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Anais do SEFiM, Porto Alegre, V.02 - n.2, 2016.

A Música como Metáfora na Obra de Vilém Flusser

Music as Metaphor in Vilém Flusser’s Work

Palavras-chave: Vilém Flusser; Música; Estrutura lógico-matemática; Música pura.


Keywords: Vilém Flusser; Music; Logical-mathematical structure; Pure music.

Marta Castello Branco


Universidade Federal de Juiz de Fora
martacastellobranco@yahoo.com.br

Uma indubitável distância entre Vilém Flusser e a música pode ser constatada em sua
inexatidão musicológica e analítica, na resistência em apontar aspectos especificamente
musicais ao citar obras, gêneros ou estilos, assim como na inexistência de livros sobre o
tema em sua biblioteca pessoal. Nada a menos se esperaria de um pensador que ressalta
sua dificuldade auditiva e se apresenta como “quase surdo”.1 No entanto, a música se faz
presente em toda a extensão de sua obra, desde a elucidação da língua, passando pelo
desenvolvimento das imagens técnicas e culminando em pontos centrais de seu pensa-
mento, como na instauração de sua pós-história ou na constatação da liberdade criativa
inerente à “tecnoimaginação”. O “lugar” da música na obra de Vilém Flusser, muito antes
de se apresentar como uns “topos” possível, mais se assemelha a uma fronteira onde en-
contram-se frente a frente o desenvolvimento de suas próprias reflexões, sua biografia, sua
herança cultural, a necessidade de redescoberta e de reafirmação do migrante e o próprio
questionamento alemão acerca da música erudita ocidental, comoelemento formativo e
fundamental de sua cultura.
A bibliografia de Flusser sobre música é formada por capítulos de livros e artigos, alguns
ainda não publicados, escritos nas décadas de sessenta e oitenta, sendo os primeiros em
português, correspondendo ao seu período no exílio brasileiro, e os últimos em alemão,
quando de seu retorno à Europa. O intervalo representado pela década de setenta cor-
responde a seu restabelecimento na Europa e diz respeito não exclusivamente à música,
mas à sua obra em geral. Com a exceção dos artigos “Na Música” (1965a) e “Na Música
Moderna” (1965b), a música aparece sempre relacionada a outros temas típicos de Flusser,
como a sociedade brasileira, nos anos sessenta, e as novas mídias, na década de oitenta,
permitindo seu estudo a compreensão geral de um desenvolvimento temático que supera
a própria música como disciplina, eassim trata de apresentar uma primeira hipótese so-
bre a presençada música na obra em questão, em detrimento da distância entre Flusser
e qualquer análise musical formal. Ainda que a música se mostre em relação a temas tão
centrais a seu pensamento, ela é construída como uma imagem, ou como uma metáfora,
que pertence tão somente ao desenvolvimento de seus próprios temas. Assim, o estudo

1 “[Flusser sei] ein unspezialisierter Schwerhöriger (beinahe Tauber).” In Flusser, [198-?], p. 01.

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da música emFlusser não apenas fortalece o entendimento de seu pensamento como um
todo, mas permite ainda a identificação de sua situação de migrante europeu no Brasil,
que ao mesmo tempo luta pela manutenção de um conceito de arte que lhe é familiar,
resiste ao estranho musical tropical, mas busca se enquadrar nele como forma de sobre-
vivência, constituindo-se como a elucidação típica das relações humanas e culturais entre
Europa e Brasil, causadas pela Segunda Guerra Mundial.
Na década de sessenta, Flusser apresenta a música como emancipada do figurativismo da
língua e ressalta seu caráter lógico-matemático, que corresponderia à estrutura da mente.
Neste sentido, a música é designada como uma “forma pura” e se torna um modelo, pois,
segundo Flusser, a literatura ou mesmo a ciência, aparentam buscar o mesmo caminho.1
Baseado na ideia de “formas puras”, Flusser apresenta uma “música pura”, sem que esta
se refira ao conceito advindo da música erudita ocidental, mas que antes transpareça
seu aspecto matemático, sendo exemplificada pela Toccata Renascentista2 e pela Música
Barroca.3 Ainda que suas referências endossem a tradição europeia, elas não focam dados
musicológicos ou analíticos, o que justamente vem a confirmar a música como parte
da engrenagem de seu pensamento geral, o que transcende a música como matéria do
conhecimento e ao mesmo tempo reproduz sua herança cultural alemã. A incrível cor-
respondência entre música e pensamento humano, que em Flusser se traduz através de
uma ideia de pureza, recapitula Hermann Hesse, que em “O Jogo das Contas de Vidro”
apresenta uma música que é ao mesmo tempo o extrato do pensamento lógico e geratriz
do mesmo, permitindo criar novos mundos a partir de si.
A relação entre música e criação também se lê em Flusser, especialmente na década de
oitenta, quando se estabelece a discussão sobre as imagens técnicas. Ainda que a tecnologia
musical não seja exatamente um tema para Flusser, que descreve procedimentos composi-
cionais próprios à música concreta denominando-a “música eletrônica”,4 o desenvolvimen-
to das imagens técnicas, agora realizadas por computador, amplia a possibilidade musical
de criar mundos para os sentidos. Flusser revisita o pensamento de Schopenhauer, conside-
rando agora que as imagens, seguindo o modelo da música, não são apenas representações.
Esta possibilidade criativa, denominada “tecnoimaginação”, é descrita por Flusser através
da música de câmara. Flusser considera que os músicos camerístas não se encontram para
ler partituras, mas para improvisar a partir delas, como seria usual no Renascimento.5 A
prática musical performática, que essencialmente trata de revisitar a obra de forma reno-
vada a cada nova interpretação serve aqui à concepção de uma sociedade telemática, ainda
que no Renascimento não se improvisasse a partir de partituras, o que revela, mais uma
vez, que a música na obra de Flusser não seja representada por uma correção musicológica
ou histórica, mas sim que ela funcione como modelo ilustrativo de seu argumento,
demonstrando em grande parte a relação entre sua biografia e seu pensamento.
1 Flusser 1965a, p. 3.
2 Idem, p. 2.
3 Flusser, 1965b, p. 5.
4 Idem, p. 4.
5 Flusser, 1985, p. 176.

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Referências
FLUSSER, Vilém. Hörapparate. Fonte não publicada. Berlim: Vilém Flusser Archiv, 1608 Nr.
2444, [198-?].
______. Na Música. São Paulo: IBF Instituto Brasileiro de Filosofia. Fonte não publicada. Berlim:
Vilém Flusser Archiv, 1662 2-IPEA-15, 1965a.
______. Na Música Moderna. São Paulo: IBF Instituto Brasileiro de Filosofia. Fonte não publica-
da. Berlim: Vilém Flusser Archiv, 1663 2-IPEA-16, 1965b.
______. Ins Universum der technischen Bilder. Göttingen: European Photography, 1985.
HESSE, Hermann. O Jogo das Contas de Vidro. São Paulo: Bestbolso, 2007.

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