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CORRESPONDÊNCIA

LOU ANDREAS SALOMÉ RAINER MARIA RILKE


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LOU ANDREAS SALOMÉ RAINER MARIA RILKE

CORRESPONDÊNCIA
CORRESPONDÊNCIA
PRÓLOGO DE PIERRE KLOSSOWSKI
POSFÁCIO DE MIGUEL MOREY

TRADUÇÃO DE DAMNUS VOBISCUM

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PREFÁCIO DO TRADUTOR
Quando alguém se propõe a devassar a
correspondência alheia, deve estar certo de po-
der compreendê-la, de estar à altura do conteú-
do da mesma. Foi o que descobri durante a tra-
dução destas cartas, cuja prosa elaborada mui-
tas vezes parece não levar a parte alguma. Um
verdadeiro esforço de absorção dos problemas
enfrentados pelo poeta, nem tanto desconheci-
dos (por ser eu, também, uma espécie de poe-
ta), porém de certo modo arcaicos, devido ao
tempo que representam, assim como ao ho-
mem. De fato, Rilke foi um poeta sem igual,
sofrendo na pele todas as contradições e incer-
tezas de sua condição. Talvez que o ter tido
Lou por confidente e conselheira lhe tenha sido
favorável – talvez não. Isso porque a mulher
que o psicanalisava pelo correio era demasiado
complicada, ainda mais que suas vulgares con-
gêneres. Lou Salomé esteve em contato com as
cabeças mais importantes e privilegiadas de sua
época e circunstância (Nietzsche, Rilke e
Freud), nelas deixando, indeléveis, as marcas
de sua passagem. Para o bem ou para o mal, ela
atuou – e isto não pode, nem será ignorado.

A presente tradução me foi encomenda-


da por Maria Sueny Barbosa Soares, pela difi-
culdade que teve em encontrar qualquer sinal
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desta correspondência em português. Existe
uma tradução portuguesa, muito rara infeliz-
mente, cuja edição já esgotada é quase impos-
sível de se achar em lojas de livros usados. Cer-
tamente que também não consta dela as cartas
aqui reunidas, cuja publicação ficou por conta
de uma editora espanhola, que encontrei após
muito procurar pela rede.

Ficou em mim a impressão de um Rilke


inseguro e choramingas, e de uma Lou um tan-
to manipuladora e mistificante. Mas é tão ape-
nas a minha impressão. Sugiro que o leitor, se
acaso o houver, desenvolva a sua própria.

Esta foi uma tradução que fiz por amor.

Extrema, fins de julho de 2013.

Damnus Vobiscum

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PRÓLOGO
A troca de cartas que aqui se apresenta
foi extraída da correspondência entre Rainer
Maria Rilke e Lou Andreas-Salomé, organizada
e publicada por Ernst Pfeiffer (Rainer Maria
Rilke/Lou Andreas-Salomé: Briefwechsel. Max
Niehans Verlag Zurich u. Insel Verlag Wiesba-
den, 1952).

Amiga mais íntima de Rilke desde 1904


e discípula de Freud a partir de 1912-13, Lou
Andreas-Salomé praticava a psicanálise. Po-
rém, muito antes disso havia sido a “consulto-
ra”, literalmente a “psicóloga” de Rilke, e não
só nos momentos de angústia e mal-estar do
poeta. Contudo, longe de querer acompanhar
Rilke em um tratamento analítico, afastou-se,
contrariamente, dele*. A cura psicológica exer-
cida durante os muitos períodos desta longa
correspondência (1896-1926) fundamentava-se
em sua convicção de que as forças obscuras
constituíam a única fonte, tanto de “cura”,
quanto de criação do poeta: era necessário, por-
tanto, que fossem preservadas de uma interven-
ção semelhante à do método analítico, que teria
destruído seu ritmo próprio. Uma das maiores
obsessões de Rilke consistia na alienação de
seu próprio corpo, chegando inclusive ao des-
dobramento (o “Outro”) e a pretexto do com-
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portamento somático deste último, como se o
mesmo se tratasse de um simulador oculto de
seus estados de espírito. Sobretudo neste cam-
po, Lou procura ser a mediadora entre a alma
deprimida do poeta e as angústias que este re-
gularmente confessa-lhe em suas horas de este-
rilidade, e assim Lou aparece essencialmente
como intérprete dessas forças obscuras, tanto
quanto das primeiras interpretações que o pró-
prio poeta lhes dá.

Pierre Klossowski

* O Sr. Ernst Pfeiffer, editor e comentarista judicioso desta


correspondência, nos diz que muito mais tarde Lou se mani-
festou a respeito desse tema, em uma carta à Baronesa von
Münchhausen (em outubro de 1929), da seguinte maneira:
“...a ideia de que tais métodos ainda não existissem em sua
juventude me enchia de amargura. Semelhantes métodos não
costumam ser aplicados sem um grave perigo sobre um artis-
ta já realizado (segundo MEU PRÓPRIO MODO DE VER, o
qual, no entanto, não é o mesmo de Freud)”. E o Sr. Pfeiffer
acrescenta: 'A decisão completamente lúcida que havia ado-
tado em outra ocasião (1912), de recusar-se a analisar Rilke,
foi uma das mais sérias de sua vida’.

Segundo palavras da própria Lou sobre a gravidade dessa


decisão, a justificativa encontrava-se no fato de que “os gér-
mens daquilo que posteriormente se manifestaria nas ELE-
GIAS, e cuja existência eu conhecia, teriam sido extirpados
pela análise – sendo particularmente aí onde eu via o maior
perigo, e a razão de evitar a análise por todos os meios”
(Obra citada, notas e comentários, p. 570).

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RILKE A LOU ANDREAS-SALOMÉ
EM GÖTTINGEN

Paris, Rue Campagne-Première, 17

08 de junho de 1914

Querida Lou, eis-me aqui ao final de um


longo, amplo e duro período, com o qual vem a
caducar um futuro que não foi forte e religio-
samente alimentado, mas sim torturado até o
aniquilamento (algo no que, convenhamos, sou
inimitável). Se às vezes, durante estes últimos
anos, eu pude desculpar-me sob o pretexto de
que algumas tentativas no sentido de me esta-
belecer mais humana e naturalmente na vida
fracassaram porque as pessoas nisto envolvidas
não me haviam compreendido, e me faziam
sofrer ininterruptas violências, injustiças e pre-
conceitos, lançando-me assim em tão grande
desassossego, sucede agora que depois de me-
ses de sofrimento encontro-me orientado de
maneira muito diferente: forçando-me a reco-
nhecer que, desta vez, ninguém me pode aju-
dar. E ainda que alguém viesse com sua alma
mais inocente, mais imediata, e encontrasse sua
motivação nos próprios astros, ainda que me
suportasse apesar de minha torpeza e rigidez e
conservasse sua pura e infalível disposição para
comigo; ainda quando o raio de seu amor vies-
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se a cair por dez vezes na turba e densa superfí-
cie de meu universo submarino, eu ainda seria
capaz (agora sei) de empobrecê-lo no seio da
abundância de seu auxílio incessantemente re-
novado, de encerra-lo no irrespirável domínio
de uma ausência total de ternura, até o ponto
em que, tornada impossível sua ajuda, passasse
esta mesma pessoa da plenitude à aridez, até
atingir a mais sinistra decadência.

