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A bela açougueira: do desejo ao gozo, e retorno

Rogério Barros
O nascimento da Psicanálise
¨ Freud diz que a psicanálise surge com o século
XX, com o lançamento da obra A interpretação
dos sonhos (FREUD, 1900-1901).
¨ Surge de um terreno bem delimitado, cujo
objetivo é: “[...] compreender algo da natureza
das enfermidades nervosas chamadas
“funcionais”, para vencer a impotência médica de
até então quanto ao seu tratamento” (FREUD,
1994, p. 49).
Formações do ICS, associação livre e interpretação
¨ A partir da associação livre, não se chega
propriamente aos elementos esquecidos, mas se
faz claras e abundantes alusões a eles.
¨ O trabalho do analista é reconstruir e interpretar,
com auxilio de alguns complementos.
¨ Sonhos obedecem ao princípio da deformação no
seu conteúdo.
A bela açougueira (FREUD, 1900)
¨ Este sonho se insere no capítulo IV da
Interpretação dos sonhos, intitulado A
distorção nos sonhos”.
¨ Principal premissa:
¤ O sentido dos sonhos é a realização do desejo >
todos os sonhos são desejantes.
¤ Paradoxo: sonhos de angústia, despertar.
Conteúdos manifesto e latente
¨ Frente à pergunta “Como os sonhos de angústia podem
ser realizações de desejo?”, podemos acrescentar “Por
que os sonhos de conteúdo irrelevante, que mostram ser
realizações de desejos, não expressam seu sentido sem
disfarce?”.
¨ Fenômeno de distorção nos sonhos: os pensamentos
oníricos não se expressam diretamente > conteúdo
manifesto x latente.
¤ “Existe alguma incapacidade” (FREUD, 1900, p. 171).
Distorção onírica
¨ Forma dos sonhos depende de 2 forças psíquicas
(correntes, sistemas ou instâncias):
a) Constrói o desejo que é expresso no sonho (criativa).
b) Censura o desejo onírico, forçando a distorção na expressão
do desejo (defensiva).
O sonho da bela açougueira
“Eu queria oferecer uma ceia, mas não tinha nada em
casa além de um pequeno salmão defumado. Pensei
em sair e comprar alguma coisa, mas então me lembrei
que era domingo à tarde e que todas as lojas estariam
fechadas. Em seguida, tentei telefonar para alguns
fornecedores, mas o telefone estava com defeito.
Assim, tive que abandonar o meu desejo de oferecer
uma ceia” (FREUD, 1900, p. 181).
Um sonho, sob transferência
¨ Contestação à teoria freudiana dos sonhos como
realização de desejo.
¨ Técnica analítica freudiana: retomar acontecimentos
de véspera.
¤ Marido açougueiro está ficando gordo e pede que não
aceitar convites para cear.
¤ Apaixonada pelo marido, caçoa dele e lhe pede que não
lhe dê nenhum caviar.
Desejo não realizado
¨ Caviar. O que isso quer dizer?
¤ “[...] desejava comer um sanduíche de caviar todas as
manhãs , mas relutava em fazer essa despesa [...] o
marido a deixaria obtê-lo imediatamente [...] ela lhe pedira
que não lhe desse caviar, para poder continuar a mexer
com ele por causa disso” (Ibid., p. 181).
¨ Sonho representa a renúncia posta em prática na
atividade onírica. “Mas por que ela precisaria de um
desejo não realizado?” (p. 182).
Análise freudiana
¨ Novas associações > superação da resistência > a
outra mulher.
¤ Visita à uma amiga de quem tinha ciúmes da relação com
seu marido que sempre a elogiava. Amiga magra e
ossuda, que não é da preferência do marido, que gosta
das cheinhas.
¤ Amiga deseja engordar e pergunta quando será chamada
para jantar em sua casa.
Do caviar ao salmão, o desejo
¨ Afinal, o que representa o salmão defumado?
¤ Salmão defumado é o prato predileto da sua amiga, que se ressente
tanto de não comer salmão, como a própria paciente de não comer
caviar (comparação).
¨ Desejo da paciente de que a amiga não engorde mescla-se ao
suposto desejo não realizado da amiga de comer salmão defumado
que surge no sonho, como se esse fosse seu próprio desejo (da
paciente). Ela deseja um desejo insatisfeito.
¤ Desejo da paciente se representa pelo desejo da amiga: salmão (desejo
da amiga) substitui o caviar (desejo da paciente).
Identificação histérica
¨ A paciente que, na vida, renuncia ao caviar, produz
um sonho onde essa recusa se evidencia pelo desejo
renunciado da outra mulher.
¨ Identificação: permite que os pacientes expressem
seus sintomas através das experiências das outras
pessoas, através de uma “feitura inconsciente de
uma inferência” (Ibid., p. 183).
Identificação histérica
¨ Inferência: processo inconsciente de assimilação de algo do outro,
feita através de uma alegação etiológica similar. No caso da
histeria, de uma etiologia sexual.
¨ A bela açougueira infere que a amiga tem um desejo renunciado
(jantar), ocupa seu lugar no sonho, criando o seu sintoma para
expressar o ciúme. Revela-se a íntima relação entre sonho e a
psiconeurose.
¤ Pensamento onírico: “[...] minha paciente colocou-se no lugar da
amiga, no sonho, porque esta estava ocupando o lugar da minha
paciente junto ao marido e porque ela (minha paciente) queria tomar o
lugar da amiga no alto conceito em que o marido a tinha” (Ibid., p. 184).
O trabalho no sonho
¨ Tarefa analítica: desvendar a relação simbólica dos processos
através dos quais os pensamentos oníricos se transformaram em
conteúdo manifesto.
¤ Duas linguagens:
n Conteúdo do sonho (escrita pictográfica) é uma transcrição dos
pensamentos oníricos em outro modo de expressão (linguagem dos
pensamentos do sonho).
n Fatores dominantes no trabalho do sonho, que a ele dá forma:
condensação e deslocamento.
O trabalho do sonho
¨ Condensação
¤ Sonhos curtos, impossível determinar o volume de condensação;
¤ Constituídos de “pontos nodais” para onde convergem pensamentos oníricos, sendo
sobredeterminados (representados muitas vezes no pensamento do sonho);
¤ Formados por vias associativas entre vários pensamentos.
¨ Deslocamento
¤ Conteúdo não tem necessariamente relação com o pensamento onírico;
¤ São interpolações artificiais afastadas do núcleo do sonho (sem convergência
associativa);
¤ Despoja elementos de alto valor por outro de baixo valor, deslocando intensidades.
Conteúdo não semelhante com o pensamento.
Desejo desliza no desejo e substitui
¨ Lacan (1958), em A direção do tratamento... indica que o
desejo se articula em um discurso regido por leis.

