Você está na página 1de 6

09/11/2023, 00:08 12ft

ar

Duas biografias de Fernando Pessoa criam


confronto de autores e ‘guerra civil
literária’ em Portugal
Novos livros, com cerca de mil páginas cada um, levaram os autores João
Pedro George e Richard Zenith a acusações de plágio e polêmicas sobre a
política e os relacionamentos do poeta; entenda

PUBLICIDADE

9 min de leitura

Fernando Pessoa morreu em Lisboa em 1935, aos 47 anos,


obscuridade, tendo publicado só um livro. Em menos de um s
se instalou no cânone universal e hoje é o escritor português
mundo. Apesar disso, durante 70 anos não surgiram em Portu
dele. Até que, no final do ano passado, saíram duas quase ao
primeira (1136 páginas) foi Pessoa: Uma Biografia, de Richa
no Brasil pela Companhia das Letras). O autor é americano, d
Lisboa em 1987 e ficou até hoje, naturalizando-se português.
lançada O Super-Camões (960 páginas; disponível na versã
book), de João Pedro George.

As duas biografias acabaram gerando um embate entre os a


acusações de plágio e polêmicas sobre a política e os relacio

Leia também
Quer se sentir perto dos seus escritores favoritos?
Passe a noite na casa em que viveram

Pessoa nasceu em Lisboa em 13 de junho de 1888. Quando


morreu e a mãe se casou novamente, com o cônsul portuguê
África do Sul, onde Pessoa viverá dos 8 aos 17 anos. Em 190
Portugal. Entrará em conflito com o ditador António Salazar, q
durante 40 anos. A doutrina de Salazar era tacanha: a nação-

https://12ft.io/proxy 1/6
09/11/2023, 00:08 12ft

ar
a proibição da Coca-Cola, então novidade mundial. Pessoa, i
publicitário, acabara de cunhar um slogan para a exótica Coc
estranha-se, depois entranha-se”. Salazar, embora abstêmio,
consumo do vinho, pela importância econômica do produto: “B
comer a um milhão de portugueses.”

O poeta português Fernando Pessoa Foto: Wikimedia Commons

A peculiaridade de Pessoa são os heterônimos, que se disting


por terem obra e biografias individuais – alter-egos de um ego
são autores. Foram dezenas: o primeiro brotou quando Pesso
principais são Alberto Caieiro, Álvaro de Campos e Ricardo R

Duas biografias e um desassossego

Pois bem: estamos em 26 de fevereiro de 2023, e as biografia


convivem pacatamente nas livrarias. Naquele dia, a casa cai.
primeira página, o Expresso, o mais influente jornal português
Desassossego de Uma Biografia”. Nele, Zenith informa que, f
George, descobriu que tinha sido uma inspiração abundante -
palavra “plágio” não é proferida, mas se fala em “semelhança
se queixa (“Era só incluir umas notas de rodapé!”) e aponta e
Super-Camões”, “fruto da pressa com que o livro foi feito”. Ge
pilhagem, e revida com chumbo grosso, afirmando que ao ch
americano “descobriu o petróleo pessoano”. Que a edição, pr
Zenith para o inglês de “O Livro do Desassossego” vampirizo
especialista lusa Teresa Sobral da Cunha, sem mencionar a f

Continua após a publicidade

Duas biografias de Fernando Pessoa chegam às livrarias portuguesas mais ou menos ao mesm
Brasil Foto: Reprodução/Estadão

Além da ‘inspiração’, sobre o que eles discordam?

FP, embora um poeta cerebral (Carlos Drummond de Andrade


se enclausurava numa torre de marfim e era apaixonado pela
George discordam sobre as ideias de FP quanto ao colonialis
Segundo Zenith, no ginásio de Durban o menino aprendeu a
que não eram brancos como ele e todos os outros da escola”
piada de Pessoa sobre uma prova escolar: “Além dos zulus, q
espécies de gado em uso na África do Sul?” Diogo Ramada C
e autor de “O Colonialismo Português em África”, duvida que

https://12ft.io/proxy 2/6
09/11/2023, 00:08 12ft

ar
gosto” ateste o racismo do garoto: “Pode até ser vista como u
posições dos professores e da missão civilizadora dos europe

Poeta virgem?

Sobre o sexo, Zenith diz que “Pessoa quase com certeza mor
exuberante ferocidade, o romancista português Antônio Lobo
resmungara sobre Pessoa: “Eu me pergunto se um homem q
ser um bom escritor”. Mas um amigo do poeta entrega: “Um d
lisboeta. Fernando não nos acompanhou. Porém descobri qu
e até nele tinha uma apaixonada. Se nos tivesse acompanhad
sua vida privada, que era sagrada.” Zenith considera essa fon

Por incrível que pareça, outra controvérsia diz respeito... ao ta


pobre poeta. Diz Zenith: “Tanto Botto como Leal afirmaram qu
pênis pequeno, o que não quer dizer que o tenham visto algu
se olhava para a virilha dele’, explicou Leal, ‘não se consegui
moda na época eram calças largas e folgadas, talvez os genit
evidentes se – como diria Mae West – o poeta estivesse muit
Pedro George alfineta: “O que seria se, na biografia de uma e
discutisse o tamanho dos seus seios ou o aspecto da sua vag