Querida Lou, faz um mês que estou no-


vamente sozinho, sendo esta minha primeira
tentativa de voltar a tomar consciência – como
vês, as coisas assim estão. Resumindo, tenho
experimentado muito durante estes aconteci-
mentos, e no momento tenho constatando isto:
que uma vez mais estive à altura de uma tarefa
pura e alegre, na qual a vida, como se nunca
houvesse tido eu experiências ruins, voltava-se
para mim, misericordiosa. Desde já está claro
que também nisto voltei a fracassar, e que, lon-
ge de avançar, repetirei por mais um ano esta
trilha de dor; e que a cada dia encontrarei ins-
critas no quadro negro as mesmas palavras,
cuja triste inflexão acreditava haver aprendido
até o esgotamento.

Aquilo que tão radicalmente ia mudar


minha angústia começou com muitas, muitas
cartas, formosas e ligeiras como se brotadas do

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coração: que eu saiba nunca escrevi outras pa-
recidas. (Era a época, se te lembras, da omissão
dos “s”). De tais cartas (cada vez eu compreen-
dia melhor) ascendia uma petulância irresistí-
vel, como se me encontrasse diante de um novo
e pleno alvorecer da minha mais peculiar es-
sência, a qual, liberada desde então através de
uma comunicação inesgotável, se espalhava
pela vertente mais alegre ao mesmo tempo em
que eu, escrevendo dia após dia, sentia sua feliz
correnteza e o incompreensível repouso que me
parecia preparado do modo mais natural em
uma alma capaz de acolhê-lo. Manter pura e
transparente esta comunicação e, simultanea-
mente, nem sentir nem pensar nada que se en-
contrasse excluído por ela: isso foi o que de
uma só vez, e sem que eu soubesse como, che-
gou a ser a medida e a lei de minha atuação, e
se jamais homem algum intimamente agitado
pôde sossegar, eu mesmo o fui com essas car-
tas. Esta ocupação diária e minha relação com
ela se me tornaram sagradas de uma maneira
indescritível, e desde então se apoderou de mim
uma confiança enorme, como se tivesse enfim
encontrado uma saída a essa penosa exaustão
de circunstâncias continuamente nefastas. Até
que ponto estava então comprometido com a
mudança podia nota-lo igualmente no fato de
que inclusive as coisas passadas, quando me
ocorria contar algo delas, me surpreendiam pe-

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lo modo como reapareciam; se, por exemplo,
tratava-se de épocas das quais pouco havia fa-
lado anteriormente, detinha-me em aspectos
inadvertidos ou apenas conscientes, e cada um
deles adquiria, para ilustrar com a inocência de
uma paisagem, uma visibilidade pura, uma pre-
sença, e isso me enriquecia, formava parte de
mim, tanto e de tal modo que pela primeira vez
me parecia ser eu o dono de minha vida, não
por uma aquisição, por uma exploração, por
uma compreensão interpretativa de coisas ca-
ducas, mas sim por essa nova veracidade que se
espalhava através de minhas recordações.

09 de junho de 1914, terça-feira

Envio-te, querida Lou, a folha de ontem:


você compreenderá que o que nela descrevo já
não tem vigência e se perdeu para mim; três
meses de realidade (frustrada) deixaram sobre
tudo isso algo como uma dura e fria lâmina de
cristal, sob a qual essa experiência já não me
pertence, como se estivesse colocada na vitrine
de um museu. O cristal reflete e nele percebo
apenas meu velho rosto, anterior, aquele que
você tão bem conhece.

E agora? Depois de uma inútil tentativa


de viver na Itália, voltei para cá (faz já quinze

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dias), desejoso de lançar-me às cegas em qual-
quer ocupação; porém ainda tão apagado e pa-
ralisado que não posso fazer outra coisa além
de dormir. Se tivesse um amigo, pedir-lhe-ia
que viesse trabalhar comigo todos os dias, no
que quer que fosse. E quando nos intervalos, de
taciturno humor, penso no que está por vir,
imagino em primeiro lugar um tipo de trabalho
que estivesse submetido às condições exterio-
res, e distanciado tanto quanto fosse possível de
toda produtividade pessoal. Pois desde já não
duvido nem por um instante de que estou doen-
te, doente de uma enfermidade que me corroeu
gravemente e cujo foco se encontra no que até
então eu chamava de meu trabalho, de tal forma
que já não há para mim nenhum refúgio por
esse caminho.

Teu velho

Rainer

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LOU ANDREAS-SALOMÉ A RILKE
EM PARIS

Göttingen, 11 de junho de 1914

Meu querido, velho Rainer. Sabe, chorei


terrivelmente ao ler a tua carta... foi estúpido,
mas como pode alguém impedi-lo quando vê
de que maneira a vida às vezes trata os mais
valiosos de seus filhos? Acompanhei-te com
todos os meus pensamentos na medida em que
se possa chamar a isto “acompanhar”, quando
alguém se pergunta a cada dia onde pode estar
o outro: se elevado até os confins da atmosfera
humana, ou se perdido no fundo de uma crate-
ra, debatendo-se entre as mais violentas chamas
que jamais arderam no seio da terra. Quando
você me escreveu a propósito de minhas “Car-
tas”, que resultaram tão alegremente loucas, me
parecia possível que se tivesse aberto, para ti,
um período produtivo, provocado por alguma
experiência afetiva; e é sempre nesse momento
quando parece próximo um terrível perigo, tan-
to quanto uma grande vitória. É então fácil para
algumas almas sacrificarem um nada de produ-
tividade que se desprende de uma experiência
intensamente vivida; e, de vez em quando, cri-
adoras por natureza, conseguem fazer o contrá-
rio; mas provavelmente, com muito maior fre-
quência, ocorre que ambas as tendências se en-
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contram a meio caminho e assim se anulam,
por haverem obstruído mutuamente suas passa-
gens. Ainda que desta vez seja você, tão abso-
lutamente, o único responsável desta anulação,
que não haja desculpas, nem constrangimento.
Uma coisa, contudo, fica fora de dúvida: a ma-
neira como ressuscitas todo isto com tuas pala-
vras é exatamente (exatamente!), a antiga, a
íntegra potência que dá vida ao que está morto,
e além: a dor causada por este fato é a de uma
alma cujo sentimento mais sutil, mais interior,
em nada poderia ser mais inocente do que na-
quilo do que você mesmo se acusa. E não obs-
tante é você, como também é você quem, em
dado momento, é incapaz de trabalhar, ou põe a
perder o trabalho. E, certamente, nem tiras nem
podes tirar nada do fato de que apesar de tudo
não é você, já que ninguém pode comer até se
fartar do pão trancado em um armário, como
tampouco se alimentar com a espera pelas espi-
gas de trigo a serem colhidas nos campos. Por
isso, se me queixo a esse respeito, queixo-me
de um modo muito diferente, enquanto expec-
tadora que ao mesmo tempo está muito emoci-
onada com a ideia de que o pão e os frutos dos
campos existem. É isso o que agora ocorre com
o que está sob “o cristal duro e frio da vitrine”:
você já não o possui e o cristal reflete apenas a
ti mesmo; no entanto lá está, é uma prova da
magnitude de tuas qualidades e, assim como as

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reconheceste sob este aspecto – sua profundi-
dade, sua rica propriedade de si mesmo – do
mesmo modo ainda há mais a oferecer-se, que
hoje não podes nem sequer suspeitar, e ao qual
te impede de ver algo ainda mais resistente que
o cristal. Mas, por que tantas palavras? Por en-
quanto nada mais sentirás além de algo leve ou
maciço que te separa da vida, e qualquer pala-
vra sobre isso será estúpida, tola e impotente*.