¨ O sonho da histérica se satisfaz por deslocamento: o


desejo desliza no desejo do outro, que é o desejo de ter
um desejo insatisfeito. Esse desejo é substituído,
posteriormente, por condensação (comparação, sentido
ocultado no sonho) com outra cadeia de sentido. Desejo
de salmão que se compara ao desejo pelo caviar, ambos
recusados.
Metáfora, metonímia
¨ Mecanismos inconscientes de deformação
dos sonhos: condensação e deslizamento.
¤ Metáfora (condensação): substituição de um
termo por outro; sentido positivo (passa do sujeito
ao sentido do desejo)
¤ Metonímia (deslocamento): combinação de um
termo com outro; pouco sentido (falta-a-ser se
atém ao significante, deslizando o desejo)
Metáfora, metonímia
¨ Metonímia - significante que toma o lugar da
coisa.
¨ Metáfora - substituição significante, um
significante ocupando o lugar de outro,
mantendo conexão metonímica com o
significante que falta.
(LACAN, 1954)
Duas dimensões, no sonho
1. Desejo do desejo. O desejo é significado por outro
desejo. Ou seja, o desejo de ter um desejo
insatisfeito é significado pelo significante ‘caviar’.

2. Um desejo substitui outro desejo. O desejo de


caviar se substitui ao desejo de salmão. Um
significante substituído por outro significante.
Relação metáfora-metonímia
¨ Substituição do sgte caviar pelo sgte de salmão no sonho (metáfora).
¨ Nas associações da paciente, o desejo que se manifesta é de caviar; salmão é
o desejo da amiga. O desejo de caviar passa a ser representado pelo desejo
de salmão, eliminando o significante intermediário, tendo como resultado o
desejo de salmão sobre o desconhecido, x, implicado no sonho.
desejo de salmão desejo de caviar desejo de salmão
_______________ x ________________ =________________
desejo de caviar x x

