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17/06/2021 Tratado do Lobo da Estepe – Só para loucos – Poetriz

Tratado do
Lobo da
Estepe – Só
para loucos
MARÇO 15, 2008
POETRIZ
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Era uma vez um certo Harry, chamado o Lobo da Estepe. Andava sobre duas pernas, usava roupas e
era um homem, mas não obstante era também um lobo das estepes. Havia aprendido uma boa parte
de tudo quanto as pessoas de bom entendimento podem aprender, e era bastante ponderado. O que
não havia aprendido, entretanto, era o seguinte: estar contente consigo e com sua própria vida. Era
incapaz disso, daí ser um homem descontente. Isso provinha, decerto, do fato de que, no fundo de seu
coração, sabia sempre (ou julgava saber) que não era realmente um homem e sim um lobo das
estepes. A esse propósito poder-se-iam tecer longas considerações e até mesmo escrever livros; mas
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isso de nada valeria ao Lobo da Estepe, pois para ele era indiferente saber se o lobo se havia
introduzido nele por encantamento, à força de pancada ou se era apenas uma fantasia de seu espírito.
O que os outros pudessem pensar a este respeito ou até mesmo o que ele próprio pudesse pensar, em
nada o afetaria, nem conseguiria afetar o lobo que morava em seu interior.O Lobo da Estepe tinha,
portanto, duas naturezas, uma de homem e outra de lobo; tal era seu destino, e nem por isso tão
singular e raro. Deve haver muitos homens que tenham em si muito de cão ou de raposa, de peixe ou
de serpente sem que com isso experimentem maiores dificuldades. Em tais casos, o homem e o peixe
ou o homem e a raposa convivem normalmente e nenhum causa ao outro qualquer dano; ao
contrário, um ajuda ao outro, e muito homem há que levou essa condição a tais extremos a ponto de
dever sua felicidade mais à raposa ou ao macaco que nele havia, do que ao próprio homem. Tais fatos
são bastante conhecidos. No caso de Harry, entretanto, o caso diferia: nele o homem e o lobo não
caminhavam juntos, mas apenas permaneciam em contínua e mortal inimizade e um vivia
apenas para causar dano ao outro, e quando há dois inimigos mortais num mesmo sangue e na
mesma alma, então a vida é uma desgraça. Bem, cada qual tem seu fado, e nenhum deles é leve.

Era isso o que ocorria ao Lobo da Estepe, e pode-se perfeitamente imaginar que Harry não levasse de
todo uma vida agradável e feliz. Isso não quer dizer, entretanto, que sua infelicidade fosse por demais
singular (embora assim lhe pudesse parecer, da mesma forma como qualquer pessoa torna o
sofrimento que se abate sorte ela como sendo o maior do mundo). Isso não pode ser dito a propósito
de ninguém. Mesmo aquele que não tem em seu interior um lobo, nem por isso pode ser
considerado mais feliz. E mesmo a mais infeliz das existências tem os seus momentos luminosos
e suas pequenas flores de ventura a brotar entre a areia e as pedras. Assim também acontecia
com o Lobo da Estepe. Não se pode negar que fosse, em geral, muito infeliz, e podia também fazer
os outros infelizes, especialmente quando os queria ou era por eles estimado. Pois todos os que com
ele se deram viram apenas uma das partes de seu ser. Muitos o estimaram por ser uma pessoa
inteligente, refina e arguta, e mostraram-se horrorizados e desapontados quando descobriam o lobo
que mostrava nele. E assim tinha de ser pois Harry, como toda pessoa sensível, queira ser amado
como um todo e, portanto, era exatamente com aqueles cujo amor lhe era mais precioso que ele
não podia de maneira alguma encobrir ou perjurar o lobo. Havia outros, todavia, que amavam
nele exatamente o lobo, o livre, o selvagem, o indômito, o perigosos e forte, e estes achavam
profundamente decepcionante e deplorável quando o selvagem e perverso se transformava em
homem, e mostrava anseios de bondade e refinamento, gostava de ouvir Mozart, de ler poesia e
acalentar ideais humanos. Em geral, estes se mostravam mais desapontados e irritados do que os
outros, e dessa forma o Lobo da Estepe levava sua própria natureza dual e discordante aos destinos
alheios toda vez que entrava em contato com as pessoas.

Quem, entretanto, imaginar que conhece o Lobo da Estepe e pode analisar sua existência
lamentavelmente dividida, incorrerá, sem dúvida, em erro, pois ainda não sabe tudo. Não sabe que
(como não há regra sem exceção e como um simples pecador em certas circunstâncias pode ser mais
querido a Deus do que noventa e nove justos) Harry também conhecia de quando em vez exceções e
momentos ditosos em sentir harmonia, e mesmo em raras ocasiões estabelecer a paz e viver um para
outro de tal forma que não apenas um vigiava enquanto o outro dormia, mas também se fortaleciam
ambos e cada um duplicava a energia do outro. Se tais curtas e raras horas de ventura compensavam
e dulcificavam a triste sina do Lobo da Estepe, de forma que a felicidade e a desventura viessem a
equilibra-se finalmente na balança, ou se, talvez, este breve mas intenso usufruir daquelas poucas
horas compensava todo o sofrimento e deixava um saldo favorável de alegria, é questão sobre a qual
podem meditar as pessoas ociosas a seu talante. Também o Lobo meditava isso, em seus dias mais
ociosas e inúteis.

