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Niterói
2020
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Niterói
2020
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CDD -
BANCA EXAMINADORA
....................................................................
Prof. Dr. Edilson Mácio Almeida da Silva
Universidade Federal Fluminense
....................................................................
Prof.ª Dr.ª Nome
Universidade Federal Fluminense
....................................................................
Prof.ª. Dr.ª Nome
Instituição
....................................................................
Prof. Dr. Nome
Instituição
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Niterói
2020
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AGRADECIMENTO
RESUMO
LISTAS
LISTA DE FIGURAS
Figura 1: Cabeça de herero proveniente da ilha Shark, usada para estudo .......................................................18
Figura 2: Josiah Clark Nott e George Robins Gliddon representaram negros como uma categoria intermediária
entre gregos e chimpanzés. ............................................................................................................................19
Figura 3:Desenho retratando variações no formato do crânio de indivíduos caucasoides, negroides e
mongoloides....................................................................................................................................................19
Figura 4: Estrutura craniana caucasiana comparada a negroide nos estudos de eugenia..................20
Figura 5: Matérias do jornal G1.........................................................................................................27
Figura 6: Sentença da juíza Inês Marchalek Zarpelon, da 1ª Vara Criminal da Comarca da Região Metropolitana
de Curitiba (PR).......................................................................................................................31
Figura 7: os dados estatísticos que evidenciam o racismo penal brasileiro, disponibilizados numa conta no
Instagram pela escritora Juliana Borges..........................................................................................34
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Sumário
INTRODUÇÃO ............................................................................................................ 10
3 “em razão da sua RAÇA” - como a justiça pode reforçar esteriótipos: análise de
caso 30
5 FONTES ................................................................................................................. 43
INTRODUÇÃO
com quatorze para quinze anos, quando perdeu seu pai e abandonou o colégio, ainda na oitava
série. Já próximo do fim do seu envolvimento com o tráfico, acabou se afiliando ao Terceiro
Comando.
Badaró vem de uma família de mais sete irmãos que não tiveram a mesma trajetória.
Uma irmã é enfermeira, outra dona de casa, um dos irmãos professor universitário, outro cami-
nhoneiro e assim por diante. Cada irmão lidou com a perda do pai, a pobreza e a vulnerabilidade
social de formas distintas. Ter contato com esses distintos modos de lidar com a existência me
fez estranhar a forma com que as pessoas nascidas e criadas em territórios marginalizados eram
representadas e estigmatizadas, como se todos os sujeitos fossem, potencialmente, enveredar
pela vida do crime, a depender apenas de uma questão de tempo.
Se nem o próprio Badaró, quando conhecido com mais proximidade, correspondia ao
estereótipo de periculosidade que acompanha a representação de bandido, o que dizer então dos
seus irmãos, que traçaram outros caminhos, ou ainda da comunidade de onde todos eles vieram?
Diante disso, cabem alguns questionamentos: de onde vem essa representação? Quem a cons-
trói? O que afinal seria um bandido? Por que não são todos os sujeitos e classes que o rótulo
cola? Como seria esse processo de rotulagem? Muitas indagações surgiram nesse sentido.
O primeiro desafio encontrado na pesquisa que serviu de base para este trabalho foi
tornar o familiar exótico: “O que vemos e encontramos pode ser familiar, mas não é
necessariamente conhecido. No entanto, estamos sempre pressupondo familiaridades e
exotismos como fontes de conhecimento ou desconhecimento, respectivamente.” (VELHO,
1979, p.126). As inquietações suscitadas pelo caso do meu tio despertaram o meu interesse
enquanto cientista social para uma questão mais ampla: a categorização do bandido e sua
construção sócio-histórica no Brasil.
Para desenvolver a análise do tema e buscar responder à questão levantada, o primeiro
capítulo, intitulado “A construção social do desvio”, aborda tal temática à luz do arcabouço
teórico desenvolvido por Howard Becker, mas contextualizando a sua aplicação para a realidade
social brasileira. Isso se faz necessário uma vez que o sociólogo constrói a sua análise tendo
como referência empírica sociedades igualitárias, o que diverge, significativamente, da estru-
tura social brasileira, marcada pelo racismo e desigualdade social.
O segundo capítulo, “Violência urbana, tráfico de drogas e construção contemporânea
do banditismo”, discute como mudanças nos padrões de criminalidade ocorridas entre as déca-
das de 1970 e 1980 serão apontadas como responsáveis pelo crescimento da violência urbana,
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o que vai resultar na consolidação do tráfico varejista de drogas ilícitas seja tomada como um
importante marco social para a construção contemporânea do banditismo.
O terceiro capítulo, intitulado “Em razão da sua raça”: como a justiça pode reforçar
estereótipos - uma análise de caso, tem como foco o polêmico episódio em que uma juíza con-
denou um acusado a cumprir uma pena de reclusão por 14 anos e dois meses devido a furtos e
roubos. A magistrada faz menção explícita à raça do réu na sentença, o que teve grande reper-
cussão nos canais midiáticos. O capítulo busca discutir o papel do judiciário no reforço de de-
terminados estereótipos, ilustrando assim, alguns efeitos práticos das questões discutidas nos
capítulos anteriores.
A pesquisa tem caráter qualitativo, sendo a revisão bibliográfica e a análise de um caso
as principais estratégias metodológicas utilizadas. Essas escolhas tiveram como intuito recons-
truir o processo sócio-histórico da categoria bandido, a fim de demonstrar a importância de se
conhecer como são criadas e difundidas determinadas categorias que, não raro, contam com
ampla circulação social. Dessa forma, surtindo efeitos diretos na vida de um sem-número de
brasileiros, sobretudo daqueles que pertencem a segmentos e classes sociais mais vulneráveis.