* Nota do editor: termina aqui o texto da carta.

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RILKE A LOU ANDREAS-SALOMÉ
EM GÖTTINGEN

Paris, sábado, 20 de junho de 1914

Lou querida, eis aqui um estranho poe-


ma escrito esta manhã, que te envio agora
mesmo, e ao qual espontaneamente intitulei
“Wendung”, porque representa a virada decisi-
va que provavelmente se produzirá com toda
necessidade, se a devo viver. Você há de com-
preender o sentido em que foi concebido.

Tua carta em resposta ao meu estudo so-


bre as “Bonecas Russas”, eu a havia pressenti-
do, supondo que me escreveria uma de consolo,
que manifestasse uma impressão apropriada
para ordena-lo. E, com efeito, compreendo per-
feitamente o que reconheces nela, assim como
a última frase, onde as “palavras” são incapazes
de expressar, essa última frase com relação à
unidade que as bonecas formam com o corpó-
reo e suas mais terríveis fatalidades.

Porém, que espantoso é que alguém es-


creva semelhante coisa sem perceber nada, sob
o pretexto de falar de uma lembrança da mais
original intimidade, e que em seguida esse al-
guém deixe a pena com ânsias de reviver uma
vez mais o espectral, mas de maneira ilimitada,
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como nunca antes havia feito; até que, cheio e a
transbordar estopa pelo corpo de fantoche no
qual se converteu, termine com a boca seca.

Teu

Rainer

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VIRADA DECISIVA

O caminho que leva


Da intimidade à grandeza
Passa pelo sacrifício.

– Kassner

Lentamente a venceu, com o olhar


Em luta bravia.
As estrelas se ajoelhavam
Sob a violência de seus olhos altivos.
Tornava a contempla-la, vencida
E o perfume de sua insistência
Exalava algo divino.
Ela lhe sorria, adormecida.
As torres que assim contemplava
Estremeciam:
Edificadas novamente nas alturas
Por um único vislumbre.
Mas quando, aos poucos, de dia
Sobrecarregado pela paisagem, e ao anoitecer
Repousava estendido sobre sua silenciosa
Percepção.

Os animais entravam confiantes


Em seu olhar aberto pastando
E os cativos leões
Observavam com seus fixos olhos, iguais
A uma liberdade inconcebível.

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Pássaros atravessavam-no com seu voo
A ele, o insensível; flores
Nele se refletiam
Tão grandes como numa alma
Infantil.

E o rumor de que existia um tal


Contemplativo
Comovia os menos
Improvavelmente visíveis
Comovia as mulheres.

Desde quando, olhando?


Desde quando intimamente privando-se
Suplicando ao fundo do olhar?
Quando ele, que vivia na espera, num país
Estrangeiro
Sentado num quarto de pensão
Sentado no quarto disperso, distante dele
Que o cercava de um ambiente taciturno
E no espelho evitado, novamente
O quarto
E mais tarde, visto do fundo de sua torturante
Cama, novamente
O quarto: então
Pensava no vazio
Imperceptivelmente
Deliberava a propósito
De seu coração sensível
No fundo de seu corpo transtornado pela dor

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De seu coração, apesar de tudo
Sensível
A isto deliberava e julgava esse coração:
Não possuía nada do amor.
(E eram-lhe negadas novas consagrações.)
Lá está, limitou-lhe o olhar.

E o universo olhado
Quer alcançar sua plenitude
No amor.
O trabalho da visão está feito
Faz de agora em diante o trabalho
Do coração
Com respeito às suas imagens, essas
Imagens cativas; pois tu
As havias vencido: mas segues sem
Conhece-las.
Olha, homem interior, tua menina interior
Conquistada em luta bravia
Contra mil naturezas
Essa criatura conquistada, e contudo ainda
Não amada.

20 de junho

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LOU ANDREAS-SALOMÉ A RILKE
EM PARIS

Göttingen, 24 de junho de 1914, quarta-feira

Após dois dias de ausência (para ir falar


com alguém) estou de volta hoje, e integral-
mente com tuas palavras e a sós com as mes-
mas diante desta “virada decisiva” que repre-
sentam e que, contudo, já não são, pois já esta-
vam preparadas havia muito tempo, quase que
realizadas: teu corpo sabia-o, por assim dizer,
antes mesmo que tu, mas claro, do modo como
os corpos tendem a saber – com uma fidelida-
de, uma retidão infinitas, de maneira que isto
haveria de conduzir a um novo mal-entendido
com o espírito por algum tempo. Sabes em que
poderias reconhecer isto? Nos olhos, neles, que
enxergam e que conquistam a figura única de
mil matizes que “ainda não foi amada”; os
olhos que queriam amar transgrediram o limite
que lhes foi imposto e (lembras-te do que me
disseste?) os olhos celebraram núpcias em um
vislumbre, não só no sentido poético, mas, ver-
dade seja dita, no sentido mais corporal, até a
agitação do sangue, como se naqueles momen-
tos produzisse muito mais do que um simples
olhar (como no caso da menina que se encarava
em teus olhos como num espelho, enquanto se

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arrumava; assim também em outros casos mais
pessoais).

Porém, quanto aos olhos, abandonados


ao esforço de sua busca, além do limite do que
habitualmente só ao espírito deveria levar, em
sua visão solitária podiam tornar-se cada vez
mais corpóreos e, de certo modo, aproveitando-
se de confusões com fatos obscuros (processos
subterrâneos que não se realizam na superfície
do corpo, disposta para o exterior), apenas po-
diam conhecer estranhos tormentos; pois o
“trabalho do coração”, em contato com aquilo
que não havia sido mais que uma visão artísti-
ca, somente podia realizar-se a partir da pro-
fundeza mais interior.

