Você está na página 1de 3

Posto o caráter individual do desenvolvimento humano, é crucial primeiramente descrever a

entrevistada e o ambiente no qual estava inserida para melhor compreensão. A voluntária é uma

mulher em torno dos 60 anos, natural da cidade de São Carlos, no estado de São Paulo, de classe

média alta.

O primeiro tópico a ser destacado é o caráter das brincadeiras da entrevistada. Ela descreveu

suas brincadeiras favoritas como simplesmente explorar a natureza na chácara de sua família, com

seus irmãos, imaginar cenários fantasiosos, baseados em livros e programas de ficção, designar papéis

para si mesma e seus amigos e criar histórias nesse mundo imaginário. É interessante o modo como

isso reafirma o modelo de desenvolvimento infantil proposto pelo epistemólogo Jean Piaget, em sua

obra “Seis Estudos de Psicologia”, de 1964: “Entre duas crianças, aparece uma forma diferente de

jogo, muito característica da primeira infância e que sofre intervenção de pensamento, mas um

pensamento individual quase puro com minimum de elementos coletivos: é o jogo simbólico, ou jogo

de imaginação e imitação.”. Esse modo de brincadeira permanece muito popular entre as crianças

atualmente, e fez parte do meu próprio desenvolvimento, mas o que é mais curioso é como parece que

esse período, marcado pela exploração do pensamento e descoberta do mundo, parece se encolher

gradualmente entre as gerações. Apesar de compartilhar a experiência, enquanto a entrevistada

destacou a extensão do período, percebi o quão rápido tive essa fase substituída pela tecnologia. Com

celular, videogames e televisão acessíveis tão prematuramente, não há mais necessidade de imaginar:

o produto já vem pronto. E as consequências de ter se desenvolvido em uma época sem esse fator são

claras na pessoa em que a entrevistada se tornou: uma senhora ativa, que valoriza acima de tudo o

contato com a natureza e atividades culturais diversas.

Além disso, o contexto familiar da entrevistada é outro fator interessante de ser comentado,

principalmente por ser tão contrastante ao meu. É visível o impacto que a relação com seus pais,

principalmente a mãe, causou. Seu pai e sua mãe eram muito ocupados dirigindo uma das maiores

empresas da região e trabalhando como obstetra, respectivamente. Dessa maneira, a entrevistada se

lembra de sentir uma ausência specificamente da presença materna (segundo ela, mesmo ocupando

um alto cargo, o pai sempre emcontrava maneiras de estar presente e demonstar amor). Esse

fenômeno é interessante, se considerarmos o quão similar é do que o psicanalista Sigmund Freud


descreveu em seu livro “A Interpretação dos Sonhos”, de 1899, como Complexo de Édipo (nesse

caso, Complexo de Édipo Feminino, ou o que posteriormente viria a ser conhecido também como

Complexo de Electra): “Se apaixonar por um pai e odiar o outro faz parte do estoque permanente de

impulsos psíquicos que surgem na primeira infância […]”. Apesar de ter trabalhado no

distanciamento materno posteriormente, a própria entrevistada afirmou o quanto isso moldou seu

desenvolvimento e sua trajetória como mãe, pois, segundo ela, seu principal princípio na relação com

seus filhos foi o cuidado e a atenção, para garantir que ela não seria como sua própria mãe. Considerei

esse desejo interessante porque compartilho do mesmo, mas justamente por ter tido uma relação

oposta com meus pais: a presença e a atenção que sempre me garantiram na infância me motiva a

proporcionar uma experiência igual, ou ainda melhor, caso tenha filhos no futuro. Mesmo com

experiências totalmente opostas, chegamos à mesma filosofia.

Por fim, outro ponto contrastante que me chamou atenção foi como a diferença das cidades

(tanto a diferença de lugar quanto de época) em que nós dois crescemos influenciou de formas

diferentes a personalidade . Segundo a voluntária, a São Carlos da segunda metade do século XX

proporcionou uma infância de um ritmo tranquilo, sem o frenesi da modernidade. Por isso, vivia

brincando na rua, em chácaras e junto à natureza. Enquanto a minha experiência como criança na

cidade de São Paulo, nos anos 2000, foi discrepante. Em uma cidade de tamanha magnitude,

brincadeiras na rua eram inviáveis e a liberdade de explorar a natureza inexistente. Portanto, a única

solução era brincar no próprio prédio, no apartamento, ou em parques. Ademais, a tranquilidade

interiorana era substituída por uma infinidade de estímulos visuais e auditivos a todo momento. Como

resultado, não é surpreendentemente que a entrevistada é apaixonada pela natureza (e acabou

cursando biologia) e leva um ritmo de vida mais tranquilo, enquanto eu sinto necessidade de

movimento e novos estímulos a todo momento, com um foco muito menos duradouro.

Como reflexão pessoal, ouvir os relatos de uma vivência tão diversa da minha e ainda assim

encontrar sentimentos de alguma forma tão similares em alguns aspectos me leva a crer que, mesmo

que o desenvolvimento seja pessoal e moldado pelo ambiente, algumas coisas ainda são comuns a

toda criança. A liberdade de explorar o mundo onírico através de jogos de imaginação e a necessidade
de dar e receber amor e cuidado, na minha opinião, são experiências universais, e talvez até mesmo

alguns dos elementos que nos permitem nos identificar como humanos.

Você também pode gostar