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1
Outsiders: “aquelas pessoas que são consideradas desviantes por outras” (BECKER,
2009, p.27)
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Nesse sentido, as Maltas, por exemplo, eram grupos organizados nascidos ainda no pe-
ríodo da Independência do Brasil que utilizavam a capoeira para se legitimar e, por essa e outras
razões, eram vistos como arruaceiros. No Rio de Janeiro, havia uma federação de Maltas e cada
bairro era pertencente a uma. Havia dois grandes grupos que reuniam as Maltas: os Nagoas e
Guaiamuns. Os Guaiamuns dominaram o centro do Rio de Janeiro, a parte mais antiga da cidade.
Eram ligados aos crioulos, aos escravos nascidos no Brasil. Já os Nagoas, dominavam a área
do entorno. O termo advém do Nagô, da tradição africana, muitos deles vieram da Bahia. Esses
grupos disputavam território e poder entre si:
valentes, que deram origem às primeiras imagens forjadas em torno do malandro carioca. Essa
primeira representação da malandragem associava o seu modo de vida com o de baderneiros,
aqueles que subvertiam a ordem. Contanto, como coloca Misse (1999), em um segundo mo-
mento, o malandro “passa da navalha para a pistola, mas continua malandro” (p.256), deixando
então de ser enxergado pelo prisma do baderneiro e passando a ser associado ao vagabundo,
que não trabalha ou não gosta de trabalhar.
A representação da figura do malandro carioca está presente em muitas obras literárias
e enredos de samba. Como é uma categoria ambígua, o malandro é retratado de várias maneiras
ao longo da história. Em certos momentos, ele transita entre representações depreciativas, como
as descritas por Lima Barreto, nas quais o malandro “nada tem do malandro simpático” (MISSE,
1999, p.255). Já em outros momentos, diz respeito a alguém que sabe viver se dando bem, como
“nos sambas de Noel, Ismael, Geraldo Pereira e Wilson Batista, [nos quais] o malandro aparece
principalmente sob registro mais boêmio, mulherengo, orgiástico.” (MISSE, 1999, p.256). Esse
segundo seria o malandro do morro que se opõe positivamente ao malandro “herdeiro das mal-
tas e do clientelismo político do antigo regime” (MISSE, 1999, p.256).
A representação do malandro, que nasce antes do surgimento das favelas no Rio de Ja-
neiro, vai adquirindo novas conotações, permitindo, assim, a criação e recriação de tipos sociais.
Com isso, a partir da década de 1960, as tipificações valente e marginal vão se tornar o que
Misse chama de rótulos residuais, em oposição ao protagonismo assumido pela tipificação “va-
gabundo”, que irá se aplicar “indiferentemente ao traficante, ao assaltante, ao pivete, ao seques-
trador” (MISSE, 1999, p.269). Já nos anos 1980, a tipificação “marginal” vai também se tor-
nando um rótulo residual, de modo que o termo “vagabundo” passa a ser usado pelos próprios
traficantes e policiais para fazer referência aos integrantes do tráfico de drogas ou assaltantes,
podendo o emprego da categoria ter teor pejorativo ou não. Ao contrário do que se verificava
entre traficantes e policiais, as mídias vão utilizar, preferencialmente, as tipificações “bandidos”
e “traficante”.
Como se vê, as tipificações vão sendo reapropriadas e, consequentemente, ressignifica-
das pela mídia, polícia, classe média, favela, etc. E tais reapropriações vão refletir as relações
de poder já presentes nas interações e relacionamentos dos diferentes grupos sociais, o que tem
influência direta quanto a qual tipificação irá se sobrepor às demais e aparecer de modo mais
recorrente no plano do senso comum. Por corolário, a representação das classes entendidas
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como subalternas2 se dará, principalmente, a partir de uma discussão sobre a sua suposta peri-
culosidade. Com isso, o objeto da atenção deixa de recair sobre o ato delitivo para incidir sobre
o sujeito que o comete. No caso, sobre o desvirtuador dos valores éticos e morais tradicionais,
daquele que rompe com o pacto social, como já colocava Rousseau. Dessa forma, a represen-
tação daqueles que são entendidos como bandidos será modulada a partir do estigma, da discri-
minação e do preconceito. Uma vez que:
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Os subalternos são “as camadas mais baixas da sociedade constituídas pelos modos específicos de ex-
clusão dos mercados, da representação política e legal, e da possibilidade de se tornarem membros plenos no
estrato social dominante” – SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar? Belo Horizonte: Editora
UFMG (2010 [1985])
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Teorias supracitadas que defendem a ideia de que a raça era um fenômeno final e essencial para a evo-
lução humana. A sociedade era entendida a partir de uma pirâmide social, no topo homens brancos europeus e, na
base, africanos e indígenas.
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“A noção de periculosidade significa que o indivíduo deve ser considerado, pela socie-
dade, pelo nível de suas virtualidades e não ao nível de seus atos e suas infrações efe-
tivas a uma lei efetiva, mas das virtualidades de comportamento que elas represen-
tam.” (FOUCAULT, 2002, p. 85)
Figura 2
FONTE: ilustrações de Types of Mankind (1854), na qual os autores Josiah Clark Nott e George Robins
Gliddon representaram negros como uma categoria intermediária entre gregos e chimpanzés.
Figura 4
Fonte: Lomnitz, Claudio. (2009). Cronótopos de uma nação distópica: o nascimento da "dependência" no
México Mana, 15(1), 91-125. https://doi.org/10.1590/S0104-93132009000100004
Tudo isso resultou em uma política social chamada eugenia, que visava principalmente
o embranquecimento das raças. No caso, marcadores sociais foram construídos e legitimados a
partir de um conhecimento tido como científico e verdadeiro, culminando no que posterior-
mente chamaremos de racismo estrutural. Sendo ele o produto de uma discriminação social
estruturante das relações do sujeito, “o racismo como processo histórico e político, cria as con-
dições sociais para que, direta ou indiretamente, grupos racialmente identificados sejam discri-
minados de forma sistemática” (ALMEIDA, 2018, p. 39).