Foi assim que ocorreu que, por exemplo,


o sangue fluísse para os olhos em forma de
congestão, determinando dolorosas pressões;
como se tal fluxo tendesse, por equívoco, a
transformar os olhos em órgãos genitais, a
transforma-los naquilo, absolutamente, do qual
advêm os milagres corporalmente geradores; e
sofriam, na luta de seu sincero esforço, que
apenas os conduzia a uma dissensão com o
corpo, em lugar de trazer-lhe a calma. Até que
o coração se pôs a bater ao ritmo do grande
amor no qual o exterior e o interior se unem, o
amor que, de repente, se apercebe de todos os

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seus tesouros e os examina como às noivas. O
que faz o amor ser assim é obscuro, grave e
magnífico, e está situado do lado da vida; quem
ousará descobrir seus primeiros frutos! Seja
como for, tu hás de experimenta-los em si
mesmo. Não sem interrupções ou dúvidas, cer-
tamente. Querido, meu querido velho Rainer,
eu creio que não deveria escrevê-lo aqui – por-
que ademais não há nada aqui que se possa,
verdadeiramente, ser escrito – tenho a impres-
são de que estamos, em alguma parte, estreita-
mente um ao lado do outro (pouco mais ou me-
nos como em Dresden, quando, consultando os
horários, de repente nos vieram desejos de vol-
tar a Munique), apertados um contra o outro
como crianças que mutuamente se comunicam
algo doloroso ou tranquilizador.

Gostaria de seguir escrevendo, dizer e


seguir dizendo: não porque saiba realmente
sobre um monte de coisas, mas sim porque os
acordes do teu coração, estes acordes profun-
dos, novos, percebo-os no mais profundo de
minha alma (ainda que de um modo muito dife-
rente do teu, pelo fato de que, como sou mu-
lher, encontro-me enraizada, de certo modo,
nesse terreno).

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Se precisas ir até Leipzig, não podería-
mos, não deveríamos, não quereríamos ver-nos
antes, no caso de que tu assim também o quei-
ras, a meio do caminho, às margens do Reno?

Lou

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RILKE A LOU ANDREAS-SALOMÉ
EM GÖTTINGEN

Paris, 26 de junho de 1914, sexta-feira

Querida Lou, você sabe e compreende; e


que eu não possa nem por um segundo ver as
coisas a partir de ti mesma, tal como as imagi-
no vistas por ti, que não possa ter a inteligência
alheia... em todo caso, voltarei fortificado ao
seio de minhas complicações sem fim, já há
tanto tempo produzidas. Só Deus sabe o inter-
valo que separa o poema da “virada decisiva”
do advir de novas condições, e continuo ainda
muito lento; só Deus sabe se poderei ainda al-
cançar semelhantes mudanças, já que as forças
continuam abusando de si mesmas e esgotando-
se nos maiores mal-entendidos. Por isso me
havia prometido um número indescritível de
coisas para esta disposição, ao fim justa e cheia
de ternura com respeito a uma natureza huma-
na, já que por essa mesma razão todas as dis-
tâncias ter-se-iam modificado: a relativa ao
mundo voltaria a ser igual ao infinito, a relativa
ao próprio corpo igual a zero, e no intervalo
todos os números teriam experimentado uma
gradação sem malícia. Assim, a atenção exces-
siva aproximou de mim muitas coisas, fazendo-
as parecer maiores que seu tamanho natural, e
por outro lado, insinuou entre mim e meu cor-
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po, ao tempo em que o excitava, relações com –
provavelmente – o mesmo tipo de equívoco de
minhas relações com o corpóreo em geral. As-
sim o mal se fixou em cada veia, e se arraigou
em cada músculo. Vem-me a ideia de que uma
apropriação espiritual do mundo, no momento
em que se utiliza tão completamente do olho
(como no meu caso), se faria de modo menos
perigosa em um artista, porque se acomodaria
de forma mais tangível em contato com os fatos
corporais. Sou semelhante à pequena anêmona
que vi uma vez num jardim de Roma, tão am-
plamente aberta durante o dia que já não podia
fechar-se pela noite. Horrorizava-me vê-la tão
aberta no obscuro canteiro, preparada para aco-
lher novamente em seu cálice escancarado, co-
mo que enfurecido – havendo demasiada noite
pesando sobre ela – uma noite infinita. E perto
dela suas prudentes irmãs, cada qual encerrada
em sua pequena medida de superfluidade.
Também eu estou irremediavelmente inclinado
para o exterior, e por isso igualmente distraído
por qualquer coisa, ao não desprezar nada;
meus sentidos se ocupam, sem pedir minha
permissão, de tudo que é molesto. Que se pro-
duza um ruído... renuncio a mim mesmo e pas-
so a ser esse ruído; e como tudo que é excitável
quer também ser excitado, no fundo estou pe-
dindo para ser molestado. E assim o sou, sem
trégua. Fugindo à claridade, uma vida anônima

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se refugiou em meu interior, retirando-se para
um lugar mais afastado e ali vivendo como as
pessoas de uma cidade sitiada, entre privações
e aflições. Quando lhe parece que chegaram
tempos melhores, faz-se notar por alguns frag-
mentos de elegias, por algum verso inicial, e
logo procura ocultar-se outra vez, percebendo
que no exterior reina a mesma insegurança. E
no intervalo entre esta ânsia ininterrupta do
exterior e esta existência interior, para mim
ainda pouco acessível, se encontram as mora-
das propriamente ditas de sentimentos saudá-
veis, vazias, abandonadas, evacuadas, zona
inóspita cuja neutralidade torna igualmente ex-
plicável por que qualquer ajuda procedente dos
homens e da natureza se encontra, em mim,
destinada ao desperdício.

Faz já um mês, segundo as datas, que


regressei. Passei-o de maneira dietética e vege-
tativa, muito ocupado, toda noite, em dormir:
desde as nove da noite até seis da manhã – o
que, além do mais, cumpria com assiduidade,
recuperando inclusive de dia alguns suplemen-
tos de sono (emocionado ao ver como minha
natureza, pelo menos com respeito ao sono, me
poupava do não poder do qual não paro de ofe-
recer exemplos em todos os outros campos).
Em resumo, preso diante de cada folha, diante
de qualquer livro, como uma cabra acorrentada

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a um poste; e quando me apercebia de minha
prisão, nela me enredava tão miseravelmente
que nem sequer dispunha de toda extensão das
correntes. Em tal situação folheava sem qual-
quer prazer livros cem vezes abandonados, re-
conhecendo tão somente a diferença entre as
muitas rações; já que também tenho isto em
comum com a cabra, o fato de que não posso
preservar nada de tangível daquilo que ruminei;
do que se segue que de si mesmo resta apenas o
destino de ser um ruminante, e não existe aí
nenhum consolo uma vez que se tenha passado
a ser um estorvo para si mesmo.

Que maravilhosa e inesgotável subestru-


tura necessitará uma vida destinada a encontrar
mais tarde sua atividade em uma elevação artís-
tica! É nisso que o jovem Goethe não deixa de
assombrar-me cada vez mais: a maneira como a
“relação” constitui para ele de início, a medida
do suportável, mas também de sua sorte. Não
juntar nada inutilizável, mas tão só o utilizável
em seu oportuno momento; desde a primeira
juventude acumular dentro de si o que se pode
e o que se poderia, as recordações mais dife-
renciadas e mais a si mesmas opostas; a fim de
não cair, sem ter mais que uma centena de pos-
sibilidades, na infinita ausência de todas as ou-
tras nas quais os deuses nos são capazes de pre-
cipitar a cada instante.

