pelo surrealismo, pela filosofia...) Comunicação e Expressão Escrita I Profa. Teresa Neves Profa. Marise Mendes Facom - UFJF Uma imagem chamada Gradiva O baixo-relevo em mármore de uma jovem que caminha descalça, erguendo com as mãos o traje fartamente drapeado e, assim, deixa ver seus pés em movimento, recebeu do escritor alemão Wilhelm Jensen (1837-1911) o nome de ‗Gradiva‘. Trata-se da ―feminização‖ de Gradivus, um dos epítetos do deus romano Marte, Mars Gradivus, o deus da guerra que vai à batalha. O verbo gradire, em latim, quer dizer ―dar um passo‖. Daí, em português, os verbos transgredir (dar um passo além, atravessar); agredir (dar um passo em direção a, atacar); progredir (dar um passo para frente, avançar); regressar (dar um passo para trás, retornar); ingressar (dar um passo para dentro, entrar) etc. Logo, ‘Gradiva’ é “aquela que avança”. Na ficção de Jensen, a obra seria romana e estaria no Museu Arqueológico Nacional de Nápoles. Em seu pós-escrito à segunda edição de Delírios e sonhos na Gradiva de Jensen, de 1912, Sigmund Freud (1856-1939) faz questão de esclarecer que o relevo ―pertence ao período áureo da arte grega‖ e está no Museu Chiaramonti do Vaticano . Ainda segundo Freud, em seu pós-escrito, ―da união de ‗Gradiva‘ com outros fragmentos, existentes em Florença e Munique, foram obtidos dois relevos, cada qual representando três figuras, identificadas como as Horas, as deusas da vegetação, e as divindades do orvalho fertilizador que são aliadas a elas‖. O escritor e historiador da arte, Arnold Hauser (1892-1978), restaurou e interpretou esses fragmentos, considerando-os como cópias romanas de originais gregos da última parte do século IV a.C. O romance Gradiva – uma fantasia pompeiana, do Jensen foi um escritor alemão Wilhelm Jensen, foi publicado originalmente em 1903. dos mais férteis O livro conta a história de um jovem arqueólogo, Norbert Hanhold, que fica fascinado pela imagem da escritores jovem mulher esculpida no baixo-relevo de mármore. alemães de Hanhold tem um sonho angustiante: encontra-se em ficção de sua Pompéia, no ano 79, exatamente quando o Vesúvio época, tendo estava para entrar em erupção e lapidificar a cidade. escrito mais No sonho, vê Gradiva, nome que deu para a mulher de 150 obras, do relevo, mas antes que possa avisá-la do perigo iminente, ela é soterrada pelas lavas do vulcão. das quais O sonho perturbador o leva a viajar para Pompéia e poucas, lá, em delírio, ele encontra sua amada. Através de um porém, complexo processo, Norbert descobre a ligação entre cairiam no a Gradiva e um amor de sua infância – Zoe Bertgang. gosto do Havia associado essa menina à mulher idealizada público. que o fascina – a Gradiva do baixo relevo. Seus Estudou sentimentos se deslocam, então, da mulher de mármore para a pessoa de Zoe. medicina, Trata-se de uma obra pequena, com apenas 102 atuou como páginas, cuja edição em português (Zahar, 1987) jornalista e foi encontra-se esgotada. O download do livro, porém, também pode ser feito no seguinte endereço: dramaturgo e http://www.4shared.com/document/evTIVwIQ/GRADIVA_- poeta. _romance_de_Wilheim_J.htm ―A escultura representava, de pé, uma mulher caminhando, mais ou menos num terço do seu tamanho natural. Ela era jovem, não criança e, evidentemente, ainda não mulher, porém uma virgem romana de cerca de vinte anos. Em nada lembrava os baixos-relevos tão freqüentes de Vênus, de Diana, ou de alguma outra divindade do Olimpo, nem Psique ou outra Ninfa. Havia nela alguma coisa da humanidade contemporânea — expressão que não é tomada num sentido desfavorável — atual, de algum modo, como se o artista, ao invés de lançar, como teria feito hoje, um croquis sobre uma folha de papel, tivesse esboçado um modelo de argila, na rua, passando rapidamente ao lado da própria vida.