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Uma imagem que avança

(pela literatura, pela psicanálise,


pelo surrealismo, pela filosofia...)
Comunicação e Expressão Escrita I
Profa. Teresa Neves
Profa. Marise Mendes
Facom - UFJF
Uma imagem
chamada Gradiva
O baixo-relevo em mármore de
uma jovem que caminha descalça,
erguendo com as mãos o traje
fartamente drapeado e, assim, deixa
ver seus pés em movimento, recebeu
do escritor alemão Wilhelm Jensen
(1837-1911) o nome de ‗Gradiva‘.
Trata-se da ―feminização‖ de
Gradivus, um dos epítetos do deus
romano Marte, Mars Gradivus, o deus
da guerra que vai à batalha.
O verbo gradire, em latim, quer
dizer ―dar um passo‖. Daí, em
português, os verbos transgredir (dar
um passo além, atravessar); agredir
(dar um passo em direção a, atacar);
progredir (dar um passo para frente,
avançar); regressar (dar um passo para
trás, retornar); ingressar (dar um passo
para dentro, entrar) etc.
Logo, ‘Gradiva’ é “aquela que avança”.
Na ficção de Jensen, a
obra seria romana e
estaria no Museu
Arqueológico Nacional de
Nápoles.
Em seu pós-escrito à
segunda edição de
Delírios e sonhos na
Gradiva de Jensen, de
1912, Sigmund Freud
(1856-1939) faz questão de
esclarecer que o relevo
―pertence ao período
áureo da arte grega‖ e
está no Museu
Chiaramonti do Vaticano .
Ainda segundo Freud, em seu pós-escrito, ―da união de ‗Gradiva‘ com outros
fragmentos, existentes em Florença e Munique, foram obtidos dois relevos, cada
qual representando três figuras, identificadas como as Horas, as deusas da
vegetação, e as divindades do orvalho fertilizador que são aliadas a elas‖.
O escritor e historiador da arte, Arnold Hauser (1892-1978), restaurou e
interpretou esses fragmentos, considerando-os como cópias romanas de originais
gregos da última parte do século IV a.C.
O romance Gradiva – uma fantasia pompeiana, do Jensen foi um
escritor alemão Wilhelm Jensen, foi publicado
originalmente em 1903. dos mais
férteis
O livro conta a história de um jovem arqueólogo,
Norbert Hanhold, que fica fascinado pela imagem da escritores
jovem mulher esculpida no baixo-relevo de mármore. alemães de
Hanhold tem um sonho angustiante: encontra-se em ficção de sua
Pompéia, no ano 79, exatamente quando o Vesúvio época, tendo
estava para entrar em erupção e lapidificar a cidade. escrito mais
No sonho, vê Gradiva, nome que deu para a mulher de 150 obras,
do relevo, mas antes que possa avisá-la do perigo
iminente, ela é soterrada pelas lavas do vulcão. das quais
O sonho perturbador o leva a viajar para Pompéia e poucas,
lá, em delírio, ele encontra sua amada. Através de um porém,
complexo processo, Norbert descobre a ligação entre cairiam no
a Gradiva e um amor de sua infância – Zoe Bertgang. gosto do
Havia associado essa menina à mulher idealizada público.
que o fascina – a Gradiva do baixo relevo. Seus Estudou
sentimentos se deslocam, então, da mulher de
mármore para a pessoa de Zoe. medicina,
Trata-se de uma obra pequena, com apenas 102 atuou como
páginas, cuja edição em português (Zahar, 1987) jornalista e foi
encontra-se esgotada. O download do livro, porém, também
pode ser feito no seguinte endereço: dramaturgo e
http://www.4shared.com/document/evTIVwIQ/GRADIVA_- poeta.
_romance_de_Wilheim_J.htm
―A escultura representava, de pé, uma
mulher caminhando, mais ou menos num
terço do seu tamanho natural. Ela era
jovem, não criança e, evidentemente, ainda
não mulher, porém uma virgem romana
de cerca de vinte anos. Em nada lembrava
os baixos-relevos tão freqüentes de Vênus,
de Diana, ou de alguma outra divindade
do Olimpo, nem Psique ou outra Ninfa.
