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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA

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Mónica Salomón
organização

Atores não estatais


e redes transnacionais
na interface das políticas
doméstica e internacional
contemporâneas

Seis estudos de caso a partir


da disciplina das Relações
Internacionais

2022
© 2022 Editora da UFSC

Coordenação editorial:
Júlia Crochemore Restrepo
Capa:
Giulia Milezzi
Editoração:
Cristiano Tarouco
Natalia Raposo
Revisão:
Júlia Crochemore Restrepo

Catalogação na fonte pela Biblioteca Universitária da Universidade Federal de Santa Catarina

A881 Atores não estatais e redes transnacionais na interface das políticas


doméstica e internacional contemporâneas [recurso eletrônico] :
seis estudos de caso a partir da disciplina das relações internacionais
/ organização Mónica Salomón. – Florianópolis : Editora da UFSC,
2022.
229 p. : il.
E-book (PDF)
Disponível em: https://doi.org/10.5007/978-65-5805-045-2
ISBN 978-65-5805-045-2
1. Relações internacionais. 2. Ciência política. 3. Política inter-
nacional. I. Salomón, Mónica.
CDU: 327

Ficha catalográfica elaborada por Fabrício Silva Assumpção – CRB-14/1673

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra poderá


ser reproduzida, arquivada ou transmitida por qualquer meio
ou forma sem prévia permissão por escrito da Editora da UFSC.
Sumário

Introdução de Mónica Salomón .......................................................................6

A rede de ativismo transnacional


contra o apartheid na África do Sul ..........................................................17
Pablo de Rezende Saturnino Braga

As redes transnacionais da sociedade civil na governança


global de alimentos: construindo espaços de participação ...................55
Felipe Jhonatan Alessio

Redes de ativistas transnacionais nas Nações Unidas:


o caso do lesbian caucus na IV Conferência Mundial
sobre as Mulheres .................................................................................... 97
Ana Luci Paz Lopes

Quinta-feira, o relógio marca 15:30 h, e elas marcham:


as Mães da Praça de Maio na busca dos desaparecidos
da ditadura civil-militar argentina (1976-1983) .......................... 125
Gabriel Roberto Dauer

A atuação de redes feministas transnacionais


contra a ocupação israelense da Palestina ................................ 159
Tamara Rusansky

Redes criminosas: uma análise da Al-Qaeda em


contraste com as redes de ativistas transnacionais ............... 187
Júlia França de Abreu

Conclusão de Marisa von Bülow .................................................................. 216


Sobre os autores .............................................................................................. 228
Introdução