O processo histórico de racialização, somado à criminologia, construiu a concepção de
que os sujeitos que compunham as classes subalternas eram potencialmente perigosos. E a cons-
trução social da periculosidade desses segmentos marginalizados passou por um processo de
demarcação física e social. O que levou à ideia de que compunham classes caracterizadas pelo
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comportamento delinquente e/ou pela vadiagem. Classes essas que compreendiam, “evidente-
mente, os pobres, os jovens negros, os excêntricos e as minorias sexuais” (MUNIZ, 1999, p.
45). Essas classes serão denominadas “classes perigosas”4.
Nesse momento, novos paradigmas e formas de enxergar os segmentos subalternos vão
sendo instituídos, ganhando corpo, produzindo e reproduzindo os respectivos modos de encarar
o seu comportamento no meio urbano. Afinal, como afirma Jodelet (2001), a “forma de conhe-
cimento, socialmente elaborada e partilhada, com objetivo prático, é que contribui para a cons-
trução de uma realidade comum a um conjunto social” (p. 36).
No início do período republicano brasileiro, os campos do Direito e da Medicina come-
çam a associar a criminalidade com o meio em que os sujeitos estão inseridos. A escassez ma-
terial e a ideia de famílias desestruturadas passam a ser encarados como importantes fatores
capazes de levar à adesão ao crime. Somado a esses aspectos, estaria presente ainda, o que
Diogo Lyra (2013) vai colocar como defasagem civilizatória: “um lapso moral que apartaria o
jovem de dinâmicas coletivas sadias, repelidas em nome de suas convicções individuais detur-
padas” (p. 20).
Os processos sócio-históricos de construção do crime, da criminalidade e do criminoso
acabam por resultar em modos específicos de rotulagem e tipificação da categoria bandido.
Concomitantemente, vão nortear também as políticas públicas “com base nesses argumentos
sobre a precariedade material e moral da juventude pobre, articulados com o problema da fa-
mília e da comunidade, importantes iniciativas jurídicas e legislativas foram tomadas de modo
a solucionar tais questões” (LYRA, 2013, p. 21). Como exemplo, pode-se mencionar, entre
outros, o Código de Menores (1927) e o Juízo de Menores (1923).
Como se vê, no Brasil, a representação hegemônica do tipo social “bandido” será mo-
dulada a partir de perspectivas norteadas por vetores como o estigma, a discriminação, o pre-
conceito e o racismo. Construída a partir de uma generalização e atribuição de valor negativo,
tal categoria será construída tendo por base um determinado estereótipo do bandido. Sendo, no
caso, o bandido:
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Classe composta principalmente por ex-escravos, parcela da população negligenciada e segregada pelo
racismo e desigualdade, desde a época da escravidão. É representada como classe perigosa a partir da Primeira
República, com o processo de urbanização que a cidade do Rio de Janeiro sofre. Será abordada no segundo capítulo
com maior profundidade de análise.
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Aquele cuja morte ou desaparecimento podem ser amplamente desejados. Ele é agente
de práticas criminais para as quais são atribuídos os sentimentos morais mais
repulsivos, o sujeito ao qual se reserva a reação moral mais forte e, por conseguinte,
a punição mais dura”. (MISSE, 2010, p.17)
Atualmente a violência urbana é tida como um dos principais problemas sociais brasi-
leiros, representando um dos maiores desafios com que as políticas de públicas de segurança se
deparam. A expressão violência urbana é amplamente utilizada pelo senso comum, o que acar-
reta a sua generalização e uma falsa sensação de que se trata de algo homogêneo. Dessa forma,
“o termo se reveste de um sentido único, o que, entre outras consequências, dificulta a identifi-
cação dos fenômenos em questão, assim como a compreensão da sua complexidade.” (SILVA,
2015, p. 61).
Enquanto objeto da Ciências Sociais, a violência deve ser tomada em sua pluralidade e
complexidade. Isso porque, “além de polifônica no significado, a ‘violência’ é também múltipla
nas suas manifestações e, portanto, polissêmica.” (SILVA, 2007, p. 23). Assim, por não corres-
ponder a um fenômeno homogêneo, a violência é compreendida a partir de percepções sociais
diferentes sobre quem é violentado, quem violenta e assim por diante. Grupos sociais distintos
têm percepções distintas sobre a violência, de modo que parece mais apropriado se falar em
violências, no plural, sendo necessário compreender a sua construção social, as representações
que a acompanham, relações de forças, etc. As concepções variam e são “produzidas e difun-
didas de acordo com as respectivas capacidades apresentadas pelos agentes e atores sociais no
sentido de definir a realidade conforme os seus interesses e, portanto, nos seus termos.” (SILVA,
2015, p. 73).
Dessa forma, torna-se necessário abordar o processo de construção sócio-histórica da
violência urbana no Brasil, questão social cujo início é, não raro, associada à abolição da escra-
vidão, que fora feita sem nenhum planejamento político que visasse a integração social dos ex-
escravos no meio urbano. Não houve, nesse sentido, nenhuma política de inclusão dessa parcela
da população ou lhe foi oferecida qualquer infraestrutura de suporte, o que, desde então, vem
acarretando a segregação racial, social e territorial da mesma em relação às demais. À época,
os indivíduos e grupos que a compunham eram genericamente classificados como as “massas”,
majoritariamente compostas de ex-escravos ou moradores do campo, que eram encaradas pelo
entorno social, sobretudo pelas elites, como um problema a ser resolvido:
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As “massas” passam a ser representadas como “classes perigosas” e, portanto, tudo que
advém delas é visto como destoante do processo de urbanização em curso no Rio de Janeiro.
