conjunta, coordenada, sistêmica e integrada dos órgãos de
segurança pública e defesa social da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos
Municípios, em articulação com a sociedade.

Art. 2º A segurança pública é dever do Estado e responsabilidade de todos,


compreendendo a União, os Estados, o Distrito Federal e os Munícipios, no âmbito
das competências e atribuições legais de cada um. (lei 13.675, 2018)

Por sua vez, a Carta Magna estabelece, no capítulo III, sobre Segurança
Pública:
SUSP E O ENFRENTAMENTO DA DESIGUALDADE RACIAL NO BRASIL 104

Art. 144. A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos,


é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e
do patrimônio, através dos seguintes órgãos: (CF, 1988)

Observando os dois dispositivos legais apresentados, observamos que o


exercício da segurança pública se vincula à preservação da ordem pública, resultado
final a ser obtido pelo Susp.

É crucial destacar que o papel do Estado, na garantia da segurança pública,


vai além do que pode ser simplesmente definido como “obrigação policial”. Uma
gestão antirracista envolve uma revisão crítica, por parte dos líderes, na diversidade
de inclusão, na conscientização e na educação, bem como por meio de ações
afirmativas, correção de desigualdades históricas, transparência e compromisso para
criar uma compreensão mais profunda dos desafios enfrentados por pessoas negras
e indígenas.

Sabiamente, a própria Constituição Federal demonstra, em seu texto, que


a finalidade da segurança pública deve ser preservar a ordem pública. Nesse
ínterim, destaca-se que o ato de “preservar” é diferente de “implementar”, assim só é
possível realizar a preservação do que já está estabelecido. Vale ressaltar alguns
pontos que facilitam a nossa compreensão:

1. quando não há presença do Estado nos campos da saúde, educação,


transporte, saneamento básico e demais direitos essenciais à dignidade
humana, garantidos pela própria constituição, não existe ordem pública.
2. essa está relacionada objetivamente à possibilidade do exercício de direitos
fundamentais, o que inclui o gozo da vida livre do racismo em qualquer
perspectiva (individual ou social).
3. um dado de extrema importância é que mais da metade dos brasileiros
são negros. Segundo dados do PNAD (Pesquisa Nacional de Amostra por
Domicílio), apresentados pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística), no último censo, em 2022, constata-se que 56% da população
brasileira se autodeclara negra. Ou seja, pensar em ordem ou da segurança
SUSP E O ENFRENTAMENTO DA DESIGUALDADE RACIAL NO BRASIL 105

públicas, a ausência da compreensão de que o racismo afeta ambos iguala-se


a ignorar os direitos e interesses da maioria dos brasileiros aos quais o Estado
e a gestão pública deveriam servir, e ainda prejudicar, subsidiariamente, todos
os demais, tendo em vista que racismo é um mal que prejudica toda a
sociedade brasileira.

Sendo assim, podemos afirmar que o racismo:

 desvirtua a educação e exclui, da população negra, o acesso a ela;


 deturpa e mitiga a medicina para os negros;
 manipula a política e a economia de modo a vedar o acesso de
pessoas negras aos ambientes de poder e gestão.

Dessa maneira, é correto concluir que o racismo desvia o destino de


recursos públicos para os nichos embranquecidos, provocando problemas, como a
favelização dos ambientes urbanos, evento que interfere diretamente na dinâmica de
segurança pública, inclusive gerando efeitos à imagem institucional dos órgãos do
Susp perante a opinião pública.

Ignorar a necessidade de um Estado objetivamente antirracista


significa negar o direito à ordem e à segurança públicas à maioria dos
brasileiros.

Destacamos, então, o elemento primordial da promoção de segurança (bem como


de qualquer exercício de cidadania): a educação, pois em seu sentido mais amplo, é
a “tela na qual se desenhará” todas as imagens formadoras da ordem pública e que
deve ser preservada pelas forças de segurança, desde o engajamento intelectual na
gestão responsável e na fiscalização para tal, até a formação da consciência individual
de que é necessário controlar impulsos e desejos quando eles invadem e prejudicam
o espaço de direito de outras pessoas. A educação é o instrumento dessa
construção comportamental.