Em x, não se tem a metáfora, mas o desejo de caviar, sendo esse desejo o seu
significante. Insere o gozo no inconsciente.
(LAURENT, 1986)
Caviar, desejo do desejo insatisfeito
¨ O desejo expresso como insatisfeito diz
respeito ao significante caviar, que simboliza o
que é inacessível.
¨ Caviar se articula a falta-a-ser do sujeito,
causando o seu desejo, movendo-o,
deslizando metonimicamente.
Metonímia, perversão
¨ Na metonímia, não há nenhuma significação
que remeta a outra significação. Não se
produz um denominador comum, fazendo com
que careça de sentido ou mesmo tendo pouco
sentido.
¨ Revela o toque de perversão da histeria, e o
próprio fundamento do desejo.
Desejo: metonímia à metáfora
¨ O desejo desperto da açougueira é o caviar, o desejo de
mulher satisfeita que ela não quer estar. Desejo
insatisfeito evidencia sua falta-a-ser (metonímia).
¨ O sonho responde à demanda da amiga de ter um
jantar (identificação com o falo magrelo, Outro);
¨ O salmão defumado surge no lugar do desejo do Outro
(metáfora);
¤ A histérica busca, no desejo do Outro, o segredo do seu
próprio desejo.
Desejo, Outro, amor
¨ O sujeito, articulado à cadeia significante, traz à luz
seu falta-a-ser através do desejo insatisfeito >
¨ Realiza apelo ao Outro em busca do seu
complemento >
¨ O que é dado ao Outro preencher, ele não tem,
pois também falta o ser nele>
¨ Introdução do amor como aquilo que não se tem.
Sonho de desejo, sonho de estrutura
¤ Laurent (1986) aponta que Lacan faz do sonho
de desejo um sonho de estrutura, introduzindo
o conceito de desejo, que transcende a realidade,
criando um objeto que não pode ser encontrado;
n Metonímia do desejo parte de um vazio que se torna
significante, deslizando como desejo (caviar). Ponto
de perversão que fetichiza um objeto.
n Fetiche tem como resultado uma recusa, inventando
o desejo, criando uma ficção (metáfora).
Desejo, perversão
“No lugar da necessidade sexual, para atingi-la,
passa-se pelo cenário fictício, onde o desejo
desliza. O desejo é a metonímia do falta-a-ser. Isso
implica dizer que “o verdadeiro desta relação entre
perversão e neurose é que o desejo é
forçosamente a introdução de um elemento vazio”
(LAURENT, 1986, p. 10).
O problema do gozo na linguagem
¨ Miller (2000) aponta como Lacan, com avanços epistêmicos
sistemáticos, vai respondendo a questão do gozo em seu
ensino. 6 paradigmas.
¨ 1º paradigma. Imaginarização do gozo
¤ Dialética da intersubjetividade;
¤ Gozo como inércia imaginária (moi), resistente;
¤ Satisfação semântica pela liberação do sentido;
¤ Gozo é intraimaginário e não intrasubjetivo;
¤ Imaginário (libidinal) surge onde o simbólico falha.
¤ Oposição entre cadeia significante e libido.
2º. Significantização do gozo
¨ Refere-se a uma reescritura conceitual dos
termos imaginário em simbólicos;
¤ A pulsão transcrita em termos simbólicos, regidos por
leis de linguagem, capazes de metáfora e metonímia;
¤ Tempo dos matemas lacanianos.
¨ Ponto central: o desejo é a significantização do
gozo.
¤ Como o gozo se satisfaz? Com a satisfação do
desejo.
Desejo gozar, sob leis
¨ A estrutura do desejo é metonímica, marcado como
significado que corre sobre o significante.
¨ Percurso da análise: desfazer as identificações que
entravariam o livre curso do desejo, especialmente a
identificação fálica (metáfora).
¤ O significante anula o gozo e o restitui sob a forma de desejo
significado.
¤ Interessa o desejo, no que concerne ao gozo, colocado como
significado.
¤ Ir da significação fálica a um mais além...
Interpretação e direção da cura
¨ Direção do caviar: remete a outra mulher, cuja
fascinação, típica da histeria, revela o ódio a mãe
(ausência de significantes). Aqui, encontramos a
morte e o irrepresentável.
¨ Direção do salmão: reconduz ao falo, ser o
homem, homem identificado ao falo, aquele que
pode amar uma mulher além da satisfação, além
do gozo fálico. Ela quer ser o homem que sabe o
que é ser uma mulher, fazendo A mulher existir.
Referências
q FREUD, S. O nascimento da psicanálise 1910. In: Freud por ele mesmo. Org.:
Martin Claret. São Paulo: Martin Claret, 1994.
q FREUD, S. (1900). A distorção nos sonhos. Em: FREUD, S. A interpretação dos
sonhos. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1996.
q FREUD, S. (1900). O trabalho do sonho. Em: FREUD, S. A interpretação dos
sonhos. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1996.
q LACAN, J.(1954) A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud. In:
LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 1998.
q LACAN, J. (1958). A direção do tratamento e os princípios de seu poder. In:
LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 1998.
q LAURENT. E. Conferência sobre Parte V – Deve-se tomar o desejo ao pé da letra.
Salvador: EBP-BA,1986.
q MILLER, J. A. Os seis paradigmas do gozo. Opção Lacaniana, 26/27, 87-105. São
Paulo: Eolia, 2000.

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