‖ (JENSEN, W. 1987, p.11) ―O corpo era grande e esbelto, os cabelos frouxamente ondulados e quase que completamente cobertos por um xale. O rosto, um pouco pequeno, não tinha fascínio especial, mas era evidente que não buscava tal efeito. Seus traços finos exprimiam uma tranqüila indiferença em relação aos acontecimentos externos, o olho, que olhava reto para frente, testemunhava uma visão excelente e intacta, e de um voltar-se pacífico dos pensamentos para si mesmo. Essa jovem mulher, que não atraía pela beleza de suas formas, possuía, no entanto, uma coisa rara nas esculturas da antiguidade, o encanto simples e natural de uma moça, encanto que parecia ser a inspiração de sua própria vida. Ele se devia, sem dúvida, à postura em que ela era representada. Com a cabeça ligeiramente inclinada, tinha recolhida na mão esquerda uma parte do vestido extraordinariamente pregueado, que lhe caía da nuca aos calcanhares, e descobria assim seus pés nas sandálias. O pé esquerdo estava à frente, e o direito, disposto a segui-lo, só tocava o chão com a ponta dos artelhos, enquanto que a planta e o calcanhar elevavam-se quase verticalmente. Esse movimento exprimia ao mesmo tempo a leveza ágil de uma jovem caminhando e um repouso seguro de si, o que lhe dava, ao combinar uma espécie de vôo suspenso com um andar firme, aquele encanto particular.‖ (JENSEN, W. 1987, p. 12) A Gradiva de Freud Na verdade, o relevo que atraiu o interesse de Jensen era popular na Europa do século XIX, por onde circulava reproduzido em gesso. O próprio Freud veio a ter uma dessas reproduções em seu consultório, ainda hoje mantida no Museu em que se transformou sua residência em Londres. O editor inglês da Edição Standard das Obras Completas de Freud, James Strachey (1887–1967), lembra que foi Carl Jung (1875-1961) quem chamou a atenção de Freud para o livro de Jansen Freud em 1905 Segundo sua versão, Freud teria escrito Sonho e delírio na Gradiva de Jensen, especialmente para agradar Jung, no verão de 1906, meses antes do primeiro encontro entre ambos. O episódio teria sido o prenúncio dos cinco ou seis anos de suas relações cordiais. Logo depois da publicação do estudo em maio de 1907, Freud enviou um exemplar a Jensen, com quem trocou breves e afáveis correspondências. As cartas fazem crer que o escritor teria ficado lisonjeado com a análise freudiana, aceitando suas principais linhas de interpretação. Gesso de Gradiva no Museu de Freud, em Londres Segundo o editor inglês, James Strachey, ―afora a significação mais profunda, aquilo que atraiu especialmente a atenção de Freud na obra de Jensen foi, sem dúvida, o cenário em que ela se desenrola‖. Freud já havia manifestado, em carta datada de 1897, seu interesse intelectual por Pompéia, cidade que ele viria a visitar em 1902. ―Freud sentia-se particularmente fascinado‖ – diz Strachey – ―pela analogia existente entre o destino histórico de Pompéia (o soterramento e a posterior escavação) e os eventos mentais que lhe eram tão familiares: o soterramento pela repressão e a escavação pela análise‖ (FREUD, S. 1996, p. 16). Corpos petrificados emPompéia Diante do romance de Jensen, Freud se encontra face a uma obra que lhe permite estabelecer um paralelo entre o procedimento arqueológico e o método psicanalítico. O trabalho de (re)construção do analista se assemelha à escavação feita pelo arqueólogo, porém ambos não se confundem: aquilo com que o analista trabalha não está destruído, ao contrário, está vivo, situação que só em circunstâncias raras ocorre com o objeto arqueológico, como é o caso de Pompéia. Todos os elementos essenciais estão preservados, mesmo que esquecidos, recalcados, circunstancialmente inacessíveis. A Gradiva de Jensen torna-se objeto