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O problema econômico do masoquismo

Freud inicia o texto de 1924 afirmando que a tendência masoquista na vida pulsional dos seres
humanos é misteriosa, uma vez que os processo mentais são governados pelo principio do
prazer. Logo, o que explicaria tal tendência se os objetivos do princípio de prazer é evitar o
desprazer e buscar o prazer. Há algo, portanto, que colocar o vigia de nossa vida mental fora
da ação psíquica.

Ainda sobre o princípio do prazer, o autor recorda que este é o princípio governante de todos
os processos mentais, uma “tendência no sentido de estabilidade”, que tem por propósito
reduzir as excitações. Para esta tendência, Freud concorda com o nome de “princípio de
Nirvana, apresentado por Barbara Low.

Entretanto, no princípio de Nirvana, que Freud autoriza à identificar com o princípio do prazer,
todo desprazer corresponde com uma elevação da tensão mental, e todo prazer com o seu
abaixamento. Neste caso, o princípio de Nirvana estaria à serviço exclusivamente da pulsão de
morte, ao buscar baixar toda tensão e conduzir as inquietações da vida, para o estado do
inorgânico.

Isso seria incorrer no risco que Lacan aponta no....

De fato, existem tensões que são prazerosas e relaxamentos desprazerosos de tensão (FREUD,
1924). Para Freud, o exemplo mais notável desta ambiguidade relacionada ao princípio do
prazer está na excitação sexual, de tal modo que na ótica do princípio do prazer, prazer e
desprazer devem ser considerados não apenas em seus aspectos quantitativos, mas
igualmente sobre seus aspectos qualitativos.

De acordo com Freud, o princípio de Nirvana, ligado como é à pulsão de morte, se modifica
graças à força da libido, de tal modo que nos seres humanos se constatam os dois princípios: o
de Nirvana, que expressa a tendência da pulsão de morte, e o do prazer, a serviço das
exigências da libido.

Para Freud, embora o princípio de prazer se apresente como a modificação do princípio de


Nirvana, há um dualismo, de tal forma que se deva evitar pensar os dois princípios como um só
(FREUD, 1924). Não obstante, Freud fala em uma ampla amalgama, de tal sorte que não há nos
seres humanos a ação pura de apenas uma das pulsões, mas apenas a mistura deles, em
quantidades diferentes.

Mas nenhum destes dois princípios, aos quais se soma ainda o princípio de realidade que
representa as influências do mundo exterior, é colocado fora de ação enquanto um outro
deles opera. Tolerando-se mutualmente, estão fadados à um ocasional conflito de objetivos:
uma busca de redução quantitativa da carga de estímulo, pode surgir simultaneamente à
facilitação de um estimulo qualitativamente prazeroso, por sua vez confrontada com uma
necessidade de um adiamento da descarga, com uma aceitação temporária do desprazer.

Quanto ao masoquismo, se apresenta sob três formas, a saber: como condição biológica e
constitutiva da excitação sexual, gerando prazer no sofrimento (masoquismo erógeno); como
norma de um comportamento, geralmente ligada à um sentimento de culpa inconsciente
(masoquismo moral); como expressão do feminino (masoquismo feminino).
Sobre o masoquismo feminino, Freud diz que ele não somente é acessível às nossas
observações, como é também possível de apreende-lo em todas as suas relações. Ele parte de
sua experiência clínica com homens, cujas fantasias e práticas apontam para interpretação de
que o masoquista quer ser tratado como uma criança travessa. Em muitos casos, elas colocam
o indivíduo numa situação tipicamente feminina: ser castrado, ser copulado, dar à luz, donde
advém chamá-lo masoquismo feminino, embora suas características apontem para a vida
infantil.

Para explica-lo, o autor retoma à sua hipótese sobre as classes de pulsões que operam nos
seres humanos e afirma que a libido, ao enfrentar a pulsão de morte, tem a missão de tornar
inócuo a pulsão destruidora e o faz – ao menos em parte – conduzindo tal pulsão para fora:
uma parte da pulsão é colocada a serviço da função sexual, [...] outra parte não compartilha
desta transposição e permanece dentro do organismo e fica lá libidinalmente presa. É nessa
porção que temos de identificar o masoquismo original, erógeno (FREUD, 1924). Neste caso, a
pulsão de morte que aponta para fora, na tentativa de ser amansada pelo princípio do prazer,
corresponde ao sadismo original.

Em alguns casos, o retorno do sadismo original - de cujo o resto é o próprio masoquismo


original – uma vez projetado para fora, pode se introjetar novamente, produzindo um
masoquismo secundário, que se soma ao original. De acordo com Freud, este masoquismo
erógeno acompanha a libido em todas as fases de seu desenvolvimento.

Quanto ao masoquismo moral, a componente sexual é, em sentido estrito, deixada de lado.


Importa o sofrimento, não importando quem o decreta. Geralmente, um sofrimento neurótico
é um fator impulsionador de tal tendência masoquista, devido ao fator de uma culpa
inconsciente. Diante dela, o ego busca por punição, tanto do superego, quanto de poderes
parentais externos.

Como observa Claude Le Guen, no seu artigo O engodo feminino do masoquismo ordinário, o
masoquismo feminino recebe esta nomenclatura porque as fantasias que ele suscita
testemunham uma identificação feminina. No entanto, o mf se origina de uma estruturação
precoce, antes da tomada de consciência de uma diferença anatômica entre os sexos. Assim,
chamá-lo feminino é uma referência à visão da posição do feminino na psicanalítica freudiana.