Naquele período, moradias populares e cortiços eram derrubados para das espaço a estruturas
que remetiam à capital francesa, o que provocou a fuga das massas para os morros ou lugares
adjacentes das zonas em processo de urbanização. Com isso, tem início o processo de faveliza-
ção e consequente criminalização de tais territórios e de sua população
O tráfico de drogas
A consolidação do tráfico varejista de drogas ilícitas em cidades como o Rio de Janeiro,
nas décadas de 1970/80, constituirá um importante marco nas representações contemporâneas
sobre o banditismo, sua construção social e o lugar ocupado no imaginário sobre violência ur-
bana. Àquela altura, a principal droga comercializada era a cocaína, que passou a fazer parte do
“cardápio de drogas” das bocas de fumo, que desde então estão majoritariamente localizadas
nas favelas cariocas. A entrada da cocaína nas bocas de fumo contribuirá significativamente
para o processo de estruturação do tráfico de drogas. Como assinala Silva (2007),
Os grupos que controlavam o tráfico eram, num primeiro momento, quadrilhas que dis-
putavam território e poder, tendo como principal atividade ilegal o assalto a bancos. Contudo,
durante a ditadura militar, alguns desses integrantes de quadrilhas foram presos nos mesmos
presídios dos presos políticos. O Presídio da Ilha Grande foi um exemplo. Lá teve início uma
nova forma de se organizar as disputas de poder desses grupos e, com isso, estruturar o tráfico,
25
inicialmente de maconha. A troca de experiências entre os presos trouxe uma nova perspectiva
sobre o crime como uma forma de resistência e reinvindicação:
“Os presos políticos organizaram-se dentro das penitenciárias do Rio de Janeiro para
reivindicar alguns direitos que lhes estavam sendo negados. A relativa vitória em suas
reivindicações, na primeira metade dos anos 1970, criou um efeito de demonstração
para os assaltantes de banco comuns, chamados entre os criminosos em geral pela alcu-
nha de “os lei de segurança”. Eles também resolveram organizar-se para reivindicar
direitos e impor seu domínio dentro do sistema penitenciário. Por isso, e pelo fato de
alguns de seus líderes considerarem-se também de esquerda (embora não reconhecidos
assim pelos presos políticos), passaram a designar-se primeiramente como “Falange
Vermelha” e, depois, pela imprensa, como “Comando Vermelho” (CV).”
(MISSE,2011, p.18)
A Falange Vermelha, que daria origem à facção criminosa denominada Comando Ver-
melho, era fundada com o lema: paz, justiça e liberdade. Seus membros reivindicavam os mes-
mos tratamentos e direitos que os presos políticos, de classe média, tinham. O movimento to-
mou corpo e se expandiu para fora das grades do Presídio da Ilha Grande, tendo adesão em
outros presídios do Rio de Janeiro e nas favelas cariocas. Com isso, a Falange Vermelha tomou
posse da maior parte das bocas de fumo, inovando na organização do tráfico, como relata Misse
(2011):
“Entre 1982 e 1985 consolidou-se um modelo de organização interligando em uma rede
as quadrilhas atuantes no varejo, com base na proteção oferecida pelo CV dentro do
sistema penitenciário. O modelo desenvolvido de uma organização em rede dentro do
sistema penitenciário desde então divide-se em dois setores, um “intramuros” e outro
“extramuros”. Vários “donos” (presos ou não) controlam o varejo em uma ou mais fa-
velas, com relativa autonomia em relação aos dirigentes do CV e sem qualquer vínculo
organizacional com os fornecedores da droga no atacado. Seu capital é o exercício, pela
violência, do mandonismo na área, e os contatos com fornecedores intermediários (“mu-
las”) ou mesmo atacadistas. Em cada território dominado pelo tráfico organizou-se uma
divisão de trabalho e uma hierarquia de poder que ainda mantêm-se quase trinta anos
depois, embora em algumas áreas tenha se simplificado em decorrência da forte repres-
são policial na última década: um “dono”, seus “gerentes”, um para a cannabis (gerente
do “preto”), outro para a cocaína (gerente do “branco”) e outro ainda para a segurança
do território (gerente dos “soldados”). Abaixo vêm os “vapores” (vendedores diretos,
cada um com uma “carga” de 300 unidades da droga em média); os “aviões” (que tra-
balham longe da “boca” ou até mesmo fazem a revenda em outros lugares) e os “solda-
dos”, que carregam o armamento pesado e estão preparados para enfrentar invasores
concorrentes (chamados na gíria de “alemães”) ou a polícia.” ( p.19)
Comando Puro (TCP). O CVJ e o TCP são resultados de disputas e rompimentos internos dentro
do próprio CV e TC. Tais comandos estabelecem novos modos de atuação dentro das favelas,
criando inclusive laços territoriais com as comunidades onde surgem. No senso comum mais
amplo, os integrantes desses comandos serão representados como “bandidos” e apontados como
os principais responsáveis pela instituição de novos padrões de criminalidade e, por consequên-
cia, pelo crescimento da violência urbana carioca.
que envolve traficantes, usuários e, não raro, agentes formalmente responsáveis pela provisão
de segurança à população ” (SILVA, 2007, p.. 132).
Com isso, a categoria bandido deixa de representar um elemento difuso (“massas”,
“classes perigosas”) e passa a ter uma face minimamente definida: figura do traficante, que é
associada a grupos sociais específicos, evidenciando como estão estruturadas as relações de
poder e quais são os marcadores sociais daqueles a quem preferencialmente o rótulo de bandido
se aplica
Questões raciais e de classe serão diretamente ligadas a essa representação. O estereó-
tipo de tal categoria. Esse tipo de associação pode ser verificada, por exemplo, na forma como
a mídia noticia ocorrências similares que envolvem pessoas de localidades e classes sociais
diferentes:
Figura 5
Na Zona Sul, área nobre do Rio de Janeiro, a pessoa que está traficando é tida como um
suspeito e o termo tráfico é substituído por “delivery de drogas”. Já na periferia, o indivíduo é
colocado como traficante, e o termo usado para a venda da cocaína é tráfico de drogas e não
“delivery”, como no caso anterior. Com isso, os órgãos de comunicação ajudam a reforçar tais
estereótipos, posto que “operam como atores na construção da representação da ‘violência’ à
medida que discriminam e denunciam determinados tipo de ação, responsabilizando concomi-
tantemente, determinados atores e agentes.” (SILVA, 2017, p. 145).