da primeira análise de uma obra literária publicada por Freud, com exceção de seus comentários sobre Édipo Rei e Hamlet, em A Interpretação dos Sonhos, de 1900. Mais tarde, em 1911, o autor irá publicar outro estudo dessa natureza, debruçando-se sobre as Memórias de um doente dos nervos, de Daniel Paul Schreder. Em Delírios e sonhos..., Freud sugere que a literatura se constitui, ainda que não intencionalmente, conforme as leis do inconsciente e, por isso, o autor do texto literário pode ser compreendido como alguém que partilha ou antecipa o que a psicanálise descobre. A imagem de Gradiva torna-se intimamente vinculada à teoria que Freud, então, se esforçava por consolidar. A jovem que avança descalça, arriscando-se com graça e determinação sobre um piso acidentado, serve de ícone do desejo inconsciente que pulsa no sonho e no delírio, irrompendo nas sinuosidades psíquicas. A heroína do romance personifica a própria psicanálise – o método psicanalítico e sua ação terapêutica –, na medida em que, consentindo a ―verdade‖ do delírio e interpretando-o, é capaz de operar a cura psicológica. O artigo de Freud é publicado pela primeira vez em Francês em 1931, vindo a influenciar de modo decisivo o movimento surrealista. De fato, o Surrealismo sempre esteve sob a influência das teses psicanalíticas freudianas. Tanto no manifesto fundador de 1924, quanto no segundo manifesto, de 1929, o criador e principal teórico do movimento, André Breton (1896-1966), recusava a criação artística elaborada pelo pensamento lógico e consciente, imposto por padrões comportamentais e morais da sociedade. Breton salientava a importância do inconsciente na criatividade do ser humano. Seu ponto de partida eram os estudos sobre a André Breton em 1924 psique humana desenvolvidos por Freud em A interpretação dos sonhos. Gradiva irá inspirar os surrealistas na composição de suas imagens femininas. Para eles, a mulher se configurava como musa mítica, bem ao modo como Gradiva desponta na obra de Jensen. Até uma galeria de arte surrealista inaugurada por Breton em 1937 recebeu no seu letreiro cada letra da palavra Gradiva associada a um nome de mulher: ―G de Gisèle, R de Rosine, A de Alice, D de Dora, I de Inès, V de Violètte‖. Instigadora do intercâmbio entre sonho e realidade, Gradiva foi venerada por artistas surrealistas. Salvador Dali (1904-1989) pintou inúmeras vezes Gradiva e chegou a associá-la à sua mulher, chamando-a de Gala Gradiva. Muchacha com risos (Menina com cachos, 51 x 40 cm), de 1926, é considerado uma antecipação da figura de Gradiva na obra de Dali, que dedicará uma série de trabalhos ao tema, especialmente entre 1931 e 1932. No caso desta tela precursora, consta que a muchacha aí representada seria Dulita, personagem procedente das recordações de infância de Dali. Em El hombre invisible (O homem invisível, 140 x 81 cm), obra produzida entre 1929 e 1932, observa-se, à direita, a imagem de Gradiva, caracterizada por uma ondulante cabeleira, e um aspecto espectral também presente no estudo preparatório para o quadro. Na pintura, as duas figuras análogas fazem referência à duplicidade da Gradiva de Jensen, a um só tempo sonho e realidade, memória e presença, pedra e carne. As madeixas que ascendem como chama, os seios fartos, o traje agarrado ao corpo, semelhante a um sudário, e, sobretudo, a rosa vermelha ensanguentada que ocupa o lugar do sexo são também atributos inspirados na novela de Jensen e que evocam a luta entre a vida e a morte. A mesma dialética se expressa na postura da figura (que tanto parece estar tombada quanto de pé, imóvel e caminhando) e ainda em sua cabeça inclinada para trás (o que sugere simultaneamente o êxtase sexual e o espasmo da agonia). A Gradiva daliniana encarna, assim, o combate e