Havia nela alguma coisa da humanidade
contemporânea — expressão que não é
tomada num sentido desfavorável — atual,
de algum modo, como se o artista, ao invés
de lançar, como teria feito hoje, um croquis
sobre uma folha de papel, tivesse esboçado
um modelo de argila, na rua, passando
rapidamente ao lado da própria vida.‖
(JENSEN, W. 1987, p.11)
―O corpo era grande e esbelto, os cabelos frouxamente
ondulados e quase que completamente cobertos por um
xale. O rosto, um pouco pequeno, não tinha fascínio
especial, mas era evidente que não buscava tal efeito. Seus
traços finos exprimiam uma tranqüila indiferença em
relação aos acontecimentos externos, o olho, que olhava
reto para frente, testemunhava uma visão excelente e
intacta, e de um voltar-se pacífico dos pensamentos para si
mesmo. Essa jovem mulher, que não atraía pela beleza de
suas formas, possuía, no entanto, uma coisa rara nas
esculturas da antiguidade, o encanto simples e natural de
uma moça, encanto que parecia ser a inspiração de sua
própria vida. Ele se devia, sem dúvida, à postura em que
ela era representada. Com a cabeça ligeiramente inclinada,
tinha recolhida na mão esquerda uma parte do vestido
extraordinariamente pregueado, que lhe caía da nuca aos
calcanhares, e descobria assim seus pés nas sandálias. O pé
esquerdo estava à frente, e o direito, disposto a segui-lo, só
tocava o chão com a ponta dos artelhos, enquanto que a
planta e o calcanhar elevavam-se quase verticalmente. Esse
movimento exprimia ao mesmo tempo a leveza ágil de
uma jovem caminhando e um repouso seguro de si, o que
lhe dava, ao combinar uma espécie de vôo suspenso com
um andar firme, aquele encanto particular.‖ (JENSEN, W.
1987, p. 12)
A Gradiva de Freud
Na verdade, o relevo que atraiu o
interesse de Jensen era popular na
Europa do século XIX, por onde
circulava reproduzido em gesso. O
próprio Freud veio a ter uma dessas
reproduções em seu consultório, ainda
hoje mantida no Museu em que se
transformou sua residência em Londres.
O editor inglês da Edição Standard
das Obras Completas de Freud, James
Strachey (1887–1967), lembra que foi
Carl Jung (1875-1961) quem chamou a
atenção de Freud para o livro de Jansen Freud em 1905
Segundo sua versão, Freud teria escrito
Sonho e delírio na Gradiva de Jensen,
especialmente para agradar Jung, no
verão de 1906, meses antes do primeiro
encontro entre ambos. O episódio teria
sido o prenúncio dos cinco ou seis anos
de suas relações cordiais.
Logo depois da publicação do estudo
em maio de 1907, Freud enviou um
exemplar a Jensen, com quem trocou
breves e afáveis correspondências. As
cartas fazem crer que o escritor teria
ficado lisonjeado com a análise
freudiana, aceitando suas principais
linhas de interpretação. Gesso de Gradiva no Museu de Freud, em Londres
Segundo o editor inglês, James Strachey, ―afora a
significação mais profunda, aquilo que atraiu
especialmente a atenção de Freud na obra de Jensen foi,
sem dúvida, o cenário em que ela se desenrola‖. Freud já
havia manifestado, em carta datada de 1897, seu
interesse intelectual por Pompéia, cidade que ele viria a
visitar em 1902. ―Freud sentia-se particularmente
fascinado‖ – diz Strachey – ―pela analogia existente
entre o destino histórico de Pompéia (o soterramento e a
posterior escavação) e os eventos mentais que lhe eram
tão familiares: o soterramento pela repressão e a
escavação pela análise‖ (FREUD, S. 1996, p. 16). Corpos petrificados emPompéia
Diante do romance de Jensen, Freud se encontra face a uma obra que lhe permite
estabelecer um paralelo entre o procedimento arqueológico e o método
psicanalítico. O trabalho de (re)construção do analista se assemelha à escavação
feita pelo arqueólogo, porém ambos não se confundem: aquilo com que o analista
trabalha não está destruído, ao contrário, está vivo, situação que só em
circunstâncias raras ocorre com o objeto arqueológico, como é o caso de Pompéia.
Todos os elementos essenciais estão preservados, mesmo que esquecidos,
recalcados, circunstancialmente inacessíveis.
