Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Artigos Anteriores
DROGAS E RELIGIÃO
PARTE II: RITUAIS EXTÁTICOS CRISTIANIZADOS
No entanto, o aparecimento das religiões judaicocristãs modificou os paradigmas religiosos da humanidade. A crença passou a girar em
torno de um único Deus, criador do Céu e da Terra, onipresente e onipotente, cuja palavra fora revelada e difundida por profetas e
sacerdotes. Não cabia nessa crença a reencarnação ou contato com espíritos. Sob essa nova perspectiva importância das plantas
psicoativas nos rituais religiosos desapareceu. A Igreja Católica medieval considerava tais ritos um desejo de contatar o demônio e
punia rigorosamente os hereges que praticavam tais liturgias. A aceitação do Judaísmo, do Cristianismo e do Islamismo dentro dos
limites dos antigos Impérios Persa e Romano baniu boa parte dos rituais religiosos extáticos da região.
O peiote em dois momentos: in natura com vários botões e florescências [superior] e o
mescal (botão seco) [inferior], modo pelo qual é consumido.
Os huichóis, tal como os cristãos, acreditavam que seu
Deus, por
compaixão, viera
à Terra para
salvar seu povo.
Para os cristãos,
ele se mostrou na
forma de um
FIGURA 3: O caçador de peiotes e seu aparato.
O ritual da coleta do peiote tem profundas raízes homem, que
com a maneira como os caçadores primitivos morreu, mas
viam o mundo. Os huichóis acreditam que o
ressuscitou para
Criador encarnou no cervo e no peiote. O peiote
simboliza o coração do cervo e por isso deve ser salvar seu povo.
'caçado' com uma flecha e comido cru. Para os huichóis
seu Deus morreu
e reencarnou em
forma de peiote,
criado para dar
mais sabedoria
aos homens.
Os huichóis e os
carrizos
introduziram o
hábito de
consumir o peiote
entre as tribos
norteamericanas
FIGURA 4: O deuscervo, encarnação do Criador. (Figura 5), em
O coração do cervo é devorado pelos coites, especial entre os
irmãos mais velhos dos huichóis. Para essa
civilização, o peiote simboliza o coração do cervo
comanches, que
e comêlo cru faz renascer o lobo que habita seu habitavam as
espírito. Autor: Jose Benitez Sanchez planícies do
(http://www.math.csusb.edu).
Texas e
Oklahoma. Esse encontro se deu por volta do século XVII e resultou no surgimento da Igreja Nativa Americana duzentos anos depois
FIGURA 5: Área habitada pelos huichóis e carrizos (vermelho) no final do século XIX e as
prováveis rotas dos comanches pela região, através das quais entraram em contato com o
consumo do peiote. http://www.history.uiuc.edu
Na transição para o século XIX, as tribos comanche e kiowa de Oklahoma encontravamse em reservas indígenas. Outrora orgulhosas
de seu passado guerreiro e autônomo, estavam naquela época vencidas e restritas a territórios demarcados. Nesse ambiente, o peiote
começou a ser consumido por essas tribos. O intuito era buscar um contato com espíritos ancestrais, recuperar suas identidades
culturais e revigorar os laços de união entre os membros da tribo. Influências cristãs compuseram os rituais do peiote, provenientes da
ação de missionários religiosos presentes nas reservas indígenas. Em pouco tempo, não só os comanches e kiowas, mas também os
delawares, caddos, cheyennes, arapahos, poncas, otos, pawnee, osage e outras tribos mais faziam rituais de peiote.
O grande difusor do peiotismo foi Quanah Parker (Figura 6). líder comanche de Oklahoma ajudou a espalhar o ritual do peiote para
outras tribos do estado e conferiu a essa nova instituição um caráter intertribal. O rápido crescimento do peiotismo em Oklahoma e no
Texas chamou a atenção dos missionários, que passaram a defender sua proibição. Os índios, no entanto, souberam se articular
politicamente em seus estados e contaram com a ajuda de descendentes integrados à 'cultura branca', inclusive professores
universitários.
Por volta da primeira década do século XX o peiotismo ganhou respaldo governamental para existir. Atualmente, há cerca de oitenta
capelas espalhadas pelo país, congregando cerca de duzentos e cinqüenta mil pessoas. O canto em língua nativa é o principal modo de
expressão dos cultos, acompanhado por instrumentos de percussão e entremeados por meditação. A cerimônia dura toda a noite e é
acompanhada pelo consumo de peiote. A Igreja não possui clérigos. A Bíblia é lida em grupo e cada um a interpreta livremente. A moral
é essencialmente cristã. O consumo de álcool é proibido para os membros do grupo.