Nas últimas décadas, a maior facilidade para agir e estabelecer


conexões através das fronteiras estatais propiciada pela globalização tem
potenciado a atuação política transnacional de atores não estatais da
sociedade civil, isto é, atores alheios às esferas do Estado e do mercado
que se mobilizam em prol de objetivos como a proteção ou a ampliação
de direitos de determinados grupos, a disseminação de normas, a
modificação de políticas públicas (de alcance nacional, regional ou global)
ou a participação em instâncias públicas de tomada de decisões. Alguns
deles são organizações nacionais que perseguem objetivos basicamente
nacionais e que procuram apoios transnacionais para incidir sobre seus
próprios governos. Outros – seja desde sua constituição ou a partir da
união de vários grupos nacionais – são atores transnacionais.
Esta obra trata desses atores e das estratégias e práticas (consolidadas
em “repertórios” mais ou menos estabelecidos) que eles desenvolvem para
alcançar suas metas, com especial ênfase na sua dimensão transnacional,
ou seja, em como esses atores não estatais da sociedade civil se mobilizam
estrategicamente através das fronteiras e atuam nos planos da política
doméstica e internacional – embora não necessariamente na mesma
medida e ao mesmo tempo – para tentar influir na governança global e/
ou nas políticas internas nacionais.
O estudo da ação coletiva de atores não estatais – especialmente de
movimentos sociais – tem uma longa tradição nas ciências sociais. Marx,
Lenin e Gramsci são considerados precursores do campo de estudo dos
movimentos sociais, campo desenvolvido a partir da década de 1960
em diferentes áreas disciplinares, principalmente na sociologia, mas
com presença cada vez mais importante na ciência política, na história,
na antropologia, na psicologia social ou na geografia, entre outras
(ROGGEBAND; KLANDERMANS, 2017).
Por sua vez, nesse grande corpus, e em particular no seu núcleo
sociológico, é possível identificar pelo menos três grandes paradigmas
ou tradições de pensamento (GOHN, 2011). Em primeiro lugar, o
paradigma norte-americano, com ênfase nas maneiras como as estruturas
organizacionais políticas e econômicas e a ação coletiva moldam os
movimentos sociais. A teoria de mobilização de recursos de M. Olson
(1965) e a pesquisa sobre confronto político (contentious politics) iniciada
por Charles Tilly (1978) são dois focos importantes desse paradigma. Em
segundo lugar, o paradigma marxista, prevalente na Europa, onde o estudo
dos movimentos sociais privilegiou tradicionalmente os grandes processos
históricos e a luta de classes, com ênfase nas estruturas em oposição aos
agentes ou atores específicos. Um terceiro paradigma, também com base
territorial europeia, é o focado nos chamados “novos movimentos sociais”
(movimento negro, feminista, ambientalista etc.) (TOURAINE, 1969) e dá
especial atenção a elementos ideacionais, como cultura e identidade.
Segundo Gohn (2011), cujo mapeamento das teorias dos movimentos
sociais (GOHN, 1997) é muito influente no meio acadêmico brasileiro,
a releitura crítica que se faz na América Latina das teorias europeias e
norte-americanas, utilizadas sobretudo na análise de movimentos sociais
autóctones (por moradia, de mulheres, de educação popular etc.) poderia
estar dando lugar a um paradigma próprio. Contudo, ela chamava a atenção
(referindo-se à sociologia) para o “quase total silêncio sobre a produção e o
paradigma norte-americano” (GOHN, 2011, p. 208). Bringel (2011) atribuía
esse silêncio, pelo menos em parte, aos receios que o “imperialismo” dos
Estados Unidos tradicionalmente despertou na região, bem como a padrões
de difusão de ideias que facilitaram a recepção, nos nossos países, das teorias
europeias, isto é, das correntes marxistas-estruturalistas e das teorias sobre os
novos movimentos sociais. No entanto, o próprio Bringel argumentava que
as coisas estavam começando a mudar. Seu artigo, precisamente, comentava
uma conferência proferida em agosto de 2010 por Sidney Tarrow, um dos
maiores expoentes da pesquisa sobre confronto político (TARROW, 1994)
na nossa Universidade Federal de Santa Catarina em ocasião de sua primeira
visita ao Brasil. Tarrow tinha sido convidado ao I Seminário Internacional

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sobre Movimentos Sociais, Participação e Democracia, organizado pelo
Núcleo de Pesquisa em Movimentos Sociais (NPMS) da UFSC. O NPMS,
fundado em 1983 pela reconhecida pesquisadora Ilse Scherer-Warren
e vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia Política da
UFSC, é um dos principais – por não dizer o principal – núcleo de pesquisa
sobre movimentos sociais no Brasil. O convite que o núcleo fez a Tarrow
refletia o renovado interesse da sociologia brasileira pelas contribuições
norte-americanas à teoria dos movimentos sociais em geral e pela obra de
Tarrow (especialmente em relação à análise do “confronto político”) em
particular. Esse interesse também se refletia na tradução ao português, em
2009, de Power in Movement (cuja versão original foi publicada em 1994),
bem como na publicação de artigos dos principais referentes da linha de
pesquisa em política de confronto em importantes veículos acadêmicos
locais (MCADAM; TARROW; TILLY, 2009; TARROW, 2009).
Na disciplina das Relações Internacionais, na qual a presente obra se
insere, os pesos e padrões de difusão de influências são outros. As Relações
Internacionais se constituíram, originariamente, como uma “ciência social
(norte-)americana” (HOFFMANN, 1977) e, inclusive na atualidade,
o principal foco a partir do qual as ideias e teorias são disseminadas
continuam sendo os Estados Unidos. No caso da pesquisa específica sobre
a atuação transnacional de atores não estatais, os principais referentes são,
por um lado, as teorias norte-americanas sobre movimentos sociais, que em
grande medida foram “importadas” às Relações Internacionais através da
obra seminal de Margaret Keck e Kathryn Sikkink Activists beyond Borders
(1998), e, por outro, as próprias contribuições de Keck e Sikkink, que por
sua vez tiveram uma boa recepção por parte dos teóricos dos movimentos
sociais, especialmente Tarrow e outros autores vinculados ao projeto de
pesquisa sobre movimentos sociais/confronto político.
Embora a ação coletiva através das fronteiras não seja exatamente um
fenômeno novo, as dimensões que adquiriu a partir da intensificação dos
fenômenos da globalização e internacionalização desde a década de 1970
chamaram a atenção tanto dos estudiosos tradicionais dos movimentos
sociais/confronto político como daqueles que, a partir da disciplina
das Relações Internacionais, se ocupavam dos atores e das relações
transnacionais. A partir da década de 1990, essa atenção se intensificou.
Por um lado, ocorreram manifestações importantes de “transgressão
transnacional” (TARROW, 2005), como os protestos contra as negociações