A Gradiva de Jensen torna-se objeto da primeira
análise de uma obra literária publicada por Freud,
com exceção de seus comentários sobre Édipo Rei e
Hamlet, em A Interpretação dos Sonhos, de 1900. Mais
tarde, em 1911, o autor irá publicar outro estudo
dessa natureza, debruçando-se sobre as Memórias de
um doente dos nervos, de Daniel Paul Schreder.
Em Delírios e sonhos..., Freud sugere que a
literatura se constitui, ainda que não
intencionalmente, conforme as leis do inconsciente
e, por isso, o autor do texto literário pode ser
compreendido como alguém que partilha ou
antecipa o que a psicanálise descobre.
A imagem de Gradiva torna-se intimamente
vinculada à teoria que Freud, então, se esforçava
por consolidar. A jovem que avança descalça,
arriscando-se com graça e determinação sobre um
piso acidentado, serve de ícone do desejo
inconsciente que pulsa no sonho e no delírio,
irrompendo nas sinuosidades psíquicas.
A heroína do romance personifica a própria
psicanálise – o método psicanalítico e sua ação
terapêutica –, na medida em que, consentindo a
―verdade‖ do delírio e interpretando-o, é capaz de
operar a cura psicológica.
O artigo de Freud é publicado pela primeira vez em
Francês em 1931, vindo a influenciar de modo decisivo o
movimento surrealista.
De fato, o Surrealismo sempre esteve sob a influência
das teses psicanalíticas freudianas. Tanto no manifesto
fundador de 1924, quanto no segundo manifesto, de 1929,
o criador e principal teórico do movimento, André Breton
(1896-1966), recusava a criação artística elaborada pelo
pensamento lógico e consciente, imposto por padrões
comportamentais e morais da sociedade. Breton salientava
a importância do inconsciente na criatividade do ser
humano. Seu ponto de partida eram os estudos sobre a
André Breton em 1924
psique humana desenvolvidos por Freud em A interpretação
dos sonhos.
Gradiva irá inspirar os surrealistas na composição de suas imagens
femininas. Para eles, a mulher se configurava como musa mítica, bem ao modo
como Gradiva desponta na obra de Jensen. Até uma galeria de arte surrealista
inaugurada por Breton em 1937 recebeu no seu letreiro cada letra da palavra
Gradiva associada a um nome de mulher: ―G de Gisèle, R de Rosine, A de Alice,
D de Dora, I de Inès, V de Violètte‖. Instigadora do intercâmbio entre sonho e
realidade, Gradiva foi venerada por artistas surrealistas.
Salvador Dali (1904-1989)
pintou inúmeras vezes Gradiva
e chegou a associá-la à sua
mulher, chamando-a de Gala
Gradiva.
Muchacha com risos (Menina
com cachos, 51 x 40 cm), de 1926,
é considerado uma antecipação
da figura de Gradiva na obra
de Dali, que dedicará uma série
de trabalhos ao tema,
especialmente entre 1931 e
1932. No caso desta tela
precursora, consta que a
muchacha aí representada seria
Dulita, personagem procedente
das recordações de infância de
Dali.
Em El hombre invisible (O homem invisível,
140 x 81 cm), obra produzida entre 1929 e
1932, observa-se, à direita, a imagem de
Gradiva, caracterizada por uma ondulante
cabeleira, e um aspecto espectral também
presente no estudo preparatório para o
quadro. Na pintura, as duas figuras
análogas fazem referência à duplicidade da
Gradiva de Jensen, a um só tempo sonho e
realidade, memória e presença, pedra e
carne. As madeixas que ascendem como
chama, os seios fartos, o traje agarrado ao
corpo, semelhante a um sudário, e,
sobretudo, a rosa vermelha ensanguentada
que ocupa o lugar do sexo são também
atributos inspirados na novela de Jensen e
que evocam a luta entre a vida e a morte. A
mesma dialética se expressa na postura da
figura (que tanto parece estar tombada
quanto de pé, imóvel e caminhando) e
ainda em sua cabeça inclinada para trás (o
que sugere simultaneamente o êxtase
sexual e o espasmo da agonia). A Gradiva
daliniana encarna, assim, o combate e o
íntimo abraço entre Eros e Tanatos.