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LOU ANDREAS-SALOMÉ A RILKE
EM PARIS

Göttingen, 27 de junho de 1914


Sábado pela manhã

Querido Rainer, foi apenas alguns dias


atrás, após ser-lhe enviada minha última carta,
que passei a entender e viver seu poema, pois
nos primeiros momentos seu sentido objetivo
me subjugou demasiadamente para tanto. E
agora o releio, ou melhor: não paro de recitá-lo
para mim mesma. Existe nele como que um
reino recentemente conquistado, do qual ainda
não se distinguem bem todas as fronteiras, es-
tendendo-se para além do espaço que se pode
nele percorrer; a cada vez, percebo-o mais am-
plo; pressinto muitas viagens e peregrinações
ainda por fazer através de caminhos nos quais
as brumas jamais se dissipam. E apenas um
pouco do brilho diurno, apenas o necessário
para avançar um passo, seria – de um para ou-
tro poema – como uma fórmula real jamais pra-
ticada de prosseguir avançando em um terreno
onde (ao contrário de na simples “arte”) o es-
clarecimento e a ação representam uma única e
mesma coisa; o mesmo apenas pode ser poema
na medida em que se volte a conquista-lo em
proveito da experiência vivida. Em alguma par-
te, na profundidade, toda arte volta a começar
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como em suas mais remotas origens, como uma
fórmula mágica, um conjuro – evocação da vi-
da sob sua forma humana, do fundo de seus
abismos até então impenetráveis. Com efeito,
naquilo onde a oração e a suprema explosão de
potência nada mais são que uma única e mesma
coisa. Não me canso de refletir sobre isto.

Depois tornei a ler, subitamente, o poe-


ma do Narciso, cujo texto você me enviou no
verão passado. E vi então nele como que a pré-
história da Boneca Russa. Porque, pelo efeito
que este poema produz, parece que nele há um
singular aprofundamento da tristeza de Narciso
(essa tristeza emanada da lenda e do amor por
si mesmo recusado) em favor do inorgânico,
por assim dizer, do não vivente através do qual
se contempla. (“Agora tudo jaz na indiferente e
dispersa água... lá onde nada há além do humor
sempre igual das pedras esquecidas”). Esta par-
te dele mesmo que foge do exterior, sem ser
detida pelo “meio flexível”, apenas adquire seu
efeito pleno em virtude daquilo que está morto,
no qual esta parte fugitiva se detém, para con-
verter-se assim naquilo que lhe faz frente. Ao
mesmo tempo, contudo, aparece alusivamente
naquilo que foge ao exterior a razão de ser de
tal forma, o motivo desta experiência cheia de
tristeza ser assim inelutável: o fato de que ele
mesmo se dissolva também no sentido criador

34
(“no ar e no sentimento dos bosques”), o fato
de que não enfrente nenhuma hostilidade – o
fato de que por seu lado dê vida ao que foi de-
clarado morto, ao exterior, àquilo que lhe faz
frente, chegando a extinguir sua vida para além
de tudo isso. E em terceiro lugar se manifesta,
também, como esses dois processos se reúnem
imperceptivelmente em determinado ponto,
transformando-se assim em uma tristeza eróti-
ca: “O que aí se forma e me é seguramente se-
melhante, e que emerge tremendo entre sinais
afogados em lágrimas, podia ser que nascesse
assim no interior de uma mulher, isto, que per-
manecia inacessível”. O fato de enfrentar o
inorgânico, o fato de converter-se em boneca,
expressado ao mesmo tempo como o fato de
enfrentar nosso próprio corpo, o qual (ainda
que sendo o orgânico, o vivente) não deixa de
ser para nós o exterior e o lado externo no sen-
tido mais íntimo, a primeira coisa diferenciada
em relação a nós mesmos, enquanto que somos
os interiorizados, os que habitamos o interior
do corpo, como a face do ouriço; e, contudo, o
que concerne precisamente ao nosso corpo,
nossos pés, nossos olhos, nossas orelhas, nos-
sas mãos, é certamente aquilo que se diz ser
“nós mesmos”; este inquietante, desorientador
fenômeno, normalmente não se dissipa comple-
tamente mais que no comportamento amoroso
do outro, e é só ele que legitima de maneira

35
suportável nosso corpo enquanto “nós mes-
mos”. Porém, em vez disso, as partes integran-
tes se associam e dissociam novamente no “cri-
ador”: por isso o que vem daí sugere uma reali-
dade nova, ao contrário de uma simples repeti-
ção.

É isso que te machuca; através de ti não


posso pressentir a felicidade.

Peço que me perdoe.

Lou

36
RILKE A LOU ANDREAS-SALOMÉ

(Continuação da carta de 26 de junho)

Talvez, querida Lou, talvez. Mas minha


situação não é tanto pior porquanto foi prepara-
da no mais profundo de mim, posto que me
desenvolvi até formar algo tão complicado?
Um ano de intervalo separa o Narciso do poe-
ma do outro dia, um ano apático, e quando vol-
to a vista para trás tenho a impressão de ser tal
como agora, e ainda um pouco mais entorpeci-
do, mais impenetrável, mais morto. Até que
semelhante tarefa me faz levantar o braço; mas
com que rapidez volta a cair, e fico sem poder
me recuperar... Meu corpo se transformou nu-
ma armadilha; ao que recebia para retransmitir,
segura de um bocado e estoca-o; superfície re-
pleta de armadilhas nas quais se desmaiam im-
pressões atormentadas; zona petrificada, sem
condutibilidade; e nas profundezas mais distan-
ciadas, como no centro de uma estrela que se
esfriou, o fogo maravilhoso que não pode bro-
tar de outra forma que não a vulcânica, aqui ou
ali, como fenômenos que, para a indiferente
superfície, são como uma devastação, que se-
meia a confusão e o perigo. Não é acaso este o
esquema de uma enfermidade real, esta decom-
posição da vida em três zonas, das quais a mais
superficial exige excitações, dado que não pode

37
mais ser alcançada nem agitada pela violência
dos fogos internos...? Eu era um em minha ju-
ventude, apesar de todas as angústias! Prova-
velmente irreconhecível no conjunto, mas to-
talmente reconhecível quando encurralado, em-
bora. Maldoso até a abjeção e, no entanto, tão
misteriosamente apto para a cura. Que uma
alegria revoluteasse em torno ao meu rosto...
imediatamente invadia a mais secreta região de
minha alma; que respirasse o ar matutino... e a
ligeireza e elegância iniciais da manhã me pe-
netravam de lado a lado, alcançando todos os
graus de minha natureza; se, às vezes, provava
um fruto, derretia-me na boca, e sentia-o, como
uma palavra do espírito que se liquefizesse,
uma sensação de indestrutível êxito em si
mesma, e o puro gozo desse fruto se espalhava
com igual intensidade por todos os vasos san-
guíneos visíveis e invisíveis de minha anato-
mia.