o íntimo abraço entre Eros e Tanatos. Gradiva (Estudo para O homem invisível), 1931 No desenho à pluma, de 1931, intitulado Andrómeda (Andrômeda, 70.2 x 52.7 cm), a figura mitológica feminina representada nua relaciona-se estritamente com Gradiva e pode ter sido um esboço de outro dos trabalhos incluídos na série sobre o tema da personagem de Jensen produzida por Dali no início dos anos 30. Tal como no baixo-relevo que se tornou a obsessão do arqueólogo ficcional, Gradiva aqui aparece aprisionada na pedra; tal como Zoe-Gradiva, Andrômeda é símbolo do amor heróico. Se a Gradiva de Jensen era a estátua pétrea que tornava à vida, Andrômeda é a carne atada à pedra, ameaçada pela petrificação. Aqui, como em outros trabalhos dedicados à Gradiva, Dali a insere em formações rochosas típicas do lugar no qual ele próprio vivia, Port Lligat, na Catalunha. Gradiva reaparece no quadro La vejez de Guillermo Tell (A velhice de Guilherme Tell, 98 x 140 cm), de 1930-1931, em seu estudo preparatório, de 1931, e em Guillermo Tell e Gradiva (Guilherme Tell e Gradiva, 30 x 24 cm), de 1930. A personagem coabita as duas pinturas com outra figura da mitologia daliniana, Guilherme Tell, símbolo do pai castrador, encarnação do próprio pai de Dali que se opunha a seu amor por Gala. Se na tela acima parece estar em curso um ritual mortífero, na pintura ao lado, a cabeleira de Gradiva, seus seios eretos e a intensa cor cálida de sua pele, em contraste com o cinza da pedra, exprimem a carne impetuosa e o triunfo da vida. Dali visita outra vez os embates entre Eros e Tanatos, mas dessa vez o vivo sucumbe ao impulso de morte. Em Gradiva descubre las ruinas antropomorfas (Fantasía retrospectiva) [Gradiva descobre as ruínas antropomorfas (Fantasia retrospectiva), 65 x 54 cm], de 1931-1932, Dali representa um amplo deserto. Em primeiro plano aparecem dois personagens de pé, enlaçados em um abraço petrificado. No plano médio e no último plano, estão ruínas e figuras espectrais. A luz que envolve a cena, amarela no fundo, vai escurecendo, de modo a submergir nas sombras as personagens principais. Uma delas está envolta em um sudário; a outra está corroída, perfurada. Qual delas é Gradiva e qual é seu parceiro? Ou se trata mais uma vez de duas Gradivas? De qualquer modo, já não importa, pois todo corpo vivo já foi convertido em algo inerte, seco, mineral, fóssil. A recriação no letal, o prazer da dissolução inspirará mais uma abordagem do tema da Gradiva, apresentada como uma alegoria da Guerra Civil Espanhola, a qual Dali celebrava como a grande orgia da morte, o máximo orgasmo de Tanatos. Na pintura España (Espanha, 92 x 60 cm), de 1938, produzida em plena Guerra Espanhola, a figura de Gradiva se confunde com a imagem da própria Espanha e esta Espanha-Gradiva perde sua corporeidade; sua carne é transparente; seus seios e sua cabeça foram destroçados, estilhaçados. Em Espanha, Gradiva só poderá ainda representar a metáfora de uma ―cura‖, se esta não tiver mais natureza amorosa, mas assumir caráter político. Gradiva Becoming Fruits, Vegetables, Gradiva, She Who Advances, 1939. Pork, Bread, and Grilled Sardine, 1939. Deusa asteca do Gradiva se converterá também numa nascimento das principais obras da produção surrealista de André Masson (1896- 1987), incluída numa série de pinturas sobre o tema da metamorfose, produzida no fim dos anos 30. Masson Ariadne foi um dos que romperam com Bresson na crise de 1929, tendo retomado os laços de amizade e cooperação artística André Masson com o grupo surrealista, face ao perigo A pintura transpõe a passagem mais fascista que ameaça a Europa, a partir dramática da narrativa de Jensen. Enquanto de 1936. Com Gradiva (1939, 97 x 130 o Vesúvio, no plano de fundo, aparece no cm), o pintor quis oficializar