FIGURA 6: Quanah Parker. Líder comanche do FIGURA 7: Dois momentos da Igreja Nativa Americana: [à esquerda] comissão de peiotista reunida com o comitê médico
estado de Oklahoma, considerado um dos durante a Convenção Constitucional de Oklahoma, que autorizou consumo do peiote no estado (1907) e [direita] capela da
grandes difusores do peiotismo entre as tribos Igreja em Oklahoma durante os anos 50. http://www.history.uiuc.edu
ameríndias dos Estados Unidos.
http://www.history.uiuc.edu
O Santo Daime
A ayahuasca
Mesmo havendo desacordo entre as evidências milenares de
consumo e a lenda do príncipe Hayauasca, a lenda revela a
A palavra ayahuasca significa vinho da alma. A bebida possui dezenas de
importância da bebida como um elo de ligação entre os incas e seu
outros nomes, tais como iajé, cipó, daime, vegetal, caapi. Diversas plantas
podem ser utilizadas, com o intuito de provocar reações específicas ou passado glorioso (agora em ruínas) e a intenção de buscar um
dependendo das tradições de cada tribo. Duas plantas, no entanto, são vínculo de união entre as nações subjugadas. Uma propriedade
essenciais: o cipó do jagube (Banisteriopsis caapi) e a chacrona ou rainha
(Psychotria viridis). A chacrona é rica em um alucinógeno denominado
espiritual que nunca poderia ser tomada por qualquer conquistador.
dimetiltriptamina (DMT). Uma vez no organismo, o DMT é destruído por uma
enzima chamada monoaminoxidase (MAO). O cipó, no entanto, é rico em O consumo da ayahuasca permaneceu vivo entre as tribos indígenas
harmalina, que bloqueia a ação da MAO, potencializando a ação do DMT no amazônicas, mesmo após a chegada dos conquistadores luso
cérebro.
espanhóis. O hábito, no entanto, continuava exclusivo das nações
A chacrona ou rainha [à esquerda] e o caapi ou cipó do jagube [à direita] indígenas e era visto pela população das cidades e povoados como
algo demoníaco, capaz de causar visões amedrontadoras e capazes
de levar a loucura. Essa situação começou a modificar com a
chegada do século XX (Figura 9). Nessa época, a extração da
borracha se constituiu numa atividade altamente lucrativa e atraiu
uma grande quantidade de retirantes da seca nordestina. Nesse
mesmo período, o Brasil se preocupava em demarcar suas fronteiras
e ocupar os territórios do norte do país. O Marechal Cândido Rondon
realizou várias expedições à Amazônia, levando o telégrafo e fazendo
contato com nações indígenas.
Em 1930, Mestre Irineu mudouse para Rio Branco (AC), onde fundou
a Igreja do Alto Santo. Em 1945, fundou o Centro de Iluminação
Cristã Luz Universal (CICLU) , que chegou a congregar 500 membros
efetivos. Permaneceu em Rio Branco até a sua morte, em 1971.
Se o Daime teve um fundador, teve também um difusor. Após a morte
de Mestre Irineu, um de seus principais discípulos, o seringueiro
Francisco Mota Melo continuou o trabalho do mestre (Figura 10). Em
1973, fundou na margem esquerda do rio Purus a comunidade Vila
Céu do Mapiá e dentro desta organizou sua entidade religiosa, o
Centro Eclético da Fluente Luz Universal Raimundo Irineu Serra
(CEFLURIS). Com mais de 100 casas, o Mapiá é o hoje o centro do
daimismo. Com a morte de Padrinho Sebastião, seu filho, Padrinho
Alfredo, o substituiu. Padrinho Sebastião foi o responsável pela
propagação do Daime na capital Brasília e nos estados da Paraíba,
São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro, Santa Catarina e Rio
Grande do Sul, além de países no exterior como Argentina, Chile,
Estados Unidos, Alemanha, Holanda e Japão.
FIGURA 9: O nascimento do Daime. O maranhense Raimundo Irineu Serra partiu
rumo ao Acre seguindo o fluxo migratório dos retirantes da seca, rumo à extração
da borracha amazônica. Na Basiléia (AC) integrou a Força Expedicionária do
Marechal Rondon e entrou em contato com os povos indígenas e conheceu a
ayahuasca. Segundo seus relatos, durante uma de suas experiência com a "bebida
que causava visões" lhe apareceu Nossa Senhora da Conceição, que lhe ensinou
os fundamentos da doutrina do Daime e o hinário. Tornouse o Mestre Irineu.
As mirações
A ingestão da ayahusca visa a proporcionar vidências, comunicação com espíritos,
alívio físico e psíquico, curas, dentro de um ritual que não só estabelece um nexo
entre o humano e o divino, como também uma unidade mais alta entre os membros
do grupo. O ritual envolve todo o ciclo de vida das plantas, seu preparo pelos
membros e o consumo grupal. A manifestação musical, através do canto dos
hinários e o bailado, é o ponto central da liturgia daimista. As cerimônias se
estendem por horas e o Daime é consumido ao longo da ocasião.
Êxtase da revelação, o momento em que o daimista recebe as visões, que são ao
mesmo tempo consideradas reais e numinosas, é denominado mirações. É o
momento em que o pensamento é sentido como uma vibração capaz de modelar,
criar, curar e alcançar telepaticamente outras mentes e planos espirituais.
Paulo César Amaringo. As janelas do Céu.
Veja também...
Artigos Anteriores
O conteúdo deste site é de domínio público, os textos aqui contidos podem ser reproduzidos desde que as informações não sejam alteradas e
a fonte seja citada adequadamente. Para citar a fonte, copie a linha abaixo:
Site Álcool e Drogas sem Distorção (www.einstein.br/alcooledrogas) / NEAD Núcleo Einstein de Álcool e Drogas do Hospital Israelita Albert Einstein
Atenciosamente
Equipe Álcool e Drogas sem Distorção