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do Tratado Norte-Americano de Livre Comércio (NAFTA), as mobilizações
contra a proposta de criação de uma Área de Livre Comércio das Américas
(ALCA) e o impactante episódio da chamada “Batalha de Seattle”, quando
milhares de manifestantes de todo o mundo protestaram nas ruas da cidade
estadunidense contra as políticas neoliberais e impediram que algumas
das reuniões da Organização Mundial do Comércio, que iniciava então as
negociações da chamada Rodada do Milênio, fossem realizadas. Por outro
lado, o desenvolvimento e o barateamento das tecnologias da informação
e da comunicação propiciaram nessa década um crescimento exponencial
de organizações intergovernamentais (OIGs) e de organizações não
governamentais (ONGs) articuladas transnacionalmente.
Nas Relações Internacionais, a agenda de pesquisa sobre relações
transnacionais (relações entre empresas, organizações não governamentais
e outros atores sociais através das fronteiras nacionais) recebeu um forte
impulso nos Estados Unidos a partir da publicação das obras de Joseph
Nye e Robert Keohane (NYE; KEOHANE, 1971; KEOHANE; NYE,
2001) e do outro lado do Atlântico por Marcel Merle, pioneiro na análise
das “forças transnacionais” (MERLE, 1974). Posteriormente ela foi
desenvolvida por uma série de autores mais ou menos identificados com
as correntes liberais que questionavam o foco no Estado e nas temáticas
de segurança da corrente realista dominante na disciplina e que, ao
menos inicialmente, aspiravam a construir um paradigma alternativo
ao Realismo que fosse capaz de dar conta da crescente complexidade e
das transformações da política mundial contemporânea (MANSBACH;
FERGUSON; LAMPERT, 1976; MANSBACH; VASQUEZ, 1981).
Mas foi sem dúvida a publicação da obra de Margaret Keck e
Kathryn Sikkink, Activists beyond Borders, em 1998, o que marcou uma
nova etapa no estudo de atores não estatais e sua articulação em redes nas
Relações Internacionais. A obra trata, especificamente, do que as autoras
chamaram “redes transnacionais de ativistas” (transnational advocacy
networks): estruturas organizativas horizontais (sem hierarquia definida) a
partir das quais seus membros (ONGs, movimentos sociais e outros atores
da sociedade civil) se articulam para influenciar na política internacional
e/ou interna promovendo causas (meio ambiente, direitos humanos,
desenvolvimento, entre outras), princípios e normas.
A tipologia de Keck e Sikkink (1998, p. 16-25) sobre as estratégias ou
formas de atuação que as redes de advocacia desenvolvem para promover