De um modo diferente da abordagem freudiana, Claude Le Guen chama a atenção para


masoquismo feminino em mulheres ao analisar a produção de fantasias conformes as
acepções correntes sobre um certo ´masoquismo feminino´ (p. 2). Embora estas fantasias,
quase nunca cheguem à ação, diferentemente do que ocorre com os homens, esta erótica é
compreendida por Claude, mais como um vislumbramento dos caminhos fantasmáticos do
fenômeno, do que como uma demanda de tratamento clínico.

Para Claude, a abordagem freudiana autoriza a visão de masoquismo erógeno primário que
participando da estruturação do masculino e do feminino do ser. Ao ligá-lo ao feminino, Freud
estabelece que o masoquismo se caracteriza mais como uma posição de passividade, que com
um vínculo com o sofrimento. Neste sentido, ele se afasta da ideia do masoquismo ligado à
noção de perversidade. Desta forma, Freud teria estabelecido a ideia do masoquismo erógeno
como um princípio constitutivo de organização psíquica e não como um sintoma.

Assim, o masoquismo seria um testemunho, ou vestígio, da aliança entre a pulsão de morte e


Eros (cf. p.5). Sem consideramos a questão da dualidade pulsional em seu aspecto mítico,
permanecendo apenas na descrição de tais movimentos pulsionais, o que se constata é que a
libido, ao se deparar com a pulsão de morte, se esforça para torna-la inofensiva, desviando-a
para os objetos do mundo exterior (conduzindo tanto ao domínio quanto ao sadismo
primário). A parte que permanece no organismo, vincula-se à libido constituindo o
masoquismo originário erógeno.

Todavia, de um lado, Claude chama a atenção para o fato de que não se trata de um
acontecimento psíquico, mas de algo que ocupa o lado biológico da pulsão. Por outro lado, é
mister admitir que o sadismo e o masoquismo são componentes a serviço do ego: no primeiro
cso, o acento recai sobre o sadismo elevado do superego, ao qual se submete o ego; no
segundo, ao contrário recai sobre o masoquismo do próprio ego, que clama por uma punição
(p. 6). Ora, por este enfoque, o masoquismo seria próprio das funções de defesa, portanto
contra a pulsão, ou ele é próprio do id¸ isto é, está no registro da pulsão?

Para melhor elucidar a questão, deve-se considerar, portanto, para além da existência de um
masoquismo erógeno primário, a posição masoquista, relacionada ao feminino. Noutros
termos, a posição masoquista, no engendramento edípico, se aproxima da lógica do gozo
feminino, em oposição à lógica do gozo fálico. Desta forma, o masoquismo feminino aponta
para algo além da mediação fálica.

Convém lembrar que Freud, ao retomar entre 1923 e 1925 sua teoria da sexualidade, faz
referência ao conceito de falo como o operador da organização genital na infância (BELLICO et
all). O menino vive a castração como angústia inconsciente diante da ameaça de perda, a
menina vive a inveja e a hostilidade frente à perda consumada. É a resposta à experiência da
castração de um objeto imaginário, a saber a ausência do falo que corresponde à completude
de satisfação, que evidencia a diferença entre os sexos. Para Freud, o assento na
representação fálica, coloca um “véu” sobre o órgão feminino.

Anos mais tarde, ao retomar a questão do feminino, Freud explicita três possibilidades para o
percurso da feminilidade no tornar-se mulher, a partir da descoberta da castração: uma
conduz à inibição sexual ou à neurose, outra, à modificação do caráter no sentido de um
complexo de masculinidade, a terceira, finalmente à feminilidade normal (Freud 1933, 155).

Todavia, neste sentido, a representação da mulher como vítima exclusiva da castração serviria
tão somente para mascarar uma duplicidade no sujeito (BATISTA; PINHEIRO, p. 185). Por
conseguinte, o masoquismo feminino aponta ao fato de que há um gozo fálico, atribuído ao
homem e um outro gozo, suplementar, inverso ao simulacro do ser (todo); e que se comanda
por um imperativo vindo do Outro, que se traduz como objeto servil ao gozo fálico.

Importa, portanto, ressaltar o aspecto fantasmático desta experiência. Como ocorre no ensaio
bate-se em uma criança (uma criança é espancada), o complexo edípico se realiza por meio de
fantasias, sem que exista uma condenação do feminino em cumprir o papel da servidão frente
ao gozo do outro. Se há no feminino uma necessidade de punição e de dor, isto ocorre tanto
em homens quanto em mulheres. Por conseguinte, as fantasias masoquistas possuem raízes
edípicas profundas que fazem uma equivalência entre o se fazer bater a posição feminina na
relação sexual.

Anos mais tarde, em 1932, no texto A feminilidade, Freud se interroga sobre a comparação
feminino-passivo e conclui ser ela errônea. Mas diz que o masoquismo é feminino pela
imposição de regas sociais e pela constituição da mulher que a levam a recalcar impulsos
agressivos (BELLICO,).
Enfim, conclui-se que o masoquismo aponta à um gozo além do gozo fálico, masculino. Mas,
talvez não por acaso, Freud o aborde na clínica com homens e não com mulheres, já que a
posição masoquista, se evidencia como anterior às construções próprias da distinção de
gênero.

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