No limite, não haveria qualquer importância o fato do sujeito que corresponde ao este-
reótipo de bandido fazer ou não parte do crime. Tanto quanto, não importa se cometeu um ato
28
delitivo, já cumpriu sua pena e não voltou a cometer crimes. Estes, sempre serão tipificados
como bandidos, uma vez que essa condição é percebida por muitos como quase que irrecupe-
rável, uma vez que é fruto da essência desses sujeitos. A rotulagem de bandido encontra-se,
assim, intimamente relacionado à pobreza e aos territórios que circunscrevem as regiões mar-
ginalizadas.
A categoria irá rotular os moradores das favelas em geral. Ademais, sobretudo, os ho-
mens negros tenderão a ser estigmatizados como bandidos, não importando se cometeram ou
não um crime ou, ainda, se fazem parte de alguma organização criminosa. A categoria bandido
passa, assim, a ser apreendida a partir da sujeição criminal de determinados segmentos, fazendo
com que essa tipificação social seja vista como inerente a certos sujeitos. E isso a despeito dele
realmente ter cometido algum crime ou se somente corresponde ao estereótipo de bandido. Há,
assim, uma incriminação dos sujeitos que até certo ponto independe do crime cometido:
Dessa forma, pensar a categoria bandido sem desnaturalizá-la é não reconhecer toda a
complexidade acerca da sua construção sócio-histórica. Como também, não considerar o fenô-
meno social da sujeição criminal é concordar que há uma essência criminosa nos membros das
“classes perigosas” e, por tanto, tomá-los como responsáveis pelo recrudescimento da violência
urbana. No caso, “a ideia de violência encontra-se, diretamente, associada a práticas criminosas,
não ficando claro, porém, se há distinção entre um e outro” (SILVA, 2015, p. 65). De todo modo,
o seu propalado avanço seria percebido como o oposto da ordem, um mal social, uma espécie
de adoecimento social gerado pela ausência do Estado. Além do mais, esse tipo de representa-
ção contribui para o entendimento de que a violência é algo natural, que se configura de forma
homogênea e auto-evidente na sociedade. A isso vai se somar a imagem de que, no passado, a
criminalidade era menos violenta, o que teria sido transformado com a consolidação do tráfico
varejista de drogas.
29
Desse modo, a violência urbana vai ser imputada ao tráfico e a figura do bandido será
preferencialmente associada ao traficante. Assim, se num primeiro momento, tínhamos o ban-
dido benfeitor, malandro, a partir das décadas de 1970/80, a percepção do aumento da violência
vai conferir ao tráfico de drogas e, mais objetivamente, ao traficante, representações que o de-
finirão como o grande mal a ser combatido, posto que este seria comparativamente mais vio-
lento e perigoso que seus antecessores. A partir daí, como nota Silva (2015),
Seja como for, no passado ou no presente, as “classes perigosas” e seus territórios serão
tidos como um problema social a ser resolvido. Desde o seu surgimento, as favelas tenderão a
ser vistas como um obstáculo a dificultar qualquer possibilidade de integração social homogê-
nea, constituindo-se numa espécie de quisto que ameaça a organização social da cidade (Ma-
chado da Silva, 2002). É lá que, segundo o discurso social dominante, o tráfico de drogas e,
portanto, o banditismo “faz morada”, o que, por desdobramento, leva quaisquer habitantes de
tais localidades a serem vistos como possíveis envolvidos com o “movimento”.
30
5
“O roubo simples, sem arma de nenhum tipo e com pouca violência física ou psicológica, teve a pena
reduzida para três a seis anos. Se o crime for praticado por meio incapaz de causar qualquer dano físico ou relevante
lesão psicológica, a pena do roubo simples pode ser reduzida de um sexto até um terço. O assalto praticado com
arma de brinquedo se enquadra no roubo simples.” - https://www.conjur.com.br/2012-jun-11/cp-tipifica-saidinha-
bancos-cria-delacao-premiada-sequestro
6
“O crime de furto é descrito como subtração, ou seja, diminuição do patrimônio de outra pessoa, sem
que haja violência. O Código Penal prevê para o furto pena de reclusão de 1 a 4 anos e multa.A lei prevê aumento
de pena para quem cometa o crime durante a noite, e para os casos de furto de pequeno valor, permite diminuição
ou até perdão de pena, aplicando-se apenas a pena de multa, é o chamado furto privilegiado.” -
https://www.tjdft.jus.br/institucional/imprensa/campanhas-e-produtos/direito-facil/edicao-semanal/furto-e-roubo
31
Figura 6
Fonte: https://www.cartacapital.com.br/sociedade/juiza-diz-que-homem-e-integrante-de-grupo-criminoso-em-razao-de-sua-raca/
Segundo reportagem publicada no site G1, também no dia 12 de agosto de 2020, a defesa
de Natan Vieira não só questionava, como estaria pronta para recorrer da sentença:
“A advogada Thayse Pozzobon, que defende Natan, afirmou que vai recorrer
da decisão.
"A raça dele não pode, de maneira alguma, ser relacionada com os fatos que ele
supostamente praticou", afirmou a advogada.
"Essa referência dele aparece mais de uma vez na sentença. Não é um erro de
digitação, por exemplo. Isso revela o olhar parcial da juíza, e um magistrado
tem o dever da imparcialidade", afirmou.
A sentença deferida pela magistrada aborda a raça como um dos critérios para sua deci-
são, sendo utilizado pela Juíza enquanto realizava a dosimetria da pena7. Nota se que as escolhas
das palavras também dizem muito sobre as concepções raciais da juíza, a ponto de estarem
presentes no cálculo da sentença, correspondendo ao acréscimo de sete meses. Mesmo afir-
mando nada saber sobre a conduta social de Natan Vieira, o fato de ser negro já seria suficiente
para aumentar o tempo da sua pena.