Concluímos, portanto, que a obrigação do Estado em promover a segurança


pública se inicia para além da própria ação seguradora, e que a atividade policial é
apenas o final da jornada em sua busca.
SUSP E O ENFRENTAMENTO DA DESIGUALDADE RACIAL NO BRASIL 106

O QUE ESPERAR EM UMA GESTÃO VOLTADA PARA O ENFRENTAMENTO

À DESIGUALDADE RACIAL?

A influência das ações de líderes no comportamento dos membros de uma


organização, e por consequência, na cultura organizacional, é incontestável.

Os líderes dentro de uma organização são o elo primordial interferente no


desempenho da mesma; tidos como identificadores e comunicadores de valores
coletivos, asseguram recursos para as pessoas internamente e ouvem a maior parte
do tempo, pois são modeladores e defensores de culturas voltadas para o
desempenho. Esses profissionais removem equipes para servirem ao bem comum,
em muitas vezes em detrimento de objetivos pessoais, considerando que a
liderança menos direta é favorecida pela orientação de exemplos e de uma
comunicação e de uma visão de valores estimulantes muito mais alicerçada em
escutar e cuidar dos seguidores. (ARRUDA, CHRISÒSTIMO e RIOS, 2010, p.2)

Uma vez que os gestores comunicam os valores institucionais, é esperado


que um diálogo se estabeleça, não só por canais formais, mas também por meio de
ações diárias. O gestor é observado e avaliado, por sua equipe, servindo de elemento
balizador das condutas esperadas.

Existe uma diferença entre ser um mero gerente e ser um líder. Para
implementar uma gestão antirracista em uma sociedade que ainda está imersa em
uma cultura de práticas racistas, o exercício da gestão exige uma liderança ativa
e orientada ao antirracismo.

O gerente tem seu apoio nas regras, normas e procedimentos, enquanto o líder se
apoia em suas capacitações, habilidades e nas pessoas que trabalham sob seu
comando. Para o gerente, a rotina diária é uma batalha constante a ser vencida;
enquanto, para o líder, ela é o reinício de novas oportunidades. Para o gerente, as
crises são problemas desgastantes e aborrecidos. Para o líder, são situações
inevitáveis que têm de ser enfrentadas com competência e discernimento. Diante
disto, e apesar do valor do gerenciamento nas empresas, dentro da visão e situação
atual das organizações, há maior necessidade de liderança do que gerenciamento
(BOTELHO, 1992, citado por, ARRUDA, CHRISÒSTIMO e RIOS, 2010, p.4).

Nota-se que uma gestão antirracista vai além de ações pontuais que
fornecem apenas respostas a acontecimentos racistas no âmbito da instituição. Dessa
maneira, o gestor deve fomentar ações preventivas, contra o racismo, que surtam
influência, tanto no campo estrutural da instituição, quanto no campo particular dos
membros da organização. No estrutural, podemos exemplificar ações na esfera
SUSP E O ENFRENTAMENTO DA DESIGUALDADE RACIAL NO BRASIL 107

normativa, técnica/doutrinária e compliance (conjunto de disciplinas e procedimentos


a fim de cumprir e se fazer cumprir as normas). Já no particular, os exemplos são
medidas de sensibilização, letramento, capacitação e motivação.

A gestão institucional deve atuar em caráter preventivo e combativo contra


o racismo. Ao gestor, cabe o exercício de liderança perante os membros da
organização, agindo cotidianamente de maneira a exemplificar que é viável o
cumprimento da missão institucional pautado em práticas antirracistas.

É importante frisar que as instituições sofrem e reproduzem o racismo


constantemente, tendo em vista a estruturalidade do fenômeno. Dessa forma, é
fundamental que as instituições assumam medidas de combate à desigualdade
racial de forma permanente, sistemática e evolutiva.