Gradiva (Estudo para O homem invisível), 1931
No desenho à pluma, de 1931,
intitulado Andrómeda (Andrômeda,
70.2 x 52.7 cm), a figura mitológica
feminina representada nua
relaciona-se estritamente com
Gradiva e pode ter sido um esboço
de outro dos trabalhos incluídos na
série sobre o tema da personagem
de Jensen produzida por Dali no
início dos anos 30. Tal como no
baixo-relevo que se tornou a
obsessão do arqueólogo ficcional,
Gradiva aqui aparece aprisionada
na pedra; tal como Zoe-Gradiva,
Andrômeda é símbolo do amor
heróico. Se a Gradiva de Jensen era
a estátua pétrea que tornava à vida,
Andrômeda é a carne atada à pedra,
ameaçada pela petrificação. Aqui,
como em outros trabalhos
dedicados à Gradiva, Dali a insere
em formações rochosas típicas do
lugar no qual ele próprio vivia, Port
Lligat, na Catalunha.
Gradiva reaparece no quadro La vejez de
Guillermo Tell (A velhice de Guilherme Tell, 98 x
140 cm), de 1930-1931, em seu estudo
preparatório, de 1931, e em Guillermo Tell e
Gradiva (Guilherme Tell e Gradiva, 30 x 24 cm),
de 1930. A personagem coabita as duas
pinturas com outra figura da mitologia
daliniana, Guilherme Tell, símbolo do pai
castrador, encarnação do próprio pai de Dali
que se opunha a seu amor por Gala. Se na tela
acima parece estar em curso um ritual
mortífero, na pintura ao lado, a cabeleira de
Gradiva, seus seios eretos e a intensa cor
cálida de sua pele, em contraste com o cinza
da pedra, exprimem a carne impetuosa e o
triunfo da vida.
Dali visita outra vez os embates entre
Eros e Tanatos, mas dessa vez o vivo
sucumbe ao impulso de morte. Em
Gradiva descubre las ruinas antropomorfas
(Fantasía retrospectiva) [Gradiva descobre
as ruínas antropomorfas (Fantasia
retrospectiva), 65 x 54 cm], de 1931-1932,
Dali representa um amplo deserto. Em
primeiro plano aparecem dois
personagens de pé, enlaçados em um
abraço petrificado. No plano médio e
no último plano, estão ruínas e figuras
espectrais. A luz que envolve a cena,
amarela no fundo, vai escurecendo, de
modo a submergir nas sombras as
personagens principais. Uma delas
está envolta em um sudário; a outra
está corroída, perfurada. Qual delas é
Gradiva e qual é seu parceiro? Ou se
trata mais uma vez de duas Gradivas?
De qualquer modo, já não importa,
pois todo corpo vivo já foi convertido
em algo inerte, seco, mineral, fóssil.
A recriação no letal, o prazer da
dissolução inspirará mais uma
abordagem do tema da Gradiva,
apresentada como uma alegoria da
Guerra Civil Espanhola, a qual Dali
celebrava como a grande orgia da
morte, o máximo orgasmo de
Tanatos.
Na pintura España (Espanha, 92 x
60 cm), de 1938, produzida em
plena Guerra Espanhola, a figura
de Gradiva se confunde com a
imagem da própria Espanha e esta
Espanha-Gradiva perde sua
corporeidade; sua carne é
transparente; seus seios e sua
cabeça foram destroçados,
estilhaçados.
Em Espanha, Gradiva só poderá
ainda representar a metáfora de
uma ―cura‖, se esta não tiver mais
natureza amorosa, mas assumir
caráter político.
Gradiva Becoming Fruits, Vegetables, Gradiva, She Who Advances, 1939.
Pork, Bread, and Grilled Sardine, 1939.