7
Cálculo feito para definir a pena, a partir do lastro probatório mínimo
8
“Criminoso é: a) o indivíduo que age em contradição com a lei penal; e b) sofre condenação oficial. A omissão
no termo b elimina a concreticidade da definição, conduzindo a um conceito ideal de criminoso, válido apenas no
mundo das abstrações metafísicas. O infrator que, por se haver extraviado em qualquer etapa do percurso que
conduz ao claro da ordem formal, se oculta na cifra negra não é criminoso, nem seu ato constitui crime:” (THO-
MPSON, 2007, p.127)
33
Como já abordado nos capítulos anteriores, a questão racial está intimamente ligada à
construção sócio-histórica das “classes perigosas” que, via de regra, são responsabilizadas pelas
mazelas da sociedade, por promoverem a desordem social. A continuidade em relação a esse
imaginário pode ser depreendido, por exemplo, das palavras da juíza, cuja sentença afirma que
os réus “causavam o desassossego e desesperança da população”.
O caso abre muitas possibilidades de discussão, incluindo a tendência de se associar
todo e qualquer crime a uma organização criminosa. No caso, nove homens que cometiam fur-
tos no mesmo lugar supostamente teriam se associado, passando, assim, a compor uma organi-
zação criminosa para a efetuação de pequenos furtos. Contudo, cabe a pergunta: será que essas
pessoas – que supostamente se conhecem e cometem crime no mesmo lugar – constituem,
necessariamente, uma organização criminosa? Embora este trabalho não disponha de elementos
que permitam responder a esse tipo de questionamento, cabe a provocação.
Segundo o Código Penal, para se configurar uma organização criminosa é necessário
que haja a associação de 4 ou mais pessoas, divisão de tarefas, objetivo econômico e a prática
de infrações graves. Fato é que, independentemente de cumprirem tais requisitos, não há, na
legislação, qualquer menção a critério racial como um elemento que possa ser utilizado para se
definir uma organização criminosa, o que levou especialistas a categorizar o deferimento da
juíza como uma sentença racista, logo, passível de nulidade por infringir o pressuposto de que
o Direito brasileiro é imparcial, respeita os Direitos Humanos e o que prevê a legislação inter-
nacional:
Figuras 7
Augusto Thompson (2007) identifica alguns fatores que denotam o caráter discrimina-
tório do crime, cuja existência empurraria “o binômio crime/criminoso no caminho da conde-
nação”:
O segundo item listado vai ao encontro da tese segundo a qual a população negra é
normalmente representada por estigmas e estereótipos, o que torna homogêneo e singulariza a
sua identidade em razão de um único fator: a raça. Trata-se de um evidente reducionismo que
ainda tem lugar no nosso imaginário social acerca de quais são os papeis sociais e os lugares
que a população negra ocupa (ou deve ocupar) na sociedade.
Em relação aos dos papeis sociais, Shinyahshiki (2002) esclarece que eles dizem res-
peito a um conjunto de expectativas às atitudes dos diferentes sujeitos. Contudo, mesmo um
único sujeito não exerce somente um papel social, mas vários (pai, trabalhador, marido, etc.).
Alguns desses papeis acabam se sobrepondo aos outros, estabelecendo o status social do sujeito,
que determina não só o lugar social que ocupa, mas também seus direitos e deveres. No caso
da condenação de Natan Vieira, o status de criminoso se sobrepôs a qualquer papel social que
ele eventualmente viesse a desempenhar, o que o tornava especialmente passível de punição,
dado o processo de identificação social que, salvo melhor juízo, teria precedido o julgamento.
Como assinala Thompson (2007), “o status do delinquente é atribuído às pessoas não pelo que
fizeram, mas pelo que são” (p. 55). Ou seja, pelos papeis que desempenham e sua posição social.
37
“Essa forma de ver- as coisas gera duas consequências extremamente úteis para
a manutenção do status quo, razão por que merece os aplausos do sistema: a)
fortalece a ideia de que à sociedade, para ser perfeita, falta apenas curar (ou
neutralizar) os seus desviantes - o que traz embutida a afirmação de que estru-
turalmente a sociedade é perfeita -, colocação que desvia a atenção das pessoas,
levando-as a questionar o funcionamento do sistema e a deixar em paz a vali-
dade de seus fundamentos; b) autoriza o Estado a se apropriar, de maneira e em
extensão ilimitadas, dos indivíduos que reagem a se submeter pacificamente às
normas opressoras.” ( p. 125)
A rotulagem de alguém como bandido ou criminoso opera, nesses casos, como o esta-
belecimento de um marcador social que evidencia estigmas e preconceitos já existentes há tem-
pos. De acordo com Thompson (2007), uma das consequências disso é “a classificação de al-
guém como criminoso, muito mais em função de suas características do que pelo ato efetiva-
mente praticado, que abre ensejo ao poder para tomá-lo sob sua guarda e submetê-lo a uma
operação de ortopedia social”. (p. 123), concorrendo, assim, para a construção social da peri-
culosidade e, portanto, de diferentes formas de discriminação social. A “elevação de certos
comportamentos à classificação de crimes e, sobretudo, a designação de certos indivíduos para
serem oficialmente considerados criminosos estão diretamente ligadas com a hierarquização
social e o esforço de manutenção do status quo que interessa às classes dominantes.” (THOM-
PSON, 2007, p. 130).