Há também um caráter interseccional no racismo. Muitas vezes, atos


discriminatórios ocorrerão de maneira associada: racismo e machismo, racismo e
LGBTQIAPN+fobia, racismo e xenofobia; ou ocorrerão de maneira secundária:
machismo, LGBTQIAPN+fobia e/ou xenofobia com recorte racial. Nesse sentido, a
professora Nilma Lino Gomes afirma, no prefácio da obra “Como ser um educador
antirracista”, de autoria da Professora Doutora Barbara Carine, o seguinte:

O racismo não é desconstruído sozinho. É preciso que essa desconstrução se dê


também em relação a outros fenômenos perversos, tais como o machismo, a
LGBTQIAPN+fobia, o capacitismo e o fundamentalismo religioso. São ideologias
e ações que desumanizam as pessoas, em especial aquelas que a sociedade
cunhou como inferiores porque fazem parte de coletivos diversos historicamente
marginalizados. (Gomes, 2023, p.14)

Concluímos, então, que é impossível exercer uma gestão institucional


voltada ao enfrentamento da desigualdade racial, sem enfrentar outros tipos de
discriminações. Inclusive, conforme o arcabouço legislativo já apresentado, o
enfrentamento a todos os tipos de desigualdade não é uma opção, mas obrigação
da gestão pública.

Gestores sensibilizados e capacitados terão mais condições de


implementar ações com parâmetros antirracistas; além de normatizar e fiscalizar o
cumprimento de regras. Assim, a gestão antirracista se retroalimenta, se fortalece e
se naturaliza nas instituições públicas. Iniciar os processos de sensibilização e
SUSP E O ENFRENTAMENTO DA DESIGUALDADE RACIAL NO BRASIL 108

capacitação, envolvendo os extratos superiores das organizações, é um fator


diferencial para a efetividade da gestão.

Podemos pontuar, então, que, no âmbito do Susp, uma gestão antirracista


deve:

 compreender que a segurança pública é complexa e multifatorial;

 contar com o engajamento dos gestores, pautada na liderança pelo


exemplo;

 adotar medidas de sensibilização e capacitação para todas as pessoas da


instituição, a começar pelos gestores;

 buscar se aproximar da comunidade, traçando seus objetivos em favor dos


interesses dela e adotando práticas de prestação de contas e verificação de
eficácia com base na opinião comunitária;

 promover constante revisão normativa institucional, pautada na verificação


de eficácia, resultando em uma prestação de serviço cada vez mais qualificada.

Tais medidas podem ser sistematizadas em um ciclo de ações que se


complementam, conforme segue:

Figura 9: Ciclo de ações antirracistas

Fonte: elaborado pelo autor, 2023.


SUSP E O ENFRENTAMENTO DA DESIGUALDADE RACIAL NO BRASIL 109

Os resultados esperados, quando aplicado o ciclo acima, são:

 sensibilização e capacitação dos agentes;

 aumento da qualidade de interação com a comunidade;


 melhoria dos resultados finalísticos;

 melhoria da imagem institucional;


 aumento da autoestima e da qualidade de vida dos operadores;

 diminuição dos efeitos do racismo na instituição.

Uma gestão institucional antirracista é feita por gestores, regendo a


conduta de outros operadores, buscando uma melhor prestação de serviço para a
sociedade.
SUSP E O ENFRENTAMENTO DA DESIGUALDADE RACIAL NO BRASIL 110

AULA 4 – RACISMO E O OPERADOR DO SUSP

Agora que você está familiarizado com o conceito de uma gestão


antirracista, vamos estudar de que maneira o operador do Susp pode atuar
adequadamente frente às situações de racismo e de violação dos direitos humanos
dos grupos étnicos discriminados.

Nesta aula, abordaremos, inclusive, as responsabilidades do operador do


Susp para o êxito do enfrentamento à desigualdade racial e os efeitos nocivos do
racismo que atingem até mesmo o próprio operador.

Qual deve ser o papel do profissional do Susp no enfretamento ao racismo?

A Declaração Universal de Direitos Humanos, elaborada pela Organização das


Nações Unidas, promulgada em 1948, considera todos os seres humanos iguais, sem
distinção de nacionalidade, etnia, idioma, raça, sexo ou outra condição.
Dentre as suas principais características, destaca-se a universalidade,
uma vez que todos os direitos devem ser aplicados de forma igualitária, sem restrições
de qualquer tipo e sem discriminação, a qualquer pessoa, considerados de igual valor
no que diz respeito à promoção e dignidade humana.
O Brasil, como signatário dos instrumentos internacionais de direitos
humanos, tem avançado na implementação e na discussão de políticas públicas,
visando assegurar a proteção dos direitos fundamentais da pessoa humana. No que
diz respeito à segurança pública, é possível notar um progresso, sobretudo nas
mudanças propostas na malha curricular de formação inicial e continuada dos
profissionais de segurança pública.