Deusa
asteca do
Gradiva se converterá também numa nascimento
das principais obras da produção
surrealista de André Masson (1896-
1987), incluída numa série de pinturas
sobre o tema da metamorfose,
produzida no fim dos anos 30. Masson Ariadne
foi um dos que romperam com Bresson
na crise de 1929, tendo retomado os
laços de amizade e cooperação artística André Masson
com o grupo surrealista, face ao perigo A pintura transpõe a passagem mais
fascista que ameaça a Europa, a partir dramática da narrativa de Jensen. Enquanto
de 1936. Com Gradiva (1939, 97 x 130 o Vesúvio, no plano de fundo, aparece no
cm), o pintor quis oficializar essa momento de sua erupção, o pintor petrifica
reconciliação. A obra é considerada uma a metamorfose de Gradiva, entre criatura
espécie de síntese e um dos êxitos mais de carne e figura mineral, entre vida e
deslumbrantes da pintura surrealista, morte. O corpo da Gradiva mantém tanto
que, então, alcançava seu ápice. uma atitude de nascimento (origem) quanto
Reunindo alguns dos principais de morte (tal como uma combinação da
elementos do Surrealismo dos 15 anos deusa asteca do nascimento com a deusa do
precedentes, a tela resulta numa sono Ariadne). A Gradiva de Masson é
composição fantástica e surpreendente. metade humana, metade mármore.
A Gradiva pintada por Masson tem um cenário inspirado na Vila dos
Mistérios de Pompéia. Nas palavras do escritor surrealista Michel Leiris
(1901-1990): ―Meio mulher, meio estátua, [é] mostrada sobre um fundo de
erupção, de plantas soníferas e de zumbido de insetos‖.
O pé direito da imagem mantém a posição ereta, observada no relevo
em mármore da Gradiva, e se assemelha às patas da manta (louva-deus),
que , por sua vez, lembra alguém ajoelhado em oração.
Na parte esquerda da composição, as papoulas remetem à passagem do
romance na qual Gradiva desaparece pela fissura de um muro circundado
por estas flores.
A abertura na parede à esquerda tem o formato de um rifle, uma
possível referência à guerra e à morte.
Um enxame de abelhas assedia a figura feminina e evoca, segundo os
intérpretes da pintura, tanto os insetos que irritam o arqueólogo Hanhold,
quanto os persistentes insetos de Dali, que em suas obras aparecem como
consumidores do tempo e da vida.
Entre as pernas de Gradiva abre-se o abismo labiríntico de uma concha,
e as pregas de sua veste se transmutam em um naco de carne.
A referência aos órgãos sexuais femininos remete a fontes de fertilidade
e símbolos de uma geração que se ergue da morte daquela que a precedeu.
Masson, assim como o fizeram Dali, Breton e Freud (cada qual a seu
modo), usa o tema da Gradiva como se fora um mito da metamorfose, da
intergeração e da regeneração da vida.
A presença extraordinária da jovem
semipetrificada, as tonalidades ricas e flamejantes
de vermelho, púrpura, rosa coral, amarelo puro,
verde água e malva que iluminam com uma ―luz do
apocalipse‖ o cenário pompeiano, e, enfim, a
potência transmitida por esta metamorfose
interrompida, suspensa na imagem fixada pela
pintura, fazem da Gradiva de Masson uma
verdadeira experiência visual e sensual.
Se Gradiva se impôs aos surrealistas como a figura
Roland Barthes
por excelência do ato criador, ela igualmente
inspirou Michel Lerris, que fundou, em 1986, uma
revista de antropologia que ele batizou Gradhiva, e
Alain Robbe-Grillet (1922-2008), que realizou, em
2006, uma adaptação cinematográfica livre do
romance de Jensen: C´est Gradiva qui vous appelle.
 O escritor e crítico literário Roland Barthes (1915-
1980), também lhe consagrou um capítulo de seus
Fragmentos de um discurso amoroso (1977) e o filósofo
Jacques Derrida (1930-2004) a ela também se refere
em seu Mal de arquivo: uma impressão freudiana
(2001). Jaques Derrida
Em Fragmentos de um discurso amoroso, Barthes dedica um capítulo (ou um ―fragmento‖) à
Gradiva. Nele, o autor lança mão da história de Jensen analisada por Freud para falar de amor, de
algumas faces do amor.
1. Barthes compara o amor de Norbert Hanhold ao de Zoe-Gradiva:
Norbert Hanhold Zoe-Gradiva
Amor excessivo, alucinante, delirante Amor suave, compreensivo, sensível
Ama sem saber; inconsciente, neurótico, Ama conscientemente; aceita o delírio para
sonhador, impetuoso delicadamente romper a ilusão
2. Se a Gradiva de Jensen e Freud é ―uma figura de salvação‖, há também, no campo amoroso, ―uma
Gradiva malvada‖.