E agora são as viagens, e as possibilida-


des, as mudanças mais ativas e totais para nada,
pelo fato de que me vejo crispado em uma es-
pera incessante que esgota minha vista, que
extenua meu corpo, sobrecarregando-o de certa
forma, enquanto que a alma, à margem, ocupa-
da com outras coisas, se desentende de minhas
tensões. Eu me entrego a essa espera, mas não
faz o mesmo minha alma (o que ocorre tanto

38
com relação ao olhar quanto no amor); e por
isso meu corpo se contorce nessa árida solici-
tude, pela qual não circula nenhuma seiva que
reverdeça e suavize cada ramo de meu compor-
tamento. Quanto mais me examino, mais evi-
dente me parece: mantenho uma atitude (aquela
à qual me imponho em certos momentos de
meu trabalho), e minha alma mantém outra, a
próxima, ou a imediatamente seguinte à próxi-
ma; de modo que já não estou ao meu favor,
nem ninguém o está. Ela é o metal da campai-
nha e Deus a mantém incandescente e prepara a
hora potente da fundição: mas eu sou ainda a
antiga forma, a forma da campainha preceden-
te, a forma obstinada que cumpriu seu papel e à
qual não lhe agrada que seja reposta e assim a
sonoridade não se realiza. Como posso com-
preender tantas coisas e não conseguir sair des-
te atoleiro?... Desde anos assim.

Renovação, metamorfose, santificação –


e minha alma tentou ajudar-me, bem sei. Mas
quem poderia renovar-se sem destruir-se an-
tes?... E ao longo de minha vida tenho me por-
tado como uma criança delicada, que não pode
resistir ao menor ferimento.

Querida Lou! Quantas razões e quantos


disparates em tudo que aqui escrevo!

39
Mas não me tomes tão ao pé da letra...

Quanto a passarmos juntos alguns dias e


conversar em um ambiente campestre e contu-
do confortável, me parece uma ideia bonita e
importante; muito mais, talvez, do que se tives-
se sido no ano passado. Se não fosse porque
temo partir daqui, na medida em que essa data
se aproxima, todo o transtorno das influências,
a preponderância das coisas exteriores, a neces-
sidade de representar ser alguém com relação
ao exterior, de dizer “eu” aos demais... em pou-
cas palavras, a necessidade de estar pronto,
como um chá que repousou pelo tempo cor-
reto... enquanto que agora (durante todo este
mês) estou em infusão, silenciosamente, a par-
tir do fundo, sem levantar a tampa, mudo; e
ninguém se importa em saber se, no intervalo,
me colori de negro ou dourado, ou se tenho um
sabor demasiado amargo. É este o estado de
espírito que cada vez me inspira mais confian-
ça, inclusive quando meio prisioneiro, meio
adoentado, apenas o suporto e (como agora),
me abandono a ele, em vez de fomenta-lo.

Estará você bastante livre para que pos-


samos, se for o caso, acertar esse encontro?
(Pensa bem no que mais lhe convém: em que
lugar?).

40
Para meados de julho me esperam em
casa dos Kippenberg, e não deveria atrasar-me,
visto que planejo algo diferente (do qual te fa-
larei) para o mês de agosto. Cuida-te bem, que-
rida – no fim tudo dará certo! Paris me decep-
ciona de tal maneira que não tenho vontade de
ver nada – pelas manhãs passeio pelas magnífi-
cas avenidas do Observatório, e depois, pelo
meio-dia, dirijo-me ao pequeno restaurante ve-
getariano onde a salada e o iogurte, à sua ma-
neira demasiado intencional, me fortificam no
bem, na seriedade do bem. Posso apenas des-
crever por cima os males que me têm feito esta
cidade no que tange à minha vida exterior; os
ambientes daqui me são particularmente nefas-
tos na medida em que, ao serem testemunhas
de outros tempos, já perdidos, de atividade in-
terior, se fazem cúmplices de muitos pensa-
mentos irresponsáveis, indômitos e sem saída.
Porém, por outro lado, eu soube como dilapidar
com tanta rapidez qualquer outro ambiente du-
rante estes últimos anos, tornando-os todos
agoniantes e equívocos... o bosque das altas
montanhas no verão passado, o mar. Houve
então apenas uma hora na qual teriam sido para
mim uma expressão do universo, e que não ti-
vessem sido, de alguma maneira, motivo de
desculpa ou de tentação, enquanto que aqui o
que há de bom, ao menos, é que não tenho de

41
me enclausurar em um quarto de hotel, mas me
cerco de quatro altas e brancas paredes que,
apesar de tudo, dependem um pouco de mim.

Faz bom tempo por aí e há muitas rosas?

Rainer

42
LOU ANDREAS-SALOMÉ A RILKE
EM PARIS

Göttingen, quinta-feira, 02 de julho de 1914

Sim!... E, no entanto, por muito que te


apercebas, constantemente, daquilo que não
passa de pura inibição, não será assim que –
aqui ou lá, por assim dizer, em breves momen-
tos sem qualquer relação com tua continuidade
propriamente dita, em certos poemas isolados –
explodirá aquilo que dá uma impressão de
abundancia e de força; não, não será assim, mas
da mesma forma que, quando te sentes constan-
temente desgostoso e miserável, encontras para
tanto expressões que, similarmente, seriam ab-
solutamente inconcebíveis se em alguma parte
do teu interior não acabassem por fluir em uma
única experiência naquilo mesmo que sentes
como tão separado e deslocado por uma fuga
para o exterior, e num recolhimento para o inte-
rior com, durante o intervalo, algum centro va-
zio, abandonado à própria sorte. As palavras
com as quais falas disso, por exemplo, a respei-
to da anêmona, não são mais que tua obra, tra-
balho, cristalização das unidades mais profun-
das no interior de ti mesmo.

É verdade que grande parte da elabora-


ção poética nasceu a partir de todo tipo de de-
43
sesperações: mas, se nascesse da desesperação
de não ser capaz de semelhantes condensações,
haveria nisso, apesar de tudo, um equívoco, não
é? É essa a impressão da consciência de ti
mesmo, tua consciência se encontra ao lado do
que permanece submetido às inibições e, por
esta razão, não acompanhará os momentos em
que se vai revelando que tu não estás tão com-
pletamente desunido como “te” sentes e acre-
ditas estar; sofres por ti mesmo enquanto inibi-
do, e a porção de felicidade que se encontra
nesse estado de coisas te permanece oculta,
apartada, ainda que todas as condições necessá-
rias para esta felicidade sejam inerentes a ti e se
produzam por ti; pois não se pode falar da
anêmona como fazes sem alguma felicidade (a
qual não alcança plenamente o estado conscien-
te!). Certamente, estou longe de querer adoçar
minhas palavras – contigo menos que com
qualquer outro; tu sabes com que frequência,
durante os primeiros anos, não deixei de insistir
para que tomasses consciência do “Outro”; mas
agora ocorre como se tua consciência com rela-
ção a ele (o “Outro”) fosse muito mais além
dele, fazendo-se consciência de ti enquanto que
tua exclusivamente, de modo que – ao contrário
de antes – não enxergas a ti, não te aceitas, nem
te auto afirmas; passas simplesmente desperce-
bido para ti mesmo e não há nada que conhe-
ças, além do “Outro”: igualmente, se antes,

44
apesar do teu não querer saber, o “Outro” exis-
tia, em troca agora és tu quem existes. Ainda
que isto não modifique em nada o problema,
posto que nada foi dito que escape ao sentimen-
to e ao pensamento, a prova de que algo existe
é, contudo, importante, tanto quanto a tumes-
cência de um membro não suscita o pânico de
sua amputação: a tumescência talvez dependa
de processos que podem ser solucionados de
um para outro momento, sem que por isso seja
suprimida a alimentação, etc... Não obstante,
continuo a pensar... comigo mesma: no mo-
mento isto não serve de nada e, realmente, não
faço mais que levar-te através de campos de
trigo, enquanto tu te encontras privado do pão
cotidiano... Quiçá fosse possível fazer algo
mais, através de uma conversa frente a frente.