A defesa da juíza
Conforme a já referida reportagem publicada no site G1, no dia 12 de agosto de 2020, a
magistrada também soltou uma nota em sua defesa, na qual alegava que sua fala foi retirada de
contexto, o que teria levado a um equívoco de interpretação:
"A respeito dos fatos noticiados pela imprensa envolvendo trechos de sentença criminal
por mim proferida, informo que em nenhum momento houve o propósito de discriminar
38
qualquer pessoa por conta de sua cor. O racismo representa uma prática odiosa que
causa prejuízo ao avanço civilizatório, econômico e social. A linguagem, não raro,
quando extraída de um contexto, pode causar dubiedades. Sinto-me profundamente en-
tristecida se fiz chegar, de forma inadequada, uma mensagem à sociedade que não con-
diz com os valores que todos nós devemos diuturnamente defender. A frase que tem
causado dubiedade quanto à existência de discriminação foi retirada de uma sentença
proferida em processo de organização criminosa composta por pelo menos 09 (nove)
pessoas que atuavam em praças públicas na cidade de Curitiba, praticando assaltos e
furtos. Depois de investigação policial, parte da organização foi identificada e, após a
instrução, todos foram condenados, independentemente de cor, em razão da prova exis-
tente nos autos. Em nenhum momento a cor foi utilizada – e nem poderia – como fator
para concluir, como base da fundamentação da sentença, que o acusado pertence a uma
organização criminosa. A avaliação é sempre feita com base em provas. A frase foi
retirada, portanto, de um contexto maior, próprio de uma sentença extensa, com mais
de cem páginas. Reafirmo que a cor da pele de um ser humano jamais serviu ou servirá
de argumento ou fundamento para a tomada de decisões judiciais. O racismo é prática
intolerável em qualquer civilização e não condiz com os valores que defendo. Peço sin-
ceras desculpas se de alguma forma, em razão da interpretação do trecho específico da
sentença (pag. 117), ofendi a alguém".
Devido à sentença em tela, foi aberto um processo disciplinar contra a juíza Inês Mar-
chalek Zarpelon, mas, como informa uma reportagem publicada na Revista Consultor Jurídico,
no dia 28 de setembro de 2020, o Tribunal de Justiça do Paraná (TJ-PR) decidiu pelo arquiva-
mento do processo:
De fato, a juíza pode não ter aumentado a pena em 7 meses em função da raça, como
alega a defesa de Natan Vieira. Mas, permanece um questionamento: qual seria o contexto pos-
sível para colocar “em razão da sua raça” numa sentença onde os crimes analisados são os de
associação criminosa e furto, não o crime de racismo? O fato da juíza, supostamente, não pro-
longar a pena devido à raça de Natan Vieira não a isenta de ter proferido uma fala de caráter
39
racista: "seguramente integrante do grupo criminoso, em razão da sua raça, agia de forma extrema-
mente discreta os delitos e o seu comportamento, juntamente com os demais, causavam o desassossego
e a desesperança da população, pelo que deve ser valorada negativamente (sic)".
Dado o lugar privilegiado que a juíza ocupa em nossa estrutura social, torna-se possível
alegar que o que ocorreu foi uma falha interpretativa. Isso porque o papel social por ela desem-
penhado está associado não só à expectativa, mas à crença na imparcialidade para sentenciar,
uma vez que, em nossa sociedade, “o juiz (...) é visto como um agente extremamente esclare-
cido, quase clarividente, capaz de formular um julgamento racional, imparcial e neutro,
que descubra não só a "verdade real" dos fatos, mas as verdadeiras intenções dos agentes.”
(KANT DE LIMA, 1999, p. 32).
Tudo se passa como se os seus privilégios, a sua classe social, os seus valores não inter-
ferissem na interpretação dos fatos, não tendo, assim, nenhuma influência no estabelecimento
da dosimetria das penas ou em qualquer outra decisão técnica que lhe caiba. Por força de nossa
tradição inquisitorial, os juízes são representados como detentores da verdade, como pessoas
qualificadas para julgar e analisar os fatos de forma imparcial, técnica e, portanto, neutra.
Como assinala Kant de Lima (1999), o sistema jurídico brasileiro é “o produto de uma
reflexão iluminada, uma "ciência normativa", que tem por objetivo o controle de uma população
sem educação, desorganizada e primitiva.” (p. 25). De onde se conclui que, apesar dos discursos
em contrário, não é possível haver neutralidade, nem muito menos imparcialidade em julga-
mentos como o de Natan. Por conseguinte, desconsiderar a construção sócio-histórica que leva
sujeitos como ele a serem preferencialmente classificados como bandidos implica em reforçar
o status quo, naturalizar as tipificações sociais, rotulagens, etc., garantindo, assim, a manuten-
ção da estrutura social dominante. E como vimos, isso tem sérios efeitos no que tange à repro-
dução da discriminação e da violência estrutural que, não raro, tendem a pesar mais sobre os
grupos vulneráveis da nossa sociedade, sabidamente hierárquica e desigual.
40
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este trabalho teve por objetivo analisar alguns aspectos da construção sócio-histórica
do banditismo no Brasil e, mais especificamente, no Rio de Janeiro, procurando identificar a
estrutura social que produz e reproduz a tipificação do bandido. Pretendeu-se desnaturalizar as
relações sociais, compreendendo as representações e tipificações sociais como processos sele-
tivos, que fazem com que o rótulo se torne um marcador social de grupos sociais específicos.
Conforme discutido, a emergência da categoria bandido está intimamente ligada à cons-
trução social do desvio. A análise de sua construção sócio-histórica põe em relevo tanto pres-
supostos teóricos quanto interesses políticos e econômicos que contribuíram para a constituição
do imaginário social acerca do que deve ser considerado um desvio. Originalmente, a concep-
ção do desvio se respalda na concepção natural e biológica dos criminosos, não percebendo o
crime como um fato social, mas como resultado da essência criminosa de grupos sociais espe-
cíficos.
Logo, marcadores sociais são reforçados a partir de estigmas e preconceitos de uma
discriminação social estruturante. A ideia de desvio como essência de grupos socais específicos
resulta na construção social da periculosidade de segmentos sociais específicos, rotulados ge-
nericamente como “classes perigosas”. Com isso, se constrói uma percepção sobre a realidade
comum a um conjunto social, constituindo concepções identitárias e representativas de como a
violência, o crime e o criminoso vão sendo compreendidos socialmente, o que se vê referido na
aplicação de regras, tanto sociais quanto jurídicas, que obedecerão à mesma lógica.