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suas causas (uma tipologia em boa medida extrapolável a outros tipos de
redes transgovernamentais e a atores não estatais individuais) sintetiza
modos de atuação já identificados pela literatura dos movimentos sociais em
suas diferentes vertentes. Ela se tem tornado extremamente popular entre os
estudiosos das Relações Internacionais interessados nessa agenda de pesquisa,
e todos os estudos de caso incluídos nesta obra a levam em consideração.
Segundo essa tipologia, as redes de ativistas transnacionais alcançam
(total ou parcialmente) seus objetivos: (1) gerando informação confiável
de maneira rápida dirigida aos meios de comunicação, aos tomadores de
decisões, ou diretamente ao público (política de informação); (2) criando
símbolos ou narrativas capazes de atrair a atenção de audiências variadas
e às vezes distantes (política simbólica), para o que se faz necessário criar
estruturas compartilhadas de significado (“enquadramento” ou framing)
sobre o diagnóstico da situação na qual se pretende agir e suas possíveis
soluções; (3) aliando-se com atores mais poderosos e mais capazes de mudar
uma situação que os próprios membros da rede de ativistas, como Estados
ou organizações internacionais (política de “incidência” ou leverage); e (4)
usando mecanismos de prestação de contas já existentes (como processos
judiciais contra o governo no próprio país) ou outros mecanismos de
denúncia para pôr em evidência os governos que não cumprem com os
compromissos previamente assumidos ou com os princípios previamente
declarados (política de responsabilização) (KECK; SIKKINK; 1998, p. 16-25).
Além de levar às Relações Internacionais uma excelente síntese dos
conceitos e discussões presentes na literatura acadêmica dos movimentos
sociais/confronto político – uma contribuição importante para a análise da
temática específica de atores e relações transnacionais – essa “polinização”
contribuiu para a abertura geral da disciplina, relativamente isolada das
demais ciências sociais durante a Guerra Fria, a novas ideias e modos
de fazer pesquisa. Aliás, esse trabalho de aproximação entre as Relações
Internacionais, a Sociologia e a Política Comparada faz parte da essência
da corrente construtivista da Ciência Política e das Relações Internacionais
(FINNEMORE; SIKKINK, 2001), com a qual as autoras se identificam.
Mas também deve ser destacado que Keck e Sikkink contribuíram
à teoria geral dos movimentos sociais/ativismo/confronto político com
conceitos próprios. Sua principal contribuição – a conceituação do chamado
boomerang pattern (padrão ou efeito bumerangue) –, amplamente adotada
pelos estudiosos interessados na transnacionalização dos movimentos

<< Sumário Introdução 10


sociais, descreve a lógica da formação da rede transnacional de ativistas e
ao mesmo tempo a maneira como ela age. O efeito bumerangue consiste,
basicamente, na busca de apoio externo por parte de ativistas internos para
pressionar seu próprio governo. Esse apoio resulta, em muitos casos, na
criação de uma rede transnacional de ativistas (cuja composição pode ser
variada, embora sempre com ONGs como membros nucleares) que, por
sua vez, se mobiliza para que terceiros Estados exerçam influência sobre o
governo cujas políticas ou ações se quer modificar. Assim, para citar dois
exemplos apresentados mais adiante, o movimento social contra o apartheid
(Capítulo 1) se beneficiou da colaboração de uma rede transnacional que
conseguiu, entre outras coisas, que vários países impusessem sanções
econômicas à África do Sul, o que contribuiu significativamente para
acabar com essa política. Por sua vez, a organização argentina das Madres
da Praça de Maio (Capítulo 4) angariou o apoio, na administração Carter,
do governo dos Estados Unidos em sua procura de informações sobre os
detentos/desaparecidos durante a ditadura militar argentina. Em outra
variante do efeito bumerangue (TARROW, 2005), o governo de um Estado
(a partir das demandas de seus próprios ativistas) recorre às ONGs e
a ativistas de um segundo Estado para que eles façam pressão sobre seu
próprio governo e este modifique sua política. Como exemplo desse “efeito
bumerangue reverso”, podemos citar o caso descrito por André de Mello e
Souza (2012) sobre a formação e as estratégias de uma rede transnacional
em apoio a organizações do movimento sanitarista brasileiro e ao próprio
governo brasileiro na disputa comercial entre Brasil e Estados Unidos
na OMC sobre os direitos de propriedade intelectual relativos a patentes
farmacêuticas de remédios contra a AIDS.
A mesma ponte entre as Relações Internacionais e as disciplinas
que tradicionalmente se ocuparam dos movimentos sociais dentro do
Estado foi também construída e percorrida, em direção oposta, pelos
teóricos dos movimentos sociais. Sidney Tarrow foi um dos primeiros
a transitar de um foco nos movimentos sociais locais e nacionais para o
que chamou de transnational contention (TARROW, 2005). Nesse trânsito,
ele ampliou o foco de atores considerados, até então, concentrados em
movimentos sociais tipicamente mais beligerantes, e passou a dar mais
atenção às organizações não governamentais, cujas metas costumam ser
mais moderadas. Isso certamente contribuiu para sua aproximação com a
pesquisa desenvolvida a partir das Relações Internacionais. Ele incorporou