A esse propósito há que acrescentar algo. Muita gente existe que se assemelha a Harry;
especialmente muitos artistas pertencem a essa classe de homens. Todas essas pessoas têm duas
almas, dois seres em seu interior; há neles uma parte divina e uma satânica, há sangue materno

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e paterno, há capacidade para ventura e para a desgraça, tão contrapostas e hostis como eram
o lobo e o homem dentro de Harry. E esses homens, para os quais a vida não oferece repouso,
experimentam às vezes, em seus raros momentos de felicidade, tanta força e tão indizível
beleza, a espuma do instante de ventura emerge às vezes tão alta e deslumbradora sobre o mar
da dor, que sua luz espargindo radiância, vai atingir a outros com o seu encantamento. A isto se
devem, a essa preciosa e momentânea espuma sobre o mar de sofrimento, todas aquelas obras
artísticas em que o homem solitário e sofredor se eleva por uma hora tão alto sobre o seu próprio
destino, que sua felicidade brilha como uma estrela, e parecem a todos os que a vêem como algo
eterno e como se fosse seu próprio sonho de ventura. Todas essas pessoas, sejam quais forem seus
atos e obras, não têm propriamente uma vida, ou seja, sua vida carece de essência e de forma, não
são heróis, nem artistas, nem pensadores de maneira como os demais homens são juízes, doutores,
sapateiros ou mestres; sua existência é um movimento de fluxo e refluxo, está infeliz e
dolorosamente partida e é sinistra e insensata, se não estivermos propensos a ver um sentido
precisamente naqueles raros acontecimentos, ações, pensamentos e obram que brilham às vezes sobre
o caos semelhante vida.

Cada espécie de homens tem suas características, seus aspectos, seus vícios e virtudes e seus
pecados mortais. Um dos signos do Lobo da Estepe era o de ser noctívago. A manhã era para ele a
pior parte do dia, causava-lhe temor e nunca lhe trouxera nada de bom. Nunca fora alegre em
qualquer manhã de sua vida, nunca fizera nada de bom na primeira metade do dia, não tivera boas
idéias, nem divisara nenhuma alegria para ele ou para os demais. Ao começar a tarde, ia reagindo
lentamente, principiava a se animar e, ao cair da noite, em seus melhores dias, tornava-se frutífero,
ativo e, às vezes, até brilhante e alegre. Disso decorria sua necessidade de isolamento e
independência. Nunca existira um homem com tão profunda e apaixonada necessidade de
independência como ele.

Só que a essa virtude estavam intimamente ligados seu sofrimento e seu destino. Ocorria a ele o que
se dá com todos: o que buscava e desejava com um impulso íntimo de seu ser acabava por ser-lhe
concedido, mas em grau demasiadamente superior ao que convém a um homem. A princípio, o que
obtinha parecia-lhe um sonho e uma satisfação, mas logo se revelava como sendo o seu amargo
destino. Assim, o poderoso era arruinado pelo poder, o rico pelo dinheiro, o subserviente pela
submissão, o luxurioso pela luxúria. O Lobo da Estepe perecia por sua própria independência. Havia
alcançado sua meta, seria sempre independente, ninguém haveria de mandar nele, jamais faria algo
para ser agradável aos outros. Só e livre, decidia sobre seus atos e omissões. pois todo homem forte
alcança indefectivelmente o que um verdadeiro impulso lhe ordena buscar. mas em meio à liberdade
alcançada, Harry compreendia de súbito que essa liberdade era a morte, que estava só, que o mundo
o deixara em paz de uma inquietante maneira, que ninguém mais se importava com ele, nem ele
próprio, e que se afogava aos poucos numa atmosfera cada vez mais tênue de falta de relações e de
isolamento. Havia chegado ao momento em que a solidão e a independência já não eram seu
objetivo e seu anseio, mas antes sua condenação e sua sentença.Tinham-no agora deixado só.
Não que fosse motivo de ódio e de repugnância. pelo contrário, tinha muitos amigos. Um
grande número de pessoas o precisavam. Mas tudo não passava de simpatia e cordialidade;
recebia convites, presentes, cartas gentis, mas ninguém vinha até ele, ninguém estava disposto
nem era capaz de compartilhar de sua vida. Agora rodeava-o a atmosfera do solitário, uma
atmosfera serena da qual fugia o mundo em seu redor, deixando-o incapaz de relacionar-se, uma
atmosfera contra a qual não poderia prevalecer nem a vontade nem o ardente desejo. Esta era uma
das características mais significativas de sua vida.

– Herman Hesse in “Lobo da Estepe”

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