Lou

45
46
RILKE A LOU ANDREAS-SALOMÉ
EM GÖTTINGEN

Paris, 04 de julho de 1914, sábado

Cinco semanas vivendo dia a dia, dei-


tando-me com a maior regularidade e não ob-
tendo disso nenhum proveito; não o proveito
que, normalmente, depois de duas semanas se
faz infalivelmente sentir: a regularidade da
existência corporal, com relação à qual o can-
saço, a dor, o mal-estar, o descontentamento
não são mais que oscilações por cima ou por
baixo daquilo que é normal, quando alguém
preserva essa regularidade, quando confia nela
como condição para, bem ou mal, interpretar o
tema que cada um deve representar. Se tivesse
de dizer, em poucas palavras, como me sinto a
um médico: perdi o nível corporal; a menor
influência, qualquer intenção, quer se trate do
esforço intelectual da leitura, ou da escrita, ou
do abandono ou domínio, alternados a um mo-
mento produtivo, ou simplesmente do mais
simples dos esforços físicos (a ação de abrir
uma porta trancada, por exemplo), provocam
agora não este ou aquele sintoma em meu cor-
po, mas uma vacilação geral de todas as suas
relações: e assim se impõe à minha consciência
uma perturbação, reduzindo a nada tudo quanto
pudesse nela subsistir, colorindo-a de ponta a
47
ponta com misérias à menor ocasião. Mesmo os
seres que sofrem, nos momentos de refluxo de
suas dores, tornam a encontrar o nível médio de
sua situação corpórea, e a confiar em seu corpo.
Quanto a mim, emigro, por assim dizer, sem
descanso, de um estado generalizado para ou-
tro. Inclusive quando, de uma ou outra forma,
aceito o estado existente e nele me instalo, por
mais penoso que este seja, consentindo em con-
sidera-lo neutro, o mesmo passa a adquirir ma-
tizes tão evidentemente diferentes que por pou-
co não posso identifica-lo, pela habilidade com
que se metamorfoseia. Dizer: “eu” e ver nisso
uma constante na qual o corpóreo pudesse, de
modo evidente e quase insensível, entender-se
consigo próprio; estar seguro de poder afirmar
um só dia tal constante não decomposta, sem
precisar controla-la, protege-la durante a noite
(ainda que na mais propícia) para voltar a en-
contra-la intacta no dia seguinte: eis o que não
consigo há anos. Se uma ocupação intelectual
contínua, de caráter muito documental, se con-
trapusesse a esta passividade, a mesma jamais
teria adquirido tamanhas proporções. Mas, em
minha própria situação, para a qual seria tão
importante manter o intelecto na mais perigosa
suspensão, expondo-o impiedosamente às in-
fluências do céu e da terra, o corpo não poderia
nada – em sua tumescência – além de extrair a
pior lição desta disposição de espírito, que imi-

48
ta-lo e fazer-se produtivo à menor ocasião, à
sua maneira, em suas circunstâncias próprias.
Imaginemos uma bordadeira cujo trabalho se
transformasse perpetuamente sob suas mãos,
seja porque as tramas se aflouxaram, seja por-
que encolheram, ou porque os fios fossem de
diferentes diâmetros: como não terminaria aí
deslocado o mais bonito ponto em cruz, o mais
encantador motivo?...

Esta reação horripilante se me fez com-


pletamente precisa, ao longo dos dias tórridos:
não se pode dizer que eu os passasse de um
modo desagradável, e, contudo, o calor (o qual
é asfixiante em meus aposentos, situados logo
abaixo do telhado) custou-me as noites mais
torturantes. Ontem, quando mudou o tempo, eu
permanecia num estado que a palavra “esgota-
mento” é incapaz de definir. A tensão e o rela-
xamento excessivos dos tecidos, que tão bem
conheço, até às têmporas, passando pela farin-
ge, se haviam amparado em toda superfície de
meu corpo, até tal ponto que parecia como se
em cada membro uma convulsão crescente qui-
sesse neles abrir milhares de pequenas bocas
com o intuito de bocejar. Obriguei-me tanto
quanto pude a permanecer em minha mesa de
trabalho até que finalmente tive que me deitar;
a convulsão diminuiu no corpo, mas ao meio-
dia retornou com tanta violência na cabeça e no

49
pescoço que nem sequer consegui concentrar-
me na leitura, e já não me restava nada além de
dar o dia por acabado. Isto foi com relação ao
calor; mas amanhã será, evidentemente, outra
influência, visto que continua sendo da atmos-
fera – também a das pessoas e dos objetos – de
onde as influências surgem e me atacam sem
cessar; e como meu corpo responde inclusive
quando nada o solicita e ninguém pergunta, o
assunto é digno de desespero. A mão de meu
barbeiro, com sua mistura de perfumes, dife-
rente a cada manhã, pode-me impressionar de
tal maneira que toda vez saio de lá com uma
disposição variada; e esta mão basta, também,
para indispor-me fisicamente: o fato de querer
evita-la, respirando o menos possível à medida
que passa diante de meu rosto, provoca novas
tensões na testa e na garganta (este é apenas um
exemplo); em resumo, encontro-me à mercê de
qualquer um, da maneira mais lamentável e
ridícula.

Mostrar este corpo a um médico, cheio


como está de indiscrições, assim como minha
falsa relação com ele, eis aqui o que, no fim das
contas, será a única saída. Não a um psicanalis-
ta, para que o mesmo trabalhe partindo do pe-
cado original (já que opor à fascinação do pe-
cado original uma contra fascinação é, propri-
amente falando, minha mais íntima vocação e o

50
pretexto de toda posição artística que tomei na
vida), mas sim (mostra-lo) a um médico, que a
partir do corpóreo poderá segui-lo e compreen-
de-lo até o espiritual. A ti, querida Lou, posso
dizer; penso em Stauffenberg (como cheguei a
esta ideia, e também como recentemente se viu
reforçada minha confiança nele... sobre isso
comentaremos depois). Ele diz poder dispor de
tempo para mim em agosto, pelo que é de pre-
ver que por essa data não estarei longe dele
(inclusive em Munique ou seus arredores). Sin-
to não poder ser atendido desde já, pois me en-
contro atormentado como um cão que tem um
espinho cravado na pata e que coxeia e a lam-
be; o qual, a cada vez que apoia a pata, já não é
o cão, mas sim o espinho, algo que ele não
compreende que possa ser. Não me cabe na
cabeça que não existam remédios simples e
bons, suscetíveis de reduzir pouco a pouco em
mim os fenômenos que, de algum modo, se
exteriorizam por si mesmos na periferia, como
os espinhos engolidos pelos histéricos. Não se
trata neste caso de ajudar-me no mais interior
de mim mesmo, em minhas profundezas pri-
mordiais (lá, pelo contrário, as ajudas se acu-
mulam), mas sim de libertar-me as mãos a fim
de que posse colher essas ajudas. Apenas oito,
ou três dias vivendo nesse estado que se chama
“bem-estar”, ou seja, a neutralidade física (a
imparcialidade do corpo) e a potência em meu

51
interior seria preponderante, e de mim se apos-
saria; enquanto que por agora sou eu quem se
arrasta penosamente com esta potência, como
um pássaro doente esmagado sob o peso de
suas próprias asas.