essa momento de sua erupção, o pintor petrifica reconciliação. A obra é considerada uma a metamorfose de Gradiva, entre criatura espécie de síntese e um dos êxitos mais de carne e figura mineral, entre vida e deslumbrantes da pintura surrealista, morte. O corpo da Gradiva mantém tanto que, então, alcançava seu ápice. uma atitude de nascimento (origem) quanto Reunindo alguns dos principais de morte (tal como uma combinação da elementos do Surrealismo dos 15 anos deusa asteca do nascimento com a deusa do precedentes, a tela resulta numa sono Ariadne). A Gradiva de Masson é composição fantástica e surpreendente. metade humana, metade mármore. A Gradiva pintada por Masson tem um cenário inspirado na Vila dos Mistérios de Pompéia. Nas palavras do escritor surrealista Michel Leiris (1901-1990): ―Meio mulher, meio estátua, [é] mostrada sobre um fundo de erupção, de plantas soníferas e de zumbido de insetos‖. O pé direito da imagem mantém a posição ereta, observada no relevo em mármore da Gradiva, e se assemelha às patas da manta (louva-deus), que , por sua vez, lembra alguém ajoelhado em oração. Na parte esquerda da composição, as papoulas remetem à passagem do romance na qual Gradiva desaparece pela fissura de um muro circundado por estas flores. A abertura na parede à esquerda tem o formato de um rifle, uma possível referência à guerra e à morte. Um enxame de abelhas assedia a figura feminina e evoca, segundo os intérpretes da pintura, tanto os insetos que irritam o arqueólogo Hanhold, quanto os persistentes insetos de Dali, que em suas obras aparecem como consumidores do tempo e da vida. Entre as pernas de Gradiva abre-se o abismo labiríntico de uma concha, e as pregas de sua veste se transmutam em um naco de carne. A referência aos órgãos sexuais femininos remete a fontes de fertilidade e símbolos de uma geração que se ergue da morte daquela que a precedeu. Masson, assim como o fizeram Dali, Breton e Freud (cada qual a seu modo), usa o tema da Gradiva como se fora um mito da metamorfose, da intergeração e da regeneração da vida. A presença extraordinária da jovem semipetrificada, as tonalidades ricas e flamejantes de vermelho, púrpura, rosa coral, amarelo puro, verde água e malva que iluminam com uma ―luz do apocalipse‖ o cenário pompeiano, e, enfim, a potência transmitida por esta metamorfose interrompida, suspensa na imagem fixada pela pintura, fazem da Gradiva de Masson uma verdadeira experiência visual e sensual. Se Gradiva se impôs aos surrealistas como a figura Roland Barthes por excelência do ato criador, ela igualmente inspirou Michel Lerris, que fundou, em 1986, uma revista de antropologia que ele batizou Gradhiva, e Alain Robbe-Grillet (1922-2008), que realizou, em 2006, uma adaptação cinematográfica livre do romance de Jensen: C´est Gradiva qui vous appelle. O escritor e crítico literário Roland Barthes (1915- 1980), também lhe consagrou um capítulo de seus Fragmentos de um discurso amoroso (1977) e o filósofo Jacques Derrida (1930-2004) a ela também se refere em seu Mal de arquivo: uma impressão freudiana (2001). Jaques Derrida Em Fragmentos de um discurso amoroso, Barthes dedica um capítulo (ou um ―fragmento‖) à Gradiva. Nele, o autor lança mão da história de Jensen analisada por Freud para falar de amor, de algumas faces do amor. 1. Barthes compara o amor de Norbert Hanhold ao de Zoe-Gradiva: Norbert Hanhold Zoe-Gradiva Amor excessivo, alucinante, delirante Amor suave, compreensivo, sensível Ama sem saber; inconsciente, neurótico, Ama conscientemente; aceita o delírio para sonhador, impetuoso delicadamente romper a ilusão 2. Se a Gradiva de Jensen e Freud é ―uma figura de salvação‖, há também, no campo amoroso, ―uma Gradiva malvada‖. Vítima de sua própria neurose, essa ―Gradiva do mal‖, ainda que inconscientemente, agrava (ou tenta agravar) a loucura do ser amado; enlouquece-o, com mudanças bruscas de humor ou de assunto, por exemplo; aprisiona-o, deixando-o sem saída. 