A Secretaria Nacional de Segurança Pública (2003), por meio da Matriz


Curricular Nacional (Senasp), desde 2003, tem buscado efetivar um processo de
ensino-aprendizagem significativo, transformador e autônomo. Além disso, visa
evidenciar a condição humana na formação em segurança pública, destacando o
componente curricular “Direitos Humanos”, como principal tema transversal.
Segundo a Matriz, o profissional de segurança pública, competente e
profissionalizado em padrões de excelência, deve estar eticamente envolvido com os
SUSP E O ENFRENTAMENTO DA DESIGUALDADE RACIAL NO BRASIL 111

direitos humanos. Essa é a principal referência de uma atuação técnica para atender
aos anseios de justiça e legalidade do sistema democrático, sem prejuízo da eficiência
e da força na prevenção e repressão do crime (BRASIL, 2014, p. 114).
Nessa perspectiva, o operador de segurança pública deve compreender
que a proteção dos direitos fundamentais da pessoa humana é uma obrigação
do Estado e do governo em favor da sociedade, sendo ele próprio um dos agentes
que promove e protege esses direitos.
Assim sendo, espera-se que esse profissional atue para garantir o respeito
aos direitos humanos de indivíduos em situação de vulnerabilidade, tais como
mulheres, crianças e adolescentes, pessoas com deficiência, lésbicas, gays,
bissexuais, travestis, homens e mulheres trans, pessoas idosas, vítimas da
criminalidade do abuso do poder, usuários e dependentes de drogas, pessoas em
situação de rua, negros (afro-brasileiros), indígenas e ciganos (BRASIL, 2014, p.
114).
Além disso, é crucial que os agentes de segurança pública cumpram as
normas estabelecidas por cada instituição. É importante salientar que os princípios da
administração pública e os requisitos do ato administrativo não se limitam aos serviços
prestados, mas requerem um comportamento probo para aqueles que, de forma
voluntária, representam o Estado.
Essa exigência é particularmente relevante para a segurança pública, uma
vez que as ações administrativas de agentes de segurança pública, em muitos casos,
envolvem restrições de direitos e a possibilidade de ações letais contra pessoas.
Apesar dos avanços, no âmbito da segurança pública, na promoção e na
garantia dos direitos humanos da pessoa em situação de vulnerabilidade, o racismo
presente na sociedade brasileira, por vezes negado pelo discurso, também influencia
comportamentos e condutas no âmbito das organizações. Ele é uma mácula nas
instituições que, ao se tornar uma prática habitual de seus operadores, repercute na
cultura organizacional, prejudica a imagem institucional e, também, da classe
trabalhadora.
Em contraste com a prática de comportamentos racistas, especialmente no
que diz respeito à atuação policial, pesquisadores e profissionais discutem um modelo
de segurança pública que possibilite, aos seus operadores, uma atuação humanizada,
fundamentada no uso da inteligência e na valorização profissional.
SUSP E O ENFRENTAMENTO DA DESIGUALDADE RACIAL NO BRASIL 112

Vamos refletir um pouco?

Em seu material de estudo, escreva a sua resposta para estas questões:

Na sua opinião, o que seria uma segurança pública antirracista? Quais


práticas de enfrentamento ao racismo existem na sua instituição?

Neste módulo, você aprendeu que:

 o racismo é estrutural, ou seja, está enraizado nos comportamentos e


expressões sociais, culturais e institucionais da sociedade, estando muito
presente no ambiente organizacional;
 o currículo oculto é o conjunto de valores e comportamentos que não
estão explícitos no currículo formal, os quais são aprendidos por meio
das relações sociais, rituais e práticas desenvolvidos na escola e em
qualquer ambiente institucional;
 uma gestão antirracista requer uma análise criteriosa por parte dos
líderes em termos de inclusão, conscientização e educação, ações
afirmativas, correção de desigualdades históricas, transparência e
compromisso para se ter uma compreensão mais aprofundada dos
desafios enfrentados por pessoas negras e indígenas;
 é essencial o papel dos profissionais do Susp no enfrentamento da
desigualdade racial no Brasil.
SUSP E O ENFRENTAMENTO DA DESIGUALDADE RACIAL NO BRASIL 113

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