Rainer

52
RILKE A LOU ANDRÉAS-SALOMÉ
EM GÖTTINGEN

“É preciso morrer para conhecê-las”.

Morrer
Pelo indizível florescimento do Sorriso
Morrer
Por suas mãos ligeiras. Morrer
Pelas mulheres.

Que cante o adolescente àquelas


Que provocam a morte
Quando caminham altivas pelo espaço
Do seu coração.
Que de seu peito ampliado
Suba seu canto até elas:
Inacessíveis. Ah! Quão estranhas são!
Além das cismas
De seu coração se elevam e esparzem
Pedaços de noite
Suavemente metamorfoseados
No abandonado
Vale de seus braços. Brame
O vento em sua escalada em meio
À folhagem do seu corpo
Cintilam
Seus fugitivos regatos.

53
Porém que o homem
Se cale, por mais agitado. Ele que
Perdido, pela noite, pelos montes
De seus sentidos, tem vagado:
Que se cale.

Paris, julho de 1914*

* Poema procedente do diário de Lou (Nota do editor).

54
POSFÁCIO
As pessoas boas às vezes pensam que se
trancando por trás de uma grossa porta deixa-
rão o medo de fora. Mas eis aqui alguém que
habita com toda sua crueza o desamparo e a
intempérie – cumprindo seu destino sob os céus
abertos. Que notícias nos traz este viajante no-
bre e machucado?

Sou semelhante à pequena anêmona que


vi certo dia num jardim de Roma...

A noite parece não ter fim, e este cami-


nhante entregue ao Aberto se vê arrastado em
uma deriva sem residências. A trama de sua
vida vai sendo urdida com os milhares de ecos
e reflexos que por toda parte o procuram. Sem
trégua.

Chega até nós seu lamento.

Chega até nós seu lamento:

Se fosse possível recolher-se a algum


lugar para passar a longa noite. Se fosse pos-
sível fechar essa ferida escancarada que se
abre para o mundo e pela qual a vida se lhe
escapa...

55
Imaginemos uma bordadeira cujo traba-
lho se transformasse perpetuamente sob suas
mãos...

Para onde orientar seus passos?

Outrora, existiam caminhos – sempre


era possível voltar para casa.

Mas será lícito ceder às seduções do-


mésticas do medo?

O animal está no mundo como a água


está na água – dizia Bataille. Ao homem, no
entanto, é vedada esta experiência. A ferida
que o abre para o mundo é irrenunciável: é ela
que o constitui como homem. Todo seu ser não
passa dessa crispada distância, da qual quanto
mais se apropria, mais lhe parece estranha –
olhar atento para esse mundo no qual está,
mas sem ser, ele mesmo, o mundo.

Olhar e distância.

Encontro-me atormentado como um cão


que tem um espinho cravado na pata e que co-
xeia e a lambe; o qual, a cada vez que apoia a
pata, já não é o cão, mas sim o espinho, algo
que ele não compreende que possa ser.

56
...espinho insone que somente com a
morte reduzirá a dor e a diferença, fechando o
olho desmesurado dessa ferida e tornando-se
água na água...

Porém, de que lamentar-se? E a quem?

A vida pode ser abandonada, mas não


pode ser vivida sem orgulho – são palavras
como estas que Lou sussurra ao ouvido do poe-
ta, e que valem por todos os consolos e diag-
nósticos que naqueles momentos Rilke, rompi-
do, mendiga. E o orgulho consiste em assumir
a presença surda da própria morte como con-
traponto preciso da vida, para fazer de cada
instante vivido um instante querido – uma
afirmação. Assumir as forças que brotam dos
abismos de si mesmo e, lutando para se expres-
sar, rasgam a pele delicada do poeta – subme-
ter-se ao daimon para chegar a ser o que se é.
Assumir essa solidão irremediável que preen-
che de desamor o coração de Narciso e impor
silêncio ao medo que converte a dor em lingua-
ruda – desdramatizar a própria importância.

Não se pode falar da anêmona como fa-


zes sem alguma felicidade.

E acaso se pode dizer eu sem mentir?

57
O aprendizado de Rilke será lento, mas
talvez por isso mesmo sua sabedoria seja mai-
or. Sua correspondência com Lou Salomé co-
bre um segmento particularmente patético de
sua instrução. Talvez sejam estas as relações
epistolares mais significativas que o poeta
manteve, ainda que não sejam as únicas. Clara
Westhoff Marie von Thurn und Taxis-
Hohenlohe, André Gide, Benvenuta, são alguns
dos nomes que cobrem sua apertada corres-
pondência.

Inclusive algumas de suas obras adota-


ram a forma epistolar: Briefe an einem jungen
Dichter (1929), Brief des jungen Arbeiters
(1922)...

Partindo de seu naufrágio, Rilke escre-


verá centenas de cartas, assustado as mais das
vezes, buscando um auxílio que os homens não
saberiam como dar – mensagens que vogarão,
à deriva, pelo mar. Lentamente, compreenderá.
Aprenderá que seu infortúnio não tem reden-
ção: seu destino está unido ao dessa Europa
que soçobrou como forma de vida espiritual.

Quem poderá acudi-lo, resgata-lo neste


arquipélago de náufragos sem esperança?
Como sonhar que hão de aparecer algum dia
no horizonte os mastros que anunciarão sua

58
salvação, quando não restou terra firme onde
se possa aportar?

Prosseguirá escrevendo, entretanto.


Mas o medo, pouco a pouco, deixará de aprisi-
onar sua pena e uma insuspeita força ocupará
seu lugar. Suas mensagens serão então dádivas
de esperança dedicadas àqueles que, como ele,
habitam no desamparo. Com Duineser Elegien
(1923) e Die Sonnene an Orpheus (1923) sua
poesia – nas palavras de Musil – deixa de ser
de porcelana e se transforma em mármore:
vontade tornada música. Na primeira destas
obras, Rilke escreve o que bem poderia ser o
lema da reconciliação com seu destino, tão
desesperadamente perseguida em sua corres-
pondência anterior (...renovação, metamorfose,
santificação...):

...aquilo que em definitivo nos assombra


é estarmos desamparados...

As pessoas boas às vezes pensam que se


trancando por trás de uma grossa porta deixa-
rão o medo de fora, mas aquilo que em defini-
tivo nos assombra é estarmos desamparados.

Barcelona, fevereiro, 1980

Miguel Morey

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Lou Andreas-Salomé

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Rainer Maria Rilke

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Rilke e Lou Andreas-Salomé na casa de
veraneio da família Andreas (1897)

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