Essa “massa”, que será representada como “classes perigosas”, será apontada como a
principal responsável pelo avanço da violência urbana no Rio de Janeiro. Os sujeitos que a
compõe corresponderão, assim, ao imaginário social de periculosidade, sendo encarados como
prováveis criminosos e um perigo iminente à ordem pública. Com o passar do tempo, a ideia
de criminoso vai se tornando cada vez mais sinônimo de traficante, haja vista que a estruturação
do tráfico varejista de drogas ilícitas nas décadas de 1970/80 e a concomitante mudança nos
padrões de criminalidade. Isso faz crimes individuais deixarem de ser percebidos como tais,
sendo então associados a organizações estruturadas no período e que contam com crescente
visibilidade social.
41
Dessa forma, o crime organizado e sua face externa, o tráfico de drogas, passam a ser
tidos como os responsáveis pelos diferentes crimes que acontecem. A violência urbana, essa
espécie de “mal difuso”, ganha então uma “cara”, posto que será diretamente associada às re-
feridas tipificações criminais. Nesse sentido, basta corresponder ao estereótipo das classes pe-
rigosas ou mesmo frequentar um determinado grupo, para ser potencialmente visto como per-
tencente a uma organização criminosa. Daí, por exemplo, um grupo de jovens negros conver-
sando pode ser, em muitos contextos, facilmente enquadrado pela polícia como um bando de
suspeitos.
Este trabalho analisa, então, a violência urbana, não como um conceito, mas como uma
representação de um grupo social histórica e socialmente construída, que descreve de forma
seletiva a realidade social. Sendo a concepção de violência urbana associada à perturbação da
ordem e à culpabilização de classes estigmatizadas que, segundo tal perspectiva, operariam no
sentido “inverso da ordem, da paz ou do “bom funcionamento” das instituições sociais.”
(SILVA, 2015, P. 62). Desse modo, a tipificação do bandido e os processos de culpabilização
dos sujeitos e grupos levam a rotulagem a ser aplicada, frequentemente, a despeito do cometi-
mento de um crime. Como dito, o curso de ação, por vezes, importa menos do que é responsável
por ele, o que tem a ver com a ideia de uma essência. Basta, assim, corresponder ao estereótipo
de bandido para ser considerado um.
Essa visão informa não só a visão do senso comum, mas também a visão dos agentes e
órgãos do Estado que atuam na área da segurança pública e da justiça criminal, tais como poli-
ciais e juízes. É isso o que denota o caso da sentença dada no ano de 2020 pela juíza Inês Mar-
chalek Zarpelon, da 1ª Vara Criminal da Comarca da Região Metropolitana de Curitiba (PR).
Embora a análise da categoria bandido tenha sido realizada tomando como recorte inicial a
cidade do Rio de Janeiro, os princípios de evidenciação do racismo parecem ser os mesmos: a
violência urbana como produto das ações de grupos e segmentos sociais específicos, não raro
compostos de indivíduos negros e periféricos. Tais problemáticas são presentes no Brasil como
um todo, sendo representadas de formas plurais em todo o território nacional. Daí a utilização
da sentença realizada em Curitiba, já que o caso traz aspectos relevantes para compreender
como o racismo e a ideia de uma essência criminosa têm recorrentes efeitos práticos na vida de
determinados sujeitos.
Como abordado no primeiro capítulo, regras são criadas e construídas por grupos sociais,
podendo variar de acordo com aquele a que se pertence. Assim, o que a regra determina que é
42
certo muda de acordo com o grupo analisado. Para analisar o desvio é preciso primeiro identi-
ficar qual grupo social construiu essa regra e em que grupo essa regra tem validade. Entendendo
que, quando uma regra é criada, cria-se também a possibilidade dessa regra ser quebrada. A
possibilidade de transgressão surge, assim, juntamente com a criação da própria regra. Ou seja,
quando a regra é criada, cria-se automaticamente o potencial transgressor e sua culpabilidade.
Nesse sentido, do ponto de vista institucional, o sistema judiciário, assim como a polícia,
cumpre um importante papel, uma vez que atua como garantidor da ordem e, portanto, da ma-
nutenção da estrutura social. No caso da pesquisa, as classes sociais menos favorecidas e com-
postas, principalmente, de homens negros, se configuram no imaginário social como alvos pre-
ferenciais das acusações de transgressão e de imposição de riscos à sociedade como um todo.
Em uma sociedade onde o jargão “bandido bom é bandido morto” é reproduzido com
bastante regularidade, torna-se necessário analisar o processo sócio-histórico no qual se confi-
gura a categoria bandido. Com isso, espera-se contribuir para a desnaturalização do sentido
comumente dado à tipificação do bandido e olhar de forma mais crítica a que pessoas esse rótulo
é normalmente imputado, identificando os porquês disso e seus efeitos nas vidas de determina-
das classes sociais cujos integrantes melhor correspondem ao estereótipo de “bandido”.
É desse modo que se delineia o exercício de tornar o familiar em exótico, que tanto
discutimos durante a graduação em Ciências Sociais. Esse movimento sempre permite a cons-
trução de novas possibilidades analíticas das relações sociais, das estruturas e dos mecanismos
empregados para a manutenção do status quo. Finalizo essa graduação, mas sigo numa segunda,
em Psicologia, levando comigo esse exercício, compreendendo a sua importância e tendo pla-
nos de dar continuidade à pesquisa em outros espaços. Entendo que é fundamental romper com
visões segundo as quais as classificações sociais, estigmas e rotulagem derivam de patologias
ou essências dos sujeitos, mostrando que eles são parte de complexos processos que envolvem
diferentes grupos, visões de mundo e interesses.
43
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