Uns amores de Pessoa


Continua após a publicidade

FP escreveu poemas homoeróticos explícitos, e panfletos em


gays Antônio Botto e Raul Leal, atacados por sectários que ch
suas obras. Para Teresa Rita Lopes, “se Pessoa não saiu do
estava lá dentro. Não teria problemas em assumir, já que defe
gays”. FP até editou livros de Botto e Leal – deste, “Sodoma D

A única relação amorosa comprovada de Pessoa foi com uma


Ofélia Queiroz no dia em que ela candidatou-se como datilóg
ele colaborava – e se embeveceu com a jovem de 19 anos. In
dela e acolheu-a no primeiro dia de expediente. Pessoa envio
cartas, e recebeu mais ainda. Um mês antes de morrer, FP es
Cartas de Amor São Ridículas”, como Álvaro de Campos . Ne
tem razão: as cartas estão infestadas de expressões bregas (
anjinho”). Só faltou o circunspecto Pessoa flanar por Lisboa fa
coraçõezinhos bobos com as mãos. FP foi um namorado con
época: “Fernando era muito ciumento, mas não dizia nada; so
eu usasse decotes, nem falasse com rapazes.”

Retrato de Ofélia, musa de Fernando Pessoa Foto: Acervo Estadão


https://12ft.io/proxy 3/6
09/11/2023, 00:08 12ft

ar
Ele conjectura casar com Ofélia, mas “resta saber se o lar com
de pensamento.” Em 11 de janeiro de 1930, envia-lhe a última
restos mortais de Pessoa foram trasladados para o Mosteiro d
Lisboa, onde repousam ao lado Vasco da Gama e Camões. J
por ironia da história, descansa na necrópole lisboeta chamad
Prazeres.

Lugares de falas

As discrepâncias sobre “a verdadeira identidade” de Fernand


exacerbadas pela multiplicidade dos heterônimos (mais de 70
ensina outra lição valiosa: a relação entre a vida e a obra de u
simples. A vida não explica inteiramente a obra, e a obra tamp
inteiramente a vida. Não é só que na grande literatura não há
que nela todos os lugares são de fala. Exercendo uma das m
humanas (a empatia), um autor é um ventríloquo universal. C
Flaubert, “madame Bovary sou eu”. Recusando-se a se encar
unidimensionais, há escritores que escreveram como se fosse
gato, ou como fantasma, como marciano ou um caruncho, co
Demônio. Em Pessoa, tudo era destilado, refratado e sublima
labirinto de espelhos que nunca refletia apenas seu umbigo. C
conterrâneo Gil Vicente, na sua obra FP era todo mundo e nin

Os luxos do poeta eram os ternos (cada vez mais puídos, ma


dândi chaplinesco), quatro maços de cigarro por dia e doses g
(embora nunca ninguém o tenha visto de porre). Um dia, cons
Egas Moniz, Nobel de Medicina em 1949 – que se tornará um
para os portugueses, devido ao motivo do prêmio: a invenção
médico prescreveu-lhe exercícios físicos, e FP frequentou um
três meses – ah, imaginar Pessoa malhando...

Continua após a publicidade

Nos últimos tempos, sofreu com cólicas e febre. O médico ale


de beber. No dia 29 de dezembro de 1935, foi hospitalizado c
hepática. No leito de morte, pediu papel e lápis e rabiscou em
palavras: “I know not what tomorrow will bring” (não sei o que

E no que as biografias concordam?

Se tem algo em que as duas biografias concordam é que FP


clichê do gênio coitadinho. Diz George: “Pessoa era sociável,
com momentos de solidão e de tristeza. Mas tinha senso de h

https://12ft.io/proxy 4/6
09/11/2023, 00:08 12ft

ar
que enviou a Ofélia, com ele em um bar emborcando um cop
dedicatória trocadilhesca: “Fernando Pessoa em flagrante del

FP até deixou instruções irônicas aos seus biógrafos: “Se dep


quiserem escrever a minha biografia,/Não há nada mais simp
– a da minha nascença e a da minha morte./Entre uma e outr
meus.” Mas FP, um ser afável, talvez reconciliasse Zenith e G
“Se eu fosse outra pessoa, fazia-lhes, a todos, a vontade./Ass
paciência!/ Vão para o diabo sem mim, / Ou deixem-me ir soz
/Para que havemos de ir juntos?”.

Afinal, corrigindo o velho provérbio “antes só do que mal acom


tinha explicado que, para ele, era melhor “antes só que, até, b

Leia também

Richard Zenith fala ao Estadão sobre sua nova biogra


Fernando Pessoa
O projeto literário, a religião e as tendências políticas são temas
abordados pelo biógrafo de Pessoa

Encontrou algum erro? Entre em contato Compartilhe

Tudo Sobre

Fernando Pessoa literatura poesia biografia [gênero literário]

livro

COMENTÁRIOS

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estad

JÁ SOU ASSINAN

Notícias relacionadas

Quer se sentir
perto dos seus
https://12ft.io/proxy 5/6
09/11/2023, 00:08 12ft

ar
escritores
favoritos?
Passe a noite
na casa em
que viveram

INSTITUCIONAL ATENDIMENTO CONEXÃO ESTADÃO

Código de ética Correções Broadcast

Politica anticorrupção Portal do assinante Broadcast político

Curso de jornalismo Fale conosco Aplicativos

Demonstrações Contábeis Trabalhe conosco

Termo de uso

Acervo PME Jornal do Carro Paladar Link iLocal

https://12ft.io/proxy 6/6

Você também pode gostar