Vítima de sua própria neurose, essa ―Gradiva do mal‖, ainda que inconscientemente, agrava (ou
tenta agravar) a loucura do ser amado; enlouquece-o, com mudanças bruscas de humor ou de
assunto, por exemplo; aprisiona-o, deixando-o sem saída.
3. Num relacionamento amoroso, nos diz Barthes, é preciso ―folgar as malhas‖. Aquele que captura o
ser amado deve ter a generosidade de desenredá-lo, libertá-lo. E para isso é preciso delicadeza. (Tal
como conta Martin Freud, na biografia que escreveu de seu pai, intitulada Freud, meu pai – v.
BARTHES, R.2003, p. 205)
4. Como é possível conciliar amor e paixão? Como Zoe podia amar e estar apaixonada por Norbert?
Desejá-lo e dominar seu sentimento, cobiçá-lo e conservar sua lucidez? Afinal, ―estar enamorado‖ e
amar são sentimentos reputados como diferentes (talvez até incompatíveis), na medida que um é tido
como nobre e o outro como mórbido.
Compatibilizar os ímpetos e o êxtase da paixão (do ―estar enamorado‖) com a doação e a
generosidade do amor é um tipo de fruição da qual só mulheres são capazes. Ou que só está acessível
àqueles que se feminizam. Por isso, conclui Barthes, é Norbert quem delira e Gradiva quem ama.
Em Mal de arquivo, Derrida também evoca a Gradiva de Jensen e de Freud para falar de um ―desejo
de memória‖. Algumas de suas reflexões a partir de Freud:
1. É na alucinação, segundo a Psicanálise de Freud, que está a semente da verdade. A função da terapia
analítica freudiana consiste exatamente em encontrar a verdade na alucinação, na repressão, no
recalque. Tal como faz Gradiva, no romance de Jansen.
2. Gradiva, como ―fantasma do meio-dia‖ da ficção de Jensen, simboliza ―a verdade do retorno‖, certa
verdade espectral na figura de um ―fantasma real‖. Tal como nossas verdades inconscientes,
absolutamente reais, ainda que só se revelem fantasmaticamente; são verdades inescapáveis que
invariavelmente retornam.
3. O ―mal de arquivo‖ diagnosticado por Derrida envolve o ato de procurar o arquivo onde quer que
ele esteja; o gesto de dirigir-se ao arquivo com um desejo compulsivo, repetitivo e nostálgico, um desejo
irreprimível de volta à origem, uma nostalgia de retorno ao arcaico. Tal como Norbert que,
alucinadamente, vai a Pompéia em busca da Gradiva do baixo-relevo. De fato, o personagem buscava
uma reminiscência de infância, um retorno à origem, ao arcaico de sua existência.
4. A Psicanálise tenta sempre voltar à origem viva daquilo que se perdeu no arquivo da memória
consciente. A análise psicanalítica consiste em ―fazer as pedras falarem‖ (tal como procedem os
arqueólogos) para, assim, exorcizar os fantasmas. Tal como no romance de Jensen, pois é no momento
em que Pompéia retorna à vida, quando os mortos revivem ao meio-dia, que o personagem decifra sua
―pulsão‖, decifra o desejo interior num ato de memória.
5. Mas em todo arquivo, nos diz Derrida, há algo de inencontrável, um segredo, algo que não deixa
rastros, nem sintomas, algo que não pode ser arquivado. ―O segredo são as cinzas do arquivo‖, escreve
o filósofo francês. É nisso que a trajetória de Gradiva nos leva a pensar: para além de toda investigação
possível e necessária, qual o segredo inviolável de Gradiva, de Hanhold, de Jensen, de Freud? O que,
afinal, nessa trajetória se dissimulou para sempre?
BARTHES, Roland. Fragmentos de um discurso amoroso.
Trad. Márcia Valéria Martinez de Aguiar. São Paulo:
Martins Fontes, 2003.
DERRIDA, Jacques. Mal de arquivo: uma impressão
freudiana. Trad. Cláudia de Moraes Rego. Rio de
Janeiro: Relume Dumará, 2001.
FREUD, Sigmund. Delírios e sonhos na Gradiva de
Jensen. In: Edição Standard Brasileira das Obras
Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v. IX. Rio
de Janeiro: Imago, 1996.
JENSEN, Wilhelm. Gradiva: uma fantasia pompeiana.
Trad. Ângela Melim. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1987.

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