3. Num relacionamento amoroso, nos diz Barthes, é preciso ―folgar as malhas‖. Aquele que captura o ser amado deve ter a generosidade de desenredá-lo, libertá-lo. E para isso é preciso delicadeza. (Tal como conta Martin Freud, na biografia que escreveu de seu pai, intitulada Freud, meu pai – v. BARTHES, R.2003, p. 205) 4. Como é possível conciliar amor e paixão? Como Zoe podia amar e estar apaixonada por Norbert? Desejá-lo e dominar seu sentimento, cobiçá-lo e conservar sua lucidez? Afinal, ―estar enamorado‖ e amar são sentimentos reputados como diferentes (talvez até incompatíveis), na medida que um é tido como nobre e o outro como mórbido. Compatibilizar os ímpetos e o êxtase da paixão (do ―estar enamorado‖) com a doação e a generosidade do amor é um tipo de fruição da qual só mulheres são capazes. Ou que só está acessível àqueles que se feminizam. Por isso, conclui Barthes, é Norbert quem delira e Gradiva quem ama. Em Mal de arquivo, Derrida também evoca a Gradiva de Jensen e de Freud para falar de um ―desejo de memória‖. Algumas de suas reflexões a partir de Freud: 1. É na alucinação, segundo a Psicanálise de Freud, que está a semente da verdade. A função da terapia analítica freudiana consiste exatamente em encontrar a verdade na alucinação, na repressão, no recalque. Tal como faz Gradiva, no romance de Jansen. 2. Gradiva, como ―fantasma do meio-dia‖ da ficção de Jensen, simboliza ―a verdade do retorno‖, certa verdade espectral na figura de um ―fantasma real‖. Tal como nossas verdades inconscientes, absolutamente reais, ainda que só se revelem fantasmaticamente; são verdades inescapáveis que invariavelmente retornam. 3. O ―mal de arquivo‖ diagnosticado por Derrida envolve o ato de procurar o arquivo onde quer que ele esteja; o gesto de dirigir-se ao arquivo com um desejo compulsivo, repetitivo e nostálgico, um desejo irreprimível de volta à origem, uma nostalgia de retorno ao arcaico. Tal como Norbert que, alucinadamente, vai a Pompéia em busca da Gradiva do baixo-relevo. De fato, o personagem buscava uma reminiscência de infância, um retorno à origem, ao arcaico de sua existência. 4. A Psicanálise tenta sempre voltar à origem viva daquilo que se perdeu no arquivo da memória consciente. A análise psicanalítica consiste em ―fazer as pedras falarem‖ (tal como procedem os arqueólogos) para, assim, exorcizar os fantasmas. Tal como no romance de Jensen, pois é no momento em que Pompéia retorna à vida, quando os mortos revivem ao meio-dia, que o personagem decifra sua ―pulsão‖, decifra o desejo interior num ato de memória. 5. Mas em todo arquivo, nos diz Derrida, há algo de inencontrável, um segredo, algo que não deixa rastros, nem sintomas, algo que não pode ser arquivado. ―O segredo são as cinzas do arquivo‖, escreve o filósofo francês. É nisso que a trajetória de Gradiva nos leva a pensar: para além de toda investigação possível e necessária, qual o segredo inviolável de Gradiva, de Hanhold, de Jensen, de Freud? O que, afinal, nessa trajetória se dissimulou para sempre? BARTHES, Roland. Fragmentos de um discurso amoroso. Trad. Márcia Valéria Martinez de Aguiar. São Paulo: Martins Fontes, 2003. DERRIDA, Jacques. Mal de arquivo: uma impressão freudiana. Trad. Cláudia de Moraes Rego. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001. FREUD, Sigmund. Delírios e sonhos na Gradiva de Jensen. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v. IX. Rio de Janeiro: Imago, 1996. JENSEN, Wilhelm. Gradiva: uma fantasia pompeiana. Trad. Ângela Melim. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1987.