<< Sumário Introdução 11


também as contribuições de nossa disciplina, começando pelas de Keck e
Sikkink. Esse intercâmbio fluido entre disciplinas (Tarrow transita entre
a Política Comparada e a Sociologia) continua caracterizando a pesquisa
sobre relações transnacionais de atores não estatais.
No Brasil, a expansão das Relações Internacionais ocorreu fun-
damentalmente a partir da virada do século e se intensificou notoria-
mente com o aumento de cursos de graduação (mais de 150 na atualidade) e,
em outra escala, de programas de pós-graduação. Muitos temas que hoje são
importantes na nossa agenda de pesquisa foram introduzidos por colegas
que realizaram seus estudos doutorais nos Estados Unidos. No caso dos
atores não estatais e suas redes transnacionais, podemos citar (novamente)
André de Mello e Souza, que defendeu em 2007 sua tese de doutorado na
Universidade de Stanford sobre a formação da rede transnacional que
apoiou o governo brasileiro em sua disputa com os Estados Unidos sobre a
propriedade intelectual de medicamentos contra a AIDS. Também pode-
mos citar Marisa von Bülow, cuja tese sobre a rede transnacional de
organizações da sociedade civil que se mobilizaram para influenciar as
negociações de livre comércio nas Américas foi realizada na Universidade
Johns Hopkins e orientada por Margaret Keck. O livro originado na tese
(VON BÜLOW, 2010) obteve o prêmio Luciano Tomassini, concedido
pela Latin American Studies Association. Ela nos honra agora com sua
participação nesta obra.
Nos dias de hoje, a pesquisa no campo disciplinar das Relações
Internacionais sobre atores não estatais e redes transnacionais trata tanto
de atores e temas locais como globais, vinculados ou não ao Brasil. Embora
já exista um volume não desprezível de trabalhos publicados em veículos
científicos, ainda estão por aflorar muitas contribuições não publicadas: teses
de doutorado, dissertações de mestrado, trabalhos de conclusão de curso de
graduação e também contribuições apresentadas nos encontros científicos
das associações das áreas de Ciência Política (Associação Brasileira de Ciência
Política, ABCP), Relações Internacionais (Associação Brasileira de Relações
Internacionais, ABRI) e ciências sociais em geral (Associação Nacional de
Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais, ANPOCS).
A obra aqui apresentada teve sua origem, precisamente, em
dissertações de mestrado e trabalhos de conclusão de curso de graduação
de seis dos meus orientandos, defendidos entre 2009 e 2017. Cinco dos
seis autores foram alunos dos cursos de mestrado e/ou graduação em
Relações Internacionais da UFSC, enquanto um deles cursou o mestrado

<< Sumário Introdução 12


em Relações Internacionais na PUC-Rio, em cujo Instituto de Relações
Internacionais lecionei entre os anos 2006 e 2009. Todos os capítulos foram
reescritos especialmente para este livro.
O capítulo de Pablo de Rezende Saturnino Braga trata da formação
e da atuação da rede de ativismo transnacional contra as políticas de
apartheid na África do Sul, que operou durante mais de três décadas, desde
o início da década de 1960 até a mudança de regime que levou Nelson
Mandela à presidência do país em 1994. A rede, na qual participaram,
entre outros atores, organizações do movimento negro dos Estados Unidos,
e que contou com o apoio de vários governos do Terceiro Mundo, deu
suporte ao trabalho interno do Congresso Nacional Africano, conseguindo
gradualmente mudanças em atores-chave que influíram significativamente
no fim do apartheid. O capítulo dá especial ênfase à ONU como o marco
institucional que propiciou o desenvolvimento de ações antiapartheid, bem
como ao contraste entre o sucesso da rede nos Estados Unidos, onde o
Congresso aprovou sanções econômicas contra a África do Sul a partir de
meados da década de 1980, e o Reino Unido, que, apesar de se constituir
como um espaço importante de articulação do movimento antiapartheid,
quase não implementou sanções contra o país.
Por sua vez, o tema do capítulo de Felipe Alessio é a formação e a
atuação de uma rede transnacional criada por organizações da sociedade
civil para incidir no processo de reforma do Comitê de Segurança Alimentar
da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura
(FAO) em 2009 e ampliar a presença e os canais de participação da sociedade
civil nesse comitê. O pressuposto que impulsou a criação da rede é que a
fome e as crises alimentares mundiais são, em grande medida, resultado
da incapacidade dos Estados de criar arranjos de governança capazes de
responder às necessidades das populações afetadas. O capítulo foca em três
organizações: duas ONGs internacionais – ActionAid e Oxfam – e o Comitê
Internacional para o Planejamento da Soberania Alimentar – uma rede
transnacional constituída por diversas organizações da sociedade civil que
representam pequenos produtores de alimentos e trabalhadores rurais.
A campanha transnacional desenvolvida durante as negociações
da IV Conferência sobre as Mulheres (Conferência de Beijing) em 1995
por diferentes organizações não governamentais reunidas no chamado
lesbian caucus para incluir o tema da orientação sexual e os direitos das
lésbicas dentro da Plataforma de Beijing (o documento negociado na IV

<< Sumário Introdução 13


Conferência e que até hoje serve de base para a elaboração de políticas de
igualdade de gênero em todo o mundo) é o tema tratado no capítulo de
Ana Luci Paz Lopes.
No seu capítulo, Gabriel Dauer mostra como as Madres da Praça
de Maio – a conhecida organização não estatal argentina – utilizaram
estratégias de articulação transnacional para denunciar as violações de
direitos humanos da ditadura militar argentina a partir de 1976. Considera,
em particular, o vínculo que as Madres estabeleceram com a embaixada dos
Estados Unidos em Buenos Aires para aproveitar a janela de oportunidades
aberta durante o breve período da administração Carter no qual o governo
dos Estados Unidos se propôs a levar adiante uma política externa
comprometida com os direitos humanos.
O capítulo de Tamara Rusansky trata das redes de mulheres femi-
nistas e antimilitaristas que atuam contra a ocupação israelense da Pales-
tina. Duas dessas redes tiveram origem em organizações nacionais
(uma surgida em Israel, outra nos Estados Unidos) e posteriormente se
transnacionalizaram, enquanto a terceira é uma coalizão de diferentes
organizações de mulheres pacifistas em Israel (judias e palestinas) que usa
estratégias transnacionais contra a ocupação israelense. Além de mostrar
suas estratégias de atuação, semelhantes às de outras redes de ativistas
transnacionais, o capítulo mostra como os valores feministas que todos esses
grupos compartilham as levam também a se opor à guerra e ao militarismo.
O último dos seis estudos de caso, o capítulo de Júlia França de
Abreu, analisa a estrutura, o discurso e as ações da Al-Qaeda – o grupo
terrorista que surgiu nos anos 1980 no Oriente Médio – a partir do marco
conceitual criado para o estudo das redes de ativistas e movimentos sociais.
Focando na operação mais conhecida do grupo – os ataques às Torres
Gêmeas e ao Pentágono de 11 de setembro de 2001 – o capítulo aponta
semelhanças na estrutura, nas estratégias e inclusive nas maneiras de
recrutamento da Al-Qaeda com as dos grupos de ativistas que promovem
causas emancipatórias. Também aponta as diferenças: ao contrário do que
alguns poderiam supor, os ativistas-terroristas não se diferenciam por usar
a violência – ela é também utilizada por outros movimentos sociais – mas
sim por usar a violência política como principal estratégia.
O capítulo conclusivo que fecha esta obra foi redigido por Marisa
von Bülow, professora do Departamento de Ciência Política da Uni-
versidade de Brasília e reconhecida especialista na temática que nos ocupa.
No capítulo, são abordados três conjuntos de questões. Em primeiro lugar,

<< Sumário Introdução 14


as maneiras como esta obra lida com algumas das principais questões
teóricas presentes nos debates transdisciplinares sobre atores não esta-
tais e movimentos sociais. Em segundo lugar, as contribuições de vários
dos estudos de caso incluídos aqui para a compreensão de aspectos até
agora pouco desenvolvidos por essa literatura. E por último, os possíveis
caminhos para pesquisas futuras.
Os referentes teórico-conceituais comuns a todos os estudos de
caso são os já canônicos na área das Relações Internacionais: a obra de
Keck e Sikkink sobre ativismo transnacional e as teorias norte-americanas
de movimentos sociais e confronto político. Contudo, alguns deles,
beneficiados pela interação dos autores com o corpo docente e com os alunos
do Programa de Pós-Graduação em Sociologia Política, nosso vizinho na
UFSC, têm um leque de referências mais amplo, incorporando também
fontes europeias e contribuições da sociologia brasileira. Esperamos que
essa benéfica miscigenação entre cursos, programas e áreas disciplinares
prossiga e continue enriquecendo nossas pesquisas.

Mónica Salomón

Referências
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sociais e o confronto político: diálogos com Sidney Tarrow. Política & Sociedade,
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<< Sumário Introdução 15


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